The Project Gutenberg eBook of Historia da litteratura portugueza [Vol. I]

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Title: Historia da litteratura portugueza [Vol. I]

Introduccao e theoria da historia da litteratura portugueza

Author: Teófilo Braga

Release date: September 8, 2024 [eBook #74392]

Language: Portuguese

Original publication: Porto: Livraria Chardron

Credits: Rita Farinha, Laura Natal, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by The Internet Archive)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA [VOL. I] ***
cover

OBRAS COMPLETAS


HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA


INTRODUCÇÃO


HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA

EDIÇÃO INTEGRAL

1 Introducção e Theoria da Historia da Litteratura
portugueza
1 vol. 
2 Trovadores portuguezes 1   "
3 Amadis de Gaula 1   "
4 Poetas palacianos 1   "
5 Os Historiadores portuguezes (Inedito) 1   "
6 Bernardim Ribeiro e os Bucolistas 1   "
7 Novellas de Cavalleria e Pastoraes (Inedito) 1   "
8 Gil Vicente e as origens do Theatro nacional 1   "
9 Sá de Miranda e a Eschola italiana 1   "
10  Ferreira e a Pleiada portugueza 1   "
11  A Comedia e a Tragedia classicas 1   "
12  Vida de Camões 1   "
13  Lyricos camonianos 1   "
14  Epopêas historicas 1   "
15  Bibliographia camoniana 1   "
16  Os Culteranistas (Inedito) 1   "
17  Épicos seiscentistas (Inedito) 1   "
18  As Tragicomedias dos Jesuitas 1   "
19  A Arcadia de Lisboa (Inedito) 1   "
20  Dissidentes da Arcadia (Inedito) 1   "
21  A baixa Comedia e a Opera 1   "
22  Bocage, vida e época litteraria 1   "
23  José Agostinho de Macedo (Inedito) 1   "
24  Garrett e o Romantismo 1   "
25  Os Dramas romanticos 1   "
26  Alexandre Herculano 1   "
27  Castilho e os Ultra-Romanticos 1   "
28  João de Deus e o moderno Lyrismo (Inedito) 1   "
29  A Eschola de Coimbra 1   "
30-31 Recapitulação da Historia da Litt. portugueza 2   "
32  Indice geral analytico (Inedito) 1   "

N. B. N’esta reedição começa-se de preferencia pelos volumes a refundir, e especialmente pelos que estão ainda ineditos.


HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA

INTRODUCÇÃO
E
THEORIA DA HISTORIA
DA LITTERATURA PORTUGUEZA

POR

THEOPHILO BRAGA

PORTO
LIVRARIA CHARDRON
Casa editora
SUCCESSORES LELLO & IRMÃO
1896
Todos os direitos reservados

INDICE



Porto—Imprensa Moderna


[Pg v]

Um dos sonhos que me embalaram a vida já está realisado: foi a Epopêa da Humanidade, idealisação de trinta annos contínuos enquadrada na VISÃO DOS TEMPOS. Um outro sonho, tambem absorvente e consolador, o plano da HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA, é que me foi educando o criterio e interessando o espirito por toda a complexidade dos phenomenos sociaes. Como autodidacta, n’esse longo trabalho apresento as vacillações e incertezas de methodo, e o desconhecimento de sciencias subsidiarias da historia litteraria. Quanto mais avançava para a terminação da HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA, mais sentia a necessidade de refundil-a integralmente, unificando o processo critico e esclarecendo-a por uma mesma luz philosophica. A obra estava tratada com amor, e apezar de todos os [Pg vi] seus defeitos merecia ser reelaborada; assim o disseram alguns criticos estrangeiros. Para fazel-o, era preciso vencer o problema material dos meios de publicação; emquanto o não consegui fui escrevendo e deixando ineditos os volumes que faltavam á obra completa. Agora que se tornou possivel a reedição da HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA, e que já passaram vinte e trez annos de magisterio sobre esta disciplina no Curso Superior de Lettras, volto mais habilitado a emendar os meus erros e a supprir as deficiencias da educação universitaria. Recordar-se é viver, porém acordando muitas vezes magoas latentes que são sem remedio: revêr uma obra da mocidade é tambem uma recordação, um confronto da capacidade mental, com a vantagem de poder eliminar erros e dar mais nitidez ás concepções de uma vocação incipiente. Para escrever uma HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA digna d’este titulo, faltava-me o conhecimento da anthropologia e da ethnographia; ignorava o processo da formação das linguas romanicas e o methodo philologico comparativo; tinha uma incompleta noção historica da Edade media, e principalmente da revolução occidental que envolve todas as manifestações da historia moderna da Europa; estava desviado de apreciar a missão iniciadora e profunda da cultura greco-romana [Pg vii] continuada pelos povos latinos; com um criticismo anarchico julgava as instituições e os homens, sem ter a vista de conjuncto de uma Philosophia que me revelasse as leis psychologicas e historicas, para coordenar o immenso tropel de factos accumulados por uma erudição impertinente. Todas estas faltas fui reconhecendo, acudindo-lhes com a disciplina conveniente. A revisão de toda a HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA impoz-se como uma necessidade; se na obra poetica fiz a minha Cathedral, esta agora identificada em um mesmo methodo critico ficará o meu Palacio, por onde divaguei livre de paixões ruins em um sonho do trinta annos.

[Pg viii]

DA 1.A EDIÇÃO (1870)

Em 1867, em uma nota do CANCIONEIRO POPULAR appareceu pela primeira vez a promessa de uma HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA. A obra está prompta; não sabemos se será possivel vencer a indifferença geral por esta ordem de trabalhos. Se a parte principal tiver de jazer inedita ou se perder, aqui fica desde já a INTRODUCÇÃO, como fio conductor para o que aventurar-se a examinar os páramos da nossa Litteratura.

Estão lançadas as bases, determinado o elemento nacional, discriminadas as influencias das litteraturas estrangeiras que actuaram sobre nós, e ligada a cultura portugueza ás grandes tradições da Edade media da Europa. A INTRODUCÇÃO Á HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA inaugura uma critica nova: inventaram-n’a os Schlegel, os Grimm, Victor Le Clerc, Paulin Paris, Fauriel e outros; nada mais fizemos do que repassarmo-nos da sua luz. Trabalho modesto a par dos iniciadores, é grande em uma terra aonde se não estuda e nada se respeita.


[Pg 1]

INTRODUCÇÃO
Á
HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA

Quando no fim do seculo XII se constituiu independente o estado de Portugal, terminava o periodo fecundo da Edade media, em que foram elaboradas as condições para a existencia e desenvolvimento das sociedades modernas: Estavam unificadas as raças, que desde o seculo V até ao seculo VII se encontraram, em invasões e occupações territoriaes; differenciadas as classes, as guerras defensivas e o trabalho industrial tinham garantido a estabilidade das cidades com os seus codigos locaes, esboços para a constituição das nacionalidades europêas; realisada a creação popular das linguas romanicas, e o seu emprego na elaboração esthetica das tradições epicas das Gestas feudaes e das canções lyricas dos trovadores ocitanicos; florescia a architectura ogival, e o Catholicismo e o Feudalismo mantinham a nova ordem pela unanimidade da [Pg 2] crença sob o Poder espiritual, e pela dependencia ou subserviencia ao Poder temporal.

Com a nacionalidade portugueza cooperam no seu desenvolvimento moral, economico e politico todas essas manifestações que imprimiram uma certa unidade nos povos europeus sob o regimen catholico-feudal. As diversas raças peninsulares integraram-se em um typo de população mosarabe; os dialectos romanicos definem-se nas formas vulgares em que o galleziano se aperfeiçôa no uso popular e palaciano das canções trobadorescas; as cidades livres ou behetrias redigem os seus codigos locaes ou Cartas de Foral; erigem-se os bellos templos gothicos, e compartilha-se do enthuziasmo da guerra defensiva das Cruzadas, tanto no territorio hispanico como nas expedições de ultra-mar.

Porém do seculo XII em diante, começa a grande crise da Revolução Occidental, pela dissidencia dos espiritos contra a unanimidade do Poder espiritual da Egreja, e das luctas da liberdade civil contra o Poder temporal do Feudalismo. Quando as linguas romanicas estavam aptas para fixarem a idealisação esthetica dos interesses da sociedade medieval, deu-se a instabilidade dos sentimentos e o negativismo dos pensamentos. As Litteraturas romanicas resentiram-se d’esta perturbação, que se prolonga até hoje e ainda actúa sobre ellas; durante os primeiros trez seculos da crise, do XIII ao XV, desconheceram mais ou menos completamente a Antiguidade classica, e os themas poeticos da Edade media foram tratados sem respeito, [Pg 3] preponderando o genio sarcastico nas satyras, nos fabliaux, nos cantos farsis, nas parodias, nas comedias, e até na epopêa, como o Renard, e a faulse Geste. No seculo XVI, esta revolta ataca a ideia religiosa, na Reforma; e pelo enthuziasmo dos Humanistas diante das litteraturas classicas da civilisação polytheica greco-romana, a Edade media é desprezada como uma época barbara, e as Litteraturas romanicas exercem-se na imitação erudita, separando-se os escriptores da cooperação com o povo; aggrava-se esta situação deprimente com a influencia geral do pseudo-classicismo francez no seculo XVII e XVIII, e sómente no periodo do Romantismo, no primeiro quartel do seculo XIX é que as Litteraturas modernas foram revocadas á idealisação das suas origens pela rehabilitação e pelo estudo scientifico da Edade media.

Como todas as outras Litteraturas romanicas a portugueza acompanha esta longa crise social e mental, em que o sentimento ficou sem disciplina; através das mais artificiosas canções amorosas dos trovadores destacam-se as satyras e as coplas obscenas; por seu turno a auctoridade classica impõe-se á imitação dos escriptores, que abandonam com desdem as tradições nacionaes e populares, chegando a idealisação poetica a ser um producto frivolo para a distracção pessoal nas Academias e Tertulias.

A historia da Litteratura portugueza só póde ser feita scientificamente pelo processo comparativo, e collocando-a no quadro das Litteraturas novo-latinas; sob este aspecto não é menos fecunda, nem menos original [Pg 4] do que as outras congeneres, embora se manifestasse depois de todas ellas e reflectisse todas as suas influencias pela solidariedade com a civilisação europêa.

A creação da Historia litteraria é muito recente; foi entrevista por Bacon no seculo XVII, e só depois dos trabalhos materiaes da bibliographia, e pela renovação dos estudos historicos n’este seculo, é que se conseguiu deduzir da obra litteraria a psychologia do que a sentiu, e a relação com o meio social em que foi sentida. Nenhum facto do espirito satisfaz tão bem este processo como a Litteratura; os factos da vida politica ou das emoções religiosas, das instituições sociaes e das descobertas progressivas, são sempre motivados por paixões bastante violentas, com consequencias imprevistas, e por isso não explicam tão claramente o homem como as creações estheticas produzidas por sentimentos desinteressados, por uma espontaneidade especifica de inspiração, por meio de themas tradicionaes que conduzem a uma unidade sympathica. Quem escrever uma Historia litteraria, tem, diante da série das obras de arte, de deduzir o genio e caracter intimo do povo que as produziu, e sobretudo de pôr em relevo as circumstancias exteriores que lhes deram origem; é um processo philosophico desenvolvendo-se conjunctamente com a investigação historica.

No estudo da Litteratura portugueza chegamos por um esforço individual a este resultado, tão lucidamente formulado por J. Jacques Ampère: Se a Litteratura não é uma declamação vã, se é uma sciencia, então [Pg 5] entra no dominio da philosophia e da historia. São pois a Philosophia da Litteratura e a Historia da Litteratura duas partes da sciencia litteraria. Fóra d’isto não ha senão minucias da critica de detalhe e alarde de logares communs. Ampère recommenda que se comece pela Historia litteraria, porque: «Da historia comparada das Artes e da Litteratura em todos os povos, é que deve resultar a Philosophia da Litteratura e da Arte.» De facto os estudos da historia da Litteratura da Grecia, revelam-nos que a Tradição é sempre o elemento organico e o thema elaborado conscientemente pelas mais altas idealisações individuaes; bem como as fórmas universaes das Litteraturas, o Lyrismo, a Epopêa e o Drama têm uma correlação intima com as phases psychologicas da humanidade na sua representação objectiva e na sua reacção subjectiva. Todo o grupo das Litteraturas romanicas está cabalmente historiado, e pela luz do methodo comparativo chega-se aos caracteristicos da sua unidade e similaridade de evolução, como observaram Frederico Schlegel e Comte, na lucta do espirito novo elaborando as tradições medievaes nos rudes dialectos que se hão de tornar linguas nacionaes, reagindo contra o perstigio das obras classicas da antiguidade impostas á imitação pelos eruditos e pela admiração incondicional dos monumentos antigos. Goëthe presentiu que o conhecimento de todas as litteraturas levará ás novas fórmas de uma inspiração universalista; e Comte, prevendo o termo da grande revolução occidental que se prolonga do seculo XII ao XIX, [Pg 6] liga á edade normal da humanidade as novas idealisações que darão ao sentimento a preponderancia social e moral de uma Synthese affectiva.

Pela marcha dos estudos accumulados póde já preceder a Philosophia da Litteratura á Historia da Litteratura, como a luz que melhor fará comprehender a complexidade de innumeros factos concretos, que tendem sem esse criterio a perder-se na curiosidade esteril. Tal o intuito d’esta introducção ou theoria da historia.


[Pg 7]

I
Elementos staticos da Litteratura

Como um producto da actividade social em condições de estabilidade, uma Litteratura só póde ser bem estudada e comprehendida conhecendo-se os elementos staticos, ou de ordem, e dynamicos ou de progresso, de que ella é um dos effeitos complexos. Spencer submettendo os phenomenos sociaes e mentaes á correlação das forças physicas, formúla com clareza esta base critica: «Uma sociedade pouco numerosa, seja qual fôr a superioridade do caracter dos seus membros, não póde desenvolver a mesma somma de acção social como uma que é grande. A producção e a distribuição das mercadorias deve fazer-se em uma escala relativamente pequena. Uma imprensa numerosa, uma litteratura fecunda, uma agitação politica poderosa não lhe são possiveis. A producção das obras de arte e das descobertas scientificas tambem não deve ser excessiva.»[1] Escrevendo a Historia [Pg 8] da Litteratura portugueza importa ter sempre presente este ponto de vista, para não attribuir á raça a fraqueza da tradição nacional, a falta de concepção original e de invenção scientifica, a indifferença politica e a incapacidade de um regimen economico. Somos uma nação pequena, sem os estimulos organicos de uma numerosa população, sem o conflicto de classes, e limitada á provocação de um exiguo territorio. Isto se comprova ainda pelo final do pensamento de Spencer: «O que demonstra melhor a correlação das forças sociaes com as forças physicas, por meio das forças vitaes, é a differença das quantidades de actividade que desenvolve uma mesma sociedade conforme os seus membros dispõem de quantidades differentes de força tiradas do mundo exterior.» Assim, a visinhança do oceano Atlantico ao passo que nos differenciou dos hespanhoes, fez dos Portuguezes um povo de navegadores, dando-lhe a iniciativa das descobertas maritimas e condições economicas subsistentes. Os periodos de esplendor litterario ligam-se á influencia d’estes estimulos; surgiram os Quinhentistas, destacando-se então a epopêa mais caracteristica e expressiva da civilisação moderna, os Lusiadas.

Por esta ordem de factos se infere, que ha nas litteraturas manifestações de phenomenos inconscientes e separados ou fóra da acção da vontade do homem. Para bem comprehender a obra do homem, [Pg 9] sentida, reflectida ou praticada, convém antes de tudo determinar-lhe o circulo de fatalidade dentro do qual se produz: o impulso atávico da raça, que orienta o sentimento do escriptor ou artista; a tradição, transmittida de seculos, que se torna o thema da elaboração ideal e pela qual a obra do genio realisa a synthese affectiva em uma sociedade; a lingua, como expressão do sentimento individual, que o escriptor não creou, mas que modifica para universalisar estados das consciencias, as mais indefinidas vibrações da sensibilidade e ainda as aspirações latentes de uma edade; por fim a nacionalidade, ou a consciencia da vida collectiva, que tem de exteriorisar-se pela acção historica, objecto das narrativas, das commemorações, dos monumentos, que vão unificando cada geração na mesma continuidade. Applicando pois a segura concepção de Augusto Comte, que divide os phenomenos sociologicos em staticos e dynamicos, á Litteratura como resultante do meio social, poder-se-hão considerar como staticos os factores que preponderam invencivelmente na elaboração esthetica: a raça, a tradição, a lingua, a nacionalidade. O influxo de uma determinada época historica, como transição, já pela decomposição de um regimen passado, já como aspiração a uma ordem nova; e além d’isso, o espirito inventivo das altas individualidades, que nas suas obras servem essa corrente regressiva ou progressiva, constituem perfeitamente a parte dynamica na historia litteraria. Uma tão clara distincção é já uma base segura para a critica scientifica; para o estudo dos phenomenos staticos [Pg 10] são subsidiarias a Anthropologia, a Ethnographia, a Glottologia ou Philologia, a Historia geral, e a Sociologia; a comprehensão das obras primas das Litteraturas resulta d’estas relações intimas scientificamente investigadas e conscientemente estabelecidas. Sómente assim, é que a historia da litteratura, embora pertença a um pequeno povo, servirá de verificação das leis psychologicas e sociologicas, conduzindo ao conhecimento definitivo—a sciencia do homem.

§ 1.—A Raça e o Meio

Só muito tarde descobriu o homem, que os actos que elle julgava mais livres, reacções immediatas da sua vontade consciente, eram motivados por influencias a que obedecia sem as conhecer. No mundo physico vê-se isto na pressão atmospherica, em que nos equilibramos. Depois de Vico ter formulado o principio autonomico—o homem é obra de si mesmo,—Herder encetou a philosophia da historia pela descripção physica da terra, como do theatro em que a humanidade tinha de actuar, segundo as variações do scenario. Se as descobertas da astronomia, depois de Galileo, fizeram caducar o erro geocentrico, os estudos historicos e archeologicos desfizeram a illusão anthropocentrica. Como a distribuição das plantas sobre o planeta depende da luz e do calor, tambem a cada modificação na climatologia dão-se no homem modificações profundas na sua organisação; depois de Hippocrates, [Pg 11] que lançou as bases da sciencia da Mesologia, Montesquieu foi dos primeiros pensadores que ligou uma importancia séria á influencia dos climas; e por certo a diversidade das raças proveiu de acclimações successivas senão da acção de meios differentes. Blumenbach, na Unidade da Especie humana, considera o negro retinto e o loiro dinamarquez como provindo do mesmo tronco. Uma distancia de gráos modifica as nossas ideias eternas do bello, abre um abysmo entre a Venus de Milo o a Venus hottentote; dá-nos uma glotte mais perfeita e harmoniosa, e a abstracção na linguagem, que facilita e habitua á cogitação. A doçura do ár ambiente, a estabilidade da temperatura, as aguas crystallinas, o céo puro fazem o temperamento sanguineo, como observam Cabanis, Chrichton, Haller, Cullen, Pinel e outros. O temperamento sanguineo dá uma carnação viva, um thorax largo proprio para receber grandes volumes de ár, uma circulação mais forte, de que resulta um augmento de calor distribuido até ás extremas radiculas nervosas: assim, impressões promptas, facilidade de movimentos, synergia revelada por um bem estar descuidado, a graça, a jovialidade espontanea. Eis a organisação do Grego; em um clima brando, suave, em uma natureza risonha, collocado em um justo equilibrio das forças do meio exterior com as do seu organismo, não se sente absorvido como os povos das regiões do oriente, nem provocado na sua individualidade como na rispidez do norte; gosa a vida por todos os póros e guarda uma juventude perpetua, uma [Pg 12] voluptuosidade da communicação, na cidade, no ágora, onde o conflicto dos interesses agita as paixões que criam a obra da Arte. A Grecia realisou na civilisação o sentimento do Bello. Outros povos indo-europeus, nas suas diversas paragens revelam outras capacidades, com que se reconhecem na historia; o Romano attingindo a mais clara noção do sentimento do Justo, faz de Roma, no dizer dos antigos jurisconsultos, a patria das leis. Mais alguns gráos para oéste, e os Celtas, aventureiros, sonhadores, attingem a docilidade moral, a dependencia da confraternidade, e são dominados pela ideia religiosa da immortalidade, que os deprime. O Germano, em lucta com a natureza brumosa do norte, de uma robustez excepcional, faz da independencia individualista o seu caracter, e lança-se á invasão do occidente, onde é incorporado pela civilisação romana. No extremo norte da Europa, o Slavo conserva as suas primitivas tendencias mysticas, e assimilando todos os progressos da Civilisação oriental e da occidental aspira á hegemonia futura da humanidade.

Emfim, os innumeros factos em que se observa a influencia dos climas, a transformação dos temperamentos e as hereditariedades das raças, têm-se agrupado por forma que estão lançadas as bases para a systematisação da Geographia moral, como lhe chamou Michelet. A historia da Arte, as creações das Litteraturas, todas as obras em que a alma humana se deixar surprehender em sua espontaneidade emocional, são verdadeiramente elementos d’esta sciencia nova. Todas as vezes [Pg 13] que o estylo artificioso, a rhetorica banal ou o servilismo da moda de uma certa época velarem as manifestações francas do espirito, essa litteratura não tem valor, por insignificativa; não reflecte o resultado das ideias religiosas, nem as formas linguisticas, nem as agitações sociaes, nem a synthese das concepções que constituem a civilisação de cada cyclo historico.

Nas Litteraturas, como expressão da vida affectiva das sociedades, é talvez mais importante o elemento inconsciente da tradição e do meio, do que a obra propriamente original da individualidade do escriptor. No meio social observam-se a persistencia de certas qualidades transmittidas na especie, e que differenciam os grupos humanos ou raças; as sobrevivencias de costumes, que se conservam automaticamente quando já de todo passaram os estados ou organisações sociaes que os provocaram e com que estavam em harmonia; e as recorrencias, ou renovações d’essas qualidades anteriores e costumes extinctos, quando um certo abalo social desperta em um povo todas as forças do seu instincto de conservação, mantendo-se pelas suas condições staticas. Como expressão da collectividade, a Litteratura reflecte ainda nas obras das mais altas individualidades a impressão d’estas forças latentes, e mesmo as suas concepções ideaes são bellas em todos os tempos, e são comprehendidas pela humanidade em geral, por que derivam d’essas condições staticas. Na Europa não existe uma raça pura de mescla; mas tem-se abusado cynicamente das caracteristicas da raça nos aggregados nacionaes para justificar hostilidades [Pg 14] egoistas e anachronicos instinctos guerreiros para exploração de conquistas. Para a comprehensão d’esta influencia das condições staticas nas Litteraturas ou em qualquer outra manifestação humana, basta determinar a lei da recorrencia biologica, tão nitidamente formulada pelo physiologista Muller: «Uma raça nascida da fusão de duas raças, propaga-se pela união com o seu semelhante; ao passo que, quando ella se une com as raças que concorreram para produzil-a, ao fim de muitas gerações torna ao typo de uma d’estas ultimas.» Vemos prevalecer esta lei de regressão, nas populações ibericas: embora se fusionassem com o elemento árico (Celtas, Romanos e Germanos), comtudo tinham a seu favor o maior numero, e em ulteriores invasões com a mestiçagem dos Lybios, Bastados, Alanos, Berberes e Mouros, raça africana branca, fixaram pela recorrencia o seu primitivo typo anthropologico. Broca reconhece tambem que pelo predominio numerico a raça mestiçada tende a regressar, na série das gerações, á raça mãe. Por esta regressão se explicam as differenciações dos caracteres ethnicos dos povos, e portanto todas as fórmas das suas actividades sociaes. Herbert Spencer reconhece que as Litteraturas e as Bellas Artes só existem como resultante d’estas actividades, tornando por isso necessario o conhecimento do que as torna possiveis. Tiveram a intuição d’este principio os humanistas do seculo XVI quando procuravam interpretar as instituições sociaes romanas pelas referencias dos poetas satyricos e comicos de Roma, e Vico interpretava Homero como [Pg 15] a synthese dos povos hellenicos, que Wolf applicou methodicamente. Este processo critico é já antigo e acha-se confirmado pelos grandes fundadores da historia como sciencia.

Ao começar a historia da Litteratura grega, Otfried Müller foi um dos primeiros a reconhecer o valor do criterio da raça: «O que é infinitamente mais importante para a historia da cultura intellectual dos Gregos, é o distinguir as raças o os dialectos que se formaram durante a edade a que se deu o nome de heroica por causa da preponderancia que tiveram n’ella as tribus guerreiras, e por que um certo gosto pelas aventurosas emprezas a caracterisa evidentemente. Por este tempo deveria ter começado o contraste entre as raças e os idiomas da Grecia, que exerceu posteriormente uma influencia tão notavel sobre toda a vida civil e intellectual, sobre a poesia, sobre as artes e sobre a litteratura.»[2] Unificando os diversos dialectos da Grecia nos dois ramos Dorio e Jonio, Otfried Müller deduz o duplo caracter da civilisação hellenica, baseada no accordo entre o respeito pela tradição do passado e o espirito progressivo de aperfeiçoamento: «Nos Dorios ... assim como mostram uma predilecção manifesta pelos sons largos, energicos e asperos, que conservam com uma regularidade inflexivel, póde-se naturalissimamente esperar o [Pg 16] encontrar entre elles uma disposição a fazer prevalecer até mesmo em toda a organisação da sua vida publica e domestica, o espirito de austeridade e de respeito pelos antigos usos. Os Jonios, pelo contrario, mostram já no seu dialecto uma certa inclinação para alterar as velhas fórmas segundo o gosto e o capricho do momento, e uma tendencia a embellezar e a aperfeiçoar o seu idioma, que contribuiu muito, sem duvida, para que este dialecto, posto que mais novo e derivado, fosse o primeiro cultivado na poesia.»[3] A differenciação entre estes dois elementos existia quando ainda estacionavam na Asia Menor; os Doricos atravessam o Hellesponto e fixam-se nos territorios montanhosos ao norte da peninsula da Grecia; os Jonios occupam as ilhas e as costas do archipelago. As differenciações ethnicas são mantidas pelas condições do territorio: o montanhez é ferrenho nas suas crenças e costumes, e por isso Delphos torna-se a capital religiosa da primeira unidade federativa dos Hellenos, apoderando-se Sparta de uma severa hegemonia. Os habitantes das costas e das ilhas distinguem-se por um caracter de cosmopolitismo e assimilação facil de costumes; o seu deus nacional é maritimo, Poseidon, contraposto a Delios, e Athenas torna-se a capital politica, que realisa pela primeira vez no mundo a liberdade na formação da lei (autonomia) e a egualdade perante a lei (isonomia), que deram ao genio grego o poder creador que o faz [Pg 17] dirigir ainda hoje sob o aspecto de renascença a marcha da humanidade.

Estes dois elementos ethnicos, Dorios e Jonios, fusionam-se pela pressão da necessidade, para resistirem aos assaltos dos piratas do Mediterraneo, quando os Phenicios dominavam no mar Egeo; e depois, pelo estimulo de independencia contra as invasões asiaticas. A synthese historica da civilisação da Grecia resume-se nas caracteristicas d’estas duas raças: o elemento dorico prepondera até á guerra da Persia; até ás guerras do Peloponeso predomina o elemento jonico; o esplendor do genio hellenico revela-se na sua unidade, primeiramente nas creações estheticas, e por fim na acção politica da grande época de Alexandre. O antagonismo de Apollo e Poseidon, os caracteres antinomicos de Achilles e Ulysses, as duas epopêas da Iliada e da Odyssea idealisando esses dois typos heroicos, as instituições aristocraticas lacedemonicas, e democraticas da Attica, não podem ser bem comprehendidas sem a discriminação d’estes dois elementos, capitalmente estudados emquanto aos Dorios por Otfried Müller, e por Ernst Curtius emquanto aos Jonios.

Os caracteres da raça persistem através do tempo, cooperando para a sobrevivencia das tradições e dos costumes. Na Grecia moderna, as tradições heroicas e muitos versos das tragedias de Eschylo e de Euripides andam nos estribilhos populares. North Douglas, no Ensaio sobre os Gregos, achou na companhia dos mancebos jonios o semblante e a linguagem dos antigos hellenos: cantavam nas guitarras [Pg 18] como os rhapsodos, e ao toque da buzina corriam á conspiração, como no tempo em que reagiram contra a Persia. Este viajante diz, suspirando: «vinte e quatro seculos antes, seriam uns Alcibiades. É ainda hoje popular a Canção das andorinhas, a que alludem os antigos, e Charonte continúa a ser evocado nas pragas supersticiosas.»[4]

A separação que se dá entre os Arias e os Iranios, apparece reflectida nas differenças entre os Gregos e Romanos, embora pertencendo á mesma raça; o genio hellenico foi essencialmente especulativo, o romano extremamente pratico ou activo. A Grecia eleva-se á unidade moral pelo ideal artistico e pela concepção philosophica, Roma faz a unidade politica pela realisação do Direito. Mas apesar d’estas differenças, é pelos caracteres das raças da Italia, que se explica como a civilisação romana foi conjunctamente agricola e guerreira; como no seu direito conservou sempre um constante dualismo (optimo jure e minuto jure); por que motivo cedo abandonou as tradições proprias pela imitação das obras artisticas ou poeticas da Grecia; por que causas se desenvolveram as linguas novo-latinas ou romanicas, e como o genio gaulez chegou a ter importancia na Litteratura latina (Petronio, Ausonio, Rutilio, Sidonio Apollinario, etc.), na época da decadencia.

Antes das migrações pelasgicas que atravessaram os Alpes carnicos o [Pg 19] se estabeleceram ao nordeste da peninsula italica, já n’ella existia uma raça autochtone ou população preexistente, a que os Gregos chamaram Opicos (comprehendendo os Oscos ou Volsquos, Marses, Sabinos, Sabelios, Samnitas, Lucanios, Campanios). Eram estes povos dados á agricultura, e á vida pastoral, seguindo alguns as armas, como os Sabinos, os Marsos, os Hirpinos e Samnitas. Vinte seculos antes da nossa éra fixa-se a época do encontro com os emigrantes pelasgicos ou Illyrios (Liburnos, Venetes ou Henetes, das bordas do Adriatico; e Siculos, das costas da Italia e do Latio). Seguindo as costas do mar, entram tambem na Italia por esta mesma época os Ligurios, e Sicanos que se fusionam com os Siculos ou Tyrrhenos. Não admira por tanto que antes da conquista de Tarento, Roma tivesse conhecimento da civilisação da Grecia e tendesse a imital-a, abandonando as tradições oscas, pela preponderancia dos elementos pelasgiscos da Grande-Grecia.

No seculo XIV antes da nossa éra é invadida a Italia septentrional pelo desfiladeiro do Tyrol, pelos Ambrones, Isombres, ou Ombrios, raça gauleza cisalpina. É depois d’esta invasão que começa a lingua osca a tornar-se um meio de unificação social. No seculo XI, antes da éra moderna, dá-se uma terceira invasão dos Rasenas, raça de pequena estatura e grande cabeça, extranha á familia greco-italica, que funda a primeira Confederação, creando a civilisação fundamental da Etruria. A importancia d’este elemento ethnico, resultou da sua similaridade com as populações autochtones da Italia, os Opicos, e por tanto com [Pg 20] a separação natural dos elementos extranhos ou Inopes, começa o dualismo da civilisação romana: Os Opes, eram constituidos na vida privada pelos Chefes de Familia a quem competia o Nome proprio, a Justae Nuptiae, o Locuples ou dominio do territorio dos tumulos urbicos, o direito de herdar dos filhos ou Haeres, a compartilha com o pae e com o filho ou Dubnus, e a Divindade estavel da terra, Opulentus (de Opim, a divindade feminina ou a Terra agricultada). Emquanto á vida publica, competia-lhes com o Direito de Propriedade o dominio auctoritario, o levar os Clientes á guerra, concorrer ás magistraturas justas, o direito de vida e morte sobre os filhos e a mulher, o uso do vinho civil Temetum o do pão sagrado Maza, a posse das Res sacra (os Deuses da cidade, Indigetes: da Casa, Penates, e da Familia, Lares e Manes) e os Augurios.

Pelo seu lado os Inopes, formados de Servos, Clientes, Estrangeiros (almas decahidas) não tinham Familia, eram sem nome, tinham o Contubernium ou Injustae Nuptiae, e existiam pelo Patrono. Não tinham propriedade.

Os Chefes de Familia elegeram d’entre si um Rei, unificando esta época do Patriarchado o culto de Saturno e de Cybele; porém, quando se apoiaram na Propriedade e nos Clientes, constituiram-se em Republica aristocratica ou Senado, sendo a unificação social sob o culto de Jupiter e Juno; quando por fim prevaleceram os Clientes pela fórma do Tribunato, e se chega ao Imperio plebiscitario, preponderaram Vulcano e Venus. Tal é a evolução da historia da civilisação dos Romanos, [Pg 21] (Ramnes) que unificaram os outros dous elementos Lucerense e Titiense.

A proposito do livro de Noël des Vergers, A Etruria e os Etruscos, escreveu Beulé: «do estudo dos monumentos resalta uma verdade, que será sempre cada dia mais sensivel, e vem a ser, que Roma, apenas fundada, e já augmentada por fórma a poder attrahir a attenção, tornou-se uma cidade etrusca, pela religião, pelas artes, pela civilisação, e preciso é confessal-o, pela conquista. Não é amesquinhar o genio latino o reconhecer que elle recebeu uma educação, soffreu um jugo salutar, e acceitou modelos que viria a exceder. A vitalidade e originalidade da raça latina sobreviveram através d’estas provas; que direi? engrandeceram-se á custa d’ellas.—Roma devia reagir de prompto, absorveu a Etruria, como a Grecia sua mãe, e a sua grandeza não diminuiu por ter conhecido dominadores antes de ter adquirido o imperio do mundo.»[5] A persistencia d’este caracter etrusco, notado por Beulé na civilisação de Roma é o que melhor explica a sua facil incorporação das raças brancas do norte da Africa, dos Iberos da Hespanha e dos Gaulezes, de cuja civilisação rapidamente se apropriaram, a ponto de darem litteratos a Roma.

Roma achou-se collocada entre dois pontos que diversamente actuaram nas suas capacidades e épocas litterarias: ao sul, a Grande-Grecia, d’onde recebeu a cultura hellenica, na poesia, na arte, na philosophia, [Pg 22] na eloquencia e na historia: vê-se isso em Livio Andronico, Ennio, Pacuvio, Terencio, Horacio. Ao norte, é na Gallia Cisalpina que desponta o espirito original e universalista da grande raça gauleza; pertencem a esta corrente Cecilio, o comico; Catullo, de Verona; Tito Livio, de Padua; Virgilio, de Mantua; Cornelio Gallus, o amigo de Virgilio, de Frejus; Propercio, de Mevania, na Ombria, bem como Passienus Paullus, e o umbriano Plauto.[6]

O fundo ethnico da população italica, que apesar d’estas duas influencias grega e gauleza ou pre-celtica, não perdeu o seu caracter proprio, chegou a transparecer na litteratura e nos costumes populares de Roma. As Saturae etruscas, representações scenicas ao som da flauta, com mimica e dansa, as Atellanas oscas pondo em scena os aldeãos da Campania, conservaram-se no gosto publico até á época do Imperio. Este genero de farça burlesca era improvisado de momento, por typos conhecidos e vulgarisados na sua caracterisação; e o que é mais para notar é que um tal genero de improvisação dramatica ainda persiste na Italia, na Commedia dell’Arte, e os velhos typos burlescos têm os mesmos representantes na actualidade, como o Maccus (Polichinello), o Pappus (Pantalon), Casnar (Cassandra), Sannio (Zanni), Manducus (Croquemitaine), que continuam a fazer rir o povo com os seus [Pg 23] ditos desenvoltos. A comedia improvisada pertence a um fundo ethnico occidental, pois que a encontramos na tradição popular hespanhola nas Encortijadas, e a fórma portugueza conserva-se nos costumes do Brazil no auto do Bumba meu boi. Vê-se portanto, que este fundo ethnico Osco, analogo ao Euske da Hespanha, ao Ausci da Aquitania, é que nos explica a similaridade dos cantos épicos ou Romances no occidente da Europa, como a observaram Nigra, Liebrecht, F. Wolf e R. Köhler; dá-se egual morphologia nos cantos lyricos, Pastorellas, balladas e serranilhas, como observaram Paul Meyer e Mainzer. E se estas fórmas se conservaram através da forte cultura greco-romana implantada nas Gallias e na Hespanha, persistiram tambem os costumes, as superstições, os jogos, que provocavam o seu emprego, assim como as tendencias federalistas mantinham as condições para a differenciação do Latim em dialectos rusticos independentes, que depois se tornaram as linguas romanicas, pelas condições de autonomia nacional.

Dá-se na Litteratura latina o estranho phenomeno de não se encontrar a poesia do povo ou da tradição nos seus poetas; estes, absorvidos pela imitação dos Alexandrinos, ou preocupados com as doutrinas philosophicas da Grecia, obedeceram a uma corrente do gosto que lhes fez perder o sentimento da nacionalidade. Procurando-se o caracter da Poesia latina, não se encontrará nos seus maiores poetas, que se esqueceram das tradições do Latio e abandonaram a metrificação [Pg 24] organica da sua lingua, a Accentuação, do verso saturnino, pela Quantidade, dos gregos, exprimindo o sentimento nas mesmas fórmas de Pindaro, de Alceo e Sapho, descrevendo a natureza como a representaram Homero e Hesiodo, e parodiando os conflictos da vida pela adaptação dos typos de Aristophanes e de Menandro na comedia, e de Euripides, na tragedia. Como os actos juridicos dependiam para a sua validade de um certo numero de ritos symbolicos e formulismos tradicionaes, a que os Opicos ligaram os seus privilegios, é por isso que através do dominio absoluto dos rhetoricos em Roma, essas antiqui juris fabulas constituiram na sua Jurisprudencia, como observou luminosamente Vico, na Sciencia Nova, uma severa poesia. A moderna erudição historica e as investigações ethnologicas vão determinando esse fundo anthropologico nas tradições e nos costumes; estão achados os Cantos dos irmãos Arrales, as cantigas a Julio Cesar, a Vigilia de Venus, e numerosos versos a que alludem os escriptores latinos.[7] A Italia antiga revive ou persiste tambem nos costumes, crenças e tradições populares; as excavações de Pompeia mostram que a mulher italiana ainda usa o venetus cuculus, a agulha de aço com que prende os cabellos; o pileus usa-se até em Fondi; os improvisatori de hoje, rodeados pela multidão, procedem como o poeta Stacio em Roma ante o seu auditorio; na alimentação segue-se o mesmo regimen, o [Pg 25] prandium ao meio dia; os preceitos das Georgicas ainda vigoram na agricultura, e as cercanias de Roma permanecem desertas, mantendo o aphorismo de Catão na observancia do systema dos prados. Os Condotieri precisam dar largas ao antigo instincto bellicoso do salteador, instincto modificado pelo contracto de associação. Os contos maravilhosos da feiticeira Circe continuam a povoar a imaginação do povo; e como observa Bonstetten, no seu livro O Latio antigo e moderno: «segundo Niebuhr, os romanos de hoje acreditam na existencia da donzella Tarpêa em um poço do Capitolio. Os Marsi curavam mordeduras de serpentes, e os Giravoli dos arredores de Syracusa pretendem hoje cural-as com saliva.» Muitos costumes persistiram mudando-lhes o Christianismo o sentido por uma lenta evolução: os milagres da Medêa são attribuidos pelos napolitanos a San Domenico di Cullino; o templo de Romulo e Remo pertence hoje aos gemeos S. Cosme e Damião; no sitio d’onde se precipitou Anna Perenna, está a capella de S. Anna Petronilla.[8]

As differenciações ethnicas que mantiveram na Italia as fórmas federalistas (lucumonias), accentuam-se no genio esthetico. Cada escóla de Pintura, na Italia, tem caracteres em que apparecem feições locaes, que se succedem fatalmente. O primeiro passo para [Pg 26] vencer a rudeza morta da pintura byzantina foi a ideia de aperfeiçoar os baixos-relevos; sente-se aqui a transição da estatua para o quadro. A Toscana, aquella antiga Etruria onde primeiro appareceram as artes e as sciencias na peninsula italica, começou este movimento. Nicoláo Pisano imitou na pintura as figuras em relêvo dos tumulos antigos; vendo mais a fórma material que apalpava do que a linha, cujo ideal procurava, não podia deixar de ser um excellente architecto.[9] A escóla de Roma e de Florença (Raphael, Salvator Rosa) são correctas no desenho; as figuras reproduzidas de um modo severo têm muitas vezes, como nota Michelet, a secura architectural.[10] Apoz a esculptura veiu o mosaico, descoberta da Toscana (do monge Mino da Turita). Á altivez e terror, seguiu-se a graça e a delicadeza; tal o estylo do florentino Cimabue. A escóla da Lombardia eleva-se na pintura á graça (Leonardo de Vinci, Corregio) e ao movimento; a escóla de Napoles descobre os effeitos da luz; a escóla de Veneza não tem rival no colorido (Paulo Veronese, Giorgione, Ticiano) e na faina de uma republica mercantil, que precisa de emoções fortes, esse colorido é vivo e exagerado (Tintoreto, pintando com furia em quadros descommunaes). A escóla de Bolonha pertence a uma época em que acabava a creação inconsciente; formada depois de todas as outras, [Pg 27] fixa as regras da technica, e é naturalmente eccletica (os Carraches, Dominiquino, Primatice.)[11] Raça e acção mesologica, nas suas sobrevivencias, e na determinação dos temperamentos individuaes são o verdadeiro criterio para a comprehensão das creações de uma psychologia collectiva. Exemplificámos este facto capital com o exame ethnologico da Grecia e de Roma, que pelo universalismo helleno-italico são ainda hoje a base da Civilisação occidental propagada á Europa pelo genio francez; assim naturalmente ficou esboçado esse elemento classico ou greco-romano que veiu a influir no desenvolvimento das litteraturas modernas. E como a França suscitou em todos os povos da Europa as manifestações do genio poetico pela imitação dos seus cyclos épicos, novellescos, e lyrismo trobadoresco, torna-se tambem importante fixar as caracteristicas de raça nas fórmas da sua Litteratura, apesar de pela propria corrente da civilisação europêa irem-se apagando cada vez mais essas differenças anthropologicas.

A historia da litteratura franceza já foi tratada sob o ponto de vista dos caracteres da raça por Émile Chasles:[12] no typo gaulez synthetisa o genio nacional persistente através de todas as fusões e assimilações historicas com outros povos; no Gallo-romano, descreve a esplendida civilisação meridional, que veiu a produzir a [Pg 28] creação do Lyrismo trobadoresco; no Gallo-bretão, as ficções novellescas que encantaram o mundo medieval unindo o espirito christão e cavalheiresco; no Gallo-franko, a unidade politica imposta pelo poder real na lucta dos grandes vassalos, lucta que inspirou o cyclo épico feudal das Canções de Gesta, creadas no norte da França. O encontro das raças produz, como observou Lemcke, um desenvolvimento de poesia; o conflicto da França feudal com a França meridional desenvolve e faz manifestar o genio lyrico nas canções da lingua d’oc, que se propagam pelo meio dia e pelo norte da Europa; a propria Bretanha, antes de entrar na unificação nacional faz a revivescencia dos seus cantos ou lais, que se desenvolvem nos poemas de Merlin, de Arthur e da Tavola redonda. A estes trez elementos que constituiram a unificação da nacionalidade franceza, correspondem no territorio trez regiões climatologicas, agronomicamente bem reconhecidas. Os Celtas e os Frankos, que se fusionaram com o elemento Gaulez não apagaram, apesar da sua supremacia árica, esta raça, que através de todos os tempos synthetisou a feição nacional da França. Se o Gaulez manteve e imprimiu em tudo o seu caracter, é por que além do seu numero tinha attingido uma civilisação superior á dos Celtas e Frankos. O imperador Claudio, que conhecia perfeitamente a Gallia, diz que Roma não póde desprezar a nação que estava unida á civilisação romana pelos costumes, pelas artes, pelas affinidades (moribus, artibus, affinitatibus nobis mixto.) Quaes seriam estas affinidades, para o imperador que nascera em Lyon, senão a [Pg 29] similaridade ethnica de uma raça que se estendia por toda a Europa meridional, e que mantinha os mesmos costumes e práticas industriaes. Os Romanos, segundo Diodoro Siculo, davam o nome de Gaulez a todos os povos da França meridional; pela sua parte Polybio já distinguiu o Gaulez das outras populações celticas, raça que se manteve intacta na Aquitania entre os Pyreneos, o Garona e o golfo da Gasconha. Broca diz que tudo induz a crêr que os Aquitanios pertencem a esta raça de cabellos pretos, cujo typo se conserva quasi sem mistura entre os Bascos actuaes.[13] (Gascões, Vascones e Bascos.) Este elemento iberico, commum á Hespanha, Italia e França meridional, é caracterisado por Jorge Philipps: «no tempo de Cesar, os Iberos possuiam ainda na Gallia a maior parte do territorio situado entre o Garona, o Oceano e os Pyreneos; elles se conservaram n’este triangulo, apesar das conquistas dos Ligurios primeiramente, e depois, de um inimigo mais terrivel, a raça Celtica.» Estes factos comprovados pelos modernos anthropologistas explicam-nos a transmissão do lyrismo trobadoresco a todo o occidente da Europa. Chasles d’Héricault, considera os Iberos como repovoadores e civilisadores da Gallia; Émile Chasles, resumindo o estado d’esta questão apresenta o seguinte facto: «Atravessando a Bretanha franceza, notareis com surpreza, em certas aldeias, homens que têm os olhos com a obliquidade dos Mongoes, [Pg 30] e por consequencia a arcada zygomatica do extremo Oriente, signal palpavel de uma migração obliterada na historia.»[14] Charrière, na Politique de l’Histoire, acceita a identidade primitiva da raça hispanica e italica, reunindo-se pelo laço natural da Aquitania e pelo meio dia da Gallia; e Petit Radel observou a semelhança de um grande numero de nomes geographicos da Italia e da Hespanha.[15] O typo do africano branco é o que conservou mais puros os caracteres d’esta raça autochtone do Occidente da Europa, anterior ao estabelecimento dos Celtas, e com os quaes se cruzou; Émile Chasles cita um facto, que segundo confessa, faz pensar: «na Edade media um exercito de invasão passou da Africa a Hespanha, e devastou-a até aos Pyreneos. Chegados alli, os Africanos reconheceram immediatamente em um reconcavo da montanha, gente que fallava a mesma lingua que elles; em logar de se baterem fraternisaram em nome de um remoto parentesco que a politica e o tempo tinham obliterado. Eis aqui Berbères, que nos dão uma lição sobre os primordios da historia, e que por ventura fornecerão um novo argumento a M. de Belloguet.»[16] Na sua Ethnogénie gauloise, Belloguet sustenta a anterioridade [Pg 31] da civilisação gauleza á celtica, que attribue aos Ligurios. Sobre este fundo ethnico commum á França, Italia e Hespanha, é que as invasões dos Celtas, dos Romanos e Germanos vieram constituir os povos que formaram as modernas nacionalidades depois da queda do Imperio. Competia á França a hegemonia sobre as nacionalidades da Edade media, continuando a grande Civilisação occidental, que em Marselha reflectira a cultura grega, e em Tolosa a cultura romana. Pela região da Aquitania transmittia á Italia e Hespanha o gai saber, a idealisação do lyrismo trobadoresco; pelo elemento celtico espalhava na Inglaterra as tradições do Santo Graal e da Tavola redonda; pelo elemento franko, transmittia á Allemanha o impulso que acordava a inspiração dos seus Minnesaenger. O que vemos pelas condições da raça, confirma-se pela consideração geographica, em que a França tinha naturalmente de exercer uma missão intermediaria entre os novos estados da Europa; escreve Edgar Quinet: «seja qual fôr a diversidade dos instinctos da Europa, tem a França orgãos para apanhar-lhes o caracter. Pelo Meio Dia e golfo de Lyon não toca ella na Italia, a patria de Dante? Do outro lado, os Pyreneos não a ligam como um systema de vertebras ao paiz d’onde surgiram os Calderon, Camões, Miguel Cervantes? Pelas costas da Bretanha não se prende ella intimamente ao corpo inteiro da raça gallica, que deixou a sua feição em todo o genio inglez? Emfim, pelo valle do Rheno, pela Lorena e pela Alsacia, não se une ella ás tradições como ás linguas germanicas, e não lança [Pg 32] ella um dos seus ramos mais vivazes ao seio da litteratura allemã?» E assim como a França influiu directamente na cultura europêa por estas condições mesologicas, ellas mesmas facilitavam esse espirito de sociabilidade e prompta assimilação de todos os progressos europeus; é assim, que no seculo XVI o humanismo italiano leva a França ao abandono das tradições medievaes e imitação das obras classicas da Antiguidade; no seculo XVII a Hespanha inspira os seus poetas dramaticos, como Corneille e Molière, e dá-lhe o modelo das novellas picarescas; no seculo XVIII a Inglaterra suscita a actividade do pensamento critico e do encyclopedismo; e no seculo XIX é da Allemanha que recebe a nova corrente de idealisação litteraria do Romantismo, que propagou depois ás litteraturas meridionaes. Quinet, fallando da diversidade das provincias francezas para estas diversas assimilações, conclue: «Resulta d’esta diversidade, que estando em communicação com a Europa inteira, a França não tem a temer uma influencia exclusiva; que o Norte e o Meio Dia se corrigem mutuamente, e que este paiz chamado para tudo comprehender, póde enriquecer-se com cada elemento novo sem se deixar absorver por nenhum.» Onde se conhece esta indemnidade ou originalidade é no chamado genio francez, já notado pelos escriptores da antiguidade, que alludem á sua paixão guerreira e oratoria (Rem militarem aut argute loqui, segundo Catão); tumidissimi, lhe chamam outros, e vê-se pelas referencias de Aristoteles, de Plutarcho, de Sallustio, de Florus, de Tito Livio, de Cicero, de Diodoro Siculo e [Pg 33] de Cesar, que as suas qualidades os impressionaram excepcionalmente.

O caracter gaulez, audaz e mobil, com regularidade nos seus caprichos, logico na paixão, preferindo a prosa á poesia, o conto faceto á lenda épica, trocando a palavra abstracta pelo symbolo naturalista e concreto, possuindo-se primeiro do que outrem da verdade das grandes e generosas ideias pelo que ellas têm de prático e de sociavel, adorando a dedicação da amisade e mais ainda o chiste de um bom dito, leviano mas intuitivo no alcance, bom e ao mesmo tempo implacavel na ironia, sensualista e crente na immortalidade, o genio gaulez é sempre a alma d’este eccleticismo intelligente e do sentimento de sociabilidade que caracterisa o francez em toda a parte. Quando o direito universal se exprimia por um symbolismo poetico, a França começava pela linguagem da rasão; quando a Europa jazia sob a arbitrariedade do Feudalismo e dos terrores da Egreja, o burguez ria-se nos Fabliaux, mofando das duas tyrannias temporal e espiritual; a lingua franceza tornou-se de um universalismo extraordinario pelo espirito de sociabilidade, e como dizia Martin de Carrale, no seculo XIII: «la plus delitable à lire et à oir que nulle autre.» É uma lingua vulgarisadora para toda a ordem de factos, cooperando para que a França seja a capital da civilisação, o centro em que palpitam as emoções mais generosas. A litteratura franceza é influenciada por este génio da raça: ora desenvolta e cheia de ironias e ditos de boa sociedade, como em [Pg 34] Rabelais, Montaigne, Bonaventure des Periers, Beroalde de Verville, Luiz XI e a rainha de Navarra, La Sale e tantos que continuaram sob o humanismo classico a vêa sarcastica e mordente dos Fabliaux dos seculos XIII e XIV e das Sotties do velho theatro popular; ora pautada, pedante, convencional como no preciosismo, em Racine, Marmontel, Scudery, Delille; mystica, como em Calvino, Francisco de Sales e Fénélon; tumida e emphatica em Victor Hugo. A hegemonia intellectual da Edade media continuou-se pela França na fórma social depois da Revolução, que ella propagou a todos os povos da Europa não tanto com balas como com cantigas. Michelet, que comprehendeu tão lucidamente a hegemonia da França, proclama-a na Introducção á Historia universal: «Toda a solução social ou intellectual fica infecunda para a Europa, até que a França a interprete, traduza, popularise... Ella diz o Verbo da Europa, como a Grecia disse o da Asia.»

Para a comprovação do genio da raça transluzindo nas creações artisticas, ainda apesar do convencionalismo de escóla e dos preconceitos da civilisação, Taine determinou na Historia da Litteratura ingleza duas correntes de inspiração, provenientes dos sangues saxão e normando, caracterisadas nos maiores escriptores. O Saxonio tem o genio tenaz, luctador, vive da incerteza, sorri-lhe a ideia da morte, põe-se em combate com a natureza; a tensão violenta diante da catastrophe é o momento mais bello da sua vida; tem uma mythologia sombria, tradições medonhas, [Pg 35] instinctos brutaes. Dos parceis do mar germanico, vem como o alcyão da tormenta accoitar-se na Bretanha, e com os Juttes e os Anglos supplanta pela conquista o elemento celtico. Para esses invasores o céo plumbeo da Inglaterra é uma aurora comparado com a cerração dos mares do norte; são meio hyppopotamos na ferocidade e na voracidade, procurando a alegria ruidosa nas bebidas mais corrosivas. Quando o influxo do Christianismo veiu explorar o instincto supersticioso d’esta raça, substituiu-lhe o terrivel deus Thor que atirava o martello pelos áres, pelo deus dos exercitos que arrojava o raio, e enlevou-a com as lendas tenebrosas da Descida ao Inferno (Tundal e Purgatorio de S. Patricio.) A poesia ingleza, exprimindo esta energia saxonia representa na sua espontaneidade a trilogia satanica, a Duvida, o Mal, o Desespero; é Shakspeare propondo a fórmula dubitativa em Hamlet: To be, or not te be, quando depois da Renascença se dissolvia a synthese theologica da Egreja sem se determinar a synthese humana da consciencia; é Milton, depois da revolução social, divinisando o principio do Mal, Satan, como a libertação de todos os absurdos que desde a Reforma prendia a sociedade e o espirito em um despotico puritanismo, na phrase: Mal, torna-te o meu bem (Evil be then my good) na epopêa do Paraiso perdido; é Byron, levado ao paroxismo do desespero entre uma aristocracia convencional, que não percebe a marcha do tempo moderno, e que o repelle com o desdem de uma mediocridade panurgica; ello abandona a Inglaterra, o vagabundo [Pg 36] Child Harold, que divaga pelo occidente á busca do seu ideal da liberdade, indo morrer por ella na Grecia.

A Renascença como o regresso da alma ás fontes da natureza, e as luctas violentas da Reforma suscitaram em Inglaterra a preponderancia d’este veio saxonio, como as fortes torrentes que descarnam os rochedos: Dayton, Greene, Marlow, Ben Johnson são os precursores ou os primeiros productos da corrente que orientou o genio de Shakspeare. E assim como apparecia o drama em Inglaterra, onde as instituições dos homens livres coexistiram sempre com instituições feudaes ou senhoriaes e monarchicas, tambem a complexidade dos interesses burguezes e da moral privada deram logar á creação nova das litteraturas modernas, o Romance, de que são creadores Fielding, Swift, de Föe, Richardson, Goldsmith.

Ao veio saxonio contrapõe-se o genio normando, como exemplifica Taine. Desde os seculos IX e X, que os Normandos infestavam as costas meridionaes da Europa; terriveis como os saxonios, a permanencia nos climas suaves do sul enfraqueceu-lhes a irritabilidade, fel-os brandos, amigos da novidade. A conquista dos Normandos sobre os Saxões foi superficial, por que os vencidos em menos de trez seculos imprimiram a sua feição aos vencedores: o normando conservou apenas as qualidades exteriores dos seus habitos senhoriaes, que differenciam ainda hoje a aristocracia ingleza, ao passo que o franco caracter saxonio se conserva no povo. Os velhos chronistas notaram este antagonismo; diz Roberto de Gloucester: «As gentes [Pg 37] da Normandia ainda habitam entre nós, e aqui ficarão para sempre... Os Normandos descendem dos homens de alta cathegoria, que estão n’este paiz, e os homens de baixa condição são filhos dos Saxões.» Antes de Taine, já o historiador Agustin Thierry fundou sobre este conflicto de raças a Historia da conquista de Inglaterra. A litteratura ingleza resente-se da influencia normanda na predilecção da fórma, na imitação dos modelos convencionaes, em um classicismo sem ideia, em um meio termo do bom, em menos espontaneidade e mais estylo; Drydon, Pope, Addisson, Waller, Gray, seguem a moda litteraria, e ainda hoje fazem a predilecção dos espiritos academicos, dos que consideram a litteratura como um nobre ocio, ou uma habil curiosidade. A hombridade saxonia e a cortezania normanda reunindo-se formaram esse temperamento sanguineo ligado a um caracter impassivel; o humour é o estado psychico d’esta fusão, um lampejo de alegria sob um ár taciturno constante, uma jovialidade indecisa como de quem reage contra um mal estar. O humour é o verdadeiro elemento da obra de arte ingleza: Sterne, no Tristan Shandy e Viagem sentimental, Swift, nas Viagens de Gulliver, Fielding, no Tom Jones, Butler, no Cavalleiro de Hudibras, e modernamente Carlyle representam esta fórmula da esthetica ingleza. Em philosophia, tem a audacia critica de Hobbes e de Bolingbroke a par do mais subserviente biblicismo; tem o positivismo de Locke e Hume conjunctamente com o idealismo de Berkeley, e na sciencia [Pg 38] procura manter o accordo official entre a velha synthese theologica com as mais audaciosas theorias transformistas, como se observa em Darwin.

Ampliando o criterio ethnologico á litteratura da Allemanha, já alguns criticos observaram as differenciações locaes reflectindo no genio dos escriptores; a Suabia, é a patria do lied, a canção tradicional, do canto que se desenvolve em um esplendido lyrismo; na Franconia, o gosto artistico popular organisa-se nas Meistergesang. Na sua Physiologia dos Escriptores e dos Artistas, Deschanel transcreve as palavras de um critico indicando que Schiller era da Suabia, e Goëthe da Franconia, deduzindo assim a diversidade d’aquelles dois genios que synthetisam toda a litteratura allemã: «O primeiro, como a raça allemanica d’onde provém, raça isempta, altiva, concentrada, democratica, apresenta-nos a irritabilidade dos sentimentos, a vivacidade da imaginação, o liberalismo da rasão; o segundo, em virtude da sua origem, possue a calma, a correcção, a serenidade, a flexibilidade industriosa de um espirito aberto a toda a cultura. Schiller gastou-se prematuramente pela impetuosidade interior; Goëthe, durante a sua longa vida, foi avançando por um progresso insensivel e contínuo para a perfeição.»[17] Apesar do sentimento nacional tender para a unidade politica, ainda assim prevalecem as influencias locaes nas manifestações do espirito allemão; escreve G. Weber: «Debalde [Pg 39] se procurará hoje, um centro litterario parecido com aquelles que existiram outr’ora em Saxe e em Thuringe. Berlim permanece a séde da philosophia e das sciencias especulativas; Munich o fóco das bellas-artes e o baluarte do ultramontanismo; Leipzic e Dresde o centro da critica, da arte dramatica e das bellas-letras...»[18] Heinsius, na sua Historia da Litteratura allemã determina-lhe os periodos da evolução sob o aspecto da raça: o gotico, até ao meado do seculo VIII; o franko, até ao advento dos Hohenstaufen no seculo XII; o suabio, periodo dos Minnesinger e da cavalleria exaltada; o rhenano ou saxonio, da erudição e das Universidades, do seculo XIV a XVI; o saxonio, comprehendendo a renascença, as controversias religiosas, os Meistersenger, ou os cantores populares, e a creação da lingua nacional, pela fusão dos dois dialectos principaes por Luthero; o silesio e suisso, em que predomina a influencia franceza da escóla de Opitz, reagindo e vencendo o perstigio das tradições germanicas em Klopstock, que determina a grande época allemã, em que brilha a pleiada dos genios creadores, como Goëthe, Schiller, Bürger, Wieland, Lessing, etc., como uma integração affectiva da Germania. Sobre esta successão, conclue Heinsius: «Observa-se que em cada época, á parte esta ultima, é uma das grandes familias da nação allemã que conduz todas as outras, que preponderou tanto no pensamento como na actividade, [Pg 40] nas letras como na vida social, que, finalmente, imprimiu o seu caracter ao resto da nação e a fecundou com o seu genio.»[19]

Não é excessiva a nossa comprovação, ao tratar-se de determinar o caracter da raça, e acção do meio na civilisação e litteratura de Portugal; por que todos esses povos, a começar pela França exerceram uma acção profunda, já na constituição da raça, já nas fórmas da manifestação do genio nacional. Celtas, Romanos, Germanos e Arabes actuaram sobre o fundo persistente das populações hispanicas, que apesar d’isso conservaram as suas tendencias separatistas e as suas differenciações locaes. Nas creações artisticas formadas por individualidades que estão fóra das influencias vulgares, ainda assim se revela esta fatalidade do sangue, e do meio cosmico. Sobre a mais antiga camada anthropologica da peninsula estabeleceram-se os cruzamentos: Hispano-celtico, hispano-romano, hispano-gotico, e hispano-arabe. Vê-se aqui um fundo persistente de população, que as invasões successivas não conseguiram obliterar nas suas mestiçagens.

O que era pois este elemento hispano? Quando as primeiras frotas tyrias aportaram no Mediterraneo, já a peninsula se achava habitada por gente que se considerava autochtone ou filha da propria terra. Bem podiam ter-se esquecido da sua proveniencia, desde que os [Pg 41] Pyreneos a defenderam contra a terrivel invasão dos gelos da época glaciaria. Quem era essa raça mysteriosa aqui escondida? Ella achava-se ramificada pelo sul da Italia e tambem pelo meio dia da França, mesmo pelo norte da Africa; chamaram-se os Iberos. Segundo Guilherme Humboldt, o genio iberico é a base da unidade dos povos meridionaes; com os recentes estudos anthropologicos foram-se esclarecendo estas similaridades, e nos estudos comparativos dos costumes e das tradições confirmando pelas analogias ethnicas este sub solo social. Segundo Bergman, o Ibero é a transição da raça amarella para a aríaca; além da Italia e da França, tambem apparece na Inglaterra, e no typo ruivo germanico, constituindo um fundo primordial ou preárico da Europa. Monumentos, superstições, mythos religiosos, recorrencias de costumes, tradições lyricas e heroicas, communs principalmente ao occidente da Europa, explicam esta raça a que na Hespanha se deu o nome de iberica, que os escriptores da antiguidade greco-romana descrevem com uma elevada cultura, com leis e poesia. Nas successivas invasões da peninsula nunca este elemento hispanico foi obliterado; entraram aqui os Celtas gaulezes, deixaram o seu vestigio no onomastico local, venceram as tribus locaes ibericas, mas foram absorvidos por ellas, como os Saxões da Inglaterra vencidos pelos Normandos os assimilaram ao fim de trez seculos. Os Celtiberos nunca puderam ligar-se completamente para a defeza commum, d’onde Guilherme Humboldt conclue mais pela cohabitação do que pela fusão d’estes dois elementos; o [Pg 42] Ibero continuou a ser taciturno, e accoutando-se nas montanhas por um instincto defensivo, e o Celta veiu insensivelmente isolando-se para as bandas do mar, para lançar-se á vida aventureira. En Dorel e Esus são os dois deuses d’estas raças, que persistem em muitas das inscripções lapidares da Hespanha. A facilidade de adaptação estava da parte dos Celtas, que tambem na Italia, em França e Inglaterra se unificaram com outros povos preexistentes, conservando a sua delicada sensibilidade poetica. Aqui temos um começo de differenciação na futura raça hispanica ou nacionalidades peninsulares. As esperanças da raça celtica, personificadas na vinda do Rei Arthur, ainda hoje alentam o povo portuguez, que na decadencia da sua grandeza historica compraz-se com o sonho do Quinto Imperio do mundo, em que o desejado Dom Sebastião hade vir aqui formar a ultima grande monarchia; as tradições da velha Atlantida enlevam a imaginação dos portuguezes insulares, que julgam vêl-a nas cerrações em noite de Sam João. Para as regiões centraes e montanhosas confinaram-se os iberos, de que os bascos actuaes, apesar dos seus cruzamentos são ainda um manifesto documento anthropologico; o elemento docil, aventureiro, amoroso, propriamente celtico irradiou pela orla maritima, em uma linha norte sul, vindo por isso os Portuguezes a conservarem o genio celtico, não obstante Herculano affirmar que o portuguez nada tem de commum com os antigos occupadores da peninsula. É pela extensão e diffusão d’este ramo celtico, que se explica a facil adopção do latim nas conquistas [Pg 43] romanas, e mais ainda a differenciação dialectal, que produzia as linguas novo-latinas, cuja formação os discipulos de Diez deduzem de simples degenerescencias phoneticas. O facto da adopção de uma linguagem, orgão de uma mais elevada cultura, em nada modificára a população hispanica.

Os Phenicios, que exploraram o Mediterraneo, vieram attrahidos á peninsula pela noticia das suas riquezas metalurgicas; os que já estavam cansados dos errores longinquos, fixaram-se ao norte da Africa onde fundaram Carthago, e d’ali exploraram commercialmente a Hespanha, preferindo o trafico á guerra. Seria esta situação do ramo semita, naturalmente incommunicavel, segura e sem perturbação, se as rivalidades com o poder romano não produzissem a derrota da segunda guerra punica.

Roma repelliu da peninsula o dominio carthaginez; possuindo um energico poder centralisador, começou por imprimir no territorio dos hispanos as suas divisões administrativas e militares. Não dominava pelo numero e cruzamentos, por que Roma não tinha gente sufficiente para a occupação, mas pela vigilancia das suas legiões, e pelo colonato dos povos vagabundos, que se entregavam á sua protecção, é que sustentava a conquista. A concessão do direito italico harmonisava-se com os costumes ibericos. A influencia de Roma é profunda, como elemento civilisador, e de unificação social, mas nulla em quanto á modificação dos caracteres anthropologicos da raça. Sob o seu dominio os hispanos ficaram taes como eram. A lingua latina como [Pg 44] universalista, exprimindo o direito e a poesia, dava distincção ao que a fallava; por tanto deu a Hespanha á litteratura romana muitos dos seus melhores escriptores, coincidindo esta actividade com a adopção da religião universalista do Christianismo, que vinha unificar sentimentalmente o Occidente: Seneca, Lucano, Marcial, Prudencio, Draconcio, Sam Damaso, fazem brilhar a lingua de Cicero na época de uma decadencia que se sustentou com a vitalidade provincial. O verso latino, que na época de esplendor desprezava a accentuação natural pela quantidade, á imitação da poetica grega, voltou nos primitivos hymnos da Egreja, compostos por Sam Damaso, á simplicidade do verso saturnino, ao octosyllabo popular. Estavam achadas as bases da poesia moderna, do lyrismo das novas linguas, a accentuação e a rima, que mesmo nos hymnos da Egreja dão á expressão latina uma belleza incomparavel. A Egreja e o Imperio romano imprimem aos povos da peninsula uma unidade politica e moral, deixando esse germen da cultura erudita, que se sobrepõe ás tradições populares sem comtudo ellas se extinguirem. A Egreja, depois da queda do Imperio, mantém na sua liturgia a lingua latina, e os Reis germanicos reataram a tradição imperial, conservando a lex romana e o seu processo nos tribunaes: estas mesmas causas cooperam para a unidade da civilisação do Occidente.

As invasões germanicas, communs á Italia (Ostrogodos e Lombardos), á França (Frankos e Borguinhões), á Inglaterra (Saxões) e á [Pg 45] Hespanha (Visigodos e Suevos), determinam uma certa similaridade das instituições modernas, cujas relações com as instituições gregas e romanas foram achadas por Freemann como provenientes de um fundo commum árico. Mas a invasão germanica da Hespanha, embora numerosa, não alterou o typo anthropologico da população iberica. Assim como os Lombardos, no clima quente da Italia ao fim de um seculo estavam extinctos, por egual causa os Visigodos seriam lentamente eliminados em Hespanha; ao fim de dois seculos já não puderam resistir a uma pequena incursão de Arabes. Comtudo, a invasão germanica deixou elementos que foram apropriados pela povoação hispanica, como vamos vêr. Os Godos aqui em contacto com a organisação civil e politica romana conformaram-se com ella; e a sua aristocracia ou classe guerreira, chegou a esquecer a mythologia de Odin pelo polytheismo social romano; imitou os Codigos romanos, principalmente o theodosiano, excluindo do seu direito a banda pastoral e agricola, a quem deixava o costume ou lei consuetudinaria do Estatuto territorial, conservando exclusivamente para si o estatuto pessoal; esqueceu-se do culto da mulher, de que falla Tacito, e adoptou os costumes dos harens asiaticos; em religião, abandonaram a doutrina da humanidade de Jesus, tornaram-se orthodoxos por corrupção, e desprezaram completamente as suas tradições poeticas. D’esta ruina falla o profundo Jacob Grimm: «As tradições goticas, tão bellas, tão numerosas, aniquilaram-se na maior parte, e não se avalia o alcance d’esta perda; pelo que nos [Pg 46] deixou Jornandes se poderá julgar a importancia das origens mais antigas e mais ricas, que existiam no seu tempo.»[20] Grimm explica esta ruina pela influencia da reacção catholica: «A historia trata os Godos com severidade por causa de terem abraçado o arianismo e combatido a orthodoxia;»—«o christianismo triumphante arruinou-lhes os monumentos do passado, prescrevendo como um dever o abandono dos velhos costumes, e o desprezo de todas as tradições do paganismo.» Estas tradições conservaram-se nas camadas populares da banda agricola e pastoral, como o symbolismo juridico. Muitas das lendas germanicas se acham implantadas, confundidas com as nossas lendas portuguezas: as lendas de Nossa Senhora da Nazareth, salvando Fuas Roupinho,[21] da Roussada de Bemfica, contada por Fernão Lopes,[22] o estratagema do Alcaide do castello de Faria,[23] a de Geraldo sem Pavor,[24] de Gaia,[25] da Náo Catherineta,[26] são provenientes d’este fundo dos lites ou colonos decahidos da condição de homens-livres. Nas superstições populares prohibidas pelas Constituições dos Bispados, vem apontada a Camisa de Soccorro, costume privativamente germanico.[27] No Direito [Pg 47] portuguez consuetudinario, as Cartas de Foral encerram numerosos symbolos germanicos, embora o mechanismo dos Concelhos tire as suas designações de nomes arabes.[28] Porém, esta camada popular dos lites, era formada do colonato admittido pelos Romanos, de Alanos e outras tribus que acompanharam as invasões sem serem propriamente germanicas; pertenciam a esse fundo que já vimos identificado com o elemento iberico. Não admira pois o facto, citado por Émile Chasles, que na invasão dos Arabes, os Berberes fallassem e se entendessem com povoações acantonadas nos valles (Cagots, Mauregatos), por isso que pertenciam a esse elemento iberico ou hispanico. Quando se deu a reconquista visigotica ainda a aristocracia quiz conservar no Codigo Visigotico os seus privilegios, mas não foi isso possivel diante do desenvolvimento da população das cidades, que era hispanica.

Com a invasão dos Arabes, embora a peninsula fosse fundamentalmente revolvida e até certo ponto as duas civilisações se penetrassem, nem por isso o elemento semita alterou os caracteres anthropologicos da população iberica. Assim como os Romanos, nas suas conquistas formavam o grosso das suas legiões com povos barbaros, tambem os Germanos [Pg 48] trouxeram nas suas bandas guerreiras tribus que lhes eram extranhas (Alanos, Gelas, Seythas), e os Arabes occuparam a peninsula hispanica quasi que com exercito de Berberes. Os dominadores conservaram-se sempre estranhos ou incommunicaveis com os povos conquistados; o estipendiario, o mercenario, o aventureiro trazidos na corrente da conquista é que se misturavam entre o povo e conviviam em uma crescente mestiçagem. O Proconsul romano, o Conde germanico, e o Emir arabe consideravam barbaros a sociedade e o paiz que governavam, e fechavam-se nos seus costumes aristocraticos, e nos seus privilegios excepcionaes; pelo contrario os elementos do colonato romano, dos lites germanicos, que se haviam confundido na persistente população hispanica, e dos mouros trazidos pela invasão e ulteriores conflictos do dominio dos Arabes, vieram a constituir a gente sedentaria das villas e cidades, a que já no seculo XII se dava o nome de Mosarabes. Esta designação é preciosa, por que denominando o fundo anthropologico da raça hispanica ou iberica, exprime a influencia exterior ou a acção do contacto com a civilisação dos Arabes; segundo Pascoal de Gayangos, Must’ariba significa o que imita o viver dos Arabes. Bastava a profunda tolerancia politica e religiosa dos Arabes, e o modo como garantiram a existencia e a propriedade ás populações sedentarias, mediante um leve imposto de capitação, para os seus costumes provocarem interesse. Mas estas relações entre o povo conquistado e o Arabe não foram descriptas com verdade pelos chronistas ecclesiasticos; [Pg 49] do seculo VII em diante não cessaram de retratar com as côres mais sinistras o quadro da invasão arabe; representam razzias sangrentas, desolação geral, ruina dos templos, ausencia de toda a cultura litteraria; para elles entre a Cruz e o Crescente existe um abysmo, de odio eterno, irreconciliavel, de morte; as duas raças, arabe e germanica, repellem-se com uma antithese absoluta. Para os escriptores ecclesiasticos e chronistas contemporaneos é esse eterno antagonismo que faz com que a aristocracia visigoda se refugie nas montanhas das Asturias abandonando as populações sedentarias ao invasor arabe, e é que o obriga passado o primeiro espanto a ir reconquistando a palmos o solo patrio. Odio politico, repugnancia entre as duas religiões, aversão á diversidade de linguas e costumes, era quanto bastava para communicar entranhado ardor á cruzada permanente que terminou na conquista de Granada.

Triste erro da paixão patriotica e religiosa dos chronistas, que não quizeram relatar como a população sedentaria, colonos romanos, lites germanicos, sob o regimen de tolerancia dos Arabes, acceitaram a convivencia com os mouros ou berberes, e vieram do seculo VII ao seculo XI a formar d’esse complexo elemento hispanico ou iberico um povo livre. No onomastico popular acham-se os nomes godos ligados com os arabes (ex. Venegas e Viegas = Ibn-Egas); acham-se nos divertimentos e cantos populares os nomes dos instrumentos musicos e dos generos poeticos, (quitara, serranilha, leila, lenga-lenga); os sacerdotes [Pg 50] christãos têm nomes arabes, e escrevem em caracteres arabes ou aljamia. Quando começou a reconquista pela aristocracia goda, este elemento popular ou propriamente nacional estava já tão desenvolvido nas suas relações civis e economicas, que não foi possivel restaurar as velhas e atrazadas instituições germanicas, artificialmente e capciosamente regulamentadas no chamado Codigo Visigotico. É esta população que recebeu o nome de Muztarabe, como se acha em um documento de 1101, de Affonso VI; no poema de Gonzalo de Berceo, Milagros de la Virgen, já se dá a essa collectividade o nome de Mozarabia, em contraposição á classe culta ou Clerezia; o nome é vulgar no castelhano Mozarabe, no valenciano Moçarab, Moçab, e no portuguez Mosarabe. Este dualismo entre um povo livre, que se vae constituir em nacionalidades, e uma aristocracia atrazada que vae ser submettida pelo poder real, acha-se perfeitamente representado no typo épico do Cid, como observou judiciosamente D. Agustin Duran: «Ha um Cid monarchico, popular, religioso e aventureiro; ha outro aristocratico, feudal, cavalheiresco e devoto; porém nunca se confundem no principio politico que representam. O Cid feudal e devoto acha-se sómente idealisado na Chronica rimada e em alguns romances tirados d’ella; o Cid monarchico, popular, santo e cavalheiresco está formado no Poema publicado por Sanchez, nas Chronicas latinas e castelhanas, e provavelmente nos cantares que n’ellas se citam, ou que convertidos em prosa se inseriram no texto, e nos romances velhos que restam, ou em antigos compostos posteriormente [Pg 51] no seculo XVI, quando predominavam o espirito cavalheiresco e os costumes palacianos. Este Cid, que se oppõe ao Cid dos senhores, é o que triumphou das ideias feudaes, é a verdadeira figura popular que a escripta e a tradição nos legaram, condemnando ao olvido a do seu antagonista; é a que caracterisa em todas as épocas a idiosincrasia nacional, a necessidade de conquistar a unidade de territorio e das leis, a de acabar com a anarchia que impedia a reconquista do paiz contra os Arabes. Este é o Cid, que, como o povo, se ligava aos monarchas para libertar-se da oppressão dos senhores; mas que, ao mesmo tempo, vencido de outra tyrannia que podia empecer a liberdade, ao passo que acatava e fortalecia os reis, lhos fallava severa linguagem de verdade, obrigando-os a respeitar a lei da opinião.»[29] A poesia popular fez aqui a synthese da creação da sociedade civil na alliança da burguezia com a realeza.

Foi tambem com o nome de Mosarabes que Alexandre Herculano designou a população da Extremadura e da Beira antes da constituição da nacionalidade portugueza: «os habitantes da capital da antiga Luzitania eram principalmente Mosarabes...»[30] E: «na Beira, o mosarabismo devia caracterisar mais profundamente a população, do que ao norte do Douro...»[31] Mosarabia e [Pg 52] Mosarabismo, significa com todo o rigor historico, ethnico e anthropologico a raça hispanica ou iberica, tendo incorporado em si todos os elementos celticos, colonato romano, lites germanicos, tribus maurescas ou berbericas, vindo sob a tolerancia arabe a constituir a nova povoação livre que se transforma de classes servas no povo das nacionalidades peninsulares. A designação é restricta á época arabe, como exprimindo uma unificação ou integração social; creadas as nacionalidades, esqueceu-se o nome de Mosarabia, prevalecendo o separatismo nos nomes de Gallegos, Portuguezes, Aragonezes, Leonezes, Navarros, Castelhanos, etc. Mais tarde o nome de Mosarabe revivesceu com um sentido puramente religioso, para designar aquellas povoações, que em contacto com os Arabes souberam conservar intacta a fé e o culto christão; tal é o sentido com que se encontra em uma comedia citada por Ticknor.[32] Este dualismo da Mosarabia e Clerezia, indica em que elemento ethnico se devem procurar os caracteres psychologicos e os themas tradicionaes das creações artisticas, e por que via as correntes da erudição grega e romana exerceram por vezes uma obnubilação na [Pg 53] phantasia dos escriptores peninsulares. Quando estas populações christãs foram reconquistadas, o laço religioso é que as unificava, porém os costumes imitavam a cultura arabe, subordinando-se aos novos senhores pela identidade da fé; no acaso da guerra, se tornavam a cahir no dominio sarraceno, eram tratadas com mais brandura. No seculo X o terreno comprehendido sob o titulo de Minho, Traz os Montes e Beira-Alta era extremamente povoado, o que não teria sido possivel se tivesse sido occupado simplesmente por christãos asturo-leonezes. Os territorios do Douro e do Mondego já por este tempo apresentavam grande numero de granjas, casaes, villares e povoas. Sob as phrases do latim tabellionico dos diplomas, como notou Herculano, sente-se palpitar uma população livre, que se fará reconhecer mais tarde. A contar do seculo IX encontram-se nos contractos celebrados entre estas differentes sociedades nomes goticos e romanos amalgamados em agnome e cognome com os nomes arabes; presbyteros e diaconos assignam-se com nomes mussulmanos, e ás vezes filhos e irmãos entre si diversamente chamados com nomes arabes e goticos. Pelo que, conclue Herculano: «Não é evidentemente esta confusão de denominações a imagem da assimilação, que, salva a differença do culto e da jurisprudencia civil, se operára lentamente entre os sarracenos e os hispanogodos sujeitos ao seu dominio?»[33] Na magistratura civil, os nomes dos varios cargos [Pg 54] tinham tambem designações arabes; na segurança da sua erudição, concluiu Herculano: «O resultado definitivo de todos estes factos, devia de ser, no começo da monarchia a preponderancia do elemento mosarabe entre as classes inferiores, ao passo que entre a nobreza preponderava forçosamente a raça asturo-leoneza.»[34] De facto na Extremadura, Alemtejo e Algarve, depois da separação de Portugal de Leão, ficaram vivendo os mouros forros com a sua independencia garantida pelos Foraes e pela immunidade da communa. Assim se fortificava esse elemento mosarabe nas classes inferiores, onde se crearam as manifestações artisticas, principalmente architectonicas, e se conservaram as tradições poeticas, ou Aravias. Esta influencia poetica dos Arabes acordou a imaginação popular; pelos Arabes da Hespanha se implantaram na Europa os contos orientaes do Hitopadeça, do Pantchatantra e do Calila e Dimna; foram esses themas novellescos vulgarisados pelos arabes que vieram fortalecer o instincto da liberdade burgueza, e que foram estimular a creação romanesca no Decameron de Boccacio, nos Contos de Sassetti, nas Notte piacevoli de Streparole, nas graciosas narrativas das litteraturas romanicas.

Este dualismo, que Herculano tambem observou entre as classes inferiores ou mosarabes e a aristocratica ou asturo-leoneza, reflecte-se no antagonismo entre as autonomias nacionaes, ou [Pg 55] individualismo dos estados peninsulares, e a obliteração de todos esses caracteres por um espirito abstracto de unitarismo, conservado da acção imperial romana, gotica e arabe, que a organisação tambem unitaria da Egreja veiu fortificar na aristocracia e na realeza, que ao caminhar para a dictadura se separou do povo. Era este espirito de unidade que fazia com que os reis e aristocratas christãos se entendessem por vezes com os emires e kalifas; na batalha de Zalaka trinta mil sarracenos combatiam sob as bandeiras christãs do rei de Castella e Leão, ao passo que os cavalleiros christãos coadjuvavam as hostes do almoravide Iussuf; Affonso VI, no enlevo dos seus amores por Zaida, queria pôr no throno o filho da sevilhana que estremecia; em Portugal tambem vêmos D. Affonso Henriques fazer uma alliança com Iben-Kasi. O ideal da unificação manifestou-se na creação do kalifado de Cordova, e na reconstituição da unidade visigotica, nas luctas de Castella, Navarra e Aragão. Alheio a todas as ambições creou-se um povo vivendo por si e para si, que emquanto manteve os seus separatismos naturaes, ou pequenos estados, chegou a exercer uma acção immensa na Civilisação occidental. É este caracter ethnico, que o nome de mosarabe exprime tão perfeitamente, que deve ser procurado nas creações dos povos peninsulares differenciados pelas condições do territorio.

Portugal occupa na peninsula hispanica uma faixa norte a sul, na orla occidental: d’aqui a grande variedade da sua climatologia, das suas producções agricolas, e das capacidades e caracteres individuaes [Pg 56] dos seus habitantes. Foi esta a causa immediata da actividade social que o levou á desmembração da unidade asturo-leoneza, e que sem fronteiras naturaes, separou Portugal profundamente dos outros estados hispanicos. Além d’esta situação, que em muitas cousas torna Portugal comparavel ás peninsulas da Italia e da Grecia, o solo do paiz é bastante accidentado, influindo pelas altitudes na variação do clima de provincia para provincia; a visinhança do mar, ou as grandes montanhas e os valles profundos tornam o clima ora desegual, ora desabrido, como na Beira, Minho e Traz os Montes, apresentando as vegetações das zonas frias na Serra da Estrella e no Gerez, e o algodoeiro das zonas quentes no Algarve. A florescencia indica esta instabilidade: os cereaes recolhem-se um mez mais cedo na Extremadura e Alemtejo do que em Traz os Montes, em Trancoso, na Guarda, em Almeida e no Sabugal; o pecegueiro, o damasqueiro e a cerejeira florescem em Chaves em Janeiro, em Montalegre em Dezembro, e em Coimbra nos principios de Fevereiro. As duas primaveras que o anno apresenta em Fevereiro e Outubro, são alternadas, a primeira de calor e chuva em todos os trez mezes de duração, a segunda é precedida de trez mezes de calma ardente e falta de agua até ao equinocio, em que começam as chuvas torrenciaes. Cada provincia apresenta caracteres differentes; nos districtos mais elevados das provincias do norte, as neves mantêm na estação calmosa a frescura da atmosphera, tornando as noites frias mesmo nos ardores [Pg 57] do verão. O Minho é a mais pequena de todas as provincias e a mais florescente em agricultura, em commercio e industria; aqui a actividade do homem venceu o terreno esteril tornando-o fecundo; ha mais densidade de população, mais fartura, mais desenvolvimento moral e iniciativa. Na Beira, o systema agricola dos pousios não deixa á terra a largueza da sua producção, que diminue cada vez mais com a extensão dos baldios para pastagens; a falta de communicações conservou por muito tempo o povo em uma rudeza e fanatismo invencivel. Traz-os-Montes é uma provincia montanhosa, fria em extremo no inverno, abrasada pelas calmas no verão, em rasão dos grandes montes que a fecham; tem immensos baldios, contando mais de dez leguas abandonadas desde a raia de Hespanha até ás proximidades de Barca d’Alva; alli o homem participa do caracter energico que lhe dá a natureza, é contrabandista. Na rica Extremadura, é mais geral a miseria da população solitaria e ignorante, explorando o solo feracissimo com rotinas caducas. O Alemtejo é a provincia mais extensa, mais fertil e a mais despovoada; a fecundidade do solo fez o habitante indolente; ama de preferencia o ser guardador de gado, a vida de campino; o seu desleixo tem empobrecido a provincia por não procurarem agua. O clima do Algarve é amenissimo, uberrimo o terreno, mas desprezado; não conhecem os habitantes as vantagens das florestas e vão sendo invadidos pelos areaes; a vegetação é tropical, como a bananeira, a palmeira, a cana de assucar; amendoaes, alfarrobaes e figueiraes florescem luxuriantes, mas os rios e as barras vão-se [Pg 58] tornando incommunicaveis pela indolencia dos povos.[35]

Perturbações subitas da atmosphera levam á formação do temperamento bilioso, que como observa Stendhal torna as impressões violentas, e as ideias mais absolutas mas inconstantes;[36] a agitação e o mal estar permanente provocam-no á actividade. Diz Stendhal: «O bilioso melancolico, variedade tão commum em Hespanha e Portugal, e no Japão, parece-me o temperamento da desgraça em todas as suas fórmas.»[37] E exemplificando este temperamento pelos typos tão caracteristicos de Domingos de Gusmão, Carlos V, Cromwel, podemos equiparar-lhes os portuguezes Pedro I, Dom João II, Affonso de Albuquerque, Fernão Mendes Pinto, Sá de Miranda, Ruy de Pina, Damião de Goes, typos austeros e atormentados. Para o melancolico o amor é sempre um negocio sério, como observa Stendhal; e que sômos aos olhos da Europa, senão um povo de apaixonados? Quem tem os mais exaltados poetas do amor, como Bernardim Ribeiro, Christovam Falcão, Camões, Rodrigues Lobo, Garrett, João de Deus? Uma lenda de amor deu a primeira tragedia nas litteraturas da Europa, a Castro, de Ferreira; o amor é uma fatalidade invencivel, como se vê nas Cartas [Pg 59] da Religiosa portugueza, e torna contagioso o suicidio na mocidade e nas classes populares.

A visinhança do mar imprimiu a estas energias uma acção commum, que tornou Portugal um dos principaes factores da historia: a exploração do Mar Tenebroso, a circumducção do globo, e a idealisação de uma das mais bellas Epopêas da humanidade.

Ha no caracter portuguez uma certa sympathia pela novidade, uma facil assimilação de todos os progressos ou estrangeirismo; foi esta qualidade, tão mal comprehendida, que fez do genio jonio o elemento fecundo e activo da civilisação hellenica. É esta tendencia progressiva que reserva a Portugal uma missão hegemonica na futura federação dos Estados peninsulares.

Com a marcha da civilisação humana as raças vão naturalmente unificando-se, e, como observa Comte, só virão a conservarem as suas qualidades e caracteres differenciaes as raças branca, amarella e negra. A successão e distribuição das raças da Europa, segundo as modernas investigações da anthropologia, apresentam uma quasi completa similaridade; na corrente da historia, uma mesma cultura greco-latina, uma mesma religião catholica, accordando as consciencias, os mesmos elementos sociaes desenvolvendo as instituições civis e politicas, concorreram activamente para esta solidariedade humana que já merece o nome de Republica occidental. D’estes antecedentes, e do contacto sempre crescente dos povos europeus no sentido industrial e economico, resulta a influencia mutua que todos elles exercem entre si, [Pg 60] conduzindo para a acção commum.

Os Francezes, Italianos, Hespanhoes e Portuguezes formam perante a civilisação um mesmo povo; as mesmas raças invadiram os seus territorios e ahi se fixaram fusionando-se. O elemento iberico assimila e unifica em si o romano, o celta, os ramos germanico, franko, lombardo e gotico e por fim o arabe. A creação das linguas romanicas proveiu mais da persistencia dos caracteres communs dos povos conquistados pelos romanos do que da decomposição do latim litterario. Uma mesma tradição, formada da decadencia dos seus polytheismos serve de assumpto para essa nova linguagem; o jogral cantando de terra em terra faz-se entender por toda a parte mudando a accentuação das palavras, chega a empregar ao mesmo tempo varios dialectos, como no Descort; uma mesma lingua, o latim, presta os seus moldes de construcção syntaxica a esta diversidade de dialectos, dos quaes os mais desenvolvidos se tornarão linguas nacionaes; uma mesma poesia, a canção trobadoresca, alegra a mudez dos castellos, irradia do Meio Dia da França, cultiva-se nos principados da Italia, em Aragão, na região gallecia ao norte de Portugal. A arte da poesia ou do gai saber ramifica-se, imprimindo uma unidade sympathica aos povos novo-latinos. As mesmas lendas épicas seduzem a imaginação d’estes povos: Carlos Magno, o centro heroico das Gestas, combate nos romances os Sarracenos; os Hespanhoes celebram a sua derrota em Roncesvalles na pessoa de Roland; os Italianos ferem-no na vileza e degradação do filho e dão o nome de [Pg 61] ciarlatani (de Carlos) aos troveiros que celebram os seus feitos nas praças publicas: em Portugal apparecem os vestigios meio apagados do Cyclo carlingio, trazido pela passagem dos Cruzados que ajudaram a conquista de Lisboa.

As mesmas commoções politicas succederam na Europa meridional; o impeto revolucionario era contagioso, e o grito da liberdade popular repetia-se por todas as cidades da Italia, servindo aquellas que primeiro alcançavam a independencia, de typo para a exigencia de futuras garantias. Por toda a parte o alto clero se oppoz á revolução communal, em que se creavam as condições do terceiro estado. As Chartes e Coutumes serviam de typo para as povoações que procuravam organisar-se; em Hespanha as Cartas pueblas e os Fueros, em Portugal as Cartas de Foral, foram consequencia d’esta corrente a que depois da reconquista obedeceu a liberalidade régia. Os Foraes de Salamanca, Avila e Zamora foram o typo geral que os povos reclamavam como segurança das suas garantias, subsistindo em Portugal os typos de Salamanca, Santarem e Evora.

As lendas da credulidade religiosa foram por todo o Occidente as mesmas, com egual intensidade e fervor: na Italia, França, Hespanha e em Portugal campêam as Cathedraes goticas, bellas como noivas préstes a receberem a visita do amado. Sente-se o mesmo sarcasmo nos contos decameronicos e nos fabliaux, que pintam a vida domestica burgueza e a defendem; espalha-se o mesmo terror nas lendas da [Pg 62] Dansa da Morte, da Descida aos Infernos, do Judeu errante, dos semeadores das pestes, da condemnação do livre exame, equiparado ao pacto demoniaco como no Milagre de Teophilo, e ainda no panico do fim do mundo fixado para o anno mil.

A consanguinidade dos povos latinos é evidente; pelo processo da fixação do poder monarchico, egoismo das familias dynasticas e abuso da dictadura, foi-se estabelecendo a separação d’estes povos com as mais insuperaveis fronteiras de bastardia politica. Esta antinomia, como observa João Müller, explica dez seculos de guerras na Europa. Foram as Litteraturas modernas, no seu periodo medieval que conservaram o instincto d’esta confraternidade apagada; serão ellas os principaes orgãos, na sua futura idealisação universalista, que hão de tornar consciente este espirito de occidentalidade.

§ 2.—A Tradição e os Costumes

De todas as raças que se encontraram na Peninsula hispanica, assim como ficaram vestigios dos seus caracteres anthropologicos, que se imprimem persistentemente na população actual, tambem se conservaram disposições ethnicas, que se transmittem na prática dos costumes e no automatismo das Tradições. Esta physionomia organica e moral do passado revela-se ás primeiras observações, e muitas vezes a intelligencia dos dizeres dos antigos geographos quando descrevem os povos peninsulares, comprehende-se melhor fazendo a comparação com os [Pg 63] habitos do presente.[38]

Conforme as raças que occuparam a Hispania se foram mestiçando, accumularam-se tambem as Tradições poeticas, coexistindo por modo que ainda hoje se póde determinar o que provém de uma origem iberica, celtica, phenicia, romana, germanica ou arabe. O syncretismo d’estes elementos resultava da obliteração dos caracteres nacionaes; por que o facto da unificação politica da Peninsula foi sempre um esforço artificial, voluntario, mas impotente, sem que, sob o imperio romano, germanico ou kalifado arabe se conseguisse fundar a synthese organica de todos estes povos em um substractum de nação. Existem tradições ibericas, que não exprimem um sentimento nacional; como existem tradições celticas que não attingiram tambem esta alta [Pg 64] expressão social. Se as tradições germanicas ou arabes chegaram a revelar essa consciencia superior de uma raça, perderam o sentimento nacional n’este syncretismo determinado pela successão de tantos povos já de caracter mongoloide ou allophylo, já de caracter semita e árico.

As nacionalidades peninsulares, como a portugueza, por exemplo, são posteriores a este grande residuo de tradições ethnicas: e a sua constituição é devida a um impulso individual, ao heroismo e ambição de um chefe; mas este esforço seria esteril se não aproveitasse as condições immanentes, que existiam nas populações que se confederavam espontaneamente nas suas Behetrias. Diante d’isto facil foi o equivoco de um historiador qualquer de attribuir a formação da nacionalidade portugueza á vontade de homens que se impuzeram á multidão inconsciente. Se D. Affonso Henriques e os reis que lhe succederam até D. Affonso III, não dessem cohesão ás cidades livres do Condado portucalense, jurando elles proprios as suas garantias em Cartas de Foral, não teriam conseguido apoiar o seu poder real sobre populações autonomistas, que assim se submetteram a uma unificação nacional. Em uma carta de Alexandre Herculano vimos uma allusão a essa theoria historica de nação-consciencia, que elle refuta com simplicidade dizendo, que no seculo XII já os Portuguezes chamavam com desdem aos hespanhoes estrangeiros. E Fernão de Oliveira, tambem notava, sem o saber explicar, como é que os Portuguezes acceitaram a fórmula castelhana El-Rei para designarem uma [Pg 65] instituição politica que não tinham, por que viviam por si, nas suas cidades confederadas. Quando esta união se conheceu pela primeira vez proficua nas batalhas do Salado e de Aljubarrota, e nas expedições maritimas do Atlantico, foi então que a collectividade portugueza pulsou com o sentimento de Patria; é n’este activo periodo, que abrange os fins do seculo XIV e todo o seculo XV, que as tradições peninsulares, persistentes e sobreviventes de um longo passado, se adaptam á expressão do sentimento nacional. Assim, vetustas tradições do cyclo da Odyssea mediterranea, como a dos errores de Ulysses e do regresso do heroe, tomam o aspecto nacional das navegações portuguezas nos romances da Náo Catherineta e da Bella Infanta. O povo canta o seu heroe nacional na idealisação do Condestavel Nun’Alvares, e lamenta como em um novo Iálemos a morte do princepe Dom Affonso. As vagas tradições phenicias das Ilhas encantadas servem-lhe para estimular a audacia nas expedições maritimas pelo Mar Tenebroso; e as lendas celticas da ilha dos heroes, da phantastica Avalon, servem para guardar a esperança do vingador da nacionalidade extincta, o desejado e popular Dom Sebastião. Aqui vêmos como se faz a apropriação ao organismo nacional e historico d’esse residuo de tradições de todas as proveniencias ethnicas persistentes na peninsula hispanica. E n’este ponto de vista está implicita uma certa similaridade de fórmas lyricas, épicas e dramaticas em todos os povos do occidente da Europa em que entraram os mesmos elementos da raça, facto já anteriormente notado por alguns philologos e [Pg 66] ethnologistas em quanto a Portugal, Hespanha, França, Italia e Grecia moderna. É pois esta a primeira base para o estudo comparativo das Tradições, resultando das suas similaridades nas fórmas lyricas, épicas, novellescas e dramaticas a reconstrucção de uma manifesta occidentalidade.

Depois d’esta coordenação fundamental, em que os povos meridionaes não se plagiam mas são simplesmente conservadores inconscientes, apparecem os rudimentos em que pela aggremiação territorial se iam estabelecendo os esboços de nacionalidades. As Tradições e cantos populares do Minho (norte de Portugal) completam-se pelo estudo simultaneo e comparativo das Tradições da Região Asturo-Galecio-Portugueza, substractum de uma nacionalidade que se definia na orla maritima de oéste, que chegou a abranger a Beira. Ao sul de Portugal esboça-se um outro rudimento social apagado na historia, mas persistente nas Tradições da Região Extremenha-Betico-Algarvia. No percurso historico da nacionalidade portugueza, a expansão colonial começa quando a Tradição se tornava a expressão do sentimento de Patria; os cantos tradicionaes fixaram-se n’esses varios centros de persistencia ethnica, os Archipelagos da Madeira e dos Açores, e modificaram-se segundo os elementos da população nos outros fócos coloniaes da Africa, Brazil e India.

Quando um povo entra na vida historica, assimilando os progressos realisados na humanidade e contribuindo para a civilisação com a energia ou tendencias novas que distinguem a sua raça, a este impulso [Pg 67] dynamico corresponde a manifestação d’essa outra força statica, a Tradição, que no meio de todas as transformações hade ser o vinculo moral e affectivo da nacionalidade. A Tradição torna-se muitas vezes um estimulo de actividade, como se vê na Grecia quando reagiu contra a Persia; e então, como primeira revelação da unidade d’esse povo, o amor das tradições provoca elaborações individuaes conscientes, que pelo seu intuito esthetico constituem o phenomeno sociologico da Litteratura. Só merece o nome de Litteratura, tomada sob este aspecto, a série das creações sentimentaes e intellectuaes por onde o gráo de consciencia que esse povo tem do seu individualismo nacional chegar a ser expresso. Todos os povos que tiverem caracteres de raça bem accentuados, que a par de uma marcha historica importante não tiverem obliterado as suas relações com um passado tradicional, que ao facto da nacionalidade ligaram um ideal de liberdade na esphera civil, politica e philosophica, esses povos devem possuir uma Litteratura original e fecunda, servindo ao mesmo tempo para patentear o seu nivel moral e para annunciar a aspiração que ás vezes leva seculos a ser effectuada. Sob um tal aspecto não existem Litteraturas mais ou menos perfeitas, por que productos reflexos do meio social, o seu estado é um documento immediato; se se moldam por typos de convenção, a que as academias chamam classicos, se a obra do escriptor consiste em uma paciente imitação e é produzida sem intuito de communicação com o povo, a sua esterilidade está revelando que a nacionalidade se [Pg 68] conserva em uma aggregação sem destino, e que causas intimas a atacam nas suas condições organicas. Estas são as bases positivas da critica de qualquer litteratura; procurar se as obras se conformam com os preceitos rhetoricos, ou se se aproximam do typo abstracto do Bello pelo confronto com as realisações artisticas da Grecia, estes dous processos são os que ainda seguem os obcecados habitos escholares do humanismo jesuitico, e os que levados por miragens metaphysicas dão a phrases sem sentido o nome de syntheses.

A Litteratura é objecto de uma sciencia concreta, que se presta á deducção de leis geraes da Sociologia; estabelecer a relação entre as concepções individuaes ou dynamicas, e os elementos staticos da Raça e da Tradição é o processo por meio do qual se chega á determinação do caracter nacional de uma litteratura. O criterio da filiação pertence rigorosamente á historia; por isso a Historia da Litteratura assenta sobre esta phylogenia da Raça e da Tradição como modificadores de todas as concepções individuaes. Só por uma tal connexão é que essas obras podem ser bem sentidas e bem comprehendidas. A Historia da Litteratura é este processo em que se procura descobrir pela realisação que nos apresenta, a vitalidade da raça, a consciencia da nacionalidade, e até que ponto estas duas forças naturaes estiveram em harmonia ou antinomia com a civilisação.

O estudo comparativo das Litteraturas levou a determinar um certo numero de fórmas, por assim dizer universaes, que são a Epopêa, [Pg 69] o Lyrismo e o Drama; a sua universalidade deriva de estados psychologicos communs, bem como a successão do seu desenvolvimento resulta das transformações do meio social, onde muitas vezes se conservam os elementos tradicionaes que serviram de thema ás obras e concepções sentimentaes das individualidades superiores. Remontar pela critica das obras primas do genio a esses elementos inconscientes da Tradição, relacional-as com as exigencias moraes da sociedade cujas aspirações exprimem, eis o processo da historia completo nos seus fins de disciplina critica e de synthese.

Estas fórmas litterarias têm uma origem commum humana, n’esse poder mental de personificar em mythos e de communicar a emoção pelo equivalente da imagem, ou intuição das analogias. Ao trabalho da personificação, que se acha plenamente desenvolvido nos Mythos religiosos, segue-se uma degenerescencia provocada pela especulação abstracta dos dogmas, e em grande parte é d’essa degeneração popular dos mythos que se formaram as Epopêas antigas ou anonymas. As analogias das imagens serviram para fixar o modo de expressão do sentimento em um periodo em que o impressionado não podia ainda julgar a sensação emotiva; assim o Lyrismo foi tambem descriptivo, e simultaneo com a Epopêa, tendo egualmente uma base de transmissão tradicional; taes foram os typos hymnicos e dithyrambicos, e na Europa Occidental as Pastorellas e Balladas.

O apparecimento do Drama é tradicionalmente bem caracterisado; [Pg 70] nascido tambem de actos ritualisticos, desenvolve-se com as condições que emancipam as classes medias ou burguezas, quando ha egualdade civil, interesses geraes, collisões de deveres, conflictos de ambições, quando existe um consensus moral por onde se afferem os actos das personalidades. Nenhuma fórma da arte ou da Litteratura se cria por méra curiosidade; corresponde sempre a um estado psychologico, á necessidade de uma expressão e communicação de sentimento.

Seguiremos esta divisão natural de todas as Litteraturas, derivando cada uma d’estas fórmas dos seus germens tradicionaes, determinando assim o que ha de organico em manifestações tão complexas que se julgou terem sido creadas arbitrariamente.

a) DAS FÓRMAS LYRICAS

A relação entre a Epopêa e um fundo tradicional foi muito cedo achada pelos philologos e é uma base positiva da critica; porém não era procurada essa relação com o Lyrismo por se attribuir o seu desenvolvimento ao ideal do sentimento resultante do maior progresso social, e da elaboração subjectiva de um estado do passividade consciente que se discute. Antes do sentimento pessoal existiu o sentimento da collectividade, expresso em fórmas consagradas nas festas do trabalho, como labutação da lavoura, dos rebanhos e do mar, e nos factos da vida domestica, como nascimentos, casamentos e enterros, ou mesmo na vida publica. O sentimento pessoal servia-se d’essas fórmas [Pg 71] tradicionaes, adaptando-as á expressão consciente e voluntaria de uma situação particular; é assim que se destaca do fundo tradicional a obra litteraria, a qual para ser bem comprehendida precisa ser aproximada da sua origem. Os cantos hymnicos, que apparecem nas religiões primitivas, embora se immobilisassem na fórma do dithyrambo, ou a successão de imagens representando sempre a mesma ideia, conservam o typo tradicional do Lyrismo: essa ideia unica repete-se como apoio rythmico, é o estribilho, refrem ou retornello, correspondendo a esta cadencia estrophica o parallelismo. Assim despontou o lyrismo egypcio, e se vê seguir o mesmo desenvolvimento nas canções accádicas e chinezas, e o que hoje traz embaraçados os criticos, ainda se observa nas Pastorellas do occidente da Europa.

Para comprehender a poesia lyrica portugueza é necessario determinar-lhe scientificamente as suas bases tradicionaes; ellas nos explicarão a sua originalidade e vigor, e estabelecerão as relações com as correntes litterarias da Europa, caracterisando assim pela connexão historica as épocas e influencias cultas que actuaram sobre a sua manifestação. Já pessoal e psychologicamente descriptiva, a fórma lyrica reflecte o estado intellectual do que canta; o poeta é conhecido, causam interesse os pequenos successos da sua vida, as aventuras, os triumphos, os desalentos pessoaes. Isto influe sobre as fórmas em que se quer mostrar perito, sabedor de todos os [Pg 72] segredos da arte (gai saber); a construcção da estrophe torna-se a preoccupação exclusiva; inventa o metro caprichoso, acha as rimas novas, cruza-as, encadeia-as; taes foram os Trovadores, que pela relação com os jograes, nunca se esqueceram completamente dos elementos vitaes da tradição originaria, que depois imitaram artisticamente.

Outras vezes o poeta faz da fórma lyrica o meio de analyse da sua paixão, torna o sentimento uma casuistica, desenvolve a imagem até á allegoria, convertendo o seu estado emocional em uma synthese philosophica; taes foram os Petrarchistas, que não podem ser bem avaliados quando separados dos Trovadores. A imitação material em que o lyrismo foi applicado a descrever todos os accidentes insignificantes de uma vida mediocre, motivou esses productos morbidos das Academias litterarias (Culteranismo, Arcadismo) contra os quaes reagiu a renovação do Romantismo, que começou pela revivescencia das tradições medievaes, e depois da vaga melancholia chegou á expressão synthetica de uma emoção consciente e universal.

Na poesia trobadoresca, o lyrismo provençal conservou as suas origens tradicionaes em um elemento popular commum tanto ás pastorellas italianas, como ás balladas francezas, como ás serranilhas gallegas, portuguezas, valencianas e castelhanas, que chegaram a penetrar nos Cancioneiros aristocraticos e litterarios. Este facto encerra um grande problema, que tem preoccupado os mais atilados criticos: que não é na Provença que se hade determinar o ponto de irradiação do Lyrismo das litteraturas [Pg 73] modernas, mas em um facto de persistencia ethnica, que se poderá definir pela observação da área que facilitou a sua propagação do sul da França á Italia meridional e ao norte da Hespanha. Analysando algumas canções portuguezas extrahidas por Ernesto Monaci do grande Cancioneiro da Vaticana, o romanista Paul Meyer, observando as analogias com antigas balladas provençaes, concluiu que ellas não provieram de uma imitação directa, mas: «foram concebidas segundo um typo tradicional, que devera ter sido commum a diversas populações romanicas, sem que se possa determinar em qual d’ellas fôra creado[39]

Aqui temos proposto o problema com toda a nitidez, e a que julgamos ter dado uma solução definitiva, sobretudo auxiliado pelo criterio ethnico. Para isso descemos das fórmas conhecidas pela via litteraria até ás suas relações com os costumes populares, e d’estes até ao centro ethnico da irradiação.

[Pg 74]

O lyrismo trobadoresco manifestou-se pela fórma escripta ou provençal na zona gallo-romana; no sul da França o elemento gaulez não soffreu uma transformação organica, como no norte em prezença do vigoroso elemento franko. O romano preoccupado com a ideia da unificação administrativa dominava mas não absorvia, impunha fórmas governativas mas não assimilava as populações; a sua organisação municipal, pelas autonomias locaes, não atacava a essencia da nacionalidade gauleza, ainda que a forçava a uma certa unidade civil. Segundo Diodoro Siculo, os romanos davam o nome de gaulez a todos os povos que entraram na França meridional; já Polybio separava os Celtas dos Gaulezes, antes das confirmações decisivas da Anthropologia.

No sul da França conservaram-se tradições, cuja existencia se determina pelas prohibições canonicas dos bispos, desde o seculo V; taes eram os cantos acompanhados de dansa, a que deram o nome erudito de Balismalia ou Vallemachia (a bailata ou balada) com o caracter satyrico, que reappareceu nas sirventes; taes eram os desafios poeticos com processos de casuistica sentimental, como os Puy, que se desenvolvem nas Côrtes de Amor; taes eram os cantares de Alvoradas e Serenadas, de que os trovadores fizeram generos litterarios; e ainda a caracteristica da composição poetica especialmente pelas mulheres. Esses cantos eram oraes; não tinham importancia no gosto dos latinistas para merecerem ser escriptos; e mesmo esses costumes, de que formavam parte, eram condemnados pela Egreja, e eram risiveis ante o viver dos castellos [Pg 75] senhoriaes.

Identica persistencia das fórmas poeticas se encontra em Italia, com a mesma similaridade tradicional, como observou Costantino Nigra. E assim como o sul da França se distingue da França do norte ou feudal pelo exclusivismo das fórmas lyricas, tambem na Italia, segundo Gregorovius, faltam as tradições épicas; conservam-se ali os Voceros, os Triboli, ou Lamenti, analogos ás Endechas dos mortos na peninsula hispanica, e aos Aurusta do Béarn, e Arrirajo das Vascongadas. Os costumes estão indicando um elemento ethnico commum. Na sua entrada na Europa os Celtas encontraram uma raça de cabellos pretos, com que mais ou menos se fusionaram, conservada por longo tempo intacta na Aquitania, em uma região comprehendida entre os Pyreneos, o Garona e o golfo da Gasconha; já nos referimos á observação de Paulo Broca: «Tudo induz a crêr que os Aquitanios pertencem a esta raça de cabellos pretos que se conserva quasi sem mistura entre os Bascos actuaes.» É n’este triangulo situado entre o Garona, o Oceano e os Pyreneos, que essa raça, que se estendeu pela Italia e pela Hespanha, se confinou, como observa Jorge Philipps, resistindo á invasão celtica.

O problema proposto por Paul Meyer, quanto á communhão lyrica das diversas populações romanicas, não póde ser explicado como propoz Nigra, pela raça celtica, e muito menos pelo elemento franko, como entendem Jeanroy e Gaston Páris. A realidade está na persistencia [Pg 76] d’esse elemento iberico na Aquitania, á qual pertenceu tambem a Galliza; a propagação do lyrismo para a Italia e Sicilia torna-se tambem um facto natural de revivescencia. O sul da França teve condições historicas para esta iniciativa: «Onde quer que a conquista sobrepoz uma raça a outra, acontece que o vencido por fim retoma os seus direitos. É o genio da raça primitiva que retoma pouco a pouco a dianteira. A Gallia soffreu o duplo dominio do Romano e do Franko; ella recebeu a substancia das duas raças: mas o velho fundo gaulez prevaleceu em ultimo logar, e a França não chegou ao supremo gráo da sua energia nacional se não no dia em que o Gaulez absorveu o Romano e o Sicambro.»[40] Esse lyrismo corresponde a uma certa estabilidade na vida pastoral e agricola, que nem o Ligurio ou Celta maritimo conhecia, nem o Celta nomada podia acceitar. Com o seu profundo senso artistico, Montaigne conheceu o valor esthetico das canções populares da Gasconha, a que chamou Villanelles[41]; a que os italianos chamam Villoti, e que Miguel Leitão de Andrada, no fim do seculo XVI chamava Villanellas para designar as fórmas do lyrismo popular portuguez.

[Pg 77]

Esta persistencia do lyrismo tradicional no sul da França impuzera-se aos trovadores, como vemos em Ramon Vidal, dizendo nas Les rasos de trobar: «la parladura franceza est plus avinenz a far romans et pasturettas, mas cella de Lemosin val mais per far vers e cansons e sirventes.» O trovador indicava aqui um genero popular em contraposição com as fórmas artisticas que outros trovadores iam destacando e individualisando; por que os primeiros trovadores revelaram-se adstrictos ás fórmas populares, como vêmos em Cercamons, «joglars de Gascoigna, e trobet vers e pastoretas a la usanza antiga.» O discipulo d’este trovador, Marcabrun, em duas pastorellas que compoz, já elabora o typo tradicional com um intuito de satyra moral e social. O typo tradicional, abandonado ao povo, não foi totalmente esquecido pelos trovadores subjectivistas, por que ainda foi seguido por Cadenet e Gui de Usiel, que fazem a transição de Marcabrun para Giraud de Riquier.

A ausencia do criterio ethnico é que fez com que Wackernagel e Brakelmann attribuissem a origem tradicional da pastorella ao norte da França, quando ella pertence a este fundo da população occidental que occupou a França, a Italia e a Hespanha antes da invasão celtica. Esta mesma insufficiencia fez com que Jeanroy considerasse ironicamente as investigações sobre este campo como litteratura pre-historica! Como se a tradição pertencesse ás épocas historicas.

As investigações sobre as origens cio lyrismo tradicional feitas na Italia por d’Ancona, levam a precisar este fundo anthropologico [Pg 78] occidental. Observando as fórmas do Contrasto de Cielo d’Alcamo, poeta siciliano do seculo XIII, analogas aos themas e estructura francezas, d’Ancona quer que ellas derivem do antigo carmen amebeum, que se conservou na Sicilia; e conclue: «os antigos historiadores nos asseguram que esta fórma teve origem na Sicilia, que ella é devida primitivamente aos pastores sicilianos. Saíndo dos nossos valles e montanhas, ella se nobilitou, um pouco tarde talvez, nas mãos de Theocrito e de Virgilio; mas ella permaneceu na sua simplicidade nativa propriamente do povo da Sicilia, no qual se perpetuou com o dom da improvisação.» A ilha da Sicilia foi o ponto de juncção das raças brancas do norte da Africa com as da orla europêa mediterranea; a persistencia d’esse fundo lyrico impressionou Theocrito e Virgilio, como os themas da Gasconha ou da Aquitania impressionaram os Trovadores e os levaram á imitação. Reconhecendo as relações do Contrasto italiano com as fórmas francezas, escreve Jeanroy: «mas nós nos guardamos de sustentar que este genero fosse exclusivamente francez, da mesma maneira que não podemos conceder a M. d’Ancona que elle fosse propriamente siciliano; deve ser effectivamente uma propriedade commum de todo o territorio romanico.»[42] «Ainda mesmo que houvesse já Contrasti na Sicilia no tempo de Atheneu e [Pg 79] de Diodoro, não nos auctorisava isto de modo algum a crêr que elles fossem originarios da Sicilia.—É essa uma fórma, que longe de ser exclusivamente siciliana, se acha na poesia popular de um grande numero de povos.»[43] E mostra como longe da Sicilia esta fórma lyrica tradicional é seguida pelas aldeãs de Ferrara nas Romanellas, em Portugal nos Desafios á desgarrada, e nos Dayemans da Lorena.

Mas estendendo mais o campo da observação, é um caracteristico commum a este lyrismo tradicional o ser a canção amorosa composta e cantada pela mulher. Nos cantos populares da Galliza a mulher conserva o costume que vêmos nas serranas e pastoras do Cancioneiro trobadoresco da Vaticana. Já o erudito Sarmiento, nas Memorias para la Historia de la Poesia española, escrevia: «he observado que en Galicia las mugeres no solo son poetisas, sino tambien músicas naturales.—En la mayor parte de las coplas gallegas hablan las mugeres con los hombres; y es por que ellas componen las coplas sin artificio alguno; y ellas mismas inventan los tonos ó ayres à que las han de cantar, sin tener idea de arte musico.»[44] É ainda este o costume do Minho;[45] o caracter da lyrica de elaboração feminina determina-lhe a sua mais [Pg 80] alta antiguidade; escreve Jeanroy, apesar de ter receio da litteratura pre-historica: «W. Scherer, em uma muito instructiva noticia, citou um grande numero de factos que o provavam: desde o seculo X, a canção de mulher existia na Allemanha, como o mostra uma pequena peça latina d’essa época; as canções servias são ordinariamente collocadas na bocca de uma rapariga, e Talvj pensa que são realmente as raparigas que as compõem; peças analogas se acham na Islandia, na Russia, na China, nas Kabylas, e em muitas tribus selvagens. A attribuição das canções a uma mulher, é por consequencia uma feição commum á nossa antiga lyrica popular e a muitas outras.»[46] Por este exame de Scherer, encontramos sempre este caracter do lyrismo tradicional entre povos em que persiste o elemento mongoloide (como a Servia, a Russia, as Kabylas, a China, notando-se tambem que entre os Germanos se fusionou o Geta.) E continuando a citação: «Scherer faz notar, que o parallelismo mais ou menos rigorosamente seguido entre a [Pg 81] descripção de algum objecto natural e a pintura da paixão se encontra em um grande numero de poesias populares, particularmente entre os Servios, os Allemães, os Malaios, os Chinezes. A poesia slava, sobretudo, abunda n’este genero em uma infinidade de especimens, dos quaes alguns têm impresso o cunho da mais alta, da mais bella poesia, etc.»[47] É por consequencia um processo logico o procurar estas origens do Lyrismo na raça branca, não árica nem semita, que precedeu ou occupou a Europa antes dos Celtas; o centro ethnico da Aquitania como ponto de irradiação do Lyrismo, levou-nos á investigação apparentemente aventurosa: as fórmas tradicionaes communs á Italia, Provença, Galliza, Catalunha e Portugal, (populações romanicas que não lhes deram origem), têm um typo perfeitamente egual ao das Canções accádicas, descobertas e traduzidas pelos modernos assyriologos, e são na sua estructura semelhantes ás canções chinezas do Chi King, traduzidas pela fórma homeometrica, homeostrophica e homeorythmica por Legge. D’aqui a inferencia sobre o estado moral e relações anteriores d’esse typo iberico conservado mais puro na Aquitania. O desenvolvimento da poesia provençal fôra attribuido á influencia dos Arabes no lyrismo do Occidente; mas a poesia lyrica dos povos semitas, como o provam os estudos assyriologicos, foi produzida pela imitação da poesia dos Accads. Reconhecida esta demonstração, comprehende-se [Pg 82] como, apparecendo na poesia arabe a fórma da Pastorella, esse grande ramo semita viesse estimular a revivescencia de uma tradição, que se extinguia entre a transmissão oral das camadas populares. Como relacionar esse fundo occidental ou iberico com os povos accádicos? Esse é o problema a que conduzem todas as similaridades do Lyrismo tradicional; a elle respondeu Roisel no seu livro Les Atlantes, mostrando como a civilisação da Chaldêa foi iniciada por navegadores atlanticos da raça branca primitiva e autochtone da Europa.[48] Comprehende-se como os cantos arabes fossem communs entre o povo hespanhol e portuguez; nos versos do Arcipreste de Hita ainda vem enumerada a lista dos instrumentos musicos para os cantares arabicos, e em Gil Vicente ha uma referencia a uma canção arabe Calbi arabin. No Cancioneiro da Vaticana existe uma canção trobadoresca com o estrebilho Lelia vai Lelia, que dava nome a um genero lyrico tão popular e persistente nos costumes, que Philippe II prohibia que se cantassem as Leilas arabes. A designação com que no seculo XV se conhecia esta fórma tradicional da Pastorella era a de Serranilha, da palavra arabe serra. Na poesia moderna do povo da Galliza persiste este genero na fórma da Muiñeira; e em Portugal tornou a communicar-se aos escriptores como Gil Vicente, Sá de Miranda, Christovam Falcão e Camões, tomando [Pg 83] a fórma litteraria das Modinhas brazileiras, especialmente nas Lyras de Gonzaga. Determinada, pois, esta base tradicional, temos a disciplina critica para conhecer o desenvolvimento do Lyrismo trobadoresco, e successivamonte da sua transformação italiana do dolce stil nuovo, e imitação geral nas Litteraturas romanicas da Renascença até ao Romantismo.

b) DAS FÓRMAS ÉPICAS

Nas composições poeticas tradicionaes distinguem-se o genero lyrico ou subjectivo, e o genero narrativo ou épico, essencialmente objectivo. Observando esta distincção nas Origens da Poesia lyrica em França, escreve Jeanroy: «Os differentes criticos estrangeiros que se têm occupado respectivamente da historia da sua poesia, MM. Bartoli, d’Ancona, Scherer, Richard M.-Meyer, Braga, entre outros, sustentam unanimemente a opinião que estas ultimas (as narrativas) constituem o fundo original da sua poesia. Sendo nos trez paizes esta parte identica ou muito analoga, elles não podem egualmente ter rasão. Nós tentaremos demonstrar que estão egualmente em erro, e que n’isso em que vêem uma emanação espontanea do genio nacional, importa vêr uma imitação de toda uma poesia franceza hoje perdida.»[49] Mas referindo-se aos themas tradicionaes d’esses cantos narrativos, [Pg 84] Jeanroy presente um fundo ethnico que não é propriamente francez: «Nós demonstraremos bem que estes themas não são exclusivamente italianos, allemães, portuguezes; mas demonstraremos nós por isso que elles são exclusivamente francezes? Não; e seria uma pretenção evidentemente excessiva. Queremos só fixar um ponto, e vem a ser, que as peças estrangeiras consideradas como autochtones, devem, na sua fórma actual alguns dos seus traços á imitação franceza, que ellas não lhe escapam, como se tem dito. Mas, será certo que o assumpto mesmo tenha sido importado da França, que o thema nos pertença tão bem como a fórma que o revestiu? Não. É mesmo mais que provavel que, se a nossa poesia achou tanto enthuziasmo no estrangeiro, é por que ella ali encontrava assumptos analogos aos seus, e que o terreno estava como que preparado para receber a communidade de certas tradições poeticas. Bem longo de affirmar que estes themas são exclusivamente francezes, nós não ousamos sustentar que elles sejam exclusivamente romanicos[50] Não andavamos em erro quando localisámos as nossas investigações no fundo anthropologico persistente na Europa, de que o elemento iberico, eusk e gaulez na Italia, França e Hespanha, e o elemento getico e seythico na Allemanha, conduzem a uma unidade de tradição poetica.

É incalculavel a extensão e profundidade da tradição popular hispanica [Pg 85] d’onde se tem colligido desde o seculo XIII até hoje esses pequenos cantos narrativos, verdadeiros rudimentos de uma Epopêa cyclica que não chegou á elaboração, como as Gestas germanicas. Esses cantos aproveitados por Affonso o Sabio como elemento historico para a Cronica general de España, explorados pelos impressores do seculo XV, estudados e colligidos com amor desde o principio d’este seculo, constituem o vasto campo do Romanceiro, que se deve considerar o elemento poetico mais rico das Litteraturas peninsulares. A tradição apparece por vezes commum a Portugal e Hespanha; outras vezes os paradigmas encontram-se em França, na Italia, e na Grecia moderna, o que revela uma fonte primordial. Nos Romances peninsulares ou meridionaes, encontram-se costumes de uma sociedade barbara, como na Sylvana e Rico-Franco, vive-se em estado de guerra, e a lei é a vontade irrefreiavel de um só.

D’onde provém essas tradições? Nada se encontra semelhante na civilisação romana; mesmo entre as colonias mais romanisadas, como a Italia, a poesia tradicional narrativa é pouco profunda.[51] Se os dialectos romanicos se desenvolveram pela acção dos Romanos, os costumes e as tradições são mais antigos, devem ser procurados em um sub-solo ethnico; os dialectos romanicos servindo de expressão [Pg 86] e unificação d’esses elementos, contêm as indoles, como os proprios romanos lhes chamavam, mas cuja natureza não é romana.

Os recentes estudos accádicos e assyriologicos, e as conclusões da anthropologia e ethnogenia peninsulares, dão auctoridade ás palavras de Strabão, que consignava a existencia de poemas heroicos entre os Turdetanos, de mais de seis mil annos do antiguidade. As inscripções lapidares encerram tambem os nomes de muitos deuses ibericos; e as superstições comparadas com as do magismo accádico, espalham uma grande luz sobre a ethnologia iberica. A persistencia do typo iberico na Peninsula, quer pelas migrações do norte, como se vê pela Aquitania, quer pelo sul, como se comprova pelos Berberes, acha-se confirmada pelas differenças cephalicas representadas nos dois typos bascos francez e hespanhol. Por tanto o estudo da poesia tradicional narrativa da Peninsula deve fixar-se n’este fundo ethnico iberico, remontando essas camadas de civilisação até á constituição das suas nacionalidades. Como o estudo dos cantos lyricos feito comparativamente leva a achar nas Serranilhas gallezianas e Pastorellas francezas um typo commum ás populações romanicas, o estudo dos cantos épicos, ou Romanceiros, deve seguir egual methodo, que conduz aos mesmos resultados, como observaram Nigra, Wolf, Köhler e Liebrecht.

Do elemento iberico.—Os cantos heroicos peninsulares foram chamados Romances pelos eruditos, por considerarem os dialectos [Pg 87] em que eram cantados como despreziveis em comparação com a lingua e cultura latina; ainda no seculo XVII romancista era o homem sem cultura litteraria ou scientifica. O povo, porém, chamou-lhes Aravia, e mais geralmente Estoria; a primeira designação é vulgar em algumas das ilhas dos Açores, e contém um sentido que nos leva ao intimo do problema: a Aravia significou um dialecto vulgar das classes que estavam em contacto com os Arabes ou propriamente com Berberes; esta classe sendo constituida com as populações hispanicas preexistentes á invasão arabe, facilmente assimilou a si o elemento mauresco determinando a revivescencia do typo iberico. Para os eruditos do seculo XV e XVI, a Aravia é a linguagem corrupta com que christãos e arabes se entendiam, é uma especie de giria não escripta, e a propria designação de um canto do povo. Mem Moniz, que esteve no seculo XII no cêrco de Santarem: «sabia fallar mui bem a aravia.» E Gil Vicente, nos seus Autos: «Que linguagem é essa tal?—Ui! e elle falla aravia.» Quando no fim do seculo XVI o P.e Fernão Guerreiro, na phrase «entoar uma aravia» a empregou no sentido de canto, já era usada pelo povo nas colonias portuguezas dos Açores, e nas colonias hespanholas do Perú, depois que a cultura latina atacou a originalidade nacional. Na propaganda catholica, os missionarios hespanhoes introduziram na toada dos cantos peruanos os romances castelhanos ao divino. Prescott, na Historia da Conquista do Perú, fallando dos troveiros peruanos chamados Haraveques, como os que registavam os annaes [Pg 88] d’essa extraordinaria civilisação, diz: «D’esta maneira formou-se um corpo de poesias tradicionaes semelhantes ás balladas inglezas e hespanholas, pelas quaes o nome de um chefe barbaro, que teria desapparecido á falta de historiador, chegou á posteridade por causa de uma melodia rustica.»[52]

Esta relação notada por Prescott entre os Yaravis peruanos e as balladas inglezas e hespanholas é tanto mais importante, quanto pelos estudos ibericos se sabe da correlação entre a Peninsula e as ilhas Cassiterides ou Inglaterra. Do mesmo fóco atlantico que iniciou a civilisacão dos Accads na Chaldêa, partiu o impulso das civilisações rudimentares da America. Continúa Prescott, fundado na auctoridade de Garcilasso no Commentario real: «A palavra haraveque significa inventor, auctor, e no seu titulo e nas suas funcções este poeta menestrel póde-nos lembrar o trouvère normando.» A funcção do menestrel saxonico que cantava á meza dos princepes, dos feitos e batalhas reaes: «era em parte exercida pelos Haraveques, que escolhiam os incidentes os mais brilhantes para assumpto das suas canções e balladas, que se cantavam nas festas reaes á mesa dos Incas.» Dos cantos populares do Perú, escreve o moderno viajante Paul Marcroy: «Estas composições chamadas Yaravis ... foram a principio cantos de victoria, odes, dithyrambos destinados a celebrar o triumpho das armas dos Incas, suas qualidades particulares e seu poderio. Com o [Pg 89] andar do tempo tomaram fórmas mais variadas, e cantaram o amor, a natureza e as flores.» E em nota accrescenta, definindo a palavra Yaravi: «Litteralmente, cantos tristes. Os Yaravis são hoje simples romances, cuja musica é sempre escripta em tom menor e com um movimento lento. Cantam-se com acompanhamento de guitarra.»[53] Tanto o Yaravi, como a Aravia açoriana, ou o romance peninsular ainda hoje são acompanhados á quitara arabe, ou á guitarra actual, e entre os Arabes, os Ravi eram os narradores. Dá-se aqui o mesmo influxo de revivescencia tradicional no Occidente ao contacto da civilisação arabe, como se notou nos cantos lyricos por essa influencia da poesia accádica no lyrismo semita. A parte communicativa da raça arabe na invasão da Peninsula eram os mouros, cruzamento do Arabe com o Berber, coadjuvando assim a regressão mais pronunciada ao typo iberico. A origem dos cantos epicos occidentaes tem sido já procurada n’este sub-sólo social de uma raça não árica; Liebrecht encontra paradigmas do romance Donzella que vae á guerra nos cantos chinezes, e Lange acha nos poemas homericos inclusas tradições mongolicas. Strabão referindo-se ás tradições de Troya no occidente da Europa, allude a cantos narrativos na Italia e na Hespanha, que em vez de se diffundirem dos poemas homericos foram [Pg 90] unificados n’elles: «Não só na Italia se conservam passagens d’essas historias, senão tambem na Iberia, existem mil vestigios de taes expedições, assim como da guerra de Troya.»[54] As tradições argonauticas que se crearam nas primitivas expedições atlanticas, é que foram depois incorporar-se nos poemas odyssaicos, circumscrevendo-se ás expedições mediterraneas ou jonicas.[55]

No velho romanceiro peninsular ainda se encontram fórmas que revelam o primitivo modo de recitação coral, em que a rima masculina e feminina, grave e aguda, se alternam em um canto amebeo. Na tradição asturiana dá-se a este genero o nome de cantos de estavillar (do typo Ay! un galan d’esta villa.) É ainda vulgar na Finlandia esta fórma de recitação das runas, como observa Léozon le Duc. A rima do canto No figueiral figueiredo é um vestigio precioso d’esta perdida estructura poetica, que tanto nos aproxima da origem das tradições épicas peninsulares.[56]

Do elemento germanico.—Nas invasões germanicas na Peninsula, foram os Visigodos os que preponderaram, submettendo os outros ramos á unidade nacional. Da grande familia germanica foi o Godo o que deixou menos vestigios de tradições poeticas, apesar das immensas [Pg 91] riquezas lendares de que se serviram Jornandes, Paulo Diacono e Saxo Grammatico nas suas historias. A causa d’esta obliteração, segundo Jacob Grimm, foi por ter o godo adoptado o arianismo, soffrendo depois os renhidos combates ou repressões do catholicismo; comprova-se isto com o Borguinhão, que tambem era sectario do arianismo, e cujas tradições épicas se perderam. Ao godo da banda guerreira, que veiu a formar a aristocracia feudal, fascinado pela civilisação romana, facil lhe foi despojar-se das suas crenças e tradições; a banda agricola e pastoral, que pela decadencia dos homens livres veiu a constituir a classe dos lite (lendes, lazzi) e dos Vassu, com a fusão com o colonato romano e assimilação do elemento mauresco, formou esse rudimento de povo, que avançou para o estabelecimento da liberdade civil e foi conhecido pelo nome de Mosarabe. Entre esta grande classe que sacudiu a servidão, é que se conservou pela sua situação atrazada aquillo que mais se apodéra da alma humana, os Symbolos, as Superstições, os Costumes, emfim, a tradição poetica até aos seus mais inconscientes vestigios.

Em nenhum povo da Europa, como notou Reyscher, apparece a conservação dos Symbolos como na familia germanica; comprovámol-o no symbolismo juridico do direito consuetudinario das Cartas de Foral exigidas ou concedidas ás povoações mosarabes. Estudada esta efflorescencia dos Symbolos juridicos,[57] por elles fomos levados a [Pg 92] comprehender a importancia tradicional dos Romanceiros.

Raro será o romance popular portuguez que não contenha um symbolo germanico francamente expresso, mesmo com a ingenuidade de quem já o não comprehende. Enumeremos alguns dos mais profundos: no romance de Gerinaldo, o rei deixa o punhal collocado entre sua filha e o pagem que dorme com ella, como o signal de que ha entre elles a distancia inaccessivel de classe; depois de perdoar ao pagem e de o casar com sua filha dá-lhe a egualdade pela cerimonia de sental-o comsigo á meza. No romance insulano Flores e Ventos apparece a penalidade germanica do banido completamente desenhada, negando-se-lhe tecto, lar e agua, tal como nos Foraes portuguezes; isto mesmo se encontra no romance castelhano de Lanzarote del Lago, em que os criminosos chegam a transformar-se em cães e veados, especies de Wargus. No romance portuguez de Clarinda ha a pena de fogo para o adulterio da mulher, como no Codigo visigotico. No romance da Infantina ha a condição do servo germanico notada com o nome de malato, como se encontra nos documentos juridicos. O symbolo do cabello atado, como signal de mulher casada, e em cabello (mancipia in capillo, da fórmula foraleira) conserva-se nos anexins: «Moça em cabello não m’a louves companheiro.»

Passemos ás superstições: o culto do carvalho sagrado Ygdrasill, debaixo do qual se celebrava a assembléa juridica dos homens livres germanicos, é a carvalheira á porta da egreja, debaixo da qual julgavam os homens-bons dos Foraes; é esse mesmo roble em que está [Pg 93] a donzella encantada, a Infantina dos romances hespanhoes o portuguezes, tendo além d’isso a particularidade do tanque de agua fria, que é a fonte de Urda. Esta mesma tradição encontra-se em muitas terras de Portugal, que tem carvalhos consagrados ao pé de poços de aguas santas. O symbolo não comprehendido torna-se superstição, como o Wargus, o banido que era equiparado ao lobo nocturno, e que ficou para o nosso povo o lobishomem.[58]

Nos costumes populares portuguezes temos a Cavalgada furiosa na fórma da Corrida do porco preto, em Braga; e Wodam, no Homem das ervas, das festas de maio. Ainda que as festas populares de S. João, Maias e Natal, vestigios polytheistas do Combate do Verão e do Inverno, sejam anteriores ás tradições germanicas, comtudo a sua persistencia entre o povo mostra-nos que o rigorismo catholico e a cultura romana pouco actuaram n’este ponto entre os Mosarabes.

A palavra Rima, significando a composição poetica em geral, é empregada n’este sentido pelo Chanceller Ayala, que em versos de lingua vulgar diz: «mi tiempo passar, En fazer rimos...» Tambem no seculo XV chamava D. Duarte Rymanço á fórma que melhor se decorava por causa da rima. Parece que o termo de romance, referindo-se á linguagem vulgar se identificou com o rimance, que segundo a origem germanica designava a tradição [Pg 94] poetica. Nas fórmas poeticas conservou-se tambem a aliteração, que com a rima constituem a poetica dos povos do norte. Nos anexins populares é frequente a aliteração, como: Gota a gota, o mar se esgota.—Vento e ventura, pouco dura, etc.

Dos themas poeticos germanicos parece-nos pertencer ao typo scandinavo de Sigurd, o romance: Eu bem quizera senhora, etc. A vida historica da raça germanica começou no seculo V; n’este periodo ella cria uma fórma poetica, breve, narrativa, cantando os feitos bellicos e a independencia individual, adaptando-se aos successos novos, correndo de bocca em bocca, sempre anonyma, com interesse immediato, dando vida a todos os dialectos e animando as tribus á invasão. Tacito falla d’esta ordem de poemas, a que os medievistas, fundados em um texto de Oderico Vital deram o nome de Cantilenas. D’este typo rudimentar, que pela aggregação cyclica formou as Epopêas feudaes ou Gestas, além de outros especimens, existe desde 1812 em que se descobriu, a magnifica cantilena de Hildebrand e Hadebrand. Não temos hoje as cantilenas goticas da Peninsula, posto que sua efflorescencia poetica appareça em symbolos e superstições populares. Á designação de Chacone, tanto em Portugal e Hespanha, como em Italia e França, por onde se estendeu a occupação germanica, corresponde esse costume primitivo da raça, em que os cegos, principalmente entre os Lombardos, eram os que diziam as Cantilenas heroicas, como Ludgero e Bernlef o frisio; chamaram-se por isso [Pg 95] Chiecone. Nas raças germanicas entraram populações scythicas, como colonos e servos, e era costume entre os scythas cegar os escravos (Herodot., IV, 2); cegar era synonimo de escravisar, e filho de cego significava propriamente escravo. Eram esses os cantores narrativos, dos quaes escreve Ozanam: «No seculo XVIII via-se ainda nas aldeias pagãs da Frise, cegos e mendigos ganharem o seu pão recitando nos ajuntamentos de aldeãos—as aventuras do tempo antigo, e os combates dos velhos reis.»[59] Isto explica a persistencia do genero da Chiecone, pelo sentido do poeta identificado no de cego, como em Cieco d’Ascoli, Cieco de Ferrara. Homens cultos e aristocraticos, como o Marquez de Santillana, no seculo XV, tinham por infimos e despreziveis os que tratavam romances vulgares. O nome de Chacoula é ainda designativo de canto popular no Alemtejo.

As Cantilenas germanicas, antes do seculo IX, decaíam por falta de importancia historica; estava terminado o periodo das invasões. O que se dava no ramo mais vigoroso da familia germanica, com mais intensidade deveria dar-se entre os Godos, por causa da reacção do catholicismo fortalecido com a cultura romana. As Cantilenas germanicas, logo que appareceu o vulto de Carlos Magno receberam um novo interesse, uma actualidade devida á transformação social, ou fixidez em que entravam os estados da Europa; emquanto esta acção não chegou a Portugal, a Cantilena gotica não se perdeu completamente. [Pg 96] Nem do outro modo se explica a existencia dos cantares historicos de que se serviu Affonso o Sabio na sua Chronica. Alguns d’esses typos se recompõem nos versos da Cronica rimada do Cid; no Cancioneiro da Vaticana acha-se um romance: Desfiar enviarom, assignado por João Ayras, que nos aproxima do typo da Cantilena. O romance de Don Favila, colligido da tradição popular na Republica Argentina, é uma prova d’esta elaboração poetica anterior aos cantares da Gesta.[60] O romance do Figueiral figueiredo, que Miguel Leitão ouvira a uma velha de muita edade no ultimo quartel do seculo XVI, pelo seu conteúdo, é um vestigio da Cantilena, que se ia apagando, da mesma fórma que os romances se modernisaram no seculo XVI.

Depois que a poesia dos jograes e trouvères se espalhou pelo Occidente, o que por colonias francezas, casamentos de princepes e romarias provocadas pelas santificações locaes, se tornaram as communicações affectivas mais directas entre os diversos povos, as Cantilenas, que haviam recebido pelo genio gallo-franko uma transformação profunda, formando as grandes Canções de Gesta, vieram já em uma época historica fecundar as Aravias, que conservaram sempre a fórma breve e anonyma, que se continua no Romance popular. Na antiga poesia hespanhola falla-se na Maestria de [Pg 97] França; em Portugal achamos empregado o titulo de Gesta em uma composição satyrica em verso alexandrino por D. Affonso Lopes de Baião, imitando a neuma tradicional dos recitadores. A palavra Francias designou os contos facetos dos Fabliaux, em parte derivados de cantos poeticos, como vêmos ainda na poesia popular da Madeira, no romance do Boi Rabil, que é um conto na Gesta Romanorum.

Transformação erudita do Romance popular.—Cansados de esgotar os innumeros artificios do lyrismo trobadoresco, que em Portugal se manteve por todo o seculo XV, os cavalleiros, condemnados pela organisação social em que a Realeza caminhava para o predominio da dictadura monarchica, a viverem a vida parasita de cortezãos e a divertirem os serões do paço, lançaram-se á imitação dos cantos populares; as fórmas lyricas subsistem nos Cantares d’Amigo, nos cancioneiros aristocraticos, mas as fórmas narrativas não se conservaram com o mesmo esmero. Affonso Sabio só admittia que esses cantos fossem de feitos de armas; e mais tarde o Marquez de Santillana condemnava-os ao desprezo pela inferioridade da sua origem. Mas no seculo XV os Romances conseguiram vencer esse desdem dos latinistas e aristocratas. O que havia de profundamente humano e pittoresco n’esses cantos tradicionaes, em que o mosarabe alludia ainda aos seus Symbolos já sem os comprehender por extranhos á legislação codificada, não deixou de impressionar os Poetas palacianos. D. João Manoel adoptára [Pg 98] esses cantares-romances, e impuzera-se a moda; a rainha D. Joanna, filha do rei Dom Duarte, casada com Henrique IV de Castella, pedia aos cavalleiros da sua côrte que lhe glosassem Romances, como o que começa: Nunca fue pena mayor, tambem glosado em Portugal por Pedro Homem, estribeiro-mór, e referido em Gil Vicente. Garcia de Resende tambem glosou o romance Tiempo bueno, Sá de Miranda e Gil Vicente, o romance da Bella mal maridada. Colligindo-se todas as referencias a romances velhos nos escriptores quinhentistas, vê-se a sua vivissima vulgarisação oral, antes da primeira collecção formada e impressa em Sevilha em 1551.

Quando no seculo XV a erudição latina tomou um ascendente no gosto, fazendo decahir os elementos medievaes das litteraturas, os dialectos populares chamados romance continuaram a empregar-se na poesia popular, vindo este nome a designar esta fórma épica tradicional. Bernardim Ribeiro usa-o com este duplo sentido: «não soube inteiramente mais que por um cantar-romance, que d’aquelle tempo ficou.» E em um verso do Cancioneiro geral: «mais ande cantar romance.» (t. III, 358.) O povo ficou empregando a palavra Estoria no mesmo sentido de narrativa poetica, como a usava Fernão Lopes no sentido de tradição, e que Bernardim Ribeiro emprega: «ouvi-a já então contar a meu pae por estoria.» Quando a erudição, para variar as fórmas poeticas, teve de contrafazer a poesia popular narrativa no seculo XV, perdeu a noção da sua origem, e mais ainda a sua comprehensão. A fecundidade do povo, que se fixa entre [Pg 99] o seculo XII e XIV, acabou em resultado da extincção das liberdades locaes ou foraleiras pela dictadura monarchica, e com a liberdade de consciencia pela intolerancia catholica a pretexto de combater a Reforma. Ambos estes poderes fizeram reviver e prevalecer a cultura latina nas letras o na politica.

A reacção clerical contra a Reforma, matava a alegria entre o povo; os romances sacros ou ao divino foram considerados peccados de bocca, como anteriormente o dissera o rei D. Duarte, e os Indices Expurgatorios de 1564, 1581, 1597 e 1624 condemnaram com excommunhões todos os romances populares em geral. Gil Vicente consigna essa depressão de tristeza produzida pelo estabelecimento da Inquisição em Portugal, quando no Auto do Triumpho do Inverno, diz ser: «Jeremias o nosso tamborileiro.» Os romances populares foram parodiados ridiculamente, e a sua fórma applicada ás narrativas historicas, recebeu fórma litteraria em Lorenzo de Sepulveda, Lasso de La Vega, Timoneda, Juan de la Cueva, em Hespanha, e em Portugal por Gil Vicente, Jorge Ferreira e Balthazar Dias, que traduziu na Imperatriz Porcina as lendas de Crescencia, tiradas do Speculum historiale de Beauvais.

No fim do seculo XVI os romances populares reflectiram o estado da sociedade civil: estava acabada a cavalleria, e como as Gestas feudaes tinham caído na faulse Geste, ou idealisação dos traidores, assim os Romances celebraram os facinoras e contrabandistas, os Valentones, os Guapos e os Xaques. Appareceu [Pg 100] o genero meio popular meio litterario das Xácaras ou Xacarandinas, metrificadas por Quevedo e entre nós egualmente seguido por Dom Francisco Manoel de Mello, que falla d’este genero: «um rascão musico, que a poder de rácaras e seguidilhas a trazia martelada (a uma escrava da casa).» Imitaram-se tambem os romances mouriscos e granadinos em um monotono prurido litterario, dissolvendo-se por fim no gosto allegorico e subjectivo. D’aqui em diante a poesia épica do povo perde-se totalmente: a dominação castelhana, obscurantismo religioso, restauração bragantina, tudo conspirou para fazer esquecer-se a tradição nacional, a ponto de chegarmos a ser conhecidos na Europa como o povo mais escravisado e embrutecido, como o referiu o P.e Theodoro de Almeida na Oração inaugural da Academia das Sciencias em 1779. Só muito tarde, na renovação das Litteraturas pelo Romantismo é que se tornou a achar este veio riquissimo da Tradição.

c) DAS FÓRMAS DRAMATICAS

Como manifestação da vida social o theatro attingiu nas civilisações antigas e nas raças vigorosas o caracter de uma instituição. O Drama, a fórma de arte em que o homem apresenta a consciencia da sua personalidade, comprehendeu primitivamente elementos do Lyrismo e da Epopêa; as mais vetustas composições dramaticas começam pelo Côro, puramente lyrico, d’onde se destaca um personagem que narra incidentalmente; mas a necessidade de figurar e desenvolver as tradições épicas, de as tornar vivas diante da multidão, reduziu [Pg 101] o Côro á rubrica explicativa, á decoração material, vindo o dialogo dos personagens (de persona, a mascara com que o som da voz era reforçado) a constituir a tragedia. Deu-se isto na Grecia de um modo natural e logico, por que ali o theatro tomou o caracter de uma instituição nacional. O theatro indiano derivou-se tambem da Epopêa. E assim como nas civilisações rudimentares o theatro é uma continuação dos actos liturgicos, como o Mitote, no Mexico, os Ludi, nas festas christãs, os Mysterios francezes, as Reprezentazioni italianas, na Edade media, em nossos dias repete-se este processo generativo, em que dos côros lyricos e elegiacos sobre as desgraças da familia de Oly, entre os Persas modernos, se formam os grandes dramas chamados taziéhs, a que a multidão assiste com fervor commentando pela acção scenica as doutrinas do Babysmo.

Recebe o theatro a importancia de instituição quando se torna para um povo a sua satisfação moral, uma fórma de protesto, uma manifestação da—opinião publica. É por isso que o theatro attinge a sua maior vitalidade nas épocas burguezas. Os dogmas religiosos e civicos foram pela primeira vez discutidos n’esse tribunal, como se vê pelas tragedias de Eschylo e pelas comedias de Aristophanes; assim foi tambem comprehendido na fórma hieratica da Edade media, em que o Velho e o Novo Testamento eram postos em acção debaixo das abobadas da Cathedral popular; em que os actos respeitaveis da Bazilica eram parodiados pela Bazoche, nas farças mordentes em que os papas e os reis [Pg 102] figuravam no conflicto dos dois poderes. O renascimento das fórmas classicas greco-romanas veiu desviar esta creação das Litteraturas romanicas dos seus germens organicos ou tradicionaes. Esses germens tinham vigor bastante para efflorescerem, se não tivessem apparecido outros meios mais faceis para manifestar-se a Opinião publica, taes como a Imprensa.

Assim como as fórmas do Lyrismo e da Epopêa apresentam nos povos meridionaes a persistencia de typos tradicionaes que se ligam a uma communhão ethnica de raça, tambem existiu uma forma de Drama, com egual origem, e que ainda persiste nos costumes populares na Italia, Hespanha e Portugal. Os criticos não comprehenderam ainda o seu valor; mas esse typo dramatico hade merecer o interesse dos eruditos como a Pastorella e o Romance. Já vimos que a antiga raça italica tinha a comedia mimica e improvisada das Atellanas oscas, com os seus personagens typicos e invariaveis o Macus, o Pappus, o Casnar, o Sannio, o Manducus. Esta fórma pertencia evidentemente a essa raça que constituiu o fundo popular das nações occidentaes: na Italia resistiu sempre aos dramas classicos ou litterarios, em todas as épocas, com o nome de Commedia dell’Arte, e de Commedia a soggeto. O assumpto era previamente definido, o canevaccio, os dialogos é que eram improvisados em scena pelos typos immutaveis de Arlechino, Brighella, Zanni, Pantalone, Truffaldino e Dottore. Emquanto a comedia litteraria ou sostenuta se mostrava sem interesse, o povo preferia a comedia improvisada, na qual os varios dialectos da Italia se [Pg 103] unificavam, por isso que eram empregados pelos diversos typos comicos segundo os caracteres que representavam. A linguagem dialectal fornecia as vivas graças e chascos que ha sempre de terra para terra; e as mascaras tinham a expressão dos traços provinciaes. Quando fallava o typo amoroso, empregava a lingua culta da Toscana; se era o pae tyranno, era o dialecto de Bolonha; se conversavam a criada ladina ou serigaita com o criado dialogavam em bergamasco. Em Gil Vicente tambem se encontra esta necessidade de mudarem de linguagem os seus typos, chegando a dizer que—o castelhano é bom para fingir, e empregando por vezes o cigano e o creoulo.

A vitalidade da commedia dell’Arte resistiu ás reformas do gosto dramatico tentadas por Goldoni no seculo XVIII, e chegou a influir no desenvolvimento do theatro francez; os antigos typos apresentam novos nomes, como Scaramouche, Scapin, Tartaglia, e chamava-se commedia a braccio, pela gesticulação exagerada. Quando Goldoni tentou a comedia do género menandrino, os actores não se queriam sujeitar ao estudo de papeis definidos, e o publico preferiu a improvisação dos representantes, que ás vezes pelos seus repentes felizes adquiriam uma grande celebridade, a ponto de Biancolelli receber de Luiz XIV o tratamento de amigo, e Cecchini cartas de nobreza pelo imperador Mathias.[61]

[Pg 104]

Este mesmo genero improvisado encontra-se em Andalusia, com o nome de Juegos de cortijo, usados ao terminar os trabalhos das colheitas, e especialmente nas bodas. Lafuente y Alcantara, no prologo do seu Cancioneiro popular descreve esta forma da Encortijada, e dá alguns themas comicos, eguaes ás Atellanas oscas e ás commedias dell’Arte: «Começa este jogo por uma especie de introducção ou scena preliminar, reduzida a um breve dialogo que hade terminar com algum chiste, já mettendo a ridiculo qualquer dos presentes com allusões grotescas, ou simplesmente algum conceito mais ou menos opportuno, ou alguma sandice inesperada. Chama-se a isto entrada de juego, e geralmente não tem connexão alguma com a scena que se representa depois. Nesta ultima só é premeditado e convencionado o assumpto principal e o desenlace; o dialogo e demais incidentes são improvisados pelos actores[62] Lafuente y Alcantara apresenta alguns dos themas usuaes, quasi sempre descambando nas facecias desenvoltas, como o Juego del galan, e o del Jalapago, e del Licenciado.

Comprehende-se que os latinistas ecclesiasticos condemnassem a forma dramatica conservada tradicionalmente nas classes populares; nas obras de Isidoro de Sevilha, lê-se: «O theatro é um verdadeiro prostibulo, porque terminados os Jogos, ali se prostram as meretrizes...» (Etym., l. 18 e 39.) Continúa o erudito bispo hispalense: «Entram os histriões nos espectaculos com a face coberta, pintam o [Pg 105] rosto de azul e de roxo sem se esquecerem dos demais arrebiques; e levando ás vezes por simulacro um lenço sujo e manchado de varias côres, untam com elle todo o pescoço e mãos de grêda para egualar a côr da careta e enganar a multidão emquanto se representam as farças; umas vezes apparecem em figura de homem, outras de mulher; ora tosquiados, ora com grande cabelleira; umas vezes de velha, outras do virgem, e em todos os aspectos, com diversa edade e sexo, a fim de enganarem o povo emquanto representam.» Recommendando como se devem cantar os psalmos, o bispo prohibe que a voz tenha effeitos theatraes. D’este texto se deprehende a existencia do theatro popular na baixa Edade media, e que apezar de todas as condemnações da Egreja persistiu nas fórmas elementares dos Jogos dialogados, e Dansas figuradas.

Do theatro primitivo da peninsula iberica falla Marcial: antiqua patria theatra (Epigr., IV, 55) referindo-se a um scenario natural em um valle, a que concorria a gente de Rigas, ou como diz um glosador lendo Ripas: «quod prisci juxta ripas ederent spectacula...» A estes theatros naturaes alludo Juvenal (Sat. III, p. 172) em relação á Italia, herbosa theatra. A Dansa guerreira dos Gallegos acompanhada de canto, descripta por Silio Italico (Pun., III, 353), ainda nos apparece na Dansa dos Espingardeiros, e as Dansas coreadas religiosas dos Celtiberos, persistiram até ao seculo XVIII nas procissões portuguezas. Da mesma fórma diz D. Juaquin Costa, a quem seguimos aqui: «Los [Pg 106] Dances[63], con sus representaciones scenicas, ora historicas, ora religiosas, ora pastoriles, como, por ejemplo, el Baile de la inconstancia, de Benabarre, la Marisca, de Ainsa, la Pastorada, de la Fueba, etc, que son una verdadera juris continuatio del teatro indigena, conservado mas tenazmente que en ninguna otra region, en los escondidos valles del Pireneo, tanto en la vertiente española (Aragon) como en la franceza.»

A fórma improvisada do theatro acha-se tambem na tradição portugueza conservada no Brazil, e usada nas festas chamadas Reinados e Cheganças. Celso de Magalhães viu representar na Bahia o Auto dos Marujos, e descreve-o assim: «Um grupo vestido á maruja conduzia um pequeno navio armado de ponto em branco, com velas de seda e cordame de linha, montado sobre quatro rodas, embandeirado em arco e puchado por rodas. Cantavam versos da Náo Catherineta, Fado do marujo e lupas (cantigas de levantar ferro). Outro grupo apparecia mascarado. Na frente um individuo montava um cavallo de pasta vistosamente ajaezado do galões falsos e fazia-o dansar ao som da musica e do canto aspero e acompanhado de pandeiros e pratos.» E Roméro acrescenta: «Depois fingem uma lucta, vão coser o panno, no fim do que ha o episodio do Gageiro, cantando-se os versos da Náo Catherineta...»[64] São muito curiosos os especimens [Pg 107] d’este genero, como Os Marujos, os Mouros, o Cavallo Marinho,[65] conservados na antiga colonisação brazileira. Nas aldeias ainda hoje se conservam dansas dialogadas hieraticas, elemento consuetudinario a que Gil Vicente deu a fórma litteraria.

O primeiro vestigio theatral que nos apparece é a representação mimica, de que a Sicilia era o fóco que mais sortia Roma; é o Arremedilho do jogral Bon-Amis, coadjuvado por outro a que se chamava Acompaniado. É provavel que Bon-Amis seja já nome comico, como o de bonifrate. Foram depois regulamentados os costumes do Tamo, ou das festas do casamento (Epithalamio) a que pertenciam os Jueyos de cortijo na Andalusia. O uso popular dos Clamores e Endexas dos mortos era tambem dramatico, havendo banquetes sobre as sepulturas. A parte representada acha-se nas cantigas com Voz e Côro acompanhadas de dansa, sobre a sepultura do Condestavel, pela paschoa florida; os banquetes ainda ha muito pouco tempo deixaram de usar-se nos cemiterios de Lisboa. Estes ritos eram tambem usados pelos Belgas sob o nome de Dadsila ou festim sobre a sepultura das pessoas cuja memoria era cara; o touro, o bode eram as victimas regularmente immoladas; na primitiva egreja conservou-se este costume, como se vê pela recommendação de Santo Agostinho acerca d’esses banquetes: «Non sint sumptuosae.»

Muitos dos elementos dramaticos dos costumes populares foram [Pg 108] incorporados na grande festa de Corpus Christi; D. João II, para celebrar a victoria da batalha do Toro, mandou organisar a Procissão em que figuravam os officios com os jogos que lhes eram peculiares e emblematicos. No Regimento da procissão, dado por D. João III, encontram-se esses rudimentos tradicionaes: «Dois Diabos, e a representação da Dama e Galante; dois Diabos e um Princepe; o Gigante e o Anjo.» Da figuração do Sam Jorge matando o Dragão para salvar a Donzella que ia ser devorada, vemos a persistencia no alto Minho com o nome de Santa Coca como parte obrigada da procissão. Nos costumes actuaes, na procissão do Carmo em Vianna, figurava o Rei da Mourama, e entre lôas á Virgem jogavam-se as mais desbragadas chufas á mourisma; a Dansa dos Pretos em Arcozello da Serra, na festa da Senhora da Assumpção, em que crianças de nove a dez annos em trajo de negrinhos fingem de escravos, e queixam-se á Senhora com ditos pela maior parte indecentissimos para os libertar. A Dansa das Donzellas consta de um côro de meninas, que pedem para ser baptisadas ao Anjo que as acompanha, e elle exhorta-as em um monologo final, dando-lhes o baptismo. A Dansa dos Espingardeiros,[66] é um thema inspirado pela resistencia nacional contra a absorpção castelhana; consta de oito ou dez rapazes, marchando ao som de tambores, divididos em dois [Pg 109] bandos, simulando o exercito castelhano e o portuguez; postam-se diante uns dos outros, vão parlamentarios lançar os ditos, trava-se o combate, e vence o general portuguez, que concede a vida ao inimigo depois de lhe ajoelhar aos pés. Além d’estes themas ha outros ligados aos trabalhos do campo ou da industria, como o Enterro das Séstas, as Malhadas do centeio e as Azeitoneiras; e os divertimentos domesticos, taes como o Jogo da Condessa, o da Almolina, o de Villão do cabo, em que ha dialogos e movimento scenico.

O typo nacional do gracioso da comedia popular era designado o Ratinho, que Miguel Leitão diz ser tomado do caracter broma dos moradores da aldeia de Rates. Gil Vicente que teve perfeito conhecimento de todos estes elementos tradicionaes, allude ao typo comico nacional:

Muitos ratinhos vão lá
De cá da serra a ganhar;
E lá os vemos cantar,
E bailar bem como cá. (II, 443.)
E no mais triste ratinho
S’enxergava uma alegria
Que agora não tem caminho. (II, 417.)
Ratinho és de má casta (II, 211.)
E deixas lavrar ratinhos (ib., 220.)
Que eu era ratinho, senhor. (ib., 237.)

Todos os que seguiram as fórmas estabelecidas por Gil Vicente aproveitaram-se d’este typo do Ratinho, como António Prestes [Pg 110] e o Chiado. Muitos d’estes costumes populares foram condemnados nas Constituições dos Bispados, principalmente os Autos, Colloquios e Lapinhas, nas trez grandes festas a que o povo deu relevo com as figurações dramaticas—o Natal, os Reis e a Paixão. Era a grande trilogia, em que o povo continuava a sua creação poetica depois de terminado o cyclo de formação dos Evangelhos apocryphos. O trabalho de Gil Vicente, como se deprehende da tragicomedia do Triumpho de Inverno, foi rehabilitar pela litteratura as tradições populares, condemnadas pela Egreja, e este esforço do genio foi para a época da Renascença como o de Garrett, na restauração do theatro portuguez, na época do Romantismo.

Profundos accidentes historicos separaram da unidade politica portugueza paizes que pela lingua e tradição pertencem ainda a um mesmo todo moral. Pelo estudo d’estes documentos ethnicos se reconstitue a indole de um povo; por isso dizia Gregorovius: «As leis, as instituições, separam, mas a lingua, na qual o povo falla e canta, é um elemento de aproximação; ahi se encontra o que os latinos chamavam indoles

A tradição nacional e popular, verdadeiro germen de toda a efflorescencia artistica, e que era a base de todas as creações originaes das litteraturas da Edade media, achou-se depois do seculo XII abandonada ou combatida pelo prestigio da Antiguidade preferida pelos eruditos latino-ecclesiasticos. Formada n’este começo da grande crise da dissolução catholico-feudal, a nacionalidade portugueza foi [Pg 111] desviada das sympathias da Tradição; a separação dos interesses e gosto da classe popular, ou a praça, e da aristocracia e alto clero, ou a côrte, torna-se um caracter commum ás recentes nacionalidades europêas, e exprime-se claramente esse antagonismo nas Litteraturas novo latinas.

Em Portugal encontramos este antagonismo reflectindo-se na Religião pelo abandono do culto mosarabe ou Egreja nacional substituido pelo catholicismo romano; no Direito, pela absorpção das instituições locaes ou autonomia foraleira na codificação real das Ordenações: na Arte, como a architectura especialmente, e a poesia, pela imitação dos modelos classicos.

As fórmas cultuaes e crenças religiosas no meio de uma população que tendia a unificar-se politicamente era um esboço de integração affectiva. Tal foi o christianismo durante a occupação arabe. O godo lite ou aldius, meio lembrado do seu velho culto odinico, abraçára o Christianismo pelo que elle tinha de sentimental; não comprehendia as abstracções dos mysterios dogmaticos, e seguiu por instincto natural a doutrina de Ario: acreditava na humanidade de Jesus, e repugnava-lhe a consubstanciação e a sempiternidade do Verbo. É n’este ponto que se dá a dissidencia entre a classe popular e a sociedade aristocratica convertida ao catholicismo romano sob Rekáredo. As crenças, usos e tradições populares são combatidas pelo clero como superstições, e começa a preponderancia do clero na sociedade politica, predominando os Bispos nas Côrtes, nos conflictos dynasticos e em [Pg 112] todas as fórmas de intolerancia.

Para o godo ao contacto com o arabe dominador, era a religião de seus paes o sentimento mais energico e vital; adoptára a cultura, os costumes, em parte a linguagem do vencedor, pelos cruzamentos ajuntára ao instincto de independencia das raças do norte a paixão meridional, mas permanecera sempre hispano-godo no seu afferro ao christianismo. O culto dos mosarabes deve considerar-se como uma fórma pura do Christianismo independente da Egreja de Roma, viciada pelo intuito da auctoridade temporal a que ambicionava. Como a Egreja da Bretanha e da França, que se attribuiam uma origem proto-cathedrica, a Egreja hispanica ou mosarabe considerava-se fundada expressamente por um Apostolo; procurava derivar a sua origem da missão immediata do apostolo Sam Thiago; não tinha por tanto de reconhecer a supremacia papal. No culto mosarabe o christianismo achava-se desligado das affectadas fórmas liturgicas; não existia n’elle a confissão auricular, com que o catholicismo romano adquiriu o imperio nas consciencias; na sagração não se partia a hostia; o povo tomava parte nos officios ecclesiasticos com as suas Prosas e Sequencias, fecundando com a emoção religiosa a sua sensibilidade poetica e animando a abstracção; a linguagem vulgar era a que se empregava nas cerimonias liturgicas, com exclusão completa do latim, costume que determinou ainda nos seculos XII e XIII as traducções vernaculas do Velho e Novo Testamento [Pg 113] e de alguns hymnos da Egreja. O catholicismo romano reconheceu os perigos que para a sua disciplina tinha a simplicidade do culto mosarabe, e combateu-o de frente, apoiando-se no poder real para o extinguir completamente na peninsula. O christianismo-mosarabe tinha a riqueza do sentimento poetico de uma forte raça; Roma banindo-o com as censuras dos seus legados, impunha-lhe uma religião cuja força não residia na santidade da crença, mas na auctoridade do padre. Quando Affonso o Sabio escrevia a Historia geral de Hespanha, existiam apenas seis egrejas em Toledo do culto mosarabe; a lucta continuou-se lenta e insensivel a ponto de, no tempo do Cardeal Ximenez, restar sómente uma capella em que se celebrava pelo missal mosarabico; era uma opulencia cardinalesca conservada não como crença, mas com o intuito archeologico de uma tradição da Egreja primitiva. É tambem como lembrança historica, que na sua Cronica falla o rei Affonso o Sabio: «Depoys que a cidade de Toledo foy metida em poder dos mouros per preytesia ... todos aquelles que hy quyzesem vyver so o senhoryo dos mouros era contheudo no trauto que tevessen sua ley, e vivessem segundo o que ela mandasse e ouvessem clerigos de myssa e bispos e outras ordeens. Estes christaãos teveram das entom ataagora ho officio de Santo Ysidro e de San Leamdre. E oie em dia o mantem seys Igrejas em Toledo, e chamansse os crerygos d’estas Igrejas moçarves. E vyverom os christãos de ssuum com os mouros e so seu poder teendo sua ley e guardandoa ataa o tempo dos Almoades que começaram em [Pg 114] tempo do emperador dom Afonso no tempo que era dom biuam arcebispo de Toledo.»[67]

D’este missal e breviario composto por ordem do Concilio toledano em 633 para uso geral da egreja de Hespanha, falla o bispo D. Rodrigo da Cunha, referindo-se á hostilidade com que era combatido o mosarabismo: «D’este Missal e Breviario usaram muitos annos as egrejas de Hespanha, por confirmação da sé apostolica, que por varias vezes os approvou, pretendendo seus legados o contrario, como se póde vêr em Ambrosio de Morales.» (Lib. 12, c. 19.)[68]

Desde que o catholicismo imperou absolutamente na peninsula, o povo não tornou a crêr, mas a temer, submisso pelos Autos de fé ante o terror dos inquizidores; o christianismo que fôra sob o dominio dos arabes um consolo, tornára-se no tempo dos reis catholicos um pezadello.

Quando a fé era sentida, a sua exaltação e fervor inspirava as obras de arte; por isso, escrevia Herculano ácerca da população mosarabe: «cuja especial influencia na organisação da monarchia portugueza não tem sido apreciada.»[69] Sob a emoção ingenua do christianismo, ella [Pg 115] cria as fórmas da architectura das bellas cathedraes, e a fixação do seu direito no estatuto territorial. Se a população mosarabe tem sido desconhecida na organisação politica da nacionalidade, mesmo para o historiador que descreveu essa influencia, mais desconhecido foi o seu genio artistico manifestado na Arte. Os grandes terrores do fim do mundo despertaram o fervor da fundação de templos por toda a Europa no seculo X; foi quando a immobilidade pezada do acanhado estylo byzantino, de origem erudita, se quebrou para sempre para dar logar a esplendidas creações ogivaes. Os christãos que viviam por toda a peninsula em contacto com os sarracenos, obedeceram a esse impulso, e deram começo ás grandes cathedraes pela tolerancia illustrada dos invasores. Quer do norte da França (Ars francigena) como hoje se reconhece, ou da Allemanha, o gotico ogival só entrou na peninsula quando ia na sua phase secundaria; os Mosarabes ao construirem os seus templos reformaram a sombria architectura byzantina, tiraram-lhe o aspecto de refugio e deram-lhe a largueza da futura assembleia politica. Fundada ao lado da mesquita arabe, a egreja imitava naturalmente a elegancia da architectura oriental, n’esta efflorescencia do ornato, apparentemente caprichoso, mas dominado por uma lei geometrica constante. Os escriptores coévos da invasão, ao fallarem da reedificação dos templos accusam essa elegancia arabe; tal é o documento apresentado por Herculano: «quicquid novo cultu in antiquis basilicis splendebat, fuerat que, temporibus arabum, [Pg 116] rudi formationi adjectum.»[70] Nas antigas basilicas resplandeciam os ornatos accrescentados no tempo dos arabes á rude fabrica; assim interpreta Herculano esse texto, pela rudeza da architectura visigotica comparada com o esplendor da architectura arabe. Mais tarde, quando pela reacção neo-gotica os arabes foram submettidos, os cativos eram obrigados a trabalhar nas construcções dos mosteiros, obliterando-se os ultimos restos do byzantinismo. Sousa Loureiro, director da Academia de Bellas Artes em 1843, dizia dos primeiros monumentos architectonicos de Portugal, como Santa Cruz de Coimbra, Sam Vicente de Fóra e Alcobaça: «N’estes edificios não ha o estylo gotico d’aquelle tempo; nem o estylo arabe da Hespanha no seculo XI se reconhece ali; tem um typo, um caracter luzitano, porque a Luzitania existiu sempre como uma região, como uma nação, como um povo particular e separado da união geral, mesmo no tempo que a Hespanha foi successivamente invadida por potencias estrangeiras...»[71] E considerando anteriores á monarchia, a fundação da capella de Nossa Senhora da Oliveira, de Guimarães, e de Santa Maria de Almacave, de Lamego, classifica-as juntamente com as egrejas de Santa Maria de Tarquere e Santa Cruz de Coimbra como luzitanas, cuja architectura é ainda bastante simples.

[Pg 117]

Se alguma feição luzitana apparece na cathedral antiga é simplesmente a reunião do gotico-byzantino com o estylo arabe, por effeito dos mouros cativos e alvenéres que trabalhavam então nas construcções; e a fusão da raça goda e sarracena produzindo essa nova população mosarabe, com o seu direito proprio nos Foraes e Concelhos, com o seu culto religioso proto-cathédrico, com uma poesia lyrica e narrativa fecunda, que se authentica nos Cancioneiros e Romanceiros, tambem formou uma architectura nova, pondo em accordo na egreja christã o byzantino-gotico com a arte arabe. Escrevia o Conde do Raczynscky com a sua alta competencia: «Os Portuguezes, no meu entender, deixaram provas do seu gosto constante pelas obras de architectura. A perfeição dos seus monumentos, sob o ponto de vista da execução, bem prova que esta arte era verdadeiramente nacional.» E accrescenta: «Uma circumstancia que prova mais fortemente ainda, que a architectura, mesmo nas épocas mais remotas, devia até um certo ponto ser filha do paiz, é a perfeição com que a pedra foi sempre trabalhada e esculpturada aqui, e o gosto, a nitidez com que todos os ornamentos foram e são ainda hoje executados.»[72]

Sustentando a prioridade da civilisação hispanica em frente do dominio arabe, escreve Simonet em relação á architectura dos Arabes em Hespanha: «que a maior parte das construcções que se levaram a cabo sob o seu dominio, tanto em Hespanha, como na Africa e no [Pg 118] Oriente, foram obra de artifices christãos e indigenas, ora Mosarabes, ora Mulladies, ora captivos.»[73] Em uma nota fundamenta o asserto com o facto citado pelo historiador arabe Annowairi, que Abderahman III, ao tratar as pazes com os christãos do norte da peninsula exigiu doze mil operarios para lhe construirem o alcazar de Medina Azzahrá. Este mesmo trabalho dos operarios christãos se nota nas construcções arabes do Egypto, como observou Stanley Lane Pool.[74] O historiador tunesino Ibn Jaldon, considera que a perfeição das artes na Hespanha sarracenica era devida a uma tradição da edade visigotica; Simonet recuando-a até á edade romana, accrescenta: «Semelhante tradição deveram transmittil-a os indigenas; assim os Mosarabes, que conservaram a sua fé christã e com ella os mais elementos da sua civilisação, como os Mulladies, isto é, os hespanhoes renegados, que ao arabisarem-se e fazer-se mussulmanos mantiveram da sua antiga cultura hispano-romana tudo aquillo que era compativel com o islamismo, e ainda uma não pequena parte do espirito christão e nacional.»[75]

Este elemento indigena ou hispanico vem citado nos poemas e leis antigas com o nome de Mosarabe; nos cantos populares ha uma referencia importante aos Mulladies, sob o nome de [Pg 119] Malados:

Eu sou filha de um malado
Da maior malatararia.
Homem que me a mim tocar
Malato se tornaria.

O desprezo que se ligava a este nome não era por nenhuma doença asquerosa, mas pela degradação de terem renegado a religião christã. E esta classe era tanto ou mais importante do que a dos Mosarabes; era maior o seu numero, mais intelligente e activa essa população, possuindo em si mais familias nobres, e pela sua preponderancia tomavam parte entre todas as discordias dos Arabes desde a segunda metade do seculo IX, como o observam Dozy e Simonet.[76] Muitos Mosarabes se tornaram Mulladies, especialmente em Granada, para se eximirem aos fortes tributos, e principalmente a gente dos campos: «la poblacion agricola, que aqui abundaba mucho, merced á la feracidad del suelo, aprovachándo-se de las franquezas y beneficios que la ley mahometana concede á los islamizados habia logrado por este medio conseguir su libertad y librarse del odioso impuesto de la capitacion.»[77] A maior parte da população de Granada no principio do seculo XIV, como o affirmam Zurita e Marianna, eram Mulladies. [Pg 120] É pois este fundo de população hispanica, que se conservou inalteravel entre os dominadores Arabes, e a que se deu o nome de Mosarabes e Mulladies, que persiste nas suas tradições tanto poeticas como artisticas. Arte mosarabe, como chama Garret á Architectura, Epopêas mosarabes, como chamámos aos Romanceiros, são designações verdadeiras emquanto d’este elemento persistente sob a dominação arabe se transita para o reconhecimento da população iberica.

O nome que deve ter esta architectura, filha do genio do povo portuguez, não seremos nós que o imporemos; tomamos a designação que lhe deu um poeta que teve mais do que ninguem a intuição das cousas bellas, e que suppria a falta de sciencia por um tino raro e gosto aprimoradissimo; escrevia Garret: «E aqui a proposito, por que se não hade adoptar na nossa Peninsula esta designação de mosarabe para caracterisar e classificar o genero architectonico especial nosso, em que o severo pensamento christão da architectura da Meia Edade se sente relaxar pelo contacto e exemplo dos habitos sensuaes moirescos e de uma luxuosa elegancia.»[78] O portuguez tem o genio architectonico; o artista Roquemont reconheceu-lhe essa capacidade ingenita. É a influencia exterior da natureza que fez este povo architecto, como o fez tambem navegador. O norte de Portugal abunda em excellente pedra para construcções grandiosas, tem o granito duro para as fórmas eternas; de facto é ao norte de Portugal aonde se encontram [Pg 121] os primeiros e mais venerandos trabalhos de architectura, não tão delicados como os rendilhados lavores da pedra calcárea do sul, mas em maior numero e em todas as edades como productos de uma necessidade vital. Este genio artistico acha-se reflectido na technologia do povo, apresentando uma riqueza de vocabulos ainda na linguagem do mais humilde alvenér.

As Constituições apostolicas mandavam que a Egreja fosse edificada em fórma de uma náo (ad instar navis) voltada para o Oriente. Comprehendeu Portugal o symbolismo no sentimento aventureiro e maritimo com que no seu christianismo transpoz os mares, no meio das invasões dos Turcos na Europa, levando a Fé e o Imperio ao Oriente, sem se preoccupar com o antagonismo das Duas Espadas. Foi Portugal o unico povo que soube fazer a mirifica alliança da Architectura e do sentimento maritimo; e emquanto se inspirava da simplicidade evangelica, propriamente mosarabe, este povo era creador, edificava a Batalha e Belem, que já não pôde acabar depois que o catholicismo romano, pela repressão do Concilio de Trento, mandado observar em Portugal como lei vigente, e pela acção dirigente dos Jesuitas na instrucção e na politica, levou este povo a uma esterilidade de morte, a uma indifferença diante da perda da sua autonomia.

Participando da fecundidade germanica e da sensibilidade do arabe, o mosarabe mostrou a espontaneidade do seu genio creador, além da Religião e da Arte, tambem no Direito. N’este campo a depressão [Pg 122] é exercida pela monarchia na sua absorpção temporal, fazendo em quanto á vontade o que a Egreja fez em relação á consciencia. Para o Mosarabe o direito não era uma imitação dos Codigos romanos, como o Codigo visigotico privativo da classe aristocratica; não era uma fórmula ambiciosa da theocracia imposta nos Concilios nacionaes; era a realidade da vida prática em uma fórma consuetudinaria e não escripta; a lei em vez de ser uma prohibição validada com penas atrozes era uma garantia commum, mantida pela consciencia, sanccionada pela transmissão tradicional.

No momento em que o godo não pertencente á banda guerreira, e que decahira na condição do lite, se viu desassombrado da nobreza que se refugiou nas Asturias, ficou entregue á liberdade franca tolerada pelos invasores e foi reconstituindo as suas primitivas instituições livres. É por isso que o Symbolismo germanico dos codigos barbaros floresceu de novo; o Mallum antigo, ao ár livre, ou á sombra da arvore secular torna-se a assembleia, o Malhom, em que se allega o costume; a individualidade germanica reapparece na prova dos Juratores; as cerimonias juridicas supprem a magestade das fórmulas abstractas romanas; a prova faz-se pelo Ordalio, perante o testemunho da natureza, pelo Duello judiciario; a pena é a banição da terra, o Wargus, sem tecto, lar, nem agua. Todos estes caracteres são privativos do Direito dos mosarabes, que vigorou sem ser escripto no periodo da tolerancia arabe, e que ainda transparecem nos textos escriptos das Cartas de [Pg 123] Foral, quando a restauração senhorial e o poder monarchico procuraram submetter ou alliarem a si, conforme os tempos, esse elemento popular, que constitue as nacionalidades peninsulares. Nunca os Foraes poderão ser comprehendidos senão como a antithese do Codigo visigotico. O momento em que este direito começou a ter fórma escripta coincide com o da formação do Terceiro estado na Europa; em nenhuma legislação se proclama com mais clareza a independencia do trabalho, a liberdade territorial, a remissão do homem por contribuições ou resgate do colono. Quem se lembrou de vêr nos Foraes uma liberalidade régia? Os jurisconsultos que seguiram este erro eram romanistas, ou melhor cesáreos, que ignoravam as instituições da Edade media e a organisação da sociedade portugueza. Mas a vida local que exigia estes Codigos foi extincta diante da lei geral das Ordenações, redigidas pelos jurisconsultos romanistas ao serviço da auctoridade monarchica. Já no seculo XVI e quando a dictadura monarchica tendia para o egoismo dynastico, a pretexto de reformar as palavras obsoletas dos Foraes e do reduzir as moedas antigas ao dinheiro corrente, o rei D. Manoel substituiu esses textos, tirando-lhes as garantias e deixando-lhes a contribuição ou prestação do fôro. Desnaturou-se a propriedade com a fórma romana da Emphyteose. As descobertas favoreceram o centralismo da capital e da côrte; as liberdades locaes decahiram, e o povo já depremido pela intolerancia do catholicismo, deixou desde a reforma manoelina esquecer as suas tradições juridicas, o seu energico [Pg 124] symbolismo, e alheio aos interesses publicos, alheio ficou á occupação castelhana.

O povo portuguez ainda hoje allude nos cantos tradicionaes aos costumes do tempo das Cartas de Foral; o estado de Malado é lembrado no romance da Filha do rei de França; a Sylvaninha, como mulher é desherdada pelo pae, segundo o costume germanico; o adulterio é castigado com a pena de fogo, no Dom Claros de alem-mar; a expulsão do fidalgo do burgo, como nos Foraes do Porto, Coimbra e Santarem, subsiste no romance do Santa Iria. Os romances ou Aravias alludem ao instrumento a que são cantados, a quitára arabe; é tambem pela influencia bondosa da mulher, segundo o costume arabe, que o prisioneiro Virgilios recobra a liberdade; vê-se em tudo isto a alliança do genio germanico e arabe. A bella e sentidissima efflorescencia dos Romances sacros, ou ao divino, em que o Velho e Novo Testamentos se acham dramatisados com a maior audacia, sem attenções pela versão canonica, que outra origem tem na rhapsodia popular da peninsula se não uma origem arabe? É do genio arabe que lhe veiu esta liberdade da creação poetica, que tambem por egual impulso apparece em velhos poemas provençaes: «É em arabe que se encontram os primeiros exemplos d’estas falsificações romanescas das narrativas venerandas da Biblia e do Novo Testamento.»[79]

[Pg 125]

Sobre o elemento vital da Edade media a tradição das raças, que actuavam no desabrochar das instituições sociaes e da poesia, prevaleceu o principio da auctoridade, em quanto á consciencia religiosa pelo canonismo catholico, em quanto á liberdade pelos codigos monarchicos, e em quanto ao ideal pelo prurido da erudição classica. A decadencia do culto ou rito mosarabe coincide com a extinção das garantias foraleiras; no mesmo seculo em que entrava em Portugal a legislação imperial romana, que renascia nas Universidades, triumphava tambem o rito romano. Dom Diniz ressuscita os direitos imperiaes com o ensino das leis romanas na sua nascente Universidade, ao mesmo tempo que admittia o rito da Egreja de Roma na sua Capella. Applicavam-se as Leis de Partidas; e o povo era excluido da participação da liturgia. O papa Eugenio IV impoz-nos o rito romano, que Dom João II e Dom Manoel acceitaram; e com as Ordenações manoelinas acabaram os ultimos restos da vida das instituições locaes. Para completar esta obra da cretinisação de um povo, Dom João III deu entrada em Portugal á Inquisição com o seu queimadeiro, distrahindo a multidão fanatisada com os espectaculos de cannibalismo, e entregou as intelligencias á perversão do ensino jesuitico. Gil Vicente conheceu este primeiro golpe na tristeza das cantigas do povo: «Todas tem som lamentado—carregado de fadigas—longe do tempo passado.» Camões sentiu esse segundo golpe já reflectido no estado geral da nação: «De uma austera, apagada e vil tristeza.»

[Pg 126]

Para fazer revivescer o genio mosarabe ou nacional, era preciso descobrir-lhe a sua tradição em uma poesia tantos seculos obliterada sob o desdem dos eruditos que a julgavam desprezivel, pela Egreja, que a perseguia pelas Constituições dos Bispados e pelos Indices expurgatorios; e ao mesmo tempo a sua liberdade e autonomia, debaixo de um unitarismo politico que a monarchia parodiava copiando o direito imperial romano. O renascimento dos dialectos peninsulares e o estudo das tradições são o prenuncio de uma vindoura revindicação.

§ 3.—A Linguagem oral e escripta

O que distingue a obra litteraria original, da Tradição que é do dominio de todos, é o cunho da individualidade, o caracter. É por isso que um thema commum, como se observa com a fabula, póde ser original, recebendo successivamente a fórma litteraria de Esopo, de Phedro ou de Lafontaine. O mesmo acontece com a lingua nacional, que é fallada por todas as classes, destacando-se a feição individual do escriptor que lhe imprime o seu estylo. A linguagem, que é um phenomeno natural e social independente da intervenção directa do individuo, torna-se pela expressão esthetica a materia prima da elaboração das Litteraturas; e o estylo, que tanto destaca um escriptor de outro escriptor, conserva, como diz Fontenelle, son tour d’ésprit de cada seculo, apezar da supremacia do genio individual.

[Pg 127]

Ha na creação da linguagem dois trabalhos, o da espontaneidade oral, em que apparecem os elementos radicaes que se transformam por meio de themas e flexões até constituirem a palavra, e uma fixação pela escripta, que vae systematisando e regularisando o apparelho grammatologico. Se a lingua não é escripta, tende a uma exuberancia synonymica e dispersão dialectal; se o seu uso escripto começa prematuramente, cáe em uma immobilidade de fórmas definitivas, que não avançam para se não quebrar a regularidade constituida. É sobretudo o facto historico da nacionalidade e da sua cultura, que actúam na fórma escripta da linguagem, imprimindo-lhe pela concentração das energias associativas em uma capital um typo linguistico, que se impõe e prevalece sobre as differenciações dialectaes. A linguagem oral continúa no seu originario poder de creação, mas apoia-se principalmente na auctoridade conservadora do passado, e mantém fórmas do Archaismo no vocabulario, no vocalismo e construcções populares; a linguagem escripta, exprimindo necessidades do espirito amplia os seus meios de expressão pelo Neologismo, abandonando fórmas desconnexas do vulgo para sustentar uma determinada regularidade. São variadissimas as relações entre estas duas funcções oral e escripta da linguagem; se se separam completamente uma da outra, a linguagem fallada torna-se um patois variavel de burgo para burgo, e a fórma escripta obedece a um aperfeiçoamento racional e artificioso, ficando privativa da classe culta, como aconteceu com o sanskrito e com o latim classico; se porém [Pg 128] as duas fórmas de expressão se aproximam e se fecundam mutuamente, os escriptores encontrarão na linguagem do povo bellos elementos para enriquecerem o estylo com modismos pittorescos (como acontece com a obra esthetica em relação ás tradições anonymas), e o povo fallará com a perfeição da cultura social que reflecte, como se viu com o predominio do dialecto attico na Grecia. Em Portugal a separação da linguagem oral da escripta, deu-se desde que por effeito da corrente da civilisação preponderou a cultura latino-ecclesiastica, e chegou a ponto tal essa differenciação, que os velhos documentos juridicos tiveram de ser traduzidos para leitura nova em tempo de Dom João II; porém, desde os fins do seculo XVI até hoje tem-se operado a identificação entre estes dois modos de linguagem, e o poema de Camões é lido e entendido geralmente como se fosse escripto na actualidade.

Da observação d’este facto de transformação progressiva que exerce a escripta na linguagem, resultam explicações essenciaes de grandes phenomenos linguisticos accusados na historia. É assim que sendo a Linguagem congenita com a Raça, apparece muitas vezes o caracter da linguagem em contradicção com os dados anthropologicos, como notou Paul Broca. Basta a linguagem ser a consequencia de um estado elevado de civilisação, para ser facilmente admittida por um povo mais atrazado em relação áquelle que o absorveu ou subjugou. Vê-se que a linguagem é um importantissimo documento de paleontologia ethnica, mas um inseguro recurso para as classificações [Pg 129] anthropologicas. Pelo desenvolvimento escripto do Latim na sua vasta legislação civil e administrativa, e continuado pelo catholicismo nas constituições apostolicas e doutrinação moral, tinha forçosamente esta lingua de dominar sobre as vastas populações prevalecendo sobre os dialectos celticos da Italia, das Gallias e da Hespanha, vulgarisando por meio da sua legislação uma linguagem cultivada artificialmente por escriptores barbaros, gaulezes, hispanicos e italiotas. Foi este facto que deu origem ao erro de se imaginar que as Linguas romanicas tinham sido formadas pela corrupção do Latim em uma vulgaria, como normas rusticas ou sermo pedestris. O uso do Latim entre os povos do occidente foi um artificio, uma educação, a ponto das provincias da Africa, Hespanha, Gallias e Italia cisalpina darem magnificos escriptores a Roma. Vêmos em Osca fundar Sertorio um centro de estudos classicos; continuam em Roma a litteratura latina os cordovezes Sextilio Henna, Lucano, Porcio Latro, os dois Senecas, Anneo Mella; os gaditanos Cornelio Balbo e Columella, Marcial, natural de Calatayud e o rhetorico Quintiliano, natural de Calahorra; á Hespanha pertencem os escriptores Claudio Apollinario, Felix, Marco Licinio, Pomponio Mela, Lucio de Tuy, Allio Januario, Cordio Sinforo, Silio Italico, Floro e Julio Higino, os imperadores Trajano e Adriano. Tambem a propagação do christianismo no segundo seculo, pelo emprego do latim na liturgia, fez que a classe sacerdotal concentrasse uma certa cultura e se imitassem as fórmas do Latim urbano; e ainda no ultimo seculo do Imperio empregavam [Pg 130] o latim classico na litteratura ecclesiastica os bispos, Osio, de Cordova, Paciano e Olympio, de Barcelona, Gregorio Betico, de Granada, Potamio, de Lisboa, o papa S. Damaso, Dextro, Juvenco, Idacio, Paulo Osorio, Prudencio, Elpidio. É escusado ampliar este ponto de vista com escriptores latinos da França; egual phenomeno se dera com o grego transformado no dialecto commum, que os padres da Egreja, os Chrysostomos e os Basilios empregavam com o esmero de reproduzirem ou restaurarem o puro atticismo. Por certo que a lingua latina não penetrou nas populações sertanejas, os Pagi e Vici, as aldêas e os concelhos, para ahi se corromper. A par da Lingua latina existia a linguagem oral com riquezas proprias e differenças da fórma escripta. É essa lingua oral o fundo primitivo, que no Occidente constituiu o ramo complexo denominado no seu syncretismo, por Schleicher, Lingua Greco-Itala-Celtica, contrapondo-se no norte da Europa o outro ramo Slavo-Tudesco. Não admira, que ao destacar-se o Latim dos dialectos italicos pela fórma escripta e pela preponderancia historica, muitos dos seus elementos superiores fossem facilmente assimilados pelas populações occidentaes que recebiam o impulso da civilisação romana; o mesmo se póde inferir sobre a apropriação de elementos das linguas germanicas na França, Italia e Hespanha. Desde que se descobriu a unidade das linguas áricas ou indo-europêas, melhor se comprehende esta linguagem, de que se destacou o Latim classico, que coexistiu com as linguas falladas em todo [Pg 131] o Occidente.

Esta coexistencia e duplicidade encontra-se expressa na designação de Latino e Ladino, contrapondo-se a Romance. São abundantes os trechos francezes, castelhanos o portuguezes, em que o termo Latino significa o espirito culto, o que falla bem, o arguto e ardiloso; romance significava a linguagem popular, a que se falla de visinho a visinho, como diz Berceo, a tradição oral, e já em épocas adiantadas da historia, o vernaculo ou nacional. Esta lingua syncretica estava diffundida em uma infinidade de dialectos, que foram desapparecendo á medida que a lingua escripta, pela absorpção nacional, se foi impondo ao uso das povoações ruraes. Raynouard cahira na illusão da unidade plena d’este fundo linguistico, chamando-lhe Lingua romance, e fazendo derivar da sua dissolução durante a Edade media as novas linguas meridionaes.

A coexistencia da linguagem oral com o Latim classico ou escripto acha-se notada no vocabulario pelos proprios escriptores latinos, taes como Festus, Vegecio, Palladio, Ennio, Terencio, Pacuvio, Lucrecio, Varrão, Aulo Gellio, Plauto, Columella, Cicero, Suetonio, Apuleio, Theodosio, Justiniano, Plinio, Vitruvio, Celso, Lactancio e todos os Padres da Egreja e escriptores latinos das provincias conquistadas. Ao passo que nas Gallias ás fórmas litterarias urbs, iter, os, hebdoma, osculare, se sobrepunham as fórmas vulgares ville, voyage, bouche, semaine, baiser, as quaes egualmente prevaleceram na Hispania, [Pg 132] vêmos tambem na peninsula prevalecerem sobre os vocabulos latinos esses outros vulgares Burgo, Batalha, Camisa, Carregar, Cabana, Cafua e muitissimos outros apontados por Isidoro de Sevilha, nas suas Etymologias. Poder-se-ha contrapôr um vasto vocabulario da linguagem oral ao vocabulario classico latino, mas não é esse phenomeno ainda o que explica a formação das Linguas romanicas; o processo organico ou formativo operou-se intimamente, avançando essa lingua oral para a expressão analytica, que é verdadeiramente um progresso; e quando Plauto ou Cicero, e muitos escriptores classicos esclareceram os casos com preposições, ou as fórmas verbaes com auxiliares, não se deve entender que transigiam com a futura decadencia do latim, mas que sentiam a necessidade do processo analytico. Desde que o latim escripto deixou de exercer uma missão social pela queda do Imperio, e pelas invasões germanicas no Occidente, essas linguagens falladas na Italia, nas Gallias e na Hespanha, sem a disciplina imposta pelos cultos, procederam na transformação em que iam, desenvolvendo as fórmas analyticas e periphrasticas. Olhou-se mesmo com certo desdem para o Latim classico: no quarto Concilio de Carthago, no IV seculo, prohibiu-se a leitura dos livros profanos, que eram latinos; o papa Gregorio Magno, desprezava intencionalmente o emprego dos casos, dizia elle para não submetter as palavras divinas ás regras de Donato. A importancia das linguagens vulgares era tal, que em 230 Alexandre Severo promulgou uma lei permittindo fazer-se ou redigir-se fideicommissos n’ellas. Não era pois [Pg 133] uma decadencia, que trazia essas linguas á fórma escripta. O proprio clero catholico, como se vê pela auctoridade de Licinio, bispo de Carthagena, e de Gregorio de Tours, tinha cahido em um certo analphabetismo, relaxando-se assim a preponderancia exclusiva do latim escripto. As linguas falladas, que tinham existencia propria, avançaram quando os fócos nacionaes as impulsionaram, e sem se moldarem no latim chegaram á accentuação e á rima, a uma fórma de poesia nova, a que o proprio Latim foi submettido na hymnologia da Egreja. Vê-se quanto é absurdo explicar a formação das linguas romanicas por meio de degenerações phoneticas operadas no vocabulario do latim classico. As modificações do vocalismo e consonantismo romanico são as mesmas que dominam todo o organismo das linguas indo-europêas, de que ellas são um producto.

Combatendo a theoria da escóla philologica que deriva as linguas e os dialectos romanicos immediatamente do Latim, já em quanto á estructura e mesmo ao vocabulario por processos de modificações phoneticas, Gubernatis oppõe-lhe os seguintes factos historicos: «porque é que os Romanos tendo penetrado na Grecia mais do que na Hespanha, não fizeram fallar latim aos gregos, como querem que o fizeram aos hespanhoes?—Porque é que uma colonia militar romana que occupou poucos seculos a Engadina, devia introduzir entre os Alpes suissos o dialecto latino, ao passo que numerosas colonias romanas fixadas na Illyria não conseguiram submetter os Slavos ao Romanismo?—Por [Pg 134] que é que os Italianos da Italia superior fallando o Celtico, e os povos da França fallando Celtico, e os Bretãos fallando Celtico, o Celtico desapparece da Italia e quasi inteiramente da França, e sobrevive na Bretanha? e comtudo, os Romanos não occuparam certos remotos valles alpinos, certas provincias remotas da França, tanto como tinham occupado a Bretanha.»[80] Gubernatis reconhece a grande importancia do latim escripto e das leis promulgadas em latim pelo Imperio sobre os dialectos dos povos occidentaes, mas estabelece como principio historico que essas linguas vulgares não derivaram do latim, coexistiram com elle como irmãs: «contemporaneamente ao latim fallado em Hespanha e França, na Italia pela pluralidade das gentes pertencentes á mesma raça que os Latinos; Roma tendo predominado, a lingua romana prevaleceu e exerceu aquella mesma influencia que agora vêmos exercer-se da lingua italiana sobre os dialectos italianos, dos quaes o fundo é sempre italico...» E procurando o typo d’esta linguagem dos povos occidentaes, exemplifica: «De facto, quem de Genova se metter em viagem pelos Pyreneos, as variedades da linguagem modificam-se com um modo tão progressivo e espontaneo, que os dialectos da França meridional ficam como laço natural entre os da Italia e da Iberia, onde se os Bascos dominaram foram com o andar do tempo reduzidos como os Celtas...» E conclue: «Se não existisse um fundo italico nas [Pg 135] populações e na sua linguagem, Roma teria triumphado com o seu latim no valle do Pó, provavelmente da mesma maneira negativa com que triumphou na Grecia e na Bretanha.»[81]

Como se vê, esta doutrina vae de encontro á escóla de Diez, que deriva as linguas romanicas do latim, principalmente por processos de degenerescencia phonetica, embora sustente ao mesmo tempo que ellas não provieram de um latim corrompido, mas sim de um latim vulgar coexistente com o latim escripto: «Ao lado do latim litterario, existia effectivamente uma lingua latina correntemente fallada, que os Legionarios e colonos levaram para a Iberia, para as Gallias, para a Dacia. Foi esta lingua popular que se transformou lentamente, tornando-se aqui o Hespanhol, ali o Francez, além o Roumenio, do mesmo modo que em Italia se tornou o Italiano.»[82]

É verdadeiramente maravilhosa esta explicação do metamorphismo do Latim vulgar, identificando-se nos seus resultados com os d’essa outra theoria tão combatida de Raynouard, da Lingoa Romance, cuja unidade quebrada produzira as linguas modernas meridionaes.[83] Nas linguas romanicas operou-se um trabalho de transformação de progresso, [Pg 136] e não de decadencia; se o Latim como lingua flexional é synthetico na sua expressão, estas tornam-se essencialmente analyticas, pelo desprezo das flexões casuaes, e pela simplificação da Conjugação pelos verbos auxiliares. Alguma cousa de fecundo se passou n’esse periodo de elaboração analytica, tal como a substituição da quantidade pelo accento, que conduziu as linguas modernas á creação da mais bella poesia, e á construcção syntactica directa, actuando na nitidez do pensamento. A quantidade, ou o prolongamento ou abreviação do som vocalico de uma syllaba, liga-se á origem primitiva da raiz, breve na sua formação, longa, na sua derivação; o accento é o ponto de apoio em uma syllaba dominante, quando modificações profundas se operam na palavra por meio de flexões e de suffixos, para exprimirem varios pensamentos, mas sempre conservando a ideia primaria. Como observam Weil e Benloew, nas linguas mais antigas predomina a quantidade, que domina e determina o accento, ao passo que nas que mais avançam para a civilisação o accento prevalece sobre a quantidade.[84]

O predominio da accentuação representa historicamente o prevalecimento do espirito logico actuando sobre todas as fórmas da linguagem, como conclue Benloew, dominando a sua ordem ou [Pg 137] disposição e a sua versificação.

O velho Latim anterior (treze seculos antes da nossa éra) ao Latim classico, só differia d’este em ter diphtongos, que o litterario reduziu a vogaes simples;[85] vê-se pois que o chamado latim vulgar não estava em decadencia, e se se differenciou do latim tornando-se analytico é por que avançava para uma expressão logica. Mesmo nos escriptores classicos apparecem preposições junto dos casos, e vozes de auxiliares simplificando fórmas verbaes, no periodo do esplendor de Roma. A lingua latina, empregada na Jurisprudencia e nos Editos administrativos, tornou-se quasi hieratica ou sacramental: Uti lingua nuncupassit ita jus esto; e a sua versificação retrogradou para a quantidade. Os outros povos occidentaes eram vivos e progrediam, sem precisarem do estimulo da conquista romana; estavam no periodo da accentuação, e foi esse o principio fundamental das Linguas chamadas romanicas, por meio do qual adaptaram ao seu vocabulario palavras latinas, celticas, germanicas e arabes com um rigor inalteravel como uma lei natural: a persistencia do accento tonico.

A primeira condição para o estudo scientifico das Linguas romanicas foi a descoberta da unidade das Linguas indo-europêas, de cuja filiação se veiu a descobrir uma grammatica geral a esse grupo de linguas; successivamente a analyse comparativa dos seus sons e fórmas, o [Pg 138] consequentemente o mesmo methodo proseguido no exame dos seus varios dialectos e derivações.

A unidade linguistica indo-europêa foi entrevista em 1786 por William Jones, e em 1808, Schlegel formulava com toda a nitidez essa intuição: «O antigo indiano, sanskrito, isto é, culto ou perfeito, designado Gronthon, quer dizer, escripto ou dos livros, tem grandissima affinidade com a lingua grega, com a latina, com a germanica e persa. A semelhança consiste não tanto no grande numero de vozes communs a esta lingua, mas principalmente no que pertence á intima estructura e á grammatica. Não se trata de uma concordancia casual, que possa explicar-se por mestiçagem de povos: é concordancia organica, que denuncia uma origem commum.» A comprovação d’este ponto de vista produziu uma revolução scientifica, na creação da Glottologia, da Mythographia e no criterio da Historia, por um conhecimento mais profundo das civilisações áricas.

Começou a ser estudada esta familia linguistica no seu conjuncto, e pela applicação dos novos methodos por Jacob Grimm á Grammatica allemã, começada em 1819, descobriu este erudito genial a lei das modificações e equivalencia dos sons nas linguas germanicas, Umlaut e Ablaut, que constituem o desenvolvimento historico da lingua allemã. Os sons modificam-se em uma escala constante, de fortes, brandos e aspirados, de modo que na situação em que se fixaram pela fórma escripta as palavras, se póde deduzir qual seria a sua fórma anterior. Esta grande lei, que torna a Phonetica uma [Pg 139] sciencia natural, applicou-se a um exame mais vasto e verificou-se que dirigia todas as linguas indo-europêas. Existe hoje reduzida a quadro essa escala de sons no sanskrito, zend, grego, latim, erse, esclavonio, lithuanio, gotico e alto-medio allemão. É maravilhoso o resultado da sua applicação ao vocabulario indo-europeu, e as deducções das mutuas similaridades para a chronologia da sua formação, e para a recomposição da lingua árica,[86] de que ellas por circumstancias sociaes e historicas se differenciaram.

Esta lei da permutação dos sons foi tambem applicada ás linguas romanicas tomando por ponto de partida o Latim, e seguindo as suas modificações no Italiano, Valachio, Hespanhol, Portuguez, Provençal e Francez; é a continuação do phenomeno que se patentêa nas linguas flexionaes indo-europêas. Não são pois na sua formação moderna uma decomposição, mas um processo reconstructivo, em que pela modificação [Pg 140] de certos sons deixam de ser notadas fórmas que vão desapparecendo.

Foi em 1816 que Bopp, na sua Theoria da Conjugação, estabeleceu o processo da analyse da palavra, tomando o Verbo como aquella que na sua fórma fundamental agrupava a maior somma de differenças desinenciaes, taes como as flexões pessoaes, temporaes, numeraes e modaes. Foi por este processo que chegou a determinar as raizes attributivas, a isolar as raizes pronominaes, a achar a formação dos themas, em volta dos quaes pelos suffixos, prefixos, affixos e infixos se organisa esse corpo complexo e adiantadissimo da palavra. A exposição completa d’este methodo constitue na sua applicação o assombroso trabalho da Grammatica geral das Linguas indo-europêas.

Levada a sciencia da Glottologia a esta perfeição, foi depois o methodo applicado por Frederico Diez á familia das Linguas romanicas, organisando tambem a sua grammatica comparativa. Cahiram por terra as theorias imaginosas de Maffei, Ciampi, Aldrete, Court de Gebelin, La Tour d’Auvergue, Raynouard e Ribeiro dos Santos, formadas a proposito de cada uma das linguas romanicas isoladamente. Pelo estudo dos documentos litterarios provençaes, é que em 1827, Frederico Diez, no seu livro Da Poesia dos Trovadores, lançou as bases da philologia romanica, que depois systematisou na Grammatica das Linguas romanicas, publicada de 1836 a 1844. Tomando o Latim como ponto de partida, por ser escripto ao tempo em que as linguas [Pg 141] romanicas ainda eram oraes, determina-lhes as modificações dos seus sons e particularidades prosodicas, as suas similhanças morphologicas, e a identidade syntaxica.

No exame dos sons, chega-se á lei fundamental das linguas romanicas: A persistencia do accento tonico ou vogal accentuada. Mil accidentes podem obliterar o vocabulo, como acontece sendo fallado por boccas estrangeiras, e n’este caso estão os vocabularios romanicos que soffreram a influencia dos povos germanicos, arabes e ainda de eruditos greco-romanos; porém a vogal accentuada conserva-se inalteravel, como o eixo em que se apoia a palavra. É á custa d’esta segurança, que a palavra se abrevia no uso, perdendo uma grande parte do seu corpo. Exemplifiquemos: Episcopus, Bispo; Ecclipse, Cris; Dominus, Dono, Dom; Presbyterus, Preste (ainda em Arcipreste) Prètre; Ungula, Unha; Quadragesima, Carême; Genuculum, Joelho; Rotundus, Rond.

Forçosamente, uma lei phonetica assim tão exclusiva deveria actuar no desprezo pelas inflexões da quantidade, e pelo abandono das flexões casuaes, e da grande variedade das desinencias verbaes. Foi a consequencia d’essa outra lei phonetica das linguas romanicas: A suppressão das vogaes breves não accentuadas. N’este processo a palavra tende a contrahir-se, como em Trifolium (trèfle, trevo), mas tambem se duplica, conservando-se inconscientemente a fórma do caso obliquo, como em Pulvis (pó) e Pulverem (pólvora), Index (endes e indice).

A terceira lei phonetica fundamental é a da: Queda de certas [Pg 142] consoantes mediaes, a qual tambem actuou na fórma contrahida das palavras nas linguas romanicas, sendo essa usura referente á sua chronologia. Sirva de exemplo o adverbio Semeptissimus; no provençal encontra-se na fórma semetessme, na lingua d’oc metesme; no italiano medesimo; em lingua d’oc, medesme, meseyme, meisme; no portuguez antigo, medes, meesmo, e em francez même. Com certeza estas contracções mais ou menos intensas representam um trabalho de usura, ligado a causas historicas e sociaes.

Todos os outros sons consonantaes, quer sejam iniciaes ou mediaes, soffrem modificações especiaes em cada uma das linguas romanicas, e é isto o que as differencia umas das outras, por isso que a glotte de cada um d’esses povos não emitte os mesmos sons. Em quanto ao systema vocalico, tambem por elle se fixam as differenças na familia romanica:

«Na vocalisação do hespanhol (sc. castelhano) acha-se muitas vezes o A puro, em quanto que o U, que recebeu do latim, é em geral attenuado e mudado em O; d’este modo a lingua recebeu o caracter de uma lingua artificial, e as durezas são substituidas por sons mais euphonicos. Depois do A, ou antes concorrentemente com elle, o O é a vogal que mais caracterisa o hespanhol.—A lingua franceza, pelo emprego exagerado da vogal E, renunciou á custa da sua euphonia á vocalisação latina; é sobretudo uma lingua artificial, admiravelmente propria para a conversação, mas em geral pouco propria para a poesia, por que a vogal [Pg 143] intermediaria E que intervem a cada instante prejudica a vocalisação pura, e além d’isso nunca produz uma elevação e um abaixamento completos. Quanto ao Italiano, de todas as linguas romanicas é a que guardou mais harmonia, por que sustenta a elevação e o abaixamento produzido por A e por U transformado em O pela intervenção do I agudo.»[87]

Na vocalisação da lingua gallega Helfferich e de Clermont, acham o emprego do U, exemplificando com um documento de 1255; em que vem as palavras cunuzuda, tudos, escritu, julgadigu, razues, consellu, buus, etc.[88] Tambem na sua these da Origem da Lingua portugueza, Soromenho nota o mesmo caracter: «No norte de Portugal, na provincia de Entre Douro e Minho, predomina o U na terminação dos nomes. N’um só documento de 936 encontramos reirigu, agru, conclusu, ipsu, dublatu, tolinu, sasarigu, ermegildu, fagildu, sesuldo[89] D’Ovidio observa tambem no portuguez «que o e e o finaes não accentuados pronunciam-se como i e u, como no nosso dialecto calabrez, siculo, leccez, sardo meridional e septentrional, e ainda, quanto ao u, sardo central, corso, genovez, com outros dialectos sardo-italicos.»[90]

Aqui temos já uma caracteristica que assimila as duas linguas congenitas o Gallego e o Portuguez, que tanto se differenciaram por [Pg 144] causas historicas. A lingua portugueza não é um dialecto do castelhano, como se julgou inscientificamente, é um organismo autonomo como a sua nacionalidade; faltam-lhe os sons castelhanos c palatal, a spirante guttural tenue j e g, o que influe na maior suavidade da pronunciação portugueza, e possue sons que faltam ao castelhano, como o s doce, o sh e o sg (ex.: rosa, campos, jaspe) e distingue com uma grande delicadeza, que se reflecte nas vozes verbaes, as vogaes fechadas a, e, o das abertas (andamos, andámos), e possue as vogaes nasaes.

Em toda a Europa meridional, as linguas romanicas receberam a fórma escripta, e a disciplina grammatical pela circumstancia da formação das novas nacionalidades; mas a par do Francez (dialecto da ilha de Paris), do Italiano (o toscano), do Hespanhol (o castelhano), do Portuguez (destacando-se do gallego), subsistiram numerosos dialectos, muitos dos quaes conservam preciosos vestigios archaicos de fórmas que revelam o processo formativo. Na Hespanha esses dialectos representam pela sua vitalidade invencivel o vigor dos organismos nacionaes, que ainda luctam através de todas as imposições do centralismo politico.

Mas se a vida historica ou nacional actuou pela fórma escripta no desenvolvimento das linguas romanicas, nem por isso a parte oral deixou de cooperar no seu vocabulario. O estudo do lexico, não se faz simplesmente para determinar os elementos contributivos dos varios povos celticos, latinos, germanicos e arabes, que [Pg 145] occuparam o occidente, onde se formaram as linguas romanicas; elle apresenta-nos esse phenomeno do Polymorphismo, em que as leis phoneticas determinam o desdobramento ou duplicidade de palavras, que vão exprimir uma riqueza ideologica. Assim, quando de Plano pelo processo phonetico popular se fez chão e lhano, adquirimos novos vocabulos para designar outras relações materiaes e moraes. São uma das grandes riquezas das linguas romanicas essas Derivações divergentes, que se produzem por varias causas: já como resto da declinação conservada no caso obliquo, como Serpe e Serpente, Chantre e Cantor, Animal, Almalho e Alimaria, Pyrame e Pyramide, Calix e Calice; já pela fórma dupla do participio, como Matado, Morto, Confessado, Confesso, Teudo, Tido; já pela apropriação phonetica vulgar, como Cadencia e Chança, Calido e Caldo, Clave e Chave, Palacio e Paço, Glandula e Landra, Decano e Deão. Muitas vezes regressa-se a uma fórma litteraria, pela necessidade de um neologismo scientifico, como: Amendoa e Amygdala; Coitar e Cuidar, Cogitar; Obra e Opera; Conselho e Concilio; outras vezes pela differença de significação ou semeiologia, como: Tradição e Traição, Bodega e Botica (de Apotheca), Rêlha e Regra, Macula e Malha, Medula e Meolo; algumas vezes por abreviação popular, como: Cem e Cento, São e Santo, Gram e Grande, Tão e Tanto, Galam e Galante, Rol, Rolo e Rótulo.

N’este processo de abreviação popular toca-se um phenomeno de origem etymologica, quando a palavra é a contracção de uma phrase, como em [Pg 146] Bacharel, que é uma abreviação de Bas chevallier (d’onde no velho francez Bacheleur); como em Freguez, contracção de Filius ecclesiae (d’onde a fórma Feligres). A palavra Sengo e Senga, significando intelligente, astuto, experimentado, a que na linguagem popular corresponde, lá dizia a velha; é, como observa Diez, a fórma Senectus do latim vulgar, modificada no castelhano em Senecho (senechas, no Canc. de Baena, e no anexim castelhano: Al buen callar llaman Sancho) e Sengo nos autos populares portuguezes do seculo XVI.

Ao mesmo processo de divergencia obedecem os nomes proprios, como vêmos em Benedicto, Benito, Beneyto, Bieito, Benoit, Bento e Vieito; em Didacus, Thiago, Iago, Diogo; em Dominicus, Domingos, Mingo e Mengo.

Frederico Diez considera os varios elementos ethnicos que cooperaram para a creação das linguas romanicas; fallando do germanico, diz que este systema do linguas: «não soffreu nenhuma perturbação essencial do seu organismo; o grupo romanico escapou quasi completamente á influencia da grammatica allemã. Não se póde negar, que haja na formação das suas palavras algumas derivações e composições germanicas, achando-se tambem vestigios germanicos na syntaxe; porém estas particularidades perdem-se na totalidade da lingua.»[91] Se a lingua popular resistiu, manteve-se a par, e por ultimo se impoz [Pg 147] ao Latim classico, como não havia de resistir aos incoherentes dialectos germanicos? O proprio Diez reconhece que a sua influencia era insufficiente para differenciarem entre si as diversas linguas romanicas.

O elemento arabe nas linguas romanicas manifesta-se tambem no vocabulario, mas sem influencia directa no regimen phonetico ou morphologico; tem sido esse elemento estudado em quanto á Italia por Narducci, em relação á França por Marcel Devic, em relação a Portugal por Fr. João de Sousa, por Dozy e Engelmann, e em relação á Hespanha por Yanguas e Simonet. Os Arabes representavam uma aristocracia militar incommunicavel; as communicações da população hispanica fizeram-se entre Berberes e Mouros, e a Aravia era um dialecto indistincto tanto de romanico como de arabe com que se entendiam com elles os Mosarabes e os Mulladies, isto é, os que se conservaram christãos e os que apostataram. Quando se pôde examinar nas linguas peninsulares as palavras arabes, escriptas nos documentos mais antigos, reconheceu-se que eram palavras romanicas modificadas pelos arabes e recebidas d’elles por segunda via. E o que se verifica na Architectura arabe, o caracter dos operarios mosarabes, tambem se observa na linguagem, que exprimia a riqueza de uma civilisação de que os arabes se apropriaram. Tal tem sido a revindicação laboriosamente fundamentada por Simonet. A civilisação occidental não teve por unico fóco Roma; e se ella se lhe impoz pelas Gallias e pela Hispania, [Pg 148] tambem se impoz aos Arabes como se vae reconhecendo. Um certo sentido pejorativo se ligava a grande numero de palavras arabes, taes como o nome de Caschich, dado ao sacerdote christão, e que é uma interjeição popular Cachicha! com que se exprime a repugnancia pela porcaria; Azambrado, Madraço, Léria, exprimem tambem ideias de chasco e descompostura em contraposição ao seu sentido natural; a injuria Safardana era o titulo de gloria dos Judeus de Hespanha que a si se chamam Sephardin, para se distinguirem dos outros elementos da raça. Devem apparecer nomes arabes designativos de funcções sociaes, cargos administrativos, da mesma fórma que das palavras germanicas apparecem os termos que designam instituições feudaes e material de guerra.

Na longa lucta da reconquista, as povoações sedentarias ficavam indifferentes á sorte das batalhas; os Mulladies voltavam ao seu culto primitivo, e a Aravia, que os Mosarabes fallavam eram os dialectos vulgares ou Ladinha christenga, que em breve se iam desenvolver como linguas nacionaes. A designação de Aravia passava a significar o cantar-romance, que veiu a servir de primeiro elemento tradicional da historia.

Se causas sociaes profundas, como a dissolução do Imperio romano e invasões germanicas, actuaram no desenvolvimento dos dialectos ou Linguas romanicas, eguaes causas, como o fim das invasões dos Saxões do norte da Europa e o combate successivo contra o dominio dos Arabes no sul, determinaram a estabilidade necessaria para o estabelecimento [Pg 149] de novas nacionalidades, em que as Linguas romanicas attingiram a sua fórma e perfeição litteraria.

Essas linguas, assimilando por uma fórma viva elementos latinos, germanicos, gregos e arabes, tornam-se orgãos importantes para a continuação da Civilisação occidental, de que cada nação foi um activo factor, cabendo durante toda a Edade media essa hegemonia á França.

Na peninsula hispanica a constituição das novas nacionalidades depois da reconquista christã está intimamente ligada aos seus dialectos; aquelles territorios que alcançaram autonomia ou que a souberam sustentar desenvolveram com a cultura litteraria os seus dialectos locaes. Muitas d’essas nacionalidades, como a Galliza, a Catalunha e Aragão foram incorporadas na unidade politica de Castella, mas o seu espirito autonomista ou regionalista sobreviveu e luctou sempre com a vitalidade dos seus dialectos gallego, catalão, aragonez, contra o uso official do castelhano. No Poema de Alexandre e no Poema do Cid esboçam-se as fórmas linguisticas que se fixam no castelhano; nos poemas de Gonzalo de Berceo, em que se reflecte a influencia dos trovadores, destaca-se já a feição peculiar do catalão; o rei Affonso o Sabio escrevendo a prosa em castelhano, prefere de um modo exclusivo o gallego para a poesia.

A cultura litteraria da região gallega que escapára ás invasões arabes, fez com que essa lingua fosse muito cedo escripta, de modo que ella conserva ainda hoje fórmas archaicas já modificadas no portuguez, ou que em Portugal ficaram plebeismos. A lingua gallega e [Pg 150] a portugueza constituem um grupo homogeneo, que tenderia a unificar-se em um centro nacional, se o territorio da Galliza até ao Mondego ou até ao Tejo se não desmembrasse pela creação de dois Condados; mas conservariam sempre differenças dialectaes, como se vê no gallego septemtrional e no meridional. A lingua portugueza, como observa Diez, tem caracteres originaes proprios. Conforme porém os centros de cultura preponderassem, assim seria exercida a influencia, do gallego sobre o portuguez, como primeiramente se deu, ou do portuguez sobre o gallego, como se vê impresso na lingua.

A primitiva unidade territorial já fôra reconhecida pelos geographos antigos; Strabão chamava Gallaicos aos Luzitanos. Quando o Marquez de Santillana considerava os gallegos e portuguezes os primeiros que exerceram na Hespanha a arte de trovar, mal sabia que essa região pertencia áquelle elemento ethnico que creou o lyrismo trobadoresco. Desde 863 existia a Galliza como um Condado independente, luctando fortemente pela sua autonomia contra a annexação leoneza em 885, que desfez ao fim de vinte e cinco annos, e vindo por ultimo a cahir na unificação dos outros estados peninsulares, abafada a revolta separatista de 981. Bastava esta energia social para que a Lingua se desenvolvesse; deu-se o facto; tinha uma côrte, e ahi se educára Affonso o Sabio, que nas Cantigas de Nossa Senhora empregou a lingua que melhor lhe exprimia os seus sentimentos. Forçosamente a lingua gallega devia actuar nas fórmas do portuguez, que [Pg 151] ainda não tinha uso litterario. E esse cunho gallego, como o pronome che por te, douche por dou-te, chegou a reflectir-se nos escriptores portuguezes dramaticos do seculo XVI.

Quando, porém, Affonso VI desmembrou da Galliza o Condado de Portugal, que em breve tempo se tornou um estado livre, a lingua portugueza começou a ter um desenvolvimento proprio, devido a esta circumstancia, por que incorporada a Galliza desde 1073 na unidade castelhana, Portugal foi estendendo o seu dominio para o sul, abrangendo as populações mosarabes da Beira, e recebendo uma certa cultura dos bispos francezes chamados para as dioceses recem-estabelecidas. Na marcha successiva da organisação da nacionalidade portugueza, a sua côrte torna-se um centro de convergencia de trovadores occitanicos, e por seu turno a lingua portugueza actúa sobre o gallego. Em grande parte o vocabulario portuguez é egual ao gallego mascarado com ortographia castelhana; mas a situação politica da Galliza, entre Portugal autonomo e Castella, de que é uma provincia, reflecte-se fundamentalmente na sua lingua. Exemplificando: soubo, analogo ao portuguez soube, muda o e em o pela influencia do supo castelhano; o mesmo nas palavras derivadas com o suffixo em ouro no portuguez, que o gallego conserva em oiro (sumidoiro, dobadoira), modificado pela influencia do castelhano, sumidero, devanadera. D’Ovidio synthetisa esta dupla influencia sobre a lingua gallega nos nomes dos dias da semana, parte tirados do castelhano como lunes [Pg 152] (lues), martes, e parte do portuguez, como corta feira (quarta-feira). A lingua gallega conserva, além das suas fórmas originaes, outras archaicas do portuguez e mesmo populares nas nossas provincias; estes phenomenos ajudam a penetrar o processo de formação da lingua portugueza supprindo a falta de documentos. Desde Fernando o Magno o territorio portucalense formava parte da Galliza, cujas fronteiras em 1065 se estendiam até ao Mondego, e depois de 1093 até ao Tejo, apoz a tomada de Santarem, Lisboa e Cintra. A vinda dos cavalleiros frankos á peninsula, que ajudaram o monarcha leonez na batalha de Zalaka em 1086, influiu no acto de desmembração de Portugal, por que as cidades livres ou Behetrias esparsas n’este territorio e a sua situação na proximidade do mar, provocavam á creação d’esse organismo nacional. Á medida que a vida de côrte actuava no desenvolvimento da lingua portugueza, a paixão pela poesia trobadoresca forçava a imitar essas novas fórmas lyricas, apropriando-se de elementos provençaes, e creando um dialecto em parte artificial, o galleziano, em que versejavam todos os jograes que vinham a Portugal de Aragão, Valencia, Castella, Galliza e mesmo do Béarn. Certos provençalismos e italianismos dos antigos Cancioneiros portuguezes são consequencia de uma necessidade do artificio prosódico. Pela situação da Galliza como provincia submissa, a lingua gallega deixou de ser escripta, cahindo assim com o tempo na espontaneidade popular, e na sua immobilidade archaica. Muitas das suas palavras alteraram-se por metateses negligentes, [Pg 153] como drento (dentro), prubico (publico), prove (pobre); a sua conjugação conserva certos tempos já transformados no portuguez, como: Falades (fallaes), faledes (falleis), falariades (fallarieis). Em consequencia da actividade de um organismo politico nacionalista, o portuguez torna-se escripto, e este facto determina o processo de um constante neologismo no seu lexico, já pelas traducções latinas das obras ecclesiasticas, já pela cultura juridica das escólas, já pela communicação dos poemas e novellas francezas, e pela fórma escripta foi continuamente a separar-se da corrente popular ou das fórmas vulgares, por um excesso tal que chegou a ser reconhecido.

Na época da constituição da nacionalidade portugueza foi grande a influencia da cultura franceza; o Conde D. Henrique, cavalleiro borgonhez, chama para o territorio sobre que governa cavalleiros francezes, a quem reconhece um certo numero de costumes feudaes; dá ás novas colonias frankas privilegios especiaes chamados franquias; muitos bispos, como S. Geraldo, D. Mauricio, D. Hugo, D. Bernardo, eram francezes, e em letra franceza foram trasladados os Evangelhos, segundo ordenava o Concilio de Leão de 1090. Continuou a corrente sob D. Affonso Henriques, concedendo as terras de Athouguia a Guilherme des Cornes, para as povoar com francezes e gallegos. Iam estudantes portuguezes estudar a Paris a theologia e a medicina, como vêmos com D. João Peculiar e Frei Gil Rodrigues. É natural que os poemas carlingios aqui tivessem écco na passagem dos jograes vagabundos, sobretudo sendo [Pg 154] as romagens a Sam Thiago bastante populares em França no seculo XII e XIII. É certo que a lingua franceza deixou numerosos vestigios no velho lexico portuguez, como se encontra nos textos das versões do Velho e Novo Testamento; mas poder-se-ha attribuir-lhe os sons nasaes tão caracteristicos da lingua portugueza? Esses sons nasaes já tinham sido explicados por Helfferich et De Clermont como provenientes do contacto com os Suevos, mas sem demonstração. A influencia do francez foi nas classes cultas, e nas fórmas litterarias da linguagem, mas não no seu organismo intimo, nem no povo, em cuja loquela estacionou.

A vida nacional, com côrte, egreja e escólas, leis escriptas, processos judiciarios e regulamentos de administração, provocava um desenvolvimento artificial da lingua portugueza; debaixo das fórmas alatinadas dos escribas e tabelliães existem as palavras vulgares, que mais tarde appareceram em uma graphia nacional, como se verifica no Livro dos Testamentos de Lorvão, no Livro Preto da Sé de Coimbra, e nos Diplomatae et Chartae. João Pedro Ribeiro publicou documentos em portuguez de 1192, redigidos no reinado de D. Sancho I; reconhece que o seu emprego se tornou mais frequente por 1293, e de um uso geral e exclusivo de 1334 em diante. Não provam estes factos a crescente ignorancia do latim, que pelo contrario começava a estudar-se a sério pelo renascimento das leis romanas, canones ecclesiasticos e livros sagrados da Vulgata; a lingua fallada é que entrava em um periodo de fecundidade, como [Pg 155] idioma nacional. As traducções em vulgar, tão numerosas, representam um esforço para transportar o pensamento de uma lingua classica para uma dicção pobre, e vacillante nas suas fórmas e construcções; por isso as traducções portuguezas dos seculos XIII, XIV e XV encheram o portuguez de neologismos do vocabulario classico, dando logar aos duplos divergentes, á imitação da morphologia dos superlativos em issimo, e a grande numero de themas que só serviram para as derivações de novas palavras. Era natural a illusão, por effeito d’estas aproximações litterarias, de considerar a lingua portugueza a mais proxima da latina do que todas as outras romanicas; pensou-o assim a Renascença erudita, quando Fernão de Oliveira e João de Barros fundaram a Grammatica portugueza nas regras da latina, e quando Camões synthetisava poeticamente esse sonho de uma missão historica universalista: «Com pouca corrupção crê que é a latina.» Os philologos do seculo XVII, como Alvaro Ferreira de Vera e Manoel Severim de Faria, chegaram pacientemente a escrever trechos em prosa que se podiam lêr simultaneamente em portuguez ou em latim, segundo as inflexões da voz. Causas vitaes actuaram ao mesmo tempo no vigor da linguagem fallada.

A lingua portugueza, pela intensidade da vida provincial, primeiramente, e mais tarde pela expansão da actividade nacional na Africa, Archipelagos atlanticos, Brazil e India, desdobrou-se em differentes dialectos. As differenças ethnicas das provincias portuguezas já tinham sido notadas pelo grammatico quinhentista [Pg 156] Fernão de Oliveira, fallando das dicções populares: «Algumas d’estas ficaram já de muito tempo: ha tanto, que lhe não sabemos seu principio particular ... tambem se faz em terras esta particularidade, por que os da Beira tem umas fallas, e os d’Alemtejo outras; e os homens da Extremadura são differentes d’Antre Douro[92] A linguagem da Beira já no seculo XVI apresentava aos grammaticos um caracter archaico; continúa Fernão de Oliveira: «muitas vezes algumas dicções que ha pouco são passadas, são já agora muito aborrecidas, como: abem, ajuso, acajuso, a suso, e hogano, algorrem e muitas outras; e porém se estas e quaesquer outras semelhantes se metterem em mão de um homem velho da Beira ou aldeão, não lhe parecerão mal.»[93] Estas differenças que Fernão de Oliveira notava como grammatico encontram-se observadas por Gil Vicente como poeta; duas farças e uma tragicomedia versam sobre os costumes mosarabes da Beira, o Clerigo da Beira, o Juiz da Beira e tragicomedia da Serra da Estrella. Os bailos da Beira, a que allude Gil Vicente, e o typo comico beirão do Ratinho, bem como a persistencia dos cantos tradicionaes, provocavam este desenvolvimento dialectal. Quando a vida local se atrophiou pela concentração da dictadura monarchica (Ordenações) e pela absorpção da capital, os dialectos portuguezes ficaram [Pg 157] méras fórmas archaicas. Em consequencia da expansão historica em um vastissimo dominio colonial, o individualismo portuguez manteve-se tambem pela linguagem, e dando logar não só a cruzamentos de raça mas á creação de numerosos e importantes dialectos. Citaremos o Creoulo, nas populações de Africa e Cabo Verde, o Matuto, no Brazil, o Reinol ou Indo-portuguez em Columbo, capital de Ceylão, em Malaca, em Cochim, e o Macaista. Alguns d’estes dialectos têm sido estudados; o da Guiné portugueza por Bocandé, os da India por Hugo Shuchartt, e outros varios philologos. São estudos que revelam intimos processos psychologicos formativos no phenomeno da linguagem. E referindo-se a esta acção fecunda dos portuguezes, escrevia João de Barros no seculo XVI: «As armas e os Padrões portuguezes póstos em Africa e Asia, e em tantas mil Ilhas fóra da repartiçam das trez partes da Terra, materias são e pode-as o tempo gastar; pero, não gastará doutrina, costumes, linguagem, que os portuguezes n’estas terras deixaram[94] E o que se dava com a expansão maritima, repetia-se em circumstancias muitas vezes [Pg 158] transitorias, como na frandunagem, a que allude Filinto Elysio: «lingua franduna—a que trouxeram os soldados portuguezes das guerras dos Paizes Baixos.»[95] No dialecto brazileiro encontra-se o diminutivo do participio, (ex. dormindinho) que no gallego é ainda um phenomeno primitivo (ex. correndinho.)

Mas assim como a uma grande dispersão nas expedições maritimas e na occupação territorial, se tornava mais profundo o sentimento da patria portugueza, affirmada conscientemente no facto da Nacionalidade, tambem a Lingua portugueza, disciplinada grammaticalmente e escripta pelos Quinhentistas, elevou-se a esse typo unitario que uniformisou a linguagem fallada com a escripta, phenomeno digno de consideração e caracteristico da evolução da lingua do seculo XVI a XIX. Causas profundas determinaram esta unificação, e não o contacto dos escriptores com o povo, nem a elevação da cultura popular, ou a retrogradação dos homens de letras. A lingua foi um sustentaculo da Nacionalidade, como o foi ainda uma outra vez de 1580 a 1640 sob a incorporação castelhana. É pela sobrevivencia e resistencia das suas linguas, que actualmente resistem as nacionalidades peninsulares.

[Pg 159]

Como um phenomeno que se continúa no tempo, a Lingua, como qualquer outra creação social tem tambem a sua historia; basta evolucionar e acompanhar a psychologia humana para merecer esse estudo. É por isso que aqui esboçamos a historia da Lingua portugueza, nos seguintes quatro periodos:

I. Elaboração popular, antes do seculo X, até á unificação nacional no seculo XIII. Comprehende as modificações dos sons celtibericos, romanos, germanos e arabes, constituindo o vocalismo e consonantismo, de que resultaram o Gallego e simultaneamente o Portuguez.—Influencia do Gallego pelo seu mais rapido desenvolvimento sobre o portuguez fallado, até que pela perda da autonomia nacional o Gallego estaciona, sendo ulteriormente influenciado pelo Portuguez. Cria-se o vocabulario vulgar com todos os materiaes de um passado historico importante.

II. Divergencia erudita, durante o seculo XIV e XV: Fazem-se numerosas traducções latino-ecclesiasticas e juridicas, ampliando o vocabulario pelos neologismos latinos, italianos e francezes. Fazem-se derivações de themas que nunca entraram na linguagem fallada, e empregam-se fórmas exclusivamente classicas. Separam-se os escriptores das relações com o povo, e da antinomia entre a linguagem fallada e a escripta apparece a necessidade de unificar a linguagem, fazendo-se sob D. João II e D. Manoel a reforma dos velhos textos dos Foraes.

III. Disciplina grammatical, estabelecida na primeira metade do seculo XVI, no momento mais activo e exclusivo da Renascença [Pg 160] humanista ou greco-romana. Preponderam as classes cultas, a Côrte e a Egreja; Fernão de Oliveira e João de Barros explicam o portuguez pela grammatica latina, e os Jesuitas impõem o latim com exclusão completa da Grammatica nacional.

IV. Unificação da lingua fallada com a escripta, operada desde o seculo XVII a XIX. Começa o estudo da lingua pelo criterio historico em Duarte Nunes de Leão; ainda subordinado ao latim, Bluteau realisa a grande obra do Vocabulario portuguez, mas consultando sempre a linguagem fallada, de que extrae inauditas riquezas. A Arcadia de Lisboa sustenta a necessidade dos archaismos, impondo a norma classica da linguagem dos Quinhentistas, combatendo os latiniparla e os gallicistas ou o Neologismo. E como a tradição é um vinculo do individualismo nacional, n’este vasto concurso da civilisação moderna, a lingua escripta tendo de acceitar novas nomenclaturas de sciencias, de artes e de instituições, tinha de manter a sua feição ampliando-se com os recursos sempre pittorescos da linguagem fallada. O Romantismo sympathisou bastante com o portuguez archaico renovando o vocabulario medieval; mas, pelo criterio do naturalismo na Litteratura, veiu a reconhecer-se como belleza do estylo a espontaneidade e a variedade pittoresca da linguagem fallada em todo o dominio portuguez.

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§ 4.—Patria e Nacionalidade

As gerações que se succedem sobre o mesmo territorio, organisando a sua synthese activa ou a Industria na coexistencia da liberdade de todos e no accordo dos interesses pelo direito, quando se elevam á synthese affectiva pelo aperfeiçoamento dos costumes de menos em menos egoistas, pela intuição do sentimento subordinam-se á noção moral, e criam pela arte e poesia a expressão da sua collectividade, que sobrevive a cada individuo no tempo. Eis o ideal de Patria, que é uma grande familia; é esse sentimento unificador que inspira os membros de uma mesma sociedade a uma acção commum, a uma impulsão progressiva, que constitue a sua vida historica de Nacionalidade. Quanto mais profundo fôr o sentimento de Patria, mais intensa é a consciencia da Nacionalidade, para resistir aos accidentes das edades. É esta relação affectiva que faz com que a Arte e a Litteratura sejam a estampa do caracter nacional.

Quando se constituiu no seculo XII o estado de Portugal, já existiam todos os rudimentos de patrias hispanicas que vieram a formar as nacionalidades peninsulares. Como porém essas nacionalidades eram violentamente agrupadas pela audacia de um chefe militar, que se tornára prestigioso na reconquista christã, foi o sentimento de patria que fez resistir a estas incorporações dos pequenos estados, revindicando as suas autonomias locaes. A formação da Nacionalidade [Pg 162] portugueza é um facto resultante d’esse movimento de unificação e de desmembração que constitue a trama da historia da Hespanha da Edade media aos tempos modernos. Póde-se definir este phenomeno como uma oscillação, em periodico vae-vem, a cujo impulso obedeceram mesmo todas as raças que occuparam o solo hispanico.

As raças iberica, celtica, phenicia e carthagineza só chegaram aqui á unidade politica sob o dominio dos Romanos: facto que originou a illusão de attribuirem-se todas as fórmas da civilisação peninsular á influencia de um povo sem numero material para actuar directamente na modificação ethnica, como o notára Erasmo. A unidade romana, que levára dois seculos a radicar-se, dissolveu-se repentinamente, ao primeiro choque da invasão dos povos germanicos. O que se deu na Hespanha succedeu egualmente nas Gallias e na Italia, como observa Guizot: «O Imperio retirou-se d’estes paizes, e os Barbaros occuparam-os sem que a totalidade dos habitantes exercesse alguma acção, fizesse sentir em alguma cousa o seu logar nos acontecimentos, que a entregavam a tantos flagellos.» Remontamo-nos a este facto, por que a influencia romana que mais tarde apparece nas instituições politicas e nas Litteraturas, determina-se por uma reproducção artificial das monarchias avançando para a dictadura e ás quaes interessava o apoio da unidade catholica, que pela cultura latina aspirava ao imperio theocratico. Os vestigios de uma civilisação romana, estradas, aqueductos, circos, templos e inscripções lapidares, são documentos de um facto moral, a superioridade de Roma, mas [Pg 163] attestam principalmente a existencia de uma população obreira explorada pelo vencedor. Diz Guizot, com a sua habitual segurança, que o Imperio se dissolveu por falta de uma classe media. O que existia na peninsula capaz de assimilar a cultura romana fugia para Roma, como vêmos com Quintiliano, com os Senecas, com Lucano, com Marcial. A tradição da unidade romana manteve-se pelo catholicismo, quando ainda na lucta dos Romanos da peninsula com os Carthaginezes da Africa, aqui entraram os sectarios da nova religião. Na futura constituição da unidade hespanhola, as monarchias centralistas virão a receber a sua principal força da unidade catholica, dando-lhe em paga a destruição das egrejas nacionaes ou do culto mosarabe.

Para a peninsula a historia começa propriamente no dominio romano, mas segundo Hallam: «A historia da Hespanha durante a Edade media devia começar pela dynastia dos Visigodos.»[96] Carece de explicação este asserto. Com a invasão germanica deu-se o facto contraposto á unificação realisada pelos Romanos, sendo pela desmembração a Hespanha repartida entre Alanos, Suevos e Vandalos. Foram depois os Visigodos, que submetteram estes elementos outra vez a uma unidade politica pelo regimen da força; por dissensões internas vieram do arianismo ao catholicismo, e pelo desenvolvimento da fórma monarchica, fizeram renascer os Codigos [Pg 164] romanos, como as aristocracias clericaes e militares imitaram os costumes romanos. Assim a unidade visigoda manteve-se á custa de abusos, que embaraçavam a creação de uma classe media, sendo quebrada repentinamente por uma incursão de Arabes. Á medida que a unidade germanica se funda na imitação do Imperio romano e na intolerancia catholica, foram decahindo os homens-livres, confundindo-se com o colonato romano, e com outras classes servas, que, diante da invasão dos Arabes, reconhecem o novo dominio com uma facilidade extraordinaria, regendo-se pelos seus costumes, seguindo a sua crença, e pagando apenas uma capitação. Tal é o elemento mosarabe, em que se fórma uma activa classe media; n’ella entraram o aldius, que trabalhava nos campos e se reunia nas pobras ruraes; o mesteiral, que exercia os officios mechanicos; o burguez, que vivia nas cidades muradas, que se confederavam na Behetria; o cavalleiro-villão, em quem revivia o antigo homem-livre decahido na servidão; e ainda o clerigo adscripto á egreja local, que é como uma especie de propriedade feudal. Fóra da unificação visigotica tinham ficado pelo seu espirito separatista os Asturos, os Cantabros e os Bascos; e foram tambem estes povos os que pelo seu natural instincto autonomico reagiram contra os Arabes, sendo o primeiro germen de uma terceira desmembração.

Não conseguiram os Arabes realisar a unificação politica da Peninsula; pelo seu genio semita e pelo caracter das povoações preexistentes, desmembraram-se nos reinos de Toledo, Badajoz, [Pg 165] Sevilha, Granada, Malaga, Almeria, Murcia, Valencia, Denia e Baleares. Pelo seu lado a reconquista do territorio hispanico inicia-se pelo impulso da unidade catholica, e pela unificação politica das Asturias e de Leão, que comprehendia a Galliza, Portugal, Castella, e da parte da Navarra o Aragão. Se por um lado a unidade catholica coadjuvava esta convergencia social, a ambição dos chefes militares, explorando o espirito separatista da autonomia local, procedia á desmembração, como se verifica na constituição independente dos reinos de Castella, de Aragão, de Portugal, dos Condados de Galliza e de Barcelona.

D’esta corrente separatista é que se desmembra o estado de Portugal, que, pelo apoio da colonisação franceza, e aproveitando-se da acção catholica da reconquista para engrandecer-se para o sul, soube tirar da visinhança do mar as condições de resistencia. A oscillação politica dos outros estados peninsulares coadjuvou a consolidação lenta da unidade nacional portugueza; Sancho o Magno unifica pela força Navarra, Castella e parte de Leão, e desmembra o novo estado em testamento pelos seus quatro filhos; tambem Affonso VII, imperador de Leão, unifica Castella, Leão, Aragão, Navarra e varios Condados, desmembrando-os depois por seus filhos; o mesmo se dá com Fernando, com a usurpação de Sancho, com todos os outros monarchas, até á unificação castelhana em Fernando e Isabel, no ultimo quartel do seculo XV, quando Portugal, tendo passado a estabelecer possessões em Africa explorava já as ilhas do Atlantico, e [Pg 166] se occupava no empenho da passagem do Cabo Bojador. Foi esta actividade maritima que tornou Portugal mais do que um simples appendice da Hespanha, e suscitou na sua maxima intensidade o sentimento de Patria, que brilhara pela primeira vez na victoria do Salado, que se impuzera em Aljubarrota, e que agora ia resistir contra todos os planos de unificação ensaiados pelos casamentos dynasticos da Casa de Austria em Hespanha. Pelo casamento de Dom Affonso V, com Dona Joanna (a Excellente Senhora) foi elle jurado em 1471 rei de Castella e de Leão, sendo esta unificação do monarcha portuguez embaraçada por Fernando e Isabel que trabalhavam pela unificação castelhana. Os casamentos do princepe Dom Affonso e de Dom Manoel com as filhas de Fernando e Isabel; o de Carlos v com uma filha do rei Dom Manoel, foram sempre planeados no intuito da unificação de Portugal com a monarchia hespanhola. Escrevia Resende, na Miscellanea, consignando o facto:

Vimos Portugal, Castella
Quatro vezes ajuntados,
Por casamentos liados; etc.

Pelo casamento do princepe Dom João, pae de Dom Sebastião, continuou Carlos V insistindo no pensamento do unificação, empregando todos os seus meios politicos para ser jurado herdeiro de Portugal o princepe Dom Carlos seu neto. Foi este pensamento realisado, pela [Pg 167] morte de Dom Sebastião em Africa, por um neto de Dom Manoel, o terrivel Philippe II, em 1580, quando a fidalguia portugueza desnaturada do seu sentimento de Patria entendeu que servia a causa da unidade catholica, então representada pela Casa de Austria, entregando Portugal á soberania do Demonio do Meio Dia.

Aqui deixamos tracejada em breves linhas a evolução da ideia iberica, ou da unidade monarchica da Hespanha á custa da extincção das nacionalidades peninsulares. Quando porém a politica de Richelieu procurou enfraquecer o colosso da Casa de Austria, foi aproveitado o instincto separatista no levantamento simultaneo da Catalunha e da Revolução de Portugal em 1640. Restaurou-se a nacionalidade portugueza, mas não a sua autonomia; a nova dynastia dos Braganças só tratou de fixar o seu throno, e tendo esgotado todos os meios de por casamentos na dynastia hespanhola reunir as duas corôas, entregou-se á alliança da Inglaterra, comprando-lhe o apoio com a cedencia de Bombaim e com os mais ruinosos tratados, como o de Methwen, o de 1810, emfim com essa abdicação tacita que tornou Portugal uma feitoria ingleza.

Collocada entre a Hespanha e o mar, a nacionalidade portugueza achou e comprehendeu o seu destino historico: Pelo mar vieram as armadas dos Cruzados coadjuvar a conquista de Lisboa e do Algarve; d’essa comitiva de cavalleiros fixaram-se no solo portuguez muitos barões, que eram outras tantas forças interessadas na sua independencia. A [Pg 168] comprehensão da proximidade do mar, fez que muito cedo começassem os reis a desenvolver a marinha portuguesa; D. Sancho II mandava comprar nos estaleiros de Italia os galeões com que ia atacar os Mouros invadindo as costas do Algarve; D. Diniz chama de Italia Micer Passagno para servir de almirante portuguez, e mandava assoldadar marinheiros genovezes, que attrahia com privilegios para capitanearem as nossas caravelas; o rei D. Fernando rehabilita-se na historia pelo impulso que deu á marinha. E descontando o que ha de ficticio na lenda do Infante D. Henrique, forjada por Azurara, é certo que aproveitando-se da iniciativa dos armadores portuguezes, pela exploração do Mar Tenebroso começa esse estupendo cyclo de navegações desde Zarco a Vasco da Gama e Fernão de Magalhães, que tornaram Portugal o iniciador da civilisação moderna. A vida historica de Portugal coincide com o periodo das expedições e descobertas maritimas; então comprehendia-se a nossa situação junto do mar, reagindo contra a pressão do continente. Fomos um povo de mareantes; o sentimento de Patria n’esta phase da vida nacional, as incertezas da navegação, o acaso das descobertas, as qualidades moraes da coragem exercendo-se por um ideal superior, a riqueza fecundando a collectividade social, tudo isto se reflectiu na nossa pequena Litteratura, convergindo para produzir uma obra unica, em que mais accentuadamente foi expresso o espirito da nacionalidade, os Lusiadas, esse poema, que apesar da sua origem individual teve e terá sempre o dom de influir uma unidade sympathica. Extingam-se todos [Pg 169] os monumentos da civilisação portugueza, todos os vestigios do nosso vasto dominio no mundo, qualquer intelligencia clara irá recompôr a vida historica dos portuguezes pelos Lusiadas, como o fizeram um naturalista, um philosopho e um litterato, Humboldt, Schlegel e Quinet. Esta alma apaixonada, tão celebrada pelo amor, será comprehendida no seu genio aventureiro nas Relações dos naufragios, nos seus romances e na architectura.

Desde que Portugal se achou collocado entre a Hespanha e a alliança ingleza, o mar foi-se tornando uma fronteira isolada; perdemos a India, e foram-se á custa do nosso espolio enriquecendo duas novas potencias colonisadoras, a Hollanda e a Inglaterra. A historia de Portugal desde 1640 até ao presente é unicamente o processo de uma longa decadencia. Cultivou-se o terror da conquista hespanhola, para nos lançarmos incondicionalmente como servos da politica, e da absorpção industrial e economica da Inglaterra. A dynastia de Bragança, contentando-se com todos os apparatos theatraes da soberania, tornou-se um kedivato da Inglaterra, que lhe dava em paga a segurança do throno. Conseguido isto, poderam os reis d’esta dynastia praticar todos os attentados contra a nacionalidade portugueza, esgotar-lhe as suas riquezas, abandonal-a á invasão inimiga, desmembral-a em interesse proprio, chamar contra ella intervenções armadas estrangeiras, por que nada d’isto lhe poderia abalar o throno. Para esta segurança bastou ir minando dia a dia o sentimento de Patria, e comprar aos fieis [Pg 170] alliados o apoio com tratados que ou matavam as nossas industrias como o de 1810, ou que lhes entregavam os nossos territorios, como o de Gôa. O amortecimento do sentimento de Patria, deu essa decomposição dos caracteres dos homens publicos, e deixou correr a affrontosa mentira de que a dynastia dos Braganças era o penhor da autonomia de Portugal. Se a educação jesuitica, desde 1555 até 1759, foi apagando constantemente nas gerações o sentimento da patria portugueza, o final d’esta decomposição acha-se ligado aos sophismas liberaes do regimen da Carta outorgada, em mais de meio seculo de depressão moral, intellectual e social.

Foi das tendencias separatistas dos estados peninsulares que se constituiu Portugal em uma nação livre; é d’esse separatismo tornado consciente e scientifico, na fórma politica da Federação, que Portugal tirará a condição digna e estavel da sua independencia. É esse o grande futuro historico da peninsula hispanica.

Na Litteratura portugueza reflectem-se todos os aspectos da expansão da nacionalidade. Logo que acabou a conquista do territorio portuguez, a côrte de Dom Diniz, torna-se o centro de convergencia dos trovadores e jograes castelhanos, catalães, leonezes, gallegos e asturianos, e pela sua poesia lyrica Portugal exerceu uma verdadeira hegemonia na Hespanha, como o confessa Santillana. A brilhante expedição do Salado inspira a primeira pagina escripta de narrativa historica, que se [Pg 171] encontra intercalada no Nobiliario. Manifestada a soberania da nação em 1380, pela revolução que leva ao throno D. João I, e iniciadas as descobertas maritimas, a litteratura portugueza enriquece-se com as mais importantes producções da historia por Fernão Lopes, Azurara e Ruy de Pina, que rivalisam com os mais pittorescos historiadores europeus do seculo XV. Escrevia Schlegel uma phrase que nos explica a importancia d’esta creação litteraria: «Feitos memoraveis, grandes successos e largos destinos não bastam para captivar-nos a attenção e determinar o juizo da posteridade. Para que um povo tenha este privilegio é preciso que elle possa dar conta das suas acções e dos seus destinos.» Eis um caracter nacional bem accentuado. Camões, que idealisou de um modo immortal a patria portugueza, synthetisou-a no verso em que se retratava: «N’uma mão sempre a espada, e na outra a penna.» Poetas, como Heitor da Silveira, Christovam Falcão, Camões, batem-se nos cêrcos indianos; e chronistas, como Diogo do Couto, Gaspar Corrêa, Fernão Lopes de Castanheda e Antonio Galvão, nos rapidos descansos da lucta militar e das tempestades maritimas escrevem a historia dos feitos portuguezes no Oriente. Depois da leitura da primeira Decada da Asia de João de Barros, Camões sente o valor do verdadeiro argumento para a epopêa das navegações portuguezas; e outros tentam essa empreza de glorificação nacional, como Jorge de Montemór e Pero da Costa Perestrello, embora não conseguissem realisal-a. Desde o apparecimento dos Lusiadas as [Pg 172] suas immediatas traducções em castelhano tornaram Camões o princepe dos poetas da Hespanha; era a verdadeira unificação affectiva e esthetica das nacionalidades peninsulares; mas foram sempre os Lusiadas, nos seculos mais decahidos da nossa historia, que mantiveram nos espiritos sempre vivo o sentimento nacional. O successo da revolução de 1640 não deixou écco na litteratura seiscentista, mas os Lusiadas prepararam-no; tambem já no nosso seculo os patriotas que fugiram por 1818 das forças de Beresford que assim sustentava o protectorado inglez em Portugal, e os que em 1823 fugiram para França ás alçadas do restaurado despotismo bragantino, taes como o Morgado de Matheus, Domingos Antonio Sequeira, Bomtempo e Almeida Garrett, idealisaram por todas as fórmas da arte a obra de Camões, como o melhor estimulo para uma revivescencia nacional.

A influencia dos litteratos que no seculo XVIII vulgarisaram as ideias politicas, reflectiu-se em Portugal principalmente pelas traducções das tragedias philosophicas de Voltaire, como a Alzira, a Merope, a Semiramis e Mahomet. Já na transformação politica da nação portugueza, do absolutismo para o constitucionalismo, foram tambem os litteratos que cooperaram n’essa renovação social os que melhor comprehenderam a renovação esthetica ou sentimental do Romantismo, de que foram os iniciadores, como Garrett e Herculano. Era uma éra nova destinada a crear uma geração fecunda; porém a obliteração do sentimento de patria, nas reacções palacianas de 1842, de 1847 [Pg 173] e 1851, e nos successivos ministerios de resistencia desde 1890, explica sufficientemente a degradação dos caracteres e o imperio das mediocridades. Todos estes phenomenos staticos são solidarios, e embora independentes da vontade individual podem ser perturbados dando em resultado todas as fórmas mais ou menos patentes da decadencia de uma civilisação.

NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Primeiros principios, § 72.

[2] Historia da Litteratura grega, cap. I, p. 16. (Trad. Hillebrand.)

[3] Ibid., p. 20.

[4] J. J. Ampère, Grèce, Rome et Dante, onde abundam factos d’esta natureza.

[5] Journal des Savants, 1864.

[6] Émile Chasles, Hist. de la Litterature française, p. 38 e 39.

[7] Du Méril, Poésies populaires latines antérieures au XIIme siècle, p. 103 a 116.

[8] Michelet, Introduction à l’Histoire universelle, p. 61, 211 e seg. Ed. 1843.

[9] Stendhal, Histoire de la Peinture en Italie, p. 50.

[10] Ibid., p. 37.

[11] Michelet, op. cit., p. 208.

[12] Histoire nationale de la Litterature française. Paris, 1870.

[13] Mem. d’Anthropologie, t. I, p. 282.

[14] Hist. nationale de la Litterature française, p. 427.

[15] Este prospecto anthropologico acha-se desenvolvido na Patria portugueza, I, p. 55 a 128.

[16] Op. cit., p. 127.

[17] Op. cit., p. 46.

[18] Hist. de la Litterature allemande, p. 302.

[19] Traducção de Henry et Apffel, p. 9. Paris, 1839.

[20] Grimm, Traditions allemandes, trad. de L’Heretier, p. XXVI do t. I.

[21] Ibid., t. II, p. 442.

[22] Ibid., t. I, p. 201.

[23] Ibid., t. II, p. 175.

[24] Ibid., t. II, p. 135.

[25] Ibid., t. II, p. 107.

[26] Tacito, Vida de Agricola, cap. 28.

[27] Grimm, Ibid., t. I, p. 410.

[28] Historia do Direito portuguez—Os Foraes—cap. IV. Não admira que nos nossos primeiros estudos fixassemos n’esta camada ethnica todas as investigações sobre as origens tradicionaes da Litteratura portugueza.

[29] Romancero general, t. II, p. 663, col. 3, nota 24.

[30] Hist. de Portugal, t. I, p. 76.

[31] Ibid., t. III, p. 191.

[32]

Muçarabes nos llamamos,
Por que entre Arabes mezclados,
Los mandamientos sagrados
De nuestra Ley verdadera
Con valor y fé sincera
Han sido siempre guardados.

[33] Hist. de Portugal, t. III, p. 195.

[34] Ibid., p. 199.

[35] Avelar Severino, Estudos sobre os Roteamentos e Colonias agricolas.

[36] Histoire de la Peinture en Italie, p. 236.

[37] Ibid., p. 237.

[38] Justino (lib. LXIV, 3) refere que as mulheres luzitanas trabalhavam nos campos, como ainda hoje as mulheres do Minho; confirma-o o Dr. Rebello de Carvalho: «as mulheres (do Gerez) robustas e trabalhadoras, dadas ao trabalho das suas fazendas.» Notic. topographica do Gerez, p. 16. Dos costumes de Andalusia, escreve Lafuente y Alcantara: «no puedo menos de recordar la extraña impresion que me produjo no ha mucho tiempo la lectura de una obra (Layard, Discoveries in the ruins of Nineveh and Babilon), en la cual, referiendo el autor una viaje por la Armenia, describe minuciosamente el arado, los carros y otros instrumentos de labranza que usan los Curdos, admirándose mucho de que aun estuviesen en este punto casi como en los tiempos biblicos. Los carros y el arado descritos son exactamente iguales á los que se usan en Andalucia...» (Cancionero popular, t. I, p. XXXVII.)

[39] Transcrevemos as palavras de Paul Meyer, na Romania, em uma noticia bibliographica dos Canti antichi portoghesi: «Je remarque que plusieurs des pièces editées par M. Monaci (n.os III, IV, IX) sont fort analogues, pour le fonds comme par la forme, à nos anciennes ballettes (voir celles que j’ai publiées dans mes Rapports, p. 236-9), ou aux balades provençales. Je n’en conclus pas que les poésies portugaises qui ont cette forme soient imitées du français ou du provençal, mais qu’elles sont conçues d’après un type traditionel qui a dû être commun à diverses populations romanes, sans qu’on puisse déterminer chez laquelle il a été crée.» Romania, n.o 6, p. 265.

[40] Desprez, La Russie et le Slavisme (Rev. des Deux Mondes, 1850, II, 538.)

[41] «La poésie populaire et purement naturelle a des naïfvtez et graces, par où elle se compare à la principale beauté de la poésie parfaicte, selon art; comme il se veoid ez villanelles de Gascoigne et aux chansons qui n’ont cognoissance d’aulcune science, ny mesme d’escripture.» Essais, liv. I, cap. 55.

[42] Les origines de la Poésie lyrique, en France au Moyen-Age, p. 259.

[43] Ibid., p. 260.

[44] Mem. cit., p. 238. Aos cantos das mulheres de Cadiz referem-se Juvenal (Satyra IX, v. 162.) e Martial (Epigram., lib. V, n.o 78.)

[45] Fallando da musica inventada pelas mulheres do Minho, escrevia no seculo XVII o Marquez de Montebello: «Con gran destreza se exercita la musica, que es tan natural en sus moradores esta arte, que succede muchas vezes a los forasteros que passan por las calles, particularmente en las tardes del verano, parar y suspender-se, escuchando los tonos, que a coros cantan, con fugas y repeticiones las moçuelas, que para exercitar la labor de que viveu les es permitido, por tomar el fresco, hazerla en la calle. Al que ignora la musica engañan, pensando que la saben, y al que es diestro en ella, desengañan que de todas las artes es naturaleza la maior mestra.» Vida de Manoel Machado de Azevedo, cap. V, p. 44.

[46] Les origines de la Poésie lyrique, p. 445.

[47] Ibid., p. 446.

[48] Em um trabalho especial a Historia da Poesia popular portugueza, que refundimos para uma nova edição, fica tratado amplamente este problema.

[49] Op. cit., p. XVII.

[50] Op. cit., p. XVII.

[51] «Le canzoni italiane sono tutte domestiche, pochissime romanzesche, ancor meno istoriche.» Gregorovius, na Siciliana, 1861.

[52] Op. cit., t. I, p. 131. (Trad. franc.)

[53] Voyage à travers l’Amerique du Sud, t. I, p. 231.

[54] Geograph., liv. III, cap. II, § 13.

[55] These sustentada pelo Dr. Francisco Martins Sarmento na obra Os Argonautas.

[56] Nas Lendas christãs, p. 275 a 279, deixámos expostos estes factos, examinando a estructura strophica da Canção do Figueiral.

[57] Os Foraes, cap. III e IV. (1868.)

[58] Amplamente desenvolvido no livro O Povo portuguez nos seus Costumes, Crenças e Tradições.

[59] Études germaniques, p. 234.

[60] Publicado por Eduardo de la Barra, no folheto El Endecasilabo dactilico, p. 83; diz ter colligido muitos outros romances anteriores ao seculo XIII.

[61] Etienne, Histoire de la Litterature italienne, p. 537.

[62] Cancionero popular, t. I, p. L.

[63] Poesia popular española, y Mythologia y Litt. celto-hispanas, p. 444.

[64] Cantos populares do Brazil, t. II, p. 216.

[65] Ibid., n.o 69, 70 e 77 do t. I.

[66] Strabão falla dos simulacros de guerra dos Luzitanos.

[67] Historia geral de Hespanha, mandada traduzir pelo rei D. Diniz. Ed. de Coimbra (incompleta), cap. 198.

[68] Catalogo dos Bispos do Porto, p. 150. Ed. 1742.

[69] Historia de Portugal, t. III, p. 167.

[70] Memoriale Sanct., lib. III, cap. 3.—Hist. de Port., t. III, p. 174.

[71] Citado em Raczynscky, Lett., VI, App. B, p. 106.

[72] Lettres, XXVII, p. 458.

[73] Influencia del elemento indigena en la cultura de los Moros de Granada, p. 16.

[74] Ibid., p. 63.

[75] Ibid., p. 35.

[76] Op. cit., p. 36.

[77] Ibid., p. 37.

[78] Viagens na minha Terra, t. II, p. 55.

[79] Fauriel, Histoire de la Poésie provençale, t. III, p. 340.

[80] Piccola Enciclopedia indiana, p. 109.

[81] Ibid., p. 111.

[82] Hovelacque, La Linguistique, p. 256.

[83] O facto do dialecto romanico creado na Dacia por uma colonia militar de soldados italianos, gaulezes e hespanhóes, ali fixada pelo Imperio romano, não é comparavel á creação linguistica de povos com individualidade ethnica e vida nacional, como na Italia, Gallias e Hispania. É um phenomeno de hybridismo, reflectindo a desconnexão dos elementos que o formaram, como observa Gubernatis.

[84] Terrien Poncel, Des Mots et de leur Étude, § 31.

[85] Hovelacque, Linguistique, p. 245.

[86] Exemplifiquemos com algumas palavras: PAE ou PADRE: No sk. Pitri; gr. Patër; sax. Vater; got. Fadar; ant.-alt.-all. Fater, Vatar; din. e velho sax. Fader; angl. sax. Faeder; ing. Father; holl. Vader; suec. Fader; isl. Fader, Foedr; lat. Pater; v. franc. Pair; ital., hesp. Padre; port. ant. Pare; Pae, Padre; val. Pärinte; pers. Pader. (Ap. Poncel, Des Mots, § 55.)

FRADE (irmão): sk. Bhrâtar; gr. Fratër; ant.-alt.-all. Pruodar, Bruader; got. Brothar; angl. sax. Brothor, Brether; ingl. Brother; holl. Broeder; sax. Broder; din. Broder; isl. Brodur; kymr. bret. Brawd; gael. Brathair; pers. Brader; lat. Frater; v. franc. Fraire; mod. fr. Frère; ital. Fratel-(lo); sl. Brat; Fraile e Fray; Freire, Frei e Frade, no hespanhol e portuguez, significando a confraternidade religiosa. (Ibid.)

[87] Aperçu de l’Histoire des Langues neo-latines en Espagne, p. 21.

[88] Ibid., p. 37.

[89] Orig., p. 24.

[90] Grammatica portoghese, p. 6.

[91] Grammatica das Linguas romanicas, t. I, p. 65. Trad. franceza.

[92] Gramm., p. 85.

[93] Ibid., p. 81.

[94] Dialog., p. 229.—Como comprovando esta affirmação escrevia Radau, referindo-se a Malaca, ao fim de trez seculos de decadencia do nosso poder: «O idioma que ahi se falla hoje ao lado do inglez é uma especie de phenomeno philologico: é o portuguez despojado das suas terminações, e por assim dizer, reduzido a raizes. Os verbos não têm tempos nem modos, nem numeros, nem pessoas; os adjectivos perderam o feminino e o plural. Eu vai, significa eu vou, eu tenho ido, eu irei, segundo as circumstancias. Algumas palavras do malaio completam esta lingua que representa um curioso exemplo de retrocesso ao estado primitivo.» (Un Naturaliste dans l’Archipel Malais, Rev. des Deux Mondes, vol. 83, p. 679.)

[95] Obras, t. I, p. 64.

[96] Europa na Edade media, t. I, p. 347.


[Pg 174]

II
Elementos dynamicos da Litteratura

As instituições sociaes no seu funccionamento normal, transformando-se e acompanhando o progresso humano nas varias cathegorias da evolução economica, politica e moral, e do seu desenvolvimento esthetico, scientifico e philosophico, são como uma energia ou um organismo em estado dynamico. As Litteraturas como expressão da affectividade, reflectem todos os impulsos d’estes varios factores do progresso social, e modificam-se continuamente obedecendo a esse dynamismo. Costumes estaveis e opiniões conscientes criam uma sociabilidade que se alarga pelo sentimento de patria; sentimentos collectivos é que determinam pela necessidade da sua expressão a elaboração esthetica de uma litteratura e de uma arte nacional. A Edade media é o grande campo historico em que as raças barbaras da Europa, depois da ruina do [Pg 175] Imperio romano, foram espontaneamente estabelecendo as suas bases de ordem, e organisando-se em novas nacionalidades, que se tornaram por um concurso successivo instrumentos de progresso, como continuadoras da Civilisação occidental. Essas novas nacionalidades foram remodelando os antigos poderes temporal e espiritual no Feudalismo e na Egreja; reconstituindo a familia pela elevação moral da mulher; nobilitando o trabalho pela emancipação das classes servas no proletariado que se tornou o terceiro-estado; creando as linguas romanicas, e uma arte original, sobretudo a architectura e a poesia, para exprimirem este espantoso concurso de sociabilidade. As nacionalidades modernas ao cooperarem n’este movimento, exerceram uma acção hegemonica umas sobre as outras, as mais adiantadas, como a França, sobre as mais rudimentares ou mais remotas. As Litteraturas meridionaes, franceza, italiana, hespanhola e portugueza foram a consequencia d’esta vasta organisação do Occidente, actuando sobre o desenvolvimento das linguas romanicas, e tornando-as aptas para exprimirem poeticamente os sentimentos d’esta mais ampla sociabilidade, e logicamente os pensamentos de uma mais profunda capacidade intellectual. Uma mesma noção, como observou Littré, rege a historia politica e a historia litteraria das nações occidentaes; é impossivel conhecer uma sem a outra. N’este longo periodo de transição entre o mundo antigo e a edade moderna, a Edade media apparece como uma éra de transição; n’ella se criam as condições staticas do futuro progresso humano. É na Edade [Pg 176] media que existem todos os germens tradicionaes e estheticos, que receberam ulteriores fórmas conscientes de Arte e de Litteraturas; mas esse mesmo caracter de transição, tirou á estabilidade das instituições, das opiniões e dos interesses sociaes uma continuidade necessaria para serem idealisados lentamente e generalisarem-se como thema de obras bellas. Comte notou admiravelmente esta caracteristica da Edade media, que veiu a influir na vacilação das Litteraturas modernas; bellos germens para uma larga e fecunda elaboração esthetica, e transformações rapidas, ou crises revolucionarias na sociedade europêa alterando as sympathias pelo passado, e fazendo cahir na indifferença os themas da idealisação. O que é o caracter satyrico, predominante nas Litteraturas romanicas, como observou J. J. Ampère, senão a consequencia do desprezo dos velhos themas religiosos e heroicos, quando os dois Poderes espiritual e temporal entraram em uma dissolução no seculo XII? O que é o prurido da imitação classica das Litteraturas greco-romanas, da Renascença humanista até ao pseudo classicismo francez, senão a desorientação d’essa instabilidade social, que procura novas bases de ordem? É d’esta instabilidade que resultou o antagonismo que Frederico Schlegel definiu nas litteraturas modernas, entre os seus germens medievaes espontaneos e a auctoridade dos modelos classicos impostos pela imitação erudita. Comte penetrou a essencia do problema, deduzindo-o do phenomeno da dissolução do regimen catholico-feudal com que termina a Edade media. A evolução esthetica medieval inspirára-se de todos [Pg 177] os elementos sociaes existentes: do militar ou feudal, na idealisação das epopêas ou Gestas heroicas; do theologico ou sacerdotal, na hymnologia, na arte architectonica, na musica e nas riquissimas lendas populares; do industrial, na coordenação dos cantos lyricos, das Festas civicas e dramaticas; e por ultimo d’esse estado mental do positividade ou de criterio de bom senso, que reage contra os preconceitos e avança para a comprehensão scientifica e philosophica, que tanto transparece nas satyras e nos contos. Alterados estes elementos sociaes, toda essa riqueza esthetica da Edade media ficou prejudicada, justamente quando o novo grupo das Linguas romanicas estava apto para dar-lhes expressão na elaboração das Litteraturas modernas occidentaes. Observemos pois o processo, em que as Litteraturas acompanham a intensa crise social e mental d’esta longa phase revolucionaria que vae do seculo XII até ao seculo XIX, reflectindo os seus principaes movimentos.

§ 1.—A Edade media

(HEGEMONIA DA FRANÇA)

A Edade media é a origem de todas as fórmas da evolução esthetica moderna; n’essa grande época de elaboração fecunda, as manifestações dos sentimentos pessoaes, domesticos e sociaes, que correspondem ao lyrismo, ao drama e á epopêa, acham na transformação da vida collectiva estimulos para se desenvolverem [Pg 178] estes caracteres do individualismo humano. Comte esboça com nitidez esta evolução esthetica, que se alarga idealisando as emoções de cada um dos elementos sociaes que se debatem, o feudal ou militar, o theologico ou sacerdotal, o industrial ou proletario, e o positivo ou esse estado mental tendendo a julgar pela observação: «Sendo as faculdades estheticas por sua natureza, essencialmente destinadas á ideal representação sympathica dos sentimentos que caracterisam a natureza humana, pessoal, domestica ou social, o seu desabrochamento especial, seja qual fôr o ascendente que se lhe attribua, não bastava para definir na realidade a civilisação correspondente.» E continúa deduzindo da Edade media as condições para a grande expansão esthetica moderna: «um estado social tão fortemente pronunciado como o da Edade media—verdadeira fonte necessaria da evolução esthetica das sociedades modernas.—Os costumes feudaes tinham desde logo impresso aos sentimentos de independencia pessoal uma energia habitual até então desconhecida; ao mesmo tempo a vida domestica fôra sobretudo commumente embellezada e alargada, muito além do que fôra possivel aos antigos, principalmente em virtude das felizes mudanças effectuadas na condição da mulher; finalmente, a actividade collectiva, quando ella pôde então ser convenientemente exercida, deveria com certeza constituir uma fonte não menos poderosa de inspirações poeticas e artisticas, segundo a nova convergencia moral que devia apresentar o [Pg 179] grande systema das guerras defensivas peculiar a esta memoravel phase da humanidade.»[97]

Apesar de toda esta riqueza de elementos, as Litteraturas modernas permaneceram longo tempo estacionarias, por que dependiam da creação de uma linguagem apta a exprimir um novo estado de consciencia e sentimentos apropriados a uma mais ampla sociabilidade, em que tanto cooperára o espirito da confraternidade christã. O phenomeno da creação ou derivação d’esse systema de linguas era em si já uma elaboração esthetica; basta vêr como ellas se tornam mais fecundas pelo desdobramento morphologico e semeiologico dos duplos ou vocabulos divergentes, e caminham pelos seus recursos analyticos das preposições e dos verbos auxiliares e variedades pronominaes para uma maior clareza logica. Por certo que a lingua que primeiro exprimisse toda esta riqueza poetica seria aquella que se universalisaria por vir no momento em que satisfazia uma necessidade da sociabilidade europêa, como aconteceu com o francez.

O desenvolvimento tardio das manifestações litterarias e artisticas do genio moderno é explicado por Comte pela necessidade de um trabalho prévio, e da creação das linguas modernas. Mas esta mesma elaboração é considerada pelo eminente philosopho como um producto das faculdades estheticas: A creação das Litteraturas modernas esteve estacionaria durante «uma lenta e difficil operação preliminar, cuja [Pg 180] indispensavel realisação devia preceder, por absoluta necessidade, a expansão directa do genio poetico; comprehende-se que se trata da elaboração fundamental das linguas modernas, nas quaes, em meu entender, deve vêr-se uma primeira intervenção universal das faculdades estheticas.»[98] E mostrando como estas faculdades são as menos inertes na maior parte das intelligencias, verifica o seu exercicio no facto do aperfeiçoamento da lingua vulgar: «Esta propriedade necessaria tornou-se ainda mais evidente quando se exerceu, não na creação espontanea de uma lingua original, mas na transformação radical de uma lingua anterior, era consequencia de uma nova ordem social.» É n’este ponto que o philosopho mostra como n’esta creação das linguas romanicas, já se deu o antagonismo entre a evolução organica da Edade media e o espirito classico e auctoritario da antiguidade: «Apezar da actividade que o genio philosophico e o genio scientifico puderam manifestar na Edade media,—seguramente muito pouco contribuiram um e o outro para a fundação geral das linguas modernas. Apezar das vantagens essenciaes que cada um d’elles ulteriormente tirou da superioridade logica propria dos novos idiomas, o longo uso que ambos fizeram do latim, depois que cessára inteiramente de ser vulgar, confirma bem a repugnancia e a sua inaptidão naturaes para dirigirem a elaboração da linguagem usual. Era então a faculdades menos abstractas, menos [Pg 181] geraes e menos eminentes, mas tambem mais intimas, mais populares e mais activas, que devia necessariamente pertencer esta indispensavel operação. Essencialmente destinada á representação universal e energica dos pensamentos e dos affectos inherentes á vida real e commum, nunca o genio esthetico pôde convenientemente fallar uma lingua morta, nem mesmo estrangeira apezar de todas as facilidades excepcionaes obtidas por habitos artificiaes.»[99] A lingua franceza exerceu um extraordinario perstigio nos espiritos: «cor parmi le monde, et est la plus detilable à lire et à oir, que nulle autre,» como affirmava Martin de Carrale, justificando-se de escrever em francez a sua Historia de Veneza; Bruneto Latini, o mestre de Dante, escreve tambem em francez, Marco Polo, Rusticiano de Pisa, Fazio d’egli Uberti, e tantos, contra o que levado pelo espirito nacionalista protestava Benvenuto de Immola.

Sonhando a independencia do territorio que fôra dado em dote a sua mulher D. Thereza, o Conde D. Henrique chamou para Portugal colonias francezas, as quaes radicando-se no solo o coadjuvassem no plano da autonomia territorial. A vinda de cavalleiros francezes ás guerras das Cruzadas, e a sua passagem por Portugal, contribuiram para a disseminação das tradições poeticas do cyclo carlingio, que percorriam a Europa, e das canções lyricas trobadorescas; assim, [Pg 182] além da influencia ecclesiastica, se estabelecia a hegemonia franceza nos primordios da cultura portugueza, quer sob o aspecto social como sob o mental. No seu estudo Les Communes françaises en Espagne et en Portugal, escrevem Helfrich et Clermont: «quasi que não ha provincia ou districto em Hespanha, em que não penetrassem francezes, ou costumes francezes.»[100] Atouguia, Lourinhã, Villaverde, Azambuja, Cezimbra foram fundadas por colonias frankas. Reconhecendo a influencia da lingua franceza no gallego e no portuguez, continuam os mesmos auctores: «Mas a verdadeira influencia, influencia duravel e preponderante que a França exerceu na Hespanha, deve ser procurada no espirito das suas leis.—O ponto de partida, o fóco, por assim dizer da propaganda politica que emanava da França, foi a Abbadia de Cluny, uma das mais grandiosas creações do seculo X, e o centro das ideias religiosas de que mais tarde Gregorio VII se tornou o representante.—Em Hespanha os monges de Cluny fizeram supprimir o ritual gothico para o substituirem pelo ritual gallicano. Em vez da escriptura gallicana introduziram a lettra franceza, esforçando-se para que prevalecesse em Castella a legislação da Bourgogne.» Por esta influencia se estabeleceram em Portugal os monges de Cistér, que segundo Victor Le Clerc substituiram o rito isidoriano (mosarabe) pela liturgia gallicana. Esta ordem religiosa, pelo seu caracter austero [Pg 183] anti-artistico repellindo systematicamente o bello (a ornamentação era o caracteristico do estylo arabe), teve uma forte preponderancia nos primeiros seculos da monarchia, obstando em certa fórma á manifestação do genio portuguez. As Cartas de Foral têm grandes analogias de redacção e de garantias ou frankias politicas com as das communas francezas. Na reforma judicial do tempo de D. Affonso III, os Corregedores imitam os Missi dominici dos Capitulares de Carlos Magno. Não só bispos francezes regem as sés de Portugal, como os bispos portuguezes D. Geraldo, D. Mauricio, D. Hugo, D. João Peculiar, D. Bernardo, fizeram a sua educação em França. Obedecendo ainda a esta corrente civilisadora, teve o rei D. Diniz por mestre o francez Aymeric d’Ebrard, a quem fez bispo.

Condições particulares favoreciam a França para esta hegemonia europêa; herdeira da cultura grega em Marselha, e da romana em Tolosa, tinha conservado o impulso como continuadora da Civilisação occidental. Pela região da Aquitania, propagava-se ethnicamente o seu influxo á Italia, em Hespanha, em Portugal, além das relações politicas estabelecidas desde Carlos Magno. Os dialectos da França meridional, do Languedoc, da Provença, do Delphinado, do Lyonez, do Auvergne, do Limousin e da Gasconha, facilitavam a communicação da nova poesia lyrica trobadoresca, que veiu exercitar as linguas romanicas litterariamente. Pelo seu elemento franko podia a França exercer sobre as raças germanicas da Allemanha e da Inglaterra egual hegemonia, propagando até lá as suas Gestas épicas e cantos lyricos, e a cultura mental das [Pg 184] Universidades. Assim, pelos dialectos da França septemtrional, taes como o Normando, o Picardo, o Flamengo e o Wallon tornava-se facil e natural a communicação com populações que fallassem qualquer dialecto teutonico. Na Inglaterra essa influencia primeiramente exercida pela conquista normanda, subsiste nas leis promulgadas por Guilherme o Bastardo em lingua franceza, que era tambem obrigatoria para as resas e sermões ecclesiasticos, e ainda em 1328 eram os estudantes da Universidade de Oxford obrigados a exprimirem-se em lingua franceza. É esta importante hegemonia o que mais claramente explica o desenvolvimento de todas as Litteraturas romanicas que tiraram d’ella os germens fundamentaes com que elaboraram as suas creações estheticas, na Edade media. Para bem julgar este imponente phenomeno artistico importa conhecer o caracter social ou politico d’essa grande época historica.

Dois poderes preponderaram na reorganisação social da Europa, depois da queda do Imperio: o poder espiritual ou da Egreja catholica e o poder temporal dos chefes militares ou Feudalismo. Em relação ao mundo antigo representam estes dois Poderes um alto progresso, por que se separaram, e nunca mais, apezar das suas mutuas usurpações, conseguiram confundir-se. É este antagonismo intimo que constitue os grandes conflictos symbolisados nas Duas Espadas, ou luctas entre o Sacerdocio e o Imperio. Mas o principal phenomeno social que resultou d’este antagonismo, foi a transformação d’esses mesmos [Pg 185] Poderes: avançando para a affirmação da intelligencia humana, a rasão procura pela critica, pela observação e experiencia um novo poder espiritual na sciencia; por outro lado, a liberdade humana firmando-se na actividade pacifica da industria e mutua regularisação dos interesses tornou cada vez menos necessaria a actividade militar e os chefes feudaes foram fatalmente cahir sob a dictadura ou concentração do poder temporal da Monarchia. Foi pois a Monarchia uma transformação coadjuvada pelas classes industriaes, agricolas e mercantis, por que se absorvia em si todos os poderes era como garantia de tornar a lei egual para todos. Comte formulou esta noção tão clara de toda essa Edade tempestuosa: «Sob qualquer aspecto que se examine o regimen proprio da Edade media, vê-se sempre emanar da separação dos dois Poderes, ou da transformação da actividade militar[101]

O Feudalismo e a Egreja organisaram-se á imitação um do outro, nas suas hierarchias, na mutua dependencia dos seus membros; n’este esforço de se confundirem, desnaturaram-se explorando a sociedade. A Egreja dominava pelo terror moral, o Feudalismo pela compressão material, ambos pelo obscurantismo. Uma tinha a servidão voluntaria (oblatos), o outro a servidão hereditaria (os da gleba); a humildade evangelica e a fidelidade do homem-ligio levavam á mesma negação da dignidade do homem. O papa comparava-se ao sol, como [Pg 186] Gregorio VII, considerando os imperantes como a lua, corpos opacos que só podiam receber a luz ou a investidura soberana de Roma. O papado tornára os reinos da Europa seus feudatarios, cobrando alcavalas em paga das graças espirituaes. Em vez das terriveis pestes, cahiam sobre os estados as tremendas maldições e interdictos da Egreja, que absorvia em si todas as capacidades intellectuaes, tornando inconciliaveis o clericus e o laicus. Tal era a antinomia expressa pelo symbolismo medieval das Duas Cidades. É pois natural que aos primeiros lampejos da rasão, as cousas religiosas decahissem de respeito, sendo parodiadas sarcasticamente pelo povo nas festas grotescas (Missa do Asno, Festa dos Tolos), e pelos cultos nas satyras pungentes e desenvoltas dos Goliardos.

O Feudalismo, apezar de todas as eminentes qualidades da cavalleria e da heroicidade, tornava-se odioso pela intervenção arbitraria da força. Falhando-lhe os motivos da actividade militar pela estabilidade social da Europa sustadas as duas correntes de invasão do norte e do sul, o Feudalismo foi seduzido pela proclamação das guerras religiosas da Cruzada. A Egreja que temia esse rival, pela absorpção das grandes propriedades, lisongeou-lhe o instincto da guerra, soprou-lhe um delirio de fervor religioso lançando-o para a Palestina. É no momento em que o Feudalismo se dissolve, que mais deslumbrante se espalha a sua poesia heroica. Os Barões longe dos seus solares, sujeitos á prescripção adoptada do Direito romano pelos jurisconsultos [Pg 187] ao serviço da Realeza, feridos na sua nobreza pelo registo dos Livros de Linhagens, privados dos seus direitos immemoriaes pela revogabilidade das doações regias, ouviam soar o sino da communa, que era como a trompa de Gedeão, que fazia cahir por terra os seus castellos. É o sentimento da revolta que inspira as Canções de Gesta celebrando a lucta dos Barões contra o poder monarchico; Carlos Magno foi a figura em volta da qual se centralisaram as lendas das revoltas dos grandes vassallos. N’esta dissolução do Feudalismo, e descredito do ideal guerreiro, as Gestas heroicas tornaram-se satyricas; na Italia cantava-se de preferencia as derrotas de Carlos Magno, e as infamias de seus filhos; em França decahiam na prosa novellesca, e desenvolviam-se os episodios da fabula complexa do Renard. Comte tira nitidamente as deducções d’esta crise social:

«Se o estado catholico e feudal tivesse podido persistir realmente, é indubitavel, a meus olhos, que a expansão esthetica dos seculos XII e XIII, teria adquirido pela sua eminente homogeneidade, uma importancia e uma profundidade muito superiores a tudo o que pôde existir depois, sobretudo quanto á efficacidade popular, verdadeiro criterio das bellas artes. Pela transição rapida, e muitas vezes violenta, que devia realisar-se no curso d’este grande periodo revolucionario, e para a qual a progressão industrial tão poderosamente concorreu, o genio esthetico ficou falho de direcção geral e de destino social. Entre a antiga sociabilidade moribunda e a nova muito pouco [Pg 188] caracterisada ainda, elle não pôde bem nitidamente sentir, nem o que sobretudo devia idealisar, nem sobre que sympathias universaes devia principalmente repousar. Tal é, no fundo, a causa progressiva d’esta especialidade exclusiva, que tem até hoje caracterisado a arte moderna, como a industria e como a sciencia tambem, por falta de uma generalidade realmente preponderante. Bem longe de estar degenerado, o genio esthetico tornou-se com certeza mais extenso, mais variado e mais completo mesmo, como nunca o conseguira na antiguidade; porém, apezar das suas eminentes propriedades intrinsecas, a sua efficacidade devia então ser muito menor, em um meio social que lhe não podia offerecer nem a nitidez, nem a fixidez indispensavel para o seu livre desenvolvimento. Obrigado a reproduzir as emoções religiosas ao passo que a fé se extinguia, e a representar os costumes guerreiros a populações cada vez mais entregues a uma actividade pacifica, a sua situação radicalmente contradictoria devia prejudicar-lhe a realidade fundamental dos seus effeitos exteriores, mas tambem a das proprias impressões interiores, até aos tempos ainda remotos em que a regeneração final da humanidade virá offerecer-lhe um meio mais favoravel ao seu pleno desenvolvimento, em consequencia de uma homogeneidade e de uma estabilidade, que nunca puderam existir no mesmo gráo...»[102]

[Pg 189]

Contra o poder espiritual da Egreja, a Realeza torna-se protectora de um ensino geral nas Universidades; e contra os arbitrios feudaes estabelece os Ordenamentos e fixa a esphera dos direitos reaes pela restauração da jurisprudencia romana; os Feudos são equiparados á Emphyteuse e ao Usufructo dos romanos. Por outro lado, este começo de renascimento humanista ataca a idealisação épica medieval, á qual tambem se tornavam hostis os moralistas catholicos. É n’esta instabilidade, que caracterisa o fim da Edade media, que as linguas romanicas se acham aptas para as obras litterarias, mas os themas da idealisação religiosa e heroica acham-se insignificativos para o sentimento.

Comte explica como: «o estado social da Edade media constitue sob todos os pontos de vista, o berço necessario da grande evolução esthetica das sociedades modernas.» E observa como esta longa crise de transição historica, pela instabilidade social não deixou chegar á perfeição os themas artisticos idealisados na poesia moderna: «A expansão esthetica não faz suppôr sómente um estado social bem fortemente caracterisado para comportar uma idealisação energica: exige, além d’isso, que qualquer que fôr esse estado seja bastante estavel para permittir espontaneamente, entre o interprete e o espectador, esta intima harmonia prévia, sem a qual a acção das bellas-artes não conseguiria obter habitualmente uma plena efficacidade. Ora estas duas condições fundamentaes, naturalmente reunidas entre os antigos, nunca mais puderam sêl-o depois em um gráo sufficiente, mesmo na Edade [Pg 190] media,...»[103] «Assim a fonte essencial d’esta singular hesitação social que caracterisa a arte moderna, e que tanto neutralisou até hoje a universalidade necessaria da sua influencia contínua, depois da sua primeira evolução tão firme, tão original e tão popular na Edade media, deve ser directamente procurada na inevitavel instabilidade do estado social correspondente, suscitando sempre novas transições successivas. Uma profunda e perseverante elaboração esthetica era certamente impossivel entre populações em que cada seculo, e algumas vezes mesmo cada geração modificava mui notavelmente a sociabilidade anterior para que cada geração determinada tivesse já essencialmente cessado antes que o poeta ou o artista podessem n’ella contrahir sufficientemente a intima penetração espontanea indispensavel á acção das bellas artes. É assim, por exemplo, que o espirito das Cruzadas, tão favoravel á mais poderosa poesia, tinha irrevogavelmente desapparecido quando as linguas modernas puderam achar-se assás formadas para permittir-lhe a plena idealisação; ao passo que entre os antigos, cada modo effectivo de sociabilidade tinha sido de tal modo duravel, que o genio esthetico podia tornar a sentir e tornar a achar, depois de muitos seculos, paixões e affectos populares essencialmente identicos áquelles de que queria representar o imperio anterior.»[104]

[Pg 191]

Conhecidos os caracteres da evolução historica da Edade media, a separação dos Poderes e a sua transformação, que ainda se exerce na determinação das fórmas compativeis do Poder espiritual e do temporal com a consciencia e liberdade do homem moderno, por um tal processo de dissolução do regimen catholico-feudal se explica a evolução e as vacillações de todas as Litteraturas romanicas. Vejamos agora os themas poeticos com que a França exerceu a hegemonia esthetica sobre essas litteraturas:

a) INFLUENCIA GALLO-ROMANA

(Lyrismo trobadoresco)

No meio da confusão das raças e das invasões dos povos, em que se elaboraram as novas instituições religiosas e politicas que deram á Europa a estabilidade, foram-se creando costumes e as relações de uma pacifica sociabilidade. É então que se quebra esse mutismo, e as novas linguas se exercem no canto, celebrando pela poesia o amor, a galanteria e a confraternidade. A partir do seculo X espalham-se pela Europa esses cantores vagabundos, sahindo da França meridional, do fóco da Provença, levando a todos os povos a boa nova do amor; póde-se dizer que as canções jogralescas vieram desenvolver pela accentuação as linguas romanicas, tornal-as communicativas e escriptas. Tambem nas linguas germanicas esta ideia de que a linguagem começa pelo canto exprime-se em Singuen e saguen, synonimos como o cantar e decir, nos romances hespanhoes. A situação [Pg 192] da Provença favorecera esta influencia esthetica impulsiva. Durante o periodo das invasões dos barbaros do norte, permaneceu quieta a Provença, apenas alvoroçada pela passagem dos Visigodos, que se precipitaram sobre a Peninsula, e pelos Burguinhões então já polidos pela permanencia na Italia. Flor bafejada pela amenidade do meio dia da França, recebendo os restos da cultura grega e da paixão arabe, ella foi como o nectario em que se formou o mel da poesia, que encantou a primeira sociabilidade dos povos da Europa, e que determinou as fórmas do moderno lyrismo. Da lingua usada nas canções dos trovadores, dizia Raymond Vidal: «La parladura ... de Lemosin val mais per far vers et cansons et serventes.» Esta região comprehendia um centro de irradiação commum intermediaria, entre a zona oriental que formam o Auvergne e Velay, e a zona occidental de Poitou, de Saintonge e de Guienne.[105] Escreve Fortoul, fazendo notar a importancia d’este fóco de cultura trobadoresca, em que a burguezia do Limousin, do Périgord e de Quercy, rivalisava com a nobreza na composição das canções amorosas: «No Limousin, em quanto o terrivel Bertrand de Born canta as guerras, que elle ateia constantemente, Giraud de Berneil sáe da condição mais infima para fazer as mais bellas canções de amor, e Bernard de Ventadour aprende ao pé do forno de seu pae a lingua que [Pg 193] o faz brilhar na côrte dos seus senhores, na Hespanha, na Italia; de um lado os senhores de Uisel reunem-se para compôrem as arias e os versos dos cantos que tornam a sua nobre familia celebre; do outro, os joviaes burguezes de Uzerche, Gaucelm Faydit e Hugues de la Bezelaria, espalham na sua cidade e até á Lombardia a fórma do seu espirito cortez e agradavel. O Périgord, mesmo, que com o gentilhomem Arnaud Daniel, leva ao suprasummo as difficuldades e os artificios da versificação meridional, produz operarios como Elias Cairel, bastante feliz para fazer brilhar até na Grecia o esplendor da poesia que elles aprendiam nas lojas de Sarlat.»

No seculo XI acodem os provençaes á côrte de França por occasião do casamento de Constança com Roberto; cento e cincoenta annos mais tarde, já se acham diffundidos pelo territorio francez o mesmo gosto poetico e galanteria provençalesca; usavam-se esses certames poeticos a que concorriam com as suas trovas e canções para celebrarem o casamento dos princepes, ou o gráo de cavalleria que recebiam. Em Italia, segundo Folgore de San Geminiano era do estylo: «Cantar, danzar alla provenzalesca.»[106] Dante, no Convito, queixa-se do emprego immoderado do provençal: «Questi fanne vile lo parlare italico, e prezioso quello de Provenza.» E tão precioso era este modo de fallar provençal, que no Purgatorio, Dante obedeceu á corrente da [Pg 194] época pondo na bocca de Arnaldo Daniello trez tercetos em provençal.

Na Allemanha não era menos conhecida a lingua e a poesia provençal: no poema do Parzival, lê-se que as verdadeiras tradições foram da Provença para a Allemanha.[107] Os trovadores achavam as linguas do norte sem melodia; e Peire Vidal compara-as a ladrar de cães: «E lor parlars sembla lairar de cans.»

Vejamos a irradiação d’este lyrismo para a peninsula hispanica. O governo suave da Provença continuado na mesma familia por mais de duzentos annos, aprimorou a galanteria cortezã, que tanto distingue as canções dos seus trovadores; quando se extinguiu o herdeiro masculino, em 1092, a corôa de Provença passou para o Conde de Barcellona, pelo casamento com a unica herdeira da familia de Borgonha. Os poetas acompanharam a côrte que transpoz os Pyreneos e veiu fixar-se na Hespanha. Um facto semelhante se deu com o casamento dos Condes de Barcellona, que lhes fez pertencer o reino de Aragão. Os reis, que tambem poetisavam em lingua limosina, abriram nas suas côrtes azylo aos poetas provençaes, principalmente depois da cruzada de exterminio contra os Albigenses. O maior elogio que se póde fazer do sentimento e elevação moral dos trovadores é vêl-os abraçarem o partido dos perseguidos. A cruzada contra os Albigenses recebeu um caracter [Pg 195] religioso para lhe imprimirem mais ferocidade, mas era a pressão brutal da França feudal e monarchica do norte contra a França meridional municipalista e semi-republicana.[108] Muitos trovadores se refugiaram na Hespanha, no tempo de Pedro II de Aragão, que morreu em 1213, defendendo a causa d’elles na batalha de Moret. Entre esses foragidos citam-se os trovadores Hugues de Saint-Cyr, Azémar le Noir, Pons Barba, Raimond de Miraval e Perdrigon.

É durante a sua educação na Galliza, que o rei Affonso o Sabio estuda a nova poesia provençal, adoptando o dialecto gallego para as suas Cantigas, por que essa linguagem se achava exercitada na expressão dos mais delicados sentimentos. Em volta de Affonso o Sabio reunem-se os trovadores mais distinctos, sendo elle o mais generoso impulsor da propagação do novo lyrismo. Conforme os centros d’onde irradiava essa poesia, assim ella tinha um caracter mais ou menos aristocratico, mais ou menos popular. Os trovadores da Gasconha, Cercamons, Marcabrun e Peire de Valeira, e por tanto predominando o elemento popular, foram conhecidos em Portugal, prevalecendo o seu gosto nas serranilhas. Marcabrun em uma das suas canções pede a Deus que vele pelo rei de Portugal. De todos os trovadores o que dá prova de ter frequentado a côrte portugueza é Peire Vidal. Estas relações cortezãs explicam-se pelos casamentos reaes; D. Sancho I foi casado [Pg 196] com D. Dulce, filha de Raymundo Berengar, quarto conde de Provença e rei de Aragão. No Nobiliario do Conde D. Pedro citam-se muitos fidalgos com a indicação, foi trobador, e que trobou bem; pertencem a esse numero dos partidarios de Affonso III, que antes da deposição de D. Sancho II se refugiram na côrte de S. Luiz, como os Baiões, os Cogominhos, os Valladares, os Porto-Carreros. O rei D. Diniz, um dos mais fecundos e talentosos trovadores portuguezes estudou conscienciosamente a arte do gai-saber, e, affirmando a superioridade do seu ideal, escrevia: «Quero eu em maneira de Proençal—fazer agora um cantar de amor.» O grande apreço que tanto na Galliza como em Portugal se ligava á nova poesia «esta arte que mayor se llama» como escreve o Marquez de Santillana, fez com que a sua influencia se exercesse sobre toda a Hespanha: «en tanto grado, que no ha mucho tiempo quatesquier Decidores ò Trovadores destas partes, agora fuesen Castellanos, Andaluçes e de la Extremadura todas sus obras componian en lengua gallega ó portugueza[109] Esta poesia começa a florir justamente quando os nossos cavalleiros traziam accesas as almenaras dos castellos roqueiros, e faziam investidas, correrias nas terras dos sarracenos.

Na côrte de D. Sancho I e D. Affonso II os duros guerreiros neo-godos brilhavam com a graça das canções, algumas das quaes se acham no [Pg 197] Cancioneiro da Ajuda. Em uma d’essas canções um cavalleiro allude ao grito de guerra na tomada de Santarem por D. Affonso Henriques. Ajuntára o monarcha alguns cavalleiros, indo com altas escadas atacar o castello de Santarem; era ao quarto de alva e as roldas dormitavam; o rei dividiu a sua comitiva em dois troços, um que investia pelo lado do monte Alphão, e outro que atacava pelas bandas da ribeira ou parte baixa (sesserigo). Ao lançar as escadas, o ruido despertou as roldas do somno, tocaram alarme, e a mourisma deu de repente sobre os poucos cavalleiros que confiavam no seu ardil. N’aquelle transe desesperado foi preciso levar tudo á viva força; os poucos portuguezes venceram. D’ahi o grito de guerra conservado na canção:

Ay Sentirigo! ay Sentirigo,
Al e Alphão e al sesserigo.

Era dever de todo o homem de guerra, como bom cavalleiro, saber brandir uma espada e discretear galantemente com damas; mas n’estes tempos de luctas como a da facção que depoz D. Sancho II, prevalecia principalmente a satyra, como se vê nas coplas contra os Alcaides que entregaram como não deviam os castellos a D. Affonso III. Fallando do Cancioneiro da Ajuda (publicado por lord Stuart em 1823), Frédéric Diez caracterisava as obras d’esta collecção e a época a que pertence: «Se as fórmas poeticas são rigorosamente as dos trovadores, de longe em longe accusam a nacionalidade, mas não deixam suppôr o conhecimento familiar da fórma provençal. Os versos [Pg 198] de dez syllabas predominam nas estrophes, que se correspondem pela rima... Ha uma analogia surprehendente na contextura, e em nenhuma das canções pudemos descobrir vestigios de traducção.»[110] Esta caracteristica de metro define-nos a influencia limosina, que seguiram os nossos trovadores fidalgos. Ainda não imperava a galanteria e o requinte da sensibilidade; só começou com a imitação directa da Provença, na côrte de Dom Diniz, que empregou todos os recursos da arte para exprimir a paixão. As canções provençalescas ou em maneira de proençal dobravam-se a todos os caprichos de uma poetica artificiosa, aos segredos do leixapren e do mansobre, ás exigencias da rima encadeada, aos córtes do verso nos seus hemistichios, para corresponderem ás finas allegorias do sentimento. Depois do direito feudal ter aberto um abysmo inaccessivel entre a castellã e o servo, a canção trobadoresca veiu estabelecer a egualdade perante o amor, conforme a bella phrase de Quinet. O artificio provençalesco não consistia apenas em alardear a plasticidade da lingua rude amoldando-se a todos os requebros, em achar (trouver) os melhores recursos da rima e das combinações estrophicas, mas principalmente em velar ou encobrir o sentimento que fazia com que o apaixonado cantor erguesse os olhos para a castellã orgulhosa. Um compassivo olhar, um leve sorriso precipitava o [Pg 199] scismador em um enlevo ou melancholia eterna, em uma louca inspiração. Todas as emoções estão ali descriptas: o sentimento da propria inferioridade, o olhar generoso que o levantou da terra, a anesthesia das dores por um simples relance descuidado, o receio ou terror de que adivinhem por quem é a absorpção do seu espirito, que o traz de longe, a esperança de a vêr mais de perto e a lembrança angustiosa de uma ausencia forçada, tudo isto vibra na canção provençalesca. Avançava-se para o idealismo neo-platonico, que ia suscitar o superior lyrismo italiano.

No Cancioneiro da Ajuda, imita-se toda essa ordem de sentimentos; não só a lingua, como as fórmas poeticas notadas por Diez, como a natureza dos sentimentos, provam a antiguidade e o valor d’este monumento. Os nossos trovadores tambem se apaixonam por castellãs, sem attenderem ao abysmo que os separava; João Soares de Paiva morreu em Galliza por amores de uma infanta. Na côrte de D. Diniz impera já esta metaphysica amorosa, que elle idealisa artificialmente, fallando do temor do seu segredo amoroso, apezar de ter numerosos bastardos. E levado pela necessidade de variar e vivificar com realidade as fórmas poeticas, é que o rei D. Diniz, seguindo o estylo das pastorellas da eschola de Gasconha, imita as serranilhas populares portuguezas e gallegas, dando assim protecção a todos os jograes das côrtes de Hespanha, que vinham a Portugal como ao centro da mais activa elaboração poetica do seculo XIV. Pela poesia trobadoresca se fazia a unificação affectiva dos Estados livres peninsulares, e Portugal, [Pg 200] como o confessa o erudito Marquez de Santillana, exerceu então pela primeira vez a sua hegemonia. Durante este periodo a poesia provençal recebeu uma transformação profunda na sua essencia; suffocado o esplendor da Provença pela terrivel cruzada contra os Albigenses, esse lyrismo desceu ás classes populares, d’onde primeiro sahira (son veill antic), convertendo-se-lhe agora em um mister lucrativo (os jocistae, joculatores ou jograes, e os ministralles ou menestreis). O jogral substituia o desinteressado trovador: ia de terra em terra acompanhando o cantor apaixonado, apanhando de memoria as canções que lhe ouvia, e repetindo-as depois nas praças, ou nas côrtes, recebendo da multidão a pequena moeda (a poitevine) e da fidalguia pannos e cintos. É frequente encontrarem-se protestos dos trovadores contra esta exploração jogralesca; Astorga, no seu Poema de Alexandre, tem medo que o tomem por um jogral, e diz: «Mester trago fermoso, no es de ioglaria.» Em uma das suas canções o rei Dom Diniz confessa que celebra os seus amores sem se parecer em nada com esses que «troban no tempo da frol.» Mas a invasão jogralesca era uma consequencia da vitalidade esthetica acordada na alma moderna. No Cancioneiro da Vaticana encontram-se a par de reis, de infantes e fidalgos, numerosos jograes; taes são Affonso Gomes jograr de Sarria, Ayres Paes jograr, Diogo Pezelho jograr, Lopo jograr, que se destacam tambem d’entre clerigos e burguezes. A casuistica amorosa vae encontrar nas fórmas jogralescas moldadas sobre o typo da canção popular, extraordinarias bellezas de simplicidade [Pg 201] natural e de riquezas tradicionaes. Assim no momento em que o lyrismo moderno ia receber na Italia a sua fórma litteraria, tocava as fontes vivas da tradição poetica occidental.

O apparecimento da poesia dos trovadores e a sua rapida diffusão nas Litteraturas romanicas e germanicas, só se torna claro pelo conhecimento de um fundo commum tradicional, que já está achado. Circumstancias accidentaes, como a commoção social provocada pelas Cruzadas, n’isso influiram tambem, despertando a curiosidade das classes elevadas, que fixaram essa poesia na fórma escripta. Em quanto duraram as expedições da Palestina, (1095 a 1290) a poesia trobadoresca attingiu o seu maximo esplendor; n’este periodo expandia-se a vida burgueza ou propriamente a classe media, que se tornou a base estavel da sociedade moderna. Terminadas as Cruzadas, e tendo por tanto a Realeza de concentrar em si a dictadura pela decadencia necessaria do poder senhorial, envolveu tambem n’essa absorpção muitas garantias locaes. A França do norte abafando o municipalismo do sul, a poesia provençal extinguiu-se, voltou outra vez para o coração do povo, levando-a os jograes por todas as côrtes da Europa. Podem-se determinar trez periodos a esta efflorescencia lyrica:

Tradição e Nacionalidade, em que a poesia é conservada oralmente, nos antigos cantos populares gaulezes, no centro ethnico da Aquitania, com relações intimas com as pastorellas italianas, com as baladas provençaes e com as serranilhas [Pg 202] portuguezas. O caracter de nacionalidade chegou a accentuar-se no uso que d’esta poesia fizeram os trovadores, defendendo a liberdade municipal e proclamando a revolta.

A sua diffusão penetrou como corrente de distincção aristocratica em todas as côrtes da Europa, chegando até á Inglaterra e á Allemanha; porém no Meio Dia volvia outra vez para o povo, e pela exploração jogralesca se aproximava por simplificação do primitivo typo tradicional.

Uso e imitação, nos divertimentos litterarios palacianos; os proprios monarchas a reproduziam e a protegiam como uma distracção culta, como um pretexto de galanteria. Pela necessidade de renovar os artificios da metrica trobadoresca, de que se havia codificado numerosas regras, o desejo da novidade levou á imitação de todos os segredos technicos e por fim á renovação inconsciente do typo tradicional, que transparece na fórma litteraria dos Cancioneiros aristocraticos.

Na Italia foi outra a corrente; da casuistica sentimental dos trovadores o genio italiano transitou para um desenvolvimento subjectivo, fecundando-o pela abstracção philosophica; as Litteraturas romanicas pela influencia do dolce stil nuovo fixaram sobre os rudimentos trobadorescos as fórmas definitivas do lyrismo moderno.

[Pg 203]

b) INFLUENCIA GALLO-FRANKA

(Gestas ou Epopêas medievaes)

As condições de ordem e estabilidade na Europa datam do apparecimento e acção historica de Carlos Magno; sustaram-se as invasões, e o Feudalismo foi gradualmente cahindo diante da crescente dictadura monarchica. É essa lucta dos grandes vassallos contra a realeza, que se torna o thema fundamental das Epopêas ou Canções de Gesta, que se produziram depois da completa fusão do elemento gallo-franko, como synthese da nova nacionalidade—a França. O typo lendario de Carlos Magno centralisou na imaginação poetica esta lucta da realeza, que durou seculos. A fórma cyclica d’essas composições narrativas e a independencia e superioridade politica do franko, bem mostram que essas epopêas, ainda não totalmente individuaes, são as Cantilenas germanicas agrupadas em torno de um mesmo vulto historico, pelo syncretismo dos factos e das épocas, que é um dos processos espontaneos da tradição. Segundo os medievistas Paulin Paris e Léon Gautier, nas Gestas francezas é germanica a ideia da guerra, da realeza, do feudalismo, dos symbolos juridicos, da mulher e da divindade. Os textos de Tacito e de Eghinard provam a primitiva commoção historica do modo mais completo, e ao mesmo tempo a persistencia das Cantilenas germanicas durante a primeira raça, cantadas em lingua vulgar, como vêmos pelo principal monumento, a Vie de Saint Faron, do seculo [Pg 204] VII. A figura imponente de Carlos Magno syncretisando em si todas as individualidades heroicas, que se manifestaram ainda depois d’elle, veiu imprimir a essas Cantilenas um caracter historico, dar-lhes um agrupamento cyclico e uma expressão nacional.

As primeiras Gestas que circularam na Europa foram a Chanson de Roland, a de Girard de Rousillon, a de Ogier le Danois, a de Raoul de Cambrais e de Aliscamps. Este periodo de assombrosa elaboração épica deu-se do principio do seculo XII até 1328. Estas datas são capitaes para nós, por que abrangem o periodo organico da nacionalidade portugueza. Era impossivel que n’estes annos de aspiração autonomica, em que o conde francez D. Henrique imitava as instituições carlingias, como os Missi dominici, em que buscára apoiar-se em colonias frankas, em que os Bispos, que representavam então o maximo poder espiritual e eram os defensores civitatum, vinham tambem de França, impossivel seria que não chegasse a Portugal essa floração poetica das Gestas heroicas. O nome de Gesta e Estorea, significando a poesia épica na Peninsula, e a referencia á maestria de Francia, indicam-nos, que se deu uma intercorrencia da poesia narrativa dos troveiros com a subjectiva dos trovadores. Emquanto estes cantavam nas côrtes e solares feudaes, os troveiros recitavam nas praças, d’onde muitas vezes a auctoridade os repellia ou obrigava a pagarem um imposto.

As tradições épicas do norte da França espalharam-se em Portugal no tempo de D. Affonso Henriques, pela passagem dos cavalleiros que iam [Pg 205] por mar á Palestina. Esses cavalleiros, ávidos de aventuras heroicas, o ajudaram a conquistar Lisboa, e no descanso do arraial se desenfadavam com as suas tradições guerreiras.[111] Na Chronica Gothorum, as phrases referentes a D. Affonso Henriques clarus ingenio e lingua eruditus, coadjuvam em parte a tradição de que este primeiro rei portuguez fôra poeta. A sua côrte, apezar dos continuos trabalhos da guerra, foi abrilhantada pelos costumes da galanteria provençal; casado com uma princeza italiana (Mahaut) não nos admira que as canções de Sordello de Mantua e de Bonifacio Calvo fossem conhecidas em Portugal. Mas sobretudo as suas preferencias deviam de ser pelos cantos épicos; as epopêas heroicas desenvolvidas pelo genio francez não puderam encontrar na Peninsula condições para se implantarem, por lhe faltarem uma classe feudal independentemente organisada, e por ser excessiva a admiração pela cultura latina, que se tornou uma distincção na aristocracia e alto clero.

A tradição épica da Edade media não foi extranha a Portugal; na [Pg 206] Chronica de Turpin, acha-se citado o nome de Portugal.[112] Infeliz lembrança teve o pseudo-chronista, por que pretendendo dar-se como contemporaneo de Carlos Magno, a designação Portugal desconhecida em todos os documentos anteriores a 1069, descobre o intuito da falsificação.[113] Segundo Fauriel, na gesta de Fier-à-bras ha o retrato allegorico da rainha D. Thereza.

Na analyse do poema, escreve: «Creio entrevêr em algumas particularidades e no desfecho do romance de Fierabras, uma allusão romanesca á creação do reino de Portugal. Affonso VI, rei de Castella, conquistou em 1093 aos Arabes uma parte dos territorios entre o Douro e o Tejo, e d’elles fez um Condado, que deu com uma de suas filhas a Henrique de Borgonha, joven e valente senhor que viera em seu auxilio d’além dos Pyreneos; este Condado chamado Porto-Cale, do nome da sua capital, engrandecido pelas conquistas do seu primeiro senhor, veiu a ser o reino de Portugal. Entre a fundação d’este Reino e o desenlace do Fierabras, não ha, é verdade, relação alguma de datas ou de pessoas; mas cumpre considerar, que para os romancistas dos seculos XII e XIII, toda a historia tanto nacional como estrangeira, se reduz a algumas tradições cada vez mais alteradas e falsificadas, sobre as quaes bordaram sem escrupulo, sem outro designio mais do que [Pg 207] o de exaltar as imaginações contemporaneas. Fazer de Portugal um reino de Agramene; de um Henrique um Gui de Borgonha; de uma filha de Affonso VI uma princeza sarracena convertida; transportar para o VIII seculo um acontecimento do seculo XI, tudo isto é quasi historico para qualquer d’estes romancistas.»[114] O caracter altivo de D. Thereza, tal como se conserva na historia, está em harmonia com o retrato de Floripar feito no poema; isto comprova o juizo de Fauriel: «que não ha epopêa primitiva que não seja por algum ponto a expressão de um acontecimento ou de uma ideia.»

Em uma citação do Livro de Linhagens, em que se allude aos Doze Pares, encontra-se o vestigio das Gestas francezas: «muitos ricos-homeens que iam para lhes acorrerem disseram a elrey dom Fernando, que nunca virom cavalleiros nem ouviram falar que tam soffredores fossem e pozeram-nos em par dos Doze Pares[115] A creação dos Doze Pares apparece nas mais antigas Canções de gesta franceza, taes como a Chanson de Roland, a Viagem a Jerusalem e em Renaud de Montauban.[116] O texto em que se faz a referencia aos Doze Pares é do principio do seculo XIV; por tanto é natural, que qualquer d’essas trez epopêas fosse conhecida em Portugal. Nos Karlamagnus Saga, Gui de Bourgogne, Otinel, Fierabras, Simon de Pouille, Ogier [Pg 208] le Danois, Huon de Bourdeaux, Galien Restoré, cita-se a instituição dos Doze Pares; estes poemas como mais modernos pouco teriam influido para a vulgarisação da lenda carlingia em Portugal, em um tempo em que começava o perstigio dos poemas da Tavola-Redonda.

Na sepultura do cavalleiro Rodrigo Sanches, morto na Lide do Porto em 1245, batendo-se a favor de D. Sancho II, gravaram-lhe um epitaphio, comparando-o a Roland:

Belliger insignis fuit hic cunctis et amandus,
Laudibus ex dignis, alter fuit hic Rotulandus.[117]

Eghinard escrevera este nome Hruodland, e Radulphus Tortarius Rutlandus, e acha-se na canção de Guerau de Cabrera na fórma Rotlon (Roldão na linguagem popular portugueza, como synonimo de valentão.) Ainda na côrte de D. Diniz eram lembradas as Gestas carlingias, como se vê pela canção de João Baveca:

e ora per Roncesvales passou
e tornou-se do Poio de Roldan.
(Canc. Vat., n.o 1066.)

Reflectiu-se este cyclo épico nos cantos populares portuguezes; nos romances que fallam da derrota de Roncesvalles, allude-se a uma [Pg 209] expressão franceza: «Nos portos de mal passar.»[118] N’este sentido de desfiladeiro, fauce entre dous montes, significando a passagem dos Pyreneos, usa-a a Chronica de Turpin, e vem no Roman de Garin: «As ports d’Espagne s’en est entrez Roland.» A influencia popular conhece-se principalmente como foram aportuguezados os nomes dos heróes épicos francezes: Roland é Roldão, Renaud de Montauban, Reinaldo de Montalvão; Ogier le Danois, Dones Ogeiro e Ogeiro o Dão; Olivier, Oliveiros; Bauduin de Vannes, Valdevinos (na giria popular, vagabundo, tunante); Richer, Ricardo; Garin de Monglave, Garinos; Naimes le Bavarois, Duque Maime; Gaifier de Bordeaux, Gaifeiros; Didier, Dirlos; Huon, Dudão; Eghinard, Eginaldo, Gerinaldo e Reginaldo; Aude, a namorada de Roland, Alda; Floripar, Floripes; Fierabras, Ferrabraz (valentão roncador).

O rei D. Affonso III, que residira quando princepe alguns annos na côrte de França, imitou na sua côrte as festas poeticas que lá admirára. Nos festejos que se fizeram em Melun, quando D. Affonso foi armado cavalleiro, o rei S. Luiz deu cincoenta libras aos menestreis que a elles assistiram; vinte menestreis se acham inscriptos nos Documentos para a historia de França.[119] É evidente que a influencia da poesia franceza se havia de reflectir na côrte de Portugal; assim [Pg 210] no Regimento da Casa real manda D. Affonso III, que estejam sempre trez jograes ao serviço da côrte, e prescreve o numero dos jograes e dos segreis que venham de longe aos quaes se dará agasalho. As Canções de Gesta caminhavam para a inevitavel decadencia, e este mesmo reflexo vêmos em Portugal na parodia feita por D. Affonso Lopes de Baião de uma Gesta franceza em uma metrificação de doze syllabas, em longas tiradas monorrimas, e com a celebre neuma AOI (seculorum amen) com que terminavam as estrophes longas da Chanson de Roland. No Cancioneiro da Vaticana foi colligida essa composição singular da Gesta de Maldizer, em que o fidalgo Baião, da côrte de D. Affonso III, ridicularisa um cavalleiro Dom Velpelho (de Vulpecula, a raposa), talvez um dos vencidos do partido de D. Sancho II. Aqui o que nos interessa é a prova clara do conhecimento da fórma litteraria das Canções de Gesta.

Na descripção da batalha do Salado, de Rodrigo Yanes, alludem-se aos personagens do cyclo franko:

Nin fue mejor cavallero
El arçobispo Don Turpin,
Ni el cortés Olivero,
Ni el Roldan paladin.
(St. 1739.)

A çanfonha era o instrumento que acompanhava a recitação das Gestas; o seu uso, peculiar aos primeiros seculos da monarchia, e ainda [Pg 211] hoje popular na Galliza, leva-nos a inferir que tambem as Gestas seriam cantadas por esse tempo. Em um manuscripto da Edade media, descreve-se a Çanfonha: «Chama-se em França Cymphonie um instrumento que os cegos tocam cantando a Canção de Gesta, e tem este bello instrumento doce som, e mui agradavel de ouvir.»[120] Quando o rei D. Pedro I prohibiu os instrumentos musicos que não fossem a trompa ou a corneta, para não se effeminarem os animos, seguia as disposições da Egreja exaradas nas Summas do seculo XII. Escrevia Guillaume Perrauld, na Summa Vitiis: «O ouvir Canções é muito para se temer... Tambem são muito para se temer os instrumentos musicos, pois tocam e amolecem os corações humanos.»[121] Em uma Summa de Penitencia prega-se a maior complacencia para os jograes que cantam Canções de Gesta, e condemnam-se os que cantam cantilenas lascivas. Tambem nas Leis de Partidas, que estavam em vigor em Portugal, prohibe-se a todo o bom cavalleiro o ouvir canções quando ellas não forem de feitos de armas.

No seculo XV as Gestas dissolviam-se em chronicas historicas; ainda assim, acha-se citada por Azurara a Gesta sobre o Duque Jehan de Lanson, «ca sem embargo de se em todollos regnos fazerem geeraaes cronicas dos rex d’elles, nom se deixa porem de screver apartadamente [Pg 212] os feitos dalguns seus vassalos, quando o grandor he assy natural de que se com razom deve fazer apartada scriptura; assy como se fez em França do duc Joham de Lançam[122] Azurara alludia a uma Gesta carolina do seculo XIII pensando que se referia a uma chronica; o mesmo succedeu a Philippe de Mouskes, na sua Chronica rimada, que resumiu essa gesta attribuindo-lhe valor historico. Foi talvez Portugal o unico paiz que ouviu fallar da Chanson de Jehan de Lanson, apezar do que d’ella diz Léon Gautier: «Poucas canções ha que tenham tido popularidade menos vasta e menos duravel. As nações estrangeiras não parecem tel-a conhecido, e não existe d’ella versão em prosa.»[123] Mas não bastou a Azurara o cahir no mesmo erro de Philippe de Mouskes; comparou esta Gesta que idealisa um traidor, e em que é Carlos Magno exposto ao mais pungente sarcasmo, á bella Chronica anonyma do Condestavel, identificando-o com o typo do heroe-santo.

Não admira; no seculo XV começava o perstigio da erudição latina, e o desprezo pela Edade media; e na época da Renascença os heróes das Gestas são conhecidos em Portugal através da corrente italiana, pelos poemas de Pulci, Boiardo e Ariosto. Esta influencia italiana é evidente em Sá de Miranda, que cita Turpin, Roland e Ogier le Danois, pela leitura d’esses poetas:

[Pg 213]

Grandes cosas se cuentan de como a escuras
D’aquelles tiempos de vista Turpino
A estranos cuentos orejas seguras.
El hadado Roldan, Reynaldo, Dino,
Que le fuera fortuna mas cortés
De sus riquezas, un tal Paladino.
Rogel, del ingenioso ferrarez,
Tanto alabado en tan sabroso estillo,
Astolpho aventurero y vano ingles.

Camões tambem conhecia esse cyclo épico das Gestas francezas através da influencia italiana, desprezando diante da sublimidade dos factos historicos dos portuguezes as façanhas do vão Rogeiro,—«E Orlando, inda que fôra verdadeiro.» Era corrente entre os eruditos da Renascença, como vêmos em Luis Vives, desprezar os poemas da Edade media.

A propria França chegára ao esquecimento total das Gestas, depois de uma decadencia successiva, já pelo agrupamento cyclico, já pelo syncretismo com os poemas de aventuras, e finalmente pela sua dissolução em prosa com pretenções a chronica. D’onde proveiu esta decadencia, não já entre os povos romanicos, mas n’aquella mesma nação que elaborou toda a poesia das Gestas? Comte viu claro, quando esboçou a dissolução do regimen catholico-feudal, e explicou o desprezo em que ficaram os themas poeticos de uma edade que desapparecia; o juizo do philosopho foi mais tarde confirmado pelos eruditos. D’Héricault, no seu Essai sur l’origine de l’Épopée française, accentua a mesma causa: «A nossa epopêa nacional fôra engendrada por uma [Pg 214] série de factos, de personagens de uma ordem particular, que tinha desapparecido no seculo XIII. As circumstancias politicas, o estado da sociedade, as tendencias das ideias e dos costumes, a fusão das raças, as victorias alcançadas pelo espirito do catholicismo sobre os restos da barbarie, todo o conjuncto da vida da França tinha tirado a estes factos e a estas individualidades o seu vivo interesse. Já não tinham mais razão de ser, não eram comprehendidos e não podiam por consequencia vir renovar incessantemente a fonte da poesia a que elles tinham dado nascimento.» E mostrando como um outro estado de consciencia, em uma nova éra social, exigia outras fórmas de idealisação, continúa o mesmo critico: «Mas, á medida que se afastavam d’este periodo barbaro, os caracteres humanisaram-se, os espiritos educados em outro meio social, admittiram outras bellezas. Do seu lado, a memoria esquecia a significação precisa d’estes acontecimentos de outra edade. O poema puramente militar teve de desapparecer e com elle a invenção ingenua dos typos unicamente guerreiros, dos caracteres selvagens e grandiosos, personalidades simples, sem meias tintas e sem flexibilidade. As feridas, as ondas de sangue, todas as peripecias de uma batalha ou de um combate singular tornavam-se insufficientes emquanto a interesse, desde que já se não via nos heroes em acção mais do que titeres de ferro.» Por esta falta de interesse, consequencia de um outro estado social, as Gestas guerreiras foram substituidas pelos poemas das aventuras de amor. D’Héricault explica o advento [Pg 215] d’esta corrente poetica: «Afastando-se dos factos creadores da poesia, e não ligando seriedade ao papel de chronistas, os troveiros viam-se desapossados d’esta fórma naturalmente dramatica, d’esta acção ingenuamente interessante, d’esta marcha viva que a Canção de Gesta devia á sua preoccupação de imitar os aspectos da historia. O cyclo carlingio estava então exposto a perder o sôpro épico, e accumulava, para o substituir, logares communs, declamações que lhe eram indicadas pelo seu genero, duello entre guerreiros, injurias contra Carlos Magno, exposição da doutrina christã a um sarraceno, confusão geral entre christãos e pagãos, etc. Foi n’este declive que o valente Rei Arthur e os seus cavalleiros vieram suster os guerreiros do Imperador da branca barba. O cyclo da Tavola Redonda acordou a imaginação dos troveiros francezes, e lançou a epopêa em uma via nova, em que a dirigiu impondo-lhe as suas sympathias, a sua arte e as suas fórmulas. Foi principalmente por meio d’estes dois perstigios de predilecção—a mulher e o maravilhoso, que elle revolucionou o nosso genio, triumphou da Canção de Gesta e poz em debandada os Doze Pares.—A poesia do amor tendia assim a substituir a poesia da guerra.»[124]

Quando em França se dava esta decadencia das epopêas feudaes, muito mais profunda foi ella entre os povos que tiveram heróes nacionaes [Pg 216] a idealisar, como o Cid em Hespanha, ou que desconheceram o feudalismo, como a Italia e Portugal. Os poemas de amor exerceram uma acção profunda nos costumes das classes elevadas, foram lidos com encanto e deram origem ás Novellas cavalheirescas, que luctaram com vantagem contra a corrente classica.

c) INFLUENCIA GALLO-BRETÃ

(Poemas e Novellas da Tavola Redonda)

A grande raça celtica que occupou todo o Occidente, possuia como as outras raças com que se fusionou, profundos elementos de poesia tradicional. Porém esta poesia só nos apresenta vestigios depois do seculo VI, em um pequeno grupo celtico, que escapou á conquista e absorpção dos Romanos e dos Saxões, e até certo ponto resistiu ás doutrinas do christianismo. Esse grupo celtico, que veiu enriquecer as litteraturas da Europa com novas tradições poeticas, que seduziram todas as imaginações depois do seculo XII com as encantadoras ficções da Tavola Redonda e do Santo Graal, compõe-se dos habitantes do paiz de Galles ou Cambria e da peninsula de Cornwall (os antigos Kymris), dos da Bretanha franceza (a Armorica), dos Gaëls do norte da Escossia, e ainda da Irlanda. Do isolamento que este grupo celtico conservou diante da conflagração dos povos desde as conquistas dos Romanos até ao fim das invasões germanicas, escreve Renan: «Nunca familia humana viveu mais isolada do mundo e mais [Pg 217] pura de toda a mestiçagem estrangeira. Confinada pela conquista em ilhas e peninsulas esquecidas, ella oppoz uma barreira inaccessivel ás influencias exteriores; tirou tudo de si propria, e viveu com os seus recursos. D’aqui esta potente individualidade, este odio ao estrangeiro, que até hoje, tem accentuado o traço caracteristico dos povos celticos. A civilisação de Roma apenas os attingiu, deixando entre elles poucos vestigios. A invasão germanica repelliu-os diante de si, mas não os penetrou.»[125] É natural que o elemento kymrico, na Bretanha insular, conservasse mais intensa a memoria das suas tradições; e que a Bretanha continental, ou a Armorica, as renovasse mais tarde, pela relação entre os dois paizes, dando-lhes esse relêvo poetico com que deslumbraram a Europa no seculo XII. Dois periodos de elaboração se destacam historicamente; um, que começa no seculo VI da nossa éra, quando se vulgarisam os cantos dos bardos Taliesin, Aneurin e Liwarc’h-Hen, e se escutam as melodias da chrota britana, os Lais amorosos, e os Contos maravilhosos do Mabinogion; o outro é principalmente litterario, idealisando as aventuras guerreiras de Arthur, os amores de Tristão, de Lancelot, de Merlin, creando por effeito da propaganda christã o cyclo dos poemas do Santo Graal. Se o elemento tradicional foi principalmente elaborado na Bretanha insular, na Bretanha franceza é [Pg 218] que esses themas tiveram o seu desenvolvimento artistico, espalhando-se pelos menestreis normandos por toda a Europa. Renan define essa primeira época de revivescencia poetica da raça celtica: «O sexto seculo foi para as raças celticas esse momento poetico do despertar, e da sua primeira actividade. O christianismo, recente ainda entre ellas, não tinha completamente abafado o culto nacional; o druidismo defende-se em suas escholas e nos seus logares consagrados; a lucta com o estrangeiro, sem a qual um povo nunca chega á plena consciencia de si proprio, attinge o seu mais alto gráo de vivacidade.—O sexto seculo, é effectivamente, para os povos bretãos um seculo perfeitamente historico.»[126] Basta-nos fixar esta época para determinar desde quando se espalham os cantos lyricos bretãos, que adquiriram um certo interesse até ao ponto de se desenvolverem em poemas de aventuras. As melodias e instrumentos musicos bretãos, como a rhota britana, citada nos versos de Venancio Fortunato, são levados por todas as côrtes da Europa por cantores vagabundos, desde o seculo VI até ao XII seculo. Falla-se no poema de Guillaume au Court-nez, no prazer de ouvir cantos bretãos entre os prazeres do vinho e da caça. Eram esses cantos os Lais, principalmente agradaveis ás mulheres, como o revela Denys Pyramus: «Lais soulent as dames plaire.» Juntamente se espalhavam os cantos narrativos, a que se [Pg 219] chamava Bairtni, designação que se encontra no Arcipreste de Hita como nome de um instrumento musico, e que o rei Dom Duarte, no Leal Conselheiro emprega como o narrador de contos: «em tal maneira que não pareça que os albardões tem mais sabedoria que nós, por que elles nom se trabalhom d’arremedar as estorias melhores, mas que lhe som mais convenientes.»[127] A palavra albardeiro, empregada por Gil Vicente como exprimindo a sua vêa comica parece ligar-se a esta funcção narrativa; assim como as palavras Fatiste no tempo de Francisco I significando compositor «de jeux et novalités»[128] e o portuguez Fadista, cantor de narrativas, se ligam ao nome de Faith, dado na Irlanda aos cantores ou vates. O bardismo, perdido já o seu caracter sacerdotal, conservou-se como um mister de cantores vagabundos: «instituição que atravessou seculos e tornou-se uma feição caracteristica dos costumes gaulezes e irlandezes da Edade media,»[129] como o affirma Belloguet. Ao colligir as leis consuetudinarias cambrianas, no seculo X, estatuia Hoel o Bom ácerca d’estes Bardos: «Quando a rainha quizer ouvir um canto, o bardo domestico será obrigado a cantar um á sua escolha, mas em voz baixa, ao ouvido para que a côrte não seja perturbada.» Com o nome de Segrel (de Secretela, na baixa latinidade) [Pg 220] encontra-se nas côrtes peninsulares uma classe de cantores que não são nem jograes, nem trovadores. Pela caracteristica do canto modulado em voz baixa, como se exige nas Leges Walliae, e pela frequencia dos Lais, que achamos citados nos Cancioneiros portuguezes, este nome de Segrel designa o cantor das melodias bretãs. Já no seculo XII o trovador Geraud de Riquier fallava d’esta classe de cantores da côrte: «E ditz als trobadors—Segriers por totas corts.» E no Regimento da Casa de D. Affonso III, de 1245, acha-se estabelecido: «Elrei aia trez jograres em sa casa e nom mais, e o jogral que veher de cavallo d’outra terra, ou segrel, lhe dê elrei ataa cem (maravedis?) ao que chus der, e nom mais, se lhe dar quizer.»[130] Muitos trovadores portuguezes alludem a este nome; como Affonso Eanes de Coton:

a todo o escudeyro que pede don
as mays das gentes lhe chamam segrel...
(Canç. 556)

Abril Peres, satyrisando Bernal de Bonaval, refere-se á situação de dependencia do segrel (Canção n.o 663); e o jogral Picandon, respondendo a um apodo de João Soares Coelho, exalta a sua categoria dizendo:

gram dereyt’ey de ganhar dões,
e de seer en corte tan preçado
como segrel...........

[Pg 221]

A estas melodias bretãs refere-se o trovador catalão Guerau de Cabrera, como um talento distinctivo: á tempradura de Breton; e no romance de Raoul de Cambrai aponta-se os musicos bretãos como os melhores: «Harpent Bretons et viellent jougler.» E no Lai de l’Épine, de Marie de France, cita-se o lai d’Aielis cantado por um irlandez ao som da rota bretã:

Le lais d’Aielis
Que uns Yrois doucement note
Mont le sonne ens sa rote.

Vê-se que a fórma lyrica bretã do Lai, que encantava a Europa, tinha tambem de reflectir-se em Portugal; o trovador Gonçalo Eannes do Vinhal allude á imitação constante de cantares:

senon aquestes de Cornualha,
mays estes seguidos ben sem falha,
e nom vi trobador per tantos logares.
(Canç. 1007.)

Em uma canção de Fernão Rodrigues Redondo, (n.o 1147) refere tambem esta fórma: «Muy ledo seend’hu cantara seus lays...» O lay tornou-se narrativo, vindo a desenvolver-se nos longos e interessantes poemas de aventuras e amores. No Cancioneiro Calocci-Brancuti foram colligidos cinco Lais, dos que estavam mais em voga na côrte de D. Diniz; são o Lai de Elis o Baço, trez de Don Tristan, [Pg 222] e o Lai das Quatro Donzellas. No Poema de Alfonso Onzeno, do seculo XIV, falla-se em: «la farpa de Don Tristan

O enthuziasmo pelos cantos lyricos provocou o seu desenvolvimento em poemas narrativos da Bretanha; assim, figuras quasi sem realidade historica, como o rei Arthur, servem de thema ás ficções da Tavola Redonda, e ás reminiscencias das luctas da nacionalidade celtica contra os Romanos e Saxões; e Merlim, ultimo vestigio da resistencia do druidismo contra o christianismo, não achando mais interesse nas prophecias, torna-se o amante da fada Viviana; os amores de Tristão e de Yseult, de Flores e Brancaflor fascinam todos os povos da Europa, e para satisfazer esse interesse, desenvolvem-se em extensas novellas. É na Bretanha continental que estes assumptos são elaborados no seculo XII, e propagados pelos Normandos: «Cousa estranha! foram os Normandos, isto é, de todos os povos o menos sympathico aos Bretãos, que espalharam a fama das fabulas bretãs. Espirituoso e imitador, o Normando tornou-se por toda a parte o representante eminente da nação á qual anteriormente se impuzera pela força. Francez em França, inglez em Inglaterra, italiano na Italia, russo em Novegorod, o normando esqueceu a sua propria lingua para fallar a lingua do povo que elle tinha vencido e tornar-se o interprete do seu genio. O caracter vivamente accentuado dos romances gaulezes não podia deixar de ferir homens tão promptos a apanhar e assimilar as ideias do estrangeiro. A primeira revelação das fabulas bretãs, a Chronica latina de Geoffroy de [Pg 223] Monmouth, appareceu por 1137, sob os auspicios de Robert de Glocester, filho natural de Henrique I. Por estas mesmas narrativas se apaixonou Henrique II, e a seu pedido Robert Wace escreveu em francez, em 1155, a primeira historia de Arthur, e abriu a marcha a que se arrojou uma multidão de poetas ou de imitadores francezes, provençaes, italianos, hespanhóes, inglezes, scandinavos, gregos, georgianos, etc.»[131]

Os elementos d’estes poemas são vagos dados historicos, que pela sua obscuridade foram desenvolvidos em lendas, que se ampliaram depois em phantasias poeticas; esses dados historicos resumem-se em dois factos, um politico, que se refere ás luctas com que o rei Arthur sustentou a liberdade nacional da Bretanha contra a invasão dos Saxões; o outro é religioso, consagrando a resistencia com que a Bretanha se considerava christã pela doutrinação evangelica de Joseph ab Arimathia, e por tanto independente da Egreja de Roma á qual se tinham convertido os Saxões. Tal é o dado essencial dos poemas do Santo Graal e da Cavalleria celeste, que deriva d’essa autonomia das Egrejas nacionaes da Francia meridional e da Hespanha, que se consideravam proto-cathedricas. Foram os Normandos que se apropriaram d’estes germens épicos da Bretanha insular e lhe deram o brilhantismo com que seduziram o mundo; e por isso mesmo que essas tradições não eram suas, mais as diluiram no vago, no maravilhoso, [Pg 224] fazendo o syncretismo de todas as ficções provenientes de varios povos pelo encontro das Cruzadas, pelas relações com os Arabes, pela leitura da Biblia e dos escriptos dos rabbinos convertidos e já pela erudição da Antiguidade classica.[132] Os Normandos, occupando a Inglaterra, pareciam aos Bretãos como que os seus vingadores sobre os seus antigos dominadores Saxões: «os Bretãos não estiveram longe, se dermos credito a algumas indicações contemporaneas, de vêrem no vencedor de Harold um libertador, quasi uma incarnação do rei Arthur. Os companheiros de Guillaume podiam então acceitar, como cantos de sua propria gloria, as tradições poeticas creadas pelo odio ao Saxão que elles acabavam de vencer pelas armas, mas que não estavam ainda subjugados nem socialmente, nem politica, nem religiosamente. Qualquer que fosse a sympathia que os novos conquistadores pudessem sentir pela poesia das populações indigenas, qualquer que fosse a relação que taes lendas pudessem ter com o seu proprio genio, elles eram sempre estrangeiros, estrangeiros orgulhosos, e arrogando-se o direito de tratarem como senhores a litteratura bretã. A lingua empregada n’esta litteratura não lhes era familiar, a significação d’estas tradições era para elles obscura, e não comprehendiam bem o alcance philosophico e patriotico; não penetravam todo o conjuncto dos cantos dos bardos, e o vago que era inherente a estes cantos tornava-os mais obscuros, e [Pg 225] para elles os fazia ainda mais ideaes.»[133] Era esta situação que dava aos troveiros normandos a liberdade de crearem sobre vagos nomes de heroes e de symbolos nacionaes essa riqueza phantastica dos poemas da Tavola Redonda e do Santo Graal, confundindo com figuras historicas fadas, gigantes, anões e adivinhos, animaes monstruosos, dragões, bebidas magicas e philtros amorosos, encantamentos, e poderes talismanicos das espadas invenciveis. Compondo especialmente para as côrtes, exaltavam a galanteria e tornavam-n’a o culto da mulher, aproveitando assim a tendencia iniciada pela idealisação dos trovadores. O symbolismo da Cavalleria, dos passos de armas, dos torneios, dos votos denodados, lisongeava a paixão dos Barões feudaes, que iam decahindo diante da crescente dictadura monarchica. E como as Cruzadas acabavam, a imaginação dos nobres precisava de uma outra cruzada, a da Cavalleria celeste em procura do Santo Graal, vindo assim a confundirem-se os dois cyclos poeticos, mais mysticos nos poemas dos minnesingers allemães, mais guerreiros e amorosos entre os troveiros francezes. Essa fecundissima actividade poetica que veiu sobrepôr-se á imitação das Canções dos trovadores e á attenção pelas Gestas frankas, espalhava por toda a parte os romances da Tavola Redonda, em prosa: o Santo Graal e Demanda do Santo Graal, o Tristão, Lancelot, Merlin, Morte de Arthur, Giron le Courtois, Palamedes, [Pg 226] Meliadus; e em verso os romances do Perceval le Gallois, La Charrette, Chevalier au Lion, Erec et Enide, Cliges, Loucura de Tristão, Frejus, Jaufre, Atre périleux, Claris et Laris, Chevalier à l’Epée e La Dame à la licorne.

Todas estas ficções lidas e escutadas nas côrtes tendiam a confundir-se na imaginação produzindo situações romanescas, que vieram depois a constituir uma nova fórma de idealisação—a Novella de Cavalleria, de que o typo fundamental é o Amadis de Gaula. Os nomes dos personagens d’estes poemas foram adoptados na sociedade civil em Portugal, e é frequente encontrarem-se nos Nobiliarios as Viviana, Iseu, Ausea ou Ausenda (de Yseult), as Ginebra (de Gwenivar), as Briolanja (Brengienne), os Arthur, Percival, Lisuarte, Lançarote, Tristão, desde o seculo XIV até ao fim do seculo XV. Que prova mais evidente do interesse que produziram em Portugal os poemas da Tavola Redonda.

Esta nova corrente litteraria e erudita veiu interromper a elaboração e a propagação das Gestas frankas: em 1155 estavam as Gestas no seu esplendor e fecundidade, quando appareceu o Roman de Brut, de Robert Wace, d’onde diffluiram depois todos os romances da Tavola Redonda. A Bretanha insular e a Armorica provindo de uma mesma origem, collaboraram diversamente n’estes poemas que tiveram por centro o rei Arthur; as tradições bardicas e mesmo christianisadas conservaram-se nas populações insulares, mas só foram desenvolvidas litterariamente pelos troveiros normandos ou continentaes. Foi assim que a Inglaterra [Pg 227] recebeu a sua materia poetica elaborada artisticamente pelo genio gallo-bretão. Paul Meyer fundamentou este facto: «que o francez tendo-se implantado em Inglaterra depois da conquista, a litteratura das classes elevadas foi, durante mais de dois seculos, inteiramente franceza, não só pela origem, como pela lingua.»[134]

O Roman de Brut, de Robert Wace, acha-se aproveitado como documento historico pelo Conde Dom Pedro no seu Nobiliario, fazendo a genealogia e contando o nascimento do rei Arthur:

«E hum dia teue corte (o rei Uterpandragon) e forom hi todos seus ricos homeens com sas molheres. E veo hi hum Conde de Cornoalha e trouve hi sua molher que avia nome Ygerna, e veo muy bem afeitada e muy ricamente aparelhada, e ella era a mais fermosa molher de toda a terra. E quando vieerom aa mesa hu se assentou elrrey a comer oolhoua elrrey e nom pode mais comer, tanto se pagou d’ella, e nom fazia all senon oolhala dos olhos. E pensou em seu coraçom que se com ella nom jouvesse que morria. Este Conde seu marido soubeoo e levantou-se da mesa com sa molher e foysse para huum seu castello que avia nome Tinteol. E elrrey foyo cercar com toda sua oste, e emviou por Merlin e veo a elle por seu comsselho e ouve elrrey por molher esta dona, e ouve della huum filho que ouve nome Artur o que disserom Artur [Pg 228] de Bretanha, onde ouvistes fallar que foy muy boo.»—«Morreu Uterpandragom e rreynou seu filho Artur de Bretanha, e foy boo rey e leal, e conquereu todollos seus emmiigos e passou por muytas aventuras e fez muytas bondades que todollos tempos do mundo fallarom delle. Este rrey Artur fez huum dia em Chergeliom (Caerleon) sa cidade cortes. E estas cortes forom muy boas e muy altas. A estas cortes veerom doze cavalleiros messageiros que lhe enuiaua Luçius Liber que era emperador de Roma que sse fezesse seu vassallo rey Artur e que teuesse aquella terra de sua mãao. E se esto não fezesse que lhe mandaria tolher a terra por força e que faria justiça de seu corpo. Quando esto ouviu o rrey Artur foy muito irado e mandou chamar toda sa gente que armas podiam levar. E quando foy a Sam Miguel em monte Gargano combateosse com o gigante que era argulhoso e vençeo e matou; o Luçius Liber quando soube que rey Artur hia sobre elle chamou sa oste e toda sa gente e sayolhe ao caminho. E lidarom ambos e vençeo elrrey Artur foy arrancando ho emperador. E elrrey Artur quando moveu da Bretanha por hir a esta guerra leixou a sa terra a huum seu sobrinho que havia nome Mordech.»—«Este Mordech que avia a terra em guarda do rrey Artur e a molher quando elrrey foy fóra da terra, alçousse com ella e quislhe jazer com a molher. E elrrey quando o soube tornousse com sa oste o veo sobre Mordech. E Mordech quando o soube filhou toda sa companha e sayo a ella aa batalha. E elles tiinham as aazes paradas para lidar [Pg 229] no monte Cambelet, e acordousse Mordech que avia feito grande traiçom e se entrasse na batalha seria vençido. E enviou a elrrey que saysse a departe e falaria com elle, e elrrey assy o fez. E elles que estavam assy em esta falla sayo huma gram serpente do freo a elrrey Artur, e quando a vyo meteo mãao aa espada e começou a encalçalla e Mordech outrossi. E as gentes que estavam longe viram que hia huum apos ho outro, e foramsse ferir humas aazes com as outras e foy grande batalha, e morreu Galuam (Gauvain) o filho do rrey Artur, e huma espadada que trazia sobressada, que lhe dera Lançarote do Lago quando entrara em reto ante a cidade de Ganes. Aqui morreu Mordech e todollos boos caualleiros de huma parte e de outra. Elrrey Artur teue o campo e foy mal ferido de trez lançadas e de huma espadada que lhe deu Mordech, e fezesse levar a Islaualon (ilha de Avalon) por saar. D’aqui em diante nom fallemos d’el se he vivo se he morto, nem Merlin nom disse del mais, nem eu nom sey ende mais. Os bretões dizem que ainda he vivo.»[135] Vê-se por este trecho, que o Conde D. Pedro estava ao facto da litteratura da Tavola Redonda seguindo o Roman de Brut, de Robert Wace, e referindo-se ás outras composições dos troveiros normandos, Merlin e Lançarote do Lago, que ainda no seculo XV citava o chronista Azurara. Estava esta litteratura artificiosa em harmonia com os habitos da côrte do rei Dom Diniz, [Pg 230] e facilmente se apoderou da predilecção dos trovadores portuguezes; Estevam da Guarda, favorito de Dom Affonso III, falla em uma canção dos amores de Merlin com a fada Viviana:

Como aveo a Merlin de morrer
per seu gram saber, que el foy mostrar
a tal molher, que o soub’enganar...
.........................................
E o que lhe é muyto grave de teer
por aquelo que lh’el foy mostrar,
en estar com quem sabe que o pod’ensarrar
en tal logar hu convem d’atender
a tal morte da qual morreu Merlin
hu dará vozes fazendo ssa fin,
ca non pode el tal morte escaecer.
(Canção n.o 930.)

O conhecimento das prophecias e aventuras de Merlin transparece no Poema de Affonso Onzeno, e na livraria do rei D. Duarte vem catalogado o livro de Merli (do bretão Myrdhinn.) No Cancioneiro geral, de Resende, falla Diogo de Pedrosa na lenda dos amores do propheta bretão:

O que foy d’esse Merlyn
E d’outros antes d’aguora,
Ysso ade ser de mym
Por vossa filha senhora.
(Fl. 57.)

As allegorias do Leão dormente e do Porco selvagem, que das prophecias de Merlin passaram para o poema da batalha do Salado, [Pg 231] tambem se reflectem nas prophecias de Bandarra no seculo XVI, da mesma fórma que a lenda da immortalidade e vinda do rei Arthur para vingar a raça bretã, se personificou em D. Sebastião, vivendo em uma ilha encantada para vir fazer de Portugal o Quinto Imperio do mundo.

Junto com o livro de Merlin andava tambem o poema de Tristão, nos manuscriptos da Edade media. Na côrte de Dom Diniz era Tristão considerado o typo ideal do namorado, e o proprio monarcha trovador diz que o excede:

Qual mayor poss’e o muy namorado
Tristã, sey ben que non amou Iseu,
Quant’eu vos amo, certo sey eu...
(Canç. n.o 115.)

E compara-se tambem a outro modelo dos amantes exaltados, idealisado no romance de Flores e Brancaflor, que se liga pelo encadeamento cyclico ás gestas carlingias. Os trovadores provençaes citavam esse typo do namorado:

Quar plus m’en mi abellida
Non fis Floris de Brancaflor[136]

E o rei Dom Diniz empregava a mesma comparação:

[Pg 232]

Qual mayor poss’e o mays encoberto
que eu poss’e sey de Brancha frol,
que lhi non ouve Flores tal amor
qual vos eu ey;..............

O thema da fidelidade no amor tornou-se quasi exclusivo nos poemas de aventuras, em que degeneraram os da Tavola Redonda; sobre o sentimento de fidelidade se elaboraram os poemas Meliadus de Leonys, Frejus et Galienne, Claris et Laris, Helias, Chevalier de la Charrette, Partenopeus de Blois, destacando-se d’entre todos elles pelo seu exagero vertiginoso os poemas de Amadas et Ydoine, conhecidos na Hollanda, Allemanha, Borgonha, Inglaterra, Hespanha e Portugal já nos fins do seculo XIII. Em varios fableaux apparece frequentemente citado o nome de Amadas, como o ideal da fidelidade em amores; não admira que sobre este rudimento novellesco, se agrupassem todas as aventuras da fidelidade amorosa dos poemas conhecidos na côrte de D. Diniz, dando a novella em prosa do Amadis de Gaula. De toda essa elaboração poetica dos troveiros normandos, conhece-se hoje apenas dois poemas, o Amadas et Ydoine, por Jean de Mados, e Sir Amadace; mas além d’estas versões franceza e ingleza, é crivel que existissem pelo menos uma outra neerlandeza anterior a 1290, e uma allemã. De uma versão que chegou á côrte de Dom Diniz é que Lobeira (João, antes de Vasco) elaborou por amplificação e syncretismo a novella de Amadis de Gaula, que por seu turno conquistou todas as imaginações na Europa, mesmo na época da Renascença. O phenomeno litterario de um [Pg 233] poema em verso, quer seja Amadas et Ydoine, Sir Amadace, ou qualquer outra redacção passar á prosa de uma extensa novella como o Amadis de Gaula, era frequente na Edade media. O poema de Blanchefleur converteu-se na mão de Boccacio no Filicopo, novella desenvolvida largamente á custa da simplicidade primitiva do poema. D’este facto conclue Du Méril: «Os habitos litterarios da Edade media complicam desgraçadamente todas as questões de origens com difficuldades insoluveis, se se não deixar ao sentimento o tirar as conclusões, quando escaceando os dados precisos, o raciocinio se dá por incompetente.»[137] Quem escreveu a Novella tinha presente na imaginação as situações dos romances que então mais lisongeavam o gosto da aristocracia no seculo XIV; poz em prosa as aventuras cavalheirescas mais conhecidas e sympathicas, e attribuiu-as a um mesmo typo, tambem já conhecido e idealisado em varios poemas em verso. Originalidade poetica, nenhuma litteratura da Edade media a tem, nem mesmo a franceza: os themas tradicionaes são communs a este syncretismo das raças. O que interessa na novella do Amadis de Gaula é a fórma em prosa, e essa é um producto que mais caracterisa a litteratura medieval portugueza.

Na discussão da origem do Amadis o sabio Victor Le Clerc assentou o problema definitivamente: «a primeira redacção do famoso [Pg 234] Amadis de Gaula, que todavia não é, como se vê pelo texto mais antigo hoje conhecido o hespanhol, senão uma imitação prolixa dos poemas da Tavola Redonda e dos Romances de aventuras, taes como o nosso romance de Amadas[138] N’este monumental Discurso, escreve: «Nos Amadises, os quaes são derivados dos Lancelot e dos Tristãos, e aonde se tem querido vêr o ideal do amor cavalheiresco, a bella Oriana concede tudo antes do tempo tanto esperado em que os imperadores e os reis hão de vir assistir ás nupcias.»[139] E apresenta o problema da origem litteraria com toda a segurança:

«Quando o poema francez de Amadas, que em 1365 fazia parte dos livros de um conego de Langres e que ainda subsiste, tiver sido vulgarisado; quando o poderem comparar ao Amadace inglez, áquelle bravo, que os fragmentos publicados em 1840 e 1842, segundo differentes textos manuscriptos, concordam em represental-o como o mais brilhante modelo de lealdade, de bravura e de respeito cavalheiresco; quando principalmente se fizer uma ideia mais justa e mais completa da alluvião de romances em prosa que, nos primeiros cento e cincoenta annos da imprensa, para corresponder, tanto em Hespanha como em França, ao enthuziasmo da moda, multiplicaram á compita os nossos antigos poemas, alongando-os com digressões importunas, conversas alambicadas, com uma ampla brigada de gigantes, fadas, encantadores, será então [Pg 235] occasião de perguntar, se foi sem fundamento ou se com rasão que o velho traductor francez do Amadis hespanhol, Herberay des Essarts, nos disse que descobrira alguns fragmentos escriptos á mão em lingua picarda, e de decidir se este romance de aventuras, cujo plano pouco se prestava aos embelecos do perfeito amor, por isso que começa por onde outros acabam, nasceu em Portugal, em Hespanha ou em outra qualquer parte.»[140] Du Tréssan, já no seculo XVIII, resumindo esta novella do Amadis de Gaula, tambem declara ter visto na Bibliotheca do Vaticano, o antigo poema no fundo que pertencera á rainha da Suecia, cujo exame lhe fôra facultado pelo cardeal Querini.[141] Da mesma opinião de Le Clerc é Littré: «Amadas [Pg 236] lembra o cyclo dos Amadises, que certamente hespanhol no seculo XV, tem por ventura ligações com mais antigas composições francezas.»[142]

Dando-se a transformação de um poema versificado para prosa dramatica e descriptiva, com o intuito de ampliar um thema favorito, as analogias entre as duas composições não devem ser procuradas na fórma mas no pensamento e situações que o desenvolvem. A novella de Amadis de Gaula foi lida e admirada durante toda a Edade media pelo vigor do thema da fidelidade dos dois amantes Amadis e Oriana; o romance de Amadas et Ydoine foi egualmente inspirado pelo mesmo sentimento de fidelidade. Identidade completa de thema: tanto Amadas como o Amadis servem na côrte de um rei, por cuja filha Ydoine ou Oriana (temos a fórma Idana) se apaixonam, e para merecerem-a vão nobilitar-se nas armas para serem primeiramente armados cavalleiros. É durante as longas e arriscadas aventuras que tanto o donzel como a filha do rei se mostram animados de uma sublime fidelidade, terminando a acção por se unirem como sonhavam. Na redacção em prosa, tanto pelo seu caracter como pelo gosto do [Pg 237] tempo, os innumeros episodios, as historias genealogicas e os longos discursos fazem esquecer a simples trama, que facilmente se aproximaria da versão poetica d’onde tirou os elementos originarios. Amadis, apezar da nobreza do seu nascimento, teve uma infancia obscura, e sómente pelo seu garbo e gentileza é que foi tomado pelo rei Languinés de Escossia para a sua côrte; Amadas tambem occupava na côrte do Duque de Borgonha um logar secundario como filho do senescal. Oriana é filha do rei Lisuarte, e na côrte de Languinés é que Amadis a encontrou na festa á sua chegada da Dinamarca. Foi n’esta situação que nasceu o amor de Amadis, do mesmo modo que o de Amadas por Ydoine: «Amadis tinha então doze annos, mas pelo seu corpo e pelos seus membros bem parecia ter quinze; servia a rainha e era muito amado d’ella e de todas as damas e donzellas; mas logo que ali chegou Oriana, filha do rei Lisuarte, a rainha lhe deu o Donzel do mar para a servir, dizendo:—Amiga, eis aqui o garção que vos servirá. Respondeu ella: Que era do seu agrado. Esta palavra penetrou por tal fórma o coração do donzel, que d’ali em diante nunca mais lhe saiu da lembrança. E nunca, como esta historia o conta, em dias de sua vida se enfadou de a servir, e seu coração lhe foi sempre dedicado, e este amor durou tanto quanto ambos viveram.»[143]

No romance de Amadas repete-se esta situação; o senescal n’esse [Pg 238] dia veiu servil-o á meza, como lhe competia, e a seu lado seu filho Amadas ia-o ajudando; foi então que o Duque mandou o donzel servir a sua filha Ydoine.[144]

Nas referencias que alguns poetas castelhanos do seculo XIV fazem do Amadis, como Pero Ferrus, Fray Miguel, Micer Francisco Imperial e outros, tudo leva a crêr que alludiam á fórma poetica do romance assim conhecido em Hespanha. Ferrus cita o Amadis junto com o Rei Arthur, Dom Galaaz, Lançarote, Carlos Magno, Tristão e Roland, que eram [Pg 239] escriptos em verso. As allusões constantes que se encontram no Amadis aos romances do cyclo da Tavola Redonda e a outros de origem franceza, mostram claramente que esse thema não é uma invenção do genio portuguez, mas que foi em Portugal que essa ficção recebeu a fórma em prosa com que se universalisou.[145] No texto da versão hespanhola de Montalbo, e no Cancioneiro Colocci-Brancuti estão as provas irrefragaveis da primitiva redacção portugueza: são a rubrica ácerca da emenda do episodio de Briolanja, e a canção de João Lobeira, Leonoreta, que o traductor castelhano deturpou não conhecendo a fórma estrophica.

Os romances da Tavola Redonda fizeram decahir de interesse as Gestas carlingias, exclusivamente guerreiras, e actuaram tambem para que a poesia lyrica trobadoresca bastante subjectiva fosse substituida pelas narrativas apaixonadas das novellas de aventuras. Com o falecimento do rei D. Diniz decahiu na côrte a lyrica trobadoresca; a sua paixão pela [Pg 240] eschola provençal, causára essa exuberante actividade poetica da sua côrte, centro a que convergiam os jograes da Galliza, Catalunha, Leão, Aragão e Castella, e até os seus bastardos, D. Affonso Sanches e D. Pedro o lisongeavam metrificando com esforço, ou colligindo canções. Em uma canção de Joham jogral, fixa-se esta decadencia pela morte do rei:

Os trobadores que poys ficarom
En o seu regno e no de Leon,
No de Castella, no de Aragon
Nunca poys de sa morte trobarom.
(Canção n.o 708.)

Por morte do Conde D. Pedro, elle deixou o seu Livro das Cantigas a Affonso XI, de Castella, por que em Portugal Affonso IV não apreciava as manifestações do lyrismo trobadoresco. E este desprezo continuou-se nos successivos reinados, persistindo cada vez mais o enthuziasmo pelas novellas de Cavalleria, como vêmos nas côrtes de D. João I, D. Duarte e D. João II, em que se lêem a Demanda do Santo Graal, Merlin, José Ab Arimathia, Cavalleiro do Cysne, Galaaz, e outras muitas novellas. A poesia lyrica, revelada tão brilhantemente na côrte de D. Diniz, tornou-se um pallido reflexo da castelhana no seculo XV, e só tornou a reflorir depois do primeiro quartel do seculo XVI, em consequencia de Sá de Miranda trazer a Portugal a nova Eschola italiana.

A nova phase do perstigio das Novellas da Tavola Redonda não [Pg 241] corresponde a uma realidade, isto é, aos habitos sociaes da época; entravamos no seculo XV, na corrente da burguezia e da prosa, na creação da historia e da legislação sem symbolos, sob a dictadura do poder real. Não havia pois logar para a cultura do individualismo heroico da Cavalleria; a justiça do rei, como o revela o grito popular Aqui d’Elrei, não permittia a intervenção generosa de qualquer senhor. E é precisamente na côrte de D. João I que se encontra o mais exaltado prurido pela leitura e imitação das novellas da Tavola Redonda e dos seus heroes, chegando os seus nomes a serem reproduzidos nas familias aristocraticas. Explica-se esta antinomia; primeiramente D. João I era um bastardo, que achando-se no throno, quiz cercar-se de todos os symbolismos da soberania e do fausto cavalheiresco; depois pelo casamento com D. Philippa de Lencastre imita o cerimonial da côrte ingleza e toma conhecimento dos livros ahi mais predilectos entre a nobreza. O francez era então usual na côrte de Inglaterra. Convinha mais á côrte portugueza a leitura das novellas com aventuras e situações ficticias; o cyclo do Santo Graal, em que se preconisa a fidelidade á Egreja, harmonisava-se pelo seu maravilhoso com o nosso genio celtico. E essas aventuras, como a da Descida aos infernos, a da descoberta do Preste João (o christianismo entre os Bretãos foi propagado por discipulos de Sam João) e Viagens de Sam Brendan, influiram no genio aventureiro que levou os portuguezes ás descobertas maritimas.

[Pg 242]

Imitava-se o viver idealisado nas novellas de Cavalleria; na Chronica de D. João I conta Fernão Lopes, que este rei no cêrco de Coria, se queixára de lhe faltarem cavalleiros como os da Tavola Redonda, e que agastado Mem Rodrigues de Vasconcellos fôra comparando os cavalleiros presentes a Galaaz, a Lançarote, a D. Quêa, allegando pelo seu lado que lhes faltava um bom rei Arthur, flor de liz, que sabia conhecer o valor. Esta anecdota já andava repetida desde o seculo XIII, em nome do rei Philippe, que se lamentava de não haver já cavalleiros tão bons como Roland e Olivier. O Condestavel Nun’Alvres queria imitar a virgindade de Galaaz, para manter a pureza da Cavalleria: e faziam-se votos denodados, como os Cavalleiros da Madre Silva, Ala dos Namorados e Doze de Inglaterra. Até nas instituições sociaes penetrava a imitação artificial das cerimonias e symbolismos cavalheirescos; basta abrir o Regimento de Guerra portuguez, codificado pelo Infante Dom Pedro, o que correu as Sete Partidas do mundo, para vêr como debaixo da esquadria logica e unitaria da codificação romana estabelecida pelos jurisconsultos burguezes, irrompe o cerimonial novellesco com que um escudeiro devia de ser armado cavalleiro. E sóbe de interesse esse confronto com o cerimonial do poema Ordene de Chevallerie, de Hugues de Tabarie. As explicações symbolicas do troveiro francez coincidem com os paragraphos da Ordenação affonsina. É com rasão que se considera o Regimento de Guerra como o necrologio da cavalleria portugueza; este ultimo lampejo de vida foi-lhe communicado pela leitura dos [Pg 243] poemas anglo-normandos da Tavola Redonda, que figuravam nas livrarias régias.

É hoje conhecida a novella portugueza da Demanda do Santo Graal, que possuia D. João I, bem como a rainha Isabel a Catholica e o princepe de Viana; é uma livre paraphrase da novella franceza La tierce partie de Lancelot du lac avec la Queste du Saint Graal et de la dernière partie de la Table Ronde. No seu texto fazem-se referencias á redacção franceza de Robert de Boron, que seguira o paraphrasta portuguez. D’este manuscripto, a que falta o principio, ha já uma grande parte publicada pelo Dr. Reinhardsttoetner, que o copiou na bibliotheca imperial de Vienna. É tambem da época de Dom João I a novella Livro de Joseph ab Arimathia intitulado a primeira parte da Demanda do Santo Graal; allude a este livro uma passagem do Cancioneiro de Resende em que falla do Mestre Eschola e da novella (João Sanches, Mestre Eschola de Astorga, que a mandára escrever.) Tambem no tempo de D. João I foi lido em Portugal o poema inglez de John Gower, A Confissão do Amante, que Roberto Payno traduziu para portuguez; formado de uma selecção de contos francezes, de imitações de Jean de Meung, de extractos de Lancelot, de Amadas, Tristan, Partenopeus de Blois, era mais um vehiculo para nos relacionar com a vigorosa poesia da Edade media franceza. Na Livraria do rei Dom Duarte, continuou a prevalecer a sympathia por estes poemas, apesar de ir despontando já a admiração pelos escriptores classicos. Ali se guardava o Livro [Pg 244] de Tristam, por ventura a redacção de Luce de Gast e de Helie de Boron; Merli, que é uma das partes da Tavola Redonda, como se deprehende do exemplar descripto no catalogo da livraria de Isabel a Catholica; o Livro de Galaaz, que era a leitura favorita do Condestavel; a Conquista de Ultramar, em que uma parte é imitada das aventuras do Cavalleiro do Cysne. Ruy de Pina mostra a influencia d’esta novella na côrte de D. João II: «antre os quaes ElRei para desafiar as justas que havia de manter, veeo primeiro momo, envencionado Cavalleiro do Cisne com muita riqueza, graça e gentileza.»[146] Esta novella começada por Jehan de Renault e terminada por Graindor, exalta Godofredo de Buillon entre complicadas scenas de encantamentos e duellos.

As viagens dos monges bretãos, as narrativas do claustro de Cruenferl, as lendas monasticas de Kadock, Barontus, e de S. Brendan devassando as regiões do norte, contemplando as auroras dos polos e vendo á superficie dos mares as magnificencias do creador, muitas o muitas vezes seduziram a imaginação dos primeiros navegadores portuguezes, attrahidos pelo maravilhoso da geographia antiga. É admiravel a Odyssea monachal das viagens de San Brendan; na Chronica da Conquista de Guiné cita-as Azurara: «Bem he que alguns deziam, que passara per ally san Brandam...»[147] [Pg 245] As Ilhas encantadas, da tradição celtica, surgem vagamente na imaginação do povo portuguez, que se arroja ás descobertas. E Camões, profundamente nacional, quando, representando no seu poema o genio d’este povo, quer consolar os cansados navegantes recorre ao sonho deleitoso da antiga geographia das Ilhas Fortunatas, Antilia e Atlantida, no episodio da Ilha dos Amores. Egual seducção com as lendas do Preste João das Indias, cuja Epistola desde o seculo XII circulava na Europa entre as relações apocryphas de Merlin e de Sam Brendan. Quando a nacionalidade portugueza esteve a ponto de extinguir-se na incorporação castelhana, foram os sonhos deliciosos do genio celtico que fortificaram no seu desalento este povo atraiçoado pelo clero e pela aristocracia. O rei D. Sebastião, que vivia emballado em sonhos novellescos de imaginarias conquistas, [Pg 246] ao precipitar-se para a catastrophe de Alcacer-kibir, fazia-se acompanhar pela mesma fórma como os antigos monarchas saxões, que entravam em combate seguidos pelos seus menestreis. O povo sympathisou com este typo do hallucinado cavalleiro, idealisou-o na sua tradição, guardou-o, á similhança do rei Arthur, tambem em uma ilha encantada, d’onde o seu Merlin, Bandarra o sapateiro de Trancoso, prophetisou que viria tornar Portugal liberto o Quinto Imperio do Mundo.[148] O elemento celtico, que desde muito cedo differenciou Portugal das populações hispanicas, manifestou-se pela sympathia por estas ficções gallo-romanas, tornando-as como um dos estimulos da sua acção historica.

[Pg 247]

d) A CULTURA LATINO-ECCLESIASTICA E HUMANISTA

O conhecimento das obras litterarias da civilisação greco-romana não se obliterou completamente mesmo nos seculos mais perturbados da Edade media; mas esta continuidade não contrariou as manifestações do genio esthetico das raças que entravam na corrente historica. É certo que quanto mais avançavam para a civilisação, mais se accentuava entre as novas nacionalidades o antagonismo dos dois espiritos,—o classico, reflexivo, disciplinado e harmonico, e o romantico ou medieval, espontaneo, pessoal e impetuoso. Magnin observa este facto: «de se não poder encontrar na Europa um lapso de tempo de qualquer extensão em que tivesse havido uma solução total de continuidade e de esquecimento completo das tradições antigas. No emtanto, a verdade é, que durante mais de dez seculos, um espirito novo, violento, inculto, posto que subtil e delicado á sua maneira, o espirito do norte, emfim, prevaleceu sobro o genio esgotado de Athenas e de Roma; mas, graças á Egreja, esta vida potente e nova nunca abafou inteiramente a antiga.»[149] A Egreja adoptando o latim para a sua liturgia e para a chancellaria papal, e recebendo da patrologia grega os elementos dogmaticos da sua doutrina, via-se forçada a [Pg 248] manter diante da espontanea actividade dos espiritos da Edade media o respeito pela civilisação polytheica, que ella combatia. Nos varios seculos da éra medieval foram conhecidas as tradições homericas, os poemas de Virgilio e de Ovidio, os tratados philosophicos de Seneca, e mesmo algumas comedias de Terencio; mas a Edade media apropriou-se d’elles, imprimindo-lhes o seu caracter, assimilando-os como productos proprios. O Renascimento ou renascença do mundo classico, nos fins do seculo XIII com Petrarcha e Boccacio, e que se continúa com deslumbramento no seculo XV, é esse phenomeno de erudição e de critica que leva a descobrir o verdadeiro caracter da civilisação greco-romana. É então que se estabelece o antagonismo dos dois espiritos. Magnin descreve esse conflicto, que se observa nos costumes, nas instituições e nas litteraturas: «Desde a sua nascença, isto é, desde o fim do seculo V, a civilisação moderna foi submettida a duas influencias em sentido contrario, a influencia do genio romano e a do espirito do norte, dois elementos cuja opposição, bem que temperada por um laço commum, o Christianismo, ainda hoje se faz sentir em todas as controversias que nos agitam.» E conclue d’este dualismo historico: «se a sociedade europêa existe ainda potente e vivaz depois de mais de treze seculos, é por que ella preenche a condição a mais indispensavel aos phenomenos da vida, a de ser o resultado de duas forças, de dois elementos combinados. Depois da dissolução do Imperio do Occidente até ao meado do seculo XV, quer dizer, durante o intervallo ainda [Pg 249] imperfeitamente estudado a que se chama Edade media, a influencia da barbarie germanica augmentada, sob os ultimos Carlingios, com a barbarie scandinava, dominou tudo. Depois do meado do seculo XV, inversamente, o genio mais clemente da Grecia e da Italia prevaleceu por toda a parte, mas desegualmente, e são estas desegualdades mesmo que, mais do que o velho caracter indigena, constituem a originalidade nacional da França, da Hespanha, da Italia, da Inglaterra. Seria vantajoso levar até aos seus extremos a eliminação de um d’estes dois elementos? A ter de optar, qual d’estes nossos dois troncos originaes o menos esgotado e o mais rico ainda de seiva e de futuro?—Ha, effectivamente, na sociedade moderna, homens e cousas que mantêm a dupla e desegual feição da sua complexa origem. Ha homens de natureza romana, e homens de natureza septemtrional. As letras e a historia têm em todas as épocas apresentado energicos representantes d’estas duas familias, estes leaes campeões dos instinctos do septemtrião, aquelles fieis clientes da policia e da urbanidade romanas.»[150] A alternancia d’estes dois elementos está ligada á marcha da civilisação europêa, [Pg 250] e acompanha a lucta dos dois Poderes. O papado inicia as escholas das Collegiadas e chega á fundação do Estudo Geral para o ensino das Sete Artes. O nome de latino é synonimo de letrado, de culto e intelligente, d’onde se conserva ainda a expressão vulgar de ladino; o clericus destacou-se do leigo pelo uso do latim, a linguagem da sciencia, dos altos dignatarios da Egreja, dos embaixadores e dos homens de côrte, em contraposição com a linguagem do vulgo, a que chamavam romance, como se vê em Benoit de Saint More, na Historia de Troya:

Qui du latin ou je la truis
se j’ai le sens e je le puis
je voudrai ci en romans mettre...

Quando a linguagem vulgar passou a ser escripta, por essa nobilitação litteraria foi chamada ladina; vêmos no Leal Conselheiro, do rei D. Duarte: «e nom screvo esto per maneira scollastica, mas o que leeo per livros de latym e de toda lingua ladinha, do que algũa parte se me entende, concordo com a pratica cortezã na mais conveniente maneira que me parece.» (p. 168.) A mesma ideia em Hespanha, como se vê em Covarruvias: «la gente barbara de España llamava latinos en tiempo de los romanos á los que hablaban la lengua romana: e como estos generalmente eran mas sabios que los naturales espanoles, quedó el nombre de latinos para los que entre elles eran menos bozales, e de latino se corrompiò facilmente en ladinho[151] [Pg 251] O Poder real tambem desenvolveu a cultura latina, pela restauração do Direito romano e pelo estabelecimento das Universidades no seculo XIII. Assim como o clerigo, o escholar tambem cultiva a lingua latina, e obedecendo ao espirito sarcastico do seculo faz a parodia das orações e hymnos da Egreja e dos processos das basilicas ou Curias; fórma-se uma classe intermedia aos eruditos latinistas e ao povo, a dos Goliardos, que vagam pelas tabernas e empregam as fórmas da poesia popular, como se vê nas Carmina Burana. Existem Pastorellas latinas que são moldadas nos typos populares occidentaes. A elaboração épica tambem se apropriou dos themas greco-romanos para as Gestas heroicas; o troveiro Jean Bodel, define esta classe de assumptos épicos: «De France, de Bretagne et de Rome la grand.» Apparecem-nos gestas germanicas sob as fórmas latinas como o Waltharius, e os poemas homericos acham-se transformados segundo a concepção medieval no Roman de Troye, de Benoit de Sainte More. No romance de Flamenca, enumeram-se os principaes assumptos eruditos que celebravam os jograes: «Um canta de Priamo, outro de Piramo; outro da bella Helena, como Paris foi á sua procura e depois a trouxe; outro canta de Ulysses, outro de Heitor e de Achilles. Outro canta de Eneas e de Dido, como ella ficou por elle triste e desolada; outro cantava de Lavinia ... de Apollonice, de Tideu, de Etidiocles... Um canta [Pg 252] do rei Alexandre, outro de Ero e de Leandro. Um diz de Cadmo e sua fuga, e de Thebas como se edificou. Outro cantava de Jason e do Dragão; outro de Philis como attenta contra si por amor de Demophonte. Um diz como o bello Narciso se afogou na fonte em que se mirava. Um diz de Plutão como roubou a Orpheo a sua bella esposa... Um canta de Julio Cesar como passou sósinho o mar sem implorar nosso Senhor, por que não conhecia o medo.»[152] Muitos d’estes poemas existem manuscriptos: na Livraria do rei Dom Duarte guardava-se a Historia de Troya, o Alexandre e Julio Cesar.

As lendas de Troya, conhecidas no seculo IX por Macelas, no X por Constantino Prophyrogeneta; por Suidas no seculo XI, e no XIII por Constantino Manassés, João e Isac Tzetzés, entraram na corrente das Escholas Geraes, vulgarisando-se d’ahi para os troveiros. Tambem os chronistas das novas nacionalidades iam entroncar em Troya a origem dos povos e estados que historiavam. Os Francezes attribuiam as suas origens aos Troyanos, como affirmam os chronistas Fredegario, Roricon, Paulo Warnfried, chegando Dagoberto a declarar em um documento: «Ex nobilissimo et antiquo Trojanorum reliquarum sanguine nati.» Luiz XII na batalha de Ravena usa a divisa: Ultus avos Trojae. Tambem para mostrar a superioridade da Inglaterra sobre a Escossia, Eduardo III allega ao Papa a sua origem troyana; Veneza, como outr’ora Roma, [Pg 253] considerava um dos seus bairros povoado por foragidos troyanos.

A historia de Portugal tambem se fundou por muito tempo sobre as lendas de Troya, de varios heroes gregos e patriarchas biblicos; era corrente a ideia de que Tubal viera ás Hespanhas e fundára Setubal, e Elysa, neta de Noé, fundára Lisboa. Transcrevemos uma pagina caracteristica d’este systema de historia: «na mais bem apurada chronologia, a Elysa e não a Luso, filho ou companheiro de Baccho, nem a Ulysses, se deve verdadeiramente attribuir a primeira fundação d’aquelle celebre emporio do mundo, e a primeira origem dos Luzitanos; pois tudo o mais que dos outros fundadores posteriores se escreve, dado que assim succedesse, foi reedificação e augmento e não primeira origem.»[153] N’esta citação se alludem a todas as lendas greco-romanas, sendo a que teve mais voga e chegou á transmissão popular a da vinda de Ulysses á Luzitania e a sua fundação de Lisboa. A fundação da cidade do Porto foi attribuida por Fr. Bernardo de Brito a Diomedes, que veiu á Hespanha depois de incendiada Troya; e Salgado de Araujo attribuia a mesma fundação a Meneláo, firmado no dizer de Virgilio, de ter-se Meneláo desterrado depois da guerra troyana para as columnas de Pretheo. A aldêa de Fão era attribuida á fundação de Phano, rei da ilha de Chio; um outro erudito, do seculo XVIII, dava como fundador do Porto o [Pg 254] princepe Callais, filho de Boreas, rei da Thracia e um dos mais celebres argonautas. Para os jograes e troveiros por certo influiram as obras dos pseudo-Dares, pseudo-Ditys e pseudo-Calisthenes; mas para os chronistas deve essa série de explicações phantasmagoricas derivar-se dos tratados e dissertações do imaginoso dominicano Anio de Viterbo. É curioso o reflexo d’este syncretismo na epopêa dos Lusiadas, que tambem diz de Ulysses: «se lá na Asia Troya insigne abrasa,—Cá na Europa Lisboa ingente funda

O poema de Alexandre era uma das joias da livraria do rei D. Duarte; no seculo XI um medico de Constantinopla, Simeão Seth, traduziu para grego a Historia Alexandri magni regis Macedoniae, de Proeliís, que n’esta fórma latina veiu acordar a imaginação dos troveiros, já como o primeiro modelo da Vida de Carlos Magno attribuida a Turpin, já como norma da chronica do rei Arthur de Geoffroy de Monmouth e do poema francez Alexandre de Lambert li Cort. No seculo XVI foi conhecido em Portugal na sua fórma originaria, em lingua persa; D. João de Castro pedira a Aleixo de Carvalho em 1546, que lhe procurasse uma Historia de Alexandre; dirigiu-se este a Luiz Falcão, que a obteve do goazil Hemires.[154] Fallando das origens orientaes da Historia de Alexandre, diz Berger de Xivrey, nas Traditions Tératologiques: «além da descripção de muitos paizes, uns tratavam da viagem ao paraiso, outros da correspondencia [Pg 255] com a rainha das Amazonas, com Didimus ou Lyndimus, rei dos Brachmanas; digressões de antigos textos gregos e orientaes.»[155] Na livraria de Jehan de Bourgogne, conde d’Estampes, guardava-se tambem uma Guerra de Macedonia, escripta por Jehan Nanquelin «selon ce que je l’ai trouvet en ung livre rimet, dout je ne sais pas le nom de l’aucteur, fors qu’il est intitulé histoire Alixandre[156]

Producto do perstigio das tradições greco-romanas na Edade media é a Historia do Imperador Vespasiano, que Herculano classificou como o monumento mais curioso da arte typographica em Portugal no fim do seculo XV; descreve-a da seguinte fórma: «A Historia de Vespasiano consta de vinte e nove capitulos, nos quaes se tratam varios feitos d’aquelle imperador e de seu filho Tito e outros que dizem respeito ao christianismo e á morte de Archeláo e Pilatos.—Fecha a obra por uma subscripção em que se diz ser impressa por Valentim de Moravia em Lisboa, no anno de 1496.»[157] E em outro logar desenvolve: «Esta Historia de Vespasiano não é senão uma novella de cavalleria pertencente ao cyclo greco-romano. Ha ahi, na verdade, alguns factos historicos; mas os costumes e as particularidades da narração não passam de meras ficções. Que a obra seja uma traducção [Pg 256] não nos parece duvidoso. Na subscripção d’ella se diz que fôra ordenada por Jacob e Joseph ab Arimathia, que a todas aquellas cousas foram presentes. Isto indica bastantemente a origem estrangeira do livro. Se, porém, nos lembrarmos de que José de Arimathea figura nos romances do Santo Graal, como tendo recebido o sangue de Christo n’esse celebre Vaso, é naturalissimo que o novelleiro, auctor da Historia de Vespasiano se lembrasse de lhe attribuir a propria composição, tanto mais que era quasi como lei entre os romancistas, dar uma origem mysteriosa ou ao menos remota ao fructo de suas imaginações. Accresce para mais fundamentar a nossa opinião, que M. Fauriel menciona uma historia-romance da destruição de Jerusalem por Vespasiano escripta em provençal, e que elle classifica como livro connexo com o cyclo das novellas do Santo Graal[158]

No celebre manuscripto da Corte Imperial, capitulo IX, cita-se um poema erudito o Ovidio da Velha, escripto no seculo XIV em latim com o titulo De Vetula, por Richard de Fournival, e traduzido para verso francez pelo mesmo tempo por João Lefèvre. Ovidio e Virgilio foram os dois poetas queridos da Edade media; Virgilio era tido como o oraculo de toda a sciencia, vendo os theologos n’elle um propheta, e os jurisconsultos um interprete das leis; Ovidio foi mais popular, por que as suas Metamorphoses seduziam as imaginações, [Pg 257] e os prégadores moralisavam sobre os seus versos. A predilecção extrema por Ovidio deu causa a uma immensidade de obras apocryphas, das quaes o poema De Vetula é um d’esses contos attribuidos no seculo XIV e XV ao poeta. Eis o trecho da Corte Imperial: «bem sabedes que hun grande poeta muy genhoso e muy sotil ante os outros poetas foy o que ouve o nome Ouvidio Naso e foi gintil. E este fez muitos livros antre os quaes antes da sua morte compos hun livro que chama Ouvidio da velha, e este livro foy achado em no seu muymento cõ os seus ossos en hua cansela de marfim.»—«todas estas cousas sobreditas que dise o poeta Ouvidio Naso som scriptas em aquele seu livro que chamam Ouvidio da Velha, o qual vós diviades a saber pelas quaes cousas bem parece que este poeta gintil asás profetizou de Jehsus xpõ e da sua ley e rraramente segundo avedes ouvido.» No canto III do poema é que se encontra a referencia da Corte Imperial relativa á influencia dos planetas no apparecimento das religiões. Como viria para este paiz o poema de Richard de Fournival?

Na côrte do rei D. Duarte já predominava a paixão pelas obras da antiguidade; no Leal Conselheiro conta as boas conversas que elle e seus irmãos tinham com o rei seu pae; discutia as regras para se traduzirem bem as obras classicas; o infante D. Pedro traduziu para portuguez o livro De Officiis de Cicero, e compilava na Virtuosa Bemfeituria trechos dos moralistas romanos e dos padres da egreja. As tragedias de Seneca eram lidas por Azurara, na livraria [Pg 258] de D. Affonso V, herdada de D. Duarte. Essa erudição apparatosa apparece na encyclopedia moral chamada o Leal Conselheiro; o rei D. Duarte falla já com certo desdem da leitura das novellas: «cá se o leeren ryjo, e muito juntamente, como livro de estorias, logo desprazerá, e se enfadarom del, por o nom poderem entender nem renembrar...» (p. 500.) Dos Contos da Edade media ou Exemplos, de que a Gesta Romanorum era a mais afamada collecção, falla tambem com desdem o rei D. Duarte: «E daquesta guysa erramos per este desassessego: se no tempo de orar e ouvir oficios divinos, nos conselhos proveitosos, fallamentos ou desembargos, levantamos estorias recontando longos exempros.» (p. 192.) E falla das novellas como simples diversão: «para despender tempo ou se desenfadar com o livro d’estorias em que o entendimento pouco trabalha por entender ou nembrar.» (p. 7.) No Leal Conselheiro encontra-se o exemplo das Duas barcas, (p. 447) e o do Filho prodigo (p. 61) tão vulgarisado em todas as fórmas da arte da Edade media. A norma do Exemplo é o conto popular introduzido nos sermões a pretexto de pela lisonja do gosto tradicional incutir uma noção de moralidade. A Reforma acabou com os Exemplos nos sermões; Calvino, na Epistola a Sadoleto, diz que uma parte dos sermões se gastava: «em fabulas divertidas e especulações recreativas para excitar e mover o coração do povo á jovialidade.»

Só no seculo XVI é que Gonçalo Fernandes Trancoso, deu redacção litteraria a Exemplos e Contos da Edade media, não com o espirito [Pg 259] secular e revolucionario de Boccacio, Sacchetti ou Fiorentino, mas com um intuito catholico de moralisação. Foi principalmente das fontes dos novellistas italianos que elle se serviu.

Tanto na litteratura hespanhola como na portugueza os ramos interminaveis do Roman du Renart não chegaram a lançar a sua efflorescencia; o rigorismo catholico e auctoritario n’estes dois paizes, não deixaria elaborar esse poema de revolta; escreve Du Méril: «Nos poemas do Renart não podia haver outra superioridade real senão a argucia e a força, d’onde resultavam tendencias democraticas e anti-clericaes, que os impediriam de adquirir uma grande popularidade nos paizes aristocraticos ou profundamente catholicos. Tambem os inglezes, os hespanhóes e os italianos não tiveram poemas do Renart[159] Em Hespanha o Renart é conhecido com o nome de Guinarda, e em Portugal com o de Golpelha (de Vulpecula), e em um Auto de Jeronymo Ribeiro falla-se em Raposias, no sentido de logro e de argucia.

O cyclo immenso da epopêa burgueza de Renart divulgou entre o povo um grande numero de anexins, já pela antiga fórma metrica, já pelas situações comicas a que alludem; encontramos nos escriptores do seculo XV, e mais frequentemente do seculo XVI:

[Pg 260]

O Lobo e a Golpelha
Fizeram uma Conselha.

A Golpelha (diminutivo de vulpes) é a pequena raposa ladina; na linguagem castelhana a Conseja ou Conselha é a designação vulgar do conto tradicional. Um outro anexim:

Da pele alhea
Grande corrêa,

que é commum a Portugal e aos poemas francezes da Edade media, deriva de um episodio do Roman du Renart: «O Leão, diz Fleury de Bellingen, achando-se afflicto com uma grande febre, mandou chamar a Raposa, para saber se no seu conselho poderia ter remedio a sua doença; a Raposa fingindo de medico, lhe disse, que para sua cura precisava cingir os rins com uma larga cinta tirada de fresco da pele de um Lobo. Seguindo esta receita, o Leão doente mandou chamar um Lobo, ao qual a Raposa cortou ao longo do dorso uma comprida e larga corrêa. O Lobo com as dores uivava desesperado, clamando: Ah, senhora Raposa, da pele que não é vossa tiraes larga corrêa.—D’aqui ficou o proverbio.»[160] Este antagonismo entre o Lobo (Ysengrin) e a Raposa (Trigaudin le Renart) apparece bem accentuado em outro anexim portuguez: «Com cabeça de lobo ganha a raposa.» E na farça do Clerigo da Beira, diz tambem Gil Vicente:

[Pg 261]

Mas são Lobos para mochos,
E Raposas de nação.
(II, 236.)

Uma variedade ou segunda elaboração do Renart é o Roman de Fauvel, em que ha um intuito moral: Fauvel representava as vaidades do mundo; todos vinham para elle com intuito de o montarem, mas cahiam estatelados; d’aqui a acção resumida no anexim do seculo XV: Tel estrille Faveau, qui puis le mort, e tambem o titulo abreviado Estrille-Fauvel. Dois anexins portuguezes parecem derivar-se d’este poema medieval, alludindo á difficuldade de montar o cavallo-Fauvel: «Cavallo-fouveiro, á porta do alveitar, ou de bom cavalleiro.» A locução: «Montar o cavallinho,» exprime o conseguir uma cousa difficil. Tambem em francez: Piquer le Renart, significando beber em jejum, é um modismo ultima diluição dos episodios da grande epopêa burgueza.

Os jurisconsultos da Europa cavaram a ruina da Edade media; serviram-se da esquadria da rasão contra os impulsos espontaneos da cavalleria feudal. Defendendo o povo contra os barões, abafaram a liberdade popular tirando-lhe as garantias das instituições locaes, unificando-as nos codigos reaes ou Ordenações formados segundo o espirito do Direito romano ao serviço da dictadura monarchica. Isto se repetia em Portugal, em contacto com a corrente da civilisação europêa: ao lado de um Condestavel que imitava no seu heroismo a virgindade cavalheiresca de Galaaz, prepondera o chanceller Dr. João [Pg 262] das Regras, o homem da toga, armado com os textos legaes, com o pezo da burguezia derruindo o feudalismo. O desembargador Ruy Fernandes codificando o Regimento de Guerra portuguez, como bom legista, propõe para modelos os feitos dos gregos e romanos. Fallando do cargo de Alferes, formúla a Ordenação affonsina: «Os Gregos e Romanos forom homeens, que usaram muito de guerrear, e emquanto o fezerom com siso e entendimento vencerom e acabarom o que quizerom; e elles forom os primeiros, que fezerom em como fossem conhicidos os grandes senhores nas Côrtes dos Princepes e nas batalhas, e nos outros feitos de grande façanha.» E com a preoccupação da antiguidade, transcreve-se extensamente no Regimento de Guerra a auctoridade de Seneca e de Aristoteles.

Já para o fim do seculo XVI prevalecia a admiração da antiguidade, que influia na fórma litteraria da Historia. Villani, ainda no seculo XIV, confessava que a sua visita a Roma e a leitura dos seus escriptores lhe revelára o modo de escrever a historia. Em Portugal escreve-se em latim a historia de Ceuta, por Matheus Pisano, e de Italia é mandado vir o humanista Justo Baldino, para traduzir para latim as chronicas do reino. Os costumes palacianos exigem aos fidalgos a cultura do latim; vive-se em signo de latim, como a apoda graciosamente Ayres Telles. A Edade media ainda sobrevive vagamente em uma ou outra serodia novella de cavalleria; a antiguidade greco-romana impõe-se triumphantemente d’entre a crise intellectual do seculo XVI.

[Pg 263]

§ 2.—A Renascença

(HEGEMONIA DA ITALIA)

A França precedeu a Italia na iniciativa e influencia do genio esthetico na Edade media, como o proclamou Dante com toda a superioridade do seu espirito; Comte, consignando o facto, explica-o: «ora esta incontestavel diversidade historica parece-me dever ser sobretudo attribuida á menor consistencia da ordem feudal na Italia, apezar da acção mais especialmente favoravel que o catholicismo ali devia exercer sobre o desenvolvimento inicial das bellas-artes.»[161] Poderia a Egreja provocar o desenvolvimento da architectura e artes ornamentaes, mas bastava sustentar o principio de que a sociabilidade polytheica era inferior á christã, para desviar os espiritos da admiração das obras da antiguidade. A queda do regimen feudal envolvendo a do regimen catholico alterou a estabilidade da Edade media, e deixou as capacidades estheticas sem elementos sérios de idealisação; tal foi a causa de se procurar na civilisação polytheica greco-romana, já o typo ideal para a imitação artistica, já as fórmas sociaes para o estabelecimento de um regimen politico, como se vê no esforço laborioso dos Humanistas e dos Jurisconsultos. Comte propõe com a maxima clareza a causa da Renascença: «Se o estado catholico e feudal tivesse podido persistir realmente, não é duvidoso, a meu [Pg 264] vêr, que a expansão esthetica dos seculos XII e XIII teria adquirido, pela sua eminente homogeneidade, uma importancia e uma profundidade muito superiores a tudo o que tivesse podido existir depois, sobretudo quanto á efficacidade popular, verdadeiro criterio das bellas-artes. Pela transição rapida, e muitas vezes violenta, que com frequencia tinha de effectuar-se no decurso d’este grande periodo revolucionario, e ao qual a progressão industrial tão poderosamente contribuiu, o genio esthetico teve necessariamente falta de direcção geral e de destino social. Entre a antiga sociabilidade expirante, e a nova pouco caracterisada ainda, não pôde bem nitidamente sentir o que devia sobretudo idealisar, nem sobre que sympathias universaes elle devia principalmente repousar.»[162] É d’esta instabilidade social que deduz Comte a «alteração notavel, vãmente qualificada de regeneração das Bellas-Artes, e que sob muitos aspectos, constituia mais de que tudo uma tendencia retrograda, inspirando uma admiração muito servil e muito exclusiva pelas obras primas da antiguidade relativas a um systema inteiramente differente de sociabilidade.»[163]

Na grande crise revolucionaria, em que á vida guerreira do Feudalismo se contrapõe a actividade pacifica do proletariado e da elevação da vida domestica, a expansão industrial vem espontaneamente estimular [Pg 265] as capacidades estheticas. E como a Italia era entre os orgãos da Republica occidental, a que pela sua separação do feudalismo e regimen municipalista mais avançava para a liberdade civil da burguezia, achou muito cedo novos elementos de idealisação, quer na autonomia critica, como em Dante com a Divina Comedia, quer no sentimento do amor como na Vita Nuova e em Petrarcha nos Sonetos e Canções, quer nos quadros da vida domestica, como Boccacio conseguiu representar nos Contos e Novellas, rudimentos essenciaes que precederam a caracteristica creação moderna do Romance. Mas a instabilidade não era simplesmente social; era essencialmente mental, e foi sob este aspecto que se manifestou o espirito critico contra a Egreja, e a necessidade de construir uma nova synthese especulativa. A antiguidade classica apresentava profundos philosophos, para serem consultados na formação de uma tal synthese, e incomparaveis poetas e artistas, para fornecerem typos estheticos para a imitação. Assim a Italia que avançava para o estabelecimento das fórmas definitivas da litteratura moderna, como se vê pelo lyrismo petrarchista e pelas narrativas novellescas, ao entrar no seculo XV, e mesmo no esplendor do seculo XVI, não tornou a appresentar uma pleiada como Dante, Petrarcha e Boccacio. A imitação da antiguidade classica tornou-se uma necessidade, uma como disciplina do gosto, na instabilidade das emoções abaladas pelas alterações do meio social. Observa-o Comte: «Uma apreciação mal aprofundada, conduz mesmo, ao que me parece, que [Pg 266] a imitação mais ou menos servil da arte antiga, deveu desde logo, por uma reacção necessaria, tornar-se para a arte moderna um meio facticio de supprir provisoriamente, ainda que de uma maneira imperfeitissima, a esta lacuna fundamental, que o progresso da transição revolucionaria devia tornar cada vez mais funesta á marcha das bellas-artes... Não podendo achar em volta de si uma sociabilidade bem caracterisada e assás fixa, a arte moderna imbuiu-se naturalmente da sociabilidade antiga, tanto quanto podia permittil-o uma ideal contemplação, guiada pelo conjuncto de monumentos de todos os generos, etc.»[164]

O abandono ou desprezo pelas obras classicas greco-romanas durante a Edade media, facilitára em certa fórma a espontaneidade e originalidade do genio esthetico moderno; mas um tal abandono era a consequencia do desdem com que esse passado e edade polytheica eram considerados pelo catholicismo em relação ã nova sociabilidade europêa:

«Convém notar, que uma tal tendencia era, na Edade media, intimamente ligada ao preconceito universal, tão justamente estabelecido pelo catholicismo, sobre a preeminencia fundamental do novo estado social comparado ao antigo.»[165] A época da Renascença caracterisa-se por uma profunda admiração pelas obras e até pela constituição social d’esse passado polytheico; como se deu uma alteração tão profunda no [Pg 267] gosto e no criterio, apparecendo a Edade media como barbara, como uma edade de trevas? Desde que a Egreja deixou de acompanhar o progresso da sociedade europêa, e o Poder espiritual se materialisou nas fórmas de uma soberania terrena, estabeleceu-se uma reacção nos espiritos, levando os que eram crentes para a preoccupação de uma Reforma, dentro da propria orthodoxia da Egreja, e os que se emancipavam da credulidade, a acharem no estado de consciencia do mundo antigo greco-romano manifestações mais bellas em quanto á situação moral e social. A revivescencia das obras primas da antiguidade obedecia a um certo espirito revolucionario, já contra a Egreja, e mesmo contra as Monarchias, como se observa no Humanismo francez e no hollandez. Comte notou um d’estes aspectos revolucionarios: «Esta relação natural, mesmo ulteriormente contribuiu, em sentido inverso, para a resurreição da litteratura antiga, na qual tantos espiritos cultivados procuravam, máo grado seu, uma especie de protesto indirecto contra o espirito catholico, desde que elle deixou de ser sufficientemente progressivo.»

Causas especiaes actuavam na Italia para que ella se apaixonasse pelo esplendor da civilisação antiga, exercendo a sua hegemonia litteraria e artistica desde o seculo XV. Não foram os eruditos exilados de Byzancio que trouxeram á Italia o conhecimento dos monumentos da antiguidade classica; essa tradição não perdera ali a continuidade. Dante tomando Virgilio como mestre e guia (tu duca, tu maestro) e proclamando Homero poeta soverano, define com mais clareza do que qualquer [Pg 268] prova historica essa relação entre as duas edades. A cultura da Jurisprudencia romana, fazendo convergir ás Escholas de Italia todos os estudiosos da Europa, preparava para essa cultura humanista, que servia de alivio suave aos espiritos no meio da instabilidade politica de uma sociedade, que aspirava debalde á vida nacional no meio das absorpções e traições dos Papas, da pressão semi-barbara dos Imperadores germanicos, e da indifferença de uma burguezia preoccupada exclusivamente do goso egoista das riquezas do seu trafico. O mundo ideal da Arte era um refugio para as almas mais puras; não podendo estabelecer uma relação com o meio social, fugiram da realidade, procurando nas litteraturas antigas as normas que mais encantavam, e cultivando a expressão esthetica (a arte pela arte) pelo instincto vago da perfeição e não pelo seu destino social. Philarète Chasles accentúa esta situação: «Na Italia, ao contrario do que succedia no norte, as molas da sociedade politica estavam gastas; a galanteria dos costumes, o brilho das artes, o encanto do estudo consolava o paiz d’esta divisão intestina que lhe não permittia ter esperança em uma grande vida nacional. Por confissão dos pensadores e dos escriptores philosophos da Italia, Machiavelli, Bentivoglio e Tasso, a época do seu esplendor intellectual é simultanea com a da decadencia moral. O genio das artes, da belleza do estylo e da fórma attingiram uma perfeição admiravel, sem que a sociedade se elevasse.»—«Tinham surgido á luz Dante, Petrarcha, [Pg 269] Boccacio; as republicas tinham cumprido o seu ruidoso destino; a fé politica e religiosa tinham desapparecido; tudo se dissolvia na ardente voluptuosidade dos costumes, no luxo das festas principescas e no culto physico das paixões, da belleza e das artes.»[166] Reflectia-se este estado social nas manifestações dos espiritos, em que a inspiração era um phenomeno psychico de tensão encephalgica, de erectismo nervoso. O genio sobresaía no meio das luctas, n’essa atmosphera de revolução em que respiram os grandes homens. No conflicto constante dos dois poderes o Sacerdocio e o Imperio, a Italia géra os organismos mais extraordinarios da humanidade, como Dante e Francisco de Assis, Miguel Angelo e Machievelli, Petrarcha e Raphael. As impressões vivas dão mais intensidade á existencia; vive-se muito em breves momentos. As melhores épocas da arte italiana coincidem com o veneno dos Borgias; o desterro abre a Dante a selva oscura da sua trilogia épica; a balia de Florença embala o nascimento de Miguel Angelo; a tortura policial ou inquisitorial dá a revelação das leis sociologicas a Machiavelli, e confirma em Galileo a ideia do movimento da terra; a perseguição leva Campanella a conceber a utopia da Cidade do Sol, e a Palestrina a concepção da musica religiosa. Cimarosa, o sonhador divino do Matrimonio secreto, cria um mundo novo de harmonia sob a pressão do despotismo austriaco que lhe deu a morte. A situação historica da Italia, na sua longa aspiração de nacionalidade, [Pg 270] explica-nos o caracter e successão dos seus grandes homens. Era-lhe sympathica a sociedade antiga, sob o aspecto da liberdade. Em épocas em que as garantias politicas se acham distribuidas em um justo equilibrio, em que a esphera da acção individual está descripta nos codigos, quando o interesse e o egoismo generalisam virtudes negativas e impõem uma moral chata de um concreto bom senso, o homem de genio acha-se asphyxiado, ridiculo, e para resistir procura confundir-se com a multidão e mascarar-se com o vulgarismo das mediocridades. Pelo contrario, as sociedades antigas favoreciam mais a livre manifestação do bello; na vida do Ágora, do Forum, faziam que o homem se possuisse do respeito do si mesmo; fallava como um deus, não conhecia o ridiculo, determinando-se pelas proprias impressões sem contraste entre si os outros concidadãos. A cada passo tinha de recorrer á revolta, para supplantar as tyrannias; nas festas civicas competia com os mais esbeltos, com os mais ligeiros e os mais fortes. A individualidade italiana lisongeava-se na idealisação da sociedade antiga, e nas suas crises sentia identificar-se n’esse mundo não pela erudição mas pela realidade. A Renascença não era para a Italia uma reconstrucção archeologica, nem uma imitação banal; os eruditos da Egreja e da Curia chegavam á illusão de se crêrem na sociabilidade greco-romana, e de quasi tentarem a substituição do catholicismo, que atravessava a crise de uma reforma, pela alegria exterior e fraternal dos cultos polytheicos. Pela acção dos seus genios individuaes na [Pg 271] fórma deslumbrante da arte e poesia, a Italia exerceu uma plena hegemonia em toda a Europa; mas essas manifestações de superioridade não a elevaram, por que a cultura esthetica era exclusiva, absorvente, e independente da disciplina intellectual e de toda a acção prática ou destinação social. É por isso que esse influxo da Renascença se torna entre as outras nações um artificio rhetorico, que se prolonga até ao seculo XVIII, sob as fórmas do Culteranismo e do Arcadismo pseudo-classicos.

D’esta preponderancia do ideal classico na Renascença, escreve Comte com notavel segurança: «Concebe-se facilmente com effeito, que a um systema de composição tão facticio, era preciso egualmente preparar, durante algumas gerações, um publico que o não fosse menos; por que, perdendo a sua originalidade da Edade media, a arte perdia egualmente, e inevitavelmente, a ingenua popularidade que era a recompensa espontanea, e que não se tornou a achar em um tal gráo, mesmo nos casos mais favoraveis. Ainda que a sua natureza geral a destina sobretudo ás multidões, a arte moderna era então forçada, por uma excepção inevitavel, de se dirigir especialmente a ouvintes privilegiados, que uma laboriosa educação tivesse préviamente collocado assim, ainda que em um menor gráo, nas condições estheticas analogas á dos proprios artistas, e sem os quaes não poderia existir, entre o estado passivo de uns e o activo de outros, esta harmonia indispensavel a toda a acção das bellas-artes. Na ordem plenamente normal, uma tal harmonia [Pg 272] estabelece-se geralmente sem esforço, de uma maneira muito mais intima, segundo a preponderancia commum do meio social que penetra constantemente e ao mesmo tempo o interprete e o espectador; mas sob esta anomalia provisoria, devia pelo contrario exigir uma longa e difficil preparação.»[167] Comte referia-se ao phenomeno, que tanto actuou na decadencia das litteraturas romanicas pela separação entre os escriptores e o povo, e á laboriosa educação classica europêa, que tornou possivel destacar da imitação antiga algumas obras primas.

a) O HUMANISMO QUINHENTISTA

O phenomeno tão complexo da Renascença, na Europa, abrange segundo o auctor da Historia do Materialismo, dois seculos de actividade, desde o meado do seculo XV até aos fins do seculo XVII. Segundo Comte, que analysou assombrosamente a marcha da sociedade moderna partindo da dissolução do regimen catholico-feudal, esta longa phase da Renascença caracterisa-se por uma revolução mais mental do que social. A Renascença apresenta-se com dois aspectos, um litterario, que leva á imitação das obras primas da antiguidade com desprezo systematico da Edade media, separando a idealisação esthetica dos interesses da sociedade moderna; o outro é scientifico, [Pg 273] retomando os conhecimentos que a Grecia nos legou sobre Mathematica e Astronomia, caminhando assim a intelligencia europêa para a creação das sciencias experimentaes, para a elaboração da Physica, e particularmente para a formação de uma nova synthese philosophica. Vê-se que d’estes aspectos um é inorganico, renovando o ideal polytheico, e o outro é impulsivo, restabelecendo a hierarchia theorica dos conhecimentos humanos, partindo da renovação da Mathematica e da Astronomia para a Physica e Chimica. Assim póde-se determinar na successão da Renascença na Europa, os seguintes periodos:

Philologico e artistico, em que prevalece a Italia como impulsora do estudo das litteraturas da antiguidade classica, ou propriamente o Humanismo:

Theologico e critico, resultante do estudo philologico dos livros sagrados, e pelo seu exame conduzindo ás ideias da Reforma religiosa, sendo a Allemanha a impulsora d’este movimento insurreccional dos espiritos:

Scientifico e philosophico, em que cooperam a Italia, a Inglaterra e a França, pela acção de sabios experimentalistas como Galileo, e espiritos syntheticos como Bacon e Descartes.

A Italia creava a philologia, renovando os perdidos estudos dos Alexandrinos, e levando a luz da critica e do gosto aos trabalhos confinados dos eruditos byzantinos. A paixão pela nova sciencia occupava todos os espiritos, desde a cathedra pontifical até ao humilde typographo. Era uma revolução em que a humanidade tomava conhecimento [Pg 274] de si mesma; toda a Italia era uma eschola, e de todos os paizes convergiam ali os espiritos ávidos de luz, destacando-se como novos pedagogos Victorino de Feltre e Angelo Policiano.

A corrente humanistica do seculo XV, sob o influxo da Italia reflectiu-se muito cedo em Portugal; vêmol-o pela preoccupação de traduzir-se em latim as chronicas portuguezas, como pelo empenho que levava a realeza e a aristocracia a enviarem estudantes para as escholas italianas. Azurara, que escrevia no reinado de D. Affonso V, falla na sua Chronica da Conquista de Guiné, como reconhecendo os caracteres dos elementos da Republica occidental, «da grandeza dos Allemães, e da gentileza da França, e da fortaleza da Inglaterra, e da sabedoria da Italia.» No primeiro quartel do seculo XVI, Portugal, pela extrema actividade das navegações e colonisações na India e Brazil, não acompanhou a marcha da Renascença; por este atrazo, conta André de Resende que viajou pela Italia e Flandres, que n’esses paizes Portugal era pouco considerado: «quibus Lusitanum nomen gratiosum non est.» Na Oração recitada em 1534 na Universidade de Lisboa, o sabio humanista chama a attenção das intelligencias para a direcção mental da Renascença, apresentando o exemplo da Italia, da Allemanha, da França, da Inglaterra e Polonia.[168] Em Portugal [Pg 275] estava-se um pouco afastado d’este movimento litterario, mas o nome portuguez resoava gloriosamente na Europa dominando nas principaes escholas. Os Gouvêas, como pedagogos quer em Paris ou em Bordeus, tinham por discipulos homens como Rabelais e Calvino, Montaigne e Ignacio de Loyola; e Erasmo contava entre os seus principaes amigos a Damião de Góes. Em breve destacaram-se da activa phalange dos humanistas do seculo XVI, na Europa, os portuguezes André, Antonio, Diogo e Marçal de Gouvêa (uma dynastia de pedagogos), Achilles Estaço, Ayres Barbosa, André de Resende, Aleixo de Sequeira, Diogo de Teive, Damião de Góes, Francisco de Fontes, Antonio Luiz, D. Francisco de Mello, D. Fructuoso de Sam João, Jeronymo Cardoso, Jorge Coelho, Henrique Caiado.

O humanismo italiano decaiu depois da tomada de Florença, appresentando a França o esplendor dos estudos philologicos, pela acção que os jurisconsultos como Cujacio, Hotman e Pithou exerceram pela analyse dos textos do direito romano, tratando de recompôr a vida social através da interpretação das leis. Era a applicação do methodo juridico, exacto e severo, ás obras da litteratura para revelarem o meio social. Como na Italia, o humanismo francez decahiu por causa [Pg 276] das guerras religiosas, e pelo empirismo secco e improgressivo do ensino jesuitico. Esta situação do Humanismo, que se tornára critico exercendo-se sobre os Livros biblicos, cooperou n’esse outro phenomeno social da regeneração do christianismo tentada sob o titulo de Reforma. Os humanistas, principalmente os da eschola hollandeza, eram chamados erasmistas, para significar a sympathia que sentiam pela revolução religiosa, tornando-os responsaveis das finas e livres ironias de Erasmo. Assim como Ayres Barbosa e André de Resende representam o humanismo italiano em Portugal, e Antonio de Gouvêa e Diogo de Teive representam o Humanismo francez, o nosso grande chronista Damião de Góes é o representante d’esse outro humanismo, que desde Erasmo a Heinsius e Grotius, pela vida prática de uma san democracia se identifica completamente com a comprehensão historica da civilisação antiga.

A ideia e aspiração de uma reforma na Egreja, que se manifestou na Allemanha pela simples aspiração a uma remodelação da hierarchia sacerdotal, apparece no seculo XVI agitando muitos espiritos dentro da orthodoxia: e assim um rei catholico e outro fidelissimo intervêm pedindo ao papa que tome essa iniciativa. É frequente encontrar-se nos escriptores do principio do seculo XVI uma nota satyrica contra a Egreja e o theologismo que se agarrava ás argucias do scholasticismo medieval. E assim como Luciano, na dissolução do polytheismo hellenico satyrisava os deuses, em França Rabelais dissolve os velhos preconceitos do regimen catholico-feudal pelos sarcasmos [Pg 277] do Pantagruel e de Gargantua, e o cavalleiro de Hutten na Epistolae Obscurorum Virorum, abala o carcomido throno da escholastica e da esteril theologia que atrophiavam a rasão humana.

Em Portugal é Gil Vicente o escriptor que se inspira com toda a decisão no espirito critico d’esta primeira phase da Reforma. É sublime esta grande alma, rebaixando-se á situação de actor (auctor et actor) para dizer diante da realeza quanto era necessario actuar sobre a hierarchia religiosa moralisando-a. São de uma audacia extrema os seus versos contra Roma. Os eruditos da Renascença em Portugal eram contrarios a Gil Vicente; mas ninguem como elle representou nos seus Autos e Farças a vida nacional, e se inspirou mais ingenuamente d’essa espontaneidade popular para exprimir a aspiração da sua época—a reforma da Egreja, iniciada por ella propria.

Um outro humanista, que citava Gil Vicente como auctoridade philologica, o grammatico Fernão de Oliveira, tambem seguiu as ideias da Reforma, porém na phase mais adiantada da transformação da disciplina. Os estudos criticos dos exemplares da litteratura antiga abriam aos eruditos do seculo XVI um horisonte mais vasto do que a rotina das escholas monachaes com a sua Arte velha de Pastrana ou de Alexandre Villa Dei. Os habitos da exploração dos textos desenvolvia o espirito de livre-exame; a intelligencia avesada a interpretar palimpsestos, a restituir a lição dos auctores classicos, a restabelecer os textos truncados, a compenetrar-se do sentimento da [Pg 278] antiguidade, não podia abnegar da sua supremacia, e applicára o mesmo processo á Biblia e aos Evangelhos. Foram os humanistas e os philologos que mais concorreram para a obra da Reforma; por isso os Jesuitas, reagindo contra o Protestantismo, tornaram-se essencialmente pedagogos apoderando-se do humanismo. Em Portugal vieram contraminar a obra do renascimento litterario superiormente dirigida por André de Gouvêa e por Diogo de Teive. Antes de ter cahido na illaqueação jesuitica, D. João III tentára attrahir para a reforma da Universidade de Coimbra a Erasmo. Damião de Góes é o que representa em Portugal a corrente da Reforma, não pela manifestação das ideias, por que elle confessa-se sempre orthodoxo, mas pelo seu martyrio, por ser amigo pessoal de Erasmo, por ter tratado com Luthero, quando esteve na Allemanha, e com Melanchton. Em uma confissão no Santo Officio declara: «Depois que vim a Portugal ... El Rei ... e os Infantes seus irmãos, e outros senhores do reino, me perguntaram com muito gosto e mui particularmente pelo discurso de minhas peregrinações, fallando-me em Luthero e nas cousas da Allemanha ... e por El Rei saber que vira eu já Erasmo Rotherodamo e que eramos amigos, me perguntou algumas vezes se o poderia eu fazer vir a este regno pera se d’elle servir em Coimbra.» Por intervenção de André de Resende é que viera tambem para Portugal o celebre humanista Nicoláo Clenardo.

Uma certa sympathia pessoal e litteraria existia entre Damião de Góes e Gil Vicente; fallando em humanidades com Erasmo inter pocula, [Pg 279] teve occasião de lhe inspirar curiosidade pela obra dramatica de Gil Vicente, que elle vira representar na sua mocidade na côrte de D. Manoel. Na relação das festas feitas em Bruxellas pelo embaixador D. Pedro de Mascarenhas pelo nascimento do princepe D. Manoel, em 1532, vem o nome de Damião de Góes como um dos que assistiu á representação do Auto da Lusitania, escripto n’esse anno por Gil Vicente, e repetido n’aquella côrte.

Uma das grandes influencias da Reforma, que a ligam ao movimento do humanismo da Renascença foi a summa importancia que se deu ao estudo do hebreu e do grego; as polemicas religiosas, as traducções da Biblia em vulgar, a leitura dos padres da egreja para a controversia, exigiam conhecimentos d’essas duas linguas, que estimulavam o criterio philologico. Melanchton recommendava aos seus discipulos Homero e S. Paulo; é tambem um sectario da Reforma, Fernão de Oliveira, que em 1537 publica a primeira Grammatica portugueza, plagiada por João de Barros para auxiliar a catechese de uns princepes indianos que vieram a Portugal. André de Resende recommendava aos alumnos da Universidade de Lisboa a alliança do grego com o latim; na reforma da Universidade em 1547, vieram de Paris para mestres de grego o Dr. Fabricio e Buchanan, para hebraico Rosetto. Pouco depois tiveram de fugir de Portugal, ao terror inquisitorial que os perseguia pela mão occulta dos jesuitas, para se apoderar da disciplina humanista. Em Jorge Ferreira de [Pg 280] Vasconcellos, Dr. Antonio Ferreira, Sá de Miranda e Garcia de Resende, acham-se referencias ao nome de Luthero, e á injuria terrivel da accusação de lutherano. Na epopêa de Camões, em que está implicito todo o espirito da Renascença, ha uma nota de aversão contra o movimento da Reforma:

Vêdel-os Allemães, soberbo gado
Que por tão largos campos se apascenta,
Do successor de Pedro rebelado,
Novo pastor e nova seita inventa...
Vêdel-o duro Inglez..........
Entre as boraes neves se recreia,
Nova maneira faz de Christandade...
Pois de ti, Gallo indigno, que direi?
Que o nome christianissimo quizeste,
Não para defendel-o, nem guardal-o,
Mas para ser contra elle e derrubal-o.
Pois que direi d’aquelles, que em delicias
Que o vil ocio no mundo traz comsigo,
Gastam as vidas, logram as divicias
Esquecidos do seu valor antigo?...
Comtigo Italia fallo, já submersa
Em vicios mil, e de ti mesmo adversa.
(Lus., VII, 4, 5, 6, 8.)

Camões sentia aqui a solidariedade d’estes elementos da Republica occidental, que quebravam a sua unidade catholica; mas as reacções provocadas pelo Concilio de Trento para restabelecel-a, levaram á depressão intellectual suscitando a fórma social da revolução [Pg 281] moderna, desde a monstruosa revogação do Edito de Nantes. Já quando em 24 de Agosto de 1572 chegou a Portugal a noticia da matança da noite de Saint-Barthelemy, celebrou-se esse crime da religião com repiques de sinos e luminarias, e um Te-Deum cantado na egreja de S. Domingos, com sermão do mystico Frei Luiz de Granada. Já nos estudos imperava o espirito que ditára a D. João III, que os estudantes da Universidade fossem «mais catholicos e menos latinos.» Pelo sacrificio á unidade catholica, em 1580, a aristocracia e o povo portuguez sacrificaram a propria nacionalidade. Nos paizes catholicos os Jesuitas mataram o Humanismo pelos seus cursos de Artes, e preparam essas gerações que na litteratura desconheceram o sentimento preferindo á verdade natural o conceito affectado e a figura de rhetorica.

O duplo elemento classico e medieval das Litteraturas romanicas, manifesta-se pela influencia que na portugueza exerceram as litteraturas italiana e castelhana.

I. Antagonismo dos dois elementos classico e medieval.—Em todas as manifestações estheticas do genio moderno, na architectura e na pintura, na poesia como na arte ornamental, appresenta sempre a Renascença uma duplicidade nos meios da expressão do bello: umas vezes o artista conserva-se alheio ao movimento da Renascença idealisando a vida medieval (Gil Vicente), outras vezes desprezando tudo quanto possa recordar o obscurantismo d’essa edade (Dr. Antonio Ferreira e Sá de [Pg 282] Miranda) e tambem fazendo o syncretismo dos dois espiritos, como vêmos em Camões confundindo nos Lusiadas as divindades do polytheismo como symbolos poeticos da indole dos symbolos christãos.

Van Bemmel, no seu livro De la Langue et de la Poésie provençales, caracterisa essa duplicidade das Litteraturas da Edade media:

«A actividade intellectual, na Edade media, formava dois mundos inteiramente differentes, tendo cada um seu povo, sua lingua e sua litteratura. De um lado era o elemento novo, espontaneo, essencialmente popular, cheio de vida e de futuro; do outro, o elemento conservador, não tendo mais do que uma existencia facticia, fóra do movimento social, inabalavel e sempre o mesmo ao lado da marcha rapida das ideias. De um lado estava a poesia e a lingua que se chamava vulgar ou romana, espalhadas entre o povo; do outro lado a sciencia e as linguas latina e grega, habitando os claustros, as escholas e as Universidades. E por longo tempo estas duas sociedades tão dissimilhantes viveram uma ao lado da outra, sem se conhecerem, sem se verem.» (p. 6.)

Basta observar o antagonismo entre a civilisação e o poder imperial de Roma, e as raças barbaras da Europa, que vieram a prevalecer na reorganisação social moderna depois das invasões das tribus barbaras da Germania, para se notar que estes dois elementos não podendo unificar-se tinham de alternar-se na sua influencia. Entre a civilisação da Antiguidade classica e o mundo medieval, apparece a [Pg 283] religião universalista do Christianismo; no periodo proselytico da sua constituição e da lucta apoiou-se a nova religião nas classes servas, na plebe, adaptando-se ao elemento popular; quando ligada ao poder politico se fortificou pela hierarchia, ou Egreja, a nova religião tentou apoderar-se da missão da unidade de Roma, e tornar-se cultora e depositaria da litteratura latina. O antagonismo entre o clericus e o laicus reflecte-se em toda a vida mental da Edade media. Escreve Gaston Paris, sobre este antagonismo: «A Egreja conservou officialmente a lingua do imperio romano, ao qual se tinha associado intimamente com Constantino; em quanto, na época das suas luctas ella tinha favorecido o desenvolvimento da lingua e da poesia populares, a partir do periodo barbaro, procurou conservar a unidade romana, sequer pelo menos na ordem espiritual, acima de todas as variantes nacionaes. A tentativa de renascença feita por Carlos Magno apoiou-se então essencialmente na Egreja, e desde ahi até aos tempos modernos, a lingua da Egreja foi a da sciencia e a da litteratura elevada. Este estado de cousas creou entre o clerigo e o leigo uma separação profunda que domina toda a historia das litteraturas da Edade media. A poesia popular desenvolveu-se com uma grande espontaneidade e uma liberdade completa; mas ficou privada, pela abstenção dos espiritos superiores e mais cultivados, da perfeição da fórma e da seriedade de fundo, que sem duvida com o seu concurso teria podido attingir. Por outro lado, os clercs fechados nas suas [Pg 284] fórmulas tradicionaes e herdeiros muito fieis, dispenderam durante seculos esterilmente uma actividade intellectual consideravel.»[169]

«Na Renascença o clericus e o erudito confundem-se em um mesmo typo, o humanista, que detesta a rudeza medieval e só visa a attingir a perfeição da fórma pela imitação da belleza classica. Póde-se seguir esta predilecção exclusiva através de todas as fórmas geraes da Arte. Na Architectura, á efflorescencia gotica, desenvolvida pelos sentimentos da sociedade catholico-feudal, oppõe-se a reproducção das ordens gregas, propagando esse estylo Bramante, Raphael, Peruzzi, Geminiano de San Gallo. O estylo classico foi propagado em Portugal por Sansovino, de Florença. O conflicto entre os dois estylos, deu logar a uma manifestação architectonica encantadora o gotico florido, chamado manoelino, no qual como nos generos que o antecederam existe, como observou o artista Roquemont alguma cousa de privativo, que pertence unicamente a Portugal.»[170] No Auto da Ave Maria, de Antonio Prestes, escripto por 1529, esboça-se a lucta do estylo classico e do gotico:

MESTRE: E a que vem a esta terra?
DIABO: Mostrar mi saber, mis manos;
suena allá que Luzitanos
su gusto aora se encierra
en edificios romanos.[Pg 285]
CAVALL: Eu sou dos que estão postos
n’esse gosto;
que não vi melhor composto,
hei-o por gosto dos gostos,
jamais lhe virarei rosto.

As doutrinas estheticas de Bastiano de Sangallo (1481-1551) tambem apparecem citadas n’este Auto do Prestes: «el gran Sebastiano—fué la tinta, yo la pluma...» A corrente classica foi sustentada em Portugal por Francisco de Hollanda, que viajou pela Italia e se educou em Roma, vivendo na intimidade dos grandes artistas da Renascença.

Na Pintura reflecte-se o mesmo antagonismo; o chamado estylo gotico ou propriamente a influencia flamenga e allemã, representada em Gram Vasco, é substituida pelo gosto italiano, revolução determinada pelo sabio Raczynski na época de D. João III, entre 1530 e 1550, sendo os principaes renovadores Gaspar Dias, Fernando Gomes, Manoel Campello e Francisco Vanegas. Na Esculptura e Ourivesaria, o erudito Garcia de Resende, na Miscellanea, mostra um grande desprezo pelos artistas nacionaes, talvez mesmo com intenção de ferir o auctor da Custodia de Belem, dando a palma aos italianos:

Ourivisis e Escultores
São mais sotis e melhores.

A mesma preoccupação erudita fazia com que se não estudassem as chamadas leis do reino na Universidade, e todo o ensino incidisse [Pg 286] exclusivamente no Direito romano. E como os Poetas eram geralmente jurisconsultos, como Sá de Miranda, Ferreira, Gabriel Pereira de Castro, André Falcão de Resende, Mousinho de Quevedo, era natural tenderem para a imitação da poesia classica, Gil Vicente, eminentemente nacional, satyrisa esta corrente juridica:

vereys com quanta graveza
busca leys de gentileza
no lindo estylo romano.
(Canc. ger.)

É nas fórmas da Poesia que mais nos interessa observar esta corrente do classicismo pela imitação da litteratura italiana.

O genio sensual da Renascença fizera do estudo litterario um passatempo epicurista; o culto dos exemplares gregos era objecto de um fanatismo e de vaidade pessoal; os Cardeaes entregavam-se a este culto de predilecção, a ponto de resarem odes gregas em vez dos canones da missa, como fazia o cardeal Bembo, ou de representarem comedias classicas como o cardeal Bibiena. Á imitação da academia alexandrina, os eruditos italianos, com o vinculo do mesmo amor pela Antiguidade, reuniam-se em palacios esplendidos, ora em jardins magnificos, terminando regularmente as palestras litterarias com musicas e opiparos banquetes. Este empenho da arte pela arte levou á fundação de innumeras Academias italianas no seculo XVI, com os titulos heteroclitos de Intronati, (1525) Infiammati, (1540) Innominati, (1549) Insensati, (1560) Animosi, (1576) Illuminati, (1598) etc.

[Pg 287]

A influencia italiana estendeu-se a Portugal tambem em relação ao estabelecimento de Academias. Na côrte de D. João III, a Infanta D. Maria, a ultima filha do rei D. Manoel, fundou uma Academia de mulheres, a que pertenceram Luiza Sigêa e Angela Sigêa, Joanna Vaz, e Paula Vicente filha do fundador do theatro nacional. Era estylo comparar as damas formosas e cultas á celebre Victoria Colonna. João de Barros descreve a Infanta aproveitando o tempo que lhe restava das suas resas em aprender latim. Nos versos feitos por André de Resende á morte de Luiza Sigêa, vêmol-a retratada como uma assombrosa polyglota, versada no latim, grego, hebraico, chaldeo, e correspondendo-se com o Papa Paulo III, a quem dedicou o seu poema Cintra. No livro das Moradias da Casa da Rainha D. Catherina, Anna Vaz apparece com o ordenado de 6$000 réis com verba de latinas, provavelmente mestra das outras damas. Falla dos seus conhecimentos de letras humanas o Dr. João de Barros no Espelho de Casados. No citado livro das Moradias, Paula Vicente, tambem auctora de uma grammatica e collaboradora nos Autos de seu pae, apparece com o assentamento de tangedora. D’entre a pleiada academica distinguia-se então D. Leonor de Noronha, que traduzira do latim as Eneadas de Marco Antonio Sabellico. Vê-se como a moda da erudição abafava a natural sympathia feminina pela Edade media.

[Pg 288]

a) O LYRISMO PETRARCHISTA

A influencia da poesia trobadoresca irradiou da Sicilia para a Italia continental, empregando-se o dialecto toscano, fallado em Florença e preferido para a linguagem escripta, para propagar as canções amorosas, em que se manifestaram as mais delicadas e ideaes emoções dos Fieis do Amor. Dante falla com encanto d’esse «dolce stil nuovo ch’io odo,»[171] e no De vulgare Eloquio, diz que as composições poeticas em linguagem vulgar se consideram de gosto siciliano. D’esta corrente poetica nasceram as fórmas definitivas do lyrismo moderno, levadas á perfeição por Petrarcha. Em Portugal foram conhecidos os principaes trovadores chamados sicilianos, Bonifazio Calvo, de Genova, e Sordello, de Mantua, mas a sua influencia decahiu com a eschola provençalesca desde o tempo de D. Affonso IV. A Hespanha começou a renovação do seu lyrismo desde Micer Francisco Imperial e chegou ao esplendor da eschola de Sevilha; em Portugal essa influencia manifesta só se determina depois da viagem de Sá de Miranda á Italia em 1521, quando tambem se operava egual transformação do gosto em Hespanha por Boscan, Cetina e Garcilasso. Sá de Miranda, que teve uma clara comprehensão do dolce stil nuovo, conhecia-lhe a sua origem litteraria, e mostra a relação entre os rudimentos poeticos dos trovadores provençaes e o bello lyrismo italiano:

[Pg 289]

Entrando o tempo mais, entrou mais lume,
Suspirou-se melhor, veiu outra gente,
De que o Petrarcha fez tão rico ordume:
Eu digo os Proençaes, que inda se sente
O som dos brandos versos que entoaram
As suas musas brandas, brandamente.[172]

Parece que tambem allude aqui ao gosto allegorico, que apparece no Cancioneiro de Resende, recebido da communicação com o lyrismo aragonez. Abrindo os livros das poesias de Sá de Miranda, de Bernardes, de Camões, depara-se logo com dois estylos, no systema de metrificação em octonarios e em endecasyllabos, e na galanteria palaciana differente da expressão de emoções intimas subjectivas. Em um dos generos a estrophe é a quintilha, a decima, as voltas e esparsas que se empregam; no outro é a quadra, o terceto, a sextilha, a outava, com a variação de hemistichios. Ha poetas que nunca metrificaram em endecasyllabos, caracteristico do gosto italiano, como Christovam Falcão, e outros que detestaram o gosto de Cancioneiro, ou castelhano de redondilha, como o Dr. Antonio Ferreira. Houve effectivamente uma alteração do gosto [Pg 290] no lyrismo, e uma lucta de implantação, que se observa na historia litteraria de Hespanha e de Portugal, deduzida das proprias composições dos poetas.

A poesia castelhana ficára no mesmo estado em que a deixára João de Mena, sendo estafada nos cancioneiros palacianos; por 1526, Andrea Navagero, embaixador veneziano em Hespanha, fez sentir a Boscan o atrazo d’essa poesia, revelando-lhe as bellezas do lyrismo italiano, do dolce stil nuovo. Por este tempo viaja Sá de Miranda na Italia (Roma, Veneza e Milão) e pelas suas relações litterarias com Ruscellai e Lactancio Tolomei tomou conhecimento das composições dos grandes lyricos italianos; logo no seu regresso a Portugal tentou implantar o novo gosto. Seguiram-no D. Manoel de Portugal, Diogo Bernardes, Pero de Andrade Caminha, o Dr. Antonio Ferreira, Francisco de Sá de Menezes, Frei Agostinho da Cruz. Na ecloga Aleixo, referindo-se á situação de Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda dá a entender que o encantador bucolico tambem tentára o endecasyllabo italiano. A este tempo Garcilasso alliára-se com Boscan contra Castillejos e os mais poetas que sustentavam a preponderancia da poetica da medida velha; Sá de Miranda tambem se queixa de uns pontosos, que reprovavam a sua generosa tentativa. A lucta azedava-se de parte a parte, por que não viam no lyrismo italiano mais do que o uso dos versos grandes, sem comprehenderem a expressão do sentimento philosophico do platonismo, que elevava esse lyrismo. Mas o resultado [Pg 291] das questões de eschola entre metreficadores de redondilhas ou de endecasyllabos foi bom: leram-se os mais perfeitos modelos da excelsa poesia italiana, e começou-se a dar preferencia á lingua nacional, que d’antes era abandonada versejando-se em castelhano ou em latim. Ferreira escrevia de si com orgulho: «Ah, Ferreira, dirão, da lingua amigo.» Da mesma imitação italiana tira a auctoridade, referindo-se á Hespanha e á Pléiade franceza:

Garcilasso e Boscão, que graça e spritos
Destes á vossa lingua, que princeza
Parece, já de todas na arte e ditos!
E quem livrou assy a lingua franceza
Senão os seus francezes curiosos,
Com diligencia de honra e amor acceza?
E vós, oh namorados e engenhosos
Italianos, quanto trabalhastes
Por serdes entre nós n’isto formosos!
Assi enriquecestes e apurastes
Vosso toscano, que será já tido
Por tal, qual para sempre vós deixastes.

Nas suas Cartas, Sá de Miranda descreve o prazer intimo com que lia na quinta da Tapada, junto da fonte da Barroca, a Arcadia de Sanazzaro, o Orlando de Ariosto, as odes e sonetos de Garcilasso e de Boscan, e como ia passo a passo implantando o novo gosto. Em Bernardes tambem apparecem citados os poetas italianos, que mais se admiravam, em uma Carta ao Conde de Monsanto:

[Pg 292]

E o vosso sobre todos mais mimoso
Ahi conversareis mais de contino,
Digo o suave auctor do Furioso.
Torquato, que sugeito achou divino,
Para mostrar os seus altos conceitos,
Cantando Godofredo e de Aladino.
Petrarcha e Sanazzaro, cujos peitos
O douto Apollo encheu de alta doutrina,
O Bembo e o Lasso, ao mesmo Apollo acceitos.
Veronica com Laura Terracina,
E aquella formosissima Vittoria
Que sobre o nosso sol o seu empina.
(Carta, XXXVIII.)

A edição que se fez em Lisboa das Obras de Garcilasso em 1543 revela-nos o triumpho indiscutivel do novo gosto lyrico. Sá de Miranda tornou-se um chefe espiritual da nova geração de poetas que o saudavam em bellas epistolas no seu retiro da quinta da Tapada, no alto Minho. O lyrismo da eschola italiana já tão perfeito em Diogo Bernardes, attingiu a sua maior belleza em Camões, que pelo poder do genio harmonisou as duas escholas, escrevendo em ambos os generos, dando-lhes a eterna belleza da realidade da paixão.

b) A EPOPEA CLASSICA

Aos grandes factos do mundo economico e politico, como a propagação da Imprensa, a vulgarisação das obras litterarias e scientificas da antiguidade classica, as descobertas maritimas de Colombo, Vasco da Gama e Magalhães, a Reforma religiosa de Luthero, e a fórma da dictadura temporal aspirando á Monarchia universal, corresponde na [Pg 293] litteratura do seculo XVI o esforço para a idealisação da Epopêa historica nacional. Absorta diante da Iliada e da Eneida, irracionalmente equiparadas, a imaginação dos poetas acha-se sem audacia para descobrir o thema da Epopêa nova, em harmonia com a corrente positiva do maior seculo da historia; as tentativas infelizes conhecem-se logo pelo assumpto, já consagrando os typos menos dignos da dictadura monarchica, já retomando successos que dependiam da credulidade, que estava extincta. A França absorvida no culto da antiguidade classica chegou a desprezar e esquecer completamente as Gestas heroicas dos seus paladinos do periodo feudal; e sendo ella a creadora das modernas epopêas cyclicas, os seus criticos formularam a deploravel phrase: La France n’a pas la tête épique.

O genio italiano acceitou a epopêa feudal como um elemento de distracção, tornando-a compativel com a vida burgueza, com as resalvas da ironia e das caprichosas digressões. A saudade das bellas tradições da cavalleria que se iam perdendo, levou-o a reconstruil-a poeticamente, encobrindo com uma graça faceta o contraste entre a sociedade real na lucta dos interesses e as ingenuas aventuras galantes. A Epopêa cavalheiresca como a renovaram Pulci, Berni, Boiardo, Alamani, Trissino e Ariosto é um mixto de enthuziasmo guerreiro em indoles pacificas, que se interrompem para sorrir amigavelmente. A novella do Amadis, que recebera a fórma da [Pg 294] prosa em Portugal, entrou através da traducção franceza na elaboração italiana, dando-lhe Bernardo Tasso a fórma poetica classica egual á que receberam as Gestas francezas.

Apezar de se resuscitar na vida palaciana o symbolismo e práticas da Cavalleria, no seculo XV, tudo isso estava fóra dos costumes, e caía em um ridiculo quixotismo, como vêmos na côrte de D. João I, em que cavalleiros e damas se baptisavam com os nomes dos heroes da Tavola-Redonda. Em França, Francisco I tambem quiz galvanisar a morta instituição da Cavalleria, facto que, segundo Rathery, despertou o genio de Ariosto e de Tasso. É natural que a Edade media, quando se extinguia como organisação social, lançasse os ultimos lampejos como reminiscencia poetica. As outras Litteraturas romanicas foram apoz as normas italianas da epopêa. Du Bellay suspirava por um assumpto nacional; levanta-se Ronsard com a Pléiade, mas a imitação grega e latina levada ao exagero não conseguiu mais do que o poema morto da Franciade. Os poetas da Pléiade eram discipulos dos grandes eruditos da Renascença franceza Danès, Turnèbe e Domat, e como taes detestavam a Edade media; Du Bellay chega a aconselhar aos poetas: «folheae com mão nocturna e diurna os exemplares gregos e latinos, e deixae-me todas essas velhas poesias francezas aos Jogos Floraes de Tolosa, e ao Puy de Rouan, esses rondós, balladas, virelais, cantos reaes, canções e outras taes confecções, que corrompem o gosto da nossa lingua e não servem senão para prestar testemunho da nossa [Pg 295] ignorancia.»[173] É evidente o antagonismo entre as duas correntes do gosto.

Em Hespanha a imitação da poesia épica não encontrou a sympathia com que foi assimilado o dolce stil nuovo, ou o lyrismo italiano. Havia um laço commum da Sicilia tanto para a Italia como para a Hespanha, era a pastorella, apta a receber a perfeição individual do subjectivismo amoroso. A classe culta que seguia o humanismo da Renascença despreza os romances populares e as Novellas de cavalleria, fórmas organicas ou derivadas da epopêa; a elaboração poetica dispendia-se em Eclogas, que se ampliavam em Pastoraes. Os poetas de Hespanha desejavam uma epopêa séria, nacional, e com os olhos fitos em Homero e Virgilio caíam no genero hybrido da epopêa academica; querendo um heróe nacional, cegaram-se com o brilho das intrigas politicas de Carlos V, e sobre este chefe da dictadura monarchica, Zapata compõe o Carlos famoso, Urrea o Carlos victorioso, e Samper a Carolêa. A corrente erudita chegou quasi a fazer perder ao genio hespanhol o sentimento épico, que lhe fez pôr em Romances as tradições heroicas que supplantaram os cyclos das Gestas e poemas francezes.

Como todos os outros povos romanicos, Portugal tambem seguiu a influencia italiana da Renascença; o reflexo d’esse brilhante periodo [Pg 296] litterario e artistico começou no tempo de D. João II, até se impôr á admiração nos reinados de D. Manoel e D. João III. Correspondendo-se directamente com Angelo Poliziano, D. João II não encobre a emulação que tem por Lourenço de Medicis, ao qual procura imitar no grande movimento philologico e artistico que prepara o seculo XVI. No Cancioneiro geral, os dois pequenos poemas á morte de D. João II e á tomada de Azamor, têm certas analogias com o genero a que os italianos chamaram poemetti, que Lourenço de Medicis e Angelo Poliziano iniciaram.

Na litteratura portugueza tambem se reconhecia a necessidade de uma epopêa culta. Desde que começou a dominar o espirito classico, conheceram-se desde logo os épicos antigos; Azurara cita frequentes vezes Lucano, o creador da epopêa historica; o texto de Homero era explicado na Universidade com pasmo dos estrangeiros. O syncretismo erudito levava as imaginações para a mythificação etymologica dos nomes de Luso e Lisboa ou Ulyssêa; o sentimento da realidade impellia-nos para o facto das grandes navegações. Tinhamos descoberto o caminho maritimo da India; João de Barros no Panegyrico recitado diante de D. João III em 1533, sentia que se não ligasse á poesia épica o interesse que provocavam as canções lyricas: «ás mezas dos princepes e grandes senhores se cantavam antigamente em metro os feitos notaveis dos grandes homens, d’onde primeiro nasceu a poesia heroica, e segundo eu tenho ouvido ainda n’este tempo os Turcos em suas cantigas louvam feitos de armas de seus Capitães, o que se fosse usado em Hespanha [Pg 297] e toda a Europa, se me eu não engano, mais proveito de tal musica naceria, do que de saudosas cantigas e trovas namoradas.» Fallava contra a preoccupação exclusiva dos lyricos petrarchistas e bembistas de Hespanha e Portugal; elle queria a epopêa historica, chegando a metrificar algumas outavas de fórma castelhana para amostra. No fim da Oração recitada por André de Resende na Universidade de Lisboa em 1534, vem um poemeto latino sobre a fundação de Lisboa, no qual o antiquario eborense deixou em um hexametro a designação épica de Lusiadas, segundo o patronimico heroico: «Inter Lusiadas nisi amor revocasset amatae.» N’esse poemeto falla dos vastos dominios de Portugal, cita a Taprobana e muitos outros nomes com colorido poetico. Os eruditos faziam sentir a necessidade de uma epopêa nacional, mas séria e em contraposição á italiana, que era phantasmagorica. Sá de Miranda fallando d’esses poemas recommenda: «A estraños cuentos orejas seguras;» o que equivale ao rifão: A palavras loucas, orelhas moucas. Camões contrapõe ao—Orlando, ainda que fôra verdadeiro, e ao Rogeiro vão, a realidade dos factos historicos, mas acceita da epopêa italiana a magnifica e incomparavel Outava rima esboçada por Boccacio e universalisada por Ariosto. Os nossos poetas quinhentistas eram sugeridos pela realidade historica para a idealisação épica; em uma Carta a Caminha, o Dr. Antonio Ferreira incita-o, por 1554, para que se entregue ao labor de uma epopêa nacional:

[Pg 298]

O Portuguez Imperio que assim toma
Senhorio por mar de toda a gente,
Tanto barbaro ensina, vence e doma,
Por que assi ficará tão baixamente
Sem Musas, sem sprito, que cantando
O vá do Tejo seu ao Oriente?

O vaticinio de Ferreira, desejando que o filho do princepe D. João protegesse o futuro épico, foi realisado por Camões. Mas nem João de Barros, nem Antonio Ferreira chegaram a vêr os Lusiadas; o chronista expirou quando Camões chegou a Lisboa, e n’esse mesmo anno Ferreira succumbia á Peste grande. Na gigante epopêa de Camões apparecem os dois espiritos antagonicos, conciliados pela intuição do seu genio esthetico: a mythologia, posta em moda pela Renascença, e as lendas do Christianismo medieval cooperam na mesma estructura. Qualquer d’estes preconceitos de eschola ou de crença era bastante para lhe imprimir o sello da mediocridade, se as impressões directas da viagem da India, e as saudades da Patria ditosa sua amada, o não temperassem com a verdadeira emoção poetica. Assim através das correntes contradictorias da erudição humanista, como bacharel latino, e da crença catholica que se transformava no Jesuitismo, Camões teve o dom de realisar nos Lusiadas a epopêa nacional simultaneamente europêa e moderna.

[Pg 299]

c) A COMEDIA E A TRAGEDIA CLASSICAS

A imitação do theatro classico na Renascença atacou a obra organica da fundação do Theatro nacional, inaugurado por Gil Vicente sobre modelos tradicionaes e populares. Já no seculo XV apparecem citadas por Azurara varias tragedias de Seneca, que existiriam por certo na Livraria de D. Affonso V. Em 1534 mestre André de Resende citava as comedias de Menandro e as tragedias de Euripides pelos textos gregos. Imitámos, porém, os modelos da antiguidade com os olhos fitos na Italia, como aconteceu com as outras litteraturas romanicas. Nas principaes côrtes da Europa, e nas Universidades, entregavam-se aos divertimentos dramaticos; os cardeaes e grandes senhores pisavam os palcos, como Bibiena, e o sacerdote Torres de Naharro abrilhantava com as suas comedias lubricas as noites de Leão X. D. Manoel queria hombrear com a pompa da côrte pontifical, e tambem celebra as festas do paço com um Auto ou Farça; á maneira italiana tivemos muito cedo o theatro particular nas casas nobres. Manoel Machado de Azevedo quando deixou a côrte e regressou á sua quinta de Entre Homem e Cavado, celebrou o nascimento de seu primeiro filho com divertimentos dramaticos, para honrar os princepes que foram de Lisboa á festa do baptisado. Por 1528 leu Jorge Ferreira de Vasconcellos nos serões do paço a Comedia Eufrosina, antepondo a prosa ao verso, segundo o gosto italiano. Reagia-se contra o theatro nacional ou medieval, como [Pg 300] se descobre pela rubrica da farça de Inez Pereira, em que Gil Vicente reage contra os humanistas (homens de bom saber). Gil Vicente não foi vencido, mas a corrente erudita continuou a lisongear um publico restricto de eruditos, que desprezavam os Autos hieraticos.

Sá de Miranda que tinha iniciado o novo estylo italiano na poesia lyrica, tambem ensaiou a mesma reforma na poesia dramatica; no prologo da sua primeira comedia, representa a tradição da Arte classica theatral contando as suas peregrinações desde a antiguidade hellenica até ao seculo XVI, queixando-se de que os barbaros lhe tivessem pervertido o nome de Comedia em Auto, e a obrigassem a deixar a prosa para fallar em verso. A allusão feria directamente Gil Vicente, que pelo seu lado parece visal-o no Francisco filho do Clerigo da Beira (segundo Camillo, o conego Gonçalo Mendes de Sá.) A feição italiana da Comedia é inferior á ingenuidade do Auto medieval: n’este ha o typo popular, com as suas superstições, locuções, costumes, interesses, emfim todo elle é um documento ethnico e historico; na comedia imitada do italiano a acção nem mesmo se passa em Portugal, é em Palermo, com costumes sensuaes de cortezãs, com intrigas não comprehendidas, sem realidade. O cardeal D. Henrique mandava representar as Comedias de Sá de Miranda; foram imitadas nos divertimentos da Universidade, nos Collegios, e, quando prevaleceu o humanismo jesuitico, volveu a fórma da comedia ao texto latino.

Nos divertimentos da vida escholar escreveu Antonio Ferreira as [Pg 301] comedias de Cioso e Bristo nos moldes italianos; entre os cinceiraes de Coimbra nasceu a comedia Eufrosina, como declara Jorge Ferreira de Vasconcellos; a comedia dos Amphytriões escreveu-a Camões á imitação de Plauto, quando seguia o curso de Artes. Os divertimentos dramaticos adquiriram um maior desenvolvimento quando veiu para Coimbra o Collegio de Mestre André, ou o Collegio real, de que os jesuitas se apoderaram.

A renascença da tragedia não foi devida á imitação directa dos tragicos gregos, mas ao perstigio de um poeta da decadencia latina, Seneca, imitado por Albertino Mussato, por Angelo Poliziano, Trissino, Rucellai, Alamani, Cintio e Dolce. Em Portugal, já no seculo XV eram conhecidas as tragedias de Seneca; mas na Universidade de Lisboa nos principios do seculo XVI liam-se as tragedias de Sophocles e de Euripides, e o Dr. Antonio Ferreira conhecedor da lingua grega, ao escrever a tragedia Castro, seguiu os modelos gregos. Antes de Ferreira, em 1555, Ayres Victoria imprimia uma traducção do Agamemnon de Sophocles. O merecimento da Castro de Ferreira não está sómente no lyrismo dos córos, accentua-se no senso artistico com que soube fixar um assumpto nacional, sendo o primeiro que na Europa iniciou a tragedia fundada sobre um facto historico da civilisação moderna; por que a Sophonisba de Trissino representada em 1520, embora em lingua vulgar, não lhe derroga a prioridade, por falta de nacionalismo. Ferreira morreu em 1569 deixando manuscripta a sua tragedia, que appareceu imitada na Nise [Pg 302] lastimosa de Jeronymo Bermudez, em Madrid em 1577, assumpto que desenvolveu na Nise laureada, em que se dramatisa a vingança da que «depois de morta foi rainha.» Depois de Ferreira nunca mais os poetas abandonaram o thema tragico de Ignez de Castro, ao qual imprimiram a galanteria de capa e espada do seculo XVII, o imbroglio do seculo XVIII, e mesmo o sentimentalismo romantico do nosso seculo. A tragedia classica não progrediu; pela cultura humanista decaíu na fórma allegorica das Tragicomedias dos jesuitas.

A Comedia popular, como Gil Vicente a creára continuou a ser apreciada na côrte, como vêmos pela declaração de Luiz Vicente, dizendo que Dom Sebastião se recreiava com os autos de seu pae na meninice. E por que constituia eschola, o Auto foi atacado com prohibições severas nos Indices Expurgatorios. No meio d’estas duas correntes classica e medieval, Camões pela sua intuição de artista concilia os dois espiritos; elle adopta a fórma popular do Auto para dramatisar assumptos da mythologia e da tradição hellenica.

II. Sympathia pela Edade media na Eschola da medida velha.—Caracterisando a revolução occidental, Comte precisa-lhe os aspectos essenciaes por onde ella se manifestou: «a transição moderna abrangeu simultaneamente a intelligencia e a actividade, mas deixando de parte sempre o sentimento[174] E como a [Pg 303] dissolução do regimen catholico-feudal comprehendeu o systema das ideias dominantes da synthese theologica que perderam a credulidade dos espiritos, e a fórma da sociabilidade, cuja hierarchia aristocratica se quebrou com o advento do proletariado, essa profunda crise, que constitue a historia moderna, foi conjunctamente social e mental. Nos jurisconsultos vêem-se estes dois aspectos, quando pela erudição fazem reviver as leis romanas em favor da dictadura monarchica; servem a mesma causa os humanistas coadjuvando a emancipação mental com a vulgarisação dos philosophos gregos, cuja metaphysica oppõem á theologia catholica. Póde-se bem explicar toda a Renascença dos fins do seculo XV a principios do seculo XVII como uma profunda revolução mental; com a Revolução de Inglaterra é que a grande crise europêa toma o intuito social. N’esta instabilidade de critica e de acção não havia logar para as emoções affectivas; queria-se subtileza para a argumentação e audacia para o combate. O sentimento fôra inevitavelmente abandonado, tornando-se por isso mais violentos os conflictos; o que amar, quando tudo era agitado e incerto? A poesia teve de inspirar-se na admiração da antiguidade morta; alguns espiritos femininos foram com a forte corrente da erudição, mas a mulher alheia ao perstigio classico, sentia a saudade do passado, e, como diz Comte: «aspirava espontaneamente á Edade media.» De animo submisso, era n’essa edade extincta que a alma repousava na crença, que se exaltava na galanteria trobadoresca e na generosidade da cavalleria; a mulher mantinha o sentimento da [Pg 304] Edade media. Foi sobre essa tendencia que se estribaram sempre todas as reacções catholicas. Quando as Litteraturas romanicas caíam na imitação fria das obras primas greco-romanas, foi a predilecção feminina pela poesia dos Cancioneiros e pelas Novellas cavalheirescas, que fortificou a reacção contra o gosto e auctoridade dos eruditos.

a) OS POETAS DA MEDIDA VELHA

Na Arte de Galanteria notou D. Francisco de Portugal, que as damas não sympathisavam com os versos endecasyllabos por serem longos e não exprimirem conceitos tão delicados como as redondilhas. E Camões em uma das suas Cartas falla das damas que mostravam frieza ouvindo um pensamento de Petrarcha. Evidentemente o lyrismo italiano encontrou certa antipathia, que foi explorada em Portugal e Hespanha pelos poetas que continuaram com intuito de reacção a metrificar no verso octonario. Esta persistencia nada mais é do que o prolongamento da influencia da poesia castelhana, que desde as relações do Infante D. Pedro com João de Mena, se exercera nas côrtes de D. Affonso V, D. João II e D. Manoel. Ideia e fórma são imitadas dos versos de João de Mena, Jorge Manrique, Stuniga, como era moda nas côrtes de D. Juan II e Enrique IV. Os casamentos com princezas de Castella tornaram a lingua castelhana usual na côrte portugueza, n’ella escrevendo os seus motes, voltas e coplas. No Cancioneiro geral, de Garcia de Resende, vinte [Pg 305] nove poetas palacianos escrevem em castelhano, facto já observado por Pidal; Jorge Ferreira chegou a queixar-se do despotismo que as trovas castelhanas exerciam no nosso ouvido, e Damião de Góes tambem consigna o facto da grande importancia que tinham na côrte os chocarreiros de Castella. Era este lyrismo a ultima transformação do gosto ou estylo trobadoresco, e como um producto archaico, os fidalgos e os princepes são os que sobresáem como poetas, nos serões do paço. Foram poetas o rei D. Duarte, o Infante D. Pedro, seu filho o Condestavel de Portugal, e D. Philippa; mesmo o terrivel D. João II considerava o talento poetico uma excellente manha, e animava a habilidade poetica de Garcia de Resende. Tambem o infante D. Luiz era poeta, e de seu irmão o infante D. Duarte escrevia André de Resende: «Fazia trovas sentenciosas, e guardava todas as leis e arte de bem trovar.» A musica, tão cultivada pela aristocracia, como vêmos em D. João de Menezes, Sá de Miranda, Manoel Machado de Azevedo e outros, coadjuvava a sympathia pelos versos curtos de redondilha menor e maior, emquanto que os endecasyllabos só podiam ser recitados. A persistencia da medida velha manifestava-se pela paixão dos colleccionadores de Cancioneiros; d’este costume falla Jorge Ferreira de Vasconcellos, na comedia Ulyssipo: «Fazem por si mundo em segredo, vivem como morcegos, tem Cancioneiro de boa letra e má nota e mostram-no em particular a quantos lh’o querem ouvir.» (Fl. 213, V.) De varios [Pg 306] d’estes Cancioneiros formou Garcia de Resende o Cancioneiro geral, publicado em 1516, á imitação do Cancionero general de Hernando del Castillo, começado em 1491 e impresso em 1511. Em 1514 fôra Resende a Roma como secretario da embaixada a Leão X, e por tanto não fez mais do que confiar ao prelo sem ordem os materiaes que lhe entregaram, por entender que a poesia: «nas côrtes dos grandes prinçepes he muy neçessaria na jentileza, amores, justas e mômos, e tambem para os que máos trajos e envenções fazem, per trovas sam castigados, e lhe dam suas emendas...» Na Aulegraphia revela Jorge Ferreira o antagonismo das duas poeticas: «hey muito grande dó de uns juizes poldros, e tão curtos da vista, que acceitam toda novidade sem pezo, a olhos, e assi me parece de vós, senhor, que por andar com som do moderno sereis todo um Soneto, e condemnaes logo o outro verso, sem mais respeito nem consideração.» (Fl. 165, v.) E D. Francisco de Portugal, na Arte de Galanteria, tambem allude ao antagonismo das duas poeticas: «las otras modas de versos hizieranse para leydos, e estos para sentidos...» E explica claramente a influencia hespanhola em Portugal: «las coplas castellanas son las mas proprias para palacio...»

Os versos de redondilha deram expressão ás mais sentidas emoções amorosas, como no Crisfal de Christovam Falcão e nas Eclogas de Bernardim Ribeiro. N’este genero de redondilha chegou Gil Vicente a renovar os typos tradicionaes das serranilhas, e Camões na galanteria do paço tornou-se inimitavel na graça com que reanimou [Pg 307] toda a poetica dos velhos cancioneiros. O proprio inaugurador da poetica italiana era admirado e imitado no seculo XVII mais pelas suas bellas Eclogas e Cartas em redondilhas. As duas escholas, como notou Sá de Miranda estabelecendo a relação entre os provençaes e os italianos, não eram incompativeis, provinham da mesma origem.

b) ROMANCES E NOVELLAS DE CAVALLERIA

A instabilidade social na grande transição para a edade moderna, fez com que a creação épica dos Romanceiros da peninsula hispanica estacionasse em simples rudimentos narrativos. Facilmente foram dissolvidos na prosa das chronicas, como testemunhos historicos, e no seculo XV consideravam-se infimos e despreziveis os que com romances se recreavam. Esses infimos constituiam o proletariado, incorporado na sociedade moderna, e por isso não admira que os Romances começassem a ser colligidos no seculo XV em folhas volantes, máo grado o desdem dos cultistas litterarios e admiradores da antiguidade. Explorando esta corrente de sympathia popular, a fórma de Romance foi adoptada pelos escriptores cultos para n’ella metrificarem a prosa das chronicas nacionaes. Puzeram em romance a historia de Hespanha, Sepulveda, Juan de la Cueva e Lasso de la Vega; o mesmo trabalho se effectuou em Portugal, quando Gil Vicente, Jorge Ferreira, Balthazar Dias transformaram o romance anonymo, que se tornou subjectivo e um [Pg 308] pretexto para a composição musical.

A lingua castelhana usada como expressão aristocratica na côrte portugueza, era empregada de preferencia nos romances. André de Resende, na Vida do Infante D. Duarte, conta: «Veiu ter a esta cidade de Lisboa um mancebo castelhano chamado Ortiz, que graciosamente tangia e cantava chistes; filhou-o o Infante, e folgava de o ouvir.» (Cap. 11.) Tambem Jorge Ferreira allude aos romances póstos em musica: «Eu não vos nego que sabeis muito bem harpar um Conde Claros, que elles logo dizem que não ha tal musica.» O gosto feminino, suscitado pela musica tambem provocava a fórma litteraria dada ao romance, como o affirma Diego de San Pedro na Carcel de Amor, fallando das excellencias da mulher: «Por quien se cantan los lindos romances.» Os romances foram glosados, desenvolvendo-se lyricamente; na comedia Eufrosina, allude Jorge Ferreira a este gosto dominante: «Bem estaveis agora para glosar Recuerde el alma dormida, etc.» E na comedia Ulyssipo: «Este meio é de uns porretas que grosam Retrahida está a Infante, e Para que pariste, madre?» É frequentissimo o encontrar-se em todos os escriptores quinhentistas referencias aos romances populares que mais espalhados andavam na tradição, e com especialidade nos poetas dramaticos, que pintavam os costumes vulgares. O romance decaíu da sua importancia épica para as fórmas allegoricas e subjectivas do lyrismo culteranista; e quando conservou a expressão objectiva foi para representar as aventuras [Pg 309] de salteadores e contrabandistas nos romances de guapos e temerones, ou as Xácaras.

As Novellas de Cavalleria é que resistiram mais no gosto publico contra a corrente erudita que desdenhava de tudo quanto provinha da Edade media. Aqui são em geral as mulheres, que se interessam pelas narrativas novellescas. Em varios logares das suas comedias refere Jorge Ferreira a grande importancia que tinham as novellas na sociedade portugueza; diz na Eufrosina: «Ride-vos dos aphorismos de Hypocras, nam das Xergas de Esplandião.» E na comedia Ulyssipo, alludindo ás predilecções femininas: «Já se entram em saber latim ou musica, nenhuma cura lhes sinto. E se são lidas por Espelho de Cavalleria, ou Carcel de Amor, e Conde Partinoples, e não leixam udo nem meudo; ride-vos vós de mais Donzella Theodora.» Os humanistas eram inimigos encarniçados das Novellas medievaes; escreve o auctor do Dialogo de las Lenguas: «Dez annos, os melhores da minha vida, gastei em palacios e côrtes, não me empregando em exercicio mais virtuoso do que lêr estas mentiras, em que achava tanto sabor, que me deixava levar por ellas; e olhae que cousa é ter o gosto estragado, que se pegava em algum livro escripto em latim, que são os de historias verdadeiras, ou que pelo menos são tidos como taes, não podia resolver-me a acabal-os de lêr.» E no livro De institutionae Faeminae christianae o humanista hespanhol João Luis Vives deblatera contra as Novellas, pedindo a intervenção prohibitiva dos governos: «Deviam fazer o mesmo d’estes outros livros vãos, que [Pg 310] são: em Hespanha, o Amadis, Florisandro, Tirante, Tristão de Leonis, Celestina, a alcoviteira, mãe da malvadez; em França, Lançarote do Lago, Páris e Viana, Ponto e Sidonia, Pedro de Provença, Magalona e Melusina; e em Flandres, Flores e Brancaflor, Leonela e Cananior, Curias e Floreta, Pyramo e Tisbe. Ha outros traduzidos do latim em vulgar, como são as infacetissimas Facecias e Graças desgraçadas de Poggio, e as Cem Novellas de João Boccacio, livros todos elles escriptos por homens ociosos e desoccupados, sem letras, cheios de vicios e sordidez, nos quaes eu me maravilho como se póde achar cousa que dê deleite, a não ser que os nossos vicios nos tragan tanto al retortero;... eu por mim digo na verdade, que nunca vi, nem ouvi dizer que lhe agradavam obras d’este genero senão ás pessoas que nunca tocaram nem viram um bom livro, e eu tambem fiz d’essas leituras algumas vezes, mas nunca achei vestigios alguns de bom engenho.» Tambem na Historia imperal e cesárea, Pedro Mexia clama com sarcasmo contra as novellas: «e em paga de quanto trabalhei em a recolher e abreviar, peço agora attenção e aviso, já que o costumam prestar ás proezas e mentiras de Amadis, de Lisuartes e de Clarianes, e de outros portentos, que com tanta rasão deviam ser desterrados de Hespanha como cousa contagiosa e damnosa á Republica, pois tão mal fazem gastar o tempo aos auctores e leitores d’elles, e o que é peior, que dão mui máos exemplos e bastantes perigos para os costumes.» E n’esta increpação crescente de deshonestidade, conclue: «É um mui [Pg 311] grande e damnoso abuso, do qual, entre outros inconvenientes se segue grande ignominia e descredito das Chronicas e Historias verdadeiras, permittindo que andem cousas tão nefandas a par com ellas.» Vives, no seu livro De causis corruptarum Artium, condemna implacavelmente o Amadis e Florisandro, hispanicos, o Lancelot e Tavola Redonda, francezes, e o Orlando, italico; mas apezar de tudo a paixão cavalheiresca actuava na sociedade, como vêmos pela paixão de Ignacio de Loyola pelo Amadis de Gaula, na mocidade. Cervantes, no capitulo VI do D. Quijote, synthetisa esta antipathia, no exame feito pelo barbeiro Mestre Nicoláo e pelo Cura ás novellas por onde lia o Cavalleiro da triste figura: «O primeiro que lhe deu Mestre Nicoláo foi os quatro (sc. livros) do Amadis; e disse o Cura:—Parece cousa de mysterio esta, por que ao que tenho ouvido referir, foi este livro o primeiro de Cavallerias que se imprimiu em Hespanha, e todos os mais tomaram principio e origem d’este, e assim me parece que como a dogmatista de uma seita tão má o devemos sem excusa lançar á fogueira.—Não, senhor! (disse o barbeiro), pois tambem tenho ouvido dizer, que é o melhor de todos os livros que d’este genero se tem composto, e assim como a unico em sua arte se deve perdoar.—É verdade isso, volve o Cura, e por tal rasão se lhe outorga a vida por agora.» No exame do Palmeirim de Inglaterra, resolvem tambem «que este e Amadis de Gaula quedem livres de fogo, e todos os outros sem fazer mais reclamações pereçam.» Cervantes revelava n’este episodio o seu superior sentimento esthetico, diante [Pg 312] d’essas duas creações do genio portuguez, que continuava na historia a sua paixão pelas aventuras. Na Côrte na Aldeia refere Rodrigues Lobo uma anecdota caracteristica: «Na milicia da India, tendo um Capitão nosso cercado uma cidade de inimigos, certos soldados camaradas que alvergavam juntos, traziam entre as armas um livro de Cavallerias, com que passavam o tempo. Um d’elles, que sabia menos que os mais d’aquella leitura, tinha tudo o que ouvia lêr por verdadeiro, (e assim ha alguns innocentes que cuidam que se não póde mentir em letra redonda) os outros ajudando a sua simpleza, lhe diziam que assim era. Veiu occasião de um assalto, em que o bom soldado invejoso e animado do que ouvia lêr, lhe pareceu ensejo de mostrar seu valor e fazer uma cavalleria que ficasse de memoria, e assim se metteu entre os contrarios com tanta furia, e a começar a ferir tão rijamente com a espada, que em pouco espaço se empenhou de sorte, que com muito trabalho e perigo dos companheiros e de outros muitos soldados, lhe ampararam a vida, recolhendo-se com muita honra e não poucas feridas. E reprehendendo-o os mais amigos daquella temeridade, respondeu:—Ah, deixae-me, que não fiz a metade do que cada noite lêdes de qualquer cavalleiro do nosso livro.»

Era com este espirito que iamos á descoberta do Preste João das Indias e das Ilhas encantadas, e davamos a volta do mundo. Mas a edade da burguezia tinha chegado, e o nosso ultimo rei cavalleiro D. Sebastião amando mouras encantadas e sonhando o Quinto Imperio [Pg 313] do mundo, ao lançar-se para a conquista de Marrocos levava já comsigo a corôa de ouro com que havia de significar a sua soberania, e ia acompanhado do poeta que havia de exaltar na tuba épica o seu triumpho. Seria um prototypo de Quixote, se a este tresloucamento não andasse ligada a perda da autonomia da nacionalidade portugueza. As Novellas de Cavalleria tambem degeneraram nas allegorias pastoraes do gosto italiano, e nas historias moraes encabeçadas em nomes de personagens da antiguidade. Mas d’esta fórma se transitava para o typo mais caracteristico da arte moderna—o Romance, na accepção actual, que por este seu proprio titulo nos relaciona com a poesia da Edade media.

c) OS AUTOS HIERATICOS

Como em todos os povos catholicos em que as festas religiosas do Natal, Reis Magos e Paixão, eram a base do theatro hieratico, tivemos esses Autos ou vigilias, que se ligavam ás manifestações do culto, sobretudo no tempo em que a Egreja admittia o povo á participação da liturgia. Foi por um monologo de natureza de Visitação da lapinha ou do presepio, que Gil Vicente começou a elaborar a fórma litteraria do Auto hieratico.

Os velhos mythos da lucta do Verão e do Inverno, base de um grande numero de festas publicas europêas, tambem foram aproveitados pelo genio de Gil Vicente na farça popular. Por fim a fórma [Pg 314] dos Mômos e entremezes da côrte de D. João II, a que se allude no Cancioneiro geral, constituiam o elemento do theatro aristocratico. Gil Vicente, sugerido pela generosa rainha D. Leonor, compoz n’estes trez generos os seus Autos, Farças e Tragicomedias, quasi que exclusivamente para os serões do paço. As Constituições episcopaes atacaram o costume popular das representações hieraticas; e os eruditos da Renascença fizeram caír pelo descredito os mômos e entremezes. Sob o regimen da repressão catholica o povo ficou triste e mudo; Gil Vicente fez-se o seu interprete nas côrtes de D. Manoel e D. João III, dando a conhecer a miseria geral. Em um Auto falla no perigo de mandar os galeões para a India com capitães nobres mas imbecis; em outro pede tolerancia para a pobre gente supersticiosa na sua rudeza: em todos desmascara as grandes ambições do clericalismo. É esta fórma litteraria do Auto mais directamente medieval a que se manifesta mais radicalmente satyrica; ahi conserva as orações farsis dos goliardos, e tem como personagem comico o Diabo, como nos antigos Mysterios. Ainda entre o povo portuguez se encontra a locução—Fazer diabos a quatro, que teve origem dos Mysterios dramaticos, em que a importancia da peça augmentava com o maior numero de diabos que entravam; em Rabelais se encontra esta phrase: la grande diablerie à quatre personages, empregada no Pantagruel. D’este personagem popular foram herdeiros da sua malicia e vivacidade Scapin, Paillasse, Arlechino, Pathelin, Celestina e Sganarello.

[Pg 315]

Possuido da inspiração e espontaneidade do sentimento da Edade media, Gil Vicente, com essa liberdade sarcastica, toca em todos os pontos capitaes da grande lucta da secularisação social e emancipação mental, encontrando-se por vezes na mesma aspiração da Reforma. Em Antonio Prestes causa impressão como elle no Auto da Ave-Maria considera a Rasão como indispensavel para o merecimento da Fé. Não nos admira pois que o theatro nacional depois do Concilio de Trento fosse combatido nos Indices Expurgatorios, que conservaram muitos titulos de autos e comedias que a intolerancia religiosa fez perder.

A influencia castelhana da comedia em prosa, tambem de costumes populares, como o typo immortal e immoral da Celestina, acha-se introduzida por Jorge Ferreira de Vasconcellos na Eufrosina, Ulyssipo e Aulegraphia; elle cita com frequencia esse typo incomparavel: «E vós dar-lhe-heis mais virtudes que a madre Celestina.» João de Barros e Camões tambem citaram esta comedia portentosa, que se impoz á imitação portugueza. Na Côrte na Aldêa escrevia Rodrigues Lobo: «Ainda me parece que haveis de chegar á Celestina, que posto que o officio é commum de dois, accomoda-se melhor ao feminino.» Na linguagem popular egualmente se encontra a phrase: Artes da madre Celestina encantadora.

Em consequencia da incorporação na unidade castelhana em 1580, começou-se a representar em castelhano, e os escriptores portuguezes enriqueceram o vasto reportorio dramatico da Hespanha. Pedro Salgado, Jacintho Cordeiro, Mattos Fragoso escreveram em castelhano, comedias [Pg 316] famosas de capa e espada. Rodrigues Lobo refere-se á estructura castelhana começada a usar: «E tambem os poetas nas suas comedias, que são mais proprias para recreação e passatempo, dividiram a obra em actos a que agora chamam Jornadas...» Por falta de um interesse nacional, que fecundasse o theatro, ou de um sentimento que recebesse a expressão esthetica do drama, os divertimentos scenicos dos Pateos das Comedias tiveram por fim a especulação da caridade. Comtudo a riqueza fecunda do theatro hespanhol actuou nas litteraturas da Europa no seculo XVII, inspirando genios superiores como Corneille, Molière e Shakespeare.

b) O CULTERANISMO SEISCENTISTA

(Hegemonia da Hespanha)

Na marcha progressiva da Renascença, o pensamento europeu preoccupa-se com a renovação das sciencias experimentaes e com a elaboração de uma nova synthese philosophica. É n’esta corrente que finda o seculo XVI, e que se absorve completamente todo o seculo XVII, o qual segundo a phrase de Cournot, occupa na historia do espirito humano um logar unico, sem analogo no passado nem no futuro, em que as descobertas tornam-se revoluções em geometria, na astronomia e na physica, pela determinação das leis geraes do movimento e da acção da gravidade, da figura e movimento dos corpos celestes e [Pg 317] do systema do mundo. N’esta marcha grandiosa da revolução mental, que se manifestára pelo Humanismo, na sua fórma philologica e critica, a Egreja oppuzera uma reacção, primeiro de compressão material pela Inquisição, e depois de apropriação pela astucia por meio do ensino e da direcção espiritual do Jesuitismo. O encontro d’estas duas correntes depressivas deu-se no Concilio de Trento, que veiu perturbar as nações catholicas na sua actividade scientifica; e pela sua assimilação na dictadura monarchica (a Inquisição ao serviço de Philippe II, e a Companhia de Jesus servindo-se de Luiz XIV) a revolução tornou-se mais intensa saíndo do campo theorico para a prática social. A Hespanha, sob o dominio da Casa de Austria que se dava como garantia da unidade catholica, ficou alheia ao movimento scientifico e philosophico do seculo XVII. As suas Academias, fórma caracteristica adoptada pela cooperação dos investigadores da natureza e experimentalistas, tornam-se Tertulias de passa-tempo litterario. É n’esta exuberancia poetica sem plano, que se cultiva a fórma figurada da expressão, sem destino social; a cultura humanistica dos Collegios jesuiticos, com a sua falsa rhetorica, em pouco tempo se apoderou das novas gerações e lhes imprimiu o sello da mediocridade. As relações politicas do dominio da Hespanha na Italia, e a fusão do genio d’estes dois povos, quando a Companhia de Jesus se remodelou sob os geraes italianos, produziram as perversões moraes da casuistica molinista, do cauteloso equivoquismo do pensamento, e do [Pg 318] vazio concettismo da phrase. A falta de convicções era supprida pela emphase, e a ausencia de ideias pelo pedantismo mascarado com antitheses e parallelismos. O Humanismo italiano, materialmente imitado entre os outros povos da Europa, degenerou no Preciosismo em França, no Euphuismo em Inglaterra, e no Cultismo em Hespanha. Tem-se irracionalmente attribuido á Hespanha este contagio do máo gosto; mas a sua generalidade só póde explicar-se por causas sociaes persistentes e não por influxo individual de um ou outro escriptor. A Hespanha exerceu no seculo XVII uma acção sobre todas as litteraturas: revelou-lhes o drama moderno. Como todas as outras nações, ella tambem foi victima do máo gosto, por que soffria as mesmas causas sociaes: a compressão monarchica.

O imperio do equivoco na expressão vulgar e artistica, a linguagem sempre figurada e translata, não para receber mais relevo pittoresco mas para subtilisar as comparações sem a justa relação entre o sentimento e a imagem, e tudo isto feito por um esforço e pedantismo indigesto, constituem o gosto amaneirado, culteranesco, conceitista, geral a todas as Litteraturas do seculo XVII. O gongorismo ou culteranismo em Hespanha e Portugal, os concetti em Italia, o preciosismo em França, o euphuismo em Inglaterra, são o mesmo phenomeno, indicando no seu vasto contagio de corrupção no estylo litterario uma causa commum á sociedade europêa. Qual essa causa? A falta de liberdade. A dictadura monarchica do seculo XVI, acha-se no seculo XVII dando o apoio do seu poder temporal á compressão das dissidencias religiosas, e depois das [Pg 319] grandes carnificinas (S. Barthelemy, Dragonadas) prohibe a liberdade de consciencia e a liberdade do pensamento (Revogação do Edito de Nantes). Renan descreve em palavras incisivas o effeito d’esta suppressão da liberdade mental, apezar de não traçar o quadro historico da alliança ou colligação da Monarchia e da Egreja: «É tal a actividade da intelligencia humana, que o encerral-a em um circulo apertado é forçal-a a delirar. A liberdade de pensar é imperscriptivel; se barrardes ao homem os vastos horisontes elle se vingará pelas subtilezas; se lhe impondes um texto elle exime-se pelo contrasenso. O contrasenso nas épocas de auctoridade, é a reprezalia que toma o espirito humano contra a algema que lhe impõem; é o protesto contra o texto. Esse texto é infallivel; seja-o, embora. Mas é diversamente interpretavel, e n’isso começa a diversidade, simulacro de liberdade, com que se contenta á falta de mais. Sob o regimen de Aristoteles, como sob o da Biblia, pôde-se pensar tão livremente como no dia de hoje, mas com a condição de provar que tal pensamento estava realmente em Aristoteles ou na Biblia, o que nunca era difficil. O Talmud, a Masora, a Cabala são productos extravagantes do quanto é capaz o espirito humano acorrentado a um texto. Contam-se as letras, as syllabas, entregam-se aos sons materiaes mais do que ao sentido, multiplicam-se até ao infinito as subtilezas exegeticas, os modos de interpretação, como o faminto que depois de ter comido o seu pão apanha as migalhas. [Pg 320] Todos os commentarios dos livros sagrados parecem-se entre si, desde os de Manu até aos da Biblia, até aos do Coran. Todos são o protesto do espirito humano contra a letra escravisante, um esforço infeliz para fecundar um campo infecundo. Quando o espirito não acha um objecto proporcionado á sua actividade, cria um para si com mil habilidades.—O que o espirito humano faz diante de um texto imposto, fal-o diante de um dogma definido. Por que se mostrou tão aborrecido o seculo XVII? Por que morria de tedio madame de Maintenon em Versailles? É por que não havia ahi horisontes.—É por esta mesma rasão, que este seculo de orthodoxia e de regulamentação foi o seculo do equivoco. É a regra estricta que dá origem ao equivoco. Por que é o direito a sciencia do equivoco? É por que de todos os lados se vê confinado por fórmulas.»[175]

A transcripção foi extensa, mas merece ser desenvolvida na sua eloquente verdade. A severidade na etiqueta da vida palaciana, obrigava a uma linguagem affectada e de convenção, que por seu turno viria a influir na corrente da linguagem e do estylo litterario.[176] A severidade das regras deduzidas dos modelos classicos, e a indiscutivel admiração que lhes era consagrada, escravisavam a imaginação a imitar [Pg 321] ou melhor a parodiar caricatamente essas eternas idealisações do sentimento. O phenomeno deu-se em Portugal com a parodia dos Lusiadas, e em França com o Virgile travesti, de Scarron. Desde que se imitassem minuciosamente, respeitando as regras da rhetorica, os modelos classicos, estava admittido como litterario qualquer absurdo. Facilmente se perverteu a corrente scientifica das Academias em Tertulias e Arcadias, corporações destinadas á inalterabilidade das rhetoricas de Aristoteles e de Quintiliano, e a fomentar a livre expansão do equivoco, ou da linguagem conceituosa das pessoas cultas. Era ao que Gracian codificava sob o titulo de Agudezas de Ingenio.

O que se passava na Litteratura repetia-se com a mesma fatalidade do absurdo na Theologia, com as doutrinas do Quietismo, do Molinismo, do Congruismo, do Probabilismo, que transportadas para a polemica clerical e para os pulpitos deram os enormes ridiculos dos prégadores, retratados no Frei Gerundio de Campazas, e nas Provinciaes de Pascal, que reduziu a systema esse acervo de contrasensos. O equivoco artificioso invadiu os pulpitos, onde os prégadores, em uma época sem liberdade politica, arrastavam os textos sacros ás interpretações allusivas, e ás censuras encapotadas ou indirectas aos poderes publicos, como vêmos nos sermões do Padre Vieira.

Este mesmo motivo suscitou a immensa fecundidade do theatro hespanhol nos fins do seculo XVI e em quasi todo o seculo XVII; a nação estava sem liberdade, e era sobre a scena que o pensamento achava uma brécha [Pg 322] para expandir-se. É por isso que o drama hespanhol não representa o estado de consciencia do poeta que o elaborou; exprime todos os caracteres da alma hespanhola, repassada das suas tradições, sedenta de heroismo, cheia de garbo e de paixões violentas, mas não tendo em que empregar a sua vida affectiva. A cavalleria é atacada pelo ridiculo, a crença religiosa vae cedendo o logar á verdade scientifica; resta-lhe o drama sobre o palco, o espectaculo que lhe lisongeia o instincto. N’esta crise de uma sociedade a que lhe foge o antigo ideal, os individuos sem recursos para exporem o seu pensamento fizeram do palco a tribuna; d’ahi a rasão da extrema fecundidade creadora em uma época de repressão. Sobre este ponto é lucido o juizo de Philarète Chasles: «Este drama, no seculo XVII, desempenhou o papel que representa a imprensa periodica moderna. Correu a Europa e o mundo, avivando o pensamento e a acção, do Mexico a Berlim, e de Londres a Lima.»[177] E accrescenta: «Todos os acontecimentos, todas as ideias, todas as loucuras, todas as esperanças creavam algum drama novo.» Separada da influencia da Hespanha a responsabilidade do contagio do máo gosto ou o Culteranismo, a sua acção foi impulsiva e fecunda sobre todas as litteraturas romanicas no seculo XVII em quanto ás fórmas novellescas e dramaticas. Competiu por sua vez á Hespanha a hegemonia.

[Pg 323]

Fallando da influencia do theatro hespanhol nas litteraturas da Europa, no seculo XVII, escreve Philarète Chasles: «Elle é que ensinou á Italia o imbroglio pueril dos acontecimentos que se embatem, se cruzam e se entrelaçam. Mestre e precursor do theatro europeu, produziu Corneille e Beaumarchais, os dois genios mais oppostos que possam nomear-se. Desde o meado do seculo XVI a Inglaterra imita a scena hespanhola. Os contemporaneos de Shakspeare, homens de talento agrupados em volta do homem de genio, Marston, Dekker, Johnson, Marlow, Webster, Heywood, nomes pouco conhecidos em França, copiam ou antes calcam os imbroglios de Lope de Vega e dos seus discipulos. Assim se formou o drama inglez. A Italia fornecia o assumpto, o conto original, a trama primeira; a Hespanha dava o movimento dramatico: trapaças, velhacarias, aventuras nocturnas, raptos, disfarces, mudanças e substituições de nomes e de estado. Tudo o que pertence á vida activa vinha do meio-dia; o genio nacional do norte ajuntava-lhe a sua profundidade nativa, a analyse, a reflexão. Consultem-se as peças de Congrève, de madame Centlivre, de Farquhar, todo o máo drama inglez do XVII seculo até á bella e brilhante comedia de Sheridan Fort Scandal, appresentam o cunho hespanhol em quanto á intriga.»[178]

Transcreveremos como insuspeitas as palavras do critico francez, para se notar quam profunda foi tambem a influencia do genio hespanhol na [Pg 324] litteratura franceza.

Sobre esta hegemonia successiva das modernas nações da Europa umas sobre as outras, fecundando-se por allianças reciprocas, exprime-se Philarète Chasles: «N’este vasto ensino mutuo dos povos, vê-se cada nação poderosa elevar-se á missão de instituidora. Os Arabes e os Provençaes succedem aos Romanos, os quaes tambem tinham succedido aos Gregos. Do seculo XIV ao seculo XV a Italia dá a lei ao mundo intellectual. O turno da Hespanha deu-se sob Luiz XIII.» E resumindo a sua actividade historica, accrescenta: «A Hespanha attraía as attenções do globo; nação conquistadora e poeta, que tinha descoberto um mundo e o guardava; que assentava um pé sobre o Perú, o outro sobre a Allemanha e Flandres. Desde 1590, o genio hespanhol suscita a Liga franceza; encontra-se em Bruxellas, em Napoles, em Roma, em Vienna, no Mexico, na Hispaniola, na Florida; por toda a parte é detestado, temido e admirado, diria mesmo, amado, pois se ama voluntariamente o que se teme. No proprio momento em que as imprecações do mundo civilisado se misturavam ás lagrimas longinquas dos Indios, e aos gemidos dos escravos, a Europa tomava por modelo a Hespanha.—No principio do seculo XVII o diccionario hespanhol invade e sobrecarrega com o peso das suas palavras sonoras a nossa lingua flexivel.—Não desenrolaremos todos os emprestimos que o diccionario francez tomou da Hespanha sob Anna de Austria e durante a menoridade de seu filho. A phrase castelhana enche com as suas pomposas circumlocuções as Memorias [Pg 325] de Richelieu e as de M.me de Motteville.—Balzac é hespanhol. Os seus sermões leigos são o segundo tomo das verbosas e solemnes amplificações de Balthazar Gracian; as miniaturas galantes de Voiture, ainda que conservam um pouco o colorido italiano, são sobretudo castelhanas. Desde 1610, a emphase apodera-se do discurso familiar e do estylo epistolar.—Em Paris, em 1640, só se dirigem ás damas e aos grandes cumprimentos harmoniosos e vazios, uma pompa elogiosa, uma lisonja banal, que os hespanhóes chamavam espirituosamente—musica celeste.» E fallando da influencia dos trajos hespanhóes nos desenhos de Callot, define-o: «artista mais historiador que os historiadores, multiplica a parodia deliciosa d’estes gentishomens que marcham com o punho na cinta, d’esses poeticos maltrapilhos, d’esses mendigos que o sol aquenta, d’estes almocreves insolentes, verdadeiros filhos de Castella.»[179]—«Este prurido hespanhol durou até meio do reinado de Luiz XIV;... este reflexo da Hespanha cáe sobre Versailles, sobre os seus costumes solemnes, seus usos, sua admiravel mistura de nobreza e de elegancia, sua litteratura gravemente doce, perfeitamente e nobremente bella. Por um singular destino, a Hespanha que dominava tudo pelo seu exemplo, seus costumes e sua lingua, ia morrer sem esplendor, morrer no meio do seu triumpho. A agonia preparava-se-lhe [Pg 326] pela ignorancia, pelo orgulho e pela priguiça. Ella tinha conquistado a fonte do ouro, e o berço dos diamantes; possuia os grandes escriptores, os sublimes pintores, os altos caracteres; viu-se sublime, creu-se immortal e adormeceu.»[180]

«Triste suicidio! morrer assim, depois de ter creado o primeiro poema épico da nova Europa, o primeiro romance da nova civilisação, depois de ter aberto as portas da America ás nações modernas! Nem a Hespanha, nem a Europa se aperceberam d’esta decadencia; a Hespanha admira-se e os seus visinhos copiam-n’a; as obras creadas por ella servem de ensino a todos. Em França estes germens são fecundos; Scarron toma-lhe as grosseiras tramas de uma intriga embrulhada e a facecia popular dos pícaros; d’Urfé diverte as mulheres imitando as phantasias zagalescas; Saint-Amand acha bella acima de tudo a exageração das imagens; Voiture imita o estylo culto; Corneille acha n’esta mina de ouro o elemento primitivo do seu genio, uma grandeza sobrehumana e os energicos combates da paixão e do dever. Seu irmão, intelligencia dotada de plasticidade e habilidade ... tira da Hespanha o que ella tem de menos profundo e de menos potente: a intriga habilmente atada, o imprevisto dos movimentos; o jogo dos acontecimentos extravagantes; a lucta da sorte contra si mesmo; o amor, o odio, a felicidade e a desgraça enlaçando-se em um tecido fragil; um movimento vivo e rapido em vez [Pg 327] de uma imitação séria da vida; disfarces e golpes de espada; encontros extraordinarios, escondrijos maravilhosos, e o facil recurso dos aposentos nos quaes se topam os inimigos e os amantes.—Tristan, Hardy e Mairet fizeram a parodia d’isto, mas sem graça, perpetuando-se até Quinault, do qual o Timocrates é uma verdadeira peça hespanhola, que sobreviveu até Luiz XIV; Rhadamisto e Zenobia recebeu a mesma successão. Os Visionarios de Desmarets, e as vesanias divertidas de Cyrano de Bergerac são fructos do mesmo solo.»

«Faltava ainda explicar o mais difficil, a mais intima, a mais nobre, a mais séria porção do genio hespanhol; coube esta ao grande Corneille. Potencia de paixão, do pensamento, de combinação, eis o que elle pediu ao theatro de Hespanha.—Las Mocedades del Cid transformadas fornecem-lhe a mais bella tragedia moderna. Um drama pseudonymo de Alarcon transforma-o em uma comedia de costumes.»[181] «O Menteur é uma obra prima de bom senso, de arranjo e de imitação. Corneille não quiz mais do que isso. Descobriu a fonte hespanhola, e fez brotar a comedia de caracter.» E na marcha do seu estudo Philarète Chasles chega a affirmar: «O nosso theatro contém mais de duzentos dramas que vieram de Hespanha. As obras de Montfleury, de Scarron, outr’ora tão popular, de Dufresny, mesmo de Destouches, algumas de [Pg 328] Molière, tem uma origem hespanhola.»[182]

Philarète Chasles, caracterisa a influencia do theatro hespanhol em França, depois de alludir ás imitações de Corneille no Polyeucte e no Cid: «Racine escapa á influencia hespanhola; n’elle só se encontra sob a fórma de galanteria e de elegancia. Depois da morte de Racine, Lagrange-Chancel e Crébillon succedem-lhe, mediocres fabricantes de intrigas hespanholas. Os Timocrates e os Rhadamisto, que abriram a senda ao melodrama moderno, vieram-nos de Hespanha. Foram Lope, Alarcon, Tirso de Molina, que crearam para nosso uso esta architectura cheia de escadas secretas, gabinetes occultos, pavilhões mysteriosos, retiros para galanteadores, balcões para escalar, e muros faceis de saltar, todo este material que ainda se não abandonou. O mais insignificante vaudeville de intriga que se representa na Europa ainda agora é uma creação da Hespanha.»[183] E caracterisando esta força creadora do genio hespanhol, accrescenta Philarète Chasles: «O enredo hespanhol encontra-se em todos os theatros do mundo. Em Veneza, Roma, Paris, Londres, San Petersburgo, Vienna, New-York, Don Juan, o Cid, o Menteur, o Matrimonio secreto, antigos caprichos de alguns poetas de Madrid, sustentam-se obstinadamente, tal é a vida dramatica n’estas invenções.—Ao primeiro relance, Calderon, Alarcon, Roxas e Tirso são [Pg 329] um mesmo poeta; os mil dramas hespanhóes que do seculo XVI ao XVII brotaram d’esta fonte, parecem-se e são gémeos. Para reconhecer o cunho das variedades de talento que os dictaram, é preciso reparar bem de perto; a originalidade d’estas obras é a originalidade de um povo, não a de um homem; o talento especial do poeta como que se sacrificou e perdeu no genio dominante da multidão.»[184]

Sobre a litteratura ingleza, especialmente no theatro é que o genio hespanhol irradiou a sua intensa paixão, a ponto de por um effeito reflexo os dramas inglezes de origem hespanhola popularisarem-se sobre a scena franceza. É pois absurdo attribuir á Hespanha a perversão do gosto do estylo euphuista propagado á Inglaterra.

A influencia da Litteratura hespanhola em Inglaterra, facto manifesto em Shakspeare e nos poetas dramaticos, tem sido confundida com esse phenomeno de perversão do estylo metaphorico chamado o Culteranismo. Esta epidemia litteraria, tão caracteristica dos poetas e prosadores do seculo XVII, teve em Inglaterra o nome de Euphuismo, nome tomado do titulo de uma obra do seu propagador John Lyly. Bem examinadas as origens do euphuismo, vê-se que este estylo entrou em voga na Inglaterra no meado do seculo XVI, na prosa de George Petty, imitador dos italianos, como tambem o [Pg 330] implantou Philip Sidney, seguindo-o todos aquelles que tentavam reproduzir o petrarchismo, como Thomas Wyatt, Surrey e Spenser. O requinte na expressão do sentimento levava á linguagem amaneirada, ás antitheses, ás aliterações, e póde-se considerar, segundo Morly, que n’este meio é que se desenvolveu o euphuismo. Lyly imitou Petty, e seguidamente os italianos, a Petrarcha directamente na sua Galathea, e a Surrey especialmente. Embora o gosto do euphuismo seja menos dominante nas poesias de Lyly do que nas suas novellas, e tenda a ser abandonado em outras composições, comtudo mantiveram-n’o outros escriptores, como Rich, Nash, Green, Lodge, o que revela uma influencia mais profunda e não pessoal. É pois absurdo attribuir á Hespanha esta perversão do gosto na litteratura ingleza, já derivando-a da imitação do estylo de Guevara, como o imaginou Laudmann, já de Gongora como anachronicamente o indicou Hillebrand. A imitação da poesia italiana em Inglaterra começou com Chaucer, e esse gosto propagou-se até Shakspeare; e emquanto em Inglaterra degenerava o estylo no emprego de paronomasias simples, de aliterações alternadas, de antitheses parallelas e cadencias rythmicas, tambem em Hespanha essa mesma influencia degenerava segundo o genio peninsular em hyperboles phantasticas, em atrevidas metaphoras e tropos inchados. Assim o Euphuismo e Culteranismo sem serem eguaes, nem derivarem um do outro, identificaram-se facilmente, produzindo esse engano nos criticos.[185] Não é nas aberrações do estylo litterario que se deve [Pg 331] procurar a influencia hespanhola na litteratura ingleza, mas sim nos themas fundamentaes e nos processos da idealisação artistica; e a acção exercida sobre as litteraturas da Italia e da França ajuda a comprehender quanto ella suscitou nobremente o genio esthetico na Inglaterra.

No seculo XVII Portugal estava incorporado na unidade castelhana; não existia como organismo nacional, e pelas manifestações da sua litteratura não se poderia prevêr a revolução autonomica de 1640. Esse impulso veiu de fóra; a liberdade de Portugal era um dos córtes do plano de Richelieu contra a Casa de Austria. Na litteratura portugueza os principaes poetas, como D. Francisco Manoel de Mello escrevem em castelhano: e uma grande parte das Comedias famosas do theatro hespanhol são compostas por portuguezes. Parece que mentalmente, ou nos dominios da intelligencia Portugal e Hespanha formavam uma mesma civilisação. O uso do castelhano pelos escriptores portuguezes no seculo XVII não era um symptoma de depressão do sentimento nacional; já no seculo XV os poetas portuguezes palacianos enriqueceram os Cancioneiros de Hespanha; na época quinhentista Sá de Miranda, Gil Vicente e Camões escreveram em castelhano grande parte das suas poesias. No Catalogo razonado de Escriptores portuguezes [Pg 332] que escreveram em castelhano, colligido pelo Dr. Garcia Perez, é extraordinario o numero que ahi se encontra, como revelando uma certa unidade de civilisação iberica. O genio portuguez cooperou para o esplendor da litteratura hespanhola, quando aquella nação decahia sob o despotismo da Casa de Austria. Por via da paixão de Jorge de Monte-mór actuou sobre o gosto das allegorias pastoraes na Europa, com a Diana; com a Historia da Guerra da Catalunha de D. Francisco Manoel de Mello, appresentava a norma realista para os modernos historiadores. Estavamos sob o jugo politico, mas em plena egualdade mental; o genio portuguez communicou á Hespanha a paixão, o elemento vivo que mais longe levou o seu influxo litterario. As causas da decadencia da Hespanha foram as mesmas que actuaram em Portugal, aggravada porém a nossa situação por um factor deprimente—a alliança ingleza com todos os seus tratados diplomaticos.

c) O ARCADISMO E A REACÇÃO PROTO-ROMANTICA

(Hegemonia da Inglaterra)

As liberdades da elocução poetica, tanto na Italia, França, Inglaterra, Hespanha e Portugal, que foram designadas pelo nome de Culteranismo, e pelo de Seiscentismo por predominarem no gosto do seculo XVII, não devem ser consideradas como uma degenerescencia das Litteraturas meridionaes, mas como um esforço espontaneo de renovação desordenada e mal comprehendida. A imitação [Pg 333] da Antiguidade com que as Academias poeticas chamadas Arcadias procuraram reagir contra essa corrente de uma intemperança rhetorica, era injustificavel, por que nos poetas classicos encontravam-se exemplos para justificar os maiores absurdos e os laboriosos artificios do estylo culto. Verney, nas cartas sobre o Verdadeiro methodo de estudar, analysando todos esses destemperos das rimas forçadas, dos labyrintos, acrosticos, anagrammas, chronogrammas, equivocos, eccos, usados na litteratura hespanhola e portugueza, cita fórmas analogas nos escriptores gregos e latinos. As Arcadias restringiram os modelos classicos a um pequeno numero de poetas, como Theocritico, Virgilio e Horacio; e contra os rasgos da imaginação expressos pela linguagem figurada, impuzeram-se um estylo rasoavel, frio, de um bom senso prosaico, sem emoção, nem colorido. O esforço para a manutenção das normas classicas, começou no proprio seculo XVII, com a auctoridade implacavel de Boileau em França, e com o estabelecimento da Arcadia de Roma, em 1690, fundada por Crescimbeni e Gravina, academia poetica que se tornou o typo de todas as Arcadias que encheram quasi todo o seculo XVIII. O pseudo-classicismo francez, propagado pelo perstigio dos grandes escriptores do seculo XVII, identifica-se com o Arcadismo, em que o espirito de erudição procurava transformar as academias culteranistas.

Mas no seculo XVII o conflicto entre as duas escholas tomou um aspecto consciente na celebre Querella dos Antigos e Modernos, [Pg 334] suscitada por Charles Pérrault. Tratava-se de saber se a civilisação moderna tinha recursos mais ricos e fecundos do que a antiga, e se no meio de uma mais activa e delicada sociabilidade, com sentimentos mais humanos, não havia logar para uma idealisação tão bella nas artes e na poesia, como a da sociedade greco-romana. Pérrault sustentava que sim, e mostrava-se deslumbrado pelo esplendor da côrte de Luiz XIV; Boileau, reconhecendo esse esplendor como digno da éra de Périeles e de Augusto, cahia no contrasenso de proclamar a primasia da antiguidade, vindo a final a transigir com o seu antagonista.

Operára-se pela generalisação das ideias philosophicas do Cartesianismo uma forte corrente contra o formalismo da Scholastica, libertando o criterio e dando-lhe a audacia com que actúa no espirito do seculo XVIII; reflectiu-se essa situação mental tambem nas doutrinas litterarias, suscitando a ruidosa mas significativa Querella dos Antigos e Modernos, e determinando o abandono da Poetica de Aristoteles. Escrevia o barão Taylor para uma sessão do Congresso historico de 1840: «A mesma reacção que se opéra contra a antiguidade philosophica, não tarda a manifestar-se contra a antiguidade litteraria, e a Poetica de Aristoteles é atacada com tanta vivacidade como a Logica. Pérrault, Lamothe e Fontenelle são os campeões das ideias modernas, e ouso dizel-o, appresentaram melhor a fórmula romantica, do que a eschola actual, do que o proprio Chateaubriand, que quiz fechar a Litteratura no cyclo christão.» [186] Desde que as ideias e os sentimentos da civilisação moderna [Pg 335] são evidentemente mais verdadeiros e humanos, são essas ideias e sentimentos que devem ser universalisados na arte e na litteratura, que com taes elementos não podem ficar inferiores ás obras primas antigas. Apezar d’este impulso resultante da Querella dos Antigos a Modernos, na primeira metade do seculo XVIII prevaleceu a admiração exclusiva pelas obras classicas greco-romanas, a imitação reflectida ou pautada d’esses modelos, e a preoccupação de um purismo de linguagem e primor de estylo, que em vez de exprimir sentimentos visava a seguir as convenções e a obter os applausos academicos. Um esforço para derivar a idealisação poetica da realidade da vida moderna começou pela generosa tentativa dos Romancistas inglezes; a liberdade politica e philosophica da Inglaterra, affirmadas nas suas duas fecundas revoluções do seculo XVII, deram-lhe essa plena hegemonia que exerceu pela sua influencia na França sobre a Europa do seculo XVIII. As ideias com que Montesquieu leva a insurreição aos espiritos no Espirito das Leis foram recebidas de Inglaterra, como a audacia das Lettres persanes nos apparece cultivada na associação de livres-pensadores do Club de l’entresol, em que dominava Bolingbroke. Tambem pela emigração na Inglaterra alcançou Voltaire a comprehensão mais clara da sua missão negativista. O romance da vida intima ou domestica, como o fundou [Pg 336] Richardson, veiu mostrar ao genio francez a fórma definitiva, que elle só tem a aperfeiçoar; e as tragedias de Shakspeare, máo grado os protestos academicos, revelaram uma esthetica nova, em que a verdade da paixão prevalece sobre a fórma transitoria, que se torna bella e mesmo profundamente philosophica por essa verdade.

Na grande crise social que vae fazer a sua explosão nos fins do seculo XVIII, os litteratos foram os instrumentos de uma propaganda das ideias philosophicas do negativismo revolucionario. Mas, não conseguiram vencer a rhetorica; o Arcadismo, mantinha-se n’esse deploravel aspecto incolôr das obras litterarias que se não referiam á sociedade viva, á época, á nação, mas esboçavam abstractas entidades, umas vezes segundo os moldes consagrados pelas Academias, outras vezes com a intenção de servir ou de combater as aspirações revolucionarias. A litteratura protegida pelas côrtes do seculo XVIII, para evitar os perigos da liberdade, fechava-se na disciplina do arcadismo. Como a falta de sentimento imprimia aos poetas uma fórma apagada e sem colorido, elles procuravam mascarar a futilidade ou inutilidade dos seus versos tornando-os rasoaveis, compondo poemas didacticos ou scientificos. Taine caracterisa magistralmente o caracter incolôr da litteratura: «No seculo XVIII não é proprio o figurar a cousa viva, o individuo real, tal como existe effectivamente na natureza e na historia, isto é, como um conjuncto indefinido, como um rico tecido, como um organismo completo de caracteres e de particularidades [Pg 337] sobrepostas, entremeadas e coordenadas. Falta-lhe a capacidade para recebel-as e para contel-as. Affasta-as o mais que póde, tanto, que por fim não conserva senão um extracto mesquinho, um residuo evaporado, um nome quasi ôco, em summa, o que se chama uma inane abstracção.—Por toda a parte a seiva está esgotada, e em logar de plantas florescentes, só se deparam flores de papel pintado. Tantos poemas sérios desde a Henriada de Voltaire até aos Mezes de Roucher ou á Imaginação de Delille, que é tudo isso senão trechos de rhetorica guarnecidos de rimas? Percorrei as immensas tragedias e comedias de que Grimm e Colé nos dão o extracto mortuario, mesmo as boas peças de Voltaire e de Crébillon, mais tarde a dos auctores que estiveram em voga, Du Belloy, La Harpe, Ducis, Marie Chénier: eloquencia, arte, situações, bellos versos, tudo isso têm, excepto homens; os personagens não passam de mannequins bem adestrados, e as mais das vezos trombetas pelas quaes o auctor lança ao publico as suas declamações. Gregos, Romanos, Cavalleiros da Edade media, Turcos, Arabes, Peruvianos, Guebros, Byzantinos, pertencem todos á mesma mechanica discursiva. E o publico não se encommoda; não tem o sentimento historico; admitte que o homem é em toda a parte o mesmo, e consagra pela admiração os Incas de Marmontel, o Gonzalve e as Novellas de Florian...»[187] E mostrando o mesmo aspecto [Pg 338] incolôr nas obras dos historiadores: «O Grego antigo, o christão dos primeiros seculos, o conquistador germanico, o homem feudal, o arabe de Mahomet, o allemão, o inglez da Renascença, o puritano, apparecem nos seus livros com pouca differença das suas estampas e dos seus frontispicios, com algumas differenças de trajo, mas com os mesmos corpos, as mesmas caras, a mesma physionomia, attenuados, apagados, decentes, accommodados ás conveniencias. A imaginação sympathica pela qual o escriptor se transporta a outrem, e reproduz em si um systema de habitos e de paixões contrarias ás suas, é o talento que mais falta ao seculo XVIII.»[188] Comparando o romance francez com o romance inglez, Taine conclue pela surprehendente superioridade de Foë, Richardson, Fielding, Smollett, Sterne e Goldsmith até Miss Burney e Miss Austen, e diz: «eu conheço a Inglaterra do seculo XVIII; eu vejo clergyman, gentishomens do campo, rendeiros, estalajadeiros, marinheiros, gente de todas as condições, infimas e elevadas;... tenho nas mãos uma série de biographias circumstanciadas e precisas, um quadro completo, de mil scenas, da sociedade inteira, o mais amplo montão de informações para me guiarem quando eu quizer fazer a historia d’este mundo extincto. Se, em seguida, leio a série correspondente dos romancistas francezes, Crébillon filho, Rousseau, Marmontel, Laclos, Rétif de la [Pg 339] Bretonne, Louvet, M.me de Staël, M.me de Genlis, e os outros, comprehendendo Mercier e até M.me Cottin, quasi que não tenho notas a tomar;... vejo modos delicados, mimos, galanterias, velhacarias, dissertações de sociedade, e aqui está tudo.»[189] Pela fórma do romance é que a Inglaterra exerceu tambem a hegemonia litteraria no seculo XVIII, determinando em França essa tentativa de idealisação da realidade, ou o Proto-Romantismo, e na Allemanha, depois da Guerra dos Sete annos, o impulso que a levou a idealisar as suas tradições nacionaes, e a abrir a época da renovação das Litteraturas modernas no seculo XIX ou o Romantismo.

Quando se fundou a Arcadia de Roma para corrigir os exageros do estylo marinista, oppuzeram os seus associados outros exageros, simulando ingenuidades pastoris, resuscitando as allegorias buccolicas que desde Sanazzaro se propagaram entre os eruditos; reuniam-se no monte Janiculo, chamando á sala das sessões Bosque Parrasio, e tomando nomes poeticos de pastores gregos, das eclogas de Theocrito ou de Virgilio. Os Papas, Reis, cardeaes, bispos e magistrados honravam-se em pertencer á Arcadia; Dom João V, que teve n’esse gremio pastoral o nome de Albano, mandou-lhe construir em Roma um palacio para as suas sessões. A Arcadia, que se propagára a todas as cidades da Italia, tambem teve em Portugal o seu rebento. Mas aqui, a lucta contra o elemento seiscentista foi porfiosa, por que as Academias ou Tertulias litterarias eram os baluartes do Culteranismo. [Pg 340] Do gosto dominante, escrevia Verney: «Geralmente entendem, que o compôr bem consiste em dizer subtilezas e inventar cousas que a ninguem occorressem...»[190] E sob a influencia da litteratura castelhana: «Envergonham-se de poetisar em portuguez, e têm por peccado mortal ou cousa pouco decorosa fazel-o na dita lingua.» Por este mesmo tempo estava a moda das Academias arcadicas no seu maior fervor em Hespanha, como affirma Valderrábano no prefacio ao poema Angelo-machia: «Entretinham-se os saráos fazendo relações, trechos de comedias, cantando ao fandango xácaras de valentões, e recitavam-se poesias burlescas. Tudo cessou de quarenta annos a esta parte, (1786) e mais vale que se não renovem, a não ser com melhor cultura e melhor influxo nos costumes.»[191] Era tambem ardente este prurido arcadico em Portugal, como o confessa o bispo Cenaculo, no seu estudo As Letras na Ordem Terceira de Sam Francisco: «Ainda durava o seculo das Academias. A duração era effeito dos bons principios, e tambem por que o caracter da nação é o do monarcha. Sendo paixão de el-rei D. João V aquelle genero de estudos, por que passava quatro e cinco horas continuadas n’esta lição, para este fim dispoz uma união de academicos escolhidos, que competissem com o grande merito do seu assumpto, qual era a historia da patria. Espalhou-se pela monarchia [Pg 341] este calor: os paroxismos vieram-lhe da desordem em que poz o reino o Terremoto de cincoenta e cinco. Mas d’antes, nas casas particulares, nos conventos de religiosos, e por outras maneiras se ajuntavam a cada passo, não só os letrados, mas tambem os que tanto pretendiam, tratando com diligencia os assumptos.—Nos mesmos claustros achei praticada aquella curiosidade. Nos dias do P. Fr. Joaquim (de Santa Clara) sendo collegial, elle o fomentava em o nosso Collegio de Coimbra, com sociedade de bons amigos, e no Collegio de S. Thomaz e de S. Jeronymo. Admittiram-se os contemporaneos habeis, sendo todos collegiaes, e que foram depois professores ou doutores em a Universidade, e prelados maiores das suas Ordens e alguns bispos.»[192] No seculo XVIII, como o sentia o bispo Cenaculo, o caracter do monarcha era o da nação: D. João V já se não penalisava de não poder trocar a corôa de rei pela cugula de Inquisidor, mas acceitava para maior perstigio da soberania o papel de pastor-arcade; elle amava o canto-chão, e assim como importava da Italia os productos da arte rococo para ornamentar a sua côrte, chamava tambem o veneziano Frei Jorge para ensinar o funebre canto-chão em Sam José de Ribamar. O sentimento da nacionalidade apagava-se, e bem preciso era o entoar o canto mortuario sobre o paroxismo de um povo. Á imitação dos monarchas do seculo XVIII, D. João V tinha por modelos [Pg 342] Luiz XV e Leopoldo na sensualidade e na prodigalidade. Gastando quatro e cinco horas em tertulias academicas, bocejava ouvindo a conferencia dos ministros, que interrompia de vez em quando para saber quanto rendia a caixa das almas, como nol-o pinta Alexandre de Gusmão; de noite refocilava-se com as freiras do beato harem de Odivellas, como o descreve o bispo de Gram-Pará. A censura litteraria era exercida pelo cardeal Cunha, que mandava riscar dos repertorios os prognosticos de trovoadas e chuvas.

Em uma nação em que a vida toda se reconcentrava na côrte, em volta do rei e dos seus aulicos favoritos, a influencia franceza tinha de ser preponderante, por que a França era então considerada como o modelo da elegancia e do gosto. Esta influencia franceza na litteratura manifesta-se como uma reacção do purismo pseudo-classico contra o Culteranismo, ou a influencia hespanhola. D. João V tomava como seu figurino Luiz XV com a sua côrte sensual e sumptuosa. Os fidalgos portuguezes começaram a ter nos seus jardins fontes feitas por Bernin, como se usava em França; Mafra era um arremedo de Versailles, e as Aguas-Livres um despique com o Aqueducto de Maintenon. O Conde da Ericeira mantinha relações de amisade com o chefe do pseudo-classicismo francez, o austero Boileau, e traduzia-lhe a sua Poetica para nos dar um codigo de bom gosto. Boileau agradeceu-lhe em uma carta (é a XIV.a) tamanha consagração. Francisco de Pina e Mello imita as Odes sacras de João Baptista Rousseau; Verney, proclamava o [Pg 343] Telemaco de Fénélon «uma Epopêa das mais bem feitas e escriptas que tem apparecido.»[193] A Athalia de Racine era traduzida por Candido Lusitano, e o Lutrin, imitado no Hyssope de Cruz e Silva. A fundação da Academia de Historia portuguesa, em 9 de Dezembro de 1720, fôra iniciada pelo Conde da Ericeira no seu palacio da Annunciada «por emulação dos Scientes de França» como se lê em uma Oração panegyrica. É curiosa a transformação das Academias culteranistas do seculo XVII nas arcádicas do seculo XVIII, aproximando-se do classicismo francez. Assim, a Academia dos Generosos, iniciada pelo trinchante-mór de Dom João IV, mantendo-se de 1647 até 1668, é renovada em 1684, e por seu filho D. Luiz da Cunha, continuando até 1693, é disfarçada com o titulo de Conferencias discretas, com que celebrava as suas sessões de 1696 a 1699 em casa do Conde da Ericeira; e n’esse mesmo palacio durante quatorze annos (1714 a 1728) se confundiu com a Academia dos Anonymos, refundindo-se a final na Academia de Historia portuguesa, com caracter particular em 1717, e official depois de 4 de Novembro de 1720. Assim a divisa da Academia dos Generosos: Non extinguetur, com o emblema de uma vela accesa, tornava-se uma realidade, por que n’estas renovações transmittia sempre o gosto do Culteranismo. O antigo secretario da Academia dos Generosos, Manuel Telles da Silva, funda em 1747 a Sociedade dos Occultos, [Pg 344] com o fim da transformação do gosto litterario. Existiu até 1755 em que foi dispersada pela tremenda catastrophe do terremoto de Lisboa, e só veiu a reconstituir-se em 11 de Março de 1756 com o titulo definitivo de Arcadia Ulyssiponense, datando as suas conferencias do Monte Ménalo (á imitação do Parrasio, da de Roma.) Quando morreu D. João V, o protector das sociedades arcádicas, celebraram-lhe a memoria as Academias dos Escolhidos, dos Anonymos, dos Applicados e dos Occultos, que funccionavam em Lisboa. Foi contra esta forte corrente culteranista que luctou a Arcadia Ulyssiponense, mas com aquella frieza sensata e incolôr do classicismo francez. A poesia culteranista impunha-se, por que, como o confessa Verney: «a sua contextura é tão facil, que por máo que seja o poeta sempre acerta com ellas. A Decima, o Madrigal, as Liras, a Silva, o Romance lyrico, Quartetos puros e de pé-quebrado, Tercetos, etc., nada mais pedem que a naturalidade do conceito e expressão...»[194] A Arcadia dispendeu a sua energia em questões banaes, propondo a imitação dos Quinhentistas e as regras do emprego dos archaismos e neologismos da linguagem. Sob a pressão material e moral do absolutismo monarchico e do intolerantismo catholico, a auctoridade academica veiu acabar de deprimir os espiritos, e a poesia degradou-se na obscenidade, como se vê nos versos de Caetano da Silva Souto Mayor (o [Pg 345] Camões do Rocio), de Antonio Lobo de Carvalho (o Diogenes da Madragoa), nos de Filinto e de Bocage.

No emtanto, sente-se no meio d’esta linguagem falta de expressão emocional o influxo da poesia ingleza em Garção, apezar do seu horacianismo, e em José Anastacio da Cunha. Entre as obras de Garção encontra-se a «Traducção de uns versos inglezes feitos a um grande pintor[195] E da ode A uns annos de uma senhora ingleza, se deprehende qual a sua convivencia, e ensejo de familiaridade com as obras dos poetas inglezes. José Anastacio da Cunha traduziu a Oração universal, de Pope, um dos fundamentos com que o agarrou a Inquisição de Coimbra em 1778; no seu processo do Santo Officio se lê, que era muito amigo do brigadeiro Ferrier «escossez de nação, protestante, o qual lhe pedia traduzisse algumas peças e versos de alguns livros francezes e inglezes, que elle fazia em verso portuguez...» No sequestro que a Inquisição de Coimbra fez dos seus Livros, vem enumerados muitos livros inglezes.[196]

[Pg 346]

A superioridade das poesias lyricas de José Anastacio da Cunha sobre todas as dos seus contemporaneos explica-se por esses modelos que o conduziram á realidade e á expressão natural e simples da paixão. O pseudo-classicismo reconhecendo a sua inutilidade, cultivava a poesia didactica, pondo em poemas os estudos scientificos tão predilectos do seculo XVIII, ou propagando tambem em tragedias racinianas as doutrinas revolucionarias do criticismo encyclopedista. Póde-se considerar como a ultima phase do Arcadismo, que a Revolução franceza, apezar das grandes paixões postas em conflagração, não conseguiu desviar da sua inalteravel rhetorica. É certo, que em França, pelo mesmo negativismo critico, se operava uma libertação da auctoridade classica e das tradições medievaes, e se proclamava o individualismo humano e o regresso á natureza. É esta corrente proto-romantica franceza, que vae reflectir-se na Allemanha, acordando o espirito dos creadores d’aquella grande litteratura; Lessing imita Diderot no theatro, Goëthe admira o creador do Neveu de Rameau, [Pg 347] Wieland reelabora as Gestas francezas, Schiller desenvolve a Tragedia philosophica com intuitos revolucionarios, e o proprio Kant confessa-se fecundado pelas ideias individualistas de Rousseau. Os emigrantes francezes, por occasião da revogação do Edito de Nantes, tinham levado para a Allemanha o impulso da civilisação moderna; era inevitavel a preponderancia do pseudo-classicismo francez. Interrompeu-se essa imitação, quando a Allemanha, suscitada pelo conhecimento da Litteratura ingleza, comprehendeu o valor das suas antigas tradições nacionaes. O rompimento com a cansada imitação da França só podia começar em uma nação forte pela raça e pela riqueza das suas tradições, para fundar a sua Litteratura na idealisação d’ellas. Foi um trabalho consciente. Por occasião da Guerra dos Sete annos a Allemanha separou-se da imitação franceza, e a leitura dos antigos poetas inglezes revelou-lhe que fóra das normas do classicismo francez existiam outras fórmas artisticas mais coloridas e bellas. Lessing, na Dramaturgia, funda a nova prosa allemã e derrue as theorias dos tragicos francezes; a côrte de Weimar, sob o influxo pacifico da regencia de Anna Amelia de Bronswick, agrupa essa pleiada de genios creadores, de que Goëthe era o chefe. Os irmãos Grimm encetam os seus vastos estudos sobre a lingua, a mythologia, o direito, as velhas epopêas e os contos populares da Allemanha; e sobre estes elementos da Patria germanica, resplandece uma nova litteratura, que se torna uma das mais opulentas do seculo. O Romantismo, para os [Pg 348] povos do Occidente foi o regresso ás suas tradições da Edade media, não comprehendidas, desprezadas e esquecidas desde a Renascença, pelo prurido da imitação classica sob a protecção official monarchica. Desde então o movimento das Litteraturas romanicas se resume n’este impulso da Litteratura allemã, revelando as fontes organicas de toda a elaboração esthetica.[197]

§ 3.—O Romantismo

(HEGEMONIA DA ALLEMANHA)

Os espiritos mais eminentes do seculo XVIII previram a crise violenta, que a decadencia das instituições politicas provocava, e que as revoltas da consciencia iam apressando. A Revolução franceza foi essa explosão temporal de um movimento, que desde o [Pg 349] seculo XII procurava um novo equilibrio; movimento complicado pelo longo esforço negativista de decomposição, e pela incerteza de uma base positiva para a reconstrucção de uma outra synthese humana. A queda dos Jesuitas fôra o resultado da final decomposição do poder espiritual do regimen catholico; e a execução da realeza, na pessoa do desgraçado Luiz XVI, era a transformação do poder temporal, que desde as bandas guerras germanicas, e dos privilegios das classes aristocraticas, se fôra concentrando na dictadura monarchica. Devera seguir-se um forte trabalho de reconstrucção sobre as ruinas do regimen catholico-feudal; a Convenção comprehendeu genialmente o seu destino, e esboçou o poder espiritual com as grandes reformas pedagogicas, e o poder temporal com a substituição provisoria da Republica-democratica. Na complicação dos acontecimentos esta marcha foi perturbada; o poder espiritual desvairado pela metaphysica deista de Robespierre facilmente regressou a uma reacção neo-catholica; e o poder temporal, envolvido nas guerras defensivas e no delirio do terror, foi cahir nas mãos de um aventureiro militar, que com o nome de Consul e de Imperador esgotou a França com uma orgia de guerras sangrentas, que levou a Europa a colligar-se e a fazer a restauração da monarchia. Eis a série de factos que na sua inconsequencia se accumularam na transição do seculo revolucionario para o seculo XIX; a nova edade continuou a antiga lucta, porém com menos clareza. Com rasão considerava De Maistre o nosso seculo como [Pg 350] um prolongamento do seculo XVIII. Não se avançou mais no trabalho da construcção da nova synthese; estabeleceu-se a hypocrisia systematica das contemporisações e dos partidos medios (juste milieu); as Cartas-outorgadas e o regimen monarchico-representativo foram a sophismação do poder temporal; da mesma fórma a religião de estado e o subsidio official a todas as desconnexas especialidades scientificas corrompeu o poder espiritual em uma espantosa pedantocracia.

N’esta angustiosa crise, que esterelisou o seculo XIX, que deixará na historia a marca da sua incapacidade para a construcção da synthese definitiva, as Litteraturas reflectiram todos estes abalos de um regimen decahido, e da comprehensão de um ideal superior. Representaram a melancholia e o estado de desalento dos espiritos; deram expressão aos sentimentos que se compraziam em evocar o passado, que procurava restaurar o seu antigo dominio; espalharam os protestos de revolta dos genios insubmissos, e lisongearam o gosto banal de uma burguezia cordata. Todas estas manifestações eram a revelação dos caracteres de uma nova época litteraria: chamou-se-lhe o Romantismo. Veiu da Allemanha esta designação, como viera o exemplo de sympathia pelas tradições da Edade media. Na renovação das Litteraturas romanicas competiu á Allemanha a hegemonia, nos começos do seculo, como resultante da solidariedade da civilisação europêa; e essa acção ligava-se á diversidade que n’este longo periodo de lucta se estabelecera entre o regimen catholico-monarchico e o [Pg 351] aristocratico-protestante, dos povos romanicos e germanicos.

Considerando como uma base da Sociologia o estudar a civilisação em todos estes povos que conjunctamente participaram do movimento da Europa occidental, na Italia, França, Inglaterra, Allemanha e Hespanha, estabelece Comte: «Estas cinco grandes nações podem ser consideradas como tendo constituido depois da primeira metade da Edade media, apezar de immensas diversidades, um povo unico reunido sob o regimen catholico e feudal e sujeito a todas as transformações successivas que este regimen provocava consequentemente.»[198] No estudo das Litteraturas modernas torna-se indispensavel este criterio; embora o genio nacional tenda a individualisar-se e a manter o separatismo patriotico como um estimulo de inspiração, é nas Litteraturas que se observa a hegemonia esthetica que cada nação europêa foi exercendo uma após uma sobre o conjuncto das outras, creando assim uma verdadeira solidariedade sentimental na civilisação do occidente. Comte fez sentir o valor d’esta successão hegemonica: «Ainda que a arte tenha sido accusada de fomentar antipathias nacionaes, em virtude da sua incorporação no desenvolvimento proprio de cada população, ella tem, sem duvida, actuado com mais energia em sentido contrario, aproximando as nações, pela viva predilecção universal que as obras primas estheticas [Pg 352] suscitavam para o povo que as produzia. Cada uma das bellas-artes teve o seu modo especial de excitar a sympathia universal da Europa e de auxiliar a communicação mutua; mas a influencia mais geral e a mais efficaz, sob este aspecto, pertence á poesia, que obrigou ao estudo das linguas estrangeiras, sem o qual as diversas obras primas não teriam sido apreciaveis.»[199]

Na crise systematica da revolução occidental, a começar do seculo XVI, as capacidades estheticas revelam-se diversamente entre os povos catholicos e os protestantes. Com o catholicismo prepondera a monarchia com a sua absorvente dictadura temporal, apoderando-se das Litteraturas por uma exagerada protecção official, pela instituição de academias destinadas a subordinar a inspiração individual a regras rhetoricas, manietando pela auctoridade do gosto ou dos modelos consagrados todos os impulsos de originalidade. Nada satisfazia melhor este plano do que a imitação da antiguidade classica; e de facto o prolongado perstigio da poesia do polytheismo greco-romano durou com o perstigio das monarchias absolutas, e soffreu a sua reacção depois da explosão revolucionaria. Com o protestantismo preponderou o elemento aristocratico, a quem era sympathico o ideal cavalheiresco do individualismo heroico; e as naturezas artisticas, sem outro apoio mais do que a espontaneidade da sua vocação e a sympathia popular, não perderam completamente a originalidade, por que se não afastaram [Pg 353] de todo da Edade media. É por isso que a Inglaterra exerce no seculo XVIII uma influencia sugestiva no pseudo-classicismo francez, e que no seculo XIX a Allemanha actúa nas Litteraturas occidentaes revocando-as pelo exemplo ás suas fontes tradicionaes da Edade media. Nem de outra fórma se explica como o Protestantismo tão anti-poetico pôde exercer uma influencia renovadora; não renegára completamente a Edade media. Comte observou esta differença, concluindo quanto uma verdadeira theoria do progresso humano póde esclarecer o estudo do desenvolvimento historico da arte: «Dos dois modos politicos, o monarchico-catholico e o aristocratico-protestante, o primeiro era mais favoravel á arte do que o outro. Comprehende-se facilmente que a arte recebesse um impulso mais homogeneo e mais completo de um poder mais central e mais elevado, cujo ascendente protector devia incorporar bastantemente a animação contínua de todas as bellas-artes ao systema geral da politica moderna. Assim vêmos os governos monarchicos fundarem Academias poeticas ou artisticas, (Arcadismo) as quaes, primeiramente instituidas na Italia, adquiriram immediatamente em França, sob Richelieu e sob Luiz XIV uma importancia superior. No modo aristocratico e protestante, ao contrario, a preponderancia da força local entregava as bellas-artes ao penivel e insufficiente recurso das protecções particulares, nas povoações em que o protestantismo tendia a neutralisar a educação esthetica começada na Edade media.—A dictadura monarchica em [Pg 354] França devia de ter repugnancia pelas recordações da Edade media, em que a realeza era tão fraca e a aristocracia tão poderosa;... Em Inglaterra ao contrario, em que o systema feudal estava menos alterado, as sympathias as mais geraes voltavam-se para as recordações da Edade-media, o que explica a popularidade que teve a sua representação pelo grande Shakspeare.»[200]

a) REHABILITAÇÃO DA EDADE-MEDIA

Uma das causas da incoherencia mental do seculo XVIII fôra o desconhecimento da continuidade historica; no seu negativismo religioso e politico desprezou completamente a Edade media; Helvetius e Raynal chamavam-lhe esteril barbarie, e edade de trevas sem nome. Comprehende-se que a Allemanha feudal, reagindo contra a influencia litteraria da França, procurasse nas tradições heroicas ou cavalheirescas da Edade media elementos sympathicos para a idealisação poetica de espiritos reflexivos. O nacionalismo levava a achar as fontes organicas da sua elaboração artistica. O mesmo espirito feudal, na Inglaterra, comprazia-se com a representação de uma existencia cavalheiresca, que Walter Scott reconstruia pacientemente e com esmero na portentosa série dos seus romances historicos. Em França este regresso á Edade media não se deu por um intuito artistico; [Pg 355] determinou-o um fim politico. O conde José de Maistre, servindo a causa da restauração neo-catholica, tratou de estabelecer a solidariedade historica da Edade media com o presente. Nada percebia do progresso humano depois do christianismo, como o previra Condorcet, porém via com lucidez a continuidade do passado nos seus elementos conservantistas. Foi esta incapacidade que provocou a lucta entre Classicos e Romanticos, que rompeu em 1818; n’essa lucta revelava-se a antinomia de doutrinas. Os Classicos, que eram voltairianos, que continuavam sob a Restauração o ideal republicano, ou como academicos se conciliavam com a monarchia liberal, sustentavam o predominio absoluto dos modelos greco-romanos. Os Romanticos, começaram por servir a reacção catholica, e para isso é que Chateaubriand idealisou a Edade media no Genio do Christianismo; sendo renovadores na litteratura, caíam no contrasenso de cooperarem para o retrocesso da consciencia. A esta phase religiosa chamou-se o Romantismo emmanuelico, sendo os seus principaes vultos depois de Chateaubriand, Lamartine, Alfred de Vigny e Soumet.

Mas a Edade media não fôra sómente catholica; fôra feudal e cavalheiresca. Sob este aspecto começou a apparecer como um mundo ignorado, rico de formosos symbolos e de uma sociabilidade altamente dramatica; desenvolve-se então o romance historico sobre os typos de Walter Scott, e o drama de sensação, pelo gosto de Schiller. É então que apparece Victor Hugo com a Notre Dame e os [Pg 356] Burgraves. Na Edade media tambem luctaram pela liberdade as Classes servas, que chegaram a constituir o terceiro Estado, que triumphou com a Revolução; foi esse o campo do Romantismo liberal, que foi achar a sua disciplina na renovação dos estudos historicos por Agostinho Thierry, Guizot, Michelet, Barante, etc.

Assim como a palavra Romance designa a fórma a mais original e caracteristica das Litteraturas modernas, em que se idealisa o elemento domestico desconhecido na arte antiga, tambem a palavra Romantismo é uma feliz denominação de uma edade ou phase das Litteraturas modernas em que ellas reataram a continuidade com a Edade media, onde se elaboraram todos os germens tradicionaes das raças incorporadas pela civilisação romanica. Nenhuma expressão poderia achar-se mais significativa, por que na diversidade das nações europêas tem implicita a ideia da sua unidade, tantas vezes e tão calamitosamente obliterada na historia. Nas Conversas com Eckermann, Goëthe conta: «A determinação de poesia classica e de poesia romantica, que n’este momento circula pelo mundo, e que causa tantas discussões e dissensões, partiu, quanto ao fundo, de mim e de Schiller. Eu adoptára para a poesia o processo objectivo, o unico que me parecia bom, Schiller, que pelo contrario, procedia de um modo inteiramente subjectivo, julgou o seu methodo melhor, e foi para se defender contra mim que elle escreveu o Tratado da Poesia ingenua e da Poesia sentimental. (1795.) Os Schlegel apoderaram-se d’esta distincção para a levarem mais longe, de [Pg 357] sorte que presentemente estendeu-se pelo mundo todo.» Á maneira da Querella dos Antigos e Modernos, levantou-se a polemica entre Classicos e Romanticos, avançando para uma melhor comprehensão historica de cada Litteratura, ambas bellas nas suas differenças estheticas. Segundo Schiller, para os gregos a poesia é uma imitação da realidade quanto possivel, tendendo para a verdade; o poeta moderno ou sentimental reproduz a sua propria impressão idealisando-a como realidade. Mas esta distincção, sendo aliás fundamental é incompleta, por que a objectividade pertence a todas as épocas de espontaneidade irreflectida, o que se repete nas Gestas da Edade media; e a subjectividade caracterisa as épocas em que ha um intenso trabalho mental, critico e reflectido. A revolução occidental do seculo XII ao XIX foi na sua maior parte mental, metaphysica, critica e negativista; bastava esta intensa subjectividade para caracterisar as Litteraturas creadas n’esta longa instabilidade. Comte viu mais claro o problema; distinguiu as Litteraturas antigas pela idealisação da vida publica (as Epopêas, as Tragedias, os Córos e Odes triumphaes), e as Litteraturas modernas pela idealisação da vida domestica, como se vê nos Romances e na Comedia molieresca, creados apezar de todas as correntes contrarias a uma natural evolução esthetica. N’esta longa crise revolucionaria, o completo abandono do sentimento sem intervenção social deixou manifestar-se o individualismo em revolta; é este elemento pessoal que apparece na arte moderna de uma fórma original e extraordinaria, dando logar ás expansões de um [Pg 358] esplendido lyrismo.

b) O ULTRA-ROMANTISMO

Os Classicos e Romanticos já se não entendiam entre si, chegando os sectarios das normas do gosto greco-romano ou academico, a pedirem a intervenção do governo contra os quebrantadores das regras litterarias; os romanticos achavam n’este titulo um apódo de desprezo com que os queriam ferir, e renegavam-o com desdem. Assim, em 1824, lamentava Victor Hugo que empregassem o nome de Romantico sem definirem o termo, explorando «um certo vago indefinivel que lhe redobrava o horror.» E por fim, quando uma pleiada fecunda de talentos exprimia nas fórmas litterarias os sentimentos modernos, ainda Victor Hugo, em 1830, se felicitava de que «estes miseraveis termos de questiunculas tivessem cahido no abysmo...» Tambem Garrett no seu poema Camões repellia de si a imputação de romantico, e Herculano considerava essa lucta como a dos antigos Nominalistas; este seguia o romantismo emmanuelico idealisando a saudade pela vida monachal, e Garrett seguia o romantismo liberal, como o declara no Arco de Sant’Anna. Mas se estes dois chefes não comprehenderam a lucta dos Classicos e Romanticos, tiveram a intuição da missão da nova edade litteraria; Garrett avançou para o estudo das tradições nacionaes no Romanceiro, e Herculano fixou-se no estudo das instituições da Edade media portugueza, a que elle chamou [Pg 359] Historia de Portugal. O que era definitivamente o Romantismo, que ninguem sabia explicar, viu-o lucidamente M.me de Staël, destacando as duas edades, a classica «que precedeu o estabelecimento da religião christã» e a que se lhe seguiu, isto é, todos os germens tradicionaes das novas nacionalidades do Occidente unificadas sob o regimen catholico-feudal da Edade media até aos tempos modernos. O regresso a estas origens communs das Litteraturas romanicas é que é o facto capital da transformação esthetica do seculo XIX. A paixão pela Edade media tornou-se uma monomania; era facil de reproduzir os seus symbolos caracteristicos e de simular os seus conflictos de classes, em dramas e romances. A representação exclusiva da Edade media, á falta de objectividade, levou ao exagero da phrase, a emphase rhetorica, produzindo um estylo chamado o Ultra-Romantismo. A subjectividade fôra tambem considerada como um caracteristico das litteraturas modernas, e n’essa parte parece ainda reconhecer-se a hegemonia allemã.

No decurso da longa edade revolucionaria, primeiramente mental e depois social, houve o interregno do sentimento, deixado á espontaneidade da sua concordia natural. No seculo XVIII irrompeu esta nova força, primeiramente na fórma de philanthropia, inspirando reformas a favor das classes soffredoras; veiu a passividade emocional diante da natureza, a sensibilidade idyllica, tornou-se moda a voluptuosidade da melancholia, até se chegar á sensiblerie das lagrimas, ao desalento da vida e ao pessimismo. A grande actividade mental do seculo, que tudo analysou, conduzia [Pg 360] a um exagerado subjectivismo, e as commoções da explosão temporal foram determinar nas fórmas da arte moderna a expressão da sentimentalidade acordada n’essa crise. A alma humana carecia de consolos, e a musica entrou na sua phase de expressão em Haydn, Mozart, Beethoven, Weber e Cimarosa. A Poesia saíu do allegorico e deslavado arcadismo para tornar-se pessoal, e traduzir este estado morbido do sentimentalismo melancholico. N’este meio social e moral, é que appareceu na Allemanha o wertherismo, não creado por Goëthe na sua novella de Werther, mas de que esta narrativa de uma paixão vaporosa e fatal que leva ao suicidio foi um resultado. Em França, este mesmo contagio de tristeza ou o obermanismo teve o evangelho no Oberman de Sénancourt e no René de Chateaubriand. Na Inglaterra choram-se as Noites elegiacas do Dr. Young, e surgem depois os poetas Lakistas cantando os luares, os nevoeiros, os crepusculos da tarde, todas as emoções tenues da alma; Wordsworth inspirava-se de um platonismo religioso e animava cada cousa com entidade moral; Southey e Wilson completavam a pleiada dos poetas visinhos dos lagos de Westmoreland e de Cumberland, para quem a poesia era um pantheismo christão, uma somnolencia de extasis, uma bonança mystica no meio da grande derrocada do regimen theologico-feudal do fim do seculo XVIII.[201]

[Pg 361]

No renascimento esthetico do seculo actual reapparecia o elemento pessoal da Arte, que estivera abafado sob a imitação das obras classicas; consequentemente resoava um lyrismo novo, subjectivo, affinado pelo estado das almas em uma éra perturbada que começava. Na Allemanha, Novalis tirava novos accentos d’esse sentimento vago e indeterminado da melancholia; a existencia tornava-se uma nostalgia e saudade da outra vida; o tumulo, os goivos dos cemiterios, a solidão, os dobres funerarios, a cruz do ermo eram os symbolos sympathicos do lyrismo que mais aggravava esta doença das almas ingenuas e sensiveis. Os poetas tomavam a sério o pezo imaginario da sua angustia, declamavam ao vento as suas elegias plangentes, e muitas vezes expiravam minados por consumpção nostalgica irremediavel. Em França, Lamartine propagou esta sentimentalidade larmoyante dando-lhe uma uncção religiosa; e Millevoye, com menos talento abandonou-se como Novalis ao seu [Pg 362] desgosto intimo, cahindo em um languor sem remedio. A paixão pelo genio melancholico estendeu-se por toda a parte pela impressão dos poemas de Ossian, inventados por Macpherson; as sombras dos guerreiros vagando na cerração dos promontorios, os eccos da harpa bardica perdidos nos banquetes estridentes, as lembranças dolorosas das tribus extinctas, um mixto de objectividade homerica com a subjectividade das lamentações e dos psalmos biblicos (em um syncretismo consciente) tornavam o genero agradavel e suggestivo.

Transitou-se assim para o lyrismo religioso ou emmanuelico, como uma reacção contra a incredulidade do seculo encyclopedista, contra o philosophismo que devastára os espiritos. O Lyrismo portuguez estava esterilisado pelas imitações arcádicas; o proprio Garrett ainda se chamava Jonio Duriense, e Castilho chamava-se Mémnide Egynense, na Arcadia de Roma.

A emigração politica é que nos revelou o Romantismo; emquanto Garrett e Herculano comiam o pão do exilio, acompanharam o movimento litterario que se operava em volta d’elles. Garrett comprehendeu que o renascimento da vida politica da nacionalidade carecia da base affectiva da litteratura e das tradições, e Herculano do conhecimento da sua historia. A feição do Lyrismo iniciado por estes renovadores foi a que predominava nas outras litteraturas, melancholica e emmanuelica. Garrett foi completamente elegiaco, e de um subjectivismo exagerado no poema narrativo Camões; invoca a [Pg 363] saudade, o gosto amargo, o pungir delicioso que lhe repassa os imos seios da alma, em uma especie de obermanismo, e já no fim da vida ficou fiel a essa emoção nas Folhas cahidas, o principal modelo do nosso lyrismo. Herculano foi tambem sentimental, mas pela rigidez do seu temperamento não podendo conciliar-se com a sensiblerie lamartiniana, pendeu para a emoção religiosa, e tomou por modelo Klopstock; na Harpa do crente, destacam-se a Semana santa, a Cruz mutilada, a Arrabida, como um protesto a favor do christianismo medieval, que Chateaubriand tentára revivescer pela arte e José de Maistre esclarecer pela continuidade historica, que a Revolução quebrára.

A feição da sentimentalidade nostalgica, affinada pelos Lakistas, pela melancholia de Novalis e pelo desalento de Millevoye, teve em Portugal já tardiamente o seu representante em Soares de Passos; são-lhe sympathicos os poemas de Ossian, as balladas do norte e as Harmonias de Lamartine.

O seculo XIX, na sua instabilidade politica e ausencia de uma doutrina philosophica aggravada pela fragmentação das especialidades scientificas, continuava o seculo XVIII no insurreccionismo dos espiritos. Os que não cahiam na passividade revoltavam-se; o Lyrismo reflectiu este estado emocional, que levava á concepção pessimista do universo, como em Leopardi, ou ao imperio absoluto do mal, como o satanismo de Byron. O immortal poeta contrapõe ao mundo a sua individualidade, que representa no Child Harold, no [Pg 364] Don Juan, no Manfredo, mas sente em volta de si um vacuo moral que lhe annulla a intelligencia capaz de abranger o infinito, e um coração puro em que podia accolher o universo. Tem o atheismo na cabeça e a aspiração religiosa no intimo da alma, mas vê-se forçado pelo meio deleterio ambiente ao sarcasmo, á ironia, á blasphemia. O seu ideal, como o de Shelley, sendo apto para trazer a concordia ás almas e revelar-lhes a synthese affectiva humana, é deturpado em uma missão negativa. Comte definiu de uma fórma nitidissima o genio e a missão de Byron: «O mais eminente poeta do nosso seculo, o grande Byron, que até hoje, tem a seu modo melhor do que ninguem presentido a verdadeira natureza geral da existencia moderna, simultaneamente mental e moral, tentou espontaneamente e sósinho esta audaciosa regeneração poetica, unico desfecho da Arte actual. Sem duvida, a sã philosophia não estava então ainda bastante avançada para permittir ao seu genio o apprecial-a sufficientemente, na nossa situação fundamental, além do aspecto puramente negativo, que elle, apezar de tudo, soube admiravelmente idealisar... Mas, o profundo merito das suas immortaes composições e o seu immenso successo immediato, apezar das vãs antipathias nacionaes, entre todas as populações cultas, tornaram já irrecusavel quer a potencia poetica privativa da nova sociabilidade, quer a tendencia universal para uma tal renovação.»[202] N’esta orientação esthetica [Pg 365] seguia Shelley, desviado da sua obra por uma morte desastrosa. A parte negativa do genio de Byron é que foi seguida por outros lyricos, segundo os seus caracteres nacionaes; pelo allemão Henri Heine, no humour e launa, e em Alfred de Musset por um alcoolismo com que se sobreexcita, como o phantastico Foë. Falhos de uma concepção geral, os Lyricos modernos esgotaram-se reproduzindo a nota negativa de Byron. Em Portugal repercutiram-se estas cambiantes, como se vê nos Sonetos de Anthero, confessando elle mesmo que tem um pouco de Heine; no Lyrismo brazileiro prevaleceu o mussetismo, pela mesma fórma desgraçada da dissipação da vida, como se observa em Alvares de Azevedo e Castro Alves.

A poesia lyrica do Romantismo esgotou-se em uma exagerada subjectividade; o elemento pessoal da arte não encontrava caracteres nem concepções, na invasão das mediocridades. Os poetas lyricos modernos preoccuparam-se de um modo exclusivo da fórma, antepondo a expressão á concepção, ou o parnasismo. A facilidade da acquisição da technica desvairou os talentos subalternos. No estado actual dos espiritos e na crise por que está passando a consciencia moderna para fundar e universalisar a sua nova synthese, a Poesia soffre tambem os effeitos d’esta instabilidade moral. Compete aos poetas dignamente modernos empregar todo o seu poder de expressão em dar universalidade ás concepções positivas, para que se criem assim os novos costumes estaveis, elementos de idealisação para a Arte pura. [Pg 366] Os poetas que cultivam exclusivamente a expressão, sacrificando-se ao preconceito da arte pela arte, abdicam de uma missão social, chegando por isso raras vezes a despertar a sympathia social. Quando idealisam com elevação sentimentos eternos e humanos, como o amor, ainda conseguem ser lidos; mas ha n’este sentimento um personalismo que amesquinha a emoção, e que reduz a obra de arte a uma confidencia que nos é indifferente. M.me Ackermann formulou em poucas palavras a orientação do poeta moderno: «Fazer poesia subjectiva é uma disposição doentia... É em nome da natureza, é sobretudo em nome da humanidade, que é precisa a voz. Estas fontes de inspiração são as unicas verdadeiramente profundas e inexauriveis.» Restabelecida a continuidade historica da Edade media, estava conciliado o mundo romantico com o classico, e logicamente se segue o conhecimento de uma mesma Humanidade. É esse sêr ideal e real que tem de ser idealisado em todas as manifestações artisticas, cooperando a formação segura de uma Philosophia da Historia com a idealisação simultanea de uma Poesia da Historia.

c) DISCIPLINA CRITICA E PHILOSOPHICA

Depois de estabelecidas as bases criticas dos poemas homericos, por Vico, e amplamente comprovadas por Wolf, veiu a comprehensão dos cantos nacionaes e o reconhecimento da sua importancia scientifica. Notou-se que o homem assim como formava os seus systemas de linguagem [Pg 367] e de mythos religiosos independente dos grammaticos e dos theologos, tambem antes dos litteratos soubera manter a tradição e dar fórma aos sentimentos que realisaram a unificação das nacionalidades. Em 1794, a descoberta da collectividade homerica por Wolf, coincidia com a manifestação da consciencia de um povo na Revolução franceza. A eloquencia dos factos justificava a concepção especulativa do philosopho; nas modernas revoluções da Europa, a poesia continuou a manifestar-se como o grito da liberdade: a Marseillaise, de Rouget de l’Isle, exaltava as multidões; as estrophes de Krasinski e de Miçkievich convulsionavam os estudantes da Polonia; os hymnos de Poetefi ajudavam a causa da emancipação da Hungria; os hymnos de Riego e da Maria da Fonte atacavam o despotismo que deixava cahir a mascara da hypocrisia liberal. Conheceu-se que a alma popular tinha a sua poesia, e que era accessivel a esse encanto. Esta descoberta affirma-se pelas descobertas da critica e da philologia; estudaram-se os cantos gaëlicos e as narrativas do Mabinogion, na Inglaterra, foram achadas as Canções de Gesta da França, reproduziram-se os Niebelungen, da Allemanha, e os Romanceiros da Hespanha. A archeologia, a linguistica, a mythographia, a critica da arte, a philosophia, cooperavam para darem novas bases á sciencia da Historia, determinando o que ha de verdade nas tradições. Jacob Grimm, dominado por esta sympathia percorre a Allemanha, e no decurso de dez annos explora a rica mina das tradições dos povos germanicos. [Pg 368] E o que elle fazia como erudito genial, os poetas tentaram como artistas reconstruindo pelo sentimento as edades passadas. Uhland, na Allemanha, foi o poeta que mais trabalhou para a comprehensão da alma popular; chamavam-lhe por isso o ultimo trovador; a sua imaginação de fada repovoava os castellos em ruinas, reconstituindo as lendas dos solares extinctos pelas vagas tradições locaes. Era um propheta do passado prégando o amor da Edade media. Nas suas balladas acha-se a mesma consagração das Côrtes de Amor, ainda os peregrinos voltam desconhecidos da Terra Santa e cantam ao sopé dos castellos o lai plangitivo do ausente; o cavalleiro errante é ainda impellido pelo sentimento do amor e da justiça; na Cathedral continúa vibrando o sino que toca á revolta, e ainda lá dentro nascem os amores immaculados dos petrarchistas. O cantico de uma edade que passou torna-se no seu plectro uma aspiração da liberdade moderna.

Na Inglaterra Lockart, guiado por Walter Scott, traduzia os romances hespanhóes, que Jacob Grimm tambem reproduzia na Silva de Romances viejos. A sympathia da tradição iniciava a unificação dos povos; pelo estudo das origens da Divina Commedia e do Decameron se viu como todas as raças da Europa contribuiram com o syncretismo das tradições medievaes para a elaboração das obras primas litterarias. O Fausto, de Goëthe, era essa tradição restricta, illuminada por um pensamento philosophico e universalisando um estado da consciencia humana enganada pelas noções absolutas da metaphysica com que fôra [Pg 369] seduzida; a salvação do doutor vem da tolerancia da relatividade.

Só muito tarde é que chegou a Portugal a necessidade de saber se eramos um povo vivo, ou, o que valia o mesmo, se possuiamos uma poesia tradicional; Garrett regressára da primeira emigração de 1823, e tendo assistido na Inglaterra á impressão provocada pelas publicações de Ellis, Percy, Rodd e outros collectores, veiu aqui encetar essas pesquizas. Retocou os cantos populares ao gosto de Uhland e de Percy, misturando com as dezaseis rhapsodias achadas nas lareiras da provincia as suas composições litterarias da Adosinda e Miragaia. O criterio d’estes estudos, empregado pelos irmãos Grimm, é que prevaleceu, e trabalhando já n’este periodo de disciplina scientifica fomos levados do estudo dos Foraes para a investigação dos Romanceiros. Raiou-nos uma luz nova: o que parecia rudeza era o documento de um estado social extincto, ou de uma raça; o que parecia imagem sem sentido era um symbolo foraleiro do periodo hispano-germanico, conservado nos costumes pela persistencia do elemento mosarabe; o que se affigurava um erro grammatical era um archaismo de linguagem; o que parecia um fragmento obliterado era um episodio abreviado de uma Gesta carlingia ou de uma novella arthuriana. Assim comprehendemos a inerrancia das tradições populares, que proclamára Jacob Grimm.

A Edade media foi no seu conjuncto estudada scientificamente em todas as suas manifestações; as novas linguas romanicas, os rudimentos [Pg 370] litterarios épicos, lyricos e dramaticos, as creações artisticas e a sumptuaria, as instituições civis e religiosas, as luctas de classes sociaes, o feudalismo, as jurandas, as communas e a realeza, a persistencia das instituições romanas através do dominio dos invasores germanicos, a constituição das nacionalidades, os conflictos doutrinarios das escholas philosophicas e da theologia, tudo se tornou objecto de numerosas monographias historicas, que deram logar ao conhecimento pleno d’esta moderna antiguidade. O Ultra-Romantismo dissolveu-se diante da seriedade da sciencia. Qual seria então a marcha das Litteraturas, quando melhor se conhecia o seu berço organico da Edade media? Infelizmente a marcha social da Europa estacionou no seu trabalho de reorganisação nos expedientes aventurosos da transição parlamentarista; em quanto á parte mental, a falta de opiniões definitivas e sua versatilidade não deixou crear caracteres dignos e costumes estaveis, por tanto, as Litteraturas resentiram-se d’esta situação deploravel. Gastaram-se vivos esforços em renovar as fórmas litterarias reproduzindo a realidade no Naturalismo, mas as obras primas não conseguiram cativar a sympathia popular. Faltava-lhes um ideal, e esse não póde ser senão a fórma esthetica da grande synthese philosophica para a qual a humanidade tende. Notando a insufficiencia da Arte e das Litteraturas modernas, Comte formulou nitidamente as condições necessarias para a sua renovação final: «As bellas-artes, destinadas á multidão, devem com effeito, pela sua natureza sentir a indispensavel necessidade de se [Pg 371] apoiarem sobre um systema conveniente de opiniões familiares e communs, cuja preponderancia prévia é egualmente indispensavel para produzir e para gosar, a fim de preparar suficientemente entre o interprete activo e o espectador passivo esta harmonia moral que d’ante mão dispõe um a secundar espontaneamente os meios de expressão empregados pelo outro, e sem a qual nenhuma obra de arte conseguiria ser plenamente efficaz, mesmo sob o ponto de vista individual, e, com mais forte rasão sob o aspecto social. É a deficiencia de uma tal condição, rarissimamente preenchida na arte moderna, o que basta para explicar o pouco effeito real de tantas obras primas, concebidas sem fé e apreciadas sem convicção, e que, apezar do seu eminente merito, não podem excitar em nós senão impressões geraes inherentes ás leis geraes da natureza humana; de sorte que d’aqui resulta quasi sempre uma influencia muito abstracta e consequentemente pouco popular.»[203] O atrazo mental na reconstrucção da synthese humana, contrasta com a dispersão de energias em especialidades scientificas verdadeiramente inuteis, e com a falsa direcção das intelligencias desprovidas dos sentimentos que fecundam os nobres caracteres. É ás Litteraturas que compete o irem adiante, dando disciplina aos sentimentos, e acordando-lhes o ideal que tem andado confundido em indefinidas aspirações. Os mais [Pg 372] difficeis problemas da reorganisação social só podem ser resolvidos affectivamente; assim se operou no christianismo na transição da Edade media. Servindo este destino, as Litteraturas desenvolvidas sobre concepções sympathicas, que tendem a tornar-se estaveis, reatarão essa mutualidade perdida, essa antiga collaboração entre o poeta que idealisa e a multidão que se impressiona.

NOTAS DE RODAPÉ:

[97] Cours de Philosophie positive, t. VI, p. 146.

[98] Cours de Philosophie positive, t. VI, p. 150.

[99] Ibid., p. 152.

[100] Op. cit., p. 2.

[101] Système de Politique positive, t. III, p. 459.

[102] Cours de Philosophie positive, t. VI, p. 155.

[103] Cours de Philosophie positive, t. VI, p. 155.

[104] Ibid., p. 156.

[105] H. Fortoul, De la Litterature provençale (Rev. des Deux Mondes), 1846.

[106] Poeti del primo secolo, t. II, p. 175.

[107]

Von Provenz in Tustsche lant
Die rechte mere sint gesant.

[108] Frédéric Morin, France au Moyen-Age, p. 82.

[109] Obras del Marqués de Santillana, p. 12. Ed. Amador de los Rios. (1852)

[110] Poésie des Troubadours, p. 237.

[111] Na Chronica gothorum (Mon. hist., Scriptores, I), lê-se: «Eodem quoque tempore venerunt quedam naves exinsperato de partibus Galliarum, plene armatis viris votum habentes ire in Jerusalem, cumque venissent ad Portum Gaye, et intrassent Dorium, audivit hec Rex, et gavisus est cum eis, erant enim fere septuaginta, et paccitus est cum eis ut irent ad Ulixbonam ipsi per mare, et ipse cum exercitu super terram, et obsiderunt eam forsitan placere Domino ut traderet eam in manibus eorum.»

[112] Terram Portugallorum Dacis et Flandris dedit. (Cap. XVIII).

[113] Léon Gautier, Les Épopées françaises, t. I, p. 71.

[114] Hist. de la Poésie provençale, t. III, p. 9 e 29.

[115] Mon. Hist.—Scriptores, p. 283.

[116] Léon Gautier, Les Épopées fr., t. II, p. 184.

[117] Monarch. luzitana, t. IV, p. 289.

[118] Romanceiro geral, n.o 34.

[119] Historiens de France, t. XXII, p. 24 (préface) e p. 589. Apud Léon Gautier, Les Épopées françaises, t. I, p. 373.

[120] Jean Corbechon, De Proprietatibus, fl. 237. Apud Léon Gautier, Les Épopées franç., t. i, p. 393.

[121] Gautier, ibid., t. i, p. 783.

[122] Chronica da Conquista de Guiné, p. 4. Ed. Paris.

[123] Les Épopées françaises, t. II, p. 249.

[124] Essai sur l’origine de l’Épopée française, p. 57 a 59.

[125] La Poésie des Races celtiques. (Essais de Morale et de Critique, p. 380.)

[126] Renan, ib., p. 427.

[127] Op. cit., p. 321.

[128] Henri Martin, Hist. de France, VIII, 22.

[129] Ethnogénie gauloise, III, 335.

[130] Mon. hist., Leges, p. 139.

[131] Renan, op. cit., p. 417.

[132] D’Héricault, Essai sur l’origine de l’Épopée française, p. 51.

[133] D’Héricault, ibid., p. 47.

[134] Rapport sur une Mission litteraire en Angleterre, p. 1.

[135] Monum. hist., Scriptores, p. 244.

[136] Poesies des Troubadours, t. III, p. 25.

[137] Blanchefleur, Introduc., p. XXXVII.

[138] État des Lettres au XIVme siècle, t. I, p. 153.

[139] Ibid., p. 484.

[140] Ibid., t. II, p. 15.

[141] No citado resumo (t. I, p. XXII) se lê: «Je n’ose m’en fier absolument à ma memoire; je suis intimement conveincu d’avoir vu ces manuscripts (pretendus picards) écrits en ancienne langue Romance, dans la Bibliothèque du Vatican; c’est à dire, dans la partie de cette Bibliothèque formée de celle que la celèbre Reine Christine avoit rassemblée, et dans l’aquelle presque tous nos meilleurs et nos plus anciens Romans français sont compris.»—No t. IX, p. 2, Du Tréssan torna a referir-se mais explicitamente a este facto: «Pendant un sejour de quatre mois que l’auteur ... fit à Rome, son Eminance Monseigneur le Cardinal Querini l’honora de son amitié et la Bibliothèque du Vatican lui fut ouverte... La partie droite renferme la Bibliothèque de la celèbre reine Christine... C’est là qu’il se rappelle d’avoir vu l’Amadis de Gaule, écrit dans un très vieux langage, que l’Herberay caracterise en le nommant langue picarde, fondé sur ce que le jargon du paysan picard est précisement le même que celui dans le quel les Romanciers de la fin du règne de Philippe Auguste et des regnes de Louis VIII et de Saint Louis ont écrit; c’est ce que lui fait présumer, avec bien de vraisemblance, que l’original de l’Amadis de Gaule est de la main de nos anciens Romanciers françois; etc.»

[142] Dictionaire, compl. de la préface, p. LIV. Hippeau, editor do poema de Amadas et Ydoine, reconhece estas relações, e que reclamam serio exame.

[143] Libros de Cavallerias, p. 30 (Ed. Ribadaneyra.)

[144]

Et Amadas devant sont père
Devant son père, à la table ere,
Cui puis avint maint aventure.
Li dus l’apela à droiture,
Le mès li commande à porter
Sa belle fille et présenter.
Qui tint à une part sa feste,
Com pucele de haut geste.
Comme courtois et afaitiés,
De cest message se fist prest.
(P. 209 a 219.)
En l’esgarder de la pucele
Li saut au cuer une estincelle,
Lui de fine amor l’a esprit;
Jà en est tes mas e suspris,
E entrés en si grant effroi,
Qu’il ne set nul conseil de soi;
Ne set s’il a joie ou doleur,
Ou amertume, ou douceur;
Ne set si il la vit ou non
Par songe ou par avision; etc.
(P. 243 a 252.)

[145] Do prurido que exerceram os poemas da Tavola Redonda na sociedade europêa falla Dante no celebre episodio de Francesca di Rimini, seduzida pela imitação dos amores de Lancilotto. Escreve Émile Chasles: «Isto que se passava na Italia acontecia egualmente em todo o Meio Dia. Os Hespanhoes e os Portuguezes, ao terminarem as suas longas guerras contra o islamismo foram vivamente impressionados por estas creações romanescas; imitaram-as com a paixão séria que imprimem na poesia. Os Amadises, que levam ao extremo o ponto de honra, a galanteria e a coragem, são os descendentes da familia gallo-bretã.» (Histoire nationale de la Litterature française, p. 326.)

[146] Ineditos da Historia portugueza, p. 120.

[147] Ed. de Paris, p. 45. Em nota escreve o Visconde de Santarem: «Segundo esta tradição, dizia-se que San Brendan tinha aportado em um navio no anno de 565 a uma parte da equinocial. Conservou-se esta entre os habitantes da Madeira e da Gomeira, os quaes julgavam vêr a dita ilha ao Oéste em certo tempo do anno.» E accrescenta: «Azurara conheceu esta tradição da Edade media por alguma copia dos Ms. do seculo XIII intitulado Imago Mundi de dispositione Orbis de Honorio d’Autun; e esta circumstancia é tanto mais curiosa, que Azurara não podia ter tido conhecimento do famoso Mappa Mundi de Fra Mauro, que só foi feito entre os annos de 1457 e 1459; e ainda menos do planispherio de Martim de Bohemia (1492) que se conserva em Nuremberg, onde se vê desenhada junto da equinocial uma grande Ilha com a seguinte legenda: Anno 565 S. Brandam chegou com o seu navio a esta ilha.»

[148] Renan, no estudo Poesia das Raças celticas, alludindo ao poder das ficções, escreve: «D’ahi este profundo sentimento do futuro e dos destinos eternos da sua raça que sempre alentou o Kymri, e o faz apparecer joven ainda ao lado dos seus conquistadores envelhecidos. D’ahi o dogma da resurreição dos heróes, que parece ter sido um d’aquelles que o christianismo teve mais pena de desraigar. D’ahi este messianismo celtico, esta crença em um vingador futuro, que restaurará a Cambria e a libertará dos seus oppressores, como o mysterioso Leminok, que Merlin lhes promettera, o Lez-Breiz dos Armoricanos, o Arthur dos Gallois.» (Ess., p. 387.)

[149] Roland et la Chevalerie (na Rev. des Deux Mondes, 1846.)

[150] Roland et la Chevalerie. Magnin esboça um plano de coordenação de caracteres historicos fundado sobre este dualismo: «Comprazer-me-hia a oppôr a um personagem de temperamento e de cultura antiga um personagem de compleição e de costumes septemtrionaes; Clovis, por exemplo, a Carlos Magno; o ultimo dos Bourguinhões, Carlos o Temerario, a Luiz XI; o troveiro Thurold, a Ariosto; Shakespeare, a Racine; Erwin de Steinbach, a Miguel Angelo; finalmente mais perto de nós, Byron, a Alfieri; Beccaria, ao conde de Maistre.»

[151] Dicc. da Academia española, vb.o cit.

[152] Apud Joly, Benoit de Sainte More, t. I, p. 6.

[153] Catalogo dos Bispos do Porto, prefação, § 13.

[154] Vida de D. João de Castro, p. 509. Ed. 1835.

[155] Xivrey, Trad. terat., p. XLVI.

[156] Op. cit., p. XLIII.

[157] Panorama, t. I, p. 164.

[158] Ibid., t. IV, p. 8.

[159] Poésies populaires latines antérieurs au XIIme siècle, p. 26.

[160] Bibl. Jacob, Histoire de Cordonniers, p. 220.

[161] Cours de Philosophie positive, VI, 150.

[162] Ibid., p. 159.

[163] Ibid., p. 172.

[164] Cours de Philosophie positive, t. VI, p. 174.

[165] Ibid., p. 153.

[166] Études sur le Seizième siècle en France, p. 5 e 6.

[167] Op. cit., p. 176.

[168] «Possem utriusque rei exempla non pauca in medium adducere, non jam ex Italia ipsa studiorum altrice, verum etiam ex Gallia, ex Britania, ex Germania, nostra hac aetate cum Italia de litterarum palma contendente, et denique ex Sarmatia omnium quondam terrarum barbarissima.»

[169] La Poésie du Moyen-Age, p. 80.

[170] Raczynski, Carta XXI, p. 410.

[171] Purgatorio, canto XXIV.

[172] Obras, ed. 1614, fl. 123. Na edição de 1595 vem sob estas variantes:

Eu digo os Proençaes, de que ao presente
Inda rythmos ouvimos, que entoaram
As musas delicadas altamente.

[173] Ap. Influence de l’Italie sur les Lettres françaises, p. 93.

[174] Système de Politique positive, t. III, p. 514.

[175] L’avenir de la Science, p. 58.

[176] A preoccupação da lisonja da côrte dava aos escriptores as expressões amaneiradas, como notou Weise no Politischer Näscher, nos escriptores do seculo XVII que se annullavam «pelo grande desejo da sôpa da côrte politica.»

[177] Études sur l’Espagne, p. 227.

[178] Études sur l’Espagne et sur l’influence de la Litterature espagnole en France et en Italie, p. 40.

[179] Études sur l’Espagne, p. 108 a 111.

[180] Ibid., p. 113.

[181] Ibid., p. 114.

[182] Études sur l’Espagne, p. 148.

[183] Ibid., p. 41.

[184] Ibid., p. 225.

[185] Sobre este assumpto, vid. Child, John Lyly and Euphuism; Laudmann, Der Euphuism; e Morly, Quarterly Review, 1861.

[186] Congrès historique (IXme) p. XVIII. Paris, 1843.

[187] L’Ancien Régime, p. 257 e seguintes.

[188] Ibid., p. 260.

[189] Ibid., p. 261.

[190] Verdadeiro methodo de estudar, t. I, p. 177.

[191] Ap. Marquez de Valmar, Historia de la Poesia española, t. I, p. 261.

[192] Panorama, t. VIII, p. 152.

[193] Verdadeiro methodo de estudar, t. I, p. 220.

[194] Verdadeiro methodo de estudar, t. I, p. 201.

[195] Obras poeticas e oratorias, p. 166. Ed. 1888.

[196] «Beles, Shakspeare, inglez, em nove volumes de outavo magno, encadernados em pasta. Boa edição, estampados, avaloados em 6$400 réis.

«Poemas de Raulay, inglez, 1 vol.

«Hudibras, por Samuel Butler, inglez, 1 vol.

«Ancient Inglis, obra poetica, em 3 vol., encadernada em pasta.

«Several Hands, collecção de poemas em inglez, em 6 volumes.

«British Theatre, comedias em inglez em um volume.

«Obras de Laurence Sterne, inglez, em 3 volumes de 8.o.

«Obras de Tristran Shandy, inglez, encadernado em pasta, 6 vol. de 8.o.

«Sentimental Journey: Yorich, em 2 vol. de 8.o em pasta.

«British Tragedias, inglezas, em 1 vol.

«Obras de Young, francez, em 3 vol.

«Cartas de Junius, em inglez, em 2 vol.

«Obras, Poemas de Milton, inglezes, 3 vol.

«Um tomo das Obras de William Shakspeare, em que contém algumas comedias inglezas, em 1 vol.»

[197] Fallando do meio como poderia reflorir a poesia franceza do seu inexpressivo arcadismo, escrevia Frederico Schlegel: «eu sou levado a pensar que isso não se daria nem poderia acontecer pela imitação dos inglezes, como se tem feito até ao presente para sustentar a poesia desfallecida, nem pela imitação de nenhuma outra nação; mas sómente por um regresso ao espirito poetico em geral, e reconduzindo a poesia franceza aos tempos antigos.»—«basta a cada nação o voltar-se para a sua poesia e tradições suas proprias e originaes. Tanto mais perto se está da origem e mais profundamente se immerge n’ella, quanto mais se vê apparecer o que todas as nações tem de commum.» (Historia da Litteratura antiga e moderna, t. II, p. 248, trad. franc.) A influencia da Litteratura ingleza era devida a não se ter completamente separado da Edade media, e é d’esta fonte commum das Litteraturas modernas que ellas avançam para a sua unificação.

[198] La Philosophie positive, resumida por Miss Martineau, t. II, p. 446.

[199] Ibid., p. 484.

[200] La Philosophie positive, condensée par Miss Martineau, t. II, p. 486 a 488.

[201] Philarète Chasles indicando este phenomeno, não explica a sua origem: «Que causas sociaes determinaram tambem a sentimentalidade wertheriana, esta moda extraordinaria de chorar sem fim, este obermanismo desesperado que só teve um dominio passageiro em França com Arnaud Baculard, em Inglaterra com o Dr. Young, mas que penetrou até ás ultimas camadas da sociedade e da burguezia allemãs entre 1780 e 1790, e que tanto persistiu que duas operarias gorduchas e dois bons burguezes que se encontrassem em Leipzic ou em Goettingue, não perguntavam um ao outro: Como passaes? mas: Tendes vós derramado copiosas lagrimas? ou então:—Como vão os soffrimentos do vosso coração?—Esta tendencia lagrimejante auxiliou o successo do Werther de Goëthe, e o da Intriga e amor de Schiller; as obras de Kotzebue foram um producto definitivo. Mas onde teve esta tendencia a sua origem?» (Des travaux récents sur le XVIIIme Siècle.)

[202] Cours de Philosophie positive, t. VI, p. 762.

[203] Cours de Philosophie positive, t. V, p. 106.


[Pg 373]

III
Épocas historicas da Litteratura portugueza

Para formar a Historia de uma Litteratura moderna em especial, importa considerar a nação que a produziu como membro d’esta Republica occidental, analysando as manifestações do seu genio esthetico e deduzindo pela comparação dos typos communs a marcha que seguiu a evolução esthetica da Europa desde a Edade media até ao presente, nas suas relações complexas com as instituições politicas e economicas, bem como com as phases mentaes e affectivas do espirito e da sociabilidade. A um trabalho concreto de erudição tem de seguir-se uma forte abstracção philosophica, considerando a Edade media como o fóco de elaboração do genio esthetico tanto para as linguas e para a poesia como de todo o systema das bellas-artes. Pelo exame da marcha geral da Civilisação europêa no seu movimento de decomposição e por tanto de [Pg 374] instabilidade social, se comprehenderá como o elemento classico serviu de apoio provisorio para o exercicio das capacidades estheticas na época mentalmente agitada da Renascença. Todas as phases por que passou a civilisação europêa sob a dissolução do regimen catholico-feudal, actuaram nas fórmas das Litteraturas, umas vezes desviando-as da idealisação dos seus elementos affectivos medievaes para a imitação greco-romana, outras vezes confundindo-os, e por ultimo regressando á origem organica. É este facto fundamental o em que melhor se observa a solidariedade das Litteraturas romanicas, e o que melhor define as transformações que constituem a caracteristica de cada época historica. Assim as épocas da Historia da Litteratura portugueza são semelhantes ás que apresentam as outras litteraturas meridionaes.


PRIMEIRA ÉPOCA
(SECULOS XII A XV)

Preponderancia dos elementos tradicionaes e estheticos da Edade media, e começo de transição para o estudo da Antiguidade classica

1.o Periodo (Seculos XII a XIV):

Trovadores portuguezes.—A poesia provençal entrou na peninsula hispanica especialmente pela Galliza, quando Portugal se achava ainda incorporado no seu territorio. Eram da Gasconha, [Pg 375] pertencente á eschola poetica da Aquitania, os trovadores que aqui penetraram, entendendo-se pela homogeneidade da tradição, dos costumes e da linguagem. Pelo casamento de D. Affonso Henriques, o primeiro monarcha portuguez, com uma princeza italiana, assim como nos apropriámos das fórmas municipaes (o Podestariado) tambem conhecemos a poesia dos trovadores que em grande numero se haviam refugiado na Italia por causa da absorpção monarchica da França do norte. Peire Vidal, Marcabrun e Gavaudan o velho, que vieram a Portugal ou a elle se referiram, tinham passado a parte principal da sua vida na Italia. No Cancioneiro da Vaticana determina-se esta phase de iniciação italo-provençal: ha importantes referencias a Sordello, de Mantua, e abundantes italianismos, como: Cajon, Mensonha, Mentre, Pelegrin, Toste, Ledo, Nozir, Solaz, Guirlanda, Dolçor, Vergonça, Potestade, etc. No Cancioneiro Colocci-Brancuti acham-se em portuguez canções assignadas por Bonifazio Calvo, de Genova.

O desenvolvimento completo da poesia trobadoresca deu-se na côrte de D. Affonso III por circumstancias implicitas nas transformações politicas portuguezas. Contra o systema administrativo de D. Sancho II insurgiram-se o clero e a nobreza, e depois da escaramuça violenta da Lide do Porto, os bispos mais audaciosos foram para Roma conspirar para a deposição do monarcha, e a nobreza emigrou para França, refugiando-se junto do princepe D. Affonso, que se distinguia pela sua estremada bravura na côrte de San Luiz. Então [Pg 376] estava o lyrismo provençal em moda no norte da França, e o conde de Champagne com outros senhores serviam-se das subtilezas das allegorias trobadorescas para cortejarem a formosa rainha viuva Branca de Castella. N’essa côrte cavalheiresca residira D. Affonso desde 1238 a 1246; para junto d’elle é que emigraram os fidalgos das familias dos Bayões, Porto-Carreros, Valadares, Alvins, Nobregas, Mellos, Sousas e Reymondos, appellidos dos principaes trovadores que assignam as composições dos nossos trez valiosos Cancioneiros fragmentarios. Apoiado n’esse partido de revolta dos grandes vassallos, D. Affonso fez um desembarque furtivo em Portugal, e foi recebendo a homenagem dos principaes Alcaides dos castellos; refugiou-se o irmão em Toledo, e só depois da morte d’este é que D. Affonso se acclamou rei. Uma Satyra violenta contra os Alcaides traidores, revela-nos que já no reinado de D. Sancho II se cultivava e reconhecia a importancia da poesia trobadoresca. Nas Canções dos codices da Ajuda e da Vaticana verifica-se a influencia directa do norte da França: uma traz o retornello Que je soy votre ome-lige, outra imita as fórmas épicas e chama-se Gesta de Maldizer, outra seguindo o gosto das pastorellas falla no Caminho francez. E nos costumes da casa real ordenava-se que só houvesse trez jograes na côrte.

Dom Affonso III deu os principaes cargos da nação aos seus partidarios, e tratou de desfazer o seu casamento com a Condessa de Bolonha, para casar com uma bastarda de D. Affonso o Sabio. Assim se aproximaram [Pg 377] as duas côrtes, principalmente quando D. Diniz tambem se mostrou apaixonado da poesia provençal como seu avô. Ou para lisongear Affonso o Sabio ou pela propria predilecção, D. Affonso III deu a D. Diniz uma educação litteraria completa; o fragmento de uma Poetica provençalesca do principio do Cancioneiro Colocci-Brancuti, mostra-nos quanto eram estudados os segredos da metrificação limosina; com intuitos de arte é que são imitados os Lais bretãos, e as Pastorellas aquitanicas com as Serranilhas gallezianas. O conhecimento da arte trobadoresca fez renascer a dignidade do que inventava a canção, do trovador sobre o jogral, que só cantava mercenariamente. A influencia do meio-dia da França resente-se no subjectivismo exagerado das canções de D. Diniz, em contradicção com as suas aventuras amorosas. O gosto elevado que o monarcha mantinha pelo lyrismo provençal foi causa da extraordinaria actividade poetica da sua côrte, que se tornou o centro de concorrencia dos jograes e trovadores da Galliza, de Leão, de Castella e de Aragão, aos quaes distinguia com grande liberalidade. Até os seus dois bastardos D. Affonso Sanches e D. Pedro figuram entre os trovadores.

Modificou-se o gosto poetico, oppondo aos typos limosinos os varios generos gallezianos, como dizeres, serranas e cantares de amigo, de uma belleza inimitavel. O motivo d’esta corrente era devido ao encontro dos jograes gallegos, mas principalmente á concorrencia dos jograes da Catalunha, Aragão, Leão e [Pg 378] Castella, que inconscientemente faziam renascer as fórmas tradicionaes do lyrismo peninsular, hoje definidas pelo phenomeno da irradiação poetica da Aquitania. Ao fallar d’esta corrente galleziana, escreveu o Marquez de Santillana: «d’estas resçevimos los nombres del arte, asi como maestria mayor e menor, encadenados, lexapren e mansobre.» No Cancioneiro de Baena, em que ha uma forte influencia gallega, se lê: «Sin doble-mansobre, sensillo ó menor

Nas luctas de D. Affonso II com suas irmãs, e nas de D. Affonso III com a aristocracia, muitos fidalgos portuguezes refugiaram-se na Galliza, explicando-se por esta circumstancia esse esplendor poetico da Galliza, quando ella já não tinha autonomia politica nem acção historica. A imitação do trovar gallego, tanto em Portugal como em Castella no tempo de Affonso o Sabio, indica que a Galliza se tornaria uma Provença peninsular se a posse d’esse estado não fosse duramente disputada pelos diversos reinos unificados da Hespanha. A Galliza perdeu a sua autonomia com a constituição das novas monarchias; e a lingua, tornando-se uma especie de dialecto occitanico para a peninsula, decaíu por falta de vitalidade nacional. O grande vigor poetico d’este povo tornou a reflectir-se em Portugal e Castella no fim do seculo XIV e XV, com Villasandino, Rodrigues del Padron e Vasco Pires de Camões.

Com a morte do rei D. Diniz, o centro da actividade poetica deslocou-se para Castella, agrupando-se os trovadores das outras côrtes peninsulares junto de Affonso XI, que tambem era trovador. Os [Pg 379] cavalleiros portuguezes continuaram a frequentar a côrte poetica de Affonso XI, e são admiravelmente bellas as Barcarolas compostas por occasião da batalha do Salado, em que elles tão generosamente figuraram. D. Affonso IV detestava seus irmãos bastardos, e parece não ter protegido a cultura trobadoresca, estimando mais as fórmas da Novella em prosa; por este despeito o Conde D. Pedro deixou em testamento o seu Livro das Cantigas a Affonso XI.

A poesia trobadoresca portugueza-galleziana parecia cahir outra vez no automatismo popular, mas um facto politico, a tendencia separatista, suscitou um novo fervor litterario como manifestação do seu individualismo; brilham Macias, Rodrigues del Padron e Villasandino, e os documentos d’esta lucta da eschola galleziana contra a imitação do gosto italiano enchem o Cancioneiro de Baena, e explicam-nos a natureza do conflicto que se repetiu no seculo XVI, quando Castillejos se oppunha á invasão do lyrismo italiano propagado por Garcilasso e Boscan. Em Hespanha a influencia petrarchista prevaleceu pela acção da eschola sevilhana; em Portugal desconheceu-se essa influencia. Muitas cidades da Galliza tendo abraçado o partido de D. Fernando contra Henrique II de Castella, na esperança de alcançarem a antiga independencia, ao perderem a causa varios fidalgos gallegos tiveram de refugiar-se em Portugal. O principal d’entre esses emigrados politicos era Vasco Pires de Camões, terceiro avô do grande épico portuguez; perdeu-se uma boa parte das composições poeticas [Pg 380] anteriores ao Infante D. Pedro, como o confessa Resende no prologo do Cancioneiro geral. O nome de Macias tornou-se em Portugal synonimo de apaixonado; conservaram-se com grande vitalidade as fórmas trobadorescas gallezianas, (em Gil Vicente, Sá de Miranda, Christovam Falcão e Camões), e não será indifferente indicar que são descendentes d’esses fidalgos emigrados da Galliza alguns dos nossos principaes poetas quinhentistas.

Novellas de Cavalleria:—O Amadis de Gaula.—Quando as Canções de Gesta iam recebendo a fórma litteraria, decahia ao mesmo tempo a organisação da sociedade feudal, e a lucta dos grandes vassallos contra a realeza terminava pela impotencia diante de um elemento poderoso pelo seu numero, o proletariado. A Gesta já não podia ser mais do que a expressão de saudade pelo que acabava; e essa aspiração do passado era um ideal, a Cavalleria, em que a individualidade do heroe faz lei á sua vontade motivada por impetos de justiça. Porém, as virtudes do cavalleiro tornaram-se quixotescas, desde que disciplinada a força no exercito permanente, e convertida a justiça em ministerio publico, o heróe comprimido entre as communas e a realeza, estava egualado no mesmo codigo. A litteratura reflectiu esta instabilidade; a Gesta não tendo que idealisar, decahiu na prosa e achou um novo interesse na aventura amorosa da Novella. Segundo Victor Le Clerc e Léon Gautier, nenhuma Canção de Gesta apparece reduzida á prosa antes do seculo XV; é em [Pg 381] Portugal que se inicia essa transformação na côrte de D. Diniz. A politica do reinado de D. Diniz e a situação de Portugal explicam-nos o phenomeno. Com a conquista do Algarve sob D. Affonso III acabaram as expedições militares contra os sarracenos, e por tanto a intervenção do poder senhorial. D. Diniz tirou as consequencias do facto, fazendo renascer o direito romano na restauração dos direitos magestaticos segundo o Digesto, e submettendo a Nobreza ao fôro de el-rei, pelo estabelecimento do cadastro dos Livros de Linhagens. Á situação subalterna da nobreza corresponde a maior intensidade dos divertimentos palacianos, no lyrismo dos Cancioneiros trobadorescos, e na paixão com que se liam as Novellas amorosas, como as de Tristão e Brancaflor. Entre essas novellas figura uma mais ou menos rudimentar de um typo da absoluta fidelidade no amor, o Amadis; era celebrado em França no poema de Amadas et Ydoine, na Inglaterra no Sir Amadace, na Hollanda, Italia e Hespanha citava-se a Chacone de Amadis. Vê-se por tanto que a invenção d’este argumento novellesco não pertence a Portugal, mas em Portugal é que recebeu a fórma em prosa litteraria definitiva. No texto castelhano do Amadis de Gaula ainda se conserva uma canção, que se acha assignada por João Lobeira no Cancioneiro Colocci-Brancuti, como vestigio da primitiva redacção portugueza.

D. Affonso IV, quando princepe e em dissidencia com seu pae, proferiu ao subjectivismo trobadoresco as narrativas das Novellas amorosas; este facto determinou uma nova redacção no Amadis de Gaula: [Pg 382] no capitulo 40 do livro I, do actual texto castelhano, conservou-se a sigla da emenda mandada fazer por este princepe na estructura da Novella em relação ao episodio de Briolanja. Esta sigla no texto castelhano de Montalbo manifesta uma primitiva redacção; e pelo retoque imposto pelo princepe se estabelece a relação da Novella em prosa para com um texto poetico d’onde saíu e ao qual em outros poemas da Edade media ha numerosas referencias. Varios poetas castelhanos do Cancioneiro de Baena referem-se aos trez livros do Amadis de Gaula; a existencia do quarto livro, que não foi escripto por Montalbo, é que pertencerá a Vasco de Lobeira, do tempo do rei D. Fernando, como o affirma Azurara, attribuindo a esse tempo a redacção da novella. Na nobreza de Portugal eram frequentes no seculo XIV os nomes de Oriana e de Idana (do francez Ydoine), o que revela a influencia profunda da Novella antes da sua vulgarisação pela paraphrase castelhana.

Talvez em nenhum outro povo a imitação da Cavalleria, ou propriamente o Quixotismo, penetrasse mais nos costumes do que em Portugal, onde o nosso typo comico contraposto ao Ratinho é o do Fidalgo pobre. Davam-se no principio do seculo XV duas fortes correntes antagonicas na civilisação portuguesa: a burguezia tendia á preponderancia politica pelas magistraturas e pelas descobertas maritimas; a nobreza imitava acintosamente os feitos de armas segundo a Cavalleria, que tinha passado. Partiam as caravellas para as expedições das costas da Africa e Ilhas oceanicas, e ao mesmo tempo os Paladins [Pg 383] sahiam em desaggravo das damas, como os Doze de Inglaterra, e os cavalleiros Gonçalo Ribeiro, Vasco Annes e Fernão Martins de Santarem que foram correr aventuras por Hespanha e França. As cerimonias da vida cavalheiresca caracterisam as práticas da côrte de D. João I e de D. Duarte, e simultaneamente domina a predilecção litteraria pelas Novellas. Para a lingua portugueza se traduziu e paraphraseou a Demanda do Santo Graal; lia-se o Galaaz, a ponto do Condestavel o tomar por modelo; e na sua opulenta livraria o rei D. Duarte guardava o Tristão e a Historia de Troia. O Amadis de Gaula exerceu certa influencia no enthuziasmo de um renascimento tardio da cavalleria, por via da traducção franceza. Fez-se uma vasta série de novellas em sua continuação desde as Sergas de Esplandian até Leandro o Bello. Mas a corrente do renascimento erudito da Antiguidade, quando a egualdade civil minava o feudalismo, desviava a actividade litteraria que punha em novella um ideal ridicularisado. Montaigne fallando da sua educação litteraria do mais exagerado classicismo, diz com entono que nem sequer conhecia pelo titulo as principaes producções da Edade media: «car des Lancelot du Lac, des Amadis, des Huon de Bordeaux, et tel fatras de livres à quoy l’enfance s’amuse, je ne connessoys pas seulement le nom, ny ne foys encores le corps; tant exacte estoit ma discipline.»[204] E em outra passagem refere-se com [Pg 384] mais desdem ao Amadis: «Quant’aux Amadis, et telles sortes d’escripts, ils n’ont pas eut le credit d’arrester seulement mon enfance.»[205] Dos humanistas da Renascença e dos moralistas catholicos poderiamos extraír condemnações analogas. O enthuziasmo das obras primas da civilisação greco-romana envolveu em um desprezo mortal todas as tradições, poemas e novellas da Edade media. No primeiro quartel do seculo XVI já o Dr. João de Barros, nas Antiguidades de Entre Douro e Minho, fallando do desprezo em que decahira o original portuguez do Amadis de Gaula, de cuja redacção os hespanhóes se apoderaram, lamenta—que estas cousas se sequem nas nossas mãos.—Era a consequencia do esplendor dos estudos humanisticos, de que fomos corypheos no seculo XVI. A persistencia do ideal cavalheiresco em Hespanha explica-se por uma mais numerosa e opulenta aristocracia e por um intenso catholicismo que lhe tornára antipathica a civilisação polytheica, e suspeitos de heresia os humanistas.

2.o Periodo (Seculo XV):

Os Poetas palacianos.—Com o desenvolvimento da erudição augmenta dia a dia a separação entre os escriptores e o povo. Com o predominio da realeza que avança para a dictadura, a côrte torna-se centro de todas as manifestações artisticas, reduzidas a imitações banaes. Desde o reinado de D. Affonso IV até ao de D. [Pg 385] Duarte, dá-se uma grande mudez na poesia portugueza: duas poderosas correntes disputavam a predilecção dos espiritos; era uma a do lyrismo da eschola gallega, e a outra a das ficções do cyclo da Tavola Redonda propagadas pelos aventureiros do bretão Du Guesclin, e tambem pelo casamento de D. João I com uma filha do duque de Lencastre. Absorvidos nos primeiros alvores da Renascença, e mais apaixonados da erudição da antiguidade do que das tradições medievaes, estacámos na imitação do que estava mais no gosto palaciano. Separados de Castella por interesses dynasticos que visavam a unificação politica, ficámos, depois da victoria de Aljubarrota, vacilantes entre o lyrismo galleziano e as aventuras novellescas do genio celtico, ao passo que os Castelhanos avançaram na poesia continuando a tradição provençal reanimada com o platonismo da Italia e com as allegorias dantescas. Ainda a tradição provençal pura procurou manter-se nos costumes, como se vê pela fundação do Consistorio del Gay-saber, em Barcelona, em 1393; mas a nova transformação dantesca e petrarchista seguida pelos poetas Jordi de Saint Jordi, André Fever, traductor da Divina Comedia em catalão, Ausias March, Rocaberti, como precursores de Bocan e Garcilasso, determinou a superioridade do lyrismo hespanhol no seculo XV.

Quando terminaram os odios politicos entre Portugal e Castella, reconheceu-se que nos passára desapercebida a evolução operada na poesia desde Micer Imperial até Juan de Mena. Começou pois a [Pg 386] influencia da poesia castelhana sob a regencia do Infante D. Pedro, duque de Coimbra.

Antes porém do influxo de Juan de Mena, amigo pessoal do regente, a tradição provençalesca avivára-se um pouco e indirectamente na côrte portugueza, pelas relações com a côrte de Aragão motivadas pelos casamentos do rei D. Duarte e infante D. Pedro com princezas aragonezas. Na Livraria do rei D. Duarte, guardavam-se traducções aragonezas da Historia de Troya e de Valerio Maximo.

O Condestavel de Portugal, que foi rei de Aragão, por 1464, possuia entre os seus livros as poesias de Petrarcha, e escrevia os seus versos no gosto allegorico. São d’este desgraçado princepe e rei deposto, as outavas em fórma castelhana do Menosprecio do mundo, attribuidas erradamente a seu pae o infante D. Pedro, e as pequenas elegias que sob a rubrica de Elrei D. Pedro (sc. de Aragão) foram attribuidas a D. Pedro I. Póde bem considerar-se o Condestavel de Portugal o chefe d’esta eschola allegorica, a que pertencem os poetas que no tempo de D. Duarte e D. Affonso V floresceram na ilha da Madeira, então centro da aristocracia insulana. O Condestavel D. Pedro escreveu no genero allegorico a Satyra de felice e infelice vida, em que as paixões e os pensamentos são personificados em figuras de mulheres.

Nos poetas do Cancioneiro de Resende, em que prevalece a imitação castelhana, distingue-se essa eschola allegorica perfeitamente caracterisada em Duarte de Brito, que começa a sua visão perdido e [Pg 387] embalado pelo canto de um rouxinol; como reminiscencias da Divina Comedia descreve minuciosamente o inferno dos namorados, veste a figura da esperança com todos os seus ornatos symbolicos, adopta as figurações mythologicas da astronomia, e já desenvolve as imagens como que em pequenos poemas a que chama comparação. Na poesia castelhana o Inferno de Amor de Garci Sanches de Badajoz tornou-se o modelo d’este genero de idealisação; o mesmo typo foi tambem imitado por Fernão Brandão na formosa poesia Fingimento de amores. Os caracteres do gosto allegorico manifestaram-se livremente nos processos amorosos dos serões do paço, como o do Cuidar e suspirar, pallido arremedo das Côrtes de Amor da tradição provençalesca. Esta eschola extinguiu-se, por que não foi fecundada pelo influxo do neo-platonismo com que Dante e Petrarcha converteram os rudimentos trobadorescos no esplendido lyrismo italiano que dominou todas as litteraturas romanicas desde o seculo XV.

Depois de acabadas as luctas com Castella, e que se conheceu o esplendor da poesia nas côrtes de Juan II e Enrique IV, já não era possivel attingir-se aquella altura; deslumbrados, imitámol-a e escrevemos em castelhano. O infante D. Pedro escrevia em verso a Juan de Mena, e pedia-lhe a collecção das suas obras; em Portugal, já no principio do seculo XVI, ainda era citado Juan de Mena como o exemplo do poeta de côrte, medrado pelo favor dos reis. As obras do Arcipreste de Hita foram traduzidas em portuguez, como se conhece pelo [Pg 388] fragmento da Bibliotheca do Porto; as obras do Marquez de Santillana eram enviadas para Portugal ao Condestavel D. Pedro, a quem dirigia uma Carta com a filiação das escholas poeticas. Os Cancioneiros aristocraticos encerram documentos da communicação das duas côrtes, que avançavam para a unificação politica por casamentos reaes; no Libro de Cantos, manuscripto da Bibliotheca de Madrid, acham-se composições de cinco fidalgos portuguezes; no Cancionero general de Hernan de Castillo figuram bastantes poetas portuguezes, e foi essa collecção o modelo que seguiu Garcia de Resende. No Cancioneiro portuguez já apparecem traducções do latim, como as Heroides de Ovidio, e já se tiram comparações da mythologia.

Dava-se no seculo XV na Europa um phenomeno politico, que acabou de tirar á poesia a sua expansão natural, tornando-a uma insignificativa bajulação dos aulicos; fixára-se o poder real por uma forte dictadura, e acabára a lucta dos grandes vassallos que procuravam manter a independencia senhorial do regimen feudal. O infante D. Pedro foi a nobre victima n’esta lucta, que se renovou sob D. João II, e terminou pela execução do duque de Bragança e pelo assassinato do duque de Vizeu. A imitação exclusiva da poesia castelhana era uma especie de reacção da nobreza, tendendo para a unificação politica sob Fernando e Isabel; a poesia era um passa-tempo da côrte, que servia para celebrar as anecdotas da occasião e encher a inanidade da vida aulica. O numero pasmoso dos poetas aristocraticos revela a frivolidade da inspiração, [Pg 389] que se explica pelo desconhecimento do lyrismo italiano, em que nos conservavamos, apezar das relações litterarias e commerciaes que Portugal desenvolveu com a Italia n’este tempo.

Os Historiadores portuguezes.—Com o poder real creava-se tambem a nova fórma litteraria da Historia, á imitação dos antigos, que deixaram memoria dos grandes feitos; era natural que se preferisse para a sua redacção a linguagem latina, pela illusão da sua universalidade. Por 1434 encarregou o rei D. Duarte a Fernão Lopes de reduzir a Chronica as memorias dos antigos reis de Portugal; é um narrador ingenuo como Froissart ou Villani; do seu trabalho se foram apropriando Azurara, Ruy de Pina, Duarte Galvão e Duarte Nunes do Leão. O prurido da erudição começa propriamente em Gomes Eannes de Azurara, que deturpa assim a fórma pittoresca das suas impressões directas das pessoas e dos logares. Em Ruy de Pina ha já o intuito politico, narrando os successos como convinha ao monarcha que o assoldadára, que elles fossem conhecidos. Em uma carta de João Rodrigues de Sá a Damião de Góes lê-se: «o estylo de Ruy de Pina pelos muitos adjectivos e epithetos que se usavam n’aquelle tempo, he muito affeitado.» Cahira-se na imitação do peior modelo da antiguidade, tomando por norma a rhetorica de Tito Livio.

NOTAS DE RODAPÉ:

[204] Essais, liv. I, cap. 25.

[205] Ibid., liv. II, cap. 10.


[Pg 390]

SEGUNDA ÉPOCA
(SECULOS XVI A XVIII)

Predominio da imitação da Antiguidade classica, e abandono das Tradições nacionaes

1.o Periodo: Os Quinhentistas (Seculo XVI):

PARTE I: Poetas da Medida velha.—A tendencia allegorica da ultima phase da poesia palaciana era um prenuncio da sua transformação. Qual seria ella, comprehendeu-o superiormente Sá de Miranda inspirando-se das obras primas do lyrismo italiano. Antes porém de generalisar-se em Portugal o gosto d’essa nova poetica, mais subjectiva, manifestou-se uma reacção contra os innovadores; o combate não se feriu por alguma theoria de arte ou concepção de ideal, versava apenas na preferencia que se devia manter ao verso octonario ou da medida velha das redondilhas, com exclusão do endecasyllabo. O titulo de Eschola da Medida velha, designa cabalmente o periodo que antecedeu o regresso de Sá de Miranda da Italia, no qual os poetas palacianos pela imitação das allegorias dantescas e já pelo conhecimento da Renascença classica, sem abandonarem as fórmas da poetica hespanhola adoptam o estylo de Theocrito assimilado pelos bucolicos italianos. Bouterwek considera a poesia pastoril portugueza immensamente bella; não resultou esta perfeição de imitações litterarias, mas da aproximação inconsciente [Pg 391] das fontes tradicionaes. Nos costumes populares da Peninsula mantinha-se a fórma dialogada dos Villancicos, que coadjuvava a naturalisação e desenvolvimento da Ecloga litteraria. Observa-se essa persistencia nos cantos lyricos intercalados por Gil Vicente nos seus Autos; e o conhecimento das Pastorellas e Serranilhas gallezianas era ainda o que tornava bellas as redondilhas de Christovam Falcão, de Sá de Miranda e de Camões. Este periodo de transição no gosto apoia-se na sympathia dos poetas pelos elementos tradicionaes das pastorellas. Bernardim Ribeiro é o corypheu dos bucolistas, conhecedor dos Villancicos e Romances populares, a que deu fórma allegorica; soube alliar a naturalidade com os dialogos pastorís, a profundidade do sentimento com a simplicidade. A belleza inexcedivel das suas Eclogas resulta da realidade palpitante dos desgraçados amores com Aonia, a sua prima D. Joanna Zagalo. Pela amisade com Sá de Miranda, chegou a conhecer a eschola italiana, a nova frauta, de que faz menção a Ecloga Aleixo, onde Miranda descreve a sua desgraça.

Depois de Bernardim Ribeiro, foi o seu intimo amigo Christovam Falcão o que levou mais alto o esplendor d’este lyrismo hispano-italico; a ecloga Crisfal, em que pinta o desventurado amor com D. Maria Brandão, irmã mais moça dos dois poetas do Cancioneiro geral Diogo e Fernão Brandão, não tem cousa que se lhe compare nas litteraturas da Europa.

[Pg 392]

Tambem se explicará a sua superioridade pela aproximação dos elementos tradicionaes do lyrismo portuguez: no Crisfal vem intercalado um canto de ledino.[206] Todos os outros poetas quinhentistas, á excepção do Dr. Antonio Ferreira, começaram os seus tentames pela redondilha popular, designada litterariamente trova ou verso de Cancioneiro.

Sá de Miranda, que escreveu bellissimas Eclogas e Cartas em redondilhas, satyrisou os que tanto reagiam contra a nova poetica italiana, e condemnava os que mantinham o uso anachronico de uma triste Esparsa, de uma Glosa ou Mote velho, de uma pobre Volta com seu Cabo. A moda palaciana sustentava o estylo de Cancioneiro, por uma tradição aristocratica. Em uma carta de Soropita, escripta depois de 1589, caracterisa-se esta especie de metrificadores: «Achei n’esta companhia a saber ... um poeta ancião, ainda pela medida velha.» Devem comprehender-se sob esta designação propriamente os poetas que antipathisavam com a novidade vinda de Italia, pelo terror pelas ideias da Reforma; e tambem os que tiveram certa communicação com o povo, para quem compunham redondilhas moraes e romances com fórma litteraria. Pertencem á primeira cathegoria, D. Luiz da Silveira, Jorge Ferreira de Vasconcellos e Garcia de Resende; na segunda sobresae o vulto gigante [Pg 393] de Gil Vicente, cujas Obras meudas se perderam. Nos seus Autos acham-se romances em redondilhas, que entraram na corrente popular como o D. Duardos, e bellas serranilhas semelhantes aos typos dos nossos Cancioneiros trobadorescos. As Trovas do Moleiro de Luiz Brochado, os Arrenegos de Gregorio Affonso e Avisos para guardar, do Chiado, tornaram-se vulgares; as Trovas de Gonçalo Eannes Bandarra, com a fórma rudimentar de eclogas, chegaram a actuar na sociedade portugueza, como se lê no seu processo do Santo Officio. As redondilhas do poeta cego Balthazar Dias, taes como Malicia das Mulheres, Conselhos para bem casar, não fallando dos seus Autos hieraticos, ainda hoje formam parte essencial da Litteratura de cordel, ou popular.

Novellas de Cavalleria e Pastoraes.—Sob o dominio da erudição da Renascença, e com um aspecto apparentemente contradictorio, desenvolve-se uma certa actividade na elaboração de Novellas cavalheirescas, d’onde proveiu o vasto cyclo dos Palmeirins. Mas a contradicção concilia-se, por que essas novellas pretendiam continuar as tradições medievaes conjunctamente com as do cyclo greco-romano, prestando-se a um facil emprego d’esse extraordinario prurido rhetorico dos escriptores da Renascença. Além d’isso, influiu tambem a predilecção das damas, como na côrte de Francisco I, ou junto da infanta D. Maria na côrte de D. João III. Dentro d’este meio facticio a pressão erudita leva a novella cavalheiresca a fundir-se [Pg 394] com as lendas pseudo-nacionaes. Assim, na Chronica do Imperador Clarimundo João de Barros syncretisa as lendas de Ulysses, pensando em assentar a mão e fixar o estylo rhetorico para escrever dos descobrimentos portuguezes nas Decadas da Asia. A influencia feminina sustentava o gosto das Novellas, que decahia pela preferencia da erudição. Do principal romance d’este cyclo, o Palmeirim de Oliva, diz Ticknor: «quasi geralmente admittido que se escreveu originariamente em portuguez e é o obra de uma senhora.»[207] N’este cyclo de novellas, os cavalleiros são oriundos da Grecia, e para conciliar o gosto pelo genero bucolico de Theocrito e Virgilio, esses mesmos cavalleiros passam a infancia em casa de pastores, que os accolheram por os terem encontrado abandonados. Foi no regresso da côrte de Francisco I, que o secretario da embaixada Francisco de Moraes offereceu á infanta D. Maria a sua novella do Palmeirim de Inglaterra, por 1543, seguindo-se logo a traducção castelhana, na qual Luis Hurtado confessa ser fructo de agenos huertos. A rhetorica dissolveu este cyclo novellesco em prolixos e illegiveis volumes.

Uma vez perdido o ideal cavalheiresco e esquecida a Edade media, a Novella vagueava entre os interesses burguezes, que vieram a idealisar-se no Romance moderno, e a imitação dos quadros de convenção da vida pastoral, e as allegorias a successos e intrigas [Pg 395] palacianas. O genero da Novella pastoral tem o seu typo na Daphnis e Chloé de Longus, revivescido na Arcadia de Sanazzaro; as allegorias foram empregadas como recurso para dar interesse á ficção. A pastoral mais bella que possuimos é a Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, em que descreve allegoricamente os desgraçados amores de Aonia e Bimnarder (sua prima D. Joanna Zagalo e elle Bernardim,) e de Arima e Avalor (D. Alvaro Velez de Guevara e D. Maria Alvares Zagalo, tia de Aonia.) A pastoral mais conhecida na Europa, e que chegou a formar um cyclo novellesco é a Diana de Jorge de Monte-mór, continuada por Gil Polo e por Tejada; é tambem uma allegoria aos amores do poeta. Fernão Alvares d’Oriente imitou directamente Sanazzaro; o genero decahiu na insipidez, como se vê no Desenganado e Pastor peregrino, de Rodrigues Lobo, e nos disparates dos Desmaios de Maio, de Diogo Ferreira Figueirôa, nas Ribeiras de Mondego de Eloy de Souto Mayor, e nos Crystaes d’alma, de Escobar. Pelos Indices Expurgatorios conhece-se a existencia de muitas novellas allegoricas que se tornaram mysticas, como Pé de rosa fragrante, Cerva branca e outras. Um dos typos mais completos do genero é a Historia do Predestinado Peregrino, imitada d’essa extraordinaria allegoria ingleza Pilgrim’s Progress, de Bunyan, que o jesuita Alexandre de Gusmão apropriou tomando-a do auctor anabaptista. Continuou esta corrente no seculo XVIII, como vêmos no Feliz Independente, do P.e Theodoro de Almeida, misturando com a imitação de Fénélon o deismo da sua época, e no Piolho [Pg 396] viajante de José Daniel, ficção picaresca não com a pujança pittoresca de Mendoza e Quevedo, mas como um producto morbido de uma sociedade imbecilisada pelo mais degradante cesarismo.

Os Contos da Edade media, ou Fabliaux, que receberam fórma litteraria no Decameron de Boccacio, conciliam-se com os Exemplos da antiguidade classica, tomados de Valerio Maximo; os prégadores catholicos empregam-os com intuito moralista. A obra mais capital d’esta transformação é a collecção de Gonçalo Fernandes Trancoso, Historias de Proveito e exemplo, livro inestimavel, escripto durante o terror da Peste grande em 1569, e quando o pobre mestre eschola acabava de perder mulher e filhos, como o confessa em uma carta á rainha D. Catherina. Este livro manteve-se no gosto publico até meados do seculo XVIII. Ahi se lê o celebre conto da Edade media, a paciencia de Griselidis, que appareceu referido no Miroir des Femmes e universalisado depois no Decameron. A redacção de Trancoso egual á castelhana de Timoneda, deriva de um texto italiano anonymo publicado sem data. Nos anexins populares repete-se: «Pelo marido vassoura; pelo marido senhora,» referindo-se ás situações emocionantes d’esse conto. Outros anexins, como: Minha mãe, calçotes, acham-se desenvolvidos por Trancoso.

Gil Vicente e as origens do Theatro nacional.—Era Gil Vicente um eminente poeta lyrico, como se vê pelas suas serranilhas, que elle mesmo punha em musica; era um notavel philologo, citado como [Pg 397] auctoridade nas Grammaticas portuguezas de Fernão de Oliveira e João de Barros; era um racionalista, sendo pelos seus Autos, e dentro da orthodoxia um dos precursores da Reforma. No seu genio satyrico revela o alto senso commum com que retratou todos os vicios do seu tempo, todos os abusos da organisação social, que dia a dia ia sendo invadida pela ambição clerical. Para um homem com todos estes dotes, a vida tinha de ser fatalmente uma lucta; luctou em quanto o protegeu a rainha D. Leonor, viuva de D. João II, e morreu proximo se não no mesmo anno em que entrou a Inquisição em Portugal. O ourives-lavrante da rainha D. Leonor, Gil Vicente, era tio do poeta, que por sua influencia veiu de Guimarães para Lisboa e cursou os estudos de Artes em que recebeu o gráo de Mestre (como se lhe chama no Cancioneiro de Resende). Ainda por influencia de seu tio Gil Vicente ourives, frequentou a côrte de D. João II, e por convite da rainha é que elle compoz os seus primeiros Autos hieraticos, que se tornaram um divertimento palaciano.

O theatro de Gil Vicente é a vida do povo escripta para os serões do paço, como quem expunha ao monarcha, que andava longe da realidade, a existencia de soffrimentos dos que trabalhavam sem garantias. Ali apparecem todos os costumes da Edade media portugueza, as superstições, os anexins, os jogos, as pragas, as cantigas, as danças, os romances; os typos da alcaiota, da bruxa, do judeu casamenteiro, do cigano, do frade unctuoso, do astrologo, do escholastico, do fidalgo pobre, do [Pg 398] lorpa ou ratinho, tudo isso apimentado com essa soltura da linguagem medieval, que não arranhava os ouvidos das damas da côrte. Quando vêmos como se passava o tempo nas côrtes europêas do fim da Edade media; como foram compostas as Cem Novellas novas de Luiz XI, o Heptameron da rainha de Navarra, os exemplos obscenos de La Tour Landry para moralisar suas filhas, temos a explicação das desenvolturas de Gil Vicente, e do gosto que ellas lisongeavam nas côrtes de D. Manoel e D. João III. O grande artista teve um intuito superior nos seus Autos, que os torna dignos de estudo, além do merito de serem a iniciação e fórma evolutiva do theatro nacional: luctava pela independencia do fôro civil contra o fanatismo religioso, e contra o parasitismo aristocratico que vivia de capitanias, alcaidarias e commendas. Os humanistas (alguns homens de bom saber) atacaram a fórma rude dos seus Autos; elle confundiu-os com a farça de Inez Pereira, verdadeiramente molieresca. O seu genio dramatico manifestou-se em um meio deprimente, a côrte, em que era admirado o pedantismo humanista e em que prevalecia a intolerancia religiosa, que por vezes lhe queria impedir a palavra, como se viu quando se oppuzeram a que recitasse o Sermão em verso pelo nascimento do infante D. Luiz. Mas os seus Autos tornavam-se uma necessidade na côrte sempre aterrada com as contínuas pestes com que no seculo XVI Lisboa era devastada. No meio da mortandade geral, a côrte fugia para Santarem, para Almeirim, para Coimbra, para Evora; Gil Vicente era chamado [Pg 399] para distrahir os serões do paço: de uma vez chegou a ir representar a Coimbra, ainda doente, tendo a peste em casa, como elle proprio o declara. Por que triumphou a obra de Gil Vicente, apezar do antagonismo classico, da reacção catholica dos Indices Expurgatorios, das tragicomedias jesuiticas e do grande perstigio das comedias hespanholas de capa y espada? Para que a fórma de Auto seduzisse espiritos como os de Camões, e se impuzesse á litteratura desde o seculo XVI a XVIII, era preciso que tivesse raizes profundas na alma portugueza; e tinha-as, por que eram as tradições de que o genio de Gil Vicente soube apropriar-se. Aonde Gil Vicente representou os seus Autos, ahi parece ter fundado eschola: em Evora, vamos encontrar seguindo as suas normas, Antonio Ribeiro Chiado, seu irmão Jeronymo Ribeiro, Gaspar Gil Severim e Braz de Resende; em Santarem, desenvolve-se o talento dramatico de Antonio Prestes, que tambem como o mestre prégou as ideias da Reforma; o diacono e mulato Antonio Pires Gonge, e Manoel de Sousa Nogueira, que sustentou a eschola até ao seculo XVII. Em Coimbra, apezar da corrente erudita dos Collegios e das representações de tragedias latinas, a influencia de Gil Vicente não foi extincta; para os divertimentos escholares é que escreveu Camões o Auto dos Amphytriões. Em Lisboa, fundaram-se os primeiros Corros ou Pateos de Comedias, e as representações dramaticas tornavam-se uma necessidade da vida burgueza, que um privilegio exclusivo a favor [Pg 400] do Hospital de Todos os Santos explorava como subsidio. Á eschola do Auto pertencem Gil Vicente de Almeida, neto do poeta, auctor do Auto da Donzella da Torre e da Comedia dos Cativos;[208] tambem, Simão Garcia, auctor do Auto do Pé de prata, de 1557, Antonio Peres, auctor de comedias manuscriptas, Frei Antonio de Lisboa e Balthazar Dias, cujos Autos de Santa Barbara, de Santo Aleixo, de Santa Genoveva, estão ainda em vigor nas representações aldeãs, e constituem esta eschola lisbonense. O povo entristecido pelas fogueiras da Inquisição e pelas fôrcas do absolutismo, ficou sem festas nacionaes, e o unico desafogo que conservou encontrou-o nos seus Autos hieraticos e farças tradicionaes.

PARTE II: A Eschola italiana.—Na transição affectiva da Edade media operava-se uma synthese lenta na civilisação europêa, ou unidade que tende a realisar no seu destino: a poesia trobadoresca iniciára, como diz Quinet, a egualdade perante o amor; pela emancipação das classes servas e luctas do Terceiro estado estabeleciam-se as bases para a unidade politica; apezar da depressão religiosa, o sentimento christão ainda inspira uma acção commum nas Cruzadas, e dá ensejo ao ultimo emprego da intervenção da força na liga contra os Turcos; as grandes navegações, o estabelecimento do regimen [Pg 401] colonial e do credito, preparam a unidade economica. A dictadura monarchica, desvairada pelos interesses dynasticos, é que separava as nações por um systema de guerras alimentadas pela chimera da Monarchia universal. N’este periodo brilhante da Renascença, as Litteraturas romanicas tendem para uma certa unidade esthetica, imitando-se mutuamente. A Italia occupou n’este momento da civilisação um logar analogo ao que Roma conservou depois da sua queda durante a transição da Edade media, em que a letra dos seus codigos continuava a sua supremacia; a Italia, depois de subjugada pela Allemanha e pela França, viveu pela Arte, dominou os seus invasores pelo influxo esthetico. A poesia italiana era um desenvolvimento do lyrismo dos trovadores, menos casuistico e mais philosophico; todos os povos modernos que tinham conhecido o lyrismo trobadoresco acceitaram a nova expressão do sentimento, e a Italia ficou como que a Grecia do mundo moderno. Faziam-se viagens á Italia como em santa romagem para sentir de perto a antiguidade, para se repassarem do espirito da cultura latina, para observarem a sumptuosidade sensual da Renascença. Os monarchas eram educados por pedagogos italianos, como Francisco I, amigo de Benvenuto Cellini; procuravam attrahir para as suas côrtes os grandes artistas, como Henrique VIII a Ticiano e a Raphael; davam suas filhas em casamento a princepes italianos, como D. Manoel concedendo a infanta D. Beatriz ao duque de Saboya. Os filhos das principaes familias de Portugal, como Luiz Teixeira, João Rodrigues de Sá e [Pg 402] Ayres Barbosa, iam completar os seus estudos á Italia, sob a direcção de Angelo Policiano; ou a frequentar a lição dos jurisconsultos, que as Universidades pagavam principescamente. Em uma comedia de Jorge Ferreira chasquêa-se d’esta monomania da viagem á Italia.

Sá de Miranda e a Pleiada portugueza.—O momento definitivo em que a poesia italiana influenciou em Portugal, fixa-se no regresso de Sá de Miranda da viagem em que percorrera Roma, Veneza e Milão «em tempo de hespanhóes e de francezes,» isto é, desde 1521 a 1527. Durante a sua digressão artistica Sá de Miranda praticou com Ruscellai e com Luctancio Tolomei; vinha fascinado com os Assolanos de Bembo, com as phantasias cavalheirescas do Orlando, enlevava-o o platonismo de Petrarcha e de Dante, cuja relação com os trovadores provençaes lhe era já conhecida; vinha desvairado pela exuberancia de vida e de alegria da saturnal da Renascença, que o seu espirito catholico condemnava. Quando regressou á côrte portugueza, tinham acabado os serões do paço, onde ouvira poetar ainda D. João de Menezes; quiz ensaiar os novos metros, receioso de ir de encontro á auctoridade perstigiosa da poetica hespanhola, abonava-se com o exemplo de Garcilasso, e indicava como o proprio Petrarcha derivou o seu lyrismo dos provençaes. Os partidarios do verso octosyllabo tinham pelo seu lado os poetas palacianos, e a suspeição contra as ideias da Reforma. Em volta de Sá de Miranda foram-se [Pg 403] agrupando os novos, como D. Manoel de Portugal, Francisco de Sá de Menezes, Pedro de Andrade Caminha, Diogo Bernardes, Agostinho Pimenta, o Dr. Antonio Ferreira e Jorge de Monte-mór, e por ultimo André Falcão de Resende; pelos seus ensaios poeticos estreitavam uma encantadora amisade formando uma Pleiada egual á franceza, não menos sympathica e innovadora.

A Eschola italiana era combatida pelos sectarios da poetica de Encina que preferiam escrever em castelhano, e pelos eruditos, que se vangloriavam de metrificar em latim. O Dr. Antonio Ferreira foi o que mais propugnou pelo uso da lingua portugueza. Desgostado da côrte, Sá de Miranda retirou-se para a vida confinada da provincia, moralmente alquebrado antes de tempo; distrahia-se em amenas conversas com Antonio Pereira, o senhor de Basto, na sua quinta da Tapada, lendo no remanso campestre os mais bellos exemplares da poesia italiana. Ali lhe iam ter as poesias de Caminha, de Bernardes, de Ferreira, e o princepe herdeiro D. João, que começava a sympathisar com a poesia, instava para que lhe mandasse a collecção dos seus versos. Por trez vezes lhe enviou cadernos das suas composições para comprazer amavelmente com a curiosidade do princepe, que mandava tambem a Evora o seu secretario Luiz Vicente copiar os versos de Fernão da Silveira.

Por falta de um ideal superior a poesia lyrica tornou a cahir no mais acanhado personalismo; vertiam-se excerptos de Anacreonte e [Pg 404] de Moscho, e odes de Horacio. Porém entre estes Quinhentistas que se admiravam na mais beatifica ingenuidade, que se louvavam em todos os seus versos, que se chrismavam com nomes bucolicos, que eram camareiros-móres, desembargadores, commendadores, apparecia um homem de genio, irreverente, travesso, sem fumos de erudição nem de gerarchia, que se identificou com a Renascença pelo seu espirito de rehabilitação da Natureza, e que amou a Edade media para agradar ás damas; era Camões, que teve a comprehensão suprema da poesia italiana. Os outros poetas fecharam-lhe o accesso ao princepe D. João e guardaram silencio absoluto em volta do seu nome; Caminha satyrisa-o duramente alludindo ao verso dos Lusiadas: «Dae-me uma furia grande e sonorosa;» Bernardes indicando o nome dos poetas que devem formar um grande Cancioneiro que projecta, não só omitte o nome de Camões, como tambem se apropria de alguns sonetos, eclogas e do poemeto de Santa Ursula, talvez desmembrados dos manuscriptos roubados a Camões. Apenas Falcão de Resende, que o conheceu na desgraça e doença, lhe dedicou uma composição moral ou satyra contra os costumes.

Camões, e sua Eschola lyrica e épica.—Sabe-se pela genealogia de Camões, que fôra seu terceiro avô um trovador-fidalgo da Galliza, tendo por parte de sua mãe parentesco com a familia dos Gamas, do Algarve. N’esta orientação ethnica discorre a sua vida: o genio galleziano revela-se na sua superioridade lyrica sobre todos os outros [Pg 405] quinhentistas; a tendencia cosmopolita que o levou por toda a extensão do dominio portuguez era essa mesma que fez com que do Algarve sahissem as primeiras caravellas para as descobertas das costas da Africa e das ilhas do Mar Tenebroso. Ainda no seculo XVI formou-se em volta de Camões uma eschola de imitadores, que souberam dar mais sentimento e harmonia ás fórmas italianas. Os versos lyricos de Camões só começaram a ser impressos quinze annos depois da sua morte; reunira-os sob o titulo de Parnaso, mas foi-lhe esta collecção furtada logo que chegou a Lisboa em 1570; os editores suppriram esta perda explorando as collecções particulares, como as de Luiz Franco, Manoel Godinho, Antonio de Abreu; e assim se explicam tambem os plagios de Bernardes e de Fernão Alvares d’Oriente. Percorrendo-se as collecções manuscriptas, raro será o poeta quinhentista que não tenha com o seu nome versos que ou pertenceram ou foram attribuidos a Camões. Por este syncretismo litterario se vê, que o gosto e a imitação camoniana levavam os colleccionadores a estes equivocos, ou os plagiarios a uma apropriação irresistivel. Era-se camoniano no fim do seculo XVI, como na época das Arcádias se era elmanista. O amor e a philosophia neo-platonica revelaram a Camões a belleza da poesia italiana, em cuja imitação se exercitára ainda na vida escholar de Coimbra, como se vê pela Elegia da Paixão; na frequencia do paço foi levado a acceitar a medida velha, escrevendo voltas, glosas e endechas, aproximando-se espontaneamente das fontes tradicionaes: cita romances [Pg 406] populares, reproduz fórmas encantadoras do lyrismo galleziano e mostrou um conhecimento directo da ecloga Crisfal. A sua inspiração veiu-lhe do contacto da realidade: a vida aventureira na Africa, na India, na China, nas Molucas, nos cruzeiros, nos naufragios, nos hospitaes e nos carceres, não lhe dava tempo, nem logar para compulsar classicos gregos e romanos, os grandes poetas italianos e hespanhóes, e a seguir servilmente modelos auctorisados. Subtrahiu-se assim áquella causa que tornou em parte mediocres os Quinhentistas. O contacto da realidade bastou para lhe dar essa melancholia indefinivel, essa tristeza da fatalidade e o protesto eloquente que solta por tudo quanto é verdadeiro e justo. O ideal era o seu refugio; Natercia, era uma realidade, e como elle não comprehendia o amor sem tempestades e ruinas, a sua vida dispendeu-se nos accidentes d’esta realidade profunda.

A perfeição do lyrismo de Camões exerceu uma influencia immediata; seguiram-o os lyricos Heitor da Silveira, Simão da Silveira, Estacio de Faria, Antonio de Abreu, André de Quadros, André Falcão de Resende, D. Manoel de Portugal, Vasco Mousinho de Quevedo, Balthazar Estaço e Diogo de Couto, que começou a fazer um commentario aos Lusiadas. A naturalidade e verdade da sua inspiração foi comprehendida pela nação, que estava incorporada na unidade hespanhola pela Casa de Austria; serviu de alento ao sentimento de patria e de estimulo á sua autonomia. O valor da obra de Camões resume-se na eloquente phrase de Schlegel: [Pg 407] Camões é uma litteratura inteira.

No seculo XVI appareceu nas principaes litteraturas da Europa a preoccupação de uma Epopêa moderna, individual, academica, pautada pelos moldes virgilianos. Estavam esquecidas ou diluidas em novellas as grandes Gestas francezas; faltava um assumpto que servisse de thema ao ideal heroico, e fosse compativel com a sympathia da sociedade moderna; por isso os poetas francezes, italianos e hespanhóes malbarataram esforços sem conseguir essa creação esthetica. Camões deu fórma á moderna Epopêa, por que idealisou o facto capital—a posse da terra e a lucta do homem com a natureza, d’onde deriva a civilisação da Europa na sua synthese activa. O assumpto dos Lusiadas tinha sido entrevisto por outros espiritos, mas faltou-lhes as condições para attingirem a fórma eterna. João de Barros no Panegyrico a D. João III, falla da necessidade de um poema das Navegações portuguezas, e no Clarimundo chega a esboçar quarenta outavas sobre o grande quadro. Os chronistas Damião de Góes e Castanheda reconhecem que é necessario uma fórma mais solemne que a da historia para a exaltar as navegações portuguezas; o poeta Antonio Ferreira incita Caminha a essa empreza; Jorge de Monte-mór tentava um poema do Descobrimento da India oriental, e Pedro da Costa Perestrello rasga com desespero o seu poema sobre a expedição de Vasco da Gama, quando viu os Lusiadas de Camões, como conta Faria e Sousa. Camões realisando esta intensa aspiração seguiu o typo virgiliano, [Pg 408] que o gosto do tempo exigia; mas salvou-o a intuição do genio, com que soube agrupar em volta do facto historico todas as bellas tradições e lendas da nacionalidade portugueza. É isto o que o distingue dos outros poetas épicos, que julgaram fazer epopêas pondo as chronicas em verso, como Jeronymo Côrte Real com o Segundo Cêrco de Diu, em 1574, Luiz Brandão com a Elegiada, em 1588, Francisco de Andrade com o Primeiro Cêrco de Diu, em 1589. Na expedição inconsiderada de D. Sebastião á Africa, encarregou o monarcha a Diogo Bernardes de ser o seu Homero; Camões foi preterido pela influencia dos intrigantes palacianos, talvez o mediocre Jeronymo Côrte Real. Camões saberia inspirar-se da derrota, como o cantor de Roland. Depois da perda da autonomia nacional em 1580, morre o poeta, mas ficaram os Lusiadas como a unica força viva em que se apoiou a consciencia portugueza.

A Comedia e a Tragedia classicas.—Assombrado pelo que vira na Italia, maravilhado com as comedias de Ariosto, de Bibiena e de Machiavelli, no seu regresso a Portugal tentou Sá de Miranda renovar a litteratura dramatica, como o emprehendera com a poesia lyrica. Começou por protestar contra o titulo e a fórma dos Autos hieraticos, e a escrever no gosto italiano. Pallido reflexo da sociedade grega, as comedias latinas de Terencio serviram de typo para o renascimento do theatro classico, em que as hetairas e o miles gloriosus se transformavam nas cortezianas e no condotieri. Montaigne descreve este processo litterario: [Pg 409] «Muitas vezes me occorre á phantasia, como no nosso tempo, aquelles que se entregam a fazer comedias (assim como os Italianos, que são os mais felizes) empregam trez ou quatro argumentos das de Terencio ou Plauto, para fazerem uma das suas; e accumulam em uma só comedia cinco ou seis contos de Boccacio.» (Ess., II, 10.) Sá de Miranda seguiu esta mesma pauta; o cardeal D. Henrique folgava em vêl-as representar. A Comedia classica sustentou-se entre os humanistas, servindo de ensaio litterario nos divertimentos e férias escholares. D’este costume falla Montaigne, ao descrever a influencia pedagogica de André de Gouvêa no Collegio de Guienne, em Bordéos: «j’ay soustenu les premiers personages ez tragedies latines de Buchanan, de Guerente et de Muret, que se representerent en nostre Collège de Guienne avecques dignité: en cela, Andreas Goveanus, nostre principal, comme en toutes aultres parties de sa charge, feut sans comparaison le plus grand principal de France.» (Ess., I, 25.) Em 1547 veiu André de Gouvêa a Portugal por chamado de Dom João III estabelecer o Collegio real em Coimbra, que os Jesuitas apanharam e converteram no seu Collegio das Artes. Sob a influencia de Mestre André e dos professores francezes é que mais se desenvolveu o gosto do theatro classico, e pela amisade de Diogo de Teive com Antonio Ferreira é que este seria levado a tentar os seus primeiros ensaios dramaticos. Nos prologos das suas comedias se reconhece o esforço para sustentar uma fórma dramatica sem condições de vida. Adstringindo-se ás regras da comedia motoria, os [Pg 410] quinhentistas esqueceram-se da realidade da vida, sendo muitas vezes incomprehensiveis as situações e mesmo o plano da acção.

Como a Comedia, tambem a Tragedia classica foi conhecida indirectamente, não dos modelos gregos, mas das imitações latinas de Seneca. Separada dos seus elementos mythicos, d’onde derivára, foi esta fórma reproduzida como mero artificio, visando os talentos que a imitavam a manter escrupulosamente as trez unidades. Ferreira, um dos mais elevados representantes do humanismo portuguez, teve um conhecimento directo da tragedia grega. Ao ensaiar esta nova fórma litteraria teve a felicidade de se compenetrar do verdadeiro espirito da fatalidade antiga, e de comprehender o valor de um assumpto nacional e moderno. Mas esta direcção justa não foi sustentada; a desgraça de Inez de Castro tornou-se o assumpto quasi exclusivo dos tragicos portuguezes desde os imitadores da comedia de capa y espada até aos exageros ultra-romanticos. A Tragedia classica foi desnaturada pelas Tragicomedias latinas dos Jesuitas, que dramatisavam assumptos biblicos, n’esse como que exercicio collegial, cuja representação com um apparato scenico assombroso durava por vezes dois e trez dias. O Collegio das Artes, de Coimbra, o de Santo Antão, de Lisboa, e a Universidade do Espirito Santo, de Evora, foram os centros em que os Jesuitas mais desenvolveram estes espectaculos tragicomicos. Eram essas Tragicomedias intermeadas de grandes córos cantados por estudantes, apresentando mutações phantasticas, a que se chamou [Pg 411] tramoias. Na formatura do Prior do Crato representou-se em Santa Cruz a tragicomedia latina Golias; e quando D. Sebastião, ainda criança, em 1570 visitou Coimbra, assistiu á representação de uma tragicomedia do P.e Luiz da Cruz, que durou trez dias. Póde-se inferir, que por via das tragicomedias chegaram a Portugal as primeiras noticias da Opera, que estava ainda nos seus rudimentos, como os Madrigaes da Italia e os Ballets francezes, que se desenvolveram no seculo XVII.

2.o Periodo: Os Culteranistas (Seculo XVII):

Quando as Litteraturas se afastam das fontes naturaes da tradição seguindo uma imitação erudita, ou uma artificiosa originalidade, tornam-se o producto de uma aberração doentia; faltando-lhes a communicação com o publico e um destino social, apoiam-se nos preceitos banaes da rhetorica, e na superstição dos modelos. Deu-se no seculo XVII em todas as Litteraturas da Europa este desvio das suas bases naturaes; chamou-se a esta corrente do máo gosto, Culteranismo. Penetrou o seu influxo em Portugal de um modo absoluto, caracterisando todas as manifestações estheticas do seculo, e maculando a obra de espiritos superiores, como D. Francisco Manoel de Mello ou o Padre Antonio Vieira. O que se passou em Portugal foi simultaneo em Hespanha, Italia, França e Inglaterra, o que leva a considerar uma causa geral, immanente ao mesmo seculo. As Litteraturas confinavam-se nas [Pg 412] côrtes e nas Academias. Toda e qualquer actividade da intelligencia humana, esthetica, scientifica ou philosophica, exercendo-se em um subjectivismo exclusivo e sem relação com o meio social, cáe na degenerescencia morbida. Quando a Philosophia ficou confinada nos claustros, longe da communicação com a realidade das cousas, ou a objectividade, deu a Scholastica, em que os cerebros especularam sobre entidades nominaes, sem o apoio dos factos scientificos, e sem o intuito de subordinar a uma concepção synthetica os dados do mundo objectivo; reduziu-se a philosophia a uma dialectica palavrosa, a uma argucia sophistica, e por fim a uma futilidade e inutilidade lamentaveis. A renovação philosophica de Bacon e Descartes até Augusto Comte, começou por arrancal-a do isolamento claustral, dando á especulação a complexidade dos elementos objectivos que constituem o mundo physico e moral. Fecundada pelas observações o experiencias physicas, a Philosophia libertava-se de um inane Ontologismo; mas as Litteraturas fechadas nas côrtes, e nas escholas e academias, cahiram nas banalidades do Humanismo. Por isso mesmo que a especulação intellectual activava o trabalho scientifico do seculo XVII, é que as manifestações estheticas foram prejudicadas. A rasão emancipava-se da auctoridade theologica; a Companhia de Jesus tornou-se o fóco de toda a educação publica, monopolisou o ensino, tomou conta das gerações novas, amoldou-lhes os cerebros, esgotou a rasão humana em cousas inuteis, com o prolongado ensino do latim, da [Pg 413] rhetorica, da dialectica e da theologia. Os Jesuitas antepuzeram-se aos Humanistas, e sustentaram o scholasticismo; aonde dominaram como pedagogos não penetrou a sciencia; e as Academias, que se creavam como fócos de actividade mental, nos paizes mais catholicos tornaram-se exclusivamente litterarias, á maneira das Tertulias hespanholas, proseguindo o humanismo das escholas jesuiticas.

Este periodo seiscentista caracterisa-se por um impudente pedantismo, pela falta de senso commum no emprego das metaphoras; dava provas de culto, o que encobria a falta de pensamento em laboriosos hyperbatons, o que primava em sustentar theses ridiculas com gravidade, o que forjava anagrammas propheticos, o que engenhava labyrintos recheados de acrosticos, com versos lipogrammaticos ou chronogrammaticos, com a fórma de columna, de pyramide ou de calix.

Além da educação do automatico humanismo jesuitico, as côrtes, pelas conveniencias do euphuismo, reduziram a idealisação litteraria a uma indignidade pela bajulação obtida pela protecção official; os reis boçaes, a aristocracia frivola, emfim todos os prepotentes eram proclamados Mecenas. Foram numerosissimas as Academias litterarias em Portugal no seculo XVII, taes como a dos Ambientes, de 1615, a Sertoria, de Evora, de 1630, a dos Anonymos, de 1637, a dos Generosos, de 1647, a dos Singulares, de 1663, a dos Solitarios de Santarem, de 1664, e Conferencias discretas, de 1696. As bibliothecas estão repletas de manuscriptos d’este periodo litterario. Uma vez separados da naturalidade, não [Pg 414] tinha limites a aberração mental; ha nos seiscentistas uma tendencia satyrica, que os absolve, por que protestavam contra o absurdo da moda.

No meio dos desconcertos dos Culteranistas destacam-se pela sua incontestavel superioridade no lyrismo, D. Francisco Manoel de Mello e Francisco Rodrigues Lobo. Conheceram estes dois eminentes poetas as tradições portuguezas; D. Francisco Manoel, que allude a muitos cantos e contos populares, estudou Sá de Miranda e imitou-o nas suas encantadoras Eclogas. A superioridade do lyrismo de Rodrigues Lobo, que estudára Camões, era explicada por Faria e Sousa como consequencia dos plagios feitos ao immortal poeta; é certo que Rodrigues Lobo conheceu as antigas serranilhas, mas as suas Eclogas são principalmente bellas por que se ligam a successos reaes da sua vida desgraçada.

Abundam n’este periodo culteranesco as Epopêas historicas, com o competente tempero da fabula, descripções, narrações e episodios, segundo a norma virgiliana. Na perversão do gosto houve intenções de annullar o poema de Camões, substituindo os Lusiadas pela Ulyssêa do desembargador Gabriel Pereira de Castro. Levantou-se tambem a polemica entre Tassistas e Camoistas, chegando-se a recorrer ás delações ao Santo Officio para fazer triumphar o partido que esquecido das tradições nacionaes queria por todos os modos impôr á admiração o poema de Tasso. O que mais impressiona é o facto da revindicação da autonomia nacional, pela [Pg 415] revolução de 1640, não despertar a idealisação de tantos poetas épicos que metrificaram a mythologia dos falsos chronicões.

Unificado na Hespanha no ultimo quartel do seculo XVI, Portugal era mais conquistado pelos costumes, pela lingua e pelo theatro, do que pelas leis. Durante todo o seculo XVII deliciamo-nos com as comedias famosas de capa y espada, e com a sua fecundidade muitos escriptores portuguezes enriqueceram o reportorio castelhano. As melhores companhias de actores hespanhóes achavam em Portugal asylo e dinheiro. No manuscripto da bibliotheca nacional de Madrid, Genealogia, origen y noticia de los Comediantes de España, enumeram-se os que vieram a Portugal. Em todas as festas publicas eram obrigadas as comedias de Lope de Vega; os escriptores dramaticos hespanhóes, como Lope de Vega, Calderon, Tirso de Molina, Alarcon, Montalban, Mira de Mescua, Velez de Guevara e outros menos celebres, dramatisavam a historia portugueza, desde os amores de Inez de Castro até á propria revolução de 1640. Os escriptores portuguezes que adoptaram o estylo da comedia de capa y espada tornaram-se celebres entre os ingenios do theatro hespanhol. Sacudido o jugo politico da Hespanha, entraram em Portugal outras influencias litterarias e artisticas, mas não passaram do meio restricto da côrte.

[Pg 416]

3.o Periodo: Os Árcades (Seculo XVIII):

Não existia vida nacional no seculo XVIII; a monarchia passára á ostentação do cesarismo, em que a auctoridade adormentava a opinião publica com o deslumbramento da sua sumptuosidade; o rei era senhor de tudo, e nada se emprehendia sem a acção official. Os ministros de D. João V foram primeiramente dois jesuitas, e depois o varatojano Frei Gaspar, chefe da seita de illuminados a Jacobêa, e o monarcha sinceramente possuido do poder paternal sobre o seu povo entendia servir o bem da nação mandando dizer missas por alma dos seus subditos, e dispendendo a riqueza publica na fundação de estupendas basilicas, como a de Mafra e a Patriarchal, e na compra de indulgencias. O que era o povo, dil-o pittorescamente Beckford nas suas Cartas, que nunca vira terra com mais mendigos, mais grotescamente esfrangalhados, com pustulas mais asquerosamente assoalhadas á caridade; e dizia lord Tiralwey, que Portugal se dividia em duas partes, a que suspirava pelo Messias, e a que ainda sonhava com a vinda de D. Sebastião. E comtudo, no seculo das maiores audacias, Portugal iniciou os dois factos capitaes, a suppressão da Companhia de Jesus e a secularisação do ensino; tal era a força da corrente revolucionaria, que a propria monarchia, sob a acção ministerial, cooperava activamente embora inconsciente na dissolução do regimen catholico-feudal.

Os homens que sentiam a necessidade de uma renovação litteraria só [Pg 417] achavam possivel o facto intervindo um decreto do rei. A Academia, que segundo os costumes italianos era uma reunião familiar, com musica, poesia e refrescos, recebeu sob o cesarismo uma protecção official, que assegurou a sua existencia, para dogmatisar e restaurar. Ignorava-se que a litteratura era um reflexo do estado social e uma expressão do genio nacional; contra a decadencia que estava na ordem das cousas e atrophiava os espiritos, impunham-se os moldes greco-romanos, com a mesma inintelligencia com que o curandeiro ataca o symptoma morbido. Permaneciam as causas, e os mais sinceros esforços ficavam sempre improficuos. Estafou-se inutilmente a Academia de Historia portugueza, apezar do poderoso influxo official que a sustentava. Erigiu-se a Academia dos Anonymos de José Freire Montarroyo, mas caíu na glorificação banal de D. João V; os Ericeiras prestaram os seus palacios, e póde-se julgar que sob a influencia critica do Verdadeiro Methodo de estudar, de Verney, que analysava o Culteranismo, se organisou a Academia dos Occultos, que veiu a servir de nucleo á Arcadia de Lisboa. A relação entre estas duas Academias explica-nos a reacção estabelecida contra o anterior elemento seiscentista, representado por Pina e Mello e D. Joaquim Bernardes, e o purismo classico que procurava restabelecer a auctoridade dos Quinhentistas.

A Arcadia de Lisboa.—Foi fundada por homens de alta posição official, principalmente desembargadores que se envergonhavam [Pg 418] de ser poetas, como Diniz (Elpino Nonacriense) que conservou inéditas as suas composições. Os Estatutos da Arcadia eram tão draconianos, que para ser admittido como socio exigia-se a unanimidade, e para a critica das obras um sigilo absoluto. Floresceu de 1757 até 1774, e representa historicamente o absolutismo do canon classico em boa alliança com o despotismo politico e o intolerantismo religioso. Exercendo-se em dogmatisar, esterilisou-se na indecisão, gastando as suas energias na discussão se deveria admittir na linguagem litteraria o neologismo e o archaismo. Desde que os árcades perderam o favor official do omnipotente ministro de D. José, desappareceu a sua actividade, e a academia desagregou-se silenciosamente.

O poeta, como vêmos pelo exemplo de Tolentino—«acabava por fim pedindo esmola;» era uma especie de creado de casa fidalga, que festejava os annos dos titulares e esperava que o brindassem com um fato. Ainda não havia a dignidade do escriptor. O Marquez de Pombal viu na Arcadia uma Companhia com o privilegio ou monopolio das composições metricas, e assim a protegeria; desde que alguns espiritos sympathisaram com as doutrinas pedagogicas do Oratorio, o ministro tirou-lhes o favor official, e aos que suspeitou de fallarem mal do seu governo metteu-os no carcere, como ao Garção que morreu no Limoeiro.

Os Dissidentes da Arcadia.—A verdadeira feição do seculo XVIII na poesia não está no que produziu a Arcadia adstricta á imitação classica; sob a pressão do despotismo houve protestos [Pg 419] irreflectidos da natureza, como se observa n’esse phenomeno de perversão mental da poesia erotica. O molinismo dos conventos e a sensualidade do cesarismo patrocinavam este genero litterario, de que foram victimas quasi todos os poetas do seculo XVIII. Esse phenomeno é conhecido em França pelo nome de Sadismo.

O Camões do Rocio e o Lobo da Madragôa revelam melhor a depressão moral sob o cesarismo, do que as campanudas odes horacianas. Garção, Tolentino e Filinto Elysio sacrificaram ao gosto erotico; foi a doença do seculo, cuja intensidade se nota na quantidade de nomes que cultivaram o genero, taes como Domingos Monteiro de Albuquerque, Pedro José Constancio, Fr. José Botelho Torrezão, o Abbade de Jazende, o P.e José Agostinho de Macedo, Bocage, Pimentel Maldonado e outros.

Na constituição da Arcadia de Lisboa alguns poetas afamados do tempo não foram convidados, e outros mais tarde não foram admittidos por causa do seu genio satyrico. N’este caso apparecem Nicoláo Tolentino, que metrificava irreprehensivelmente, e Francisco Manoel do Nascimento (Filinto) que com outros poetas constituiu o Grupo da Ribeira das Náos. Cruzou-se por vezes o tiroteio das satyras, acirrando-se uns e outros, a ponto de ser conhecido o seu principal conflicto pela designação da Guerra dos Poetas, a proposito da cantora Zamperini.

Havia no seculo XVIII um costume em que a poesia se tornava um elemento das festas; chamava-se-lhe Outeiro poetico, em que se versejava [Pg 420] nas eleições dos abbadeçados. Seria ainda uma apagada reminiscencia das Côrtes de Amor. Tolentino pinta com traços pittorescos este costume, que formava reputações.[209]

A reacção da côrte de D. Maria I contra as reformas pombalinas, lançou a nação na violencia do intolerantismo; fizeram-se perseguições systematicas aos homens intelligentes, como ao mathematico e poeta José Anastacio da Cunha, a Felix de Avelar Brotero, a Filinto Elisio, a José Corrêa da Serra, e por ultimo até ao poeta Bocage, por causa do seu espirito encyclopedista. Assim se cahiu n’esse gráo de cretinisação, que fazia dizer ao P.e Theodoro de Almeida, ao inaugurar a Academia das Sciencias em 1779: «Que admirados ficareis, senhores, se soubesseis quam vil é o conceito que mesmo os estrangeiros fazem injustamente de nós. Quando lá fóra apparece casualmente algum portuguez de engenho mediocre, admirados se espantam como de phenomeno raro. E como assim? (dizem) de Portugal? do centro da ignorancia!—Assim o cheguei a ouvir.» No seculo XVIII a Europa confundia a situação mental dos portuguezes com a crassa estupidez dos seus governantes, como hoje nos identificam com o descaro da sua [Pg 421] insolvencia. A Academia das Sciencias foi um fóco de luz que o duque de Lafões e José Corrêa da Serra, auxiliados por Vandelli e o visconde de Barbacena, projectaram n’este prolongamento da Edade media em Portugal.

A nova Arcadia.—A influencia franceza, que se contrabalançava com a auctoridade dos Quinhentistas na primeira Arcadia, depois da sua dissolução é que adquiriu uma completa preponderancia. A litteratura franceza era o orgão da propaganda philosophica e politica que convulsionavam a Europa. A Nova Arcadia ou Academia de Bellas-Lettras foi fundada pelo mulato brazileiro o P.e Caldas (Lereno Selinuntino) no palacio do Conde de Pombeiro. No meio das grandes commoções politicas da Europa com o apparecimento dos principios de 1789, a Nova Arcadia fechou-se no seu remanso pastoral, alheia a todas as reclamações humanas.

No meio d’este insulso idyllio, rebentou o conflicto turbulento do genio de Bocage, que reagia contra a mediocridade geral vibrando satyras immortaes. A sua adhesão aos principios da Revolução franceza levou-o aos carceres da Policia, então mais terriveis do que os da Inquisição, para a qual appellou, para escapar. Póde-se dizer que o meio social amesquinhou este genio, que apezar da imbecilidade geral soube sentir a superioridade de Camões.

O lyrismo portuguez teve uma fugaz renovação, pelo favor que no gosto do tempo encontraram as Modinhas brazileiras, tão celebradas [Pg 422] por lord Beckford, consideradas como o elemento generativo da musica portugueza por Strafford, e sendo na realidade uma persistencia tradicional das antigas serranilhas gallezianas. As Lyras da Marilia de Dirceu, de Gonzaga, são o que ha de mais bello no lyrismo da ultima metade do seculo XVIII. A superioridade litteraria revelava-se entre os escriptores do Brazil, que pelo influxo da Revolução franceza serviam a causa da emancipação d’esta explorada colonia, que aspirava á legitima autonomia de nacionalidade. A Nova Arcadia dissolveu-se depois do conflicto de Bocage, depois de ter accumulado Odes, Sonetos, Epistolas, Elogios dramaticos. Durante a segunda metade do seculo XVIII vivemos entregues a todas as tropelias da rasão de estado, sob a vigilancia feroz do Intendente Manique, sob a suspeição das ideias francezas e apavorados pelo intolerantismo religioso. A censura litteraria e a policia nas alfandegas, não deixavam entrar em Portugal os livros suspeitos, e as obras dos Encyclopedistas eram queimadas na praça publica pela mão do carrasco.

A nação soffreu os tremendos desastres provocados pela inconsciencia politica; depois da invasão napoleonica e do não menos terrivel protectorado da Inglaterra, houve um momento em que a nação manifestou vida propria, na revolução de 1820, em que no meio das grandes catastrophes reassumiu a sua soberania, proclamada como fonte do poder na Constituição de 1822. Com esta data gloriosa da liberdade portugueza, começa simultanea com a renovação social uma nova e [Pg 423] fecunda phase na litteratura.

Na Europa passava-se a renovação litteraria do Romantismo, agitando a França, a Italia, a Inglaterra e a Hespanha; em Portugal continuavamos estacionarios na admiração dos classicos, como a colonia romana longinqua que ainda continuava a veneração do Imperador já destituido. Um accidente desgraçado, a restauração do absolutismo bragantino, provocando a emigração de 1823, é que levou os nossos innovadores a descobrirem a relação entre as litteraturas e as aspirações da sociedade.

A baixa Comedia.—Com as comedias hespanholas de capa y espada e as italianas de imbroglio, fez-se um amalgama sem intenção, nem responsabilidade litteraria para acudir á exploração dos theatros do Salitre e do Bairro Alto. Tal era a baixa comedia, em que se fundiam elementos das obras de Lope de Vega, Molière e Goldoni. Eram geralmente em verso octosyllabo assonantado, e constituem um vasto reportorio avulso, chamado Comedias de cordel. Esta creação correspondia ao estado dos espiritos, quasi idiotico, a que os levára a inquisição e o cesarismo; a sua publicação tornára-se uma industria dos cegos, ligados entre si em uma Confraria do Menino Jesus, que tinha o privilegio exclusivo da sua exploração. Na baixa comedia não se encontra um protesto contra o aviltamento geral, mas abundam as graçolas equivocas, os esgares de quem quer reagir contra o terror. Distinguiram-se no genero Antonio José da Silva, alcunhado [Pg 424] o Judeu, e Nicoláo Luiz. Contra o gosto popular que applaudia as Operas do Judeu reagiu o árcade Garção. Filinto appellava para a tradição dramatica nacional: «Lêam a opera dos Encantos de Circe, eruditissimo parto de um engenho judaico. Houve editor que modernamente deu á luz esse non plus ultra do genero dramatico; e Gil Vicente, e Prestes e outros classicos ficaram para sempre no cadoz! Oh vergonha! oh ingrata incuria!» Pela sua parte, o árcade Manoel de Figueiredo reagiu contra Nicoláo Luiz, querendo dar ao theatro bases philosophicas; faltava-lhe porém o talento, não obstante a sua clara comprehensão do problema.

O que era o theatro póde avaliar-se pela situação dos actores; o Intendente da Policia, Pina Manique, nas Contas para as Secretarias traz curiosas noticias, que derramam uma immensa luz na historia do theatro no seculo XVIII; lê-se na Conta, de 30 de setembro de 1792: «Os comicos e os Emprezarios, que de ordinario são os mais infimos, e que para os conter e conservar a boa ordem e policia do theatro é necessario a força, sem a qual nada se póde fazer, por que é uma gente sem melindre ou caprixo, e são susceptiveis de tudo aquillo que é máo para o adoptarem, ou seja contra os bons costumes, ou contra a honra, o ponto é que elles tenham interesse. Além de que não cumprem o que devem para satisfazer ao publico, e muitas vezes é preciso contel-os para não enxerirem algumas palavras menos decentes, que não vêm na peça que executam; etc.» (Liv. III, fl. 264 a 267.) [Pg 425] O Intendente era a favor das representações, por que oppondo-se á entrada em Portugal das ideias francezas, considerava o theatro um elemento indispensavel para conservar os cidadãos longe do conhecimento dos successos da Europa, e sem logar para discutirem sobre os negocios publicos. A baixa comedia foi um instrumento do cesarismo. Durou esta fórma dramatica até ao tempo de Garrett, e algumas das principaes peças d’esta eschola ainda sobrevivem na scena, como o Manoel Mendes Enxundia, de Ferreira de Azevedo, o Doutor Sovina e o Zanguizarra. Nunca uma litteratura foi mais completa na revelação do estado decadente de uma nacionalidade. A Arcadia, querendo restaurar o theatro, traduziu e imitou os tragicos da época de Luiz XIV, segundo a sua fé monarchica; mas com a corrente revolucionaria lêram-se e representaram-se as tragedias philosophicas de Voltaire, que persistiram até á geração de 1820.

NOTAS DE RODAPÉ:

[206] No fragmento da Poetica provençal que vem no Cancioneiro Colocci-Brancuti, cita-se no cap. IX este genero de seguidilha, em que se intercalam versos de outrem: «som em prazer ou em ledo.» Têm quasi sempre o estribilho: Leda vou eu, etc.

[207] Historia de la Literatura española, t. I, p. 11.

[208] No Catalogo, de Barrera y Leyrado, p. 534, cita-se esta ultima: «Manuscripto sin año, de principios del siglo XVI, en la Libreria de señor Duran.»

[209]

Fôra cem vezes em nocturno Outeiro
Da sabia Padaria apadrinhado;
E dizem que glosava por dinheiro...
Rompi Outeiros em Sant’Anna e Chellas,
Chamei sol á Prelada, e ás mais estrellas.

TERCEIRA ÉPOCA
(SECULO XIX)

Revivescencia das Tradições nacionaes pela idealisação da Edade media, e comprehensão do elemento classico pela solidariedade historica

Á proclamação da liberdade de consciencia no seculo XVI, pela Reforma, corresponde essa outra emancipação do dogmatismo na arte, pelo Romantismo, com o qual a Allemanha no começo do [Pg 426] seculo XIX propagou o principio da espontaneidade do sentimento. Em ambas as revoluções, religiosa e esthetica, existiu uma base commum: o regresso á tradição, quer a da Egreja primitiva, quer a das origens nacionaes. A Allemanha chegou a este resultado fundamental pelo trabalho erudito da descoberta das tradições germanicas, e pela renovação philosophica exercida na critica da Arte, suscitada práticamente pela necessidade de estimular o espirito da nação contra as desvairadas devastações napoleonicas. O influxo da Allemanha na transformação do Romantismo foi universalisado por M.me de Staël; em Portugal tambem uma mulher teve essa sympathica iniciativa. Herculano confessou dever á marqueza de Alorna a direcção dos seus primeiros passos na Litteratura: «Como madame de Staël, ella fazia voltar a imaginação da mocidade para a Allemanha, a qual veiu dar nova seiva á arte meridional, que vegetava na imitação servil das chamadas letras classicas...»

De facto a renovação do Romantismo correspondia a uma transformação social da Europa moderna pelo influxo dos principios da Revolução franceza; e se a nova eschola triumphou foi por que se encontrou em um novo meio social. As monarchias absolutas reagiam contra o direito das Constituições ou codigos da soberania nacional, e pretendiam restaurar o antigo e decahido regimen, ou pelo menos falsificar esse direito pela outorga ou concessão de Cartas constitucionaes. Aquelles que combatiam pela liberdade politica e civil, tanto na Italia e França, como em Hespanha e Portugal, [Pg 427] abraçaram por instincto a nova concepção das Litteraturas, da mesma fórma que os trovadores provençaes tinham sido os proclamadores da independencia municipal, e os humanistas da Renascença os propugnadores do livre-exame.

Os chefes do Romantismo.—Os principaes promotores da renovação do Romantismo em Portugal foram dois emigrados liberaes, Almeida Garrett, que em 1823 fugira para França ante a restauração do absolutismo de D. João VI, que prejurára a Constituição de 1822, e Alexandre Herculano, que em 1831 fugira para Inglaterra ás forcas de Dom Miguel, que tambem prejurára a Carta constitucional de 1826. Garrett no seu regresso d’estas duas emigrações procurou descobrir o veio da tradição nacional, lançando as bases do Romanceiro portuguez; no poema Camões comprehendeu a mais alta expressão do genio nacional; na D. Branca, no Alfageme de Santarem, no Arco de Sant’Anna, universalisou no poema, no drama, no romance historico as bellas lendas antigas, que estavam dispersas e desconhecidas nas chronicas monachaes e monarchicas.

A acção exclusiva de Garrett na fundação do theatro portuguez manifesta-se na extraordinaria intuição do artista que comprehendeu o alcance da transformação da sociedade burgueza, para a qual o theatro era uma fórma tambem de liberdade. Teve o raro tino nas suas obras de inspirar-se nos conflictos do meio social, como se observa com a tragedia Catão, ligada ás aspirações liberaes de 1820; com o [Pg 428] Camões, idealisado nos desalentos do desterro; com o Arco de Sant’Anna, vivificado pela resistencia do cêrco do Porto; com o Alfageme de Santarem, exprimindo a necessidade de recorrer á revolta, na crise terrivel do cabralismo em 1842.

Com a iniciação pois da liberdade constitucional appareceu uma vaga comprehensão do valor dos elementos tradicionaes como a base das litteraturas; com esta intuição pôde Garrett levantar o theatro portuguez. O drama Frei Luiz de Sousa hade ser sempre uma obra prima em todas as litteraturas modernas. A acção de Garrett ficou isolada por falta de uma geração intelligente; o theatro continuou reduzido a uma macaqueação dos dramas ultra-romanticos, por que surgiram as ambições politicas de um absolutismo mascarado em constitucionalismo, que perverteram e esgotaram todas as capacidades, que para engrandecimento pessoal se prestaram á hypocrisia liberal com que illudiram a nação. Ainda hoje a litteratura dramatica se acha na mesma esterilidade e mesquinhez em que a deixou a morte de Garrett; traduzem-se dramas pelo mesmo espirito com que na representação parlamentar se traduzem relatorios e leis.

Tambem com os desalentos da emigração e diante das situações reaes e sublimes do cêrco do Porto, soube Alexandre Herculano inspirar-se; na Harpa do Crente a sua poesia é viva. Comprehendendo a Edade media através dos romances de Walter Scott, fez romances historicos de segunda mão, cahindo por vezes n’esse mesmo ultra-romantismo que [Pg 429] condemnára nos pareceres do Jornal do Conservatorio. A falta de uma concepção synthetica levou-o para o campo da historia critica, na doce esperança de exercer sobre Garrett essa influencia fecundante de Herder sobre Goëthe e de Thierry sobre Victor Hugo. Não foi secundado nos estudos historicos, e por isso a concepção da Edade media ficou em mera exterioridade que suscitou um impertinente prurido de banalidades no lyrismo, no theatro e no romance.

Os ultra-romanticos.—A primeira phase do Romantismo consistiu em todas as litteraturas em renovar com mais ou menos intelligencia as tradições nacionaes. Como as modernas nacionalidades provinham das transformações sociaes da Edade media, nas instituições, linguas, crenças, costumes e mesmo em quanto ás fórmas litterarias e artisticas, caíu-se insensivelmente na admiração exclusiva d’essa época profundamente poetica, e facil foi ás mediocridades o apossarem-se dos caracteres exteriores da vida medieval; repintando castellos, pontes levadiças, juras tremendas á meia noite, reprezalias de barões feudaes, ou pelo lado religioso despedidas de trovadores-cruzados para a Terra santa, apaixonados amantes cobrindo o seu fogo com as cinzas da penitencia claustral, tudo isto recortado como se fosse de cartão, dava uma litteratura romantica de soláos e xácaras, romances historicos e dramalhões tetricos. A esta inintelligencia de uma concepção fundamental, que caíu no exagero do processo, chamou-se o Ultra-Romantismo. Em quanto a [Pg 430] Edade media era scientificamente estudada em todos os seus aspectos, os litteratos continuavam a explorar a nova rhetorica da emphase romantica, que se tornava tão inexpressiva como a rhetorica classica. Os talentos verdadeiros reagiram contra esta dissolução, procurando inspirar-se da realidade, da verdade do natural; mas n’este esforço rasoavel, excederam-se sacrificando o elemento ideal ou a representação subjectiva á reproducção ou descripção exacta do dado objectivo.

Dissolução do Romantismo: Eschola de Coimbra.—Causas immanentes ao nosso meio social mantiveram o gosto do Romantismo em Portugal, quando elle estava já em dissolução por toda a Europa. As necessidades do jornalismo da pedantocracia monarchico-representativa absorveram todos os talentos e vocações litterarias, que se esgotaram n’essas paixões e ambições, abandonando o estudo pela espectativa de uma pasta ministerial. A nação querendo revindicar a sua liberdade foi violentamente abafada por uma intervenção armada da Inglaterra e Hespanha, a reclamo de D. Maria II, para subjugar a revolução contra a oligarchia dos seus ministerios de resistencia. Edgar Quinet comprehendeu o alcance de tal attentado; tendo apreciado o esplendor da primeira iniciação romantica, vaticinou o paroxismo da nação, da sua vida intellectual e moral sob esta traição da realeza. A nação vergada brutalmente ao statu quo caíu na inconsciencia. Abafada toda a aspiração da liberdade, os talentos novos puzeram-se [Pg 431] do lado do paço contra a nação, como Mendes Leal e Rebello da Silva; n’este interregno do espirito creador e original, ergueu-se Castilho, reduzindo a elaboração litteraria a traducções dos poetas latinos, e á cultura do estylo, independente das ideias. Mas peior do que isto, foi ainda a perversão do elogio mutuo, que favorecia o imperio das mediocridades e a aversão por toda a ideia ou innovação esthetica.

Tinha de dar-se a dissolução d’este ultra-romantismo extemporaneo; irrompeu em 1865 de um modo tempestuoso, dando logar á longa polemica da chamada Questão coimbrã, analoga ao que na Allemanha se passára com o Sturm und Drang. Proclamava-se a alliança da poesia e da philosophia, inspirando-se do sentimento da solidariedade humana, dando fórma ao ideal da Humanidade.

A poesia abandonada ao subjectivismo metaphysico, ia fatalmente cahir no romantismo mystico ou em um pessimismo doentio; carecia-se de uma disciplina critica. Pelos processos novos da critica comparativa applicados á historia politica e litteraria, á philologia, aos costumes ou ethnologia, ás tradições, é que Portugal se relacionou com o movimento intellectual e social da Europa. Com todos estes elementos novos da actividade mental, havia a necessidade de evitar a tendencia da especialisação, que amesquinha as intelligencias, ou a dispersão incoherente de estudos, que leva á banalidade acobertada com o verniz do estylo; essa somma de elementos novos fez reconhecer a necessidade de uma disciplina philosophica. Assim a Philosophia positiva veiu em um momento opportuno demarcar uma [Pg 432] nova orientação na mentalidade portugueza, mostrando como terminada a revolução todos os esforços deviam convergir para activar o advento a uma edade de normalidade.

Os povos do occidente da Europa constituem uma grande confederação natural, uma mesma familia moral; a Italia, a Hespanha e Portugal reconhecem espontaneamente a França como o centro da hegemonia da civilisação latina. Separados politicamente por odios dynasticos, em que a Italia foi invadida pela Hespanha e pela França; em que pelos exercitos napoleonicos invadiu a Hespanha e Portugal a mesma França, que sob a Santa Alliança tornou a invadir a Hespanha sob a bandeira absolutista, estes paizes, á medida que se aproximam da comprehensão da democracia, vão reconhecendo que esses odios provinham do egoismo dos interesses monarchicos, que deram em resultado a decadencia da Civilisação occidental. A sciencia estudando a similaridade do grupo das linguas novo-latinas e comparando a evolução das Litteraturas romanicas ou meridionaes, reconstrue a unidade ethnica e moral dos estados do Occidente; e em quanto a democracia não funda em bases juridicas de federação esta solidariedade historica da França, Italia, Hespanha e Portugal, é indispensavel que essa conclusão scientifica se generalise na fórma de sentimento.

Pelo exame da marcha da historia moderna da Europa desde o seculo XII até ao seculo XIX, vê-se que a esse longo processo de dissolução do [Pg 433] regimen catholico-feudal corresponde um trabalho reconstructivo. De Maistre, que tanto trabalhára para sustentar o regimen da Edade media, proclamava o facto evidente: «Tudo indica que caminhamos para uma nova Synthese.» Para elle, essa synthese seria uma reorganisação do christianismo para abranger a sociedade e a consciencia modernas que lhe fugiam; mas, os espiritos que seguiram o trabalho reconstructivo da rasão pela descoberta das verdades positivas das Sciencias experimentaes e pelo estabelecimento da liberdade civil, tambem proclamaram o advento da nova Synthese, como Comte, terminando a acção social das ficções theologicas e metaphysicas substituidas pela noção da solidariedade humana.

Eis pois determinado o sentimento fundamental que deve inspirar todos os themas estheticos. Por falta d’este sentimento universal e decisivo, é que na longa crise da dissolução do regimen catholico-feudal as Litteraturas fluctuaram na sua idealisação, imitando e parodiando sem intuito social; uma vez determinado, a missão do sentimento é chegar á synthese a que as luctas mental e social ainda não souberam dar fórma. Todo o systema das Bellas-Artes é chamado a cooperar n’esta missão para a qual foram impotentes os politicos, os sabios e os philosophos. É verdadeiramente assombrosa a percepção de Wagner, quando tendo analysado a anarchia da arte, formúla o grande destino da funcção esthetica: «Aonde outr’ora o artista desesperou, ahi começaram a politica e a philosophia; ahi, aonde hoje em dia a politica e a philosophia desesperam, é ahi que começa o artista.»[210] Todo o [Pg 434] vasto corpo da Historia litteraria de Portugal que temos coordenado é a narrativa d’esses antecedentes do sentimento esthetico, que, pela comparação com as outras Litteraturas romanicas e relação com o meio social nos conduzem a uma clara deducção da Philosophia da Litteratura.

FIM

NOTAS DE RODAPÉ:

[210] Maravilha a concordancia do genio philosophico de Comte com a intuição artistica de Wagner; tudo nos confirma o valor e segurança da sua direcção mental.


[Pg 435]

NOTA BIBLIOGRAPHICA

Quem confrontar o presente livro com o que foi publicado em 1870 com o titulo de Introducção á Historia da Litteratura portugueza, poucas paginas encontrará semelhantes; pouco ou quasi nada aproveitámos da fórma da sua redacção, que era vacilante por falta de nitidez da ideia fundamental, mas reproduzimos sempre os factos, embora deslocados ou mal interpretados.

Vinte e cinco annos de estudo sobre a Historia da Litteratura portugueza impõem a obrigação de estar ao corrente dos problemas indispensaveis para a comprehensão d’esta litteratura. Tendo de proceder a uma edição integral d’esta obra, não me podia contentar com esse primeiro e imperfeito esboço. Tambem não devia atiral-o fóra por inutil e aleijado; submetti-o a uma revisão minuciosa, reconhecendo—quanto é mais facil emendar do que crear de novo,—circumstancia que tornará perdoaveis os meus antigos erros.

Eis as modificações a que submettemos o nosso primitivo trabalho:

O § I—Das raças e suas creações artisticas, foi completamente refundido com factos importantes de todas as litteraturas romanicas e [Pg 436] segundo os resultados da Anthropologia.

§ II—Genio dos Mosarabes em Portugal; tanto este capitulo como o anterior tornaram-se parte da secção dos elementos staticos da Litteratura, em que ha uma melhor coordenação de materiaes.

§ III—Epopêas da Edade media em Portugal; estava desconnexo, e ficou distribuido mais ordenadamente na secção dos elementos dynamicos da Litteratura, em que a Edade media apparece sob a hegemonia da França.

§ IV—Primeiras Bibliothecas portuguezas; foi eliminado este capitulo, por que está largamente desenvolvido e melhorado na Historia da Universidade de Coimbra, vol. I, p. 191 a 245.

§ V—A Renascença; foi encorporado e desenvolvido nos elementos dynamicos da Litteratura, descrevendo a hegemonia da Italia.

§ VI e VII—Academias litterariasOrigens da Poesia moderna; ficaram reunidos nos elementos dynamicos da Litteratura, na descripção da hegemonia da Hespanha, da Inglaterra e da Allemanha, com os necessarios retoques e desenvolvimentos.

A terceira parte d’este livro, Épocas historicas da Litteratura portugueza, contém o volume publicado em 1872 e reproduzido em 1881 com o titulo Theoria da Historia da Litteratura portugueza; foram cortadas todas as repetições e distribuidos os factos por fórma a caracterisar cada época litteraria, e a mostrar o traçado da grande obra em livros independentes e completos em si.


INDICE

[Pg 437]


INTRODUCÇÃO Á HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA

PAG.
PROLOGO v
ANTELOQUIO 1
I. Elementos staticos da Litteratura 7
§ 1.—A Raça e o Meio 10
§ 2.—A Tradição e os Costumes 62
a) Das fórmas lyricas 70
b) Das fórmas épicas 83
—Do elemento iberico 86
—Do elemento germanico 90
—Transformação erudita do Romance
popular
97
c) Das fórmas dramaticas 100
§ 3.—A Linguagem oral e escripta 126
§ 4.—Patria e Nacionalidade 161 [Pg 438]
II. Elementos dynamicos da Litteratura 174
§ 1.—A Edade media (Hegemonia da França) 177
a) Influencia gallo-romana (Lyrismo
trobadoresco)
191
b) Influencia gallo-franka (Gestas e Epopêas
medievaes)
203
c) Influencia gallo-bretã (Poemas e Novellas
da Tavola Redonda)
216
d) A cultura latino-ecclesiastica e humanista 247
§ 2.—A Renascença (Hegemonia da Italia) 263
a) O Humanismo quinhentista 272
I. Antagonismo dos dois elementos classico
e medieval
281
a) O Lyrismo petrarchista 288
b) A Epopêa classica 292
c) A Comedia e a Tragedia classicas 299
II. Sympathia pela Edade media na Eschola
da Medida velha
302
a) Os Poetas da Medida velha 304
b) Romances e Novellas de
Cavalleria
307
c) Os Autos hieraticos 313
b) O Culteranismo seiscentista (Hegemonia
da Hespanha)
316
c) O Arcadismo e a reacção proto-Romantica
(Hegemonia da Inglaterra)
332
§ 3.—O Romantismo (Hegemonia da Allemanha) 348
a) Rehabilitação da Edade media 354
b) O Ultra-Romantismo 358
c) Disciplina critica e philosophica 366[Pg 439]
III. Epocas historicas da Litteratura portugueza 373
PRIMEIRA ÉPOCA
(SECULOS XII A XV)
Preponderancia dos elementos tradicionaes e estheticos da Edade
media, e começo de transição para o estudo da Antiguidade
classica
1.o Periodo (Seculos XII a XIV):
Trovadores portuguezes 374
Novellas de Cavalleria:—O Amadis de Gaula 380
2.o Periodo (Seculo XV):
Os Poetas palacianos 384
Os Historiadores portuguezes 389
SEGUNDA ÉPOCA
(SECULOS XVI A XVIII)
Predominio da imitação da Antiguidade classica, e abandono
das Tradições nacionaes
1.o Periodo: Os Quinhentistas (Seculo XVI):
PARTE I: Poetas da Medida velha 390
Novellas de Cavalleria e Pastoraes 393
Gil Vicente e as origens do Theatro nacional 396
PARTE II: A Eschola italiana 400
Sá de Miranda e a Pleiada portugueza 402
Camões, e sua Eschola lyrica e épica 404
A Comedia e a Tragedia classicas 408
2.o Periodo: Os Culteranistas (Seculo XVII) 411
3.o Periodo: Os Árcades (Seculo XVIII) 416
A Arcadia de Lisboa 417
Os Dissidentes da Arcadia 418
A nova Arcadia 421
A baixa Comedia 423
TERCEIRA ÉPOCA
(SECULO XIX)
Revicescencia das Tradições nacionaes pela idealisação da Edade
media, e comprehensão do elemento classico pela solidariedade historica
425
Os chefes do Romantismo 427
Os ultra-romanticos 429
Dissolução do Romantismo: Eschola de Coimbra 430
NOTA BIBLIOGRAPHICA 435

NOTAS DO EDITOR

Os erros tipográficos evidentes foram corrigidos. Algumas palavras escritas em português arcaico, tais como "perstigio", foram mantidas como na versão original e verificadas em um dicionário da língua portuguesa do século XIX.

Devido à utilização de línguas arcaicas nesse texto, as inconsistências de hifenização e acentuação foram mantidas conforme a versão original.

Nesta versão, o carácter "caret" (acento circumflexo) foi utilizado com ou sem chaves para representar letras sobrescritas.