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Eça de Queiroz—Ramalho Ortigão—As Farpas

AS FARPAS

RAMALHO ORTIGÃO—EÇA DE QUEIROZ

CHRONICA MENSAL

DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES

TERCEIRA SERIE—TOMO II

Fevereiro a Maio 1878


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de mim mesmo.

P.J. PROUDHON


SUMMARIO

Leis organicas das sociedades e disposições regulamentares dos estados: de como a sociedade as distingue para os effeitos da sancção penal. O caso da sr.ª D. Joanna Pereira e o do parocho de Travanca de Lagos—A gymnastica perante o parlamento. O dr. Schreber, o dr. Ponza, Rodolfi, Claude Bernard, Burq, Lacassagne e o sr. Vaz Preto. Reconstituição da raça humana pela gymnastica. Reconstituição da ideias parlamentares pela mesma gymnastica. Indicação de alguns exercicios para uso dos dignos pares—O ultimo milagre de Lourdes e a Nação. Mostra-se que o milagre não presta. Ensina-se à Nação o que são milagres e prova-se-lhe que ella tem o demonio no ventre, mas que se lhe ha de tirar—A criminalidade em Lisboa e o fadista. Historia genealogica d'esse personagem desde o seculo XVI até a ultima facada no Bairro Alto—A ideia velha e a ideia nova.—Uma opinião de Tyndal ácerca dos atheus. Algumas ideias do carpinteiro Jacquenin ácerca das rasões porque crescem os trigos. De como o sr. conde do Rio Maior pelo modo como emendou a lei da instrucção primaria mostrou não ser aquelle philosopho nem aquelle carpinteiro— O Primo Bazilio. O caso pathologico e a obra d'arte. A educação burgueza e o realismo—A escola nacional dos poltrões. A covardia, instituição publica, etc.


Tôdos os crimes, quaesquer que elles sejam, podem ser considerados como pertencendo a duas classes distinctas:

1.º Crimes resultantes da infracção das leis organicas da sociedade;

2.º Crimes resultantes da infracção das disposições regulamentares dos Estados.

Emquanto as sociedades se não acham constituidas segundo o direito absoluto fundado em principios claramente definidos de moral positiva, isto é, emquanto as sociedades não attingem um desenvolvimento intellectual que lhes permitta conhecer todas as leis da sua organisação, distinguindo o que n'ellas é difinitivo e organico do que é convencional e contingente,—n'essas sociedades não podem dar-se senão os crimes da segunda d'aquellas classes. É assim que vemos nas civilisações antigas e hoje entre os selvagens serem considerados crimes ou deixarem de o ser, segundo os regulamentos especiaes das communidades, o roubo, a polygamia, o incesto, o homicidio, etc.

Nas sociedades que attingiram a edade consciente, que entráram no periodo scientifico da sua evolução moral, como presentemente succede em toda a Europa, o incesto, a polygamia, o homicidio, o roubo, etc., tomáram o caracter dos crimes incluidos na primeira das classes a que nos referimos, porque se comprehendeu que elles não violam unicamente um regulamento local e arbitrario, mas que ferem a sociedade nos centros da vida, dissolvendo no seu nucleo a aggregação que constitue o grande ser collectivo.


A sabedoria da legislação penal manifesta-se na mais justa e perfeita demarcação dos limites que separam essas duas ordens de crimes.

Quanto mais uma sociedade progride tanto mais ella estreita os meios repressivos da infracção das suas leis organicas, e tanto mais afrouxa a punição imposta á contravenção dos seus estatutos regulamentares, distinguindo graduações na culpa segundo a importancia dos interesses feridos pela perpetração do delicto.

É em virtude d'este criterio que são punidos com severidade, unanimemente exigida pela opinião, os attentados contra o interesse do commercio e contra o interesse da industria, porque estes dois interesses são considerados os mais importantes das sociedades modernas; ao passo que raramente deixam de ser amnistiados os crimes politicos, pela razão de que os governos se julgam impotentes para vibrarem arbitrariamente um castigo que nenhum interesse reclama e que por conseguinte a civilisação rejeita como um acto de prepotencia e de vingança.

Os antigos attentados nefandos contra os poderes constituidos e contra a forma do governo, chamados temerosamente de lesa-magestade, deixaram ha muito de ser espiados na guilhotina e na forca, contentando-se os politicos em fulminal-os com a critica de Talleyrand: «São mais do que crimes, são verdadeiros erros!»

Posto isto, vejamos qual é o estado da mentalidade portugueza afferido pelo criterio que ella applica ao julgamento dos crimes e ás respectivas sancções penaes.


Deram-se ultimamente dois casos profundamente caracteristicos: o caso de Joanna Pereira e o caso do parocho de Travanca de Lagos.

No caso de Joanna Pereira vemos tres réos confessos e convictos de tres crimes: Joanna, de adulterio; Carlos, de tentativa contra o pudor por meio da chlorophormisação; o carroceiro, da remoção de um cadaver; todos tres cumplices e conniventes no crime de cada um.

Como procede a sociedade? Não tomando conhecimento de nenhum d'estes attentados e despedindo os reos em paz!

No caso do parocho de Travanca de Lagos, o reo é accusado de ter falsificado uma certidão de edade para o fim de salvar um mancebo do recrutamento militar. Como precede a sociadade? Condemnando o parocho a oito annos de degredo para a costa ds Africa!

O primeiro caso é um triplice attentado contra a ordem social. A sociedade não só o não pune mas nem sequer o julga.

O segundo é uma contravenção de um regulamento administrativo. A sociedade não só o julga mas pune-o com uma das maximas penas do codigo.


Não analysamos o procedimento havido com Joanna Pereira e os seus co-reos. Pomol-o simplesmente em parallelo com o procedimento havido com o parocho de Travanca de Lagos, e dizemos que a condemnação d'este é uma iniquiedade monstruosa.

O crime do que é accusado o padre, condemnado por havel-o commettido a oito annos de degredo, é crime unicamente perante a letra de um regulamento de caracter não só transitorio mas arbitrario—o regulamento do serviço militar.

O parocho foi condemnado por tentar salvar do serviço um recruta. Alterar um numero, escrever um algarismo por outro, só póde involver intenção criminosa quando d'esse acto proceda uma offensa de interesses. Viciar a data de uma letra ou de um contrato é indubitavelmente um grave crime, porque offende o interesse do commercio, ou o da industria, ou o da propriedade. Mas alterar a data de uma certidão de baptismo, para o facto de isemptar do serviço militar um cidadão, não é offender um interesse social; é o contrario d'isso: é servir o interesse que todas as sociedades teem em que deixe de haver militares.


O crime, no estado de pura tentativa, pelo qual o padre foi julgado o punido com degredo de oito annos, se se chegasse a realisar e se estendesse do caso particular de uma freguezia do reino a todos os casos analogos na Europa inteira, seria o mais assignalado dos beneficios á civilisação e á humanidade. Daria em resultado a eliminação do militarismo e da guerra.

Os crimes pelos quaes Joanna Pereira e os seus collaboradores não foram punidos nem julgados, se se estendessem da casa da travessa da Oliveira ao resto da sociedade, dariam os seguintes effeitos:

Os cadavares seriam propriedade dos carroceiros, o que acabaria, de uma vez para sempre, com o uso dos cemiterios e com a pratica de enterrar os mortos.

Os Antonys teriam ao abrigo das leis, um desenlace inoffensivo para todos os seus dramas: Resistia-me, chlorophormisei-a!

Finalmente, para o facto da selecção da especie, os maridos seriam substituidos pelos mestres de piano dados ao abuso das bebidas alcoolicas—o que tornaria o casamento inutil e a familia impossivel, convertendo aos pianos, reforçados pela aguardente, nos unicos instrumentos da perpetuidade da raça.


Expondo simplesmente os dois casos referidos e o modo como a sociedade os resolveu, achamos inutil accrescentar commentarios, e fazemos unicamente á sociedade os nossos cumprimentos.


Por occasião de se discutir no parlamento a reforma da instrucção primaria o digno par sr. Vaz Preto Geraldes votou contra a adopção da gymnastica nas escolas de raparigas, enunciando a opinião de que a gymnastica tinha um caracter immoral.

S. ex.ª parece receiar que uma vez introduzida a gymnastica nos costumes do sexo feminino, as senhoras portuguezas comecem a estar nos bailes com pesos suspensos da bocca e a passearem no Chiado apoiadas sobre as mãos e de pernas para o ar. Isto effectivamente não seria bem visto. E comprehendemos que s. ex.ª sinta uma certa porção de rubor pensando que ao dirigir n'um salão as suas homenagens a uma dama esta poderá vir um dia a retribuir os cumprimentos de s. ex.ª aferrando-o pelos rins e obrigando-o a revirar duas vezes as pernas por cima da cabeça no espaço que medeia entre o tapete e o lustre.

Cremos porém que os receios do sr. Manuel Vaz Preto procedem mais directamente de um nobre desdem votado por s. ex.ª a algumas habilidades da feira das Amoreiras do que propriamente do conhecimento cabal que s. ex.ª tenha da coisa que fóra das feiras se não chama a sorte de forças mas sim mais modestamente—a hygiene do movimento no corpo humano.


Um illustre medico allemão, o doutor Schreber, director do instituto orthopedico de Leipzig, e como tal perito no estudo das deformações do nosso esqueleto, affirma que grande parte das viciações na configuração dos ossos da bacia, viciações que inhabilitam muitas mulheres de serem mães, proveem dos habitos sedentarios que as raparigas contraem na escola e que só podem ser corrigidos na infancia pelos exercicios racionaes da gymnastica. Ora quer-nos parecer que qualquer mulher poderá chegar a ter bem conformados os ossos da bacia sem o sr. Vaz Preto correr um risco eminente de que essa mulher tome a bocca do estomago de s. ex.ª para alvo das suas predilecções pelo pugilato athletico.


O mesmo doutor Schreber assevera que é indispensavel introduzir o uso da gymnastica nas aulas do sexo feminino se se quizer evitar que muitas mulheres padeçam um desvio pathologico da columna vertebral extremamente frequente e resultante da posição forçada em que as raparigas se conservam durante as horas do trabalho nas escolas. Repugna-nos acreditar que o sexo feminino, que se destina a fazer a prancha em sociedade tomando para ponto de apoio o ventre do sr. Vaz Preto, esteja à espera de que lhe endireitem a espinha para passar immediatamente depois a operar sobre a região abdominal de s. ex.ª as experiencias dynamometricas, cuja perspectiva lança no animo pudibundo do digno procere um tão ligitimo horror.


A physiologia moderna tem mostrado que a saude não é mais que o justo e perfeito equilibrio das differentes forças inherentes ao nosso organismo. A hygiene tem provado com muitas observações e fundada nas mais repetidas experiencias que o excercicio regular e methodico de todos os nossos membros e de todos os nossos orgãos é o unico meio de manter o equilibrio a que acima nos referimos. A systematisação d'esse exercicio regular e methodico chama-se gymnastica.

Da saude do corpo precede solidariamente a saude do espirito. Sabe-se hoje que todo o acto intellectual depende de uma dada circulação do sangue atravez da rede dos nervos encephalicos.

Os medicos alienistas e todos os que teem estudado attentamente os phenomenos mentaes attestam que a estupidez, o talento, o genio, a loucura são outros tantos resultados do modo como o sangue circula, com mais ou menos vivacidade, mais ou menos abundantemente, no cerebro. Um apparelho do doutor Mosso, intitulado o plethysmographo, apparelho de que a psychologia experimental tem tirado as mais importantes revelações, demonstra que existem estreitas e precisas relações de causa para effeito entre as variações da circulação e os differentes graus de actividade cerebral. A abolição da memoria, a perversão das sensações, todos os casos de nevropathia cerebral são resultantes de uma falta de cadencia na vibração dos centros sensitivos causada por um embaraço da circulação sanguinea no encephalo. Na Italia estão-se curando as alienações mentaes pela transfusão do sangue. O medico Ponza, do Grande Hospital, e o doutor Rodolfi, do asylso de Brescia, relatam muitos casos de cura de alienados pela transfusão hypodermica.

Pois bem: o meio efficaz de que a hygiene dispõe para activar e regularisar a circulação, de tanta importancia para a actividade central, é a gymnastica.

O celebre hygienista Lacassagne diz: «Um exercicio muscular geral, feito em boas condições, produz os effeitos de uma transfusão de sangue.»


Ha estados morbidos cuja localisação no organismo escapa muitas vezes á indagação e á sagacidade dos clinicos. Está-se doente sem haver apparentemente perturbação alguma nas funcções physiologcas. O symptoma, frequentemente despercebido, d'esse deperecimento vital consiste na diminuição do noso peso com relação á unidade do nosso volume. A mais segura medida da saude é a densidade do corpo. Ha algum regimen proprio para tornar mais denso o corpo humano? Ha. É o regimen da gymnastica. O doutor Burq, seguindo durante seis mezes os exercicios da escola de gymnastica militar da Faisanderie, em França, constatou, pelas observações feitas dia a dia sobre os alumnos, que a gymnastica tem por effeito augmentar o peso e diminuir o volume, isto é acrescentar a densidade de 6 até 15% dentro dos primeiros tres ou quatro mezes de exercicio.


Em um paiz onde a tisica faz tão grande numero de victimas como em Portugal, é util accrescentar ainda que uma das propriedades da gymnastica é desenvolver a caixa toraxica e augmentar de 1/6 pela media a capacidade pulmonar, como foi verificado no dynamometro pelo mesmo doutor Burq.


A força muscular augmenta, como a capacidade pulmonar e como a densidade, n'uma proporção de 15% nos quatro primeiros mezes dos exercicios gymnasticos.


A hygiene de musculatura é um facto de primeira importancia para a saude desde que pelas experiencias de Claude Bernard sobre as propriedades dos tecidos vivos se reconheccu que a séde principal da combustão respiratoria é o musculo. Os differentes estados do musculo influem directamente na composição do sangue. O exercicio é portanto um poderoso modificador do sangue e como tal actúa em todas as forças do nosso organismo. Mas não ha senão uma especie de exercicio com propriedades hygienicas e therapeuticas: esse exercicio é a gymnastica.


Pedimos ao sr. Manuel Vaz Preto que nos faça o obsequio de considerar que só é um agente da saude o exercicio geral, regular e methodico, que constitue a gymnastica dos movimentos, chamada a gymnastica allemã. O doutor Sebreber demonstra que a unica occupação que sujeita quem a exerce a um exercicio inteiramente harmonico, é a occupação da jardinagem. Todo aquelle que não for jardineiro tem de appellar para um methodo especial de movimentos artificiaes que ponham no devido equilibrio as acquisições e os dispendios de cada um dos seus orgãos.


Taes são, resumidamente expostas, algumas das razões que militam em favor da gymnastica. Em contraposição a estes argumentos não sabemos senão de um: o pejo do sr. Vaz Preto. Dirigimos a s.ex.ª os nossos rogos mais fervorosos para que s.ex.ª não core diante da gymnastica, impedindo assim o paiz de pôr em pratica o melhor meio de regenerar a sua constituição atrophiada, de endireirar a espinha, de desenvolver os ossos, de activar as faculdades intellectuaes, de enriquecer o sangue, de reagir contra a hypocondria e contra a preguiça, contra a atonia dos nervos e dos musculos, contra a anemia, contra a chlorose, contra a gotta, contra as affecções pulmonares, contra as escrophulas, contra a obesidade e contra a idiotismo.


Muitos dignos pares, em cujo numero pedimos licença para incluir o mesmo sr. Vaz Preto, estão contaminados por enfermidades que a gynmastica previne e corrige. De modo que uma boa administração pedia que gymnastica não só fosse decretada para as escolas mas tambem para as duas casas do parlamento.

Nas escolas americanas, em muitas escolas inglezas, allemãs, suecas, os exercicios intellectuaes interrompem-se umas poucas de vezes por dia para darem logar aos movimentos gymnasticos executados em commum por todos os alumnos. Uma recente estatistica, feita na Inglaterra, prova quanto estes exercicios são uteis não só ao desenvolvimento physico mas ao desenvolvimento intellectual, mostrando-nos que nas escolas em que se introduziu a gymnastica os alumnos aprendem mais e em menos tempo do que n'aquellas em que a gymnastica não existe.

Na reforma da camara dos dignos pares, ultimamente convertida em lei, esqueceu uma disposição—precisamente a unica que teria alcance—um artigo que obrigasse ss.ex.'as a interromperem, por duas ou tres vezes em cada sessão, as suas locubrações legislativas, para fazerem gymnastica ao som de um orgão, como nas escolas americanas.

O mesmo sr. presidente o nobre duque de Avila e Bolama deveria ser obrigado sob penas tremendas, a tomar parte n'estes exercicios. Por que—digamol-o francamente—o que é o cachenez do nobre duque presidente senão o mais afflictivo dos casos pathologicos: o symptoma mais caracteristico de que s.ex.ª não tem gymnastica nos musculos do pescoço e nos que revestem o seu apparelho respiratorio? Em mome da felicidade do paiz, que tão estreitamente depende da preciosa saude do nobre duque, s.ex.ª deveria ser obrigado—obrigado a ferros, em nome d'el-rei—a suspender em cada dia os trabalhos parlamentares, a erguer-se magestosamente da sua cadeira, a tirar a sua gravata, a desabotoar o seu colleirinho e os seus suspensorios, e a proceder aos seguintes movimentos:

Voltar vigorosamente a cabeça para a direita e para a esquerda (100 vezes); fazer girar o pescoço, na sua maxima flexão, sobre o peito e sobre as espaduas (200 vezes); subir e descer energicamente os hombros (100 vezes); fazer o movimento de quem mede braças (100 vezes); tomar fortes e profundas aspirações de ar (25 vezes). Depois do quê, s.ex.ª reporia a sua gravata, abeooaria os seus suspensorios e recomeçaria a meditar sobre a felicidade da patria.

No mesmo sr. Vaz Preto o que é verdadeiramente a revolta do seu pudor perante a adopção da gymnastica nas escolas senão o indicio de uma lesão mental concomitante e até certo ponto compensadora da obesidade? Pois não é sabido que jámais a excessiva nutrição deixa de ser acompanhada reflexamente pela excessiva pudicicia? Conviria portanto que, emquanto o sr. duque de Avila curasse o seu cache-nez por meio dos excercicios indicados, o sr. Vaz Preto medicasse o seu pejo com os exercicios seguintes:

Massagens no abdomen (5 minutos): acocorar-se (100 vezes); dobrar e tronco rotatoriamente sobre o estomago, sobre os quadris e sobre o rim (50 vezes); levantar cada uma das pernas para diante e para traz até o limite da sua elasticidade (50 vezes); fazer o movimento analogo ao de quem racha lenha (25 vezes); trotar no mesmo terreno (15 minutos). Depois do quê, s. ex.ª revestiria ameaçadoramente as suas calças e continuaria a demolir com a sua facundia a politica do gabinete.


Se porém a todas estas considerações for insensivel o sr. Vaz Preto, n'esse caso a sciencia, continuando a affirmar a importancia social da gymnastica, tem de usar com o pudor de s. ex.ª um expediente extremo: Velar-lhe a face!


A Nação publicou um telegramma de Lourdes, em que se lhe diz: O padre cego já vê, a paralytica já anda.


Parece impossivel que uma folha religiosa como a Nação désse cabimento nas suas columnas um milagre tão miseravel, tão safado, tão reles como esse! Com effeito! foi então para isso, para esse milagrotesito de cácárácá, para dar vista aos cegos e para fazer andar os paralyticos, foi para essa insignificancia, para essa miseria, para essa sovinice, que a sr.ª condessa de Sarmento organisou a sua romagem, que andou a reunir os padres cegos e as sujeitas paralyticas, e que unicamente para os fazer ver e para os fazer andar os levou tão longe?! ... Ora muito obrigado! muito obrigado pelo seu favor!

A sr.ª condessa de Sarmento e todos os devotos e devotas que collaboráram com s.ex.ª na bonita obra da peregrinação teem obrigação restricta de abrirem immediatamente uma subscripção para o fim de indemnisarem o padre ex-cego e a mulher ex-paralytica do incommodo que lhes deram. Porque nós—e a Nação bem o sabe!—nós temos devoções locaes, temos devoções ahi da Baixa, que nos affirmam e affiançam, sob a auctoridade dos padres e dos pontifices, exactamente os mesmos resultados obtidos pela romagem.

Pois quê! A agua de Lourdes ao pé da bica, na propria gruta, por conta e na presença da santa, não ha de dar mais effeitos no consumidor do que a agua de Lourdes exportada, expedida ao extrangeiro em vasilhas quantas vezes impuras, quantas vezes com más rolhas?!

Não vimos nós ahi, ha dois annos, na Santa Casa da Misericordia, uma enferma paralytica, a qual desfechou a andar com a mesma facilidade com que anda a roda da mesma Santa Casa logo quo lhe chapinharam os membroa locomotores com agua das latas?!

E a pobresinha de Christo desencaminhada pela sr.ª condessa do Sarmento para se metter ás estradas e para ir por ahi fóra em braços até Lourdes, chega lá e não obtem mais nada senão o que obteve a outra sem sair do largo de S. Roque?

E ainda ousam dizer-nos—o que não póde ser senão por escarneo—que ella andou!? Olha a grande façanha—andar! Mas, senhores, tendo tido trabalho de ir a Lourdes, o que essa mulher devia fazer, pelo menos, era correr, correr a sete pés, e trazer de lá para esse fim cinco pernas a maior do que as que levou!

Outro tanto temos que dizer do cego. Unicamente para ver pelos olhos lesos, sem ir mais longe, tinha ahi o sr. Mascaró que lhe fazia o milagre no olho de cada lado n'um abrir e fechar do olho do lado opposto. Em Lourdes seria preciso, para sustentar os creditos da agua na sua devida altura, que o homem não só principiasse a ver pelos olhos mas que visse tambem por outros membros.

Isso então já valeria mais a pena de se contar, e comprehenderiamos que a Nação o publicasse em telegramma: «O padre cego appareceu-lhe um olho em cada buraco do nariz e está-lhe a vir outro na cova do ladrão, pelo qual já lê as suas rezas de costas na cama com o breviario por baixo do travesseiro. A paralytica já deitou seis pernas novas e está com dois grandes furunculos nos hombros: suppõe-se que sejam as azas a romper. Quando se lhe espremem os carnições bota pennas. Infinitos louvores sejam dados a Deus Nosso Senhor porque pela côr dos voadouros vemos que a paralytica nos sae pedrez!»

Isso, sim senhor, isso seria um soffrivel milagre, ainda que de segunda ordem, porque os ha muitos maiores.


Da virtude dos escapularios, por exemplo, contam-se e authenticam-se coisas ao pé das quaes tudo quanto a agua de Lourdes tem feito é zero.

O escapulario preserva o fiel de todos os males, preserva-o das doenças, das pestes, dos perigos da agua, dos incendios, do raio, das quedas, das balas, das sovas, etc. De tudo isto ha provas que não podemos pôr em duvida. No livro intitulado Virtude miraculosa do Escapulario demonstrada por casos de proteção, de conversao e de curas miraculosas, pelo revd.º padre Hugnet—Saint-Dizer, Paris, Lyon, Bruxelles et Anvers, 1869, todas essas virtudes se acham confirmadas com muitos exemplos.

Pessoas que caem do alto de enormes torres ficam intactas: nem um botão dos suspensorios lhes rebenta, e se estavam lendo o seu jornal no alto das torres, como algumas vezes succede, veem lendo n'elle pelo ar emquanto caem e continúam a leitura em baixo, traçando a perna n'um estado do satisfação ineffavel.

O sr. A. de L ..., tendo entrado na insurreição do Var, com um escapulario ao pescoço, recebe vinte e nove tiros, apparecem-lhe no fato os vinte e nove furos das vinte e nove balas: elle no entanto fica illeso. «Não nos foi possivel matal-o: tivemos de desistir!» disse por essa occasião um gendarme. (Obra acima referida, pag. 21)

No auge de um pavoroso incendio um devoto lembra-se de lançar ao meio das chammas o seu escapulario; o incendio immediatamente se extinguiu e o escapulario encontrou-se intacto. «Apenas, diz o padre Huguet na obra citada, se observou que elle cheirava um pouco a chamusco.» (Pag. 17.)

Um soldado na batalha de Novara vê cair em torno d'elle todo o regimento, elle é o unico ser que sobrevive: examina-se o soldado e acha-se-lhe um escapulario mettido na bocca e um em cada braço. (Pag. 20.)

Um desgraçado, querendo suicidar-se, lança-se ao mar quatro vezes consecutivas, sempre debalde: o mar arroja-o á praia, recusando-se obstinadamente a submergil-o. O desgraçado recorda-se então que traz ao pescoço um escapulario, e atira-se ao mar pela quinta vez, tendo deixado o escapulario em terra. Foi sómente com esta condição que o mar se resolveu a dar cabo d'elle. (Pag. 15.)

Além de livrar de todos os perigos, sem excepção, durante a vida, o escapulario livra completamente das penas eternas depois da morte.

O abbade Guglielmi, auctor do livro intitulado Collecção dos escapularios da Immaculada Conceição, do Rosario, do Carmello, etc., diz terminantemente, a pag. 231, que os demonios se queixam no inferno, pela maneira mais amarga, do grande numero de almas que lhes são arrebatadas pelos escapularios. Parece que não ha dia em que um milhão de diabos não roguem esta praga medonha:—Que nós levemos os escapularios!

As approvações pontificaes de todos os papas, desde João XXII até Pio IX, confirmam cabalmente os poderes attribuidos ao uso dos escapularios.

O escapulario do Monte Carmello tem a propriedade especial de expedir para o ceo o penitente, quaesquer que tenham sido os peccados por elle perpetrados, no primeiro sabbado seguinte ao da sua morte. Facinora que arranje a morrer com o escapulario na sexta feira á meia noite, podem os facinoras seus companheiros esperal-o no purgatorio, que o hão de ver por um oculo!

O uso do escapulario é extremamente commodo: não obriga a encargos de nenhuma especie, salva-nos independentemente da penitencia, da confissão e da communhão. Tambem não priva o penitente de qualquer prazer a que elle se queira dar n'este mundo. Assim o affirma o revd.º Guglielmi. O essencial é não o tirar nunca, nem mesmo quando voluntariamente se vae peccar: é o que mais particularmente prescreve o dito padre Guglielmi.

De todos os escapularios o que mais se recommenda á eleição dos devotos é o do Sagrado Coração de Jesus, porque este escapulario nem sequer precisa de ser benzido. Basta, para dar todas as indulgencias, que elle seja feito pelo modelo approvado pelo nosso Santo Padre Pio IX, do modo seguinte: Sobre um pequeno retalho de lã branca—retalho quadrado ou oblongo, porque sendo redondo, oval ou polygono perde a virtude—applica-se um coração de flanella encarnada, bem talhado e cosido a pesponto, de modo que imite a corôa de espinhos acompanhada de algumas gotas de sangue bordadas a seda. Áparte, em uma tirinha de panno patente, borda-se a ponto de marca, linha encarnada, a inscripção sacramental: Suspende! Está comigo o coração de Jesus!

Ora, podendo cada um em sua casa, no seio da sua familia, fazer um d'estes escapularios, deital-o ao pescoço e ficar livre, para a vida e para a morte, de todos os perigos, de todos os males; podendo cair do alto das torres, atirar-se ás voragens do fogo e do mar, e metter-se debaixo dos raios, sem mais risco do que teria deitado na sua cama, não fará a Nação o favor de nos dizer para que ha de ir um homem a cascos de rolha beber uma agua, que, segundo a mesma Nação, o mais que faz é unicamente dar vista aos cegos e movimento aos paralyticos?

Ha umas tantas coisas que a Nação até devia ter vergonha de as dizer ... O que a Nação precisava era que lhe deitassem um bom escapulario a esse pescoço, para a Nação ficar então sabendo o que são milagres! Porque a Nação não sabe o que são milagres!

Pôr o padre cego a ver e pôr a paralytica a andar não passa de uma habilidadesita mediocre, um bocadito de geito!

Vir á feira unicamente com uma porcaria d'essas parece mesmo de proposito para fazer perder á gente o gosto pelas devoções ...

Emquanto a nós o que a Nação tem é o espirito maligno no corpo do jornal! Cruzes, demonio!


Ha dois mezes que os periodicos annunciam quasi quotidianamente os casos de espancamento, de ferimentos e de roubos commettidos em Lisboa e seu termo. De quando em quando a policia, para o fim de dar uma especie de satisfação á sociedade pela frequencia de tantos crimes, prende um fadista. O que temos que perguntar é: Porque se não prendem os fadistas todos?


Em cidade nenhuma do mundo existe uma palavra de significação analoga a esta—o fadista.

Ser fadista quer dizer: ser um criminoso tolerado, agremiado civilmente, constituindo uma classe. Pela sua genealogia social o fadista descende dos antigos espadachins plebeus que conquistavam, por meio de exame feito em valentia, o direito de cingirem a espada e de acompanharem com fidalgos bulhentos e tranca-ruas. No seculo passado existia ainda em toda a sua pureza esta raça de bravos de viella, sem officio nem beneficio, vivendo das esportulas da nobreza, apadrinhados por ella, frecheiros com as mulheres, soberbões e insolentes com os mesteiraes e com os mercadores, cobrindo as costas aos fidalgos nas excursões nocturnas em que estes se divertiam espancando os transeuntes, escalando os muros dos quintaes e dos conventos, desarmando as rondas e açoitando os corregedores e os esbirros ao fundo dos becos tenebrosos e adormecidos.

Entre os alludidos fidalgos figurava como grão-mestre da ordem, como capitão da ala o serenissimo senhor infante D. Francisco, preclaro irmão do senhor rei D. João V, que Deus tenha em sua santa guarda. D'esse interessantissimo principe, cujas tropelias creáram, durante um seculo, em volta das suas terras do Infantado, em Queluz, uma legenda de terror, conta-se este bello feito historico, que basta para mostrar o genero dos divertimentos da sua roda: Vendo o augusto principe nas vergas de um navio um marinheiro que o saudava, quiz o infante experimentar, por ser mui curioso de balistica, se do logar onde estava poderia alcançar com um tiro aquelle homem que lhe fazia continencia meneando alegremente o seu gorro. Fazendo em seguida a mais cuidadosa pontaria, e desfechando sobre o alvo, teve sua alteza o summo gosto de ver que o marinheiro se despegára da verga, que dobára no ar por entre as enxarceas e caíra por fim estatalado no convez varado pela bala da serenissima escopeta. Com o que o sr. infante houve um accesso de jubilo, como nunca se lhe vira, e que sua alteza houve por bem desafogar batendo as palmas e dando muitos uivos e pinchos, inequivocos signaes de uma illimitada alegria. Mais tarde, com a illuminação de Lisboa, devida ao intendente Pina Manique, e com a creação da policia moderna, cessaram os recontros, as arruaças, os combates nocturnos da fidalguia com a villanagem lisboeta. Pela razão biologica de que toda a força organica que se não exerce se elimina, o antigo valentão plebeu deixou de ter valor mas continuou a conservar o espirito da façanha, da aventura, do amor illicito, da tavolagem e da vadiice, e tomou então o nome de—fadista.

O fadista não trabalha nem possue capitaes que representem uma accumulação de trabalho anterior. Vive dos expedientes da exploração do seu proximo. Faz-se sustentar de ordinario por uma mulher publica, que elle espanca systematicamente. Não tem domicilio certo. Habita successivamente na taberna, na batota, no chinquilho, no bordel ou na esquadra da policia. Está inteiramente atrophiado pela ociosidade, pelas noitadas, pelo abuso do tabaco e do alcool. É um anemico, um covarde e um estupido. Tem tosse e tem febre; o seu peito é concavo, os braços são frageis, as pernas cambadas, as mãos finas e pallidas como as das mulberes, suadas, com as unhas crescidas, de vadio; os dedos queimados e enegrecidos pelo cigarro; a cabelleira fetida, enfarinhada de poeira e de caspa, reluzente de banha. A ferramenta do seu officio consta de uma guitarra e de um santo christo, que assim chamam technicamente a grande navalha de ponta e triplice calço na mola. É habitado por uma molestia secreta e por varios parasitas da epiderme. Um homem de constituição normal desconjuntar-lha-ia o esqueleto, arrombal-o-ia com um soco. Elle sente isso e é traiçoeiro pelo instincto do inferioridade. Não ataca de frente como o espadachim ou o pugilista, investe obliquamente, tergiversando, fugindo com o corpo, fazendo fintas com uma agilidade proveniente do seu unico exercicio muscular—as escovinhas. Não ha senão uma defesa para o modo como elle aggride: o tiro ou a bengala, quando esta seja manejada por um jogador extremamente dextro. A guitarra debaixo do braço substitue n'elle a espada á cinta, por meio da qual se acamaradavam com a nobreza os pimpões seus ascendentes do seculo XVI. É pela prenda de guitarrista que elle entra de gôrra com os fidalgos, acompanhando-os ainda hoje nas feiras, nas toiradas da Alhandra e da Aldeia Gallega, e uma ou outra vez nas ceias da Mouraria, onde depois da meia noite se vae comer o prado de desfeita, acepipe composto de bacalhau e grãos de bico polvilhados de vermelho por uma camada de colorau picante. Por effeito da tradição na orientação mental da sua classe elle procura ainda hoje como ha duzentas annos parecer-se e confundir-se pelo modo de trajar com os fidalgos ou com os que julga taes. A classe dos fidalgos que tresnoitam hoje pelas tabernas e pelos alcouces de Alfama, que são levantados bebedos dos becos mal afamados, que fallam em calão e que fazem troças no Colete Encarnado e na Perna de Pau, esta classe de fidalgos, dizemos, compõe-se hoje principalmente de jovens burguezes febricitantes, filhos de honestos lojistas ou de pacientes alfaiates, desencabrestados da rotina paterna pela educação do lyceu e do collegio nacional, escalavrados pelo alcoolismo e pelo mercurio, profundamente corrompidos, profundamente bestialisados. O fadista imita esses senhores na escolha que elles fazem dos seus trajes de pandega. Usa como elles a bota fina de tacão apiorrado ou o salto de prateleira, a calça estrangulada no joelho e apolainada até o bico do pé, a cinta, a jaleca do astrakan e o chapéo arremessado para a nuca pelo dedo pollegar, com o gesto classico do grande stylo canalha. A guitarra, seu instrumento de industria e de amor, dedilha-a elle com um desfastio impavido, deixando pender o cigarro do canto do beiço pegajoso, gretado e descaido; com um olho fechado ao fumo do tabaco e o outro aberto mas apagado, dormente, perdido no vago em uma contemplação imbecil; o tronco do corpo caído mollemente para cima do quadril; a perna encurvada com o bico do pé para fóra; o cachucho da amante reluzindo na mão pallida e suja. Tambem canta, algumas vezes, apoiando a mão na ilharga, suspendendo o cigarro nos dedos, de cabeça alta, esticando as cordoveias do pescoço e entoando as melopeias do fado, em que se descrevem crimes, toiradas, amores obscenos e devoções religiosas á Virgem Maria, com uma voz soluçada, quebrada na larynge, acompanhada da expressão physionomica de uma sentimentalidade de enxovia, pelintra e miseravel.

De resto o fadista não tem vislumbres de senso moral. Explica os seus meios de vida pelo premio tirado na cautela de pataco que lhe foi vista na algibeira cebosa do collete. Na batota concilia-se com o furto e com o roubo; na esquadra da policia concilia-se com a mentira; nas suas convivencias do bordel concilia-se com a infamia; e as condições especiaes em que ama e é amado acabam por dissolver n'elle os ultimos restos d'essa dignidade animal, para assim dizer anatomica, commum a todos os machos.


É da classe dos fadistas que saem para os tribunaes e para as cadeias os incorrigiveis da criminalidade.

A proposito do direito de punir e do modo de applicar a pena dizia recentemente ainda um escriptor inglez, fundado nas informações de um inspector de cadeias, que todos os criminosos presos se podiam dividir em tres cathegorias. A primeira cathegoria é composta de individuos que verdadeiramente não deveriam ter entrado nunca na prisão. São lançados nas garras da lei por um accidente exterior ou por uma fraqueza de juizo ou de caracter, a qual não obsta a que elles tenham uma moralidade tão sã como a de qualquer de nós. Á segunda cathegoria pertencem individuos, mais numerosos que os primeiros, sem violentas tendencias moraes ou immoraes, susceptiveis de serem dirigidos pelas circumstancias e de se tornarem bons ou maus segundo a direcção que recebam. A terceira cathegoria, de um numero de condemnados felizmente restricto, é rebelde a toda a disciplina, insensivel a toda a bondade, surda a todos os conselhos. Para estes a cadeia é um logar improrio; seria preciso confinal-os em uma ilha deserta, onde o contagio mortal do seu exemplo não fizesse novas victimas. Segundo o alludido inspector das cadeias inglezas, que tinha viajado muito e estudado attentamente todos os grandes estabelecimetos penitenciarios do mundo, o Estado não teria senão proveito que tirar da maior somma de liberdade concedida aos presos da primeira d'essas cathegorias; aos presos da segunda classe conviria principalmente dar instracção; emquanto aos terceiros o melhor expediente seria a morte.

É util reflectir n'estas palavras e considerar uma coisa:

É ou não é da classe chamada fadista que procede a maxima parte dos criminosos que passam annualmente pelo banco da Boa Hora, e cuja incorrigibilidade é em muitos d'elles attestada por varios julgamentos repetidos?

A historia do foro lisbonense nos ultimos tempos responde:

É.

N'este caso pergunta-se:

Póde a sociedade, sem incorrer em uma responsabilidade tremenda, continuar a manter pelo desleixo, a existencia legalmente tolerada de uma cathegoria de individuos que ha tres seculos pervertem profundamente os nossos costumes populares, e de cujo gremio saem os criminosos que a justiça mais difficilmente corrige e mais raramente regenera?

Não. Uma similhante tolerancia representa o mais grave dos attentados de que o Estado é cumplice perante a ordem moral. Porque, se a sociedade é irresponsavel da perversidade individual, não succede o mesmo, e a sociedade deixa de poder ser absolvida, logo que é ella que sustenta, ao abrigo das leis, a concordancia de todas as causas conhecidas e manifestas que produzem fatalmente um determinado numero de perversos.

Dado o fadista, a sociedade não póde certamente evitar o criminoso. A sociedade porém póde evitar o fadista. Do que modo? Procedendo a um inquerito rigoroso sobre a vadiagem e supprimindo, quanto antes, a instituição concomitante que a justifica e a consagra:—a loteria.

Desde que um cidadão deixe de poder explicar unicamente pelos supprimentos do jogo a posse legitima dos seus meios de subsistencia, o Estado tem o dever de o prender, não para encarcerar mas para coagir ao trabalho, matriculando-o em qualquer das officinas do governo: na cordoaria, na fabrica de polvora, no arsenal, na imprensa, etc.


O mais perigoso de todos os animaes vadios é o homem. Comparado com elle o cão, ainda quando damnado, póde-se considerar inoffensivo. E todavia a policia, que tem para o cão que ainda se não damnou as precauções da rede e da carroça, não tem para o vadio, em pleno exercicio do seu contagio, senão um expediente repressivo: o de lhe archivar a photographia no commisariado geral.

Quer a policia um bom conselho, que resume tudo? Inverta os seus meios de garantir a segurança publica: tire o retrato aos cães e deite a rede aos fadistas.


Repentinamente, inesperadamente, sem ninguem saber porque, no principio do mez passado, os poetas portuguezes dividiram-se em duas legiões contrarias, arrojáram-se encarniçadamente uns sobre os outros, esmurráram-se, esguedelháram-se, cuspiram-se na face em odes, açoitáram-se medonhamente nas carnes a golpes de alexandrinos, e viram-se de parte a parte nodoas negras da pancadaria nas regiões lombares das musas.

Mysterio sobre as causas que moveram tão crúa guerra entre duas escolas poeticas aliás tão pacatas que nem se sabia nos respectivos bairros que ellas existissem: a escola da Idéa Velha e a escola da Idéa Nova!


Os da Idéa Velha dizem que não ha nada como a idéa d'elles. E fundam-se para isto em que é uma idéa solida, experimentada, garantida.

O primeiro grande e inspirado poeta de segunda ordem que a manejou encontrou-a estirada ao comprido no seu caminho ha cerca de quarenta annos.

Ergueu-a do chão como morta, chuchada, espipada, moída pelas pégadas de duas gerações, espalmada como uma pellicula pelo piso das alimarias e pelas rodas dos vehiculos que passaram na via, sobre o macadam enlameado. O primeiro, pela ordem chronologica, dos nossos grandes e inspirados poetas de segunda ordem, pegou na Idéa Velha por uma ponta e pol-a ao alto. Soprou-a, encheu-a, attestou-a, retesou-a de novo. Depois lavou-a, catou-a, cortou-lhe as unhas, penteou-a, metteu-lhe louro fresco na fronte, poz-lhe ao peito uma bonina de cera feita na Margotot e levou-a comsigo á sociedade, onde a receberam bem. Cercáram-a varios outros não menos grandes nem menos inspirados poetas de segunda ordem do que aquelle que a levantára do chão. Andou pelo braço de um e pelo braço de outro recebendo declarações de affecto e dadivas de amor. Mão tão dedicada quão firme cravou-lhe sobre a bonina de cera feita pela Margotot uma mariposa de tarlatana com as pequenas azas abertas, em spasmo, feita no Casademund. Levaram-a aos espectaculos, ás solemnidades publicas, ás casas particulares, e por toda a parte foi acolhida com agrado. Recitou aos pianos; escreveu endeixas nos albuns; collaborou na Grinalda e no Almanach de Lembranças; dedicou versos á Lapa dos Esteios, á Stoltz e á Novello e ao funeral da senhora D. Maria II; concorreu com a sua pedrinha para o monumentosinho levantado a Ovidio e ás Graças nas notas da versão portugueza dos Fastos. Foi da Assembléa da Galocha, na rua Nova do Carmo, e do Gremio, que tomou o nome de Litterario para a receber e cujos socios affirmáram, para lhe serem agradaveis, o seu amor á lettras deitando bigode e pera. Ella penetrou finalmente nas altas regiões officiaes. Foi aos paços dos nossos reis! De quando em quando observava-se que ella começava de repente a encolher, a chupar, a fazer pregas: ia-lhe saindo o vento com que fôra insuflada pelo genio dos maiores poetas portuguezes de segunda ordem, e era tragico e aterrador o seu aspecto, qual o de uma concertina que se fecha. Mas n'estes casos afflictivos vinha o canudo da publica opinião, e todos sopravam para dentro novo ar pelo dito canudo á Idéa Velha. O poder moderador, com a sua real corôa na cabeça e o seu real manto ás costas, era o primeiro a soprar, bochechudo, vermelho, heroico. Seguiam-se por ordem hierarchica os grandes do reino, alguns dos quaes, achando-se tão chupados e tão desfallecidos como a propria idéa que eram chamados a revificar com o seu alento, sorviam-a em vez de a bufar, e retiravam-se mais turgidos, mais tesos, mais grandiosos. Vinham depois as classes medias, que com a sentimentalidade que as caracterisa, choravam de ternura olhando para a fidalguia nobremente enfunados nos seus uniformes e lembrando-se de que ellas, miseras classes medias, tinham tido a honra de bufar à mesma idéa e pelo mesmo canudo que servira á primeira fidalguia d'estes reinos e ao augusto chefe do estado. O povo queria tambem soprar, mas os lojistas da Assembléa da Galocha e os empregados publicos do Gremio não o permitiam, e torcendo altivamente o bico das peras, diziam que a Idéa se não se podia pôr á mercê da populaça infrene e ignara. Vivendo assim á custa do sopro dos poderes legalmente constituidos e da burguezia, protegida pelos partidos conservadores e pela municipal, defendida pelos criticos do botequim do Martinho e pelos philosophos da carta constitucional da monarchia, a Idéa, definitivamente consagrada pelo applauso das grandes massas, deu entrada na Academia e no Instituto de Coimbra. Botaram-lhe ao pescoço a condecoração do lagarto. O sr. Mendes Leal votou-lhe a theorba, ajoelhou-se-lhe aos pés e propoz-lhe leval-a ás aras de Hymenen; ella porém, habituada a ser de todo o mundo, recusou a chamma ardente mas exclusiva do vate. Este, de pura dôr, pregou na parede um prego e suspendeu n'elle, por um laço de crepe, a theorba emmudecida e viuva.

Nos ultimos annos a Idéa Velha desapparecera do bulicio do seculo e da communicação das gentes. Julgavam-a uns no Asylo, outros no Aljube. Algumas pessoas devotas tinham-lhe já resado por alma. Soube-se agora, com grande satisfação dos que a conheceram no galarim, que a Idéa Velha ainda está viva e que se occupa em andar a dias pelas casas particulares onde não ha outra idéa de dentro para o serviço da familia.


Os da Idéa Nova teem esta falha notavel: suppõem que a Idéa velha vigora, que domina, que reina ainda, que governa a consciencia humana, que prepondera nos destinos do mundo, E vêem-se moços honestos e engraçados, assumindo uma seriedade que faz arripiar os cabellos aos pathologistas, dispenderem o seu nervosismo precioso a combaterem, como se fosse uma força da natureza ou uma corrente da sociedade, aquillo que ha meio seculo não passa do um artificio convencional e de uma superfetação litteraria da banalidade e da insipidez ociosa, sem pega em nenhum dos interesses do espirito ou do coração do homem no tempo presente.


O Primo Bazilio, novo romance de Eça de Queiroz, é um phenomeno artistico revestindo um caso pathologico. Para bem se comprehender esta obra é preciso discriminar o que n'ella pertence á jurisdicção da arte e o que pertence aos dominios da pathologia social.


Eis a doença que este livro accusa:—A dissolução dos costumes burguezes.

O mais caracteristico symptoma d'esse mal é a falsa educação. A educação burgueza tem um defeito fundamental: mantém na mulher a mais terrivel, a mais perigosa de todas as fraquezas, Esta fraqueza consiste no seguinte: No fundo mais intimo e mais secreto da sua existencia de artificio e de apparato a burgueza sente-se conscienciosamente mesquinha e reles. Vamos ver porquê.

Porque na burguezia, na burguezia de Lisboa principalmente, ha uma desharmonia medonha, um contraste assombroso de desequilibrio entre a representação da vida exterior e o systema da vida intima.

Basta olhar de fóra para as casas, basta considerar o aspecto exterior do templo para se fazer uma idéa do que póde ser dentro o culto d'essa religião—a familia!

Comparem-se as nossas edificações urbanas, os casarões da baixa—rectangulares, batidos pelo sol mais ardente e pelos ventos mais asperos, desguarnecidos de venezianas, chatos, uniformes, rasos de toda a saliencia, de todo o ornato, como casernas ou como cadeias—com as graciosas construcções arabes da Andaluzia ou da Estremadura hispanhola, com o seu claustro interior, o poço de marmore ao centro do pateo, as galerias concentricas vestidas de trepadeiras em flor, abrindo sobre o pequeno jardim, que é o coração da casa. Comparem-se com as sabias edificações modernas do norte da Europa, da Inglaterra, da Allemanha, da Hollanda, da Dinamarca. Ponha-se a fachada de qualquer dos nossos predios do bairro central de Lisboa ao pé dos novos predios de esquina de rua no Hanover. As novas casas allemãs no stylo gothico francez, modificado segundo as exigencias da civilisação moderna, são obras primas de arte, inspiradas pela mais exacta comprehensão da hygiene, da moral, da estetica; são verdadeiros instrumentos auxiliares do melhor systema de educação. Construidos exteriormente de tijolos de tres côres, branca, côr de rosa e preta, ornados de pequenos eirados, de terraços cercados de hera, de estufas, de logettes, de aviarios em que se cantam os passaros, de balcões em que desabrocham as flores sempre frescas, esses predios, que teem a attractiva frescura exterior de outros tantos ramalhetes, são interiormente distribuidos do modo mais elegante, mais digno, mais acommodado aos deveres, aos respeitos, aos nobres prazeres da familia. A disposição mais escrupulosamente estudada do salão, da biblioteca, da casa de trabalho, da copa, do jardim, de todos os compartimentos interiores da risonha colmeia penetrada de boa luz e bom ar, permitte ás mulheres o saudavel prazer de girar na casa, activamente, n'uma grande variedade de aspectos pittorescos e alegres.

As casas do centro do Lisboa, de uma uniformidade cellular monotona, parada como um olhar idiota, sem pateo, sem uma arvore, sem uma folha de verdura fresca e palpitante, tendo por amago o saguão sombrio e infecto, com a ultrajante pia no interior da cozinha ao lado do fogão por baixo das caçarolas, com alcovas sem luz, enodoadas pelas manchas dos canos rotos, inficionadas pelo cheiro nauseabundo do petroleo e da alfazema queimada, são os sepulchros da saude e da alegria.

É n'essa serie de prateleiras, de gavetões de familias, que se chamam os Arruamentos da Baixa, que é educada a lisboeta.

Uma senhora franceza, tendo viajado em toda a Europa e visitando recentemente Lisboa, communicava-nos esta profunda observação:

«Noto um facto que me enche de perturbação e de horror—n'esta cidade não ha creanças.»

Quizemos convencer do contrario essa senhora. Era em um dos primeiros bellos dias da presente primavera, de uma grande amenidade luminosa e balsamica, tinham chegado as andorinhas e as borboletas côr de palha, desabotoavam-se as rosas da Alexandria, appetecia desentorpecer os musculos na elasticidade de um bom exercicio, ouvir a agua, ver os musgos, passeiar ao sol. Fomos ao jardim da Estrella, ao da Patriarchal, ao de S. Pedro de Alcantara, ao do Campo de Sant'Anna, aos squares do largo de Camões, da praça das Flores, do Aterro: lá encontramos effectivamente um pouco de sol, alguma relva, alguma agua, mas não encontramos uma unica creança, a cuja saude sua mãe se tivesse sacrificado por uma hora, abandonando n'esse breve espaço de tempo a sua preoccupação de magnificencia e vindo simplesmente com o seu trabalho ou com a sua leitura, de uma d'essas arvores, fazer crescer ao ar livre o seu filho, preparado para esse effeito com um bom banho e com um bibe fresco.

Nos dias de bom tempo, emquanto a maioria das senhoras de Lisboa frequentam as lojas ou fazem visitas, onde é que estão as creanças? As creança estão dentro das casas que acima descrevemos—a tomarem proposito. Tomar proposito é uma locução essencialmente local e intraduzivel, que quer dizer: aprender a não saber andar, a não saber rir, a estar quieto e a estar calado, a corromper os mais nobres instinctos da natureza humana, finalmente a dissimular e a mentir. A menina só principia a sair de casa depois de ter tomado o proposito indispensavel para não tagarellar imprudentemente, para não contar que houve favas para o jantar ou que o papá ralhou com a mamã. Haver favas para o jantar e ralharem o papá e a mamã é de resto tudo ou quasi tudo quanto se passa em casa, porque não ha interesses de espirito, nem ha instructivas occupações praticas. Falta o jardim, a grande escola da infancia onde os rapazes formam o caracter trepando ao alto das arvores, e as raparigas mondando os canteiros e protegendo os insectos e as flores. Tambem não ha biblioteca. Leem-se apenas as bisbilhotices do jornal e os romances das traducções baratas. Nenhuma especie de estudo. Nenhuma applicação intellectual. Ignorancia absoluta de todas as coisas da natureza e da vida. Aos sete annos a menina vae para o collegio, onde aprende o francez e o inglez. Esta educação completa-se em casa ensinando-se-lhe a tocar piano. Todas as prendas da sua educação são appendices de sua toilette: uma bonita letra, uma bonita pronuncia das linguas, e a phantasia, o bonito trecho de salão tocado no piano diante das visitas. Que sabe ella da arte, da sua natureza, da sua funcção sobre o nosso espirito? Que livros leu proprios para lhe suggerirem um alto ideal, para lhe darem o criterio artistico? Leu os jornaes noticiosos e as revistas de modas, os romances de Ponson du Terrail, de Xavier de Montepin, de Bellot, de Dumas filho. Não leu ou não entendeu nunca nenhum dos grandes educadores do espirito moderno, Michelet, Dickens, Andersen, Froebel.

Não a interessa nenhum dos phenomenos da natureza, porque ignora completamente as leis que regem o universo e que determinam esses phenomenos.

Não a distraem os interessantes cuidados do ménage, porque da casa, assim como da arte, assim como da natureza, o que aprendeu ella? Sem nenhumas noções da hygiene, nem da chimica alimentar, nem da historia das sciencias e das industrias que fornecem os instrumentos da actividade ou do conforto domestico, os graves arranjos da casa, tão moralisadores e tão attractivos, teem para ella o caracter de um mister gnobil, desprezível, adjudicado, com toda a porcaria que constitue a essencia da cozinha nacional, á discrição de uma criadagem villã, que retribue o desprezo de que é objeto traindo, maldizendo e roubando. Da casa o que ella sabe unicamente é que ha duas ou tres salas de apparato que se mostram ás pessoas de fóra; um quarto mais ou menos infecto, uma possilgueirinha mobilada pelo Gardé, em que ella dorme até ás dez ou onze horas; um criado que furta nas compras; uma cozinheira que dá respostadas; e uma latrina contendo um fogão em que por meio de varias borundangas cabalisticas e secretas consta que se fabrica a sopa.

Na religião ella padece os mesmos descontentamentos vagos e confusos que a humilham na vida social. Devota, appetece as altas penitencias elegantes: as romagens á fonte de Lourdes; a oração em frente da gruta no meio de velhas princezas romanescas e beatas; os jubileus em S. Pedro de Roma; a contricção aos pés do summo pontifice, coberta de renda preta, entre os peregrinos da mais pura aristocracia, misturando ao fumo do incenso o perfume lascivo e penetrante do opoponax, emquanto os orgãos soluçam e o sol coado pelas vidraças coloridas se espelha nas couraças dos bellos guardas de bigodes torcidos e espadas desembainhadas. Presta ainda bastante consideração ás interessantes ceremonias da elegante religião nacional, como a do Mez de Maria na bonita igreja de S. Luiz, enramilhetada de brancas açucenas, fresquinha e graciosa, similhante a uma bombonière, ou como a da Semana Santa nos Inglezinhos, a cuja petite entrée destinada aos intimos rodam os coupés magnificos da piedade escolhida.

Mas pelo Deus da sua convivencia habitual, pelo pobre Deus de gesso do seu bènitier barato; pelo Deus da procissão do Carmo e da procissão da Saude, servido por padres barrigudos e oleosos, com as voltas sujas, arrotando mofetos atraz dos andores; por esse Deus um tanto caturra, um tanto carola, pelo Deus da Baixa em fim, ella não tem senão duvida ou desdem.

Na moral as suas convicções baseiam-se em uma serie de principios theoricos, que ella viu sempre ou quasi sempre refutadas por uma serie contradictoria de interesses praticos, tirando esta conclusão: que o dever consiste na mais habil combinação que se possa fazer d'essas theorias e d'esses interesses para o fim de chegar a este ultimo resultado, ao qual tendem solidariamente todas as fraquezas das sociedades corruptas:—o socego.

Aos dezessete ou dezoito annos ella entra no mundo, isto é, principia a ir aos bailes, a frequentar o theatro, a ler romances, a conversar com os homens. Percebe então vagamente que ha em alguma outra parte, n'outra região social, em outro bairro ou em outro paiz talvez, um mundo diverso do seu pequeno mundo insipido, ordinario, estupido: que nem todas as raparigas vivem como ella, pura boneca, no interesse exclusivo da moda e da toilette; com uma cabeça ôca; n'um quarto que não cheira bem; tendo um pae, automato de secretaria, de carteira ou de balcão, que pensa pela cabeça de um jornal barato e mal feito, e uma mãe que se enfastia medonhamente na sua bata e na sua ociosidade de cerebro, em revolta cntra o destroço dos annos e contra o preço crescente dos generos alimenticios, ralhando habitualmente com as criadas, ralhando com o aguadeiro, ralhando com o marido.

Principia então a causar-lhe um tedio profundo, nauseante, a sua vida domestica: a casa de aluguel de que muda de anno em anno; o seu pequeno quarto sem tradições, sem historia, como o de uma estalagem; o saguão infecto, onde zumbem no verão as grandes moscas gordas e pesadas; a cozinha escura como uma exovia, deixando pender em esphacelamento as caçarolas gordurosas e as louças esbotenadas; a sala pretenciosa e inutil com os moveis angulosos e perfilados, o tapete com dois cavallos arabes defronte do sofá, a lythographia da mulher que sorri, o album dos retratos dos parentes com o seu ar endomingueirado e palerma, as flores de papel, as missangas, e o globo de vidro azul pendente de um cordão no meio dos cortinados.

Ella tem um secreto ideal de grande elegancia, de alta distincção decorativa, o que quer que seja de superfino, de requintado, de exotico, similhante ao que viu no theatro ou ao que leu em um romance de Feuillet. E julga-se superior, predestinada para uma existencia mais nobre, incomprehendida no seu meio, que a envergonha. E nunca se refere á sua vida intima sem mentir. Mente ridiculamente a respeito das coisas mais simples, mais triviaes, e é para se dar um aspecto superior, para se encobrir do que é, que ella assim mente. Mente do modo mais miseravel a respeito dos criados que não tem, das visitas que não faz, da opera que não viu, dos livros que não lê, da modista a que não vae, dos banhos que não toma, dos jantares que não come, das dignidades, das distincções ou do luxo que não usa.

Casada, procura finalmente realisar os seus sonhos de leitora de romances e de frequentadora dos dramas do theatro de D. Maria. Mas não lhe sae o que quer: não sabe organisar aprazivelmente a casa, não sabe tornar encantadora a familia.

Humilhada, infeliz, começa a descorçoar a pouco e pouco da sua predestinação superior. Sente que ha na sua constituição moral uma falha da qual resulta o desequilibrio dos seus actos com as suas aspirações. Não se acha firme na posse da existencia. Falta-lhe essa tranquilla e serena harmonia que se chama a perfeita dignidade e que é o resultado da perfeita educação.

Se n'esse estado de espirito um homem que ella tenha por eminentemente superior a notar e a seguir, por pouco que esse homem conheça o facil processo de revigorar uma abatida vaidade romantica, ella cairá com uma simplicidade tragica.

O homem superior, segundo o criterio da mulher em taes condições, é o dandy. Porque o dandysmo é a unica fórma sob a qual a distincção se lhe apresenta como uma coisa perceptivel. O cerebro mais provido do nobres pensamentos terá para ella menos seducções do que uma cabeça bem penteada, de cabellos espessos, annellados, separados nitidamente por uma fina risca côr de rosa, perfumada de fresco. Nenhum encanto de espirito, nenhuma delicadeza de coração, nenhuma virtude de caracter exercerá sobre a imaginaçãoo d'ella a fascinação com que a subjuga a alta elegancia authenticada aos seus olhos pelo crevetismo precioso. O seu homem superior, o seu homem irresistivel, o seu homem fatal, será aquelle que usar no seu banho a mais fina perfumaria, o que houver jantado nos mais celebres restaurantes do boulevard, o que se vestir e se calçar nos primeiros fornecedores da Europa, o que mais se tiver desgastado do musculos e do cerebro nos altos vicios, o que mais segredos tiver para contar das suas intimidades no mundo especial cujas mulheres consomem por dia cem ou duzentos luizes em foie gras, em Champagne Clicot, e em Cold-creame.

Se um tal homem, seccado, aborrecido, verdadeiramente estoirado nos refinamentos da sensualidade, habituado a raspar os seus sapatos nos tapetes de Smyrna dos boudoirs forrados de setim, envoltos em renda de França, mobilados de sandalo fosco esculpido, cheirando ás penetrantes essencias de Lubin e á febre mal dissipada das devoradoras noitadas; se um tal homem, dizemos, se ajoelhar um dia aos pés d'ella, para lhe dizer obscenidades ao ouvido, as mesmas obscenidades que dizia ás outras, amando-a finalmente, amando-a elle, apezar do que ella considera as suas inferioridades: apezar das suas meias com uma passagem, apezar do seu joelho desformado pela falta de circulação proveniente de um defeito caracteristico da sua raça, o defeito de não saber atar as ligas; apezar ainda do seu quarto cheirando a pia, dos seus sapatos mal feitos, do seu espartilho barato, da sua toilette da Baixa, da sua pomada de botica e do seu halito de dyspeptica denunciando um pouco a cebola do refogado nacional ... Se, apezar de tudo isso, tão desdenhoso, tão frio, tão gloriosamente corrupto, traçando a perna, descobrindo desleixadamente as suas meias de seda bordadas, torcendo no dedo os seus anneis inglezes, encasando no olho o seu monoculo, aproximando n'uma intimidade attenciosa e benevola as scintillações do seu correcto plastron de Poole, e as exhalações frescas e aromaticas do seu bigode e do seu cabello frisado á Capoul, elle souber pedir, ella pela sua parte não saberá negar.


Tal é o caso de pathologia social, caso profundamente verdadeiro, medonho, tragico, sobre o qual Eça de Queiroz escreveu O Primo Bazilio, romance realista.

Realista porque? Por isso mesmo que exprime uma convicção social, e é esse o caracteristico essencial da arte moderna. O romantismo não tinha senão convicções esteticas, e satisfazia assim as necessidades de espirito da sociedade que fez a Revolução, que caiu no Imperio, que supportou as guerras de Bonaparte, e cujos cerebros não pediam á arte de 1830 senão uma coisa: serem acalmados e adormecidos. Os poetas então cultivaram o idyllio amoroso e fizeram poemas dos seus proprios estados de espirito; os romancistas e os dramaturgos inspiraram-se nas tradições gothicas da edade media e fizeram uma restauração litteraria e burgueza da cavallaria. De resto, nos artistas romanticos, perfeita emmancipação da forma mais profunda indifferença pela questões sociaes do seu tempo. Elles foram successivamente ou cumulativamente catholicos, pantheistas, atheus, monarchicos, realistas, imperialistas, republicanos, scepticos, phylanthropos.

A sociedade actual deixou de ser uma sociedade que repousa. É uma sociedade que se reconstitue inteiramente e profundamente desde todas os pontos da sua peripheria até as mais reconditas intimidades do seu ser. Esta reconstituição não se está fazendo empyricamente pela revolução ou pela sentimentalidade, está-se fazendo scientificamente pela convergencia harmonica de todos os esforços intellectuaes sobre o mesmo problema. Comprehendeu-se que são solidarios todos os estudos, os do mundo inorganico e os do mundo organico; que são correlativas todas as leis desde a da indestructibilidade da materia até a da evolução social; que finalmente se não póde chegar ao conhecimento positivo de nenhum phenomeno, quer da natureza, quer da sociedade, sem conhecer integralmente a serie ou a sequencia de series em que elle é o elo que prende um phenomeno anterior a um phenomeno subsequente.

N'esta liga de todos os espiritos para um fim commum, liga tão estreita, que cada nova lei, cada nova theoria, cada nova hypothese em qualquer dos ramos da sciencia se reflecte na direcção de todo o trabalho mental em qualquer das suas manifestações, dando por exemplo a theoria zoologica da adaptação ao meio um methodo novo na critica,—n'esta liga, dizemos, a arte não póde deixar de ter um papel diverso do que tinha ha trinta annos. Esse papel é-lhe imposto fatalmente pela nova orientação mental da sociedade. A arte moderna não póde já hoje basear-se em risonhas conjecturas abstractas, tem de assentar, para que nos interesse e para que tenha a importancia de um agente da civilisação, em factos de caracter scientifico, isto é: em factos que sejam a funcção de leis sociologicas. Queremos factos, não queremos exclamações: Res non verba.

Foi da palavra res, tomada precisamente n'essa accepção litteral, que se tirou a designação realismo.

Chamar realismo ao que é puramente grosseiro, ao que é descarado, ao que é torpe, é calumniar o dogma. Uma obra de arte póde conter o maximo numero de torpezas e de obscenidades e não deixar por isso de ser simplesmente lyrica.

O Primo Basilio é um romance realista porque é a representação de um facto social visto atravez de uma convicção scientifica. Luiza, a amante do primo Basilio, é a personificação tremenda da tendencia morbida de uma epoca. E é n'isso que consiste a alta moralidade do livro. O ser Luiza castigada (para nos servirmos da velha formula que via a moral dos livros no premio que n'elles se concedia á virtude e no castigo com que n'elles se fulminava o vicio), o ser castigada por meio de uma morte afflictiva é um facto accessorio, que não conteria senão esta moral negativa, se d'elle se quizesse extrair uma moral:—que para evitar a morte por desgosto se deve attender no adulterio a que se queimem as cartas.

A moral d'este livro não está em que a prima de Basilio morre depois da queda; está em que ella—não podia deixar de cair.

Reconhecemos que esta moral é pouco accessivel á maior parte das comprehensões. Esse é o grande mal do livro, ou antes esse é o grande mal da litteratura de que o livro faz parte. O Primo Basilio suppõe um estado de civilisação artistica e litteraria superior á que existe na sociedade portugueza. Suppõe manifestações parallelas nas applicações da philosophia, na moral, na arte da pintura, na arte das construcções, na hygiene, na politica, na pedagogia, na critica das instituições, na critica dos costumes, na propria critica da arte.

Ora essas manifestações não existem por emquanto n'um estado de vulgarisação que determine uma corrente harmonica no sentido a que se dirige a arte tal como a comprehende, do modo mais elevado, o auctor do Primo Basilio. A sociedade portugueza não comprehendeu ainda de um modo collectivo e solidario, que é urgentemente indispensavel por todas as manifestações do pensamento proceder á reconstituição da educação burgueza.

De sorte que o dizer-se, como n'esse livro, á mulher nossa contemporanea: «Eis—aqui está o modo pavorosamente simples como tu te rendes da maneira mais ignobil ao mais ignobil dos homens»,—parece um insulto áquellas que são as nossas amigas, algumas d'ellas as nossas companheiras de trabalho, as nossas mães, as nossas irmãs, as nossas filhas. Essa affirmação, porém, deixaria de ter um caracter apparentemente aggressivo se o artista podesse accrescentar:

«Eu não sou um homem isolado no meio da sociedade a que pertenço. Sou uma parte d'essa legião de trabalhadores dedicados, profundamente honestos, que se sentem impellidos na obscuridade do seu estudo por esta ambição heroica:—tornar o mundo mas bello e a humanidade mais digna. Na minha qualidade de artista, a ti mulher que me lês, o mais que eu posso fazer é commover-te de um modo profundo, levantando para esse fim o problema que mais directamente prende com o que ha em ti mais sagrado, com a tua castidade, com a tua honra. O amor clandestino, que a arte romantica personificava aos teus olhos em figuras apaixonadas, de um alto vigor dramatico, de um relevo fascinante, offereço-t'o eu tal como elle hoje te ha de apparecer na vida real, na pessoa de um biltre asqueroso, bem vestido, correcto, pelintra no fundo, meio principe e meio forçado das galés, friamente calculador, sovina, absolutamente pôdre. E é esse o homem que tu, pobre rapariga honesta, de preconceito em preconceito, de erro em erro, és trazida, atravez de todos os elementos que constituem a falsa educação que te deram, a admirar e a proferir sobre todos. Se na sociedade a que tu pertences e a que eu pertenço ha uma religião, se ha uma politica, uma moral, uma sciencia, um jornalismo, uma critica, todos esses poderes mentaes harmonicamente e convergentemente estarão n'este momento—no momento em que eu tenho a concepção artistica do Primo Basilio—actuando sobre todas as influencias que te rodeiam para o fim de te darem da vida domestica, do amor, da familia, da dignidade, do dever, uma comprehensão nova, assento em factos verificaveis, geometrica, positiva, inabalavel. Á religião compete elevar e fortalecer positivamente a tua consciencia ou demittir-se da solução do teu problema. Á politica, emprehender a reforma das instituições em vista do teu aperfeiçoamente. Á moral, fazer-te comprehender a noção da justiça. Á sciencia, o determinar com a maior clareza as leis eternas do teu destino. Ao jornalismo, o fazer a applicação d'essas leis aos phenomenos sociaes de cada dia. Á critica, finalmente, o explicar-te a minha obra. A mim, porém, não me competia como artista senão uma coisa: depois de conceber espontaneamente a minha these, fazel-a viver na maxima elevação esthetica: porque meio? por meio da mais perfeita fórma que pode attingir a arte. Foi o que eu fiz.»

Se com a natureza essencialmente artistica de Eça do Queiroz fosse compativel a humildade de uma explicação n'essas bases, o seu livro teria no leitor uma influencia de muito maior alcance moral. Mas um artista tem a obrigação de se não explicar,—o que seria invadir uma funcção alheia na justa divisão do trabalho intellectual moderno. Ha um gosto publico do qual precede uma critica official, assim como ha uma religião do Estado da qual procede uma hypocrisia publica. Ora assim como o philosopho deve ser indifferente á theologia, o artista deve ser indifferente á opinião. Mas esta independencia da philosophia e da arte, se por um lado é a condição essencial da sua missão perante a pura arte e perante a pura philosophia, por outro lado ella é a principal causa de ficarem por muitas vezes addiados os mais importantes problemas perante a comprehensão dos espiritos e a satisfação das consciencias.

Taes foram as razões porque—ao terminar ha mez e meio a leitura do Primo Bazilio,—uma tão perfeita obra, que a consideramos como sendo uma d'aquellas que mais honram a humanidade e de que mais se deve gloriar uma litteratura—nós fizemos esta prophecia: Que este livro seria como um d'esses complicados instrumentos mechanicos destinados á observação dos mais delicados phenomenos da chimica, da optica ou da biologia, instrumentos inuteis—ás vezes perigosos—para todo aquelle que não tem a sciencia de os pôr em exercicio e de ver por elles a divina revelação de um novo mundo.


O Diario Illustrado, publicando o retrato e a biographia do sr. Osborne Sampaio, tece-lhe o seguinte elogio:

«Conta-se que estando ha dois annos em Cauterets, chegou um dia, depois de jantar, a uma janella e lembrando-se do admiravel panorama que se desfructa da sua casa de Lisboa, uma das melhor situadas, exclamou:—Quem me dera já na minha casa do pateo do Pimenta!»


O Diario Illustrado não ousa affirmar de um modo terminante que o sr. Sampaio tivesse effectivamente proferido aquellas memoraveis palavras; o Diario Illustrado diz apenas: Conta-se ...

Ora este caso não se póde deixar assim envolvido na duvida. São historicas as palavras do sr. Sampaio ou são puramente uma legenda das montanhas, inventada pela imaginação supersticiosa dos pastores dos carneiros negros, ou pela tagarelice anecdotica dos mercadores da feira de Tarbes? Póde o Diario Illustrado firmar com a sua palavra de honra a authenticidade d'aquellas expressões? Foi effectivamente o sr. Sampaio que as proferiu? Interroguemos gravemente as nossas reminiscencias! ... Não seria antes algum dos outros heroes já celebres na historia da cordilheira dos Pyreneus? Não seria o paladino Rolando, sobrinho de Carlos Magno, marido de Alda a Bella, o que antes de morrer quebrou a Durindana na batalha de Roncesvalles? Não seria o proprio Carlos Magno? Não seria Sancho o Encerrado, ou seu genro Theobaldo, conde de Champagne? Não seria Plantade, o Astronomo, que morreu em extase diante da belleza da paizagem, entre os valles de Baréges e de Bagnère?

Está o Diario Illustrado no caso de sustentar, debaixo de jura, por tudo quanto ha para elle mais sagrado, com a dextra sobre a cabeça do sr. Carvalho Ratado, que foi indubitativamente o sr. Osborne Sampaio quem, depois de jantar, à janella da hospedaria, palitando talvez os dentes, na casta simplicidade dos grandes heroismos, enunciou aquelles dizeres?

Esperamos, tranquillos mas resolutos, a resposta de Diario Illustrado.

Porque, se se chegar a confirmar irrevocavelmente que existe, com effeito, no nosso seculo e em um dos nossos pateos, um homem assás convicto em suas crenças, assás profundo em suas vistas e assás firme em suas resoluções, para ter dito um dia, de tarde, ao acabar de jantar:—Quem me dera já na minha casa do pateo do Pimenta—; se tal phrase não é uma ficção, se ella existe realmente fóra do estado abstracto de suspeita destituida de fundamento,—o paiz não póde cruzar os braços, inerte. Seria indigno, porque nunca palavra tão lucida como a que o Illustrado cita marcou a differença, toda favoravel á nossa patria, que distingue os Pyreneus e o Ferregial de Baixo!


Os regulamentos disciplinares da universidade de Coimbra teem dado ultimamente em resultado riscar um avultado numero de estudantes pelos seguites delictos, cada um dos quaes foi objecto de um processo especial:

1.º Rir atraz da procissão dos Passos.

2.º Ser testemunha de um duello abortado, proposto a um professor por um viajante.

3.º Não ter dado pateada a um lente.

4.º Parecer constrangido a dar lição.

5.º Jogar o pugilato com um ou mais futricas nas ruas de Coimbra.


Os alumos condemnados pela perpetração dos delictos 1, 2, 3 e 4 appellaram para o Poder Moderador, o qual lhes commutou a pena de expulsão temporaria em alguns dias de cadeia.

Procedendo d'essa forma o Poder Moderador não tomou em consideraçãoa necessidade de fazer proceder á revisão da legislação academica. O Poder teve apenas em vista o desgosto infligido pela sanção dos regulamentos universitarios ás familias dos alumnos condemnados:—No que o Poder mostrou ter um coração do excellente rapaz alliado a um cerebro de legislador mediocre.


Está pendente da confirmação regia, segundo nos consta, a pena imposta aos reus do crime n.º 5, julgados já segundo o direito commum e absolvidos pelos tribunaes civis.

N'esta conjunctura perguntamos:

É admissivel que sobre o mesmo facto recaia por esse modo o julgamente de dois tribunaes parallelos? Pode a sociedade tolerar que cidadãos de uma certa classe estejam sujeitos por uma legislação especial a serem julgados em dois foros distinctos, recebendo duas punições em vez de uma, se as duas sentenças forem conformes; ou sendo simultaneamente tidos por innocentes e tidos por culpados, se as duas sentenças forem contrarias?

Responder-nos-hão que o tribunal academico julga de circumstancias especiaes que não são submettidas á apreciação dos tribunaes ordinarios?

Mas n'esse caso o tribunal academico com relação ao crime de que se trata toma o caracter de um tribunal escolar ou de um tribunal de honra.

Como tribunal escolar á Universidade cabe apenas decidir se o facto de sovar um futrica obsta a que se aprenda uma lição.

Com tribunal de honra a Universidade precisa de não perder de vista que quando se trata d'algumas bofetadas ou d'alguns pontapés, o deshonrado não é propriamente quem os dá, é por via de regra quem os recebe.

Se a Universidade insiste em julgar sob outro ponto de vista as questões d'esta ordem, a Universidade converte-se em uma escola de poltrões e de covardes, destinada a dissolver completamente os restos de virilidade que ainda possa haver na mocidade portugueza.

Todo o homem que se não acha devidamente temperado na sua natureza physica e na sua natureza moral para o fim de resistir energicamente, com risco da sua propria vida, a uma offensa pessoal, é um homem corromido, sem o sentimento do respeito devido á dignidde da sua especie, atreito ás paixões mesquinhas, com manhas de reptil.


Se a Universidade tem o intento de educar os seus bachareis para sevandijas ou para freiras, a Universidade faz bem proseguindo no velho systema que tem por fim levar o estudante que queira concluir honrosamente os seus estudos a proceder diante diante das ameaças da força alheia por um d'estes dois modos: fugindo ou apanhando.

Se porém a Universidade quer fazer verdadeiros homens e verdadeiros cidadãos, a universidade andaria melhor abstendo-se de uma vez para sempre da instauração de processos ridiculamente pueris, requerendo das côrtes a reforma dos seus regulamentos disciplinares, prescindindo de atrophiar no coração da mocidade com um regimen fradesco os sentimentos naturaes de valor e de brio, e pondo cobro ao passatempo indigno da velha troça academica por meio da instituição de exercicios viris, proprios de uma mocidade honesta e forte:—a gymnastica obrigatoria, a escola de tiro, a esgrima, a lucta, o insubstituivel cricket.


No paiz mais tradicionista e mais formalista do mundo,—no paiz em que Deus segundo Taine é um personagem official com os seus cortezãos e os seus aulicos,—no paiz em que tendo uma vez esquecido fallar da Providencia n'um discurso da corôa o chefe do estado fez novo discurso para prehencher essa omissão,—na velha, na religiosa, na solemne Inglaterra emfim, John Tyndal, proferindo recentemente a allocução presidencial do Birmingham and Midland Institute, disse as palavras seguintes:

«Dir-me-hão que supponho um estado de cousas determinado pela influencia das religiões e comprehendendo os dogmas da theologia e a crença no livre arbitrio, um estado, em summa no qual uma maioria moralisada fiscalisa e disciplina pelo medo uma minoria immoral. Sendo perverso, e perverso sem esperança, o coração do homem, dir-me-hão que se fossem abolidas as sancções theologicas a raça inteira se modelaria por alguns exemplos de depravação individual. Tornar-nos-hiamos todos ladrões e assassinos. Porque é só o medo que nos refreia, e, se eliminassemos o medo, não conheceriamos mais do que o instincto natural e desconheceriamos o dever.

«Tenho de responder que me recuso absolutamente a admittir similhantes conclusões. O scelerado não é em minha opinião a imagem da humanidade. Bebamos e comamos porque temos de morrer ámanhã não é a consequencia ethica da regeição dos dogmas.

«As doutrinas moraes dos atheus nossos conhecidos são taes que nenhum christão se envergonharia de as professar, e nenhum christão as censura senão desde que conhece a origem de que ellas procedem.

«Reconheço de todo o coração e sou o primeiro a admirar a irradiação espiritual, se assim ouso exprimir-me, que a religião produz na vida de varias pessoas que conheço. Mas não posso tambem deixar de confessar que muitas vezes a relligião passa por estrondosas derrotas ao procurar produzir alguma coisa bella. O apostolo e o campeão da religião é frequentemente um simples tagarela, um pouco clown. Essas differenças procedem de distincções primordiaes de caracter que a religião é insufficiente para nivelar.

«Dá uma verdadeira satisfação o sabermos que existam no nosso gremio homens a que os batalhadores do pulpito chamam atheus ou materialistas e cuja vida, não obstante, experimentada na pedra de toque de uma moralidade accessivel contrasta de um modo mais que favoravel com a vida d'aquelles que buscam aviltal-os com essa designação offensiva.

«Quando digo offensiva quero simplesmente alludir aos que empregam aquelles termos, não que eu pense que o atheismo e o materialismo, comparados a muitas noções sustentadas pelos jornaes religiosos, tenham em si um caracter offensivo.

«Quando eu quizer achar um homem escrupuloso nos seus contratos, fiel á sua palavra e cuja regra moral se ache solidamente estabelecida; quando eu quizer achar um pae amante, um esposo fiel, um visinho honrado, um cidadão justo, procural-o-hei, com a certeza de o encontrar, entre esses atheus a quem acabo de me referir. Tenho-os conhecido tão firmes na morte como o tinham sido na vida. Ao expirar elles não esperavam a corôa celeste, e todavia lembravam-se tanto dos seos deveres e eram tão zelosos em os cumprir como se a sua vida futura dependesse do mais recto emprego dos seus ultimos momentos.»

Em seguida Tyndal cita os exemplos de dois homens notaveis, um dos quaes é christão, o outro não.

O christão é Faraday, que Tindal considera um modelo da associação da fé religiosa com a elevação moral. O seu caracter é o mais proximo da perfeição. A religião era-lhe necessaria: era a luz, ora a consolação dos seus dias. Era forte mas meigo, impetuoso mas docil; uma cortezia peregrina distinguia o seu commercio com os homens e com as mulheres, e, comquanto nascido do povo, a sua fina natureza era digna da mais delicada flor da cavalleria.

O que não é christão chama-se Darwin. Não tem o ponto de vista theologico nem a commoção religiosa que constituiam um tão poderoso agente na vida de Faraday, e todavia Darwin tem a perfeição moral de Faraday. «O sr. Darwin, diz Tyndal, é uma natureza candida e simples, um caracter terno e forte, um espirito profundo e da mais alta moralidade; é o Abrahao dos homens da sciencia, sacrificador tão docil ás ordens da verdade como o patriarcha antigo ás ordens do seu Deus.»


Estas nobres palavras, inspiradas pelo mais profundo sentimento de verdade, de justiça e de amor, ditas por um homem da auctoridade moral de Tyndal, teem um caracter solemne, quasi sacerdotal. Deffinem exemplificadamente o dogma scientifico da virtude inherente á cultura da intelligencia humana e mostram experimentalmente a existencia de uma moral independente de toda a especulação theologica. Que fecunda these para ser exposta e defendida diante de um auditorio feminino no estado presente dos espiritos, em que as convicções do homem estão geralmente em contradição com as crenças da esposa e da filha, e em que tão necessario se torna portanto á harmonia moral da familia o principio fundamental da conciliação das consciencias!


Na reunião do ultimo congresso dos obreiros de Lyon um simples operario mechanico chamado Jacquemin, delegado de uma pequena aldeia da Haute-Saône, expõe com uma concisão profundamente lucida as causas que determinam a inferioridade mental dos trabalhadores do campo, tornando-os mais proprios do que quaesquer outros para serem escravisados pelos poderes clericaes.

Depois de semeado o campo pelo lavrador, um segundo trabalho estranho aos esforços do obreiro começa lentamente a operar-se: os trigos crescem. Crescem em virtude de que lei?

Tal é a pergunta que o lavrador faz a si proprio. Sabe-se como lhe respondem aquelles que são encarregados de o instruir e de o educar. A noção que elle recebe ácerca do modo como o trigo cresce torna-o fatalista e como tal facilmente susceptivel de se deixar dominar e embair. Qual é o meio de o emancipar? Jacquemin responde: O meio é ministrar-lhe a cultura intellectual de que elle carece. E o orador operario acrescenta:

«Faz-se geralmente crêr ao lavrador europeu que as suas sementeiras se desenvolvem em resultado de uma força cuja paternidade vem de Isis, ou de Osiris, divindades que deixaram de reinar. A vontade do Isis fazia crescer n'outro tempo o trigo dos antigos egypcios. Agora é o deus de Mahomet que reina no Egypto. O trigo, pela sua parte, continua a amadurecer nas mesmas condições em que amadurecia n'outro tempo. A ruina dos successivos templos e das successivas religiões em nada tem alterado as leis da natureza. E todavia dá-se por toda a parte o mesmo estado de coisas: O indio crê que Brama intervem nos seus campos de arroz. O chim vê nos seus o grande Todo. Em outros sitios é Budha. Para os gregos e para os romanos era Ceres. Para uma parte da Asia é o grande Lama. Na Africa é a grande serpente, a grande cobra ou o grande espirito.

«Tudo isto tem naturalmente produzido diversas corporações de sacerdotes. Dizei-lhes que se ponham de accordo uns com os outros? ... Respondeis-me que é impossivel. É effectivamente impossivel, o que é de certo uma desgraça! Esse porém é o facto historico, que não podemos deixar de assignalar. Esse facto infunde uma grande tristeza, porque sobre as questões que elle suscita tem sido derramado o sangue de muitas gerações.

«É a guerra, é a guerra de religiões. É tempo de lhe pôr um termo. É tempo de estabelecer em bases demonstradas e accessiveis a todos a legislação humana e a moral universal.»


Em Portugal os homens e as mulheres das cidades, os homens e as mulheres do campo acham-se inteiramente ao abrigo das suggestões de idéas e de principios que possam inferir-se das eloquentes palavras de Tyndal e de Jacquemin. Em Portugal todas as palavras que exprimem fortes e sinceras convicções de sciencia ou de simples bom senso são consideradas perigosas e banidas das discussões publicas.

Debalde a historia da civilisação ingleza n'este seculo nos demonstra que a tolerancia absoluta na manifestação do pensamento é a primeira garantia da ordem na sociedade, que a maxima latitude na controversia das idéas mantem sempre os problemas dentro da esphera expeculativa, evitando assim que a orbita das applicações praticas seja invadida pelos principios que não foram d'ante mão sanccionadas na opinião e pelas reformas que ella não exigiu em nome de novas necessidades provenientes de um mais alto estado do espirito ou da consciencia publica. Tal é o methodo que tem preservado a sociedade ingleza das perturbações graves que a impaciencia dos reformadores, não experimentada na pedra de toque de uma discussão liberrima, lançou na vida pratica de outras nações, como succedeu em França depois do segundo imperio, que corrompia todos os debates intellectuaes, e em Hispanha depois do reinado de Isabel, que esmagava todas as tentativas publicas de livre raciocinio.

Em Portugal essa importante lição tem sido absolutamente esteril.

Quando as conferencias democraticas inauguradas na sala do Casino mostraram uma ligeira tendencia para produzir idéas, o governo sem nenhuma outra forma de processo supprimiu as conferencias.

Quando depois d'isso alguns individuos suspeitos de atheismo resolveram manifestar posthumamente as suas idéas solicitando para os seus cadaveres o enterro civil, o governo interveiu ainda, restringindo por todos os meios ao seu alcance—meios tumultuarios, illegaes, vexatorios—a vontade do atheu menos perigoso que se conhece,—o atheu morto.

Se nas escolas superiores se encontram professores benemeritos que expõem impunemente nas aulas das sciencias naturaes e das sciencias physicas algumas doutrinas positivas, experimentaes, estando por esse facto em desaccordo manifesto com os dogmas e com as concepções theologicas impostas ao espirito pela carta constitucional da monarchia, a impunidade d'esses professores, dizemos, não se deve attribuir á tolerancia philosophica do poder. Ella é simplesmente o resultado—n'este caso benefico—da indisciplina geral dos serviços publicos.

Ha professores que affirmam principios scientificos, exactamente como ha professores que manteem no espirito da mocidade os erros mais vergonhosos e mais crassos alheios á doutrina dos programmas. Ha lentes que estão acima da lei pela mesma razão que ha outros que estão abaixo d'ella:—por falta de inspecção e de policia.

Um facto recente dá-nos a prova mais cabal de que o estado não é solidario nos progressos scientificos da nação, e que estes se operam não sob o favor ou sob a tolerancia dos governos, mas sim apezar da intolerancia que elles assumem e dos meios correctivos de que elles se armam.

Veja-se o modo como foi discutido e como foi emendado na camara dos dignos pares o ultimo projecto de lei sobre a instrucção primaria!

Eis as palavras proferidas sobre este assumpto por um dos legisladores mais moços e mais instruidos d'aquelle sabio congresso:

«O sr. conde de Rio Maior (copiamos o extracto da sessão, publicado do Jornal do Commercio), não é adversario do desenvolvimento da instrucção primaria, porque não deseja que continue a subsistir o estudo de ignorancia do nosso povo, onde a proporção dos que sabem ler é de 1 para 25, emquanto na Allemanha, Hollanda, Belgica, etc., é de 1 para 6. Mas não deseja que se vote o estabelecimento do ensino obrigatorio. Prefere a liberdade do ensino, porque julga mais conveniente que os paes tenham a liberdade de darem aos filhos o ensino que lhes parecer mais proprio. Póde haver um individuo analphabeto mas que seja homem de ordem e temente a Deus, que não queira mandar o seu filho a uma escola cujo mestre ensine doutrinas perigosas. Lembra que nos tempos das nossas maiores glorias, embora a instrucção estivesse pouco diffundida, a nação portugueza attingiu um alto grau de prosperidade; não pretende dizer com isto que deixe de se derramar a instrucção, porque tambem é apostolo d'esta idéa, mas quer que essa instrucção seja ao mesmo tempo moral e religiosa.»

A affirmativa de que a nação portugueza attingiu um alto grau de prosperidde no tempo das nossas maiores glorias, embora a instrucção estivesse pouco diffundida, é um erro de historia que o nobre conde quiz commetter de certo intencionalmente para o fim de nos persuadir que não é pelo excesso de instrucção em s.ex.ª que a gloria e a prosperidade deixaram de nos sorrir. O sr. conde de Rio Maior não podia realmente ignorar que o periodo mais prospero e mais glorioso da nacionalidade portugueza, o periodo das nossas conquistas e dos nossos descobrimentos, foi tambem o periodo da nossa maior cultura intellectual.

Esse periodo principia com o advento da dynastia de Aviz. Se o sr. conde quer achar a differença que distingue esse tempo do tempo actual, compare o mestre de Avis com qualquer dos soberanos da casa de Bragança.

D. João I era ao mesmo tempo um cavalleiro, um phylosopho e um litterato. Teve a honra de hospedar na sua côrte o grande pintor Van-Dyck e edificou a Batalha, um monumento de arte mais efficaz elle só para formar a educação esthetica de um povo do que dez universidades e vinte academias. Hoje edifica-se a penitenciaria, e o ultimo dos artistas celebres que recentemente veiu a Portugal, o illustre pintor Palmarolli, hospedou-se em uma estalagem e apenas conheceu da côrte portugueza um dos seus fidalgos, que o chamou da janella do seu palacio, em Cascaes, para lhe comprar agulhas e alfinetes, por ter supposto, ao vel-o passar com uma caixa de tintas, que era um bufarinheiro.

Dos filhos de D. João I um é o infante D. Duarte, o creador da primeira bibliotheca que existiu em Portugal, o eximio litterato auctor do Leal Conselheiro. Outro era o infante D. Pedro, o que viajou as sete partidas do mundo, auctor da Vertuosa Bemfeitoria e um dos homens mais profundamente eruditos da Europa no seu tempo. Outro era D. Fernando, o captivo de Fez, o que teve por secretario Fernão Lopes. O ultimo finalmente e o maior era D. Henrique, o iniciador das nossas navegações, o fundador da chamada Escola de Sagres, o mais poderoso, o mais grave, o mais austero centro de estudo de que ainda foi objecto a sciencia do ceo e a sciencia do mar. Hoje o infante de Portugal é o senhor D. Augusto, conhecido de todos nós por o termos visto passar no Chiado e conhecido tambem n'um hotel de Loudres, onde o principe se hospedou juntamente com dois dos mais notaveis productos da arte nacional, que o acompanháram e que fizeram grande impressão na City, onde os tomáram por duas vaccas sem pernas. Eram os baús de sua alteza, feitos na rua dos Correeiros.

Da escola de Sagres sairam Pedro Alvares Cabral, Vasco da Gama, Bartholomeu Dias, Fernando de Magalhães, Diogo Cão, Pedro da Covilhã, Gaspar Côrte Real, os mais intrepidos viajantes e os mais valorosos exploradores. Foi da influenzia d'elles e dos sabios que o infante D. Henrique e seus irmãos souberam attrair a Portugal, que procederam escriptores como Fernão Lopes, Gomes Annes de Azurára, Gil Vicente, João de Barros, Damião de Goes, Jeronymo Osorio, e Luiz de Camões, talvez o mais instruido e o mais sabio de todos os grandes poetas. Das escolas de hoje, a não ser por influencia de alguns professores precitos e apostatas que commetteram o sacrilegio de se libertarem do jugo official, saem apenas bachareis, que sabem quando muito bacharelar, e que vão para administradores de concelho ou para amanuenses de secretaria.

No tempo da nossa prosperidade e da nossa gloria o povo era extremamente instruido. É certo que não sabia ler. Mas saber ler não constitue propriamente instrucção, mas sim um dos meios de instrucção. Ora o povo dispunha então de outros meios superiores á leitura. O marinheiro e o soldado educavam-se nas grandes viagens, os operarios educavam-se na confecção das mais bellas obras de arte, como o convento de Thomar, os Jeronymos, as capellas imperfeitas da Batalha, a torre de Belem. O povo de então não sabia ler os livros, mas sabia mais do que isso: sabia fazel-os. Foi o povo que ditou as narrativas sublimes da Historia tragico maritima, o mais admiravel, o mais bello, o mais dramatico, o mais commovedor, o mais eloquente livro de que se póde gloriar a litteratura de uma nação.

A isso chama o sr. conde de Rio Maior achar-se pouco diffundida a instrucção! E conclue d'esse absurdo que um povo póde attingir a prosperidade sem sair da estupidez! Apezar d'esta singular theoria e das accumuladas contradições do seu texto, em que s. ex.ª ora é apostolo da instrucção, ora é apostolo da coisa contraria, o sr. conde de Rio Maior seria apenas inoffensivo. S. ex.ª, porém, conclue a sua notavel falla mandando para a mesa o seguinte additamento á lei que se estava discutindo:

O professor ou professora que no exercicio do magisterio primario ensinar ou inculcar doutrinas contrarias á religião catholica, á moral, á liberdade e á independencia patria será demittido nos termos d'este artigo, independente da acção criminal que deva ser intentada. Os paes, tutores ou pessoas encarregadas da sustentação e educação das creanças podem requerer collectivamente ou individualmante contra o professor ou professora que tiver commettido as faltas indicadas n'este artigo.

Eis ahi o que se não admitte, porque esta disposição legislativa proposta por s. ex.ª produz a fixação legal dos seus principios a respeito da instrucção, isto é: que deve haver instrucção e ao mesmo tempo que a não deve haver. Não é outra coisa senão eliminar a instrucção, depois de a ter decretado, o submettel-a por lei, sob pena de processo e demissão immediata do professor, aos principios da religião catholica. A Igreja abriu, n'este seculo principalmente, um tão profundo abysmo entre a concepção theologica e a explicação scientifica dos phenomenos do universo, que toda a conciliação é hoje impossivel entre o mestre e o padre. Não duvidamos que o christianismo possa ainda reassumir o seu antigo papel de sanccionador supremo de todas as grandes e definitivas conquistas do entendimento humano. O que é certo porém é que a direcção reaccionaria que elle tem recebido do pontificado romano desde a Reforma até hoje o inhabilita presentemente para realisar essa aspiração de todas as almas piedosas. Ou o Estado sustenta o padre ou sustenta o mestre. Constituir-se o defensor simultaneo d'esses dois interesses oppostos é impossivel. Pedimos licença ao sr. conde do Rio Maior para lh'o provar.

Supponhamos que o alumno pergunta ao seu professor o que é o diluvio universal, que lhe pergunta qual é a idade da terra, que lhe pergunta o que é o homem pre-historico, o que são as florestas carboniferas, o que é o arco-iris, o que é o pára-raios, o que é transformação das especies, o que é a Torre de Babel, o que é o Eden; supponhamos que o alumno faz ao mestre qualquer das centenares perguntas d'este genero faceis de formular ácerca das affirmações da Biblia ou dos conhecimentos do homem. A essas perguntas o mestre não póde responder senão com o erro ou com a heresia. O sr. conde de Rio Maior e os dignos pares que adoptáram a sua emenda á lei da reforma da instrucção portugueza desejam que o mestre responda pelo erro.

Mas isto é peior do que pôr de parte a sciencia; isto é, recebel-a para a contradizer e para a destruir; isto é converter a ignorancia publica em uma instituição do Estado.

Diderot conta o caso do homem que procurava o seu caminho, á luz de uma lanterna, no meio da espessura tenebrosa de uma floresta. Alguem disse-lhe: Queres saber o meio de achar o caminho? eu t'o ensino ... E apagou-lhe a lanterna.

Quem foi que deixou no mundo esta lição?

Foi o theologo.

Um povo ignorante é um povo em trevas, cuja lanterna é a instrucção. O legislador portuguez que tomou o encargo de apagar a luz é o sr. conde de Rio Maior.


Notemos porém um facto consolador:

O sr. conde de Rio Maior attesta sobre os theologos que o precederam uma sensivel diminuição de força. Elle mostra o ardor arrefecido e impotente de um velho sangue que se decompõe e se dessora. A idéa que elle tem no cerebro é uma idéa que se extingue.

Ha cem annos s. ex.ª teria proposto o carcere, a tortura, a fogueira, para o mesmo crime para que hoje pede apenas, gaguejadamente, a demissão do professor e o processo pelos tribunaes civis.

Inclinemo-nos diante de tão manifesta mansidão!

Nos fins do seculo XVI o pendão da santa doutrina, um lugubre pendão negro, era levado pelas ruas de Lisboa, ao toque de uma campainha, por fr. Ignacio de Azevedo. Fr. Ignacio era então o professor idealisado pelo sr. conde de Rio Maior:era o homem de ordem, temente a Deus, argumentando a doutrina christã a este povo. Todas as mulheres e todas as creanças saiam ás portas a ajoelhar, sobre as immundicies, aos pés do tenebroso frade, que levava comsigo a sciencia ecclesiastica, amortalhada de negro, de cruz alçada, tangendo uma campainha, como quem leva um morto. Fr. Ignacio invadia as casas particulares, invadia os pateos da comedia, expulsava os comediantes, e subia elle mesmo ao tablado a explicar os differentes modos porque se pecca e os diversos methodos porque se mortificam os impetos da carne.

Ainda no seculo passado Pina Manique obrigava os professores a levarem os estudantes á missa, do que colhiam nas sacristias uma certidão sobre a qual se pagavam mensalmente os respectivos ordenados.

Hoje a parte disciplinar da nossa educação religiosa caiu com o pendão negro da santa doutrina. Resta a parte doutrinária, resta apenas a cartilha de Padre Mestre Ignacio.

E é sobre essa cartilha solitária, em torno da qual caíram dissolvidas a uma por uma todas as energias sociaes que a mantinham na altura de uma instituição civil, é sobre a cartilha do Padre Mestre Ignacio, que um sabio legislador portuguez acompanhado de varios outros legisladores portuguezes egualmente sabios, procura reconstituir no anno de 1878 o ensino publico de uma nação!


Voltaire tinha uma prece fervorosa, que as Farpas não cessam de elevar aos céus em todas as manhãs e em todas as tardes:

Meu Deus, tornae ridículos os nossos inimigos!

O modo como foi discutida na camara dos dignos pares a reforma da instrucção indica-nos que podemos por um momento deixar de repetir essa oração. Aproveitamos a pausa para ir a Paris accender, em nome das Farpas, um círio a Voltaire. Deus Nosso Senhor ouviu-o!

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