The Project Gutenberg EBook of Os meus amores, by Trindade Coelho

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Title: Os meus amores
       contos e balladas

Author: Trindade Coelho

Release Date: January 12, 2006 [EBook #17503]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS MEUS AMORES ***




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TEXT




OS MEUS AMORES




TRINDADE COELHO


OS MEUS AMORES

(Contos e Balladas)



2.ª edição







LISBOA
Livraria de Antonio Maria Pereira
50, 52―Rua Augusta―52, 54
1894








LISBOA
Typographia e Stereotypia Moderna
11―Apostolos―11






Ao Doutor


Antonio Xavier PERESTRELLO




«Os Meus Amores»



Folhas dispersas dos meus annos de oiro,
Vivo enxame das minhas alvoradas,
Tenho zelos de vós, folhas sagradas,
As Desdémonas sois de um outro moiro.

As brancas horas que eu em sonhos doiro,
Essas horas febris, illuminadas,
Eil-as fugindo, em tristes debandadas...
Levaes nas azas todo o meu thesoiro.

Folhas: subi, voae ao céo tão alto,
Que o ceo em estrellas vos converta e mude,
Lá nas longinquas illusões que exalto;

Como as frementes aguas d'um açude,
Levae a Deus, no derradeiro salto,
O derradeiro adeus da juventude
...


Luiz Osorio.




[1]

IDYLLIO RUSTICO


A Fialho d'Almeida.


Quando atravessou a povoação, rua abaixo, com o rebanho atraz d'elle, era ainda muito cedo. Ao longo das ruas tortuosas, as portas conservavam-se fechadas, e não vinha das habitações o mais insignificante ruido. Dormia-se a somno solto por todas aquellas casas. Apenas algum cão, subitamente acordado em sobresalto pelo chocalhar do rebanho, ladrava do alto dos escadorios de pedra onde ficara de sentinella, ou de dentro das curraladas, onde levara a noite fazendo companhia aos novilhos. D'onde em onde, gallos madrugadores entoavam matinas sonoras, que eram como risadas vibrantes de bohemios, n'alguma esturdia, a deshoras...

Mas passadas as ultimas casas, o silencio condensava-se para toda a banda, n'uma grande pacificação de templo adormecido. Nem viv'alma pela ladeira que levava ao rio, por um caminho em zig-zags. Fulgiam no céo [2] azul-escuro cardumes prateados de estrellas. A toda a largura, a paizagem era torva e indecisa, immersa n'uma luz muito mortiça que nem era bem a da madrugada, nem era bem a da noite. No emtanto a manhã era calma; nem rumores de briza pela rama das azinheiras velhas que faziam guarda ao corrego por onde o rebanho tomara. Cigarras, grillos nas hervagens, rãs que coaxavam nas regueiras, era o mais que se ouvia acima do rumor brando dos chocalhos. Nem um balido de ovelha em todo o rebanho que se ia submissamente á mercê do pequeno pastor, parando se elle parava a colher as amoras frescas dos silvados, recomeçando marcha se de novo elle se punha a caminhar.

Quando passou rente ao meloal da fidalga, ouviu-se o ruido de um tiro, que o echo levou para longe.

―Não gastes polvora, Antonio!―recommendou o pastor.―Ouviste?

E logo a voz do guardador:

―Madrugas hoje, Gonçalo!

―P'ra que saibas: cá um homem não tem medo.

―Está bem. Adeus!

―Saudinha.

A esse tempo ia-se já definindo a manhã, na luz, no som, na côr. Invadia a amplidão da cupula celeste uma tinta alvacenta, onde as estrellas feneciam no seu brilho. Ao alto, na ladeira d'além, entravam de fazer-se nitidas as linhas sinuosas das cristas, onde enormes rochedos tinham altitudes de uma immobilidade mysteriosa e sinistra... [3] N'este assomo d'alvorada, as coisas iam despertando lentamente para a alacridade vigorosa da luz. Das moitas e sebes, calhandras era bandos levantavam-se repentinamente, em vôo perpendicular, e cortavam ares fóra, chilreantes e alegres, até se perderem de vista por de traz dos arvoredos e cabeços. De cauda em riste e orelhas immoveis, o rafeiro espreitava as hervagens seccas, onde algum reptil passasse vagaroso.

―Busca, Turco!―fazia-lhe o Gonçalo que tinha medo ás cobras.―Busca, valente!

Á medida que descia a ladeira, um marulhar monotono de aguas ouvia-se, mais e mais distincto. Era o rio que parecia perto; mas primeiro que lá se chegasse ainda era preciso andar... Era um poder de passos e de paciencia,―reflectia o pastor, a quem aborreciam de morte os interminaveis torcicollos da vereda. Ia andando, descendo sempre, á frente do rebanho silencioso. E quando os sapatos começaram de calcar areia, e ali, perto, o rio lampejava, sob aquelle céo ainda estrellado, o Gonçalo desabafou:

―Uff! até que emfim!―E pensava aliviado:―Nada mais facil do que terem-me sahido os lobos!...

Mas vista áquella hora, e no meio de tal silencio, a corrente liquida tinha o que quer que fosse de sinistro, que evocava lembranças aterradoras, espectros dos que ali mesmo tinham morrido afogados, n'uma lucta desesperada com as aguas, clamando em vão que lhes acudissem, em tamanho transe afflictivo. A margem de lá, especialmente, era toda accidentada de rochedos informes, blocos medonhos, por entre os quaes no inverno o vento assobiava lugubre, e as aguas faziam remoinho, o que era um perigo para os pobres barcos que se aventurassem [4] incautos, n'um descuido involuntario―simples remadela pouco a tempo, manobra menos segura de leme, ou impulso errado de vara.

E então, cabeços enormes d'um lado e d'outro, projectando sobre o largo leito do rio a sua sombra pesada e desconforme, que mais triste fazia o sitio e parece que mais solitario, pois fechavam-no bruscamente, fazendo limitada a paizagem.

A todo o comprimento da margem, o rebanho pôz-se então a beber manso e manso, e sem o minimo ruido.

Foi quando o Gonçalo acabou de se convencer que na margem de lá, um pouco mais abaixo, outro rebanho bebia tambem.

―Táte, Gonçalo! Aquella chocalhada...

E immovel, remordendo o labio, com o ouvido á escuta, pensava:

―Ora se será ella?...

Subito, estremeceu. Ante o seu espirito infantil perpassou, como um clarão de relampago, a imagem de uma rapariga, pastora como elle, com quem se havia encontrado mais vezes, mas que havia muito não vira.

―Ai, se fosse a Rosaria!... dizia comsigo.

E impondo silencio ao rebanho, que acabara de beber, pôz-se attentamente á escuta do tilintar dos chocalhos na margem opposta.

[5] «O rebanho parecia o mesmo, lá isso... Agora o pastor é que podia ser outro que não a Rosaria...»

Senão quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao chão a manta e o marmeleiro, e puxando para deante o bornal, feito da pelle de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou de lá a sua flauta e pôz-se a tocar apressadamente um trecho de cantiga rustica.

No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe:

―Ehlà, Gonçalo, és?

O pastor desatou a rir.

―Uhlá, Rosaria, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona!

E logo a voz fresca da rapariga lembrou:

―Não te esqueceu a moda, rapaz!

―Isso esquece ella!... Ouviste, Rosaria?―Se outra fosse que m'a tivesse ensinado...

N'este meio tempo já o Gonçalo retomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosaria. Mas primeiro perguntou:

―Boto pela ponte, ou és tu que vens, ó cachopa?

―Vem tu d'ahi. Por cá sempre é outra coisa p'r'as ovelhas. Han?

―Basta!

[6] E dando o signal da partida, o Gonçalo pôz-se em marcha. D'ahi a pouco, entrava mais o rebanho pela velha ponte moirisca, toda severa de construcção nos seus tres arcos lançados sem elegancia, atufados de parasitas seculares que a faziam pittoresca, heras, silvas, ortigas bravas.

A meio da ponte, mão piedosa fizera construir pequeno oratorio ao Senhor Salvador, cujo rosto sereno, espreitando por grades de arame, diziam dar coragem a barqueiros e almocreves, que ante o pequeno e humilde nicho com respeito se descobrissem, e com devoção rezassem uma velha prece que era como um talisman precioso para livrar de maiores desgraças―naufragios no rio, e então maus encontros por aquelles caminhos escabrosos, que eram um perigo constante para homens e animaes.

D'ahi a pouco, as duas creanças estavam perto uma da outra, cada qual seguida do seu rebanho.

―Ora viva a Rosaria!―disse o pastor muito alegre, parando defronte da cachopa.

―Bons dias, Gonçalo; então que ventos?

Entre os dois travou-se então um longo dialogo em que se contaram tudo o que haviam feito desde aquelle dia em que ambos tinham voltado juntos da feira dos Caniços.

―Por signal que nem rez se vendeu!―lembrou o Gonçalo.

―Por signal!―disse com pena a Rosaria.

[7] Mas elle contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na fé que a encontrava. «Vêl-a agora, só por milagre de santo; quem o havia de sonhar! Nanja elle...»

―Mas se eu estive tão doente!―volveu triste a Rosaria.

E como o outro acudiu a informar-se, ella explicou:

―Umas quartãs que me tiveram mondada! A peste as mate! Febre que era mesmo lume desde manhã até ao escurecer... Uma assim!

E na sua ingenuidade infantil, contou ao Gonçalo que muitas vezes, na febre, sonhara com elle, que se encontravam os dois por montes e prados, como agora tinha acontecido, «tal e qual».

―Assim te Deus salve, ó Rosaria?―atalhou rapido o pastor, a quem enchiam de orgulho os sonhos d'aquella pequena amiga.

―Assim; pois que duvida?―tornou-lhe confiada a Rosaria.

―Não!―disse agastado o Gonçalo.―Não has-de dizer assim... Diz certo, has-de jurar direito.

―Pois assim me Deus salve...

―Como é verdade...―Diz tudo, Rosaria!―supplicava o pastor.

―Sim, volveu-lhe paciente a companheira,―como é verdade que sonhava que nos encontravamos―concluiu por fim, muito risonha.

[8] E sem disfarçar o jubilo, prestes o Gonçalo a certificou de que tambem não a esquecera. «Tanto é que tirava da frauta as cantigas todas que ella lhe tinha ensinado.»

―Lembras-te?

A Rosaria faz que sim com a cabeça. E logo, batendo na frauta de sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar:

―Sahem d'aqui sem falhar uma.―E resoluto:―Vá feito, Rosaria, pede por bocca!

A Rosaria pediu então a Pastorinha.

―Eu é da que mais gosto,―explicou.―É a mais linda.

―E é!―concordou o Gonçalo.―Ora escuta lá.

E levando aos labios a avena, pôz-se a tocar a Pastorinha, emquanto a Rosaria, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a lettra:

Onde vás, ó Pastorinha,
Ai-li, ai-li, ai-li, ai-lé...

―Sabes essa! É mesmo assim!―disse-lhe a Rosaria a rir-se.

―É como vês!―affirmou contente o Gonçalo.

Aos seus pés tinham-se deitado os rafeiros, e já os dois rebanhos, confundidos, andavam na pastagem.

―Olha as ovelhas juntas!―notou o Gonçalo.

[9] ―Tambem nós nos quedámos juntos,―volveu-lhe a pequena, sorrindo.―As pobres dão-se bem, são amigas...―continuou com jubilo.

―E nós tambem, ora tambem, Rosaria?

―Tambem―respondeu afoita a pastora.

E foram-se ter conta no rebanho, que choviam as coimas e as denuncias.





A esse tempo, no céo alto e lavado a estrella d'alva fenecera por fim, e o horisonte começava de carminar-se ao de leve. Por todo o céo em cupula, a luz fresca e viva da manhã vibrava harmonias extranhas que iam despertar tudo, a côr da paizagem e a musica dos ninhos, cantigas de perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos. Manhã de verão, serena, tranquilla, dulcissima. Ia pelo ar um movimento extraordinario de azas―passarada alegre que sahia agora dos ninhos e voava a matar a sêde á borda das ribeiras, andorinhas que deixavam as suas casinholas em reconcavos de rocha e tomavam para hortejos convisinhos onde a vegetação era mais rica de seiva e mais facil a presa dos insectos, perdizes gralhadoras que iam de monte em monte, tordos, poupas, melros. Nos vinhedos das encostas, por entre os renques verdejantes, gente em mangas de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos, em torcicóllos, viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo machos carregados de taleigos, e berrando-lhes cada chó! que se ouvia na outra ladeira. Já nas povoações proximas sinos chamavam para a missa d'alva ou tocavam a Ave-Marias. Nas quintas e casas fumegavam os tectos, dizendo [10] horas de almoço. De modo que o sol quando rompeu, solemne e triumphante no céo immaculado, encontrou muita vida pelos campos, toda a natureza acordada para a labuta interminavel do dia. N'uma clareira elevada, dominando o rio e um trecho de paizagem para sul, tinham-se sentado os dois pastores e continuavam conversa.

Ao pastor parecia-lhe agora mais bonita a pequena amiga, com a sua côr trigueira levemente pallida desde que tivera as maleitas. Não se lembrava com que santa que elle tinha visto se lhe parecia agora a Rosaria...

―Mas o cabello assim cortado...―disse com magua, mirando-lhe a cabeça nua, e passando a mão pela d'elle,―é que te não fica bem!

«Melhor fôra que lhe tivessem deixado as tranças. Negras, de mais a mais, que era como elle gostava...»

―Promessa da mãe se eu melhorasse―explicou a Rosaria―Lembranças... A gente quando está afflicta...

―...Quando está afflicta...―repetiu como um echo o pequeno. E depois, amuado:―Se promette os olhos...

A rapariga fitou-o, espantada.

―...é porque t'os tirava!―concluiu convicto.

Houve um momento de silencio, em que o Gonçalo se pôz a escavar o chão com uma pedra, e a Rosaria a torcer um fio saliente do seu vestido grosseiro. Ouviam-se as ovelhas chocalhando nas pastagens, ia a passar na rodeira, longe, um carro que chiava, com uvas para algum lagar.

[11] ―Não fallas, Rosaria?―perguntou o pastor sem levantar os olhos para ella.

―Tambem tu...―começou com medo a pequena,―logo te zangas! Olhem a lembrança dos olhos! Se a mãe fazia isso, credo!―E depois animando-se:―Já foste á Senhora dos Remedios?

O Gonçalo fez signal que não tinha ido.

―Pois foi lá que deixámos as tranças, eu mais a mãe. N'um prego ao lado do altar, um lacinho verde nas pontas. Ficou lindo.

O pastor teve um movimento de enfado, não lhe agradava a conversa. E para acabar com ella:

―Que emfim como melhoraste...―fez que concordava, pondo o bilro a girar.―Olha como dança...―E depois, mais pensativo, batendo com o bilro nos dentes:

―Que ás vezes as promessas pouco fazem...―E interrompendo:―Sabes quem fez este bilro?

―Foste tu, aposto.

Bateu no peito e fez com a cabeça que sim, mostrando-lh'o orgulhoso―«que visse os torneados.» Depois continuou:

―Vae uma pessoa andando e os santos não se importam. Ora, os santos!―Olha a minha Joaquina, tu não conheceste. A gente bem resou e bem promessas fez, mas ella foi-se.

[12] E pondo-se de joelhos, começou a procurar pelo rebanho.

―Aquella ovelha, a branca, não vês? A que se vae agora deitar... Pois era p'ra Nossa Senhora, repara que é a melhor.―E deitando-se para traz:―Lá anda ella a pastar!―concluiu desalentado.

―Mas tinha de ser,―volveu-lhe triste a Rosaria,―que as promessas sempre fazem, lá isso...

E convicta, a pequena contou casos acontecidos para convencer o Gonçalo de que sempre valiam as promessas. No emtanto, deitado de costas, com a jaqueta a fazer de travesseiro, as pernas em angulo tocando-se com os joelhos, o Gonçalo soprava pela palha o bugalhinho que constantemente ia subindo e descendo, acompanhado pelo olhar bondoso do cão que ali perto se deixara estar sentado. E contando, contando casos, a Rosaria ia entretendo o pastor. Mas quando ella fazia pausa, logo o rapaz acudia, firme na sua objecção:

―Ora! mas a nossa Joaquina morreu-se! Coitadinha da Joaquina!





Á medida que o sol ia subindo, no céo glorioso e fulvo, iam os dois conduzindo as ovelhas para sitios mais ensombrados, para se livrarem da estiagem que ia valente. Calor de rachar, ali por volta do meio dia, que foi quando tomaram para a banda das azinheiras, e para os pinheiraes, depois. E sempre ao lado um do outro, os dois companheiros levaram de conversa quasi o dia inteiro. Nunca tinham dado fé que as horas passassem tão depressa. [13] Ainda armaram aos passaros, mas foi o mesmo que nada, os demonios andavam espantados e já conheciam as esparrellas.

―Olha lá não caiam,―tinha dito o Gonçalo, já cançado de estar á espreita, agachado, com o fio da armadilha preso ao dedo.―Se elles fossem tolos...

E foi-se a recolher as esparrellas, dando ao demonio os passaros. Ella então propoz que jogassem a pocinha.

―E o fito, ó Rosaria? Sabes jogar ao fito? No adro, aos domingos de tarde, bato-me com qualquer, sabias?

E generoso:―Mas a ti dou te partido: vinte e cinco ás quarenta...

Como o tempo rendia, jogaram tudo―a pocinha, o fito, as necas, a bilharda. Na bilharda, como o rafeiro trazia á mão, era elle que ia buscar o pausinho, quando zinia longe.

―Turco, traz cá!





No emtamto, ia descaindo a tarde. Ao alto, o largo céo esmorecia no seu azul suavissimo. Em todo o espaço o ar estava tranquillo e sereno, e já começava para poente a decoração phantastica do occaso. Parece que se ouvia mais distincto o marulhar das aguas no rio; já não faiscava assim tão viva a areia branca das margens.

Foi quando o Gonçalo lembrou que era melhor irem-se chegando, mais as ovelhas, para as terras onde tinham de [14] pernoitar. E fitando fixamente os olhos negros da Rosaria, disse-lhe assim:

―Mas olha o que prometteste... Inda vaes feita no que disseste?

«Ora que lhe custava a ella! Já que as ovelhas tinham andado juntas todo o santo dia, que mais era que dormissem no mesmo curral, essa noite?»

―E o mais, ó Rosaria?―perguntou de novo com interesse.

A pequena ficou perplexa. Mas como o pastor não cessava de a olhar, respondeu:

―Tambem.―E sorriu-se.―Pois eu...

Só depois d'esta segunda promessa o Gonçalo se levantou, e deu o signal de partida, assobiando aos cães.

D'ahi a pouco, estavam de marcha para o curral, Quando passavam a velha ponte, a obliquidade dos raios do sol fazia alongar desmedidamente pelo areal a sombra dos tres arcos. Nas rugas da corrente, uma luz alaranjada tremeluzia, tirando á agua a sua translucidez normal.

―É bonito!―fez notar o pastor.

A Rosaria explicou logo:

―São as moiras a caçar com redes d'oiro, sabias?

Para a outra banda, um pouco mais abaixo, assomavam á flôr da corrente as cabeças dos dois rapazotes do moleiro. Dentro da chata que vogava serenamente, a mãe [15] com o mais novito ao collo não os perdia de vista, emquanto o pae, em mangas de camisa, de pé n'um topo de fraga, lhes ia ensinando as manobras. Ao fundo, tres vitellas passavam o rio a vau, muito devagar, parando a espaços, alongando o pescoço para a veia d'agua serena, bebendo mansamente. Sobre o vitello das malhas brancas, o guardador cantarolava, acenando com o chapeu ao moleiro―«boas tardes! boas tardes!» Ao sahir da ponte, o rebanho teve de se affastar um pouco do caminho: aproximava-se um almocreve com a longa fila de machos carregados, tilintando campainhas.

―Adeus pequenos! cumprimentou.

―Venha com Deus!―tornaram-lhe ambos.

E de novo se pozeram em marcha. As ovelhas continuavam confundidas, confraternisavam os cães como bons e leaes amigos. Á frente, o Gonçalo ia tocando na flauta o mesmo que a Rosaria cantava. O brando rumor dos chocalhos, que se levantava de todo o rebanho, casava-se com a musica, fundindo-se n'uma nota subtil, d'um pittoresco ingenuo de ballada...

Até que chegaram a um topo de serra, escurentado de matagal rasteiro, e então, parando um momento, o Gonçalo perguntou, collocando na sua frente a Rosaria, e pondo-lhe á cara a flauta, na direcção em que devia olhar.

―Vês além... n'este direito? Rez-vez do castanheiro, não enxergas?

A outra fez que sim com um gesto, e interrogou:

―Então é ali?

[16] ―Ali mesmo―volveu-lhe já de marcha.

E repoisando a mão direita sobre o hombro esquerdo da rapariga, repetiu-lhe muito contente:

―É mesmo além.

N'uma terra de restolho, um largo quadrado de cancellas marcava o espaço que as ovelhas tinham de occupar essa noite.

―Falta pouco; a gente vae pelo atalho que é só mau p'ra quem passa a cavallo.

E como elle ia expansivo, e a companheira não dava palavra, quiz então saber:

―Estás triste, ó Rosaria?

―Triste... não. Já agora... tem de ser―volveu-lhe cabisbaixa.

―Huum! Arrependeu-se...―volveu comsigo o pastor.





Até que por fim chegaram, tinha anoitecido havia instantes. Gado para dentro e toca a merendar; o que era d'um era d'outro: elle ainda trazia azeitonas, um naco de queijo, pão. Mal acabaram de comer, o Gonçalo apontou para a cabana que ficava alli perto, e propoz que se deitassem: estavam moídos da soalheira de todo o dia e da caminhada agora.

[17] Quando o Gonçalo e a Rosaria entraram na cabana e se deitaram sobre o colmo, cobrindo-se com as mantas, e achegando para a cabeça um do outro os bornaes que faziam de travesseiro, cerrára de todo a noite, e formigueiros de estrellas scintillavam vivezas de prata polida no azul indefinido do céo.

―E os lobos?―perguntou a Rosaria com medo.

―Não ha perigo―tranquilisou-a o Gonçalo.―Isso é lá com os cães.





Pouco a pouco, foi-se extinguindo no curral a musica triste dos chocalhos. A ladrar, os cães faziam echo. O rebanho devia dormir profundamente, immerso no mesmo somno em que jazia prostrada toda a Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois conversaram algum tempo, n'um ciciar brando de vozes, até que por fim, vencidos da fadiga, se deixaram adormecer,―quando a historia das moiras encantadas ia no seu melhor episodio...

E lá no alto céo, mesmo sobre a cabana, a estrella da tarde não era nem mais pura nem mais luminosa do que a alma simples e boa d'aquellas duas creanças...

Quando ao repontar da manhã se levantaram, e sahiram a vêr o céo...

―Bonito dia, Gonçalo!

―Bonito dia, Rosaria! Olha...

...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando... voando...



SULTÃO

(Copiado do Natural)


Ao meu Henrique e a Beldemonio, seu amigo.

I


Ao cair da tarde, o Thomé da Eira entrava em casa, cançado, esfalfado de andar um dia inteiro a mourejar no campo.

―Meus peccados, boa tarde!―dizia elle para a mulher, com um sorriso a affectar seriedade.

Vinha logo o pequeno, o Manuel, de mãos postas pedindo-lhe a benção.

―Deus te abençoe.

―Pae, olhe que o «Sultão»... ia a dizer o pequeno.

―Bem sei! atalhava logo o Thomé.―O «Sultão» é um maroto e tu és outro.

[20] E emquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bella navalha de meia-lua, que lhe custara um pinto havia bons quinze annos, e abria a gaveta do pão, o Thomé punha-se a fazer de interesseiro comsigo mesmo, resmungando alto p'ra que a mulher o ouvisse:

―É que por este caminho não tenho um dia descançado... Nem uma hora...

Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra.

―...Pois vamos já que já era tempo... Porque p'ra mim ha de chegar... A modos que vou já cançando...

Mas o Thomé não era homem que dissesse estas coisas de coração. Pareciam-lhe longos, interminaveis, os aborrecidos domingos que passava sem ir campos fóra, madrugador como um melro.

―Uma aquella como outra qualquer! dizia o bom do Thomé encolhendo os hombros, como quem está desgostoso com um genio assim.

Partiu uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua cabrada, e veiu sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra que dava para a rua, arregaçado, em mangas de camisa, muito á vontade.

Costume velho do Thomé:―mal se sentava, mastigando o «boccado», dizia logo para o filho:

―Ouves, Manuel? Bota cá fóra o «Sultão».

[21] O rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia nos gonzos ao impulso dos seus bracitos roliços, e punha-se a pular de contente, dizendo cá da rua:

―«Sultão»! Sae cá p'ra fóra, «Sultão»!

No fundo negro do pequeno cortelho, na moldura rectangular da porta baixa, destacava-se então a cabecita parda de um jumento, orelhas em riste, grandes olhos de uma tristeza perpetua, n'um movimento moroso de palpebras pestanudas...

E ali se quedava parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas pernas delgadas, a olhar o Thomé que o chamava,―um grande riso de alegria nas feições amorenadas, contente de ver o seu «Sultão».

Mas o pequeno jumento não avançava um passo, divertindo-se em arreliar o Thomé, fitando-o com um ar estagnado. Altivo na sua nobre linha de quadrupede de boa raça, alguem lhe poderia lêr no olhar, mole e impassivel, o frio, gelado despreso a que parecia votar o dono...

Mas era áquillo mesmo que o bom do lavrador achava graça. E punha-se então a fallar muito serio, entre resignado e cortez, para o pequeno e desdenhoso jumento―o pão e o queijo esquecidos n'uma das mãos, na outra a navalha de meia-lua:

―Então, «Sultão», não vens?

―Não! parecia responder-lhe o animal. E abstracto, continuava a envolvel-o no seu olhar profundo. A quebrar a harmonia d'aquella immobilidade de estatua, apenas [22] de quando em quando uma pequenina patada na soleira, zap!

―Zangado, «Sultão»? perguntava o lavrador.―De mal comigo?

E prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir á vontade...―que não fosse vel-o o «Sultão»... Mettia entre dentes um pedacito de queijo, logo uma codea de pão, e fazendo umas grandes rugas na testa, de quem começa a zangar-se, voltava-se então muito serio:

―Ficas ahi, «Sultão»? Já não és meu amigo?

O gerico abatia um pouco as orelhas, inclinava o pescoço, parece que fazendo-se humilde...

―Então se és, anda d'ahi. Olha...―E mostrava um pedacito de pão.―P'ra ti se vieres...

O «Sultão» dava tres passos, e ficava fóra do cortelho. E por se vingar, o Thomé carregava o semblante n'uma seriedade muito pesada, e erguendo o rosto iracundo chamava-lhe interesseiro, maroto, affirmando que já lhe não dava o pão. E desfechando-lhe emfim a ameaça de o vender a um cigano, entrava a tratal-o por senhor―sôr «Sultão»...

Mas o pequeno jumento ia andando muito devagar... andando... orelhas baixas, pescoço cahido, a modo de arrependido, parece que pedindo perdão da arrelia.

Nervoso, sapateando, o Thomé voltava a cara para a outra banda, a rir como um perdido.

―Diabo do gerico! diabo do ratão! Capaz é elle de [23] fazer rir as pedras, o mariola!―E tossia de engasgado, uma migalhita de queijo na guela.

No emtanto, o «Sultão» ia avançando, muito ronceiro, até que tocava com o focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O Thomé sacudia-o:

―Sae-te p'ra lá! dizia elle muito amuado, sem se voltar.―Cuidas talvez que te não conheço, cuidas? Já te não quero, vae-te!

Mas como que irreflectidamente, fingindo não querer, chegava-lhe ao focinho um pedacito do pão, o melhor da fatia. «Sultão» lançava um olhar obliquo, entre surrateiro e medroso, levantava cautelosamente o beiço superior, a tremer, e roubava-lh'o da mão.

Pazes feitas! Era então rir a perder, n'umas casquinadas agudas, muito estridulas.

―Credo, homem! dizia de cima, da janella, a sr.a Josefa.―Até pareces doido!

―Você assim rouba seu dono? Diga! Você assim rouba seu dono? perguntava o Thomé, n'uns grandes gestos.―Vamos que eu lhe não queria dar da merenda? Ladrão, de mais a mais!... Ora bem! agora brinque.

Era precisamente o que o Thomé queria:―ver o «Sultão» a brincar.

...Nada, com effeito, meus amigos, que mais divertisse o bom do lavrador, e melhor o indemnizasse d'aquellas fainas laboriosas que lhe consummiam os dias, imperturbavelmente, perpetuamente, sob soes causticantes e chuvas torrenciaes.

[24] Por isso, era de ver como elle ria, com uma boa vontade deliciosa, das «partidas» e «diabruras» do «Sultão»! Ás vezes, o pequeno jumento, ferido não sei por que vespa invisivel, despedia sem mais nem menos n'uma carreira aberta, focinho entre as pernas deanteiras, agitando a cauda, por aquella rua fóra. Rompia de toda a banda n'um alarido o rancho pacifico das galinhas, que já no ar andavam como doidas, cacarejando, como se um pé de vento as levasse. Accudia gente aos postigos, ás portas, ás janellas, a ver a polvorosa; e subito se inundava a rua de rapazes, rotos, descalços, alguns quasi nús, correndo atraz do burro, gritando-lhe, acenando-lhe, espantando-o―como se o mesmo vento de folia os houvesse varrido a todos, varrendo a propria rua... E um lá ia a terra, e sobre esse passavam os outros, e sobre todos voava o «Sultão», apupado, perseguido, acclamado, na malta espavorida dos inimigos...

―«Sultão»! eh lá! «Sultão»!

Subito, como se lhe estalasse a corda, o animal estacava, e logo de volta d'elle postava-se a rapaziada, mas n'um alor de nova fuga, não lhe desse na bôlha atacal-os... E abriam alas de repente, quando elle, tomado de novo accesso, voava para as bandas do dono, que por se não deixar atropellar investia com o «Sultão» de braços abertos, o que era, já se vê, um modo de o abraçar, fingindo medo. E vinham as gargalhadas estridulas, os rogos para que pozesse treguas, as supplicas para que se accommodasse, recuando o lavrador até ao ultimo degrau da escada, onde se deixava cair,―derrotado!

―P'ra lá, «Sultão»! p'ra lá! fazia então o Thomé, oppondo-lhe os pés, desviando-o, apoiando-se nos cotovelos, muito inclinado para traz, a rir como um perdido.

[25] Então o pequeno jumento estacava, offegante. Mas prestes rompia a girandola dos coices, em que era eximio, sacudindo muito as patas, cauda no ar, muito direita, ao mesmo tempo que o Thomé solicito dava aos rapazes o aviso de se arredarem―«porque era doido, aquelle demonio»!...

Outras vezes, parece que variando de tactica, entrava de seguir muito cauteloso, n'um ronceirismo perfido, como um borrego ou como um cão, certa mulher que passava. Até que lá ia uma focinhada, e logo após os saltos do costume, respondendo com uma ameaça de pinotes á surpresa da viandante.

―Dê, tia Luiza! bata n'esse maroto! fazia de lá o Thomé, com ares de zangado. E depois, batendo o pé, pedindo que lhe dessem uma verdasca:―«Sultão»! venha já p'r'aqui! intimava.

E se encontrava um cão? Se encontrava um cão, ia logo direito a elle, muito de vagar, cauda caida, orelhas murchas, n'um cumprimento humilde de focinho. O cão regougava, desconfiado, entreabrindo a dentuça, preparando a sua dentada. Não dava o «Sultão» signaes de medo, e humilde proseguia para o outro, propondo paz. Mas ao primeiro latido, recuava um passo, espertando da sua indolencia passiva; e de espinha arqueada ganhava o terreno perdido―fitando impassivel o cão... O bruto formava então o salto, regougando forte, o pêllo eriçado; e ao investir para a primeira dentada, salvava-o de um pulo o «Sultão», evitando-o, até que por compaixão lhe dava um pequenino coice, «mais feitio que outra coisa», pondo em fuga o mastim, corrido, ganindo, vencido:

―Eh! valente! gritava-lhe então o Thomé.

[26] E com duas palmadas na anca, espantava-o emfim para o cortelho, dizendo ao correr a caravelha:

―Não ha dinheiro que te pague, assim me Deus salve!

E comido o caldo verde da ceia, nunca o Thomé da Eira ia para a cama sem primeiro descer a vêr o «Sultão»,―de candeia na mão esquerda, e na direita, contra o sovaco, a bella quarta do grão, acogulada.

Muitas vezes acontecia esquecer-se o Thomé a vel-o comer, de candeia attenta, encostado á mangedoira, sorrindo: e, de cima, a sr.a Josefa tinha de intervir então, gritando-lhe pelas frinchas do sobrado:

―Thomé, vê se te vens deitar, meu pasmado! olha que são horas.

E piamente, como fanatico, achava verosimil a lenda da burra que fallou,―historia que uma tarde, passando, o abbade lhe contara. Tanto que mais de uma vez, dando ao burro as boas-noites, extranhou com certo desgosto que o «Sultão» lhe não respondesse:

―Boas noites!





Mas o demonio, que sempre as arma, armou-lh'a tambem um dia! Foi ao cortelho, de manhã cedo, e não encontrou o burro. Ficou parvo! Poz-se a mirar, espantado, a loja que lhe pareceu enorme, e além de enorme―gelada...

[27] ―Ó Josefa! Josefa! entrou de gritar da rua.―Ó Josefa!

A mulher assomou á janella, sobresaltada.

―Queres apostar que me roubaram o burro, ó mulher?!

―Que te roubaram o quê? fez a sr.a Josefa, muito attonita.

―O burro, o «Sultão»! Vem cá ver que m'o roubaram!

E como ao tempo acudira já o Manoel, em camisa, descalço, romperam todos tres na gritaria, defronte do cortelho vazio:

―Á d'el-rei! Á d'el-rei! Á d'el-rei!

Até que o regedor, que era compadre, intervindo estremunhado, poz na peugada do burro, mais dos larapios, os cabos que compareceram.

Mas em vão! Um a um foram regressando, pelo dia adeante, e desfechando ao peito abatido do Thomé a negra e vazia palavra:

―Nada!...

II


Dois annos depois. Tarde d'agosto. Ao longe, fechando o horizonte que a eira dominava, as arestas dos montes quebravam-se n'uma sombra egual, e embaciavam [28] ainda o poente as suaves, brandas pulverisações doiradas da ultima luz do sol. Riscos vermelhos de nuvens, como grandes vergas de ferro levadas ao rubro, destacavam immoveis n'um fundo verde-mar, esvaecido e meigo, raiado de listrões de uma coloração leve de laranja. Pequenos algodões transparentes, com alvuras de neve, cortavam aqui e além, alegremente, a monotonia profunda do azul. N'um deslado, sob os castanheiros proximos, surgiam os telhados da aldeia, a torre branca da igreja, as paredes caiadas da escola.

A vasta eira commum, levemente accidentada, apresentava áquella hora o aspecto tranquillo e de paz de uma grande officina em repouso. Poucas «mêdas», iam no fim as colheitas: mais uma semana, duas quando muito, e estaria tudo recolhido. Já sobre a palha das «parvas» ou ao sopé das «mêdas» altas, entre os utensilios da trilha e a creançada estridula que brincava, os da lavoura descançavam―vermelhos da soalheira intensa de todo o dia, alguns deitados, em mangas de camisa, peito nú, arregaçados os braços musculosos, n'uma prostração regalada de matilha que alfim tem a sua hora de socego, após um dia de caçada. Parecem prostrados da fadiga os proprios malhos, os trilhos, as pás, os «baleios» que levaram todo o santo dia varrendo o chão em volta das «parvas». E aqui e ali, dando uma sensação agradavel de fartura, perfilam-se os altos saccos no meio das rasas, extravasando de grão. Além, gente em mangas de camisa, ao redor de um grande montão de palha triturada, vae «limpando»―visto que sopra um «ventinho». E sente-se sobre as pás a chuva do grão, ao mesmo tempo que a palha, voando, faz monte da outra banda, e os «baleios», em mãos de mulheres, não cessam de arrebanhar o grão, varrendo em roda n'um afan... Em certo ponto, carros vasios; um além, de altissimas «angarellas», vae-se enchendo de palha; emquanto outros, atulhados de saccos, em rimas entre as cancellas [29] mais baixas, estridulamente chiando abalam para as tulhas, levados pelos bois gigantes.

Eiras além, livres dos trilhos que ficavam em cima da palha, levas de bois caminhavam vagarosamente, as largas orelhas pendentes, caudas oscilantes afagando nas ancas espaçosas o luzidio pêllo. E lá vão encosta abaixo, roçando pelos troncos asperos dos castanheiros a enorme corpolencia, fartar o largo bandulho á serena agua das ribeiras, sorvendo vagarosamente, impando a cada sorvo, pesadamente, monotonamente, parece que insaciaveis no meio da agua em que se atolam, submissa...

Ao fundo da eira, rente aos castanheiros escuros, um rancho de mulheres cantava alegremente, em côro. Acabara de ensacar-se o ultimo grão da farta colheita do Thomé da Eira.

―Colheita rica, sim senhor! vinham dizer-lhe os visinhos.―A primeira da aldeia!

―Qual? isso sim! vão vocês vêr a tulha. Muita palha, é que vocês hão de dizer, muita palha e pouco grão...

E muito azafamado, sem prosapias de maioral nem geitos de soberba, as mangas arregaçadas pelos cotovelos, O Thomé ia e vinha, dando ordens, repetindo avisos, distribuindo aqui e além as ultimas tarefas.

―Ahi vae um sacco, ó tu! É p'r'as «rabeiras». Que não fique nem um grão, ouviram? É aviar, toca a aviar! Cautela que não fique por ahi alguma coisa esquecida: essas pás, esses «baleios», tudo isso. Margarida! ó Margarida! qu'é da tua rasa? Deixa! se vae no carro está bem.

E era como um doido a metter-se no serviço de todos, [30] muito expedito, loquaz, alegre, pedindo pelas bentas almas que se não deixassem agora dormir...

―Vamos lá! vamos lá! As pás, ó tu que cantas? Deixa-me por ahi alguma, que eu depois te ensinarei, ouviste?―Que faz ahi no chão esse «rasouro», ó coisa?―Olha p'r'o que estás a fazer, tu: esses saccos que fiquem bem atados.

O criado, que ia abalar com a carrada, perguntou, já de «aguilhada» no ar, se era preciso mais alguma coisa.

―Não, pódes ir. Ouves? lá em casa que tenham a ceia a horas. Avia-te. Ouves, Francisco? Não piques os bois, a carrada é valente. A passo, deixa ir os animaes a passo. Vae-te.

Como o carro chiava, levantou a voz para dizer:

―Olha, descarrega na tulha do meio. Na tulha do meio, não ouves? Os bois para o lameiro.

Mas o Francisco apontou dois saccos que ficavam:―«seria preciso vir por elles?»

―Não vale a pena, lá irão.

E depois, para aquella gente, observou que bem sabia elle quem os levava, aquelles dois saccos...

―Com mil demonios! Apostar que vocês não adivinham?

«Elles sabiam lá?... Quem quer podia levar os dois saccos, olhem agora!»

[31] ―O «Sultão», sabem? o «Sultão»! Esse é que os levava. E digo-vos então que valia o dobro a colheita, assim me Deus salve!

Alguns riram da lembrança. «Tinha graça que a scisma do animal não lhe passava nem á mão de Deus Padre!»

―A modos que isso é já mania, ó sr. Thomé?

Nisto, porém, o lavrador soltou um «oh!» de surpreza. Voltaram-se todos―«que era?» Na estrada que a eira dominava, um homem ia passando, a cavallo.

―Vocês não querem vêr, ó rapazes?! perguntou o lavrador, fazendo-se pallido.―Aquelle burro, hein? se não é o «Sultão» é o diabo por elle...

Recordaram:―«estrella malhada na testa, a mão direita branca»...

―É elle, com um milhão de diabos! não ha que vêr! E aquelle é o ladrão!

E cuspindo nas mãos, e arregaçando mais as mangas da camisa, arrancou, d'um abanão, o cabo d'uma «espalhadoura» e botou a fugir direito á estrada.

Prestes ouviu-se um berreiro, as mulheres do rancho em alarido:

―Que o mata! gritavam todas.―Ai que o mata! Acudam! Ai a desgraça! Nem a alma lhe deixa! Acudam!

Os homens deitaram a correr atraz d'elle, affluia gente de todas as bandas da eira, os cães ladravam.

[32] ―Então, sr. Thomé? olhe que se perde, sr. Thomé! diziam-lhe, já agarrados a elle.―Largue o cabo, que se desgraça! Tudo se faz a bem, sr. Thomé, largue vossemecê o cabo!

―Qual bem nem qual diabo! Qual larga? Arreda! Racho-lhe as costellas, mais a vocês, se me não largam! Arreda!

E esbracejava furioso, levando-os de roldão, agarrados a elle mais ao cabo. Chegou a ferir um, os outros desanimaram por instantes.

―Vê, sr. Thomé?!

«Não via nada, não queria ver cousa nenhuma! Arreda!» E n'um rompante de ira, abrindo brecha com um «sarilho», de um pulo saltou á estrada, aos tropeções nas pedras que encontrava, mal se equilibrando.

―Abaixo! intimou.―Você é um ladrão!

―Um quê?

―Um ladrão! É meu esse burro! Hei-de matal-o aqui, seu patife! Deixem-me! larguem-me! Ha-de ahi ficar estendido, como um cão!

E no meio da malta em alvoroço, com a arreata do burro na mão esquerda, e na direita o minacissimo cacete, berrava que o deixassem, que ia tudo razo―«com seiscentos milhões de diabos!»

Seguiu-se altercação, vieram razões de parte a parte, insultos.

[33] ―Já lhe disse que você é um ladrão!

―Ladrão será você!―tornou-lhe o outro já de pé, avançando de punhos cerrados.―E não m'o diga outra vez, que o racho!

Afflictas, algumas mulheres voltavam-se, de mãos postas, para a capellinha proxima, rogando o soccorro da Virgem. O lavrador entrava de tremer como varas verdes, desfigurava-o a raiva, uma saliva muito branca bordejava-lhe os cantos da bocca. Pela camisa rota, via-se-lhe já um pedaço de hombro. Tinham, alfim, conseguido arrancar-lhe o cacete, mas agora esbracejava, punhos no ar sobre aquellas cabeças em desordem.

Já, para uns certos do grupo, o homem do burro se desculpava:―«tinha-o comprado a uns ciganos, fossem lá adivinhar que o burro era roubado...»

―Vê, sr. Thomé? acudiram logo uns poucos.―O homem não tem culpa.―E gritavam-lhe aos ouvidos:―Não tem culpa! Comprou o animal na boa fé. Vês-ahi está!

―Mente! objectava incredulo o Thomé, cada vez mais irado.―Mente!

―Mente?! perguntava o outro de lá, assanhado.

―Como um judeu! cuspia-lhe da outra banda o Thomé.

De modo que para o convencerem, foi preciso afinal leval-o quasi á má cara, chamar-lhe homem de rixas, despropositado, bulhento. Elle então, abrindo os braços como se fosse para nadar, socegou um pouco, amainou,―prometteu levar aquillo com paciencia, ás boas. Chegou [34] quasi a pedir desculpa, limpando com a manga branca as bagas das camarinhas.―«Mas tinha perdido a cabeça, que lhe queriam?»

Chegou-se por fim a um accordo. «Sim, senhores, accommodava-se, mas punha uma condição: largasse elle o burro, e o burro é que havia de resolver...»

―Serve-lhe o contracto?

―Qual contracto?

―Mau! Larga-se o burro, você entende? deixa se o burro ás soltas. Depois, é p'ra onde elle fôr. Se o burro larga p'ra traz, lá p'r'as bandas d'onde você vem... Você d'onde vem?

―Dos Casaes.

―Pois ahi está. Se o burro tomar p'r'os Casaes, o burro fica seu...

―E tomando direito á aldeia, é do sr. Thomé,―concluiram alguns do grupo, conciliadores.

―Nem mais! Serve-lhe assim? Diga se lhe serve assim.

Por um desfastio, o outro concordou. Mas lá lhe parecia historia que o burro tomasse para a aldeia... Vinha de tão má vontade, que até lhe custara tiral-o de casa.

―Olhe que vae pr'os Casaes! Digo-lhe então que vae pr'os Casaes...―affirmou.

[35] ―Melhor p'ra você. Mas nós veremos p'ra onde vae. Você está pelo dito?―quiz saber o Thomé.

―Sim senhor, estou! Pois que duvida tem que estou? disse-lhe o outro n'um rompante. Olhe: uma, duas, tres; ás tres largo-lhe a arreata.

Ia já a abrir a bocca para dizer―«uma!»

―Alto! fez o Thomé. Espere lá um pouco. Primeiro hei-de fazer duas festas ao animal.

E pôz-se a bater-lhe na anca, no pescoço, no peito, demorando-se um pouco a fital-o de frente, «para que o animal o conhecesse.»

―«Sultão»! gritou-lhe de repente. Eh! «Sultão»!

O burro estremeceu... Dir-se-hia que no fundo da sua memoria, a lembrança porventura adormecida d'aquelle nome despertara subitamente...

―Eh! Eh! riu-se muito satisfeito o lavrador. O burro, agora, vira-se p'ra ali. Isso. Nem é p'r'os Casaes nem p'r'o logar. Assim. Eh! Eh!

E afastou-se para o lado, aguardando.

Uma anciedade dominava n'aquelle momento os do grupo; o Thomé pôz-se a roer as unhas, nervoso...

―Então você porque espera? perguntou.

Ouviu-se logo a voz do outro, dizendo:

―Á uma!...

[36] O Thomé sentiu um calafrio; sapateava nervoso, cheio de medo, o olhar de esguelha, e entre os dentes ferrados o pollegar da mão direita...

―...ás duas!

―Ih! c'um raio!... dizia baixo o Thomé.

E sem querer, os olhos cerraram-se-lhe com força.

―...ás tres!

Foi então um barulho de palmas, um berreiro atroador de vivas e gargalhadas! O Thomé vencera: corriam todos a abraçal-o, affirmando que o caso era para foguetes.

―Viva o sr. Thomé! Viva o «Sultão»! Aquillo é que é burro!

―Aquillo é que é amigo, hão-de vocês dizer!―emendava o Thomé a rir. Tenho-os com dois pés, que não valem metade...

―Oh! sr. Thomé! protestavam alguns.

―Isto não é com vocês, mas é como quem se confessa... Está visto que não é com vocês.

E ria, ria como um perdido, emquanto, estrada fóra, o «Sultão» corria que voava, cauda no ar, corda de rastos, perdendo-se por fim lá ao fundo, na poeirada immensa da estrada, como que nimbado n'um resplendor de apotheose. E na peugada do burro, esbaforido e como doido, seguia agora o lavrador, após o fraternal abraço, pregado no dos Casaes...

[37] Quando o Thomé chegou a casa, offegante, a suar, cheio de gestos e de palavras entrecortadas de riso, já o «Sultão», relinchando, pateava á porta do antigo cortelho, n'uma grande impaciencia, um «rap-rap» continuo na soleira.

―Venham vêr! Venham cá vêr! berrava o Thomé para a vizinhança. Ó Antonio! Ó compadre! Ó Maria Engracia!

Ás janellas assomava gente, perguntando se era fogo.

―Qual fogo, nem qual carapuça! É o «Sultão», mas é! Este inimigo! Ó Josepha! Josepha! cá temos o burro, este demonio. Assoma.

Ora imaginem agora os senhores, se podem, a effusão do lavrador. Abraços? E até beijos. Aquillo era um thesoiro perdido que reapparecia alfim. A mulher, do alto da escada, benzia-se, perguntando se o seu homem teria endoidecido...

―Palavra de rei, «Sultão», palavra de rei! Anda d'ahi pelos saccos. São só dois. Ó Josepha! Ouves? p'ra cá esse garrafão que está ao pé da arca, avia-te. A caneca tambem, ouviste? Essa das riscas vermelhas, a maior.

E atirando as mãos ambas para a albarda, montou muito regalado, de um pulo.

―Ah!

A senhora Josepha assomava, ajoujada com o enorme garrafão.

―Anda, mulher, põe aqui deante de mim. Avia-te.

[38] Ia a boa da senhora Josepha arriscar uma observação, um conselho, qualquer coisa de tomo...

―Adeus, minhas encommendas! Não me fanfes, mulher, não me fanfes. Põe aqui, que mando eu, avia-te. Assim. Está bem.

―Nome do Padre...

―Então que lhe queres? Deu-me agora p'r'aqui!

―Nome do Padre, nome do Filho...

―A caneca! Venha de lá agora a caneca!

―...nome do Espirito Santo!

―Passa bem, ó mulher,―concluiu ás gargalhadas, entre as gargalhadas dos demais.―Ouves? Quando o Manoel vier dos ninhos, esse maroto, manda-m'o ás eiras. A trote, «Sultão»! Eh! valente!

E lá parte, veloz como uma setta. Já de longe volta-se do repente:

―Josepha! ó Josepha! n'esse alguidar do meio umas sopas de vinho p'r'o «Sultão», ouviste? No do meio. O grande é muito grande, e esse pequeno não presta. Ouves? mas quer-se coisa que farte, bem entendido.

E de novo despediu como uma flecha, abraçado ao garrafão. Arreata para a direita, arreata para a esquerda, pernas a dar a dar, elle lá vae n'uma corrida, sumido n'uma onda de poeira, até chegar ás primeiras «mêdas».

―Vinho, rapaziada! Ó Maria do Carmo, toma lá uma [39] pinga, mulher! Lá por andarmos de mal ha 15 annos isso acabou-se!

E o Thomé atravessou a eira sempre a cavallo no «Sultão», caneca de vinho para a direita, caneca de vinho para a esquerda.





Meia hora depois regressava, o «Sultão» pela arreata, o Manoel no meio dos saccos, e adeante do Manoel o bello garrafão―sem pinga...

Pelo caminho, a todos o Thomé contava a historia, a rir como um perdido, n'um ah! ah! de gargalhadas sonoras, muito intimas.

―Colheita rica, sim senhores, um colheitão!

E parando á porta, ainda a mulher se benzia do alto da escada, mexendo e remexendo o alguidar de barro:

―Nome do Padre, do Filho, do Espirito Santo.

...Ao mesmo tempo que o Thomé, abrindo os braços, respondia reclamando as sopas:

―Amen!



ULTIMA DADIVA


Ao dr. A.A. da Fonseca Pinto.


Distante do rio apenas um tiro de bala ficava o horto do José Cosme, bello horto ainda que pequeno, todo mimoso de fructas e hortaliças, fechado entre velhas paredes musgosas, atufadas em silvedo, communicando com a estrada por um pequeno portelo mal seguro. E eis ali quanto ao pobre homem restava dos seus antigos haveres:―o horto, a um canto a nora, e perto da nora, sob a umbella tufada e virente da antiga magnolia gigantesca, a misera casinhola de alpendre, apenas com uma porta e duas janellitas lateraes mas toda pittoresca das heras que a revestiam, que lhe pendiam dos beiraes enlaçadas com as trepadeiras.

De modo que na primavera, quando as parasitas abriam [42] serenamente os seus melindrosos calices sobre esse fundo de verdura reluzente, e a magnolia toda se toucava de flores fazendo docel á vivenda, aquelle pequeno canto d'horto, com a sua nora e com a sua agua espelhante e limpida, tomava a feição ingenua de uma delicadissima tela de paizagista, aquarella deliciosa, alegre e idyllica, cheia de encantos na poesia rustica da sua simplicidade.

No verão, ás horas de calor, quando o sol caía a pino sobre a larga paizagem adormecida e turva, e as arvores da estrada não davam sombra que aliviasse, aquella tranquillidade com que o José Cosme ressonava sob o alpendre, braços nús e peito nú, o chapeirão de palha grossa resguardando-lhe a cara, fazia inveja aos que por ali passavam, cançados e cheios de poeira, flagellados por aquella estiagem inclemente.

―Ó tio José!―gritavam-lhe do caminho.―Tio José! Ó regalado!

Mas os que entendiam de lavoura, proprietarios e maioraes, esses deixavam dormir o José Cosme e ficavam-se a admirar o horto.

Ora na verdade!... Bello horto, sim senhores! Por aquellas redondezas não havia outro que se lhe comparasse, tão esmerada era a sua cultura―tão esmerada e tão completa, pois que de mais a mais nem palmo de terra ficara inculto. Nas leiras, dispostas com symetria agradavel, verdejavam cheios de viço, frescos e medrados, legumes de todas as castas―desde a alface muito tenra, de folhas verde-claras, toda acaçapada no chão humido das regas, até ás trepadeiras das vagens que enroscadas ascendiam pela basta «rodriga» de castanho aparada com todo o esmero, formando massiços de verdura [43] sombria que os casulos esguios dos feijões crivavam de alto a baixo. Arvores, apenas as precisas para aformosearem o horto, sem prejudicarem com a sombra a vegetação franca das hortaliças. Mas todas as que havia eram mimosas de fructas nas estações competentes―cerejas, peras, maçãs, pecegos mesmo.

Poucas flôres: uma coisa que todos notavam com estranheza. Mas desde que lhe morrera a mulher mais a filha, o José Cosme deixara-se de as cultivar, e nos canteiros assim devolutos tinha semeado repolhos, que por signal vinham enfezados. Só teve o cuidado de não deixar morrer os goivos. Uma vez por anno, em fins de Maio, colhia-os todos de uma vez, e ia leval-os em braçado á sepultura rasa das suas defunctas.

Exactamente n'essa tarde tinha elle ido ao cemiterio fazer a funebre visita. Quando se recolheu era já noite. Mal acabou de cear levantou-se bruscamente da mesa e foi-se para o horto, com uma grande vontade de chorar. Estava nas suas horas tristes, n'essas horas em que as energias todas da sua alma e até as do seu corpo vergavam sob o flagello de uma dôr violenta, exacerbada agora pela saudade dos que lhe tinham morrido... E para maior desgraça fugira-lhe o bem das lagrimas. De modo que sem esse lenitivo, aquellas medonhas tempestades custavam o dobro a supportar. Abstracto, n'uma especie de entorpecimento idiota, percorria sem descanço todas as ruas do horto, cabisbaixo, acabrunhado, automato. Se por vezes parava, recolhendo-se n'uma quietação attenta, logo um gesto brusco desmanchava a sua immobilidade de estatua, soltava um fundo gemido, e punha-se de novo a andar.

―Vens ou não vens?―perguntava elle, evocando com dorido esforço a imagem da mulher ou da filha. Não vinha; [44] e quando apparecia era como se fosse um relampago, apagava-se logo.

N'esta lucta com a sua dôr as horas iam passando longas. Era já tarde, talvez a uma da noite. Luz, apenas a das estrellas, pois que o luar nascia tarde. Pesava sobre toda a paizagem o largo silencio da noite, apenas cortado, ao longe, pela melopeia somnolenta do rio.

Um rapaz que ia na estrada olhou por acaso para o horto do José Cosmo e viu um vulto perpassar de repente e de repente sumir-se n'um recanto onde a sombra era mais densa.

―Temos historia...―resmungou comsigo o rapaz.

E, rente a uma arvore, quedou-se alapardado, á espreita. Não desconfiou que fosse o José Cosme: aquillo era mariola de larapio que vinha por ali fazer das suas. Agachou-se então, e poz-se a procurar uma pedra. Apanhou duas, para o caso de não acertar a primeira.

―Cão do diabo!―exclamou baixo o rapaz, pondo-se em posição de jogar a pedra.―Espera que eu te arranjo...―E já ia arremessal-a na direcção do canto, quando o vulto saiu da sombra e tomou por um carreiro, direito ao logar onde o rapaz estava.

―Melhor! Mais a geito ficas...

E debruçando-se um pouco na parede, poz-se a fixar o vulto que avançava, para ver se o conhecia. Quem quer que era trazia a jaqueta sobre os hombros, alvejavam-lhe as mangas da camisa. A meio do carreiro, mesmo defronte d'elle, parou. Foi então que o rapaz se lembrou do José Cosme. O vulto parecia, com effeito, ser o [45] d'elle; lembrava-se agora de ter ouvido que o pobre homem, quando o ralavam saudades da mulher e da filha, levava noites em claro, a percorrer como doido aquelles carreiros por onde ellas tinham andado.

Quando ouviu soluçar, acabou então de se convencer. Insensivelmente, deixou cair as pedras e perguntou:

―Tio José! Ó tio José! Sou eu, o Luiz... Vossemecê que tem?

O lavrador não respondeu, parece que nem tinha ouvido. O rapaz insistiu:

―Doe-lhe alguma coisa, ó tio José?

―Não dóe, não. Sabes que mais? peço-te pelas alminhas que me deixes. Bem me bondam as minhas afflicções. Vae com Deus, vae.

O rapaz ficou surprehendido, triste do tom de supplica dorida que o José Cosme dera áquellas palavras, e retirou-se silencioso, quasi aterrado agora com a ideia de que poderia ter matado o pobre homem, caso jogasse a pedrada.

No emtanto a noite ia avançando, grave, soturna, sem outro ruido que não fosse o das aguas do rio. E o José Cosme, sem despegar do seu fadario, ia e vinha pelas ruas do horto, lembrando um automato ou um somnambulo. Ás vezes abeirava-se da porta de casa e punha-se a escutar. Como não sentia nada, voltava de novo ao seu passeio. N'isto, de uma vez que passava em frente do cancello, pareceu-lhe ouvir passos.

―Ó Thomaz!

[46] ―Sr. José!―respondeu o que entrava, n'uma voz que era mesmo voz de barqueiro.

O Cosme sentiu então uma grande vontade de chorar, mas remordendo os beiços dominou-a. Como o barqueiro estranhasse encontral-o a pé, elle então redarguiu-lhe que nem se tinha deitado.

―Como tinha de madrugar...

―Pois são horas de largar, sr. José; isto vae p'r'as duas. Não tarda que comece a amanhecer.―E como estavam á porta de casa:―Será bom acordar já o pequeno: veste, não veste, é tempo que se vae.―Iam á vela se o tempo não mudasse. Era bom aviar, por isso.

Mas á ideia de ter de acordar o pequeno, o José Cosme deixou-se cair sobre o banco que estava debaixo do alpendre, e desatou a chorar violentamente.

O barqueiro tentou animal-o, constrangido.

―Então, sr. José?... O chorar é lá para as mulheres. Olhem agora que homem!―E tentava levantal-o, pol-o de pé.―Limpe lá essas lagrimas, que vae affligir o pequeno! Ou quer que elle vá a chorar todo o caminho?

O Cosme fez que não com a cabeça, violentamente, e poz-se a enxugar os olhos com a manga da camisa.

―Pois então levante-se lá.―E segurou-o com força por baixo dos braços.―Assim! Lá porque o pequeno vae para o Brazil não fique vossemecê a pensar que o não torna a ver.

Mas era isso mesmo o que elle pensava...

[47] ―Porque não sei que me adivinha que não torno a ver o pequeno―concluiu a chorar o José Cosme.

―Scismas! lembranças que veem á gente quando está afflicta. Mas ha-de vel-o que o não ha-de conhecer, digo-lh'o eu. Mais anno menos anno, apparece-lhe ahi rico...

Rico! bem lhe importava a elle que o pequeno viesse rico. O que desejava era que voltasse e que elle ainda fosse vivo só para o abraçar.

Pois sim, mas era preciso aviar, que tivesse paciencia: o José Cosme que se animasse para animar o pequeno―recommendava o barqueiro.

―Sim... sim...―tartamudeava o Cosme.―Vamos lá com Deus! Com'assim..

E n'um profundo ai dolorosissimo, foi-se direito á porta para chamar a pequeno. Não havia remedio, tinha nascido em má hora, havia de ser desgraçado até que o levassem para a cova... Sobre a estreita e humilde cama o filho dormia profundamente. Que dôr, ter do o acordar! Vieram-lhe tentações de mandar embora o Thomaz e deixar dormir a creança. Quem sabe se a sua sorte futura, se toda a sua vida, valeria a boa tranquillidade d'aquelle somno! Não tinha coragem para o acordar, fazel-o vestir: era quasi um peccado quebrar aquelle ultimo somno dormido sob o tecto paterno... O ultimo somno! o ultimo somno!

―Ainda se o deixassemos acordar...―aventurou-se a dizer o triste.

Mas o Thomaz que estava com pressa, lembrou seccamente que eram horas de pôr o barco a andar.

[48] O José Cosme accendeu então a candeia, reccioso de que a luz o acordasse, e achegando-se do filho poz-se a escutar-lhe a respiração. Dormia!... Mas brandamente pousou-lhe a mão sobre a cabeça e chamou baixinho, quasi ao ouvido, beijando-o, sobresaltado como se fosse praticar um grande crime:

―Filho, olha que são horas, meu filho...

Quando o pequeno se sentou na cama, estremunhado, ainda sob o estonteamento do somno, cerrando os olhos áquella hostilidade viva da luz, o pae agarrou-se a elle n'um abraço, e ambos romperam a chorar.

―Adeus, pae!

―Adeus, filho!

Confrangido, o Thomaz que se deixara ficar á porta, avançou para desatar aquelle abraço.

―Olhe que é tarde, sr. José. Perdoe, mas olhe que é tarde!

O pae vestiu o pequeno, beijou-o ainda muito, e sairam. Debaixo do alpendre, o Joaquimsito ficou-se um instante a olhar o tecto.

―A andorinha, filho?―perguntou o José Cosme.―Deixa que eu hei-de olhar por ella, mais pelos filhos quando os tiver. Vae socegado.

Mas o pequeno quiz vel-a, pediu ao pae que o erguesse, era só um instante. Lá estava ella, coitadinha! sentiu-a estremecer quando lhe tocou com as pontas dos dedos...

[49] ―Adeus!―disse-lhe o pequeno afagando-a.

A esta palavra, o pae retrahiu os braços e tomando o filho no collo seguiu. Atraz, o barqueiro levava ao hombro a misera arca de pinho: toda a bagagem do Joaquim.

Ao transpor o cancello o José Cosme deteve-se um pouco e perguntou soluçando:

―Quando voltarás ao horto, meu filho?

O pequeno não respondeu. Chorava constantemente de ver que o separavam de tudo o que adorava―a andorinha, depois da andorinha o horto, as arvores, a velha nora, o cancello, tudo emfim.

Atravessaram então a estrada e tomaram para a banda do rio. Quando o sentiram murmurar, aperraram mais o abraço, deram-se um longo beijo, humido das lagrimas que ambos derramavam. Ah, como o triste pae desejava que o rio ficasse ainda longe, mui longe, que fugisse deante d'elles, de modo que nunca o alcançassem! Mas eis que a areia principiava, divisava-se já perto o vulto escuro do barco onde os da tripulação fallavam alto.

―Prompto?―perguntou ainda de longe o Thomaz.

Do barco responderam que era só marchar, de mais a mais ia romper a lua.

Chegaram emfim. N'um leve silencio d'acaso ouviam-se os soluços dos dois, parece que prolongados infinitamente, na sua expressão de angustia, pelo deslisar monotono das aguas... Aquillo confrangia o barqueiro, elle tambem era pae... Por isso, mal chegaram á beira do rio, apressou-se a dizer para o pequeno:

[50] ―Ora bem, Joaquimsinho, beija a mão a teu pae e dize-lhe adeus.

Ouviu-se um chorar lancinante, a voz do pobre José Cosme a querer animar o filho:

―Então, meu filho?... Deus te abençoe, meu amor... Nossa Senhora te veja ir.―E fez-lhe prometter que havia de resar sempre a Nossa Senhora, elle tambem lhe resaria, pois era ella quem dava saude, quem fazia a gente feliz.

―Não te esqueças d'ella mais da alminha de tua mãe e de tua irmã...

Mas o pequeno chorava cada vez mais, agarrado ao pescoço do pae, beijando-o sofregamente, acarinhando-o, sem forças para dizer palavra. Então o José Cosme, perdida a esperança de animar o filho, só exclamava desvairado:

―Valha-me Deus! O Senhor me valha pela sua infinita misericordia!

E o Joaquim sempre agarrado a elle, beijava-o na cara, na cabeça, nas mãos. Até que o Thomaz teve de intervir, era preciso despegar d'ali por uma vez.

―Com'assim, sr. José, isto tem de ser...―E segurando o pequeno com força puxou-o para elle. Quando já o tinha nos braços, ouviu-se o José Cosme que supplicava de mãos postas:

―Só um instante, só um quasinadinha, Thomaz!―E o pobre pae caia de joelhos na areia, n'uma attitude de supplica.

[51] Mas n'esse momento, o barqueiro saltou de um pulo para o barco, levando ao colo a creança.

―Rema!―intimou em voz rapida.

O barco recuou então subitamente, ao mesmo tempo que os remos fizeram plhau! sobre a agua.

Então o choro do José Cosme tornou-se de uma violencia desesperada, ao ouvir a voz lacrimosa do pequeno dizendo-lhe adeus lá do barco.

―Adeus, Joaquim, adeus!

―Adeus, pae!

―Adeus!

Mas repentinamente, com voz resoluta e firme, o José Cosme gritou na direcção do barco:

―Thomaz! ó Thomaz! por alma de teu pae faz lá alto um instante.

Acabou-se! custara-lhe tomar aquella resolução, mas já agora era melhor ficar sósinho de todo. E segurando nos dentes um pequeno objecto, arremessou a jaqueta ao areal e d'um lance deitou-se a nado. O Thomaz que ouvira o mergulho do corpo, fez recuar o barco; mas o José Cosme, velho nadador destemido, com meia duzia de braçadas ganhou-lhe de prompto a quilha. O filho tinha-se debruçado, na ancia de esperar o pae, de o ver ainda outra vez. N'um movimento rapido, o José Cosme entregou ao pequeno o que levava entre os dentes, dizendo-lhe a chorar:

[52] ―É a medalha, Joaquim; é a medalhinha de tua mãe, meu filho!... Reza-lhe, sim?!

E chorando cada vez mais, o pobre José Cosme pediu ao barqueiro que lhe chegasse o pequeno para o ultimo beijo...

Dado o ultimo beijo, o barco poz-se de novo em marcha. Vinha a romper a lua, enorme, torva, afogueada, como se viesse de algum banho de sangue em região mysteriosa de lagrimas... E no silencio agoireiro da noite, apenas cortado pelo bater monotono dos remos e pelo bracejar desalentado do triste nadador, á voz do filho que chamava respondia cada vez de mais longe―longe como se fôra do Infinito! a voz lacrimosa do pae―com o seu funebre adeus! que elle bem sabia ser eterno...





...Só quando o echo do ultimo adeus do Joaquim, perdido na distancia, diluido no luar que surgia, desfeito no lugente murmurio das aguas, fundido no derradeiro suspiro da brisa matinal, deixou de chegar á praia, é que o pobre abandonou o areal e se foi, sempre a chorar, tiritando ao frio da sua desgraça, como a um vento agudissimo do Polo, na direcção do horto silencioso...



COMEDIA
DA
PROVINCIA


A Alberto Braga.


I

PRELUDIOS DE FESTA



Esse anno, a festa da senhora das Dôres devia ser coisa de estalo. A começar pelo juiz, todos os da mesa eram de respeito―abonados e decididos. Tanto assim, que o fogo preso, que afinal era o melhor da festa, vinha lá de Chaves, longe que nem seiscentos diabos. Mas era obra de geito, acabou-se! Tinha-se dito ao homem que trouxesse coisa que representasse uma cegonha. O homem respondera que sim, e dava mesmo a entender que traria mais animalejos, uma bicharada, talvez um macaco, se tivesse tempo de o acabar.

―Homem de uma canna! resumiu o juiz quando acabou de lêr a carta. E correu a espalhar a noticia, orgulhoso de que «no seu anno» a coisa fosse de arromba! Depois, era um despique. No anno atraz, o José da Loja, que tinha sido o juiz, gabara-se do seu fogo, só porque [56] vinha lá uma peça que era um castello a dar tiros, assim: Fff! Pum!

―Ora deixa estar que eu te arranjo... murmurou com os seus botões o Antonio Fagote. E sorria satisfeito, de se lembrar que na noite do arraial todo o povo o havia de acclamar, dar-lhe vivas pelo fogo que apresentára. Espalhou-se a novidade. Uma hora depois, na villa, ninguem fallava n'outra coisa.

―Então você já sabe?

―Já sei. A cegonha.

―A cegonha e o mais: um cavallo, um bezerro...

―O que eu quero vêr é o camello. Feio bicho, já viu?

―Pintado. No Monteverde se me não engano. Logo adeante do Valente Rei Arauto Fiel.

Enganava-se.

O escrivão da camara, que tinha laracha, encontrou-se na rua com o Alves aferidor.

―Até que emfim, amigo Alves. Até que emfim vou ter o gosto de o ver arder.

O outro não percebeu. «Que se explicasse...»

―Um urso, no arraial queima-se um urso.

―Então ardemos ambos, redarguiu embezerrado o Alves.―Tambem se lá queima um burro.

[57] Ás duas por tres, o Antonio Fagote viu a casa cheia de gente. Quem não ia, mandava recado: todos queriam saber se vinha o animalejo da sua predilecção.

O homem começava a azedar-se. Chegou mesmo a mandar fechar a porta, por dentro.

―Põe a tranca, se fôr preciso.

Mas então era cá da rua:

―Ó sr. Antonio!

E na porta as pancadas ferviam:

―Truz! truz! truz! Sr. Antonio!

―Éna! c'um raio de diabos!―fazia lá de dentro o homem, furioso.

―O senhor faz favor? É só uma palavrinha.

Á janella assomava então o Antonio Fagote, com os oculos na ponta do nariz e a carta do foguetorio na mão.

―O camello? perguntava zangado.―O urso?! Camellos me parecem vocês, ouviram? O que o homem diz é isto.

E lia a carta, rematando:

―Uma cegonha, outros animalejos, quem sabe lá o que serão, e talvez o macaco, se houver tempo de o acabar. E agora, sabem que mais?... Tirava os oculos e ia-se embora, capaz de os trincar a todos.―Irra!

[58] E lá de si para si pensava que era melhor ter guardado segredo. Não fosse elle burro... Mesmo porque cada um começou logo a inventar animaes, e todos é que não podiam vir. Claro! E não vindo todos, ahi tinhamos nós descontentes. E havendo descontentes, quem lucrava era o José da Loja.

―Temos o caldo entornado! pensava afflicto o Fagote, amedrontado com aquelle espectro do José da Loja, o seu rival! De mais a mais, já lhe tinha chegado aos ouvidos que o outro agoirava mal do negocio...

―Farofias! tinha dito o José da Loja. Farofias!

―Pois se m'o diz na cara, arrebento-o! vociferava o Fagote, quando tal soube.

E arrebentava, que o Fagote era homem para isso, tinha pulso. Desde rapaz que uma lenda de valentia se fizera na sua vida: contavam-se proezas, desde uma vez que varrera uma feira, por causa de eleições. Depois, bom olho para a caçadeira. D'uma occasião, que foi preciso dar montaria aos ladrões, portou-se como um leão, foi elle que deu voz de preso ao chefe da quadrilha. E como foi que lh'a deu? A phrase ficou lendaria:

―Como-te a alma se te mexes!

―E o outro não se mexeu, que elle comia-lhe a alma! commentavam convictos.

Como esta, muitas outras. E foi talvez por estas proezas que a sua figura adquiriu para a velhice o geito desempenado que tinha. Estava com 60 annos e a sua attitude viril impressionava ainda agora. Não era nutrido, mas era sanguineo, tez morena, cara rapada, olhos pequenos, [59] uma largura de hombros que era o principal indicio de força. Pescoço curto. Mesmo a brincar, quando cerrava os punhos e arremettia com força, conhecia-se-lhe a rijeza dos musculos n'aquelle movimento sacudido.

―Safa! que isso ahi é de ferro! diziam os rapazes. D'uma canna, hein?

Mas bom homem, d'uma grande franqueza de modos, simples e affavel. Para se sair era preciso pical-o. E uma vez, quando era juiz ordinario, uma testemunha tanto o picou em audiencia, que elle desceu lá da cadeira, foi-se a ella e quebrou-lhe a cara. Por isso fallava sério quando promettia arrebentar o José da Loja. A mulher interveio pacificadora:

«Que não desse ouvidos a ditos. Deixasse o homem, que não era tão mau como o pintavam.»

―Ó mulher! cala a caixa e não me defendas esse velhaco! redarguiu o Fagote. Do que elle é capaz sei eu.

Mas n'esta occasião, de todas as velhacarias do José da Loja, só lhe lembrava uma: ter sido juiz o anno atraz!

Isto parecia-lhe com effeito uma velhacaria, feita a elle que era juiz este anno.

―Pois tu que pensas? dizia elle para a mulher. Quem me metteu a festa em casa foi elle. Elle é que se lembrou de me escolher, como quem diz: «entrego-te a vara, sempre quero vêr como te arranjas...»

―Nome do Padre, do Filho... A mulher benzia-se «das idéas do seu Antonio.»

[60] ―Sejam idéas, que não sejam! teimou o Fagote. Isto foi tal e qual, assim me Deus salve!

―Mas quem t'o disse, homem? Quem foi que t'o disse?

―Quem m'o disse? Olha! E mostrou-lhe o dedo minimo da mão direita.―Foi este mindinho. Não falha.

E então desabafou: «que não pensasse o José da Loja, que o havia de levar á parede. Agora levava! A festa ha-de se fazer, e festa de arromba; nanja como a d'elle que só levava seis anjos, e não sei quantos andores, acho que meia duzia!»

―Ó mulher, então é para que saibas onde chega o brio d'um homem! Caramba! Sendo preciso, ouves? sendo preciso até vendia a camisa do corpo. Nem trinta sanfonas como o sanfona do José da Loja! E espipava olhos de colera para a mulher que remendava uns saccos, compungida de ver assim o seu Antonio.

E poz-se então a renovar ordens, recommendações que a mulher já estava farta de ouvir. «Mas com tempo é que as coisas se pensavam, não era ao atar das sangrias!»

―Leitões se os cá não houver, manda-se o Miguel á cata d'elles por esses povos á roda. Querem-se de 7 semanas, tres pelo menos.

A mulher contraveio:―«dois seriam bastantes...»

―Mau que ahi principiamos nós!―E poz-se a assobiar e a rufar com o pé no soalho, arreliado.―Tres é que hão de ser. Não quero cá dois, porque dois eram os do outro, o anno passado.

[61] A esta razão, a mulher calou-se. O Antonio Fagote gostou do silencio da mulher, que o lisongeava nos seus despeitos contra o outro.

―Agora não fanfas tu... insistiu elle, risonho. É assim mesmo que eu gosto. Signal é que tens vergonha. A outra tamem não é mais que a ti.

A outra era a mulher do José da Loja, está visto.

―Nem mais, nem tanto, emendou a Luiza Fagote, abespinhada.

―Isso mesmo! abundou o juiz da festa. Não me lembrava agora que antes de casarem...

―E olha que depois de casada... insinuou a sr.a Luiza, de venta no ar, enfiando a agulha. Cala-te bocca.

Façamos de conta que a bocca se calou, com effeito. Que não se calou. Mas n'este particular, o resto do dialogo convém que se omitta, mesmo porque afinal nem eu nem os senhores queremos mal á mulher do José da Loja. Ha-de perdoar-me o Antonio Fagote, mas n'isto não lhe faço a vontade. O pudor acima de tudo! E ademais elle bem sabe que eu sou conhecido da mulher. Adeante. Basta que lhes diga que por uma associação logica de idéas a conversa veio parar em vitellas...

―É preciso vermos como ha-de ser isso da vitella, disse o Antonio Fagote. Sem vitella é que se não faz nada. Uma perna sempre se gasta.

Combinaram fallar com tempo ao Manoel Cortador, segurar esse negocio. De mais a mais sabia-se que o prégador dava o cavaco por um bom pedaço de vitella assada.

[62] ―O prégador é que arrasta ahi muita gente, observou a sr.a Luiza. Para um boccado de sentimento não ha como elle. Quando foi das missões, o que elle dizia d'aquelle pulpito abaixo! É quanto se póde!

―A mim o devem, se cá vem!―disse orgulhoso o Fagote. Que o homem não queria vir, desculpava-se com a saude: que tinha de ir a umas caldas, e 14 leguas a cavallo por estas caniculas eram de acabar com elle.

―Isso desaba ahi o poder do mundo! Em se sabendo que é o missionario...

Estavam n'isto, quando bateram á porta. O Fagote foi ver á janella.

―Bem, muito obrigado. E a senhora mestra? Estimo, estimo.

Era a creada da mestra regia, foram abrir.

―A senhora mestra manda muitos recadinhos, saber como está a sr.a Luiza, e este bilhetinho para o sr. Antonio.

Entraram todos na saleta. Como era já tarde, o Antonio Fagote foi accender uma luz.

«Que conversassem, emquanto elle via se tinha resposta.»

―Muito calor, começou a sr.a Luiza.

―E então a casa da sr.a mestra que é mesmo um forno, disse por demais a creada.

[63] E antes que a conversa pegasse, avisou a sr.a Luiza, ao ouvido, de que lhe queria uma palavrinha.

Foram para uma varanda que havia nas trazeiras. A tarde descahia, n'uma serenidade calma. Sentaram-se uma junto da outra, muito familiares.

―Está se aqui bem! exclamou consolada a sr.a Luiza.

―Está. E então bonitas vistas. Mas o que eu queria dizer era pedir-lhe um favor, disse atrapalhada a creada.

―Se estiver na minha mão...

A outra começou: «A sr.a Luiza estava ao facto do que se dizia d'ella com o criado do inglez. Decerto estava ao facto. Mas era mentira. Jurava-lhe pelo que havia de mais sagrado que era redonda mentira.»―Estamos para casar! é o que estamos! «Elle já mandara vir os papeis lá da terra, não podiam tardar».―Está claro que eu tenho affeição ao rapaz...

―Elle esteve ahi doente uma temporada, interveio a sr.a Luiza, para dizer alguma coisa.

―Esteve. Umas quartans que o iam arrebanhando. Mas é ahi que eu quero chegar.

―Que experimente o limão azedo, aconselhou a sr.a Luiza. É milagroso nas quartans. Não se afflija, que isso não ha-de ser nada.―E dispunha-se a consolar a rapariga, a dizer-lhe tudo o que sabia de bom para matar quartans, pensando que era o que ella queria, afinal.

―Não senhora. O rapaz está melhor. Caso é que não [64] recáia. Mas é por via d'isso que eu lhe quero pedir um favor.

Chegou para ella o banco de cortiça e confidenciou:

―Já o andam a desinquietar para ir com os mais furtar a bandeira, qualquer noite. E elle vae, prometteu que sim. Mas veja, n'aquelle estado! inda não ha nada que sahiu da cama.

―Pelos modos, os rapazes vão este anno longe pelo pau, disse com pompa a sr.a Luiza.―Muito longe!

―Ouvi que á Ribeira Velha, ao lameiro do Canellas. E logo com quem elles se vão metter, o Canellas! Se desconfia, vae-se para lá de clavina e faz alguma desgraça. Mais elle, que é atrevido!

Cautelosa, a mulher do juiz redarguiu que lá onde elles iam pelo pau é que ella não sabia.

―A outra noite é que para ahi estiveram a combinar, o meu Antonio mais os mordomos. Não ouvi.

―Pois é lá! exclamou a creada. Mas o que eu queria, sr.a Luiza, é que o seu marido me não deixasse ir o rapaz na malta,―supplicou afflicta a rapariga.

―Lá isso, esteja descançada, não vae! prometteu com grande auctoridade a sr.a Luiza.―Digo-lhe eu que não vae. E se não quer mais nada...

―Era só isto, muito agradecida á senhora.

N'esse momento entrava o Fagote, em mangas de camisa, os oculos para a testa.

[65] ―Ora pois então aqui vae a resposta. Má letra, a sr.a mestra que desculpe. Mas emfim que leia como podér.

―Então muita massada co'a festa? inquiriu solicita a rapariga.

―Muita. Faz lá ideia? Massada e despesa. Olhe que se faz despesa. Todos os dias são precisas coisas, mais isto, mais aquillo. Ahi está que já hoje mandei pedir para o Porto uma palheta para o clarinete do Alves.

―Chh! fez admirada a rapariga.

―Pois é verdade. Fóra o mais! fóra o mais! Nicas! E depois d'uma pausa:―Só com o que se gasta no jantar, e é verdade que ha muita coisa de casa, mas só com o que se gasta no jantar, a bem dizer que se fazia uma horta, além no prado.

―Muita gente... disse a rapariga.

―Muita! e depois de certa aquella... Á meza talvez vinte e quatro pessoas...

A rapariga benzeu-se!

―Vinte e quatro, p'ra mais que não p'ra menos, insistiu o Antonio Fagote.―Olhe: o prégador...

―Isso dizem que é coisa asseada! interrompeu a rapariga.

―É. Não o ha melhor. Missionario...―explicou o juiz. Pois o prégador, um; com mais quatro padres, cinco; com quatro musicos, nove; o compadre, os pequenos, dois, doze.

[66] ―A comadre não vem! que pena! fez do lado a sr.a Luiza.

―Não. O compadre e os pequenos já disse. Doze. O Morgado da Fonte e o Antonio Capador, quatorze. O Telles, é verdade, Telles escrivão, quinze. (Pausa). Com mais alguem que venha, vinte e quatro. Póde-se contar com mais de vinte e quatro pessoas á mesa.―E a rir-se: Mas ha-de sobrar muita coisa, graças a Deus... E depois os pobres?

―Isso então é uma praga! exclamou a sr.a Luiza. Até parece que veem do chão assim... E collocava em pinha os dedos todos das mãos ambas. Assim...

Mas fazia-se tarde, a rapariga despediu-se.―«Adeusinho! o que havia de estimar é que tudo corresse como desejavam.»―E se fôr preciso qualquer coisa... offereceu-se. As minhas fracas posses...

―Obrigada. Não faltarão occasiões. Muitos recadinhos á senhora mestra...

―E que hei-de estimar que o mano chegue de saude, concluiu o Antonio Fagote.

E então explicou á mulher: «Aquelle bilhete da mestra era a mandar-lhe perguntar se sempre era certo vir o macaco de fogo».

―Diz que o irmão, o brazileiro, assim que souber que ha macaco de fogo no arraial, não tem mão em si que não venha. E Deus o queira, porque o ponho ao pallio. Como tres e dois serem cinco.

[67] A senhora Luiza quiz saber a resposta que lhe mandára.

―Disse-lhe que sim. Pois?! O que eu quero cá é o brazileiro. Sempre é homem que sabe dar o merecimento ás coisas... Mas o diabo agora é o macaco! ponderou muito apprehensivo. Está para ahi meio mundo á espera do macaco...

A senhora Luiza quedou-se pensativa, absorta no seu receio de que o bicho não viesse.

―Táte! fez o Antonio Fagote, batendo uma palmada rija na testa.―Dá cá d'ahi a minha vestia. Manda-se uma «parte» ao homem.

―Tambem póde ser, concordou a senhora Luiza. Mas hoje é que não, aquillo já está fechado, o fio.

―Vae ámanhã. «Agradeço favores. Traga macaco sem falta». Isto. Talvez accrescente: «Não se olha a dinheiro». Mas é que accrescento, por via das duvidas.

Então, a senhora Luiza confidenciou quasi ao ouvido do homem:

―Ouves? já se não póde ir ao lameiro do Canellas pelo pau.

―Han? qual pau?

―O da bandeira. Todo o mundo já o sabe.

Elle riu-se.

[68] ―Todo o mundo, hein? Melhor! Oh! oh! todo o mundo!...

E como ella ficasse estupefacta.

―Nunca ouviste dizer que se põe o ramo n'uma porta e que se vende o vinho n'outra?

―Ah!...

―Mas são verdes. Pois ahi é que vae a historia, e cantarolou, satisfeito:

O ladrão do negro melro
Onde foi fazer o ninho





Mas o melhor do caso foi no dia seguinte, quando logo de manhãsinha o Antonio Fagote sentiu bater á porta, de rijo.

―Vae lá ver o que será, ó Luiza!―disse da cama o Fagote sobresaltado.

Não tardou nada que o José Manco lhe entrasse de rompante pelo quarto.

―Vista-se, homem! Ande d'ahi depressa! Vista-se.

―Ha novidade? perguntou logo o Fagote, sobresaltado.

―Vista-se! com dez milhões de diabos! Insistiu o outro.

[69] ―Hom'essa! fez espantado o Fagote. Alguem á morte?

―Peor do que isso! resumiu o José Manco.

―Peor do que isso, então não sei...

―Não tardará que o saiba. Avie-se, que eu cá o espero na rua.

O Antonio Fagote vestiu-se á toa, aparvalhado. Foi já na rua que acabou de enfiar a jaqueta. As correias dos sapatos iam de rastos, não levava chapeu.

―Prompto! cá estou!

―Venha comigo, avie-se. Abotôe as calças, se faz favor.

E rodaram rua acima.

―Diabo! mas então...? ia perguntando o Fagote.

―Aguarde, que já vae saber. Não tarda.

De quatro escanchadas foram dar ao adro da egreja.

―Roubaram Nosso Pae, aposto?!

―Peor! redarguiu o outro. Peior! Alto ahi! Ora arregale-me esses olhos e veja vossemecê isto, esta porcaria!

E tragicamente, o José Manco apontou para meia folha de papel, pregada na torre com miolo de pão centeio mastigado. Era um pasquim! Varios desenhos de [70] animaes, sobresaindo um burro de grandes orelhas, aos coices. E no fundo, em grandes caracteres, isto:―Farofia!

Por um pouco, Antonio Fagote, de mãos atraz das costas, amarasmou-se, com os olhos fitos no papel.

E quando o outro pensava que elle ia romper desaustinadamente n'uma escamação, aos labios do Antonio Fagote aflorou apenas um sorriso.

―Hum! resmungou. Bem sei...

―Não tem que saber,―fez o outro.

―O patife do Jose da Loja...

―Pois está visto.

―Bem, levará quatro lambadas, epilogou com grande socego o Fagote.―Arranque lá isso, e venha você d'ahi, se quer ver.

O José Manco não queria ver, fazia ideia. Mas opinou prudentemente que era melhor botar o patife ao desprezo.

―Pois sim, disse o Antonio Fagote, dobrando em quatro o papel e mettendo-o na algibeira de dentro.―Pois sim!

Mas o outro que o conhecia, insistiu no pedido, com certos argumentos arrancados do codigo penal. «Que não fosse agora pagar por bom semelhante estafermo. Como mordomo, tambem era com elle a offensa, com elle José Manco. Mas fazia de conta... Como o outro que diz, vozes de burro não chegam ao céo».

[71] ―Bem, levará só uma lambada, attendendo a que mais ninguem viu isto, disse n'um grande ar de condescendencia o Fagote.―E você vá lá regar a horta.

Foi-se d'alli direito á casa do José da Loja. Estava ainda fechada. Poz-se á cóca, de longe, com a ira muito exulcerada pela arrelia d'aquella demora.

―Grande cão! grande cão! monologava.

Até que emfim reparou que a porta se abria. Era o rendeiro em pessoa, de casaco de lona e chinelos de trança, muito fresco. Não deu pelo Antonio Fagote senão quando se viu ao pé d'elle, cara a cara entre o balcão e a porta.

―Ó sr. José.

―Dirá.

―Venho aqui saber d'um caso.

Tirou do bolso o papel, desdobrou-o, devagar, e depois de lh'o pôr ao pé da cara:

―Foi o sr. José que fez isto?

O outro olhou-o, attonito.

―Sim! se foi o sr. José que fez isto?

―Nada, eu não senhor.

[72] ―Jura pela boa sorte dos seus filhos?

Aqui, o tendeiro entupiu, desconfiado.

―Jura pela boa sorte dos seus filhos? repetiu mais de rijo o Fagote.

O José da Loja, moita! Então o juiz explicou-lhe:

―É porque se jura, muito bem. Se não jura o caso é outro.

―É outro, que outro?!―disse arrogante o José da Loja, n'um impeto, barriga panda sob o casacorio de lona.

―Isto!―E foi-lhe uma bofetada para a cara.―E muito caladinho, que eu tambem não digo nada. Agora o papel, olhe! Fel-o em pedaços, e atirou-lhe com elles á cara aparvalhada.

Sahiu d'alli e foi matar o bicho, tranquillamente, como quem vem de cumprir uma obra de misericordia.





Na vespera da festa, um sabbado ás 10 horas da manhã, o fogueteiro passava emfim n'um deslado da villa direito á capella da Senhora das Dôres. Largou um foguete, que estrondeou no ar, galhardamente.

―O fogueteiro! chegou o fogueteiro!

Por toda a villa passou um longo fremito d'enthusiasmo quando se ouviu o foguete. Deshabituados, os cães ladravam, em correria doida pelas ruas. O rapazio levantou-se em algazarra, e correu ao encontro do fogueteiro, [73] a admiral-o, a offerecer-se. Na labuta viva das casas renovavam-se ordens já dadas. Aquelle foguete era a bem dizer o primeiro ruido da festa, não havia tempo a perder. De casa dos mordomos saiam esbaforidas as creadas, com ordem de se informarem do que precisaria «o sr. fogueteiro». Alguns mais previdentes mandaram almoço, e que dissesse o que queria para o jantar.

Solemnemente, o juiz da festa atravessou quasi a correr a villa, perguntando a todo o mundo se o que estoirára tinha sido effectivamente um foguete.

―Foi foguete! pois que duvida! diziam-lhe radiantes. Promettia, sim senhor! promettia! Se fossem todos assim... Caramba! que estoiro! Pum!

―P'ra que saibam! clamava o Antonio Fagote. E então isto? e punha-se a girar de volta com o braço―o que é fogo do chão?―Mas tinha-se visto em calças pardas para que o homem não faltasse. Complicações! Pelos modos tinham-no convidado para outra festa, com mais bagalhoça, está claro. O caso tinha estado sério!

Mentia.

―Hein? mas não o enganavam?

―Qual! era o fogueteiro sem tirar nem pôr. Lá ia elle a atravessar as eiras, com duas bestas carregadas. Caramba! duas cargas de fogo!

O juiz botou a fugir. Quando passou pela porta do abbade, gritou cá da rua:

―Senhor abbade! ó senhor abbade!

[74] ―Que é lá?

―Chegue á janella, faz favor?

―Mas está muito sol, entre você, se quer.

―Só duas palavras:

O abbade, um rapaz novo, assomou á janella.

―Que é?

―Chegou o homem!

―O homem! que homem?

―O fogueteiro, quem ha-de ser?

―Ah, sim, disse o abbade a rir-se, velhaco. E você vae ter com elle?

―De cara.

―Faz-me então um favor?

―Dirá.

―Dê-lhe recados meus.

E retirou-se da janella, a rir, emquanto o Antonio Fagote proseguia no seu caminho, esbaforido, espalhafatoso, perguntando a toda a gente se aquillo tinha sido o fogueteiro.

―Grande homem! com seiscentos diabos!

[75] Quando chegou ao adro estava tudo cheio de rapazes, em redor dos dois machos carregados. O Fagote cuidou morrer de contente. Foi-se ao fogueteiro, com furia.

―Esses ossos! e abraçou-o arrebatado, enternecido, chamando-lhe «seu amigo, seu grande amigo».

―Rapazes! gritou elle então. E tirou o chapeu da cabeça, muito solemne.―Viva o senhor fogueteiro!

―Viva!

...Isso não juro, porque não reparei. Mas estou em dizer aos senhores que o Antonio Fagote―chorou!...







I

TYPOS DA TERRA



Desembocaram n'um largo. Era o ponto mais central da terra,―«a praça.»―Aqui e alli, ao acaso, algumas arvores enfezadas, quasi tudo olmos brancos, vegetavam a medo, com os troncos protegidos por velhas grades de madeira, desmanteladas. Era um terreiro vasto, muito chato, com casas em volta,―o que na villa havia de melhor em construcções. Ficava ao meio o pelourinho, exotico, mutilado, d'uma pedra grosseira e muito negra. Era uma alta columna de oito faces, com o seu annel de ferro ao meio, e uma argola pendente do annel. A columna, que se eleva sobre um pedestal de tres degraus, em hexagono, terminava ao alto n'um grande X de pedra deitado horizontalmente. Um espigão de ferro, de tres gumes como os floretes de esgrima, irrompia hostilmente do meio do X, perfurando o espaço. Em volta, a casaria era triste, sem estylo, [78] sem gosto, sem cal. Algumas pedras d'armas em velhas paredes decrepitas, desequilibradas, hydropicas, attestavam aristocracias remotas, agora de todo extinctas. Ao alto, dominando a negrura chamuscada dos telhados, o velho castello, romano de origem, fazia tristeza com as suas ameias derrocadas, e as grossas paredes em ruinas. Ao lado do castello erguia-se destacadamente a velha torre do relogio, d'uma architectura primitiva. Tinham dado onze horas, mas eram apenas as sete: aquelle―«estafermo»―é que não andava nunca direito. De dia ninguem o entendia, com o seu ponteiro de ferro girando n'um mostrador sem lettras, d'uma pedra azulada. De noite fartava-se de badalar, alvoroçando a povoação como se fosse a fogo, ora atrazado ora adeantado, dando meia noite quando eram quatro da tarde, e meio dia mal despontava o sol.

Eram as sete. Áquella hora é que os―«figuros»―da terra, quasi tudo empregados publicos, vinham para o largo, á fresca. Alguns passeavam,―seu fraque, sua bengala de canna com castão, chapelinho á banda, sapato branco um ou outro. Nas escadas do pelourinho, sentados, outros do mesmo feitio cavaqueavam,―colletes desabotoados, perna cruzada, chapeu para a nuca, ás tres pancadas. Um de pera comprida, no degrau superior, contava facecias. Os outros riam alarvemente, chamavam-lhe intrujão. Algumas―«madamas»―pelas janellas em volta, nostalgicas, anafadas, de claro. Á porta do estanco, em cima, havia outra roda,―uns de pé, outros sentados em caixas, alguns montando cadeiras de pinho. Era a―roda mais forte,―quasi tudo maiores burocratas:―o Mello da Administração, o Antunes da Camara, o Escrivão de Fazenda, o Rodrigues do Real d'Agua. E outros. Á porta, perfilado e muito cerimonioso, o dono do estanco, alto, esguio, flexivel, com a sua cara rapada e o seu chinó castanho, eriçado e velho. Era de maneiras [79] feminis, uma tallinha melliflua, cantante, viva, muito desempenado quando andava, saracoteando-se todo, em biquinhos de pés como se fosse levantar vôo. Chamavam-lhe Ernestinho. Não se podia fallar deante d'elle n'um rato morto, n'uma carocha. Aquillo «fazia-lhe nervoso», enojava-o, ficava-se a cuspinhar meia hora, dizendo constantemente:

―Ai Jesus! ai Jesus! Caticha! Nossa Senhora do Carmo! Nem sei como não lanço fóra.»

E se riam, elle exasperava-se: não comprehendia como podessem fallar em taes coisas... De resto, bom sujeito, finorio para o seu negocio,―um poucochinho beato,―diziam-lhe.

―Meu proveito. Não que eu não quero a minha alma nas penas do inferno, a arder. Leiam a Missão Abreviada, leiam esse rico livro.

E as palavras sahiam-lhe a correr, espremidas nos seus labios delgados, um poucochinho sibiladas nos ss.

―Cigarros, Ernestinho, um vintem d'elles. Querem-se dos de Lima, d'esses fortes.

Declarou que tambem havia dos «especiaes.» Algum senhor queria? Tinham chegado tres massos, p'ra ver. Oito por um vintem.

―Pois guarde-os!―disseram alguns, horrorisados com a idéa de dar um vintem por oito cigarros.―Guarde-os!

«O senhor engenheiro, quando vinha á villa, perguntava-lhe sempre por elles. Dos de Lima nem o cheiro, não gostava.»

[80] ―Olha o figurão!―disseram a rir. Por esse mundo fora sempre ha muito idiota! forte cavalgadura!

O Ernestinho veio com os cigarros, em feixe nas pontinhas dos dedos. Á porta, antes de os entregar contou-os de novo. Doze. Estavam certos.

―O senhor Ernesto, se faz favor, ponha isto lá no caderno, ao pé dos outros.

Ernestinho foi para dentro, contrafeito, fazer o apontamento. Houve um silencio opprimido, o dos cigarros tossiu para o quebrar, ao mesmo tempo que n'um gesto acanhado, receoso, fazia menção de offerecer:―«alguem era servido?»

Dentro do balcão, ao pé das garrafas com licôr, e das botijas de genebra, Ernestinho sommava a conta. Era já taluda.―«E vão dois e dois quatro e dois seis, seiscentos e vinte! Sabe Deus quando os receberia!»―E suspirava, arrumando os massos encetados, sob o olhar tranquillo e indifferente do Santo Antoninho que lá estava em cima, ao alto das estantes quasi vazias, no seu nicho feito d'um caixote forrado a verde, com flores artificiaes muito sujas e duas velinhas dos lados. Mas resignava-se, que não tinha outro remedio. Eram os ossos do officio...

Cá fóra tinham dado fé, acotovellavam-se chamando asno ao Ernestinho,―um pulha a quem ajudavam a viver... Se hoje não ha dinheiro, ha-o amanhã, essa é boa! E pagava-se, c'os diabos! E pagava-se. Mas não senhor! aquella besta mostrava sempre má cara, o alarve! A culpa tinham-na elles, afinal que o procuravam, que o preferiam. Tomaram os outros ter aquella freguezia...

[81] O dos cigarros fiados annuia, assobiando baixo o Agua leva o regadinho. Por fim levantou-se, lentamente, com um ar de enfado, um sorrisinho de despeito nos labios, encolhendo os hombros.

―Estender as pernas,―disse. Quem vem d'ahi?

Todos ficavam, era uma estopada andar p'ra traz p'ra deante, n'aquella semsaboria da praça.

―Até logo. Você apparece no sitio, á noite?

―Appareço, vou á desforra.

E cumprimentando em roda:

―Meus caros! Muito boa tarde, sr. Ernesto.

Foi-se, puxando para baixo as pernas da calça, alisando as joelheiras.

―Que tal está o asno, hein? Quer, ainda por cima, que o Ernestinho lhe diga bem-haja...

Era um parvo.―Era um tolo.―Tinha dividas nos outros estancos.―Em toda a parte.―Lá em casa a familia passava fomes.―Um batoteiro de marca.

Houve agitação, alguns pozeram-se de pé, outros mudaram de logares. Ia a passar um grande carro de palha chiando muito. Ernestinho chegava-se de novo, muito ronceiro, roendo as unhas.

―Com que então... ponha lá ao pé dos outros?―disseram-lhe, para o lisongear nos seus despeitos.―Bem bom freguez!

[82] Elle encolheu os hombros e cerrou os olhos, beatificamente, n'um gesto de martyr resignado. E não disse palavra―p'ra fallar d'aquelle tinha de fallar tambem d'elles...

Mandaram vir limonadas,―tres limonadas!

―Ahi vão trinta réis!

Diabo! era preciso animar aquillo. Assim não tinha geito. E pozeram-se a fallar do tempo, das moscas, d'aquelles idiotas que andavam na praça a dar-se ares. Ensoberbecia-os a ideia de que iam tomar tres limonadas,―e sentiam-se felizes, alegres, um tanto estroinas.

O Ernestinho deu dois passos fóra da porta, e chamou para a varanda, onde grandes mangericões floriam:

―Ó Emilia! Emilinha!

A mulher assomou, gorducha, muito molle.

―Tres limonadas, ouves? Tres limonadinhas, depressa.

As conversas animavam-se. Pois senhores! havia de ser difficil encontrar uma collecção d'asnos assim. Falavam dos que passeavam na praça, aos grupos.―Deus os faz, Deus os ajunta. O palerma do Fernandinho dera-lhe agora para cantar. Lá andava elle. Volta meia volta,


Vai alta a lua na mansão da morte


com umas tremuras na voz, que eram mesmo de o esbofetear. Estava antipathico, aborrecido, desde que andava de namoro com a Marques. Só tinha uma coisa boa―a [83] caligraphia.―Um talhe de letra bonito,―confessavam.―E as calças, hein? reparem vocês n'aquellas calças, vae flammante. Casualmente, Fernandinho olhou de longe para os do estanco, disse-lhes adeus com a mão, affavel. Corresponderam todos, muito risonhos, mas a chamar-lhe nomes por entre os dentes:―idiota, palerma, pechisbeque...

Sósinho, n'uma lentidão moribunda, olhos nas botas, olhos no céo, o Telles escrivão passava ao largo, ruminando alguma poesia. Ás vezes quedava-se extatico, suspenso, o pollegar esquerdo entre os dentes, um olho cerrado fortemente, a meditar. Vinha um gesto e punha-se de novo em marcha, contrafeito.

―Ó senhores! mas não me dirão em que anda a parafusar o Telles, aquelle telhudo? E isto:―e poz-se a imitar o escrivão.

Riram. O Mello imitava-o bem, o alma do diabo, no andar especialmente. Mas aquillo era um logogripho. Ha uma semana ás turras a um logogripho em acrostico.

―Isso é o Telles!―fez um que vinha da praça.―Aquillo é um intrujão. Na rua não é que se adivinham logogriphos. Ó Ernestinho, você ainda tem d'aquillo que ferve?

O Ernestinho deixou descair o labio, não percebia...

―Homem! d'aquillo que vinha n'umas garraforias escuras, compridotas...

―Quer dizer gazosas. Uma rolha segura com guitas...

[84] ―Ora é isso mesmo, nem mais.

―Bem sei.

Mas não tinha já. Nem mesmo queria mais, p'ra que? Achavam caro um tostão...

―Eram aos tres para beber uma garrafa...

―Podera! Por um pataco, trinta réis levando o assucar, fazia o Hervas uma sóda,―objectaram alguns. Ponha lá que em gosto é a mesma coisa.

―E aquella porcaria, ó Ernestinho, e aquella porcaria amarella que sujava tudo de escuma?

Alguns cuspiram, disseram ao Alves que se calasse, que vomitavam, com seiscentos diabos!

―Cerveja!―disse o Ernestinho―cerveja! uma coisa que lá p'ra baixo toda a gente bebe por gosto, as senhoras mesmo.

E com um sorriso de desdem, exclamou:

―O que é ser do calcanhar do mundo! Em nome do Padre, e do Filho...

Mas na praça um grupo altercava. Ouviu-se distinctamente a palavra―«pulha»―pronunciada com força. Sahiram em tropel, ficaram só tres.―O que pagava as limonadas exultou:―Homem! nem de proposito! Ficava exactamente quem elle queria, estava mesmo a ver que aquella sucia lhe chupava o refresco:

―Tó Russa! já lá vae esse tempo.

[85] Precisamente, a senhora Emilia chegava, com os copos n'uma bandeja:―Que provassem, diriam se precisava mais assucar. Mas parecia-lhe que devia estar bom...

Beberam d'um trago, estava optima. A senhora Emilia tinha dedo para aquellas coisas.

―Obrigado, ó Mello!

―Obrigado, ó menino!

E os dois sairam de rompante, chamando pato ao Mello, rindo-se d'elle e limpando os beiços.

Quando o Mello ia sahir,―a ver o que ia na praça,―o Ernestinho, muito cortez, objectou-lhe que faltavam trinta réis:―Se alli não tinha, depois. Isso era o mesmo...

―Mas trinta réis?!... De que são os trinta réis?―perguntou desconfiado o Mello.

―Do assucar, foi do refinado,―explicou o Ernestinho. O mascavado acabou-se. Amanhã ou depois já devo ter mais. O senhor Mello desculpe.

Não tinha que desculpar; sómente notava que aquellas coisas diziam-se no principio.―E sahiu sem dar mais palavra, furioso:―Uma ladroeira! Tres vintens não valiam os dois que lhe tinham chupado o refresco...

Na praça tinha cessado a altercação, os grupos, reunidos, formavam uma grande roda, commentava-se. O Mello quiz informar-se:―que lhe contassem―«o escandalo».

Ora! não fôra nada: o Veiga que se tinha lembrado [86] que as correspondencias na Voz do Districto eram escriptas pelo Albano. Disse-lh'o na cara. O Albano negou, deu a palavra de honra. O Veiga que é casmurro, teimou:―que não acreditava, ainda assim!―Vae o outro chama-lhe pulha, iam-se pegando. Ora ahi está!

―Mas afinal, quem diabo escreve aquillo?―quiz saber o Mello. Aquillo ha-de ser escripto por alguem, está claro.

Dez réis pela novidade! Que havia de ser escripto por alguem sabiam elles...

―Quem, então?

Divergiam as opiniões. Podia ser Fulano, podia ser Beltrano. Um ou outro dava a sua palavra de honra que tambem não era elle, jurava-o. Houve um que se lembrou se aquillo seria do padre Mendonça.

―Qual! Do padre Mendonça não é. Fazia coisa melhor, se se mettesse n'isso. Olha o padre Mendonça, o da gibreira de Braga...

Mas o da idéa insistiu, renitente:―havia alli suas coisas que o faziam lembrar, certas facecias, como a de chamar Frei Asneira ao Reitor e Cabeça de Comarca ao Felisberto.

―Pois se é elle, que se regale, póde limpar as mãos á parede. Mente como um alarve, mente da primeira linha até á ultima!―disse firmemente o verdadeiro auctor das correspondencias. Olhem o que elle diz do juiz de direito, só calumnias! O juiz! um homem teso! Tem lá o seu fraco pelas saias, mas isso, que diabo! isso não é defeito.

[87] De resto, eram todos accordes em que as correspondencias eram uma infamia. O que se chama uma infamia pegada. Mexericos e mais nada, uma coisa de soalheiro. E depois, o dizer-se lá que entre os rapazes não havia duas amizades leaes, que era tudo uma impostura...

Houve um silencio significativo, talvez de approvação.

―Só de pulha!―rematou, por fim o Nunes da Fazenda, o tal que escrevia as correspondencias com o pseudonymo de Aramis. Vejam vocês aquellas gallegadas ao commendador. Aquillo chama-se lá fazer politica?! Discuta-se o homem como presidente da camara, sim senhor, discuta-se o homem publico, o funccionario; mas deixe-se-lhe em paz a marreca, os fundilhos das calças; ninguem quer saber se os creados lhe param em casa ou se não. E depois, aquellas allusões á família, aquellas piadas á D. Engracia, pobre velha...

―A quem?―interrogaram uns poucos. Á Dona quê?

―Á D. Engracia, está bem de ver. Aquella beata que fazia piugas de lã aos missionarios é ella. Presumo eu que é ella—fazia o Nunes das correspondencias com um grande ar de supposição. Eu cá foi para onde deitei.

Os outros não. E como o das correspondencias tinha promettido explorar a chronica beata, aguardariam mais informações. Suppunham, no emtanto, ser com a D. Joanna, a do―«chá de herva cidreira.»―Outra canalhice! A D. Joanna, para festejar os annos da filha, convidára tudo, lazarões e penicheiros, não fizera politica. Depois foi aquella tareia que se viu:―que o chá era herva cidreira, que tinham bolor os doces de ovos, que ella parecia a quaresma e a filha o entrudo. Ora isto não se diz, a pobre mulher doeu-se. Citavam-se de cór phrases inteiras [88] da correspondencia. Por exemplo:―A deusa da festa dizem que recebeu telegrammas de... amor.―Uma facecia de mau gosto alludindo ao Proença telegraphista. Depois do que por ahi se diz, é forte... Que afinal, quem sabe lá? Entre os dois que diabo póde haver? Namoro?

No grupo alguns tossiram forte, rindo. O Nunes interveio:

―Não senhores! Isto agora alto lá. A Amelia é uma rapariga séria...

Riram ás gargalhadas, foi um barulho com a tosse.

―Quando digo uma rapariga séria... Mau! Accommodem-se lá com o banzé, vocês deixem fallar,―tornou o Nunes, formalisado. Quando digo uma rapariga séria, quero dizer... sim... quero dizer...―e procurava a phrase, entalado,―por exemplo, que ella não é capaz de receber ninguem, alta noite, lá pelos quintaes, como o tal das correspondencias quer fazer suspeitar.

Iam replicar-lhe, mas elle atalhou:

―Chama-se áquillo ser canalha ás direitas, arre! Isto agora é fallar franco.

Saltaram-lhe:

―E você jura, ó Nunes? você jura?―perguntou, com gesto perfurante, o Alves dos Pesos e Medidas.

Não... isso agora...Jurar, não jurava, mas, c'os diabos! pelo que se via, pelo que se podia julgar...

―Léria!―disseram todos.

[89] O Nunes parece que estava com os beiços com que mamára. Com que então, para elle era tudo uma récua de santas? Desenganasse-se, que era tudo uma canalha, uma corja de sonsas. Que diabo de ingenuidade!

O Nunes observou modesto, quasi agradecido:

―Ingenuidade, eu te digo... Não é bem isso... O que sou é prudente. Desconto sempre noventa por cento áquillo que vocês dizem, ahi é que está...

―Vocês é um modo de fallar,―emendaram alguns.

―Vocês, digo eu, vocês... quando escrevem correspondencias,―explicou sophisticamente o Nunes.

Calaram-se, disfarçaram. Proximo d'elles, a Amelia toda de verde, com guarnições de fita preta, caminhava ao lado da mãe, solemnemente. Tiraram todos o chapeu, cortejando risonhos, respeitosos. O Nunes foi cumprimental-as, submisso.

―Dar o seu passeio, não é verdade?―E apertando-lhes a mão:―Vosselencia como passou? A senhora D. Amelia? Obrigadissimo. Assim... assim...

Então? que diziam áquelle calor?

―Abafava-se, alli pelas duas. Que forno!

―O Brazil tal e qual―reforçou o Nunes.

Mas que fôra feito, que as não tornara a ver desde os annos? Uma noite de truz, aquillo sim!

[90] ―Olhe, senhora D. Amelia, a flauta... a flauta é que nem por isso, foi pena! O Abelsito andava constipado.

A D. Amelia explicou. A mãe ficara doente, já não era para aquellas noitadas.―E em voz mais baixa, quasi dolente:

―Depois, veio a Voz do Districto, aquillo chocou-a muito.

―Não ha tal!―fez a mãe. Metteu-se-te isso na cabeça. Deixe-a fallar, senhor Nunes.

E por pouco que não chorava ao dizer isto.

O Nunes affectou um sentimento profundo:―Era melhor não fallar n'isso, não pensar em tal; todos as conheciam, todos lhes faziam justiça. Tinham acabado de fallar na tal correspondencia, agora mesmo. Uma garotada!―resumiu o Nunes.―E em tom confidencial:

―Anda-se na pista do garoto. Elle ha-de apparecer. E depois... e depois... Muito boa tarde, minhas senhoras! O que fôr soará. É preciso dar um exemplo,―concluiu terminantemente. Uma severa lição!

Despediram-se, ellas agradeceram ao Nunes―«a parte que tomava no seu desgosto.»―E seguiram cumprimentando para as janellas, perguntando se vinham d'ahi, um boccadinho até á capella, espairecer.

As Silvas pediram que subissem. Um boccadinho só. Ficava muito bem aquelle vestido á Amelia.

Não podiam subir, talvez á volta.

[91] ―Pois sim, has-de ver o meu bordado a missanga. O papagaio está quasi prompto, que trabalhão!

Estava na duvida se lhe poria o bico assim, de gancho. Não gostava. O risco era do Fernandinho. Já lhes fizera outro, talvez mais bonito. Coisas de anjinhos:

―Verás.

Os grupos tinham-se reunido em volta do Pelourinho. Passava gente que vinha do trabalho, da labuta aspera da eira,―homens com malhos, e mulheres de cestas á cabeça. A tarde descahia n'uma serenidade calma. No degrau de cima, o Paula, official da administração, com fama de typo de chalaça, cantava em surdina umas cantigas de caserna, obscenas, zaranzando na barriga como se fosse uma guitarra. De volta, os outros formavam roda. Todos riam, pediam bis.

―Tu has-de conhecer isto, ó Chico,―dizia o Paula para o Francisco Maria, um cabo que estava de licença. Tu has-de conhecer isto.

O administrador do concelho, um pobre diabo desmazeladão e philosopho, affirmava que lhe lembrava Coimbra, a pandega das viellas. Ao Paula valia-lhe a prenda, palavra de honra que lhe valia a prenda, senão já o tinha demittido, ás vezes que lhe entrava borracho pela repartição. E pedia a rir, boçalmente:

―Ó Paula, aquella do bate-bate, canta lá.

E trauteava as primeiras notas, castanholando com os dedos.―Se era preciso, o Fernandinho ia pelo violão.

[92] ―É verdade, você que fez hoje que não me appareceu na repartição, ó Fernando?

―Dormi, está claro. Ao senhor doutor acontece-lhe o mesmo ás vezes. Olhem que pergunta!

Mas o Paula tinha-se calado, bocejava.

―Então, ó Paula...―supplicava o administrador.

―Está fechado o realejo... Depois.

Quem lhe dera que fossem as nove para irem até ao «sitio». Ou perder ou ganhar; tinha alli seis tostões que eram para um mico.

―Mas eu não lhe dizia, sr. doutor? eu não lhe dizia hontem que a dama se negava? Eu estava mesmo a ver aquillo... Bem feito! «gramou» um entalão que se consolou.

―Quatro corôas.―Na vespera tinha ganho um quartinho.

N'esse momento passava o juiz, sósinho como sempre. Todos tiraram o chapeu, elle passou gravemente, cortejando.

―Quem eu te quero á perna é o Aramis...―rosnou o Telles escrivão que embirrava com o juiz desde que o suspendera uma vez.―E ainda elle não sabe tudo...―insinuava perfidamente.

―Pois o resto diga-lh'o você, diga-lh'o no Almanach de Lembranças, em verso―fez d'um lado o Rodrigues do Real d'agua.

[93] O Telles, com famas de litterato, redarguiu que não dava confiança a analphabetos.

―E eu a brutos, sabe você?

Mau! que elles lá começavam. Officiaes do mesmo officio... Ó senhores, lá porque ambos faziam versos não se seguia que devessem embirrar um com o outro. Pelo contrario.

O Telles, furioso, disse que não embirrava com o outro, que nem lhe dava essa importancia, essa honra.

O Rodrigues ia saltar-lhe, tiveram mão n'elle. Mas jurou que d'outra vez seria, que fizesse de conta que já lá tinha na cara quatro bofetadas tesas.

―Tesas, hein? olá! quatro bofetadas tesas.

Havia de dar-lh'as, tão certo como dois e dois serem quatro, só para ter o gosto de dizer depois, n'um communicado, que desaffrontara as lettras portuguezas,―elle, o Rodrigues, elle, um simples fiscal do Real d'Agua.

Aquillo fez surpreza, convidaram-no a explicar-se.

―Não senhores! dizia colerico o Rodrigues, com grandes gestos.―Bem sei que não valho nada. Escrevi, é verdade que escrevi; faço ainda o meu verso quando me dá na cabeça. Uma rapaziada! Estão maus? Concordo. Mas não ha de ser aquelle négalhé que o ha-de dizer. Não o julgo habilitado. Lá porque tem soletrado dois romances, não se segue. Mas o que mando para publico sim, o que entrego aos prelos―é meu!―E batia no peito com a larga mão espalmada, furioso, n'umas raivas, de orgulho triumphante.―Não roubo! nunca roubarei!―affirmou [94] mais alto o Rodrigues, para que o Telles que se ia retirando, no meio de dois amigos, conciliadores, o ouvisse.―Repito: não roubo, não faço como elle!―E as palavras sahiam-lhe salivadas, violentas, por entre os labios espumantes, atiradas ao Telles como pedradas.

Os outros escutavam agora com interesse. Estavam a dar razão ao Rodrigues, instinctivamente, sem comprehender bem o que elle queria dizer.

―As provas...―e metteu a mão no bolso do seu casaco de lona, com impeto:―as provas, vel-as aqui estão!

Mostrou no ar a brochura verde do Almanach de Lembranças.―Era do anno que vem, tinha-lhe chegado hoje. Alli estava o Peres do correio que lh'o tinha entregado elle mesmo.

―Sou testemunha―confirmou do lado não sei quem.

O Rodrigues, então, affirmou que era preciso historiar, contaria a coisa em duas palavras. O sr. Telles, o borrabotas do sr. Telles, lembrara-se um dia de ser escriptor, de ser poeta. O alarve! Todos os annos―zás! versalhada para o Lembranças...

―Era collaborador―disse o Antunes da Camara que admirava o talento de Telles.―Era collaborador.

―Era quê?―interrogou logo o Rodrigues, de mão atraz da orelha.―Massador, massador é que elle era. Nunca lhe admittiram as asneiras, se me faz favor, nunca! Na correspondencia troçavam-no, chegaram a dizer-lhe que podia fazer fortuna pelas tombas, que o não chamava Deus para as lettras. Aquelle Serei ousado? é elle, sei que é elle. Nunca o admittiram.

[95] ―Lembro-lhe a Flor do Campo, sr. Rodrigues, lembro-lhe esses versos―insistiu o Antunes.

O Rodrigues teve um risinho feroz, fitando o Escrivão da Camara. Não lhe respondeu. Subiu os tres degraus do pelourinho, pausadamente, com pompa, e chamou a attenção dos amigos. Ia ler. Abriu o Almanach de Lembranças, onde trazia um papel, e rompeu:―«Indignidade».

―Em lettras bem graúdas, queiram inspeccionar.

E colou ao peito o Almanach, voltando para fóra na pagina onde o seu dedo reboludo apontava a terrivel palavra, escripta ao alto em epigraphe.

Houve um sussurro, alguns pediram silencio. O Rodrigues que lêsse.

«Os versos intitulados Flor do Campo, que viram a luz no Almanach de Lembranças do anno extincto, foram-nos remettidos pelo sr. José Maria Telles, escrivão.»

―Copiados por mim, uma letra floreada―esclareceu o Fernandinho.―Elle depois assignou―e fez no ar, com o dedo, o traço complicado da firma complicada do Telles.

Pediram silencio outra vez. O Rodrigues continuou:

«Publicámol-os na convicção de que eram da lavra d'aquelle senhor, pois que elle os assignava.»

―E então?―perguntaram uns poucos, sem comprehender ainda.

―«Pura illusão!»―continuou solemnemente o Rodrigues.―«Escreve-nos [96] o mimoso e assaz conhecido poeta sr. Alfredo Mendonça, dizendo que os versos lhe pertencem, e que o sr. Telles os roubara (sic) do seu volume Lyra Matutina

Foi uma estupefacção! O Rodrigues proseguiu mais alto, fugindo aos commentarios:

«Averiguámos, e d'isso alfim nos convencemos. Os leitores avaliarão a probidade do sr. Telles, a quem mais de uma vez tinhamos fechado a nossa porta por incapaz. Hoje damos-lhe com ella na cara―por indigno.»

E o Rodrigues fechou o livro com estrondo, como os outros fechariam a porta na cara do Telles escrivão; tomou praça fóra, o livro debaixo do braço, e foi-se para o estanco do Ernestinho, altivo, solemne,―vingado!

Os da roda seguiram-no silenciosos, corridos de vergonha, desnorteados, porque além de sempre terem julgado o Telles muito superior ao Rodrigues―e o Rodrigues bem o sabia, olha elle!...―tinham dado uma sorte de mil demonios, agora é que elles viam! distribuindo no theatro, por occasião da festa de Santa Barbara, a Flor do Campo que elles tinham mandado imprimir avulso―para lisongear o Telles que tivera o trabalho de os ensaiar no Santo Antonio. Hein? quem diabo havia de dizer que aquelles papelinhos de côr, uns verdes, outros amarellos, chovendo sobre a plateia entre o segundo e o terceiro acto, e quasi disputados a murro, n'um alvoroço de seiscentos diabos, encerravam uma insidia,―um logro á boa-fé, á credulidade ingenua de toda a comarca!

E relembravam episodios, particularidades quasi extinctas: o Fernandinho vestido da menino do côro, batina vermelha e roquete de rendas, cobrindo-se de teias de aranha [97] lá pelo fôrro do theatro, de gatinhas e com um «tôco» de vela na mão, aos tropeções, só para ter o gosto de ser elle a despejar do oculo aquella papelada; o Mello da administração, vestido de Frei Antonio, sandalias e grande chinó de calva redonda, feita d'uma bexiga de porco, com o Telles em triumpho por entre os bastidores, seguido pela turbamulta dos companheiros, em habitos de frade e fardetas de galuchos, dando vivas ao poeta! ao grande Telles, ensaiador da rapaziada!

Que desastre! Afinal tinha-lhes sahido um intrujão! E quasi se regalavam da sorte que tinham dado, pelo prazer que sentiam de o ver agora humilhado, corrido, esbofeteado pelo ridículo. Bem feito!

O Antunes da Camara, sobretudo, estava furioso. Fôra elle o da lembrança de se mandar imprimir a versalhada. Escrevera para Coimbra ao Manuel Caetano, ao Manuel Caetano da Silva, Praça Velha n.º 11, que mandava os impressos para a camara, e pedira-lhe aquillo como especial favor. O homem―prompto. Duzentos exemplares, quinze tostões. Quinze tostões que se tinha combinado dividir por todos, contas do Porto, mas que desembolsara elle só, afinal. Bem feito! ninguem o mandava ser burro. Arre! cavalgadura!

E dava patadas no chão, cada vez mais furioso, apopletico.

―Mas a bem dizer, tudo isso é nada!―continuou commovido o Antunes.―Ó senhores! e a figura que eu fiz... sim, a figura que eu fiz n'aquelle intervallo do drama para a farça?...

Todos desataram a rir, tinha sido fresca... Elle sempre acontece cada uma! E relembravam:―levantara-se [98] o panno quando os ouvintes menos o esperavam. Os que tinham sabido lá fora, ás doceiras, voltaram apressadamente com os cartuchos na mão, ensacando os rebuçados. Ia um reboliço pela plateia. Na «galeria dos camarotes» para onde só iam senhoras, gente fina, começavam a apparecer caras barbadas de sujeitos que iam saber «que tal», perguntar se ia uma pinguinha de licôr, um docinho. Em cima, na galeria alta, creadas e raparigas do povo, debruçadas no parapeito, apontavam para o palco, d'olhar attonito.

―Elle que dianho é?―perguntavam.

De baixo, da plateia, todos faziam chut! voltados lá para cima:

―Caluda, sua gentalha!

No palco estavam todos perfilados, trajando como na peça. O Freitas da recebedoria com o seu fato de Marco Aurelio; o Paula de cardeal, baculo em punho e a cara mettida n'uma estriga; o Fernandinho de menino de côro, todo lépido; a Anna Pisca muito acanhada no seu fatinho de Olivia; a Margarida que tinha feito de anjo no quadro final da Gloria, em que ella subira n'um cesto vindimo á «região sidéra dos astros»; o pae de Santo Antonio, em ceroilas e de saia branca pelo pescoço, livido como saira do tumulo; aquella canalha da tropa―todos emfim!

N'isto, entra pelo fundo o Telles todo de preto, no meio do Mello vestido de Santo Antonio e do Proença telegraphista que fazia de Frei Ignacio. Avançaram. Em baixo, o Felisberto mandou tocar o Hymno da Carta á meia duzia de musicos que não entravam na peça. O hynmo rompeu com grande estampido de pratos, n'uma [99] cadencia funebre. No palco, tudo immovel. Ninguem sabia o que era aquillo, não estava no cartaz. Esquecimento do Fernandinho, talvez... pensavam.

Mas ao acabar o hymno, o Antunes da camara, com farda de centurião, durindana e botas d'agua, irrompe furioso do buraco do ponto e préga um discurso na bochecha extatica do Telles:

«Não era elle o mais competente, de certo, o mais... etc. Mas tinham-no encarregado, obedecia... e tal. Só sentia não ter phrases, oratoria, porque emfim estava falando a um poeta...―collaborador do Almanach de Lembranças para Portugal e Brazil―accrescentou voltado para o publico, esclarecendo. Emfim, finalmente... vinha para aquillo: dar-lhe um abraço em nome de todos...―e abraçou-o commovido, emquanto os espectadores berravam apoiados, dando palmas―«... e para isto»―accrescentou fazendo com a mão que se calassem, que se calassem depressa.

Houve um sussuro de applauso, dos camarotes creanças gritavam―«ó Emilinha!» Era com effeito a Emilinha, a filha do Alves dos Pesos e Medidas, que sahia tambem do buraco do ponto, vestida de anjo, tules verdes e muita lentejoula a brilhar.

Ficou-se a olhar a plateia, immovel, muito fria, ensaiada, emquanto o Felisberto preludiava na flauta. Em certa altura, n'um requebro doce da «melodia», elle fez-lhe com a cabeça «que entrasse», e a Emilinha rompeu n'uns guinchos, cantando a Flor do Campo, com musica da Muchagateira original do Peres do correio.

O Telles sorria, entre glorioso e modesto, fallando a Santo Antonio e a Frei Ignacio:―Era de mais, era de [100] mais, elle não merecia...―Ora essa! pareciam dizer-lhe os outros―seriamos ingratos se...

A «cantoria» acabou, o theatro parecia desabar com palmas, tudo berrava, um ou outro cão latia. Se não quando, os do palco desataram a rir, cosendo-se uns aos outros, fingindo um grande medo de que as bambolinas do tecto desabassem.

Todos olhavam, curiosos. E n'aquella espectação viram de repente descer do alto, sobre o palco, agarrado a uma corda, o Freixedas da Mercearia vestido de Lusbel, rubro e com chavelhos. Cuidaram de estoirar a rir. Da bocca muito inchada sahiam-lhe faulhas, do algodão a arder que lá trazia dentro. Fazia caretas horrendas, arremedando Satanaz nos impetos da colera. O panno começou a descer, obliquo, esfarrapado d'uma banda. O Freixedas, suspenso, atirou fóra o algodão e gritou, furibundo:

―Alto! suas bestas! Inda não!...

Voltou-se de costas para o publico, e um letreiro que trazia d'hombro a hombro dizia em caracteres amarellos―C'est fini! O panno desceu então, estabalhoadamente. Os espectadores olharam uns para os outros, não tinham percebido... Foi n'esse momento que o sr. Antoninho, que tinha estudado em Braga, traduziu d'um camarote, em voz alta:

É findo!



VAE VICTORIBUS!


A Maria Lucilla.


Em dezembro, ás seis é noite cerrada. Mais boccado, menos boccado, a essa hora recolhia do monte o José Gaio, sósinho, sachola ao hombro, um pouco atarantado com a trovoada que rugia ao longe, em surdina. Por cima d'elle, o céo ia-se fazendo cada vez mais negro, d'essa negrura espessa de tempestade que infunde pavôr á gente, e da qual os proprios passaros teem medo. Cessara de chover. Mas o vento do sul principiava agora, agitando os grandes ramos despidos dos castanheiros, fazendo-os murmurar não sei que extranha elegia... A um relampago mais vivo, o José [102] Gaio apressou o passo, e, benzendo-se, rezou a Magnificat. O trovão chegou, depois, lugubre, cavernoso, alastrando-se em roldões na larga amplitude do céo. Debaixo dos pés, o José Gaio sentia o caminho lamacento, encharcado das enxurradas valentes de todo o dia. Mas a ponte já não ficava longe. Depois, a ladeira, e no meio da ladeira a casa.

―Vamo' lá com Deus! fazia elle animando se.

Um clarão subito de relampago deslumbrou-o. Deante d'elle surgiu de repente a paizagem, e de repente desappareceu, feericamente illuminada. Deitou então a correr, aterrado; mas tão forte veio em seguida o trovão, que elle instinctivamente parou e levou ao céo as mãos afflictas, n'um gesto de quem implora misericordia. N'aquella imminencia de perigo as proprias arvores lhe pareciam immobilisadas pelo terror, á beira do caminho. E atravez dos castanhaes, o surdo rumor do vento era como a voz implorativa da natureza, unindo-se á voz d'elle n'um longo côro de supplicas...

O José Gaio ia transido. Mas peor ficou quando de repente, sem saber d'onde, alguem chamou por elle, lugubremente:

―Ó José Gaio!

O homem parou. E como perto d'elle apenas enxergasse os braços da cruz negra, que era o signal de alli terem matado o José Tendeiro, ha annos, apertou o passo e tomou por um atalho, direito á ponte. Mas então a mesma voz tornou-lhe mais de perto:

―Ó José Gaio!

Quiz fugir, mas o medo parece que lhe tolhia as pernas. N'isto veio um relampago que illuminou a mil côres a paizagem. Elle cerrou os olhos com força, nervosamente, ferido por aquelle deslumbramento que por milagre [103] o não prostrou. E quando o trovão bramiu, rudemente, uma immobilidade de estatua prendia o camponez á terra. Foi então que veio de novo aquella voz, como um prolongamento do trovão:

―Ó José Gaio!

Ia avançar para ganhar a ponte. Parecia-lhe que, uma vez transposta, galgaria a ladeira n'um instante. Mas involuntariamente, cedendo a uma força violentissima, entrou de retroceder, cambaleando. Aquelle rugir da agua que logo abaixo da ponte fazia cachão, rugir violento mas monotono, infundiu-lhe um grande pavor. Teve medo e deixou-se retroceder... Senão quando, estacou ouvindo a mesma voz:

―Ó José Gaio!

E logo atraz da voz, com um rastro, um intensissimo relampago côr de sangue. Viu tudo vermelho, afogueado, tudo menos aquella cruz preta de longos braços, sempre abertos e sempre firmes, que pareciam desafiar a tempestade...

Aquella serenidade da cruz estonteou-o. Dir-se-hia que esse nobre exemplo de altivez vinha agora humilhar mais a sua fraqueza. Desviou os olhos e cerrou violentamente as palpebras. Mas em vão! que fôra tão vivo o deslumbramento, e tanto lhe ferira o cerebro, que n'um fundo côr de sangue, como n'um transparente de magica, elle via nitidamente desenhada, sempre firme e sempre altiva, a cruz que o estonteara. Então deram-lhe impetos de fugir; uma onda de coragem parecia dilatar-lhe o peito impellindo-o. Precisamente n'esse momento, a voz tornou a chamar:

[104] ―Ó José Gaio!

Sentiu-se alquebrado, transido até ao mais intimo do seu ser. Um longo desfallecimento invadiu-o todo, quebrando-lhe a ultima fibra de energia, como se quebra um vime secco. Aquella paralysia atacou-lhe tambem o cerebro: não formava um só raciocinio nem elaborava sequer uma idéa, a mais simples. E foi preciso um grande trovão para todo elle tremer, abalado como a propria terra. Depois, outro relampago fez reviver n'elle a vida do espirito; sentiu um grande pavôr áquelle aspecto subito do campo que deante d'elle se perdia de vista, afogueado como se estivesse todo em chammas. Aqui, um pinhal, uma ermida além, para toda a banda casaes, surgiam de repente, nitidos nos seus contornos, definidos maravilhosamente nas suas attitudes. As grandes arvores despidas, sobretudo, tinham um ar phantastico, n'essa pureza nitida de recorte que traçava na luz as sinuosidades mais delicadas dos troncos e ramarias. No meio d'este scenario de magica, a um tempo magestoso e tetrico, o triste camponez sentia-se apavorado, jactitante e quasi inerte, alli chumbado á terra, hirto como a cruz que tinha deante. E nem um só gesto implorativo, e nem uma só palavra de supplica lhe sahia dos labios crispados. Porque uma vez que tentára uma palavra, o mais formidavel trovão cortara-lh'a na primeira syllaba. Depois, aquella voz não o largava, imperturbavel e monotona:

―Ó José Gaio!

E elle, não respondendo nem fallando, pensava esconjural-a, exorcismal-a como se fosse a voz d'um duende. E para esta evocação do sobrenatural muito concorria, como os senhores comprehendem, esse aspecto sereno da cruz negra, inabalavel sob a aza agitada da procella.

[105] N'isto veio a chuva, em grossas gottas a principio, em cordas d'agua depois. Ella varejava-o inclemente, impellida agora por um vento sul furioso. Não deu um passo para procurar um abrigo, não se mexeu sequer. Como todo elle ardia em febre, aquelle diluvio era quasi um celeste beneficio para a sua cabeça n'um vulcão. Mas quando os relampagos vieram, aquella reverberação da luz nas cordas d'agua fez-lhe um deslumbramento mais forte. E cahiu inerte sobre o caminho lamacento por onde a agua escorria impetuosa, ao mesmo tempo que a voz do costume, sobrelevando o trovão, repetia do lado da cruz:

―Ó José Gaio!

Cobarde, sujo como um sapo, encharcado até aos ossos, como cahiu assim ficou―de bôrco. Depois, quando abriu os olhos, na larga poça onde quasi tinha a cara, via reflectir-se a cruz, a cada relampago. Ella lá estava no seu posto, altiva, serena, intemerata, recta como um exemplo... E pois que parara o diluvio, dos seus braços abertos as gottas da chuva cahiam, vermelhas á luz, como grossas lagrimas de sangue...

Cobarde! Nenhuma comparação póde dar idéa do estado de prostração d'esse miseravel, reduzido pelo terror a uma quasi inacção de besta morta. Dir-se-hia um immundo trapo alli cahido, abandonado alli na lama ignobil de um caminho, á espera da enxurrada que o levasse... Era abjecto!... E emquanto esse animal assim jazia, atordoado, como boi que uma malhoada prostrou, ao fundo do horizonte, para sul, o encastellamento phantastico das grandes nuvens plumbeas, listradas de negro e roxo, metralhando com furia o largo espaço, aos quatro ventos, era tudo quanto o nosso espirito póde conceber [106] de mais grandioso e de mais sublime, epico e tragico a um tempo, soberbo, magestoso, imponente.

Mas a voz sempre a ouvia, por cima do vento e por cima dos trovões, aquella voz:

―Ó José Gaio!

Assim largo tempo, horas talvez. O torpor do frio aggravava-lhe o outro, o do medo. Parecia colado á lama, preso ao caminho como se fosse uma rocha. No emtanto, a espaços, tinha a comprehensão clara da sua posição e do seu estado. E então uma raiva subita galvanisava-o: queria erguer-se, fugir, desapparecer―erguer-se como aquella cruz, fugir como aquelle vento, desapparecer como esses relampagos, que nem deixam rastro na treva...

Taes rebates de coragem eram, porém, ephemeros, impotentes para lhe provocarem um movimento. Aquelle diabo tinha de morrer alli, miseravelmente, ignobilmente, como um cão a que houvessem amputado as quatro pernas. E esta idéa, que o instincto de viver lhe suggeriu, apavorou-o ainda mais que a propria tempestade. Morrer alli! Mas que duvida, se ninguem lhe vinha acudir, se não passava por alli viv'alma, a taes deshoras! Era horrivel! No meio de um caminho, n'uma noite medonha de tempestade, ao pé d'aquella cruz negra de longos braços hirtos―morrer alli!... Eram então já por elle as lagrimas que essa cruz parecia chorar?...

Estava n'isto, quando n'um silencio de acaso ouviu passos a distancia. Vinha gente. Quem quer que era tinha de passar por alli, de tropeçar n'elle, talvez. Subitamente, sentiu-se reviver. Estava salvo. Em breve estaria de pé,―de pé como essa cruz que um relampago muito vivo [107] acabava de lhe mostrar... No emtanto, a voz é que se não importava:

―Ó José Gaio!

Mas os passos vinham-se chegando; e então, como se receasse que o calcassem, reuniu n'um supremo esforço as maximas energias, e rebolou-se para um lado, até ficar detraz d'umas urzes. Coisa notavel foi, senhores, que esse miseravel em vez de gritar calou-se, e todo se recolheu n'uma absoluta quietação, com medo que o surprehendessem... E quem quer que era passou, cabeça nua, deante da cruz gottejante... Aos ouvidos do miseravel chegou um como murmurio de prece... Não ia só a rezar; ia tambem chorando, aquelle homem...

...Quem seria?

Um clarão branco de relampago fez irromper da treva, livido como um espectro, o filho do José Tendeiro...

O desgraçado ia a chorar pelo pae, alli assassinado havia annos, por uma noite como aquella...

Passou, ladeira abaixo, na direcção da velha ponte. Só aquelle cobarde não se mexeu, prostrado sobre as urzes, quasi arrumado á cruz.

E assim esteve horas e horas, até que, noite velha, cessou a tempestade, perdida n'um murmurio longiquo, lá na extrema fimbria do horizonte... Quando a lua rompeu, livida n'um céo de anil, nem a grande sombra da cruz, incidindo sobre aquelle corpo, como um beijo ou uma benção, logrou reanimal-o. Tinha morrido, o estafermo!

[108] Ao outro dia, está claro, foram lá os da justiça. O velho abbade foi depois, buscar o corpo. Os medicos nem lhe tinham mexido.

―Sangue pelos olhos, sangue pela bocca, sangue pelo nariz, uma congestão muito linda―dissera um a rir.

―E muito mal empregada―fizera o outro do lado, indifferente.

Mas quando os da maca disseram a um tempo―Upa!―esse bom velho do abbade cahiu de joelhos deante da cruz, n'uma convulsão agudissima de choro. E elevando ao céo as mãos mirradas―ao céo que um divino azul fazia diaphano―elle exclamou, soluçando:

―Senhor! Senhor! a vossa justiça é tremenda, como é infinita a vossa misericordia!

...Segredo de confissão...―mas o abbade bem sabia quem tinha alli matado o José Tendeiro...






BALLADAS


A Luiz Osorio


I

MARICAS



Vocês lembram-se da Maricas, aquella magrita de cabellos muito castanhos, quasi louros, que morava defronte da redacção, lembram-se? A boa da rapariga era nossa amiga, pois não era? Sempre benevola e complacente para as nossas balburdias e algazarras de todo o dia e de toda a noite. E vocês bem sabem que taes ellas eram, as nossas balburdias e algazarras...

Eu, na Maricas, admirava uma virtude rara, toda original e encantadora―a de não mostrar jamais na sua amisade preferencia por algum de nós. Dir-se-hia que era nossa irmã, ou mesmo nossa mãe, pois que nos queria a todos por igual, a pobre Maricas de olhar azul e brando...

[112] Não sei se já vos disse: adivinho o interesse com que ella vos perguntaria por mim, nos meus dias de cabula, pela solicitude e interesse com que me perguntava por vocês, quando faziam gazeta ao escriptorio.

―Então esses cabulas? então esses marotinhos? Doente, algum?

―Na esturdia, Maricas. Andam todos por lá...

―Ora vejam!―fazia ella quasi escandalisada.

Ah, como eu me lembro n'este momento da vivacidade franca dos sorrisos que nos mandava, quando todos em pinha, furando pelos hombros uns dos outros, palreiros conversavamos com ella de janella para janella, n'um tête-à-tête que durava horas, muito familiares, muito dados, quasi que chamando-lhe por tu e ella a nós!

Como eu me lembro!

Ella tinha sempre uma resposta e um sorriso para cada uma das mil perguntas que lhe faziamos, e então uma grande paciencia inexhaurivel. Nós, os estroinas, quasi que chegavamos a adorar aquella ingenuidade singela do seu coração de vinte annos. A boa da Maricas era adoravel, toda ella bondade e paciencia para os nossos disturbios e para as nossas algazarras de toda a hora e de todo o instante.

Mas como se familiarisou ella comnosco e nós com ella, é que me não lembra, e porventura a nenhum de vocês, acho eu. O que é certo, rapazes, é que nós como que a consideravamos uma companheira de redacção, especie de directora com casa áparte e viver independente pois que se entravamos no escriptorio (parece mesmo [113] que estou a ver aquella barafunda d'escriptorio!) e, assomando á janella, a não viamos na sua, diziamos quasi sem querer, mas invariavelmente:

―Mau! falta hoje a Maricas! Diacho! mas onde iria a Maricas?

E passados instantes debandavamos todos, um agora, outro logo, á formiga, mal nos convenciamos de que ella passava a tarde fóra, em casa da freira de Quebra-Costas―d'essa lembram-se vocês... No emtanto, deveis recordar-vos que ella, no dia seguinte...―coitada!―...a primeira cousa que fazia era justificar a sua falta, «estive aqui, estive alli, fui a umas compras com a mamã», um pouco ruborisada e confusa, como se na realidade a sua obrigação fosse estar alli a aturar-nos. Por pouco ella nos não pedia de mãos postas que lhe perdoassemos, a boa da rapariga.

E nós então galhofeiros, brincalhões:

―Sem mais aquellas, D. Maricas! A congregação risca-lhe a falta, ora essa!...

E ella mais confusa, fazendo girar no dedo o seu annelzito de cobra:

―Pois sim, mas é que ás vezes...

―Ás vezes quê?...

«Não! ora adeus! Ninguem desconfiava que ella estivesse zangada comnosco. Saíra, porque tinha de sair, essa é boa...»

―Pois não era verdade―perguntavamos-lhe―que ella adorava aquella troupe de bohemios?

[114] ―São todos muito bons rapazes―dizia já a sorrir.―Todos me tractam muito bem...

E quando dizia isto, o seu rosto miudinho e muito pallido todo se illuminava de prazer e sorria de intima gratidão. Mas porque sympathisava ella comnosco, a pobre Maricas?

Quando nos via em palestras interminaveis, nas libações do congnac e do café, ouvia-se lá da janella um pschiu! muito sibilado.

―Que manda a D. Maricas? É servida?

E ella, levantando os olhos da costura, com ares de formalisada:

―Mando que escrevam, que trabalhem! Já fizeram o jornal?

O cuidado que lhe dava o jornal!

―Ora faz favor de não fallar em coisas tristes? Olhem agora que lembrança, o jornal!

Ella então, por unica resposta, dizia-nos ás vezes que na semana passada o typographo viera queixar-se de que havia falta de originaes, quantas vezes o garoto da imprensa viera pedir as provas emendadas.

E por fallar em provas:―a Maricas sabia todos os signaes das emendas, todos.

―Olhe lá, Maricas, está aqui uma letra a mais n'esta palavra.

[115] ―Risco por cima, risco á margem, e um d cortado; é facil.

―Um m de pernas para o ar, e esta?

―Risca-se, e um tres cortado, á margem. Está farto de o saber...

Quando via algum sentado á meza, a rabiscar, pedia sempre que lhe fosse mostrando as tiras, á medida que as escrevesse, talvez porque adivinhava que isso era um estimulo. A gente fazia-lhe então a vontade, e mal escrevia a derradeira lettra pegava da tira e dizia-lhe para a janella, acenando-lhe com o papel:

―Maricas, cá está uma, vá contando. Veja: escripta d'alto a baixo.

Á terceira que se lhe mostrava, ella saía-se de lá com um bravo! e recommendava, solicita, cinco minutos de folga, emquanto se fumava um cigarro.

A Maricas era quem nos cortava as cintas para o jornal e quem nos fazia a gomma nos dias de expedição. Que ricas cintas e que bella gomma! Em paga, quando o jornal chegava da imprensa, quasi sempre nos sabbados á noite, o primeiro exemplar era para ella. Como a rua era estreita atirava-se-lhe da janella.

―Maricas, ahi vae ainda fresquinho!

―'stá bem, obrigada. Vou lêr, até ámanhã.

Corriamos todos á janella, a dar as boas noites á nossa amiga.

[116] ―Durma bem, ouviu?

E no dia seguinte, a Maricas repetia a cada auctor phrases e phrases do artigo publicado, jurava que nos conheceria no estylo ainda que mudassemos de pseudonymo. De resto, sempre benevola: achava tudo muito bom, «escripto com muita graça e muito bem», como ella dizia.

Nos serões que faziamos e que por via de regra não passavam de um interminavel cavaco, dizia-se mal das mulheres, discutiam-se escandalos, desvendavam-se segredos, tal e qual como em todas as redacções... Mas da Maricas ninguem tinha que dizer senão bem; era a privilegiada n'aquellas sessões de má lingua. Quasi sempre a conversa degenerava em algazarra―um que se lembrava de cantar, outro que ia pela guitarra e gemia fados com acompanhamento de violão. E era de vêr o Santos Mello, d'olhos cerrados e cabeça á banda, como cantava a sua quadra predilecta:


Sei cantigas mysteriosas,
Cantigas de endoidecer,
Que os lirios dizem ás rosas,
Que as rosas me vêm dizer.


Mas no meio d'esta inferneira havia sempre um que recommendava silencio.

«Com mil demonios! não viam que a Maricas não podia pregar olho...»

Todavia...―ó suprema bondade!―...ella nunca se queixava quando no dia seguinte nos vinha dizer até que horas durara a estroinice, o que se tinha tocado, o que se cantara, quem tinha rido mais, e, até, as vezes que as cadeiras tinham caido.

[117] «Ora viam?! Não a tinhamos deixado dormir! A Maricas que desculpasse; palavra d'honra! d'óra ávante...»

Ella então acudia logo, como a remediar uma grande desgraça:

―Não, não, eu até gósto. Entretem-me vel-os alegres, faz-me bem, ora essa...





Pois, meus amigos, a boa da Maricas―morreu! vocês não sabiam! E morreu tysica, a desgraçada Maricas! Só depois que o soube, é que eu comecei a pensar n'aquella tossesinha muito secca em que ás vezes a surprehendiamos, n'aquelle branco pallido das suas faces, no bistre das suas olheiras, n'aquella magresa transparente das suas mãositas de marfim...

Pobre Maricas!

Haverá tres mezes que ella me desappareceu da sua janella, onde continuei a vêl-a depois que o jornal acabou. Eu sabia lá para onde ella tinha ido?!...

Mal diria eu que estavas no cemiterio, tão longe e tão só! porventura na valla commum, sem umas folhas de rosa sobre a tua sepultura humilde,―onde n'este instante cáe chuva e chuva! Ainda se as noites fossem todas de luar... Minha triste amiga! como eu agora relembro cheio de magua a tua phrase de infinita bondade e de infinita resignação:

[118] ―...«Entretem-me vêl-os alegres, até me faz bem»...

Comprehendo agora tudo: vivias da nossa alegria, já que a tua alma era triste... Mas porque foi que nos não disseste, pobresinha! que n'essa phrase singela ia a revelação do presentimento que tinhas da tua morte prematura?! Triste creança que nós não mais veremos!



Olha, Maricas, escrevi quatro tiras. Já me não dizes―bravo!―ora não?...





...Bom Deus! bom Deus! para que a terra produza diamantes, e d'ella rebentem flôres, são talvez precisos estes corpos a avigorar-lhe as seivas...






II

PARA A ESCOLA



No velho casarão do convento é que era a aula. Aula de primeiras lettras. A porta lá estava, amarella com fortes pinceladas vermelhas, ao cima da grande escadaria de pedra, tão suave que era um regalo subil-a. Obra de frades, os senhores calculam... Já tinha principiado a aula quando a Helena entrou commigo pela mão. Fez-se um silencio nas bancadas, onde os rapazes mastigavam as suas lições e a sua taboada, n'um rithmo cadenciado e monotono, cantarolando. E ouviu-se então a voz da Helena dizer para o senhor professor, um d'oculos e cara rapada, falripas brancas por baixo do lenço vermelho, atado em nó sobre a testa:

―Muito bons dias. Lá de casa mandam dizer que aqui está a encommendinha.

[120] Oh! oh! a encommendinha era eu, que ia pela primeira vez á escola. Ali estava a encommendinha!

―Está bem, que fica entregue. E lá em casa como vão?

E emquanto o velho professor me tomava sobre os joelhos, a Helena enfiava-me no braço o cordão da saquinha vermelha, com borlas, onde ia mettido nem eu sabia o quê. Meu pae é que lá sabia... E alli estava eu entre os joelhos do senhor professor, com o bonnet n'uma das mãos e a saquinha vermelha na outra, muito compromettido. A Helena, que sorria contrafeita, baixou-se para me dar um beijo, e disse-me adeus.

―Adeus, Josésinho, logo venho cá pelo menino.

Choraminguei, quiz sair na companhia d'ella.

―Não, agora o menino fica―disse-me a Helena.―Isto aqui é a escola, é onde se aprende a ler.―E agachando-se, deante de mim:―Olhe tanto menino, vê?

―Mas fica tu tambem―disse-lhe eu então.

Nas bancadas houve hilaridade geral. O mestre teve de intervir, iracundo:

―Caluda, sua canalha! Não veem que está gente de fóra? Caluda, que vae tudo razo com bolaria!

Foi então que reparei em toda aquella rapaziada. Ah, elles eram todos meus conhecidos! Vivam lá vocês! E estavam todos alegres, p'los modos. Reanimei-me. Então já eu podia ficar, estavam ali os meus amigalhotes, cheguei mesmo a rir das caretas que me faziam alguns, o Estevão principalmente.

[121] ―Isto é preciso muita paciencia, senhora Helena, muita somma de paciencia. Um mestre precisa de ser um santo.―(Pausa. Olho duro sobre as bancadas.)―Mas está bem, diga lá que a encommendinha cá fica. Em boa hora entrasse...

―Entrou, elle ha-de estudar. Ora ha-de, Josésinho?

Das bancadas alguns acenavam-me que não, arregalando muito os olhos.

―É verdade,―insistiu por sua vez o professor―o menino ha-de estudar as suas lições, não é assim?

―Diga, sim senhor―ensinou-me então a Helena.―Hei-de estudar muito e ser socegadinho na aula, diga.―E a meia voz para o professor:―isto em casa é o vivo mafarrico; faz lá ideia?

Elle riu, já sabia; as creanças são todas assim, emquanto estão no mimo das mães. Mas uma vez mettidas na escola, as cousas mudavam um pouco. E piscando o olho, designou a palmatoria. A Helena ficou transida.

―Faz milagres, sr.a Helena. Digam lá o que disserem, olhe que faz milagres.

Eu tinha percebido. Começava de novo a embezerrar, com vontade de sair quando a Helena saisse. Aquillo sabia eu para que servia, a palmatoria...

―Mas para o nosso Zézito não ha de ser precisa, ora não?

―Diga assim: não senhor, porque eu hei de cumprir com as minhas obrigações, diga.

[122] ―Ora ahi é que está―atalhou o professor.―Vê, sr.a Helena? Aqui já os pequenos tem a sua obrigaçãosinha, os seus deveres a cumprir, as suas coisas...

―Sim senhor, sim, emquanto que em casa...

―Em casa é o que nós sabemos. Tudo são mimos, meu menino isto, meu menino aquillo. Vão assim creados á lei da natureza, sabe vossemecê? É mau isso, pessimo! Porque é que os rapazes são todos teimosos?―E bateu n'um «Monteverde» pousado sobre a mesa, dizendo:―Olhe, aqui está n'este livro: «de pequenino...

―...é que se torce o pepino»―concluiu rapida a Helena, orgulhosa de saber o que estava no livro, coitada!

―Nem mais. A modos que isto faz rir. Um pepino é uma cousa que se cria na horta...

Risota dos rapazes!

―Ora vê isto, sr.a Helena? vê estes brutinhos?―E com entono, de palmatoria alta, fazendo-se carrancudo:

―Caluda, seus fedelhos! Caluda, porque se peço licença á sr.a Helena, começo n'uma ponta e levo tudo a eito, corro tudo a bolos, tudo, mas o que se chama tudo!

E fitou-os altivo, sereno, minaz. Sob aquella ameaça, os rapazes ficaram transidos, cabisbaixos, olhos pregados nos livros. É verdade que elle podia pedir licença á sr.a Helena, e mesmo deante d'ella cascar de rijo... Uma sombra de terror passou por toda a sala, socegaram; até o Estevão deixou de me fazer caretas.

―É o que vê, sr.a Helena―disse então victorioso, a [123] sorrir-se, o bom do professor.―É o que vê! Um mestre sem palmatoria é um artista sem ferramenta, não faz nada. Santa Luzia milagrosa! Aqui onde a vê tem feito muitos doutores.

―Essa?―perguntou ingenuamente a Helena, disposta a venerar aquelle pedaço de pau de buxo, se na verdade elle tivesse feito muitos doutores.

―Não, mulher, se não foi esta, outras como esta, essa é boa! Isso não faz ao caso.

Pela resposta bem se vê que foi indiscreta a pergunta da pobre Helena. Tambem elle, velho n'aquelle officio, muitas vezes investigara com magua o motivo por que a sua palmatoria não fazia um unico doutor... Morreria sem ter essa «gloria,» decerto! Forte martyrio que a Helena veio recordar-lhe!...

Houve uma interrupção, um rapaz que se levantou e de braço no ar pedia para ir lá fóra.

Licéte!―foi como elle disse, arremedando o latim licet. Outros havia que diziam, por troça, Aniceto!

―Ora já a mim me admirava,―tornou-lhe o professor.―Se tu não havias de pedir para ir lá fóra, tu...―E ficou-se a fital-o, meneando pausadamente a cabeça.―Ora vá você lá fóra.

O rapaz saiu apressado, com grande estrupido de pés.

―Olá?―chamou zangado o sr. professor.

O outro assomou á porta, contrafeito.

[124] ―Para a outra vez faz-se menos barulho com esses pés, ouviu? Não sei se percebes... Ora já que tem tanta pressa, eu não tenho nenhuma; faça favor de esperar um pouco.

Poz-se então a correr a vista pelas bancadas, resmungando:

―Tu não... tu não... tu não... Tu, olá, venha cá!

Levantaram-se uns poucos, foi um barulho.

―Canalha!―gritou-lhes então, batendo o pé.―Corja de atrevidos! Sentados, já!

Grande silencio nas bancadas. Um perguntou de lá, humilde, se era elle, apontando para o peito.

―Sim, és tu, p'ra que queres os olhos? Avance e perfile-se.

Mediu-o d'alto a baixo. Depois:

―Isso mesmo. Essa mão no bolso é que não é do regulamento, fóra com ella. Agora, sim senhor. Ora vês além aquelle sujeito? o tal das pressas?...

―Vejo, sim senhor.

―Bem sei que vês, se o não vissem é porque eras cego; que tal está o palerma? Ora acompanhe-o, já sabe p'ra que. E sempre quero ver se tenho de vos ir lá buscar pelas orelhas.

Sairam. Mal tinham salvado a porta, gritou-lhes o sr. professor:

[125] ―Olá?

Elles assomaram, outra vez, atrapalhados.

―Então, seus cabeças d'avelã, torres de vento, então não falta nada?

Os dois pozeram-se a coçar a cabeça, muito compromettidos. Faltava com effeito alguma coisa...

―Então é ahi?

Elles avançaram até ao meio da sala, tropeçando um no outro.

―Ora passa por esta vez, em attenção a estar aqui a sr.a Helena.―E enrugando o sobr'olho, commandou em tom marcial:―Ordinario! marche!

Faltava aquillo. Em obediencia aos seus velhos habitos de militar, dava o sr. professor aquella voz, sempre que mandava algum alumno cumprir ordens suas:

―Ordinario! marche!

Sentou-me então no joelho e perguntou:

―Olha lá, Josésinho, tu queres ser militar, queres? Assim como o sr. capitão do destacamento, que lá está aboletado em casa, queres?

―Corneta, mais queria ser corneta. Ou então como o sr. prior, dizer missas.

Riram-se. Quem sabia lá o que d'ali sairia? Mas o sr. professor fez notar que era bom que os pequenos tivessem [126] já assim uma tendencia qualquer. E poz-se a puxar-me o nariz, a dar-me palmadinhas nas bochechas.

―Corneta ou prior, hein? Pois isso é que é preciso escolher.―E para a Helena:―Pois olhe que os tenho conhecido, sr.a Helena, que respondem a pés junctos que não querem ser nada. Mau signal, pessimo, sr.a Helena! Quando elles assim dizem, de ordinario assim fazem, depois. Nunca são gente.―E virando-se para mim:―Mas então, Josésinho, em que ficamos? Corneta ou prior?

Preferia ser prior. Sempre me parecia melhor, mais bonito, especialmente em dias de festa, com aquella capa toda doirada...

―Muito bem, escolheste bem. «Telha de egreja...

―...sempre gotteja»―concluiu a Helena que ainda hoje é forte em adagios.

O bom do professor tinha finalmente chegado onde queria.

―Prior, então! Está muito bem, seu reverendo. Pois olha, Josésinho, para ser prior é preciso estudar, saber ler no missal, ora é?

―É.

―Ah!... Não é assim que se diz. É, sim senhor―emendou a Helena.

O sr. professor teve um gesto de indulgencia.

―Mas tu não sabes ainda, ora não?

[127] ―Não senhor.

Elle então, fingindo uma grande surpresa, perguntou se o que eu trazia na sacca era um livro.

―Querem ver que é um livro?...

―Diga―ensinou a Helena―é o meu livro para aprender a ler. Mostre-o lá ao sr. professor, tome.

Houve na sala um murmurio, ao verem a capinha verde, toda lustrosa, do meu livro.

―Muito bem! muito bem!―applaudiu o sr. professor.―Mas este livro é mesmo para aprender a prior... O menino já tinha dito lá em casa que queria ser prior, ora já?

Fiz que sim com a cabeça. Era verdade aquillo; mas como é que elle o sabia?

―Bem se vê por este livro. É livro para prior. Queres então principiar, não queres?

―Quero, sim senhor,―ensinou ainda a Helena e eu repeti.―O que eu quero é dizer missa quanto mais cedo melhor, diga.

―Primeiro do que aquelles?―perguntou voltando-me para as bancadas.

Então fui eu mesmo que respondi:―«Sim senhor!»―contente com a lembrança de vir a dizer missa, e de a vir a dizer primeiro do que todos aquelles. Até podia acontecer que o Estevão das caretas me ajudasse a alguma...

[128] ―Ora então está muito bem, estamos entendidos.―E com intenção, ferindo muito as palavras, para m'as gravar no espirito:―A primeira coisa que é precisa para prior é saber bem isto, vês?―E punha-me deante dos olhos o livro aberto na primeira pagina.―Isto aqui é já missa, chama-se o a b c, e é aquillo que os priores dizem quando vão para o altar.

Ito?―inquiri curioso, furando a pagina com o dedo.

―Sim, isto. E amanha já me has-de trazer sabido d'aqui até ali. Hein? valeu?

―Diga que sim, menino, diga. Valeu, sim senhor.

Eram as seis primeiras lettras, ainda me lembro bem. A minha primeira lição!

A B C D E F!

A minha primeira lição!

―Ora sabe vossemecê o que isto é, sr.a Helena? isto que eu tenho estado a fazer?

―Sim senhor, sei... é assim... como quem diz... é...

―Não sabe, não admira,―disse complacente o sr. professor.―Puxar o gosto, sr.a Helena, puxar o gosto é que isto é. Nem todos os mestres o fazem, todos o deviam fazer. O pequeno, assim, até já vae estudar com mais gosto, digo-lh'o eu; olé se vae!

«Mas elle não a queria demorar mais, tinha lá em casa as suas obrigações, as suas voltas, e deviam ser horas.»

[129] ―Pois isso é verdade, sr. professor; mas não sei que é, custa-me a separar do menino...―disse a boa da Helena, quasi a chorar.

―Foi ama, deu-lhe o seu leite, ahi é que está a coisa. Pois tenha paciencia. Aprender é tão preciso como mamar―concluiu n'uma prosa que é mesmo poesia.

―Pois é preciso, é!...

E a pobre Helena beijou-me, para se ir embora. Quando me beijou, senti na minha cara as lagrimas d'aquella boa amiga. Retirava-se, deixando-me ainda sobre o joelho do meu velho professor, quando este a chamou:

―sr.a Helena!

―Meu senhor!―respondeu, levando aos olhos o avental.

―Já agora, espere mais um instante.

Percorreu com a vista, minuciosamente, as bancadas todas da aula. Depois, intimou:

―Tu, Francisco, olá, chega acima. E tu do lado, como te chamas, abaixo um pouco.―E virando-se para a pobre mulher lacrimosa:―Ora é alli, sr.a Helena, alli é que é o logar do pequeno. Leve-o lá, ande, que lhe não deve pesar.

E dos braços do meu professor passei para os braços da ama. Novo beijo, lagrimas mais quentes, e saiu a boa da Helena, deixando-me no meu logar...―o meu primeiro posto na arriscada milicia das lettras...

[130] Depois, só vi isto: o mestre a sorrir-se para a porta e a conversar por acenos com a pessoa que estava de fóra. Pequeno como era, percebi, no emtanto. O mestre vinha a dizer na sua mimica:

―Bolos?... Não?!... Perdoe a sr.a Helena, mas isso, quando forem precisos... Pois sim... lá isso sim... pequeninos... Han? mesmo com a mão?... Está bem... Descance... Mesmo com a mão...

E ella devia sorrir por entre lagrimas, porque foi tambem por entre lagrimas que o bom velho se sorriu, dizendo adeus...





...Helena, minha boa amiga! Acabo de chegar ao fim da viagem que principiei n'esse dia. Não volto mais á escola! Venho hoje restituir-te, querida amiga, aquelle beijo―dulcissimo beijo aquelle!―que tu então me déste. E afinal não fui prior, ora vê!... Mas ainda bem. Se o fosse, acho que parecia mal beijar-te, minha boa e santa amiga! Pois ainda bem que não fui prior, ainda bem... Não é verdade, Helena?

Em Coimbra,
no dia do meu acto de formatura.



TRAGEDIA RUSTICA

I


Madrugada de segunda feira de entrudo, tapada dos Nobres, Alemtejo, á porta do José Grillo


Truz! truz! truz!

Os de casa acordaram, sobresaltados.

―Schiu! nem pio!―fez o José Grillo para a mulher.―Moita!

―Truz! truz! truz!

Do seu cubiculo, a Anna, filha do José Grillo, poz-se a chamar pelo pae.―Bem ouvia, que deixasse bater. Algum bruto que se queria divertir...

Mas logo outra vez na porta:

―Truz! truz!

―Arre que é bruto! vá bater ao inferno, quem é! gritou [132] de dentro o José Grillo, zangado. E pois que se poz á cóca, de orelha fita, olhos cravados na telha-van do casebre, sentiu distinctamente os passos de alguem que fugia.

―Eu não te disse? aquillo foi bruto que se quiz divertir―explicou elle para a mulher.

Mas palavras não eram ditas, pareceu-lhe ouvir o vagir de um cachorrinho, mesmo rente á porta. Veio-lhe logo á ideia que lhe tinham vindo pôr zôrro...

―Ó mulher, queres tu ver que ha novidade?

De um pulo saltou da cama, embrulhou-se na manta e abriu a porta do casebre.

―Elle que demonio de embrulho...?

Pegou-lhe com muito geito. Era effectivamente uma creança, envolta em dois trapinhos muito velhos.

―Coitadinho! fez o ganhão achegando ao peito a creancinha.

―Grandes cadellas!―E poz-se logo a fazer uma algazarra, alarmando a gente da casa.

―Andem! a pé! levantem-se! está aqui este innocentinho que vem dar os bons dias á gente!

Correu a filha, veiu a mulher. Mas ao tempo, já o bom do José Grillo mettera a creança na cama, visto que a pobresinha estava gelada...

―Elle quem diabo ha por ahi que tenha leite? A filha [133] do Antonio das Varedas, é verdade, a Brites que lhe morreu o cachopo.

Despediu immediatamente a filha, a Anna, á procura da Brites que chegasse o peito ao innocentinho. E da porta, gritando para a rapariga que ia correndo:

―Que se não demore, ouves? que se lhe paga aquillo que fôr.

Mas a mulher do José Grillo, a senhora Joanna, de pé no meio da casa, a saia amarella deitada pela cabeça, de braços cruzados, muito embezerrada, permanecia sem dizer palavra.

―Ó mulher, nada de afflicções, é tal e qual como se fosse nosso, faz de conta...―observou-lhe logo o José Grillo que percebia o ar taciturno da femea.

Ella só redarguiu que nosso era um modo de fallar. Seria d'elle, mais de qualquer desavergonhada...

O José Grillo, que estava a enfiar as calças, parou no serviço e pregou-lhe uma gargalhada.

―Ageita-me o pequeno, ouves? Vê lá que talvez esteja molhado. E deixa-te de cantigas, que hoje é dia de entrudo.

A mulher ia reguingar; mas elle, pegando-lhe de um braço, levou-a ao pé da creança, affirmando-lhe ás risadas que sim, que o pequeno era filho d'elle.

―O pequeno?... mas é que pode ser cachopa―disse o José Grillo para a mulher.―E certificando-se:―Nada! é rapaz.

[134] Seguiu-se uma altercação. A senhora Joanna, a chorar, ia jurando pela sua salvação que «o crianço» era filho do seu homem.

―Ai Jesus que estou perdida! chamava ella muito comica, braços no ar, o balandrau da saia amarella enfiado pelo pescoço n'um geito de sobrepeliz.―Má hora em que me eu casei! ai Jesus que vae ser de mim!

―Olha que é rapaz, ouves? anda cá ver que é rapaz―disse-lhe de lá o José Grillo, muito fleugmatico, debruçado sobre a creança.

Mas como visse que a mulher continuava n'um estardalhaço, muito afflicta, desaustinada pelos cantos da casa, o José Grillo virou-se para ella e disse-lhe muito solemne:

―Pois assim me Deus salve como não é meu o rapaz.

Ao ouvir assim fallar o seu José, a senhora Joanna voltou-se logo para elle, olhos esbugalhados, muito suspensa.

―Juras pelas cinco chagas, ó homem?

―Juro pelas cinco chagas.

―Assim te Deus dê saude, ó José?

―Assim me Deus dê saude.

―Preto sejas tu como o teu chapeu?

―Preto seja eu como o meu chapeu.

[135] A senhora Joanna botou-se logo a correr para um canto da casa, e abrindo a arca de pinho, do bragal, entrou aos beijos a uma Nossa Senhora da Conceição, pegada na face interna da tampa, com boccadinhos d'hostia.

Depois desabafou, muito aliviada:

―Ai!

O José Grillo poz-se a rir.―«O demonio da Joanna, com ciumes!»

―Mas ciumes de quê, ó mulher? não farás favor de me dizer de que diabo tens tu ciumes?―perguntava muito casto o amigo José Grillo, serenissimo deante da mulher desconfiada.

A outra, muito delambida, redarguiu com ironia―«que o seu homem era um santinho...»―O José Grillo ia defender-se. Mas ella, atalhando logo, reguingou d'alto:

―Sabes tu que mais? estafermos é o que mais ha. Olha a cadella que engeitou este...

Aqui, fez uma suspensão; depois perguntou, muito lampeira:

―Mas quem seria a grande cadella?

Poz-se então a mirar muito o pequeno, a ver se lhe dava ares de alguem, murmurando phrases d'odio, moralistas:

―Precisava ser enforcada, a tua mãe; quem quer que é tem mesmo entranhas de lobo.

[136] O pequenino entrou a vagir, muito friorento, embrulhado n'uma camisa do José Grillo.

―É fome, coitadinho! o infeliz inda não sabe que coisa é mamar―disse contristado o lavrador.

Foi-se logo á porta, a ver se a Brites chegava. Mas quem vinha com a Anna era a outra, a Dorotheia do Antonio das Veredas.

―Tua irmã, tua irmã é que se cá precisava. Que demonio vens tu cá fazer? Ouves? não me dirás que diabo vens tu cá fazer?―E deu um bofetão na filha, «para que soubesse dar o recado».

A Dorotheia poz-se a explicar que a rapariga não tinha culpa. A irmã é que a mandara para levar a creança, porque ella, adoentada, fazia-lhe mal sair de casa assim cedo...

―Só se lhe queres tu dar de mamar―insistiu ainda o José Grillo, virado para a Dorotheia, irreverente pelos seus dezenove annos inda virgens.

A senhora Joanna fez-lhe de dentro que se calasse:

―Credo, homem! essas coisas não se dizem, nem por graça.

―Eu sei lá se não se dizem?―observou o lavrador, muito zangado.―Dá cá d'ahi o pequeno.

Veio a senhora Joanna com o embrulhinho, que entregou ao José Grillo. O lavrador depol-o nos braços da Dorotheia, com mil cuidados, e depois elle mesmo ajudou [137] as mulheres a ageitar o pequenino, em termos que fosse bem quente.

―Roda forte, ouves? E diz lá a tua mãe que eu de tarde por lá appareço, p'ra ver isto do ajuste.

A rapariga saiu. E como o lavrador désse fé que tinham alli ficado os farrapos, gritou para a rapariga:

―Ó D'rotheia! espera que inda cá ficou isto.

Então poz-lhe os farrapos ao hombro―uns pedaços miseraveis de velha chita―e a Dorotheia partiu onde á irmã.


II


Quarta-feira anterior a domingo gordo. Monte do Rosario. Em casa de Antonio Palma, casado com Rufina Maria


O Antonio Palma tinha acabado de jantar, rodeado da pequenada. A mulher, a Rufina, principiava a lavar a louça, quando á grade do quinchoso uma voz chamou:

―Ó sr.a Rufina!

Vieram os pequenos, veio o Antonio Palma, a mulher com as mãos fumegantes. Foi preciso fazer calar o Farrusco para se poder ouvir o que dizia aquella mulher que lhes estava fallando do caminho.

―Queria-lhe uma palavrinha, a si mais ao seu homem.

O Palma foi abrir o cancelorio. E foi com grande desgosto que deu de cara com a Francisca Fortunata, de grande ventre alçado, uma desavergonhada que tinha fugido ao marido, o José Thomaz negociante de gado. Entrou, fizeram-lhe uma recepção fria. Os proprios pequenos olhavam desconfiados e silenciosos aquella grande mulher gorda que elles não conheciam. Ella sentou-se [139] logo n'um sacco, muito esfalfada, emquanto o Palma e a mulher affectavam procurar ambos um banco, acotovelando-se, com tregeitos de quem se sentia arreliado com a visita. O Farrusco investiu com a mulher, achando-a extranha; mas uma vez enxotado com o pontapé do Palma, fez-se na casa um grande silencio, e a mulher começou assim:

―Venho pedir por caridade e esmola que me deixem aqui estar uns dias. Já veem como eu ando, isto deve estar por pouco. Logo que tenha o meu filho, em arribando da quebreira do parto, deixo-os e vou-me embora. Lá em casa de minha mãe aquillo é uma grande miseria, passam-se dias que não comemos. Não ha uma cama, a gente dorme sobre umas palhas, sem geitos de roupa com que se cubra. Mas eu ando n'este estado, bem veem como eu ando...

Aqui desatou a chorar, levando aos olhos o avental miseravel. O Palma e a mulher diziam não sei que monosyllabos, o Farrusco rosnava. A outra proseguiu:

―Não é por mim, sabem? não é por mim. É este innocentinho que tem de nascer no chão, como os cães... Bem sabem que isto custa. Pouco se me dava de morrer, afinal, mas queria que o meu filho vivesse... Coitadinho!

Ergueu-se n'um impeto, depois caiu de joelhos, mãos erguidas para o Palma e para a mulher.

―Pelas cinco chagas de Nosso Senhor! exclamou.

O Palma fez para a mulher um gesto resignado e de lastima. Cada um de seu lado, ajudaram-na a levantar-se, [140] dizendo-lhe submissamente que tudo se havia de arranjar, que socegasse.

―Que a fallar os pontos de verdade, sr.a Fortunata, vossemecê é que tem a culpa d'esses trabalhos, disse-lhe logo o Palma.

Ella escondeu a cara no avental, fazendo-lhe com a mão que se calasse.

―Má sorte d'aquelle pobre José Thomaz, acabou-se! Quando elle casou com vossemecê antes tivesse quebrado uma perna.

Ella chorava cada vez mais, parecendo muito afflicta.

―Agora ahi o tem, anda por esses caminhos que parece doido. Nem gado, nem o diabo. Des'que vossemecê alvorou que o rapaz não vae a uma feira. Pois olhe que era homem para junctar, videiro como poucos.

Poz-se a fazer um cigarro, olhando os pequenos attonitos. Depois continuou:

―Esteve aqui um d'estes dias, por signal que sentado n'esse mesmo sacco...

A Fortunata levantou-se n'um impeto, como se o sacco a repelisse. O Palma proseguiu:

―Sente se vossemecê, mulher, o sacco não faz ao caso. Pois foi ahi mesmo que elle esteve, até parecia um pobre de pedir. Nem botões na camisa, coitado! Mas pela conversa bem se vê que inda lhe não quer mal. Que a bem dizer elle quasi não conversa, anda a modos que amalucado, sempre a levar a mão á cabeça, como se lá [141] dentro aquillo andasse azoado. E mais é que bem póde o rapaz dar em doido...

A senhora Rufina foi de parecer que doido já elle andava. Passavam-se dias que não apparecia em casa do tio José Garção, que o levára logo para elle, mal a sr.a Fortunata o deixára. Por onde andava? que fazia? Contava-se que uma noite dormira n'uma coutada, no mesmo telheiro que os porcos. Que d'outra vez fôra ter com o vigario para que lhe baptisasse o filho, dizendo que já tinha nascido.

―No filho inda elle aqui se poz a fallar, lembrou o Palma.―Anda com ella ferrada que o filho já nasceu.

Aqui, a Fortunata, de pé junto á porta, rompeu n'uma choradeira, ouvindo fallar no filho. O Palma interveio, condoido, dizendo que se não affligisse, que o filho sempre teria uma caminha onde nascesse.

Ella ia ajoelhar, o Palma não deixou.

―Não é por vossemecê, mulher, assim me Deus salve como não é por vossemecê. Mas é que o innocentinho que ahi traz esse é que não tem culpa. Faço de conta que é o pae que me pede, o pobre José Thomaz. Vossemecê bem sabe que eu era amigo do José Thomaz. Diabo! a gente já diz era, já falla n'elle como se o pobre tivesse morrido...

N'isto vieram chamar o Palma, que no lameiro alli embaixo andavam uns bois que não eram d'elle. Foi-se a buscar um marmeleiro, e depois, quando já ia para sair, disse em resumo:

―Fique vossemecê então, sr.a Fortunata. Ouves, Rufina? [142] Talvez que ella inda não jantasse. Faz-lhe a cama lá dentro, e o resto arranjem-se.

Caso é que a Maria Fortunata, amanhecendo para domingo gordo, desentupiu e teve um filho. Mas nem sequer o tinha ainda beijado, nem lhe tinha feito uma caricia, quando por volta do meio dia a avó do pequeno alli chegou, vinda de longe. O Palma que estava no quinchoso, a dar a bolota aos cevados, ficou espantado:

―Pois senhores! havia de jurar que você adivinha, sr.a Anna!

Ella, sem mais rodeios, perguntou se a creança já tinha nascido.

―Já nasceu, sim senhora, vá lá dentro se a quer ver. Venha d'ahi.

Mas iam ainda á porta, quando a velha, filando o braço do Palma, lhe perguntou n'um sobresalto:

―Vivo ou morto, sr. Antonio?

O Palma percebeu. O estafermo da velha queria que a creança nascesse morta. Aquillo fez-lhe nojo, deram-lhe ganas de correr a mulher a pontapés. Conteve-se. Mas todo elle vibrou de colera, quando em presença do pequenino a velha, sem o beijar, perguntou o que se lhe havia de fazer.

O Palma, furioso, repelliu a mulher com despreso. E como ella insistisse com a pergunta: «que se ha de agora fazer a isto?» elle redarguiu, irado;

―Dar-lhe de mamar, está bem visto. Inda você pergunta [143] o que se ha de fazer á creança. Talvez você queira que o pequeno vá já cavar...

A velha ia fallar.

―Nem pio, seu estafermo! Que tal é o amor que você lhe tem, que inda nem sequer a beijou. Nem a mãe o beijou ainda, coitadinho! Você já viu uma cadella quando tem os filhos, já viu? Com mil diabos, qualquer cadella vale mais que vocês duas.

O Palma ia-se pondo amarello, a sr.a Rufina interveio, aconselhando-o a que saisse.

―Saio, e vou-me embora, ouviste? Ouviste? Aparelho a egua e vou-me de vespera até á feira.

Poz-se a procurar pelos cantos, aqui os estribos, além o freio da egua.

―Tanto faz ir ámanhã cedo, como ir já agora. É já de cara. Mette-me qualquer coisa nos alforges, que vou já aparelhar a egua.

D'ahi a meia hora, o Palma montava á porta, no meio do rancho dos cevados, e chamando a mulher dizia-lhe com má cara:

―Em estando capaz, rua!

―D'aqui a tres dias, talvez...

―Então até d'aqui a quatro. Ouves? E olha se defumas a casa, quando esses estafermos sairem.

[144] Ora o Antonio Palma a virar costas, e a velha a sair porta fóra―com o embrulhinho do neto ao colo...

Como ella corre, a maldita! Parece que o leva roubado...

Onde passou ella o dia? Onde passou ella a noite? Não sei. Caso é que na madrugada seguinte, a desavergonhada abandonava o pequenino á porta do José Grillo.

Madrugada de fevereiro, nevava...


III


Quando a Dorotheia saiu com o pequeno, para o levar á irmã, tinha amanhecido havia pouco. A neve cessara; mas um nordeste frigidissimo retalhava a cara da rapariga, encolhida sob aquella atmosphera de gelo. Nunca o souto que ia atravessando lhe parecera tão comprido e tão triste. Os grandes castanheiros despidos, cheios de neve até ao alto, faziam-lhe mais viva e mais cortante aquella impressão de frio. O chão estava coberto de neve; e lá em cima, muito alto, o céo muito azul annunciava um dia de sol.

A rapariga ia triste. Dir-se-hia que a tristeza lhe nascia toda d'aquelle lado em contacto com o pequenino...

Por isso quando passou pela azenha, e que a mulher do Paulo lhe perguntou o que levava alli, erguendo a voz sobre o ruido forte da levada, a rapariga entrou de chorar e respondeu que era um engeitadinho.

―Um quê, mulher? que dizes tu? insistiu a outra.

[146] Mas o moleiro, que vinha chegando, espécou deante da mulher, e repetiu como um echo:

―...Um engeitadinho.

Entreolharam-se os tres, n'uma incerteza vaga.

―Sim, um engeitadinho, deve ser isso...―continuou o moleiro.―E d'ahi... póde ser que não seja...

A rapariga, muito impaciente, perguntou se sabiam alguma coisa.

―Nada! pode ser que a historia seja outra―elucidou o moleiro.―Onde foi que isso foi posto?

―Esta madrugada, á porta do José Grillo.

―Olá! isso então pode ser coisa d'elle―observou a rir o moleiro.―Esse diabo não é seguro.

Pozeram-se a rir da lembrança. Já dentro do moinho, o homem pôz-se a explicar á rapariga:

―É que hontem á noite veio aqui um homem pedir pousada, um homem a modos que adoidado. Boa figura d'homem, por signal. Assim ás primeiras, tanto eu como a Luiza tivemos o nosso medo...

―Ó Dorotheia! interrompeu a mulher do moleiro, dá cá o menino e senta-te. Vou-lhe dar de mamar, que o pobresinho ha-de ter fome.

A Dorotheia passou a creança para os braços da moleira. Foi uma alegria ao verem-no sugar no peito, minusculo, com os olhitos inda fechados.

[147] ―Meu rico anjinho, meu amor! A fome que o desgraçadinho tem! Quem seria a desavergonhada?...

―Mas depois? inquiriu a Dorotheia, voltando-se para o moleiro.

―Depois, dormiu cá, ahi lhe demos da ceia e ahi ficou. Mas dá-se o caso que o homem não pregou olho em toda a noite, sempre a malucar, n'um fallatorio pegado. «Que o filho era d'elle, que se a cabra da mãe teimasse em o engeitar, elle ia dar parte á justiça.» Um arrazoado assim, muito comprido.

Espantada, a Dorotheia ia fallar.

―Mas espera, que o melhor da festa é que o homem tão depressa dizia isto, como dizia que o filho já tinha nascido, que era muito lindo, que onde elle o tinha escondido ninguem lh'o ia roubar.

Ficaram-se um instante a mirar consolados a creança.

A pobresinha vagia, mamando com sofreguidão.

―Mas então sempre elle sabe do filho, reatou com interesse a Dorotheia.―Ora! assim este engeitadinho soubesse quem era o pae, coitadinho!

A sr.a Luiza, que não gostara que se recolhesse o homem, resumiu com ar compungido:

―Um doido, o pobre de Christo! Deixal-o ir!

Fez-se um silencio, mirando todos a creança. A taramella do moinho batia, n'um rithmo vivo. Maquiando uns saccos, o moleiro explicou ainda que o homem alvorara [148] muito cedo, debaixo de neve, sem ao menos dizer obrigado. Mas que perguntando-lhe onde ia aquellas horas, o outro lhe respondera:―«Para a feira. Vender um gado.»

―Ora vá lá o diabo entender isto!―rematou por fim o moleiro. Um doido a vender gado.

Conversaram sobre o caso, algum tempo. Até que a Dorotheia, com pressa por causa da irmã, pegou outra vez na creança e abalou pela porta fóra, direita á casa do pae.

―Olha os trapos, ó Dorotheia! olha que deixas cá isto.―E o Paulo correu a levar á rapariga os trapos segunda vez esquecidos, e que eram todo o enxoval do triste pequenino...

Ia mais contente, a Dorotheia. Ao menos levava a certeza de que a creança não ia com fome. E para que tambem não fosse com frio, a boa da rapariga achegava ao peito o engeitadinho, n'uma solicitude toda materna.

―Louvado seja Deus! ia dizendo a rapariga. Como haverá gente que seja capaz d'estas crueldades! A nevar, e deixa-se assim um innocentinho, embrulhado em dois farrapos, na soleira de uma porta! Vamos que o José Grillo não dava fé! Alli se morria de frio o anjinho, capaz de virem depois os cães e comel-o.

E espreitando pela fenda estreita do chale:

―Meu anjinho! que ruim cadella que foi a tua mãe, ora foi?

―Foi! rugiu uma voz detraz d'ella, como um echo.

[149] A Dorotheia deitou a fugir, espavorida. Mas aquelle homem que já de longe a acompanhava, sem ella dar fé, corria tambem atraz d'ella, e não tardou que a filasse, como um lobo. A rapariga soltou um grito, ia cair com o susto; mas valeu-lhe que n'esse mesmo instante uma voz que ella conhecia gritou alli de perto:

―Larga a rapariga, ó José Thomaz! Larga a cachopa!

E de um pulo, o pastor caiu entre os dois, separando-os.

―É o José Thomaz que está doido,―explicou o pastor.―Desde que a mulher lhe fugiu, que o pobre anda assim, coitado!

Mas palavras não eram ditas, eis que o José Thomaz de novo se arremessa á rapariga.

―Tu que levas ahi? Tu levas ahi o meu filho!―rugiu elle com voz furiosa.

E como se sentisse agarrado, e visse que acudia mais gente, o pobre lançou-se por terra, de joelhos sobre a neve, as mãos erguidas, impetrando a chorar que lhe dessem o seu filho...

A Dorotheia cobrou animo, ao ver-se rodeada de gente.

E fez-se luz no seu espirito, quando reparou que os trapos do engeitadinho eram reconhecidos pelo doido que os estava mirando, a rir-se...

―Conheces? perguntou-lhe a rapariga.

[150] No extasi em que cahira, mirando e remirando os farrapos, o doido não respondeu.

―Se conheces isso? perguntaram-lhe uns poucos.

Nem palavra. Nada a não ser um riso nervoso que o sacudia todo. Como estava de joelhos, quizeram levantal-o; mas elle então oppoz-se, caindo sobre os calcanhares.

E ria... ria... emquanto dos olhos amortecidos, cravados no miseravel farrapo, as lagrimas corriam, copiosas...

Mas d'ahi a pouco, pelas palavras soltas do doido, todos ficaram percebendo. Os farrapos que embrulhavam a creança eram da saia da mãe. A mãe era a mulher do José Thomaz, e o pequenino era filho d'elle... A grande cadella tinha abandonado o pequeno, depois de ter fugido ao homem!

―Um raio venha que a parta! rogou do lado o pastor.―Ora vês ahi um estafermo que precisava que a matassem!

O José Thomaz poz-se a rir muito, fitando aquella gente. Uma forte impressão de piedade estampava-se em todos os rostos.

―Ó Dorotheia! chamou então um dos do grupo. Traz aqui o menino. Um pae deve sempre beijar o seu filho. Traz cá o pequeno, ó rapariga.

Mas não foi preciso; que o José Thomaz, sempre de joelhos sobre a neve, foi para ella de mãos postas humilde [151] como um rafeiro... E como aos labios do pae a rapariga achegasse o pequenino, no silencio que se fez ouvia-se o rir convulso do louco, beijando de joelhos o filho.

Como se fôra uma chuva de petalas, do céo de madreperola a neve cahia mais densa...―ao mesmo tempo que nos ramos altos dos castanheiros, como no seio immenso de um orgão, o vento sul―gemia...







ABYSSUS ABYSSUM...



N'esse dia, os dois pequenitos tinham jurado que haviam de ir ao rio. Assim elles tivessem uma coisa boa!... Mas que tentação para ambos, o rio! Ainda lhes soavam aos ouvidos, com todo o seu entono vibrante de ameaça, aquellas terriveis palavras com que a mãe os intimidara, um dia que lhe appareceram em casa tarde e ás más horas.

―Ouvistes?―ralhara-lhes a mãe.―Olhae se ouvistes: se voltaes ao rio, mato-vos com pancada. Andae lá...

Ih! como ella dissera aquillo, Mãe Santissima! Colerica, ameaçadora, com a mão em gume sobre as suas cabecitas loiras... Lembravam-se de haver tremido, cheios de susto, muito chegados um ao outro, humildes sob aquella ameaça terminante. E então, n'esse dia, elles não tinham ido ao rio. Aos passaros sim...―lá estavam as calças rotas do Manuel a dizel-o―...aos passaros é [154] que elles tinham ido. Ao rio era bom! a mãe que o soubesse...

Ah, mas então não os deixassem dormir n'aquelle quarto. Logo de manhã, mal abriam as janellas, a primeira coisa que viam era o rio, uma corrente muito lisa e esverdeada, serpeando entre os renques baixos dos salgueiros. Lá estava a ponte velha, d'onde os rapazes se atiravam despidos, de cabeça para baixo, e então o barquinho branco do fidalgo,―lindo barquinho!―sempre á espera que o fidalgo o desamarrasse para passar á grande quinta que tinha na margem de lá.

De modo que o primeiro desejo que logo pela manhã assaltava os dois rapazes era o de irem por alli abaixo, muito madrugadores, tão madrugadores como os melros, metterem-se dentro do barco, desprendel-o da praia, e deixal-o ir então por onde elle quizesse, comtanto que fosse sempre para deante... Quando fechavam as janellas para se deitar, a sua vista seguia, mesmo atravez da escuridão da noite, a linha que ia dar ao barco. Era o seu―«adeus até ámanhã!»―áquelle pequeno objecto que valia thesoiros, que para os dois valia mais que tudo, tudo...

Ah! tivessem elles assim um barquinho, que não queriam mais nada...

―Mais nada?

―Isso não... mais alguma coisa. E a mãe que não ralhasse, está visto.

Mas n'essa manhã, bella manhã, na verdade! a mãe viera acordal-os mais cedo. Ia já pela aldeia um claro rumor de vida―gente que passava para os campos, os [155] solavancos dos carros no empedrado pessimo da rua, os patos da visinhança que saiam em rancho para a digressão pelos prados, grasnando ruidosamente, levantando-se em vôos curtos, espantados da aggressão accintosa dos rapazes. Havia mais de uma hora que alli perto se ouvia o retimtim agudo do martello do ferrador atarracando cravos na bigorna. Já o reitor passara para a missa, em batina, muito hirto e vagaroso, as chaves da egreja na mão esquerda e na direita a cabacita do vinho. E áquella hora, onde iria já a missa! A ultima beata, encapuchada e lenta, recolhera, trazendo comsigo a esteira em que ajoelhára na egreja. Havia mais de meia hora que o João carpinteiro, no meio da rua, dava com valentia n'um carro cujo eixo ardera na vespera, e que era urgente compor, p'los modos. Até o Ernestinho do estanco abrira já a loja, e subira á varanda a regar os mangericos. Começos da labuta diaria, emfim; os senhores sabem.

Pois como lhes disse, a mãe viera n'essa manhã acordar mais cedo os dois pequenos.

―Fóra, mandriões, vamos! É preciso afazerem-se a madrugar, que tal está! Ai, ai, dia claro ha que tempos, vem ahi o sol, e os morgadinhos na cama.―E emquanto fallava, ia-lhes abrindo as janellas.―Persignar e vestir, vamos! Calças... colete... os jaquetões... tomem.

E poz-lhes tudo sobre a cama.

―Mãe, a benção!―balbuciaram os dois, tontos do somno ainda.

―Deus os abençôe. Que Deus não abençôa mandriões, ouviram? Ora eu já volto. Queira Deus que não vos encontre cá fóra, tendes que ver.

[156] Os dois sentaram-se na cama para se vestir, contrafeitos, fechando os olhos áquella hostilidade viva da luz que invadira o quarto n'um jacto repentino e brutal. Pela abertura larga da camisa assomava-lhes o peito que elles afagavam n'uma ultima caricia, suavemente, docemente. Seria tão bom tornar a adormecer, assim mesmo sentados! O mais novito ainda tentou deitar-se outra vez, pesaroso de ter de abandonar já o aconchego morno da cama, onde se estava tão bem! onde os sonhos eram tão lindos!

Mas a mãe não tardava alli. Era preciso vestirem-se, que remedio! Foi então que o Manuel, mais esperto do somno, olhando para o campo o achou encantador, todo resplandecente de verduras.

―Bonita manhã, não vês? As arvores parecem mais lindas, repara. Porque será?

O outro encolheu os hombros, não sabia: só se fosse por não haver nuvens...

Pela janella aberta, avistava-se um trecho de paizagem que a luz viva da manhã fazia muito nitida. As vinhas tinham um verde encantador, muito suave, trepando encosta acima, fazendo contraste com a rama escura das laranjeiras que cerravam alas nos pomares humidos das baixas. Revestidos de folhagem, ascendiam ares fóra os olmos gigantescos. Pedaços d'horta estavam em toda a pompa do seu viço e da sua frescura. Viam-se as rodas das noras, latadas compridas a cuja sombra regalam as merendas.

Um renque de choupos esguios marcava a borda do rio que n'essa manhã deslisava muito sereno, esverdeado d'aguas, espelhante sob aquelle céo immaculado.

[157] ―Ah! ah!...―riu-se o Manuel, contemplando-o.―O rio! Que te parece? Olha que é lindo, o rio; ora é, ó Antonio?

―É, lá isso... Mas tamem de que vale?―tornou-lhe com desalento o irmão.―A gente não pode lá ir... Olha se a mãe o soubesse, han?―E mirando por sua vez a paizagem perguntou:―Já reparaste no barco, ó Manuel?

―Tão bonito!

Os dois riram.

―Parece pintado de novo... E nem se mexe, repara.

―Podera!...―explicou o Manuel―...amarrado com uma corda...―E depois radiante, gesticulando para o irmão:―Mas eu era capaz de o desamarrar...

―Ai eras!―disse duvidoso o Antonio, para o incitar.

Calaram-se. Era bom podel-o desamarrar, lá isso era. Ambos dentro d'elle, sósinhos, isso é que seria bom! E elles então que estavam mortos por ir ás azenhas, e pelo rio era um instante emquanto lá chegavam. O barco! Era tão bom andar no barco! E aquelle então era lindo, como não tinham ainda visto outro. Nunca lhes haviam esquecido―olhem lá não esquecessem!―aquellas tardes em que o fidalgo os levara dentro do barquinho, ensinando-lhes como se remava.

O Manuel foi o primeiro que se vestiu, e foi logo direito á janella. Passava n'aquelle instante um bando de andorinhas, chilreando.

[158] ―Está um dia lindo, avia-te.

―Olha avia-te! p'ra que?―perguntou o Antonio torcendo e retorcendo o pé para enfiar o sapato, apoiado com as mãos ambas na borda da cama.

O Manuel sorriu-se, triste.―Era verdade... Aviarem-se p'ra que? A mãe não os deixava ir ao rio... E se não que fossem! «Mato-vos com pancada se desceis a ladeira.» Já se vê que depois d'isto...―E os dois suspiravam, desgostosos. Que pena serem pequenos!

N'isto o Antonio chegou-se tambem para a janella. Que lindo, o campo! Mas os olhos dos dois não se desfitavam do barco, fascinados. Demonio de tentação! E para mais, tinham-no pintado de novo: sobre o branco, a todo o comprimento, uma faxa azul-clara destacava nitidamente, parece que apenas meio palmo acima do nivel da agua.

―Táte, ó Manuel! E se fugissemos?

―Ora! se fugissemos!... E depois? A gente tinhamos de voltar...

Ora ahi esta! isso é que era o peor! A mãe, depois, era capaz de fazer o que tinha promettido. E arregalando muito os olhos, imitando a colera da mãe:―«Se voltaes ao rio...» Ai, ai, a triste sorte!

Recahiram em silencio. Ficaram-se por instantes a ver o sol que rompia ao nascente, n'uma explosão violenta de luz, accendendo coloridos na largura muito ampla da paizagem.

[159] ―Mas palavra que o barco parece pintado de novo... relembrou com alegria o Manuel.

―Mas é que está, palavra que está. Agora é que ha-de ser bom andar dentro d'elle...

Os dois riram-se muito áquella ideia encantadora de andarem no barquinho, assim pintado de novo. Diacho! e porque não? Por isso, cobrando animo, o Antonio disse resoluto:

―Olha agora o medo! Seguro que nos mata.―E puxando-o pela jaqueta:―Vamos lá, ó Manuel?

O Manuel fez que não com a cabeça, e espreitou se vinha a mãe. Como não vinha, disse baixo ao irmão:

―Á tardinha, hein? dois pulos e estamos lá. Não é tão facil dar pela nossa falta, alli á tardinha. A gente finge que vae para o adro. Levam-se os peões...

―Ha-de ser mesmo assim! á tardinha!―concordou o Antonio.―Eh! eh! tu cá desatraco.

―E eu remo,―disse logo o Manuel com gesto de quem remava.

―Ao leme vou eu: o leme é aquillo que regula―explicou.

―Pois sim, mas á vinda pertence-me a mim, remas tu. Se quizeres assim...

―Pois está bem, quero! Assim mesmo é que ha-de ser!

[160] E recapitulando, para melhor ficarem combinados:

―Ao p'ra baixo remo eu, ora remo?

―Remas.

―E tu regulas, ora regulas?

―Regúlo.

―Ao p'ra cima é ás avessas, ora é?

―É.

Muito bem, basta palavra! E ambos ao mesmo tempo, um ao outro se impozeram segredo...

―Schiu!...

―Schiu!





A tarde descahia limpida. Na vasta cupula do céo, penachos de nuvens alvejavam, immoveis.

Accesas n'aquella explosão rubra do occaso, as arestas dos montes franjavam-se de purpura e oiro, na decoração magica dos poentes. Começava de cair sobre os campos a larga paz tranquilla dos crepusculos, e uma quietação dulcissima e vagamente melancolica entrava de adormecer a natureza para o grande somno reparador de toda a noite.

...E a tarde ia descahindo, cada vez mais limpida.

[161] N'aquella luz indecisa de crepusculo que mansamente se ia accentuando, os montes do sul tomavam um torvo aspecto de sombras gigantescas, immobilisados n'um fundo em que se iam apagando ao de leve todos os cambiantes de luz. Os pormenores da paizagem perdiam-se n'aquella indecisão vaga de noite que vinha descendo, e uma especie de silencio confrangedor dominava a natureza toda, recolhida n'um como spasmo amedrontador e sinistro que dentro de nós evoca a essa hora não sei que vagos receios ou medos inconscientes que fazem com que na imaginação as coisas criem vulto, e no mundo exterior obrigam a retina a exagerar as formas ás coisas...

Muda de gorgeios, atravessando o espaço em vôos muito rapidos, a passarada demandava os ninhos onde se acoitasse do frio que acordava. Cahiam já pesadas sobre os valles as sombras das montanhas, e um fumosito subtilmente azulado nadava á flor das coisas, velando-as para o tranquillo somno em que iam adormecer.

E a tal hora e no meio de tal silencio, o barquinho branco deslisava mansamente sobre a agua tranquilla do rio, onde as primeiras estrellas começavam de lampejar. Dentro d'elle, os dois irmãositos silenciosos iam-se deixando enlevar n'aquelle ruido suave dos remos abrindo fendo nas aguas... Não! era bem certo que elles não tinham jámais sentido uma tão poderosa e viva alegria―alegria doida que lhes trasvasava do peito, fundindo-se em energia nos musculos e crystallisando-se nos labios em sorrisos.

Dentro d'aquelle adorado barco, assim no meio do rio, eram senhores absolutos da sua vontade, poderiam ir para onde lhes parecesse, livres de admoestações alheias, sósinhos, independentes. E esta feliz convicção de liberdade [162] alcançada, fazia-os agora orgulhosos, além de os encher de alegria. Por certo elles nunca tinham sido tão felizes, e quem sabe se o seriam jámais?... No emtanto a noite accentuava-se. Espertava nas margens o marulho da agua nas raizes fundas dos salgueiros. No céo alto e sereno scintillavam as estrellas em cardumes.

―Remas, Antonio?―perguntou o do leme.―Olha se a vês...―E apontava para Vesper, a estrella que mais brilhava.

Tinham os dois concebido o extranho desejo de alcançar a estrella cujo brilho diamantino os fascinava. Tão linda!

―Anda-me tu com o leme!―tornou-lhe com intimativa o Manuel.―Ai a estrellinha! Deixa que ella faz-se fina, mas havemos de passar-lhe adeante, só por isso...

―Olha o milagre! Ella está quêda!―fez o outro, convencido da facilidade da empreza.

―Está quêda, está quêda, mas sempre na frente de nós; vae lá entendel-a. Olha como brilha, ó Antonio.

―Mas rema que eu cá vou, falta pouco. Ao direito d'aquella fraga é que ella está.

Não era difficil passar-lhe adeante, qual era? Era menos de meia hora era certo alcançal-a.

E engastada no azul escuro do céo, a estrella parecia brilhar mais, quanto mais a olhavam.

―De que são feitas as estrellas?―perguntou o mais novito.

[163] ―De prata, pois está visto.

Então o outro, lançando um amplo olhar á vastidão infinita do céo, exclamou:

―Eh! tanta prata!

―O sol, esse é d'oiro―disse ainda o Manuel.

―Bem de ver!―volveu-lhe convencido o irmão.―Que eu, se me dessem á escolha, antes queria as estrellas. Olha que rebanho!

―Pois eu antes queria o sol. Com licença do teu querer, sempre é mais grande.

E emquanto fallavam, os dois não desfitavam olhos da estrella feiticeira que perseguiam. Os remos, no emtanto, iam abrindo fenda na agua, com certo ruido muito doce... E lá no alto céo, dir-se-hia que de instante para instante a feiticeira estrella mais brilhava, incitando-os.

―Vêl-a a fazer assim?―e poz-se a pestanejar, imitando a palpitação crebra e irregular da luz sideral.

―É que tem somno―respondeu o outro.

―Olha que não. Aquillo é a fazer-nos negaças, tamem t'o digo.

―Ai é?! Pois que faça as negaças e que se descuide: se malha cá baixo, bem se afoga...―E apontando-lhe um punho cerrado, gritou a rir:―Eh, boieira!

N'este momento, uma estrella cadente abriu esteira de prata no azul, sumindo-se rapidamente. Os pequenos ficaram [164] com medo e ambos murmuraram em tom de reza as palavras rituaes:


Deus te guie bem guiada,
Que no céo foste creada.


―Vês? disse o Manuel que era dos dois o mais supersticioso.―Torna a apontar para ellas... Eu cá não aponto, que nascem «cravos» nas mãos.

―A ti talharam-te o ar, ó Manuel.

―Diz a mãe. Á meia noite levaram-me á fonte e esparrinharam-me agua para o corpo. E a agua havia-de estar fria... observou, encolhendo os hombros. Depois, viraram-me para as estrellas e disse então a mãe:


Ar vejo,
Lua vejo,
Estrellas vejo:
O mal do meu corpo
Pr'a tráz das costas o despejo.


Riram muito. O Manuel, despidinho, coiracho ao colo da mãe, havia-de ser engraçado. E então todos de volta, a ver quando o ar se talhava.

―Mas talhou-se. Agora, em paga, uma vez por anno, ao menos uma vez por anno, tenho de olhar pelos ralos do lenço p'r'as cinco chagas, umas estrellas que além estão, e rezar uma Ave-Maria.

―Sempre, sempre?

―Até que morra. Depois de morrer vou morar tres dias com tres noites dentro de uma.

―Ora! tornou-lhe incredulo o irmão.―Tu não cabes lá...

[165] ―Não sei: assim é que anda nos livros.

...Mas os braços doiam já dos remos, doiam muito...

Devia ser tarde, e elles sem darem fé, enlevados como iam no desejo louco de alcançar a estrella.

A noite estava calma, não bulia nas ramagens ramo verde de salgueiro, um silencio continuo dominava tudo em volta. E amolentadora e múrmura, a agua da corrente ia espumando na quilha, com certo ruido de uma brandura suavissima e doce.

...Mas os braços cada vez doiam mais!...

Agora, no céo, havia muitas estrellas brilhantes, muitas, mas nenhuma como aquella, ainda assim. Entretanto os dois pequenos entraram de olhar menos para ella, pois que irresistivelmente a cabeça lhes pendia para o peito, e as palpebras se lhes cerravam, a despeito de todo o esforço.

...E os braços sempre a doerem!...

Por algum tempo, os remos foram com a pá mergulhada na corrente, cortando-a com levissimo ruido. Immobilisara-se tambem o cabo do leme, sem que nenhum dos dois irmãos desse fé do subito desleixo do outro.

...E os braços já não doiam, nem ao de leve sequer...

O pequeno barco vogava agora á mercê da corrente, sem impulso algum extranho. Dentro d'elle... a musica levissima das respirações dos dois pequenos adormecidos...

[166] Algum tempo assim. Senão quando, um ruido surdo, e logo um movimento brusco de balanço, fez acordar o do leme.

Na grande allucinação do perigo, desvairado pelo medo, gritou immediatamente:

―Manuel! Ó Manuel!

O remador acordou, sobresaltado.

―A estrella? Ainda lá está, olha!―disse incoherente, estonteado pelo somno.

―Uma fraga de cada lado! Ouves o rio? É já muito tarde!—-continuou afflicto o Antonio.

―Então não lhe passamos adeante?―perguntou ingenuamente o Manuel, referindo-se ainda á estrella.

Mas o irmão, sacudindo-o convulsamente, procurando chamal-o á realidade, de novo lhe gritou, com lagrimas na voz:

―Manuel, acorda! Olha que estamos perdidos, Manuel!

E mal conheceram o grande perigo em que estavam, ambos romperam n'um choro muito convulso, agarrados um ao outro, feridos de um terrivel susto que a hora e o logar augmentavam cruelmente. Parecia-lhes medonho aquelle marulhar continuo da corrente, affligia-os como se fosse o psalmodear monotono e rouco de uma legião de espiritos maus, preludiando-lhes as agonias lentas da morte. Aos dois pequenos os rochedos informes das margens affiguravam-se-lhes negros gigantes, que n'um requinte [167] de malvada indifferença houvessem jurado assistir impassiveis e mudos á escura tragedia da sua desgraça.

E o barco sempre encalhado, não havia forças que o arrancassem d'alli. Tinham perdido os remos. Teriam de esperar que amanhecesse e alguem viesse acudir-lhes, alguem que ouvisse de longe os seus afflictivos gritos.

Crudelissimo transe!...

E então os braços continuavam a doer, doia-lhes agora o corpo todo, ao mesmo tempo que uma tristeza mais e mais pesada lhes opprimia o espirito, parece que embrutecendo-os.

―Mas a estrella sempre além...―notou ainda o Manuel, balbuciante de medo, como se quizesse increpar a propria estrella da sua indifferença criminosa, no meio d'aquelle enorme infortunio em que por causa d'ella se haviam precipitado.―Se ella podesse acudir-nos...

Até que por fim, prostrados da fadiga e das lagrimas de novo se deixaram adormecer, era já alta noite.

Mas na sua furia constante, a corrente que alli era muito forte não cessava de bater contra as pedras o pobre barco indefeso. Até que após tamanho lidar, o rio safou-o de repente para um lado onde as aguas se contorciam em remoinho, e entrou de girar com elle, violentamente. Quando a agua se precipitou para dentro, os dois pequenos assim de subito acordados romperam em gritos lancinantes:

―Ai quem acode! Ai Jesus, quem nos vale!

[168] Tinha surgido a manhã, serena, tranquilla, cheia de gorgeios e de azul. Mas como ninguem acudisse e a lucta no rio fosse desegual, n'um repelão mais violento o pobre barco esphacelado investiu de proa com o abysmo e lá se sumiu para sempre! Feridos de morte, no ultimo paroxismo da sua enorme dor desesperada, os dois irmãositos abraçados sumiram-se tambem com elle!...





...N'esse mesmo instante...―e mais longe do que nunca―...a estrella feiticeira acabava de cerrar tambem a palpebra luminosa!...






MÃE!


Ao dr. J.C. da Moita Prego


Bella cabra, a Russa!―posso dizel-o aos senhores. A melhor da manada, luzida, de pello macio, sem saliencias de ossos como as outras, altiva de porte quando á frente do rebanho parecia commandal-o, badalando cadencialmente o seu chocalho enorme―tlão! tlão! Era no rebanho a que mais dava que fazer ao pastor, requerendo vigilancias particulares no seu atrevimento, pois que se a deixassem livre não havia arvore a que não trepasse, oliveira especialmente, nem rebento novo que não triturasse esfomeada no seu dente acerado de roedora.

E depois, alli onde a viam, estava cara só pelas coimas, que muitas vezes illudira ella a attenção do pastor, e se ficara por hortas e quintalorios, causando estragos que os louvados depois avaliavam caro. Por isso Alipio José, pastor, a quem doiam as denuncias, ao pescoço da Russa prendera o chocalhão, para dar do atrevido [170] animal mais facil rumor, pois era de timbre muito distincto dos demais, e muito mais grave.

Em pastagens pelos montados, a Russa era de uma audacia extrema. Fazia gosto vel-a trepar ás ultimas cumiadas, subir destemidamente ás arestas superiores dos rochedos, muito serena, erecta nas suas pernas delgadas, pescoço alto, ajoelhando destemida a retouçar as hervas dos declives alcantilados e escorregadios, não medindo perigos nem se importando com abysmos, emquanto as companheiras se ficavam pelas encostas e corregos, saboreando as giestas, sem se atreverem a seguil-a nas suas excursões arriscadas de touriste.

Se a miravam de baixo, sentia-se orgulhosa de superiores audacias, e então cabriolava em saltos funambulescos, de rochedo em rochedo ou de garganta em garganta, pouco se lhe dando de perigos. Cobra que encontrasse por essas paragens era para ella um desespero―tamanha a furia com que a perseguia, e a insistencia com que se ficava ás marradas na lura onde se lhe acoitava. O chocalho então badalava com força, e o Alipio que dormia á sombra das azinheiras, de chapeu sobre a cara, levantava-se sobre um cotovello e intimava para o alto, com o seu vozeirão que fazia echo:

―Toma tento, Russa!

E depois, de ventre para baixo, estirado sobre a manta, cotovellos fincados no chão, os queixos entre as mãos espalmadas, Alipio José ficava-se a olhar a cabra, invejoso d'aquella facilidade em subir aos ultimos pinaculos, admirado dos saltos que ella fazia para salvar gargantas pedregosas e perpendiculares, onde, se caisse, a morte seria infallivel. E por lá andava dias inteiros a Russa, [171] n'aquella vagabundagem por sitios inaccessiveis ao resto do rebanho, resguardando-se da chuva em reconcavos de rocha, onde as aguias faziam ninho.





Foi n'um d'esses sitios que a Russa teve o primeiro filho, e por lá se deixou ficar, acho que dormindo ou toda a noite velando. Ao outro dia quiz ella descer, e vir para o rebanho que a aguardava. Mais de cem vezes, fitando o topo da ladeira, Alipio José gritara cá debaixo, cada vez mais desesperado:

―Volta ao rebanho, Russa!

E, cuidando que mais lhe feria assim a attenção, punha-se a agitar com furia o mólho dos chocalhos, gritando sem cessar:

―Russa! torna ao rebanho, Russa!

Mas impossivel! que a não deixava a quebreira em que toda ella ficara do parto, nem o pequeno poderia―pobresinho!―descer por taes ladeiras, de pedregosas e asperas que eram.

Mas de noite o frio era intenso n'aquellas alturas, e o pequeno congelava unindo-se á mãe que o bafejava para o aquecer, e a si o aconchegava mais e mais para lhe transmittir o natural calor do seu corpo enfraquecido e doente.

Por altas horas da noite, na solidão lugubre d'aquelle sitio, alcantilado e ingreme, entre penedias escarpadas [172] onde o vento sibilava lugubremente, n'um como choro dolente e prolongado, o balido da mãe, traduzindo angustias e desesperos intimos, respondia ao vagido fraco do filhito, cuja vida parecia ir-se apagando de hora a hora e instante a instante, inteiriçando-se-lhe com o frio os membros delicados e tenros.

Eram assim as noitadas dos desgraçados. Por taes frios e doenças, impossivel dormir. Toda a noite velavam e gemiam, achegando-se mais e mais n'um como abraço de eterna despedida―amigos que se iam apartar para uma longa viagem de trevas, com o coração alanceado pela saudade, soluçando e gemendo, n'um adeus! que era infinito, como o infinito amor que os unia...

E a cada momento, como um dobre de finados, o chocalho badalava lugubremente, assustando o animalsinho, como se aquelle fôra o signal para o transe derradeiro...

Para maior desgraça, as noites eram sem lua. Encravadas na abobada, as estrellas bocejavam dormentes, n'uma criminosa indifferença por aquella dôr suprema de que eram as unicas testemunhas.

E balando muito, e balando sempre, a pobre cabra imprecava ao céo a vida do filho, ao menos,―ora supplice em balidos de resignação que uma profundissima dôr ungia, ora desvairada e louca, em gritos que significavam blasphemias, blasphemias de desespero contra o céo que a não ouvia, e contra a morte que bem sentia aproximar-se para lhe estrangular o filhinho que ella amava tanto.

E a fazer-lhe mais incruenta a sua enorme dôr―a ironia acerba da chocalhada longinqua das companheiras, [173] que se iam pelos montes da outra banda, deixando-a a ella sósinha com o filho, á espera da morte que era inevitavel.

Então ergueu-se por instantes! Agitou convulsamente o pescoço, e pelo ar fóra o som triste do chocalho espraiou-se lentamente, n'um adeus! adeus! de despedida ás companheiras felizes que lá iam, n'um ruido longinquo de chocalhos...





N'aquella solidão os dias eram melhores. Com os primeiros raios do sol entravam de reanimar-se os dois; pouco a pouco os membros desentorpeciam e o sangue circulava.

E o cabritinho sem poder ainda descer!...

De pé, ao lado do filho, a pobre cabra lançava olhos compungidos para as escarpas da ladeira, ia para um lado e outro, desvairada e tremula, como que a escolher o melhor caminho por onde levasse o filho. Mas eram todas horriveis! Silvedos e rocha viva era o que mais se via. E depois o rio, lá baixo, rugia nas cachoeiras, augmentando-lhe o receio.

Impossivel! impossivel!

E sentia-se enfraquecer á mingua de sustento, pois a herva, por alli, estava comida e recomida pela pastagem miseravel de tres dias.

[174] N'um momento de desespero, quando os gemidos do filho eram mais dolentes e crebros, refez-se de coragem a cabra, e segurando entre os dentes o chibo tentou o primeiro passo, arrastando-o pela ladeira, do lado em que o declive era menor. Mas em breve desanimou a pobre, que o filhito, assim arrastado, mais e mais gemia, convulsionado e tremulo...

Impossivel! impossivel!

Nada que signifique a dôr d'aquella mãe, e traduzir possa em linguagem toda a gamma de sentimentos e emoções no seu balar expressos. Atirou-se de joelhos sobre o corpinho do filho que hirto chorava e tremia, estendido para alli, na prostração pesada do ultimo desalento; animava-o com caricias, aproximava-lhe da bocca os uberes já flaccidos e amolentados, convidando-o a mamar, como se aquelle leite podesse levar ao filho a coragem que a ella propria faltava em tamanho transe afflictivo...

Mas pouco a pouco a noite ia caindo. Tinha-se já apagado a ultima cambiante do poente, e sobre as gargantas dos montes passavam subtilmente as primeiras nevoas, alvadias e tenues. Á medida que a treva se condensava, decresciam os ruidos em todo o horizonte, accentuando-se cada vez mais a melopéa somnolenta do rio nos açudes. Perpassavam pelo ar as aves para os ninhos. Bandos de pombas, como flocos volateis de arminho, cortavam em vôos mansos a profundidade calma do céo, demandando os pombaes e os povoados, onde se acolhessem da noite que vinha caindo. Revoadas de perdizes e de tordos passavam por alli alegremente, n'um chilrear sonoro, caindo de chofre sobre o monte, a esconderem-se nos estevaes e nas urzes. Pelas hervagens seccas [175] rastejavam apressados os reptis, e sob os tojaes bravios a lebre buscava a cama...

...E tudo tinha ninho―pombas que voavam e perdizada sonora, quem passava no ar e quem rastejava no monte, lagartos, sardões, cobras, toda a colonia vagabunda de reptis e de aves, que passou alegremente o seu dia, e se ia recolher agora para recomeçar dia ámanhã...

Só a desgraçada cabra, alli, junto do filho tenro, não mais fizera passo. Com as brumas da noite, as brumas da tristeza para o seu coração alanceado de mãe. Ahi vinha o frio inclemente flagelar-lhe o filho...―o filho que já tremia a ella aconchegado―o triste pobresinho!

Rompia de toda a banda o gri-gri sonoro dos grilos, vivo e cantante n'aquelle silencio que se definia. Cerrou de todo a noite. O céo era baixo e torvo de nuvens. Estrellejava a espaços a abobada, irradiando uma luz mortiça e alvadia, que levava a pensar em ultimos transes de creanças, em que a vida gradualmente se extinguisse, n'um latejar vagaroso de palpebras somnolentas...

Mais algida fazia a noite, e mais pesada de melancolias, essa torva apparencia da atmosphera e do céo. Noite peor do que as outras, porém com menos balidos, pois que mãe e filho estavam extenuados de forças e nem gemer podiam. E a morte que não vinha arrancal-os do abraço em que se uniram, mal cerrara a noite!

A pequena distancia, o monte era cortado de profundissima garganta em rocha viva. Do lado opposto, e quasi defronte dos moribundos, accenderam-se na treva dois pontos phosphorescentes, de uma claridade esverdeada rutila. E, immoveis, esses dois olhos estoirados de [176] lobo, a que parecia terem arrancado as palpebras, projectavam a sua luz sinistra na direcção do grupo que velava. A natureza inteira retrahia-se n'um como pavôr medonho, concentrado de intimos terrores e silencios lobregos d'horas altas. Cerrava-se mais no céo a phalange muda das nuvens, densificando-se em tintas negras, impenetraveis e caliginosas, sem scintillas de estrellas, por fugidias e tenues que fossem...

E sempre, e constantemente immoveis na escuridão pesada, aquelles dois olhos flammejavam, de instante a instante mais vivazes, perscrutando a treva da direcção mais exacta do grupo. Transida de susto, arquejando convulsamente no ultimo paroxismo da sua enorme dôr, a pobre mãe não ousava arriscar um unico movimento e mais e mais cerrava contra si o corpo inanimado do filhito que parecia adormecido.

Assim durante horas que aquelle atrocissimo supplicio fez enormes, quasi eternas, tumultuosas de acerbos soffrimentos e de indiziveis angustias, vasias de esperança na vida do seu pequenino filho.

De repente, aquelles dois pontos brilhantes apagaram-se na treva, e de novo os viu brilhar a cabra, mas já a maior distancia. Estremeceu a pobre de subita alegria,―e no abalo que soffreu o seu corpo, até então retrahido, o chocalho badalou. Voltou a correr o lobo, e então a desgraçada viu errarem na treva, como dois grandes coleoptéros de azas phosphorescentes, os olhos até então immoveis do inimigo. E por alli levou a noite toda, farejando e uivando, até que cançado de perscrutar o insondavel, se foi ladeira abaixo, aos primeiros assomos da madrugada que vinha, docemente, alumiando pincaros e arestas.
[177]




Ao romper d'alva o céo era azul. Apenas de longe em longe pennachos de nuvens brancas ondulavam as suas cristas alvadias, que se esfarpavam lentamente ao menor sopro da aragem. Pouco a pouco o azul ia desmaiando, diluindo-se na luz esbranquiçada que vinha do alto em gradações imperceptiveis e suaves.

Começavam de animar-se os longes da paizagem, e a retina accusava já as differenças mais salientes dos campos e herdades, pedaços esbranquiçados de restolhos, tons pardos de olivaes, terras plantadas de vinhedo, e pinheiraes cerrados galgando desfiladeiros e investindo com o céo no alto dos montados.

Pelas ladeiras d'além, caminhos e atalhos corriam em torcicolos até ao areal da margem. Em turbilhões de espuma alvissima precipitava-se a agua nos açudes, marulhando nos altos penedos marginaes, denegridos e informes, de uma mudez contemplativa e perpetua. Do tecto do moinho, lá em baixo, uma columna azulada de fumo elevava-se tranquillamente no ar sereno e doce, até se desfazer no espaço amplo e benigno, como uma ambição ou como um sonho...





Foi então que Alipio José, á frente do rebanho, de novo abordou áquellas paragens, no intuito de procurar a cabra tresmalhada.

[178] ―Russa! torna ao rebanho, Russa!

Mas precisamente a essa hora, a Russa exhalava o ultimo alento, pendida sobre o cadaver do pobre filhinho morto!...

E ao pino do meio dia, quando o sol faiscava causticando nos rochedos―passava na direcção da montanha, crocitando lugubremente, a esfaimada legião dos amaldiçoados corvos...







ARRULHOS


A.M. da Silva Gayo.


Ao fundo do jardim ficava o pombal―uma casinhola redonda, com orificios triangulares no alto, em toda a volta, alegre na alvura impeccavel do muro que fallava ao longe, muito ao longe, a leguas de distancia.

―Pombal da Morgada! diziam.―Lá se vê além...―E um gesto muito longo levava a vista horizontes fóra, á cata do Pombal da Morgada, que alvejava longe, muito distante, na meia sombra dos montes sobranceiros, como um pequenino ermiterio cheio de lendas, onde santos de carne e osso provocassem romarias, promessas avultadas de pessoas ricas, e onde seriam encantadoras as tardes quentes de estio, á sombra de arvores seculares em cuja ramagem trinassem passaros em barda, pardalada sonora, gralhadora, rindo da nossa merenda e da nossa semceremonia―frangãos assados e boa vinhaça da terra.

[180] Pombal da Morgada porque? Historia singular que vou contar-lhes. A Morgada era uma senhora rica, muito rica, tinha vinte e cinco annos e outras tantas quintas, viuva antes de casar, pesarosa da morte desastrada do noivo―um trambulhão de um cavallo que o matara logo alli, sem mais pio, n'um ai.

A recordar esse amor―um casal de pequeninos pombos que elle lhe dera na vespera, symbolisando, dizia elle, a pureza da sua alma d'ella, e a castidade das suas intenções d'elle...

Muito bem. Fez-se então o pombal, o casal procreou, vieram pombos novos―todos brancos uns, rajados outros, de um gris delicadissimo alguns, todos encantadores, velludineos, muito mansos.

Bellos pombos, na verdade!

Todas as tardes, quando as tintas do crepusculo começavam de esbater-se n'uma uniformidade vagarosa de tons, e a percepção clara das coisas entrava de se desfazer em imperceptiveis nuances subtis, n'um smorzando melancholico onde palpitavam vagos terrores de noite que vem caindo, quando os valles se cobriam de uma sombra azulada e a vida cessava no campo e começava no céo em scintillações argenteas de estrellas―todas as tardes, digo, quem quer poderia ver aberta a estreita porta do pombal, e uma mulher nova, vestida de preto, espalhando no pavimento terreo, com solicitudes de menagère, as provisões de um pequeno cabaz que lhe pendia do braço―milho em abundancia e fartura de alpista.

Assim todas as tardes, ia já em quatro annos, que não havia forças que levassem a Morgada para fóra do seu [181] pequeno solar, onde vivia só, retirada de tudo, a tudo indifferente, impassivel a pedidos de amigas que saiam para as praias, no inverno para Lisboa, e que a queriam levar para que se distrahisse, para que se alegrasse―«era nova ainda, podia arranjar noivo, nada mais facil...»

―E as pombas? objectava.―Mas era peccado deixal-as, dizia comsigo. Quando voltasse estaria deserto o pombal, umas que fugissem, outras que matassem, haviam-de até roubal-as, entrar de noite no pombal, leval-as todas.

―Que não e que não! insistia renitente;―que tivessem paciencia, que se divertissem muito, ella ficava.

―Platonismos! gargalhavam depois as amigas.―Saudades do outro que rebentou do trambolhão. Bem tola!

E partiam sós, rindo da Morgada e do seu amor pelas pombas, achando-a ridicula com aquelle seu luto perpetuo, escarnecendo da simplicidade habitual da sua toilette―vestido preto todo liso, muito afogado, um pequeno ruche no pescoço e mangas, nem uma préga, nem sequer um laço.

Muito respeitadas, as pombas da Morgada. Caçador que as visse não desfechava sobre ellas. Assim, a manada crescia de hoje para ámanhã, desenvolvia a propagação o bom tracto, a habitação confortavel, muito abrigada de ventos, onde a chuva não entrava e os ninhos eram flaccidos―folhas de milho mudadas cada dois dias.

Que bom, ser pombo da Morgada!

A musica dos arrulhos, uma volata muito languida, começava com o aclarar, muito cedo, depois do descanço [182] do somno na placidez do ninho, quando as forças eram sãs e as azas pediam vôos.

Hora dos amores!

Pombos atrevidos, sanguineos, de iris rutilante e indole impaciente, lançavam-se sobre as pombas, forçavam-nas, perseguiam-nas se voejavam, ameaçando-as de bicadas primeiro, picando-as nas cabecitas se resistiam, possuindo-as á força, a tremer, azas em concha, pennugem erriçada, arrulhando muito, arrulhando sempre, cahindo desfallecidos depois, hirtos, palpebras cerradas, trementes, frementes, em spasmos de luxuria e paroxismos do goso; emquanto ellas, as pombas, se emplumavam agora de contentes, sacudindo as azas, pescoço levantado, orgulhosas talvez, muito felizes.

Outros então, mais meigos ou mais pachorrentos, mais velhos por certo, quedavam-se horas seguidas, horas longas, defronte da sua eleita, n'uma doçura plangente de musicaes arrulhos, frementes de desejos, mas pedindo ás boas, não querendo violencias, detestando-as, bem se via, supplicando, rogando, commovendo. E se logravam intentos, redobravam os carinhos, havia meiguices de geitos e friccionamentos leves de pennugens, arrulhos mais doces e toques delicadissimos de bicos―beijos com certeza.

Isto todos os dias, nas manhãs ennevoadas especialmente. Imagine-se a vida do pombal áquellas horas:―pombas que voejavam assustadas, esquivas mesmo, e pombos que as perseguiam; pombas que condescendiam e pombas que queriam arrulhos: quem não voasse arrulhava, quem não arrulhasse voava; e tudo gozava―quem era feliz e quem estava para o ser, quem era sanguineo e quem era pachorrento.

[183] Ar dos campos, depois; alegres, muito amigos, pousando todos quando um pousava, retomando vôo se um voava, sempre juntos, sempre na mesma direcção, a beber no mesmo ribeiro, em linha, todos a um tempo, n'um ruido muito doce de bicos que sorviam.

Ainda com sol, iam pousar de revoada no telhado da casa onde habitava a Morgada, participar-lhe por certo que iam recolher, cumprimental-a ao balcão da sua janella, alegre de trepadeiras em flôr, pousar-lhe nos hombros, na cabeça as mais ousadas ou as mais amigas, segredando-lhe não sei que arrulhos que ora a faziam sorrir, ora lhe traziam lagrimas, mas que sempre provocavam novos affagos, affagos interminaveis:

―Minha pombinha... minha amiguinha... minha querida...

D'alli para o pombal, continuar aquella vida de bohemios felisões, vida de concubinagem, n'uma promiscuidade sem limites e n'uma libertinagem de harem.

Polygamia desenfreada!

Excepção a ella, apenas um casal―a melhor pomba da manada, pomba branca, de uma alvura impeccavel de neve, e então um pombo rajado, preto e cinzento, de nuances azues-escuras, ares aguerridos de luctador vaidoso, um D. Juan emplumado, tentador.

Era o pombo mais atrevido do pombal, o de genio mais insoffrido e spasmos menos longos, muita vida, n'uma mobilidade continua de pescoço, nervoso, libertino. Pomba que desejasse possuia-a, sem arrulhos previos, sem pedidos, brutalmente se resistia, pacificamente porque muitas se lhe entregavam, preferiam-no, vinham deitarse-lhe [184] no ninho, disputando primazias á força de bicadas.

E umas atraz de outras, e dias após dias, sempre assim!

Mas todas fugiam em seguida, não sei se de esfalfadas, se para dar logar a outras; uma só, a pomba branca, se quedava ao lado d'elle, paciente, resignada, n'um arrulhar cada vez mais doce, cheio de ternuras, muito meigo, idealmente brando, que agradava ao rajado, que o ufanava, incitando-o, convidando-o, provocando-o. Por isso entrou de aborrecer as outras, achando-as menos pombas, umas desavergonhadas que se iam entregar a outros, e de se affeiçoar á branca, a ella só, acarinhando-a muito, arrulhando com ella, alternadamente, ora um ora outro, gemendo amores.

Não imaginam os senhores nem ha nada que possa dar ideia da desordem, da perturbação que isso levou ao rancho tão dado a instinctos commodos de polygamia, tão avesso a duetos d'aquella natureza, onde os pombos eram de todos e as pombas eram communs.

E tal desordem subiu de ponto com o proceder do casal que levava dias inteiros dentro do pombal, sem sair, n'uma concubinagem que revoltava de egoista. E quando saíam não se juntavam com os outros―uma desfeita! uma offensa!―tomavam rumo differente: para a direita se os outros iam para a esquerda, para a esquerda se os outros iam para a direita, sempre ao contrario.

Recolhiam mais cedo, com sol ainda, e quando os outros vinham, já os encontravam no pombal, em ninhos contiguos a principio, no mesmo ninho depois!

[185] Um escandalo! Um desaforo!

E planeavam-se ataques, desfeitas ao casal, muitas desfeitas.

Se os dois eram felizes arrulhando manso, entravam os outros a arrulhar forte, troça talvez, desespero decerto, todos juntos, combinados. E se isto não bastava, começavam todos a voar, batendo muito as azas, levantando a palha dos ninhos, precipitando-se sobre o casal, fingindo quedas, dando bicadas os mais raivosos, ou então os mais despeitados...

Prestes o rajado saltava do ninho, oppunha defesas de azas sobre a pomba branca e timida que o susto transia, inquieto, colerico; reagia depois, luctava por fim, levando-os não raro de vencida, obrigando-os a fugir do pombal em vergonhoso tropel, muito assustados, vencidos. E noite além, entravam um a um, vagarosos, muito mansos, sem ruido de azas, receiando acordar o casal que dormia aconchegado, muito quente, pescoço escondido sob a aza veludinea.

Dois mezes assim―dois mezes!―n'uma fidelidade conjugal ininterrupta, digna de servir de exemplo a outros bipedes que eu conheço, que os senhores conhecem, não?... Vida boa, na verdade, perfumada de arrulhos e esplendida de alegrias, passada em bellas digressões campos fóra, pousando no mesmo ramo, bebendo na mesma poça, dormindo no mesmo palmo de ninho, sonhando os mesmos sonhos, talvez...

Mas no fim d'esse tempo o rajado entrou de ter desconfianças, suspeitas de inconstancias e receios de infidelidades, de noite, emquanto dormia. Havia certa frieza nos geitos da pomba, menos ternura nos arrulhos, modos [186] de enfadada ás vezes, certas perrices, resistencias mal disfarçadas. Ficava-se em casa se o rajado sahia, impassivel a supplicas, muito mona, com enlanguescimentos de palpebras e quebramentos de azas, uma desleixada; e espreitando-lhe o vôo, tomava para norte se o rajado ia para sul, vinha tarde e ia aninhar-se só, para lhe fugir.

Estava farta, vê-se. E como os outros a não queriam―rameira do rajado!―um dia levantou vôo e fez-se ao largo.





Abbade d'aldeia, conhecem, d'esses mui dados aos latins e ao vinagrinho de Xabregas, muito nacional e muito fino, bons velhos de quinzena e calça de alçapão, feros, muito rijos, á prova de rheumatismo e á prova de vintem, felizes na sua pobreza, amigos das creanças, bem humorados sempre, flôres de uma arvore que ora vae dando cardos. Perto do solar da Morgada, a tres kilometros só, havia um assim, o abbade das Donas, bom prégador n'outras eras, com famas de theologo ainda ao tempo.

―Disse-o o das Donas, collega! disse-o o das Donas!―era assim que muitas vezes acabavam disputas acaloradas, salpicadas de varios latins, sobre textos da Biblia e passagens dos apostolos.

―Theologia velha, diziam, a genuina!

A casa da residencia era uma casa muito antiga, portas em arco, paredes a desabar,―uma invernada forte e ia abaixo. O pateo da entrada era terreo, rimas de lenha [187] secca d'um lado e d'outro, seguia-se a cosinha, um pequeno corredor, e ao fim uma velha varanda em ruinas que dava para um quintalorio, e cujas pedras se deslocavam, de mal assentes que estavam.

Preferia-a o bom do abbade para a reza das suas devoções, e n'essa tarde quem quer o poderia ver passeando-a a todo o comprimento, oculos na ponta do nariz, breviario na mão direita, a dois palmos, a esquerda a segurar a aba da quinzena, e um pequeno solideo com borla resguardando-lhe a calvicie.

A interromper a leitura, de quando em quando, umas pequenas exclamações de desgosto, arremessos de breviario, e por fim levantando a voz:

―Fome as pombas, sr.a Luiza: não fazem senão saltar...

―Bem fartas!―retorquiu de dentro, da labuta da cosinha,―mas têm lá visita, pomba que arribou.

E depois informando:

―Pomba guapa, toda branca. São agora tres ao todo, e então o pombo...

―Huum!... resmungou o abbade em voz de reticencias.―Percebo... percebo perfeitamente...―E foi metter-se no quarto, continuar a leitura.―Deixal-as! concluiu evangelico.

Era a pomba do rajado, adivinharam, que alli viera parar á reles pelintragem d'aquelle metro de gaiola feita de um caixão velho, com grades só na frente, muito suja sempre, arrumada p'r'alli ao fundo da varanda, humida de aguas entornadas, exhalando maus cheiros, um nojo.

[188] Quando a mostrava á creada, o abbade dizia-lhe sempre:

―A sua vergonha, sr.a Luiza; a vergonha da sua cara. Como se os animaes não fossem tambem creaturas de Deus...

As pombas eram magras e o pombo era esqueletico.

Fez-se de amores com elle, tomou-lhe os habitos canalhas, manchando a alvura immaculada das pennas na immundicie fetida da gaiola em que ambos se aninhavam, arrulhavam, se espojavam. E como ella era gorda e bem tratada, flaccida de pennugens e de carnação consistente, apetitosa, o pombo não a largava―genio de libertino em corpo de tisico.

Em breve periodo entrou a pobre de emagrecer, sem forças para voar se queria voar, quedando-se dias inteiros ao canto da gaiola, encolhida, tristonha, arrependida talvez de ter deixado o pombal,―saudosa do rajado, o seu primeiro amor, quem sabe!

E depois, o pombo sujo já não se importava com ella, desprezava-a, tentara mesmo expulsal-a de parceiro com as outras, dando-lhe maus tratos,―á intrusa. Dôr incomparavel!

Mas um dia o ataque foi mais violento e ella teve de fugir, de voar, descançando amiudadas vezes, porque lhe faltavam as forças, arquejando sempre, arrastando-se em vôos baixos, sentindo vertigens se subia mais alto. Para passar um ribeiro descançou uma hora, e quando cobrou alento e começou o vôo, viu-se na agua e estremeceu, molhou ainda as azas, viu um corvo na sua propria imagem, um corvo negro que a perseguia silencioso, traiçoeiramente, [189] que a ia talvez devorar... O que ella tinha sido e o que era!...

Lembrou-se então do pombal, do seu primeiro ninho, do rajado... Oh! o rajado!... Receiou primeiro, quem sabe se elle a quereria, tinha pomba, decerto... Iria?... Não iria?... O pombal ficava perto, um vôo valente e estava lá, acharia tudo em casa, era cedo ainda.

Fez-se de vôo e partiu.





A manhã era calma e o céo era azul. Canções de cotovias vibravam pelo ar que as balseiras alastravam de aromas, perfumando-o. A estrella d'alva tinha os ultimos bocejos para fechar de todo a palpebra cançada e adormecer no azul; e o oriente começava de animar-se de um alaranjado esplendido―decoração triumphal com que se orna aguardando a visita de quem tem de rolar pela eclyptica, alumiando o hemispherio e fecundando tudo―o cardo que rasteja e o cedro que vê longe...

N'aquelle repontar da manhã, o alto céo era de uma limpidez crystallina. Evolava-se de toda a banda um perfume virginal de dulcissima paz, e pelas ramagens verdejantes a volata suavissima dos ninhos começava, como uma saudação ao dia que vinha rompendo. No altar das laranjeiras, florido como em Domingo de festa, o rouxinol cantava a missa d'alva.

Em manhãs placidas como aquella, quantas vezes a branca não fizera as suas excursões alegres de touriste, na companhia do rajado, perdendo-se com elle atravez [190] do horizonte áquella hora tranquillo e para toda a banda transparente!

Como tudo isto lembrava, agora!

Em todos esses pinheiraes, ao largo, os dois haviam descançado muitas vezes, muitas, expandindo em arrulhos de uma ternura ineffavel o amor extraordinario que os unia! Em toda a largura não se descobria um só campanario ou um só telhado onde não tivessem pousado ambos, alegres, contentes, doidos! E ella sempre ufana, acompanhava o macho nos seus vôos ainda os mais arrojados, perdia-se com elle para além das serranias mais distantes, destemida com a companhia que levava―um amigo que empenharia a vida só para salvar a da amante.

E que bella manhã, aquella! Tudo tão alegre! Era ver como as calhandras acordavam contentes, e se atiravam ares além no seu vôo perpendicular e rapido!

Entravam de animar-se cada vez mais as ramarias, com a vida dos ninhos; melros ensaiavam solicitos a sua partitura vibrante. Mas a toda a largura―nem uma aza de pomba palpitava. Ella só, desalentada e cheia de maguas, ia para onde a levava o destino,―quem sabe se para a morte...

Então chegou a branca ao pombal e voejou em torno espadanando as azas contra o muro, arremettendo os buracos, desejando entrar, faltando-lhe a coragem, voejando de novo para arremetter em seguida. Os seus antigos companheiros sentiram-na, conheceram-na, e arrulhando muito, e arrulhando forte, sairam em tropel e foram pousar no telhado, batendo muito as azas combinando ataque.

[191] E como a pomba teimava em entrar, corriam a oppor-se, vedando-lhe a passagem.

De repente, um pombo negro abriu muito as azas, agitando-as, tenteou vôo n'uns pequeninos saltos nervosos e investiu com a pomba, com a desgraçada pomba, e os mais apoz elle. Havia sangue nos bicos e pennas voando em elypsoides, um barulho de azas que se chocavam com furia. Por fim um baque, a pomba caiu no chão, toda sangrenta, um olho arrebentado, bico aberto, n'um arquejar convulso, cortado de um arrulho guttural de vida que se esvae lentamente, gradualmente, com dôr. Um estremecimento de membros por fim, uma agitação geral repentina, e―morta!

Ares além, os assassinos em bando voavam á busca talvez de um ribeiro onde lavassem os bicos ensanguentados...





E o rajado?―hão-de os senhores perguntar. Demorem-se um pouco e vel-o-hão sair da janella das trepadeiras, alegres, felizão, bohemio, depois de uma noite passada na meia sombra dos cortinados leves de um leito, a rir, a amar, beijando o colo da Morgada, arrulhando com ella, arrulhando, ora um ora outro,―debicando... debicando... debicando...



BATALHAS DOMESTICAS




BATALHAS DOMESTICAS[1]


A Luiz Trigueiros.


Para o meu proposito, é inutil narrar-lhes esse pequenino e perfumado idyllio, côr de roza, que foi na vida d'ambos, durante um anno, o seu mais vivo encanto. Isto em Lisboa, onde elle, Joaquim Seabra, maior, empregado de escriptorio commercial, vivia desde pequeno uma furiosa vida de trabalho. A mãe tinha-lhe morrido, ainda elle era fedelho: e passados poucos mezes, tinha o Joaquim sete annos, uma doença complicada levara-lhe tambem o pae―homem [196] de lavoura, pobre mas honrado, bronco mas leal, que nascera e levara a vida não me lembra em que aldeia da Beira, nas abas da serra da Estrella.

Sentindo-se morrer, o João Seabra pediu os sacramentos. Deram-lh'os. E quando o reitor ia retirar-se, grave, revestido, aconchegando ao largo peito o vaso sagrado das particulas, solemne sob a umbella branca de grandes ramagens amarellas, o pobre homem preveniu o padre de que em podendo lhe desejava uma palavra.

―Volto por aqui de caminho, dissera o reitor.

Assim fez. Mas caso é que ao abeirar-se de novo do catre do doente, junto do qual estava o Joaquim, descalço, mal remendado, o velho, entreabrindo os olhos e cerrando-os logo para sempre, mal tivera tempo de lhe murmurar, designando vagamente o filho:

―O pequeno, coitadinho!

De modo que foi o proprio reitor em pessoa, quem, passados dois annos, veio metter o orphão, como marçano, n'uma loja de ferragens da baixa, loja escura, funda, com uma ventana de vidraças, combalida, dando para uns saguões de predios contiguos. De marçano subiu com o tempo a caixeiro; e como era applicado, humilde, supportando com uma placidez resignada de beirão um trabalho por vezes superior ás suas forças, pulou um dia para a escrevaninha da casa, no andar de cima, vaga pela sahida para a cadeia do outro que commettera umas falcatruas.

―Precisava um tiro nos miolos, esse cão! dissera deante dos patrões o Joaquim.

[197] E a incisiva phrase que fôra, emquanto remexia a papelada, todo o seu commentario ao procedimento irregular do companheiro, valera-lhe a involuntaria conquista do logar, como revelação, que era, das qualidades fundamentaes do seu caracter,―communs, de resto, ao typo beirão, profundamente animal, audaz, sobrio, musculoso, no fundo generoso e bom.

A vida começou então a ter para elle umas entreabertas mais risonhas, livre d'essa prisão estreita da escura loja, onde os seus instinctos hereditarios de independencia, acordados no fundo de uma natureza barbara de herminio, tinham, de quando em quando, uns bruscos, violentos repelões de rebelião... Até que um dia, n'uma d'essas guinadas que mesmo á escrevaninha o assaltavam, pensou em ir á terra onde não voltara desde pequeno. Ainda lá tinha uns tios, vivia ainda o reitor. E n'uma introversão de momentos, mirando atravez da janella o claro céo azul, alto n'aquella manhã serena de maio, o Seabra teve a remota visão do seu passado―das coisas da sua infancia, da sua pobre e humilde aldeia encravada n'um declive de serrania que ao longe elevava o dorso, nitente de neves eternas. E como se mirasse tudo atravez de um binoculo invertido, elle lá via além, muito longe para as suggestões do seu desejo, muito afastado para as debeis reminiscencias da sua memoria, tudo isso que elle dizia em tres palavras―«a minha terra!»―isto é, esse montão informe de velhos tectos chamuscados onde havia um debaixo do qual nascera; o campanario alto e esguio; a igreja oblonga; a fita branca do muro do cemiterio onde seu pae e sua mãe jaziam; a paizagem circumdante cortada de canaes e regueiras, que parecem fios de prata serpeando na esmeralda das baixas, toda retalhada em hortejos; e então a velha legião amiga das arvores―o zimbro ao alto dos môrros nús; depois, descendo, as urzes brancas; os piornos; os bellos carvalhos [198] altivos; e já a meio da encosta, estendendo sobre a zona agricola e horticola o verde e tenro parasol das suas soberbas folhas―o castanheiro, emfim.

Atravez da sua vida de balcão, duramente moirejada a mover barras de ferro, feixes pesados de vergas, ceirões informes de pregaria, com intermittencias raras de descanço, algum domingo, pelas hortas dos arredores, ou ás vezes n'um bote, pelo Tejo,―a sensação melancolica da sua paizagem nativa não chegara a obliterar-se-lhe no cerebro, nem tão pouco a lembrança dos seus velhos conhecimentos de infancia, dos seus companheiros de escola que iam todos os dias, de manhã e de tarde, á lição a casa do reitor, n'aquelle velho sotão da residencia, com paredes denegridas e tecto de madeira com manchas...

E que seria feito d'elles? Talvez que os não conhecesse, que o não reconhecessem, agora. Talvez. E esta duvida, esta desconfiança, dava ao seu desejo de os ver, de se lhes mostrar,―com o seu fraque, a sua bengala, a sua cadeia de oiro escorrendo sobre o colete claro―o encanto subtil e ingenuo de uma vaidade. E acabou de o decidir, emfim, a propor aos patrões essa viagem, certa imagem de rapariga loira, olhos azues e toda rozada de cutis, que elle, sem quasi dar por isso, espontaneamente, insensivelmente, fora sabendo, de longe, que se conservava ainda solteira...

...a Emilia!

E porque seja extranho ao meu proposito, e quasi indifferente á historia que lhes vou contando, a chronica preliminar d'esse consorcio, direi que a velha estola do reitor os uniu emfim uma manhã―manhã de julho, na velha e ampla igreja da freguezia, toda banhada de sol, [199] toda rumorejante de vozes, e sobre a qual cahia sem despejar, como uma chuva alegre de pétalas, a saraivada metalica dos sinos, repicando... Até que passados dias, eil-os emfim em Lisboa, installados não sei em que beco da Baixa, perto da «obrigação» do Joaquim, que era, como lhes disse, o escriptorio.

E aqui rompe a historia; e se é do agrado dos senhores, comecemos.





Bem, aquelle primeiro anno. Por uma banda a Emilia a cuidar da casa, toda se desvelando nos minimos pormenores do interior, na cosinha, no amanho das roupas, no decorativo, mesmo, dos quartos e saletas que a mobilia, comprada de novo, tornava alegres e confortaveis. Elle, por outra banda, trazendo-lhe nos fins dos mezes intacto o seu ordenado, e trazendo-lhe, cada dia, uma caricia mais fresca e mais suave. E dada a homogeneidade dos seus temperamentos, a proveniencia commum das suas naturezas, originarias do mesmo solo, filhas da mesma raça, temperadas do mesmo sangue, ricas das mesmas infiltrações de seiva e de saude, explica-se logicamente esse parallelismo absoluto de vontades que os dois levavam na vida, sem um choque nas suas aspirações, sem um encontro avesso nos seus desejos, sem a minima divergencia no seu modo de vêr e de pensar. Educados em meios differentes, embora! o que nas suas naturezas havia de fundamental, e até de intensamente uniforme no raio visual das suas intelligencias, tornara podemos dizer nullo, sem consequencias no fio commum das suas vidas, esse largo periodo passado em latitudes differentes:―ella, onde ambos tinham nascido, debaixo do mesmo céo, [200] á luz do mesmo sol, á sombra das mesmas arvores; elle, sequestrado de tudo isso, mas n'um meio sem côr para elle definida, pardo, estreito como uma gaiola, e onde, portanto, a sua natureza se conservara estagnada,―estagnada como uma pequena lagoa, dormente debaixo do luar melancolico...

Vinha d'ahi, e do fundo ingenuo das suas almas, estrelladas das mesmas superstições, povoadas das mesmas imagens, embaladas, ao nascerem, ao rythmo da mesma canção, essa forte, dulcissima corrente de ternura espiritualisada que era o motor primeiro dos seus abraços, o mais vivo e fresco perfume dos seus beijos, a mais alta, a mais serena e orvalhada efflorescencia do seu profundo amor... E pois que havia tambem no sangue d'ambos―bem como no seio de um diamante as iriações mordentes―as rubras, incandescentes faulhas de uma animalidade impetuosa, adivinha-se quanto seria intensa nos dois a vida sexual,―casta a despeito de tudo, vivente como um largo pampano, nimbada, emfim, como certas telas classicas, por umas cabecitas loiras de creanças, frescas, ridentes, côr de rosa...

D'ahi, como lhes disse no principio, esse pequenino e perfumado idyllio, côr de rosa, que fôra na vida de ambos, durante um anno, o seu mais vivo encanto...





Em certo dia, porém, regressava o Joaquim do escriptorio, noite cerrada já, quando uma rapariguita que lhes servia de creada havia dois dias, vindo abrir a cancella, lhe desfechou estas palavras no accento beirão:

―A minha madrinha está muito mal.

[201] ―Muito mal?

―Sim, parece que lhe deu pela cabeça não sei quê.

Joaquim Seabra estacou, como que fulminado. E encostando-se á hombreira, para não cahir, sentiu passar-lhe pelo cerebro, como um tufão de peste, uma ideia que lhe fez vertigens. Teve um presentimento... E cobrando alentos, confuso deante da rapariguita que o olhava, disse-lhe com a voz trémula, no tom de quem procura, compromettido e humilde, esconder um pensamento:

―Bem sei... Isso costuma-lhe dar... Uns ataques... Foi depois que veio da Beira.

―Parece que lhe chamam flatos, volveu-lhe a pequena.―Fica-se como doida...

―Sim... chamam-lhe flatos... fica-se como doida... É isso.

E como se sentissem passos subindo a escada, inquilino ou pessoa do andar de baixo,―talvez alguem que o procurasse!―fechou a porta com força; e apagando a luz, com um sopro trémulo, coseu-se a um canto impondo silencio, com a mão sobre a bocca arquejante da rapariga.

―Cala-te, ouviste? disse-lhe quasi com o bafo―Se te calares hei-de te dar dinheiro. Cala-te.

A rapariga calou-se, aniquillada, toda enroscada a um canto, como um novello. E passados instantes, quando um grande silencio envolvia todo o predio, ouvindo-se apenas, de quando em quando, o rodar de algum trem nas ruas proximas, o Seabra tomou nos braços trémulos [202] a pequena, e foi, cauteloso como um bandido, leval-a á cama.

―Ouves, Luiza? Não faças bulha. Dorme.

E fechando-lhe a porta á chave, respirou, hirto no meio do corredor em trevas. Devia de ser assim a sepultura: aquelle silencio, aquella escuridão impenetravel! E elle, como um cataleptico, alli encafuado vivo...―triturado pela magua, roido pela dôr, desfeito pela desgraça, como se milhões de larvas o triturassem, roessem, desfizessem, implacaveis e crueis, famelicas da ultima particula da sua carne, sedentas da ultima gotta do seu sangue, famelicas e sedentas até da sua propria alma... Vivo, ó Deus cruel! ó Deus desapiedado! Vivo e no emtanto... morto: vivo para a sensação esphaceladora da sua atroz desgraça, do seu cruel, cruciantissimo martyrio; morto, aniquillado, desfeito, para a visão auroreal das suas esperanças...―as suas esperanças! revoada alegre de pombas, candidas, serenas, immaculadas, que um tufão de desgraça varrera do ninho do seu peito, para longe e para sempre...

E humilde como um rafeiro ou como um trapo, n'uma prostração de louco embriagado, dir-se-hia que o cerebro deixara de funccionar n'esse infeliz―como relogio subitamente parado, marcando um momento fatal!―e que tudo quanto elle sentia, e que tudo, oh Deus! quanto elle gosava! era essa impressão anniquilladora do Nada, que o fundia na treva circumdante, com ella identificando-o, irmanando-o, confundindo-o, e tanto e tão intimamente, que elle proprio n'ella se sentia diluido, e no silencio...

Subito, porém, a um gemido, a um grito, a um ranger, escoado alli de perto como um reptil, escoado alli de [203] perto, como um verme, phosphorejante na treva á semelhança de um demonio, que agitasse um pierrot de cascaveis,―uma centelha de vida animou esse corpo aniquillado, e dentro d'aquelle cerebro fez repontar, como luz de lampada funerea allumiando um cenobio silencioso, a chamma de uma ideia... E teve então de si proprio a extranha, diabolica visão de um esqueleto carcomido, desossado, alquebrado, mirando pelo arco immovel das orbitas, d'onde dois feixes de luz escorriam―aquelle trapo miserando alli cahido, informe, esqualido, repellente, montão de gelo, e lagrimas, e trevas...―que era elle tambem!...

Entretanto, e como por força mesmo d'essa allucinação desvairada e tragica, o cerebro perdera n'elle a recta, serena faculdade do raciocinio, elle continuava absorto, incomprehendido, estupido, deante da «sua desgraça»―como deante de um grande mar de negrume, profundo e estagnado, por uma noite sem lua e debaixo de um céo sem estrellas, torvo de um borel cerradissimo de nuvens, a sombra de um espectro... E assim em breve, retombou n'essa altitude que diremos irracional,―mudo, aniquillado, desfeito, no meio da treva silenciosa, como no lodo fundo de um poço um bloco inanimado...





No escuro do seu cubiculo, a pequena soluçava a espaços. E era como se a propria treva soluçasse, esse chorar abafado da creança, espavorida das coisas que a cercavam, para ella mysteriosas e funebres. Era como se um alegre pintasilgo, vivo, irrequieto, palreiro, fosse do seu ramo florido de amendoeira, por uma tarde serena de abril, pousar, n'um vôo de acaso, na mansarda [204] tristonha de um morcego, em qualquer frincha desabrigada de velho muro, abandonado algures...

E porque viera? E para que viera? Não sabia. No emtanto, ao contrario do que lhe tinham promettido, que saudade infinita, repassada de profunda nostalgia, da telha vã do seu humilde casebre, atravez do qual passavam os primeiros alvores da manhã, como um perfumado beijo de frescura! Dois dias, apenas! Entretanto, já dois dias! Tanto tempo em tão pouco tempo! E não tornara mais a vêr passaros! e não mais tornara a ouvir, de manhã, tocando á missa d'alva, tangendo á tarde a Ave-Marias, o seu querido e alegre sino d'aldeia...―além, n'aquella riba suave e pittoresca, prateada, beijada do luar áquella hora!... E o fio do seu pensamento, que outr'ora derivava limpido, sereno, crystallino, como pequenino arroio murmurante que vae entre duas alas de flores singelas, torvelinhava agora estupidamente, desnorteado, ao acaso, convertido n'um veio torvo, lodoso e borbulhante, soluçando, como se fôra de lagrimas, occulto sob a folhagem pallida...





A dois passos, no corredor escuro, o outro continuava prostrado, junto da porta que dava para o quarto onde a mulher, deitada, devia talvez dormir, de borco sobre a roupa revolta, ou no chão talvez... Mas como acontece ás tempestades da natureza, tambem a tempestade d'aquella alma de homem entrou de se diluir em pranto, pouco a pouco, serenamente, gradualmente. Chorou. E como se fôra o véo das lagrimas que lhe não deixára vêr até então os pormenores do seu infortunio, d'este permittindo-lhe apenas uma sensação que diremos [205] informe, entrou de se fazer com a vasante mais lucido o raciocinio, mais precisa e mais esperta a ideia que se lhe accendeu no cerebro, como luz que pouco a pouco vae surgindo na lampada de um claustro, allumiando nitidamente, sob o docel frio das sombras, as arestas marmoreas de um sepulcro...

Ah! mas então, sob a impressão raciocinada e fria da sua tragedia, cujas linhas contornaes pareciam feitas de gelo, uma nova tempestade rebentou,―como uma trovoada enorme em tarde secca de maio. E foram então as imprecações, os gritos estrangulados irrompendo, em surdina, por entre as maxillas ferradas, do fundo do peito em ancias. Então foi o arrancar convulsivo dos cabellos, ás guinadas, teimosamente, n'um duello de loucura com a dôr physica, desafiando-a, espicaçando-a, dando-lhe a beber o proprio sangue do peito, rasgado pelas dez unhas crispantes, lacerantes como se foram de abutre.

―Ah! raios do céo, e não morro!

E como o grito lhe sahiu mais alto, prestes levou ao chão, como beijando-o, os labios estranhamente rasgados pela colera. Veio-lhe então o pudor melindroso da sua desgraça, o medo horrivel de que se divulgasse, de que os outros a soubessem,―de que a pequenita, mesmo, a conhecesse... O que diriam? o que pensariam? E todo elle se encolhia, e todo elle se sentia gelado até ao mais intimo da sua alma, suppondo-se na rua, como outr'ora, ao vivo e claro sol, levando adherente ás costas, como um ferrete ou como um caustico o olhar de «toda a gente»... E com as unhas ferradas na testa, escondia da propria treva, com as mãos ambas, o rosto cobarde e arrepanhado.

―Diabos do inferno! levae-me!

[206] A este novo grito, porém, subito se recolheu n'um grande pavor religioso. Do fundo da sua natureza alguma voz se elevou, serena, doce, harmoniosa, como na paz tranquilla do campo o fumo azul-claro de um casal... E teve a doce visão de um arco-iris, bonançoso e rutilante, repontando luminoso no borel asperrimo da sua alma, onde uma clareira se abria. E foi quasi a sorrir, chorando as primeiras lagrimas tranquillas, que dos seus labios quasi serenos voou como uma pomba alvinitente, que transporta no rosado bico um ramo de oliveira, esta palavra de amor:

―Deus!

E para logo sentiu sobre a sua fronte, de manso e manso erguida n'um como enlevo de visão, um ruflar de azas de pombas... á hora d'alva... sobre os campos... n'uma clara manhã de maio, perfumada...

E como se mão invisivel o erguesse, de vagar, serenamente, enxugando-lhe da orla das palpebras a ultima lagrima de sangue deposta alli pela sua alma, o pobre foi submissamente escoando-se para o quarto contiguo, onde sua mulher estava, o seu anjo, o seu thesoiro, a sua vida... E foi submissamente, como um cão duramente batido que volta aos affagos do dono, que sobre os labios da adormecida esposa, seccos, pallidos, desbotados, ao claro luar vindo do céo, o triste uniu os seus labios frementes,―...n'um beijo suavissimo de perdão. Ao mesmo tempo que ella, n'um delirio, repetia a phrase cruel:

―Mais vinho!



NOTAS:

[1] Sendo necessario completar o numero preestabelecido de paginas de cada volume d'esta Collecção, numero além do qual se não póde ir e aquem do qual se não deve ficar,―o editor pediu e obteve do auctor, em vez de novo conto, um excerpto do seu livro em preparação, livro provisoriamente baptisado com o titulo de Batalhas domesticas. O excerpto póde dizer-se que constitue só por si, como os leitores verão, um trabalho litterario, independente e uno, o que de certo modo lhe dá logar n'esta collecção, ao lado dos precedentes, estabelecendo, além disso, a transição do espirito do auctor para uma nova phase, litteraria e artistica.

N. do E.




INDICE



Idyllio rustico 1
Sultão 18
Ultima dadiva 41
Preludios de festa 55
Typos da terra 73
Vae Victoribus 101
Maricas 111
Para a escola 119
Tragedia rustica 131
Abyssus abyssum 153
Mãe 169
Arrulhos 179
Batalhas domesticas 195




OS MEUS AMORES E A CRITICA



Da Revista Illustrada (extracto da chronica):―«...Os meus amores, de Trindade Coelho, é um volume de contos para toda a gente, em condições agradabilissimas ao paladar d'ambos os sexos, e com delicadas circumstancias a prazerem, principalmente, ao feminino. Porque uma das preoccupações litterarias mais evidentes d'este escriptor primoroso é fazer jus á amisade das leitoras, e como dispõe de pericia no ferir de certas notas emoventes e no tocar certas fragilidades de sentimento, consegue-o.―Alfredo Mesquita.


Jornal da Noite:―«Trindade Coelho―Este illustre escriptor, nosso talentoso colega do «Portugal», brindou-nos com um exemplar do seu novo livro de contos Os meus amores.

De entre a pleiade de prosadores, que por ahi mourejam no mundo das lettras, a individualidade de Trindade Coelho destaca-se distinctamente, e impõe-se á admiração dos que apreciam os talentos brilhantes privilegiados.

Os trabalhos do illustre escriptor, se pela estructura original e encantadora são dignos do maior apreço, pela elegancia da fórma, burilada a primor n'um estylo finissimo e scintillante, despertam os mais francos, sinceros e enthusiasticos encomios dos que os lêem.

Quem conhece o formoso talento de Trindade Coelho, e o seu bello caracter, avalia bem, por certo, como ambos estes seus característicos serão traduzidos no novo livro de contos do nosso distincto collega.»


Diario Popular:―«Os meus amores.―Assim se chama um livro de graciosos contos, retratando aspectos da vida d'aldeia e do campo, que acaba de apparecer, firmado por Trindade Coelho.

O escriptor, como verdadeiro artista que é, localisa todas as suas attenções, de ha muito, no trabalho de apprehender com fidelidade o viver campezino, sobretudo da vasta região transmontana, a qual lhe foi berço. Por isso o seu fabrico litterario se aprimora de dia para dia n'uma escala crescente de sinceridade, e por tanto merito: Os meus amores o attestam, quando postos em parallelo com os primeiros contos publicados avulso.

Trindade Coelho cultiva com cuidado especial o dialogo que busca e consegue photographar com particular exactidão. Em vez dos descriptivos, quasi despresados, são trechos successivos de conversas d'uma encantandora rudeza ingenua que formam o estofo principal de todas as suas producções. Isto e a felicidade com que sabe observar, dão o cunho pessoal da sua obra, que proporciona agradaveis e confortaveis momentos de leitura.»

Diario Illustrado:―«Abrem Os meus amores, de Trindade Coelho, com um admiravel soneto de Luiz Osorio, que depômos nas mãos da leitora, como o perfumado ramo de cravos valencianos, a flôr actual das suas predilecções femininas: (segue o soneto incial.)

E pelo braço do poeta da Alma lyrica subimos ao doce convivio espiritual da alma de Trindade Coelho.

O conto Mãe, uma rica joia engastada n'este livro, brilhando ahi por todas as suas facetas cortadas em diamante, e buriladas com a fina arte de um joalheiro florentino, bastaria para autenticar-lhe o valor e para aferir os dotes mentaes de Trindade Coelho, que tem no seu brilhante estylo moderno, fluente e sobrio, incisivo e profundo, vibratil e melodico, o diploma do seu notavel talento.

É principalmente pela sinceridade intuitiva e pela naturalidade espontanea que estes contos nos captivam.

O auctor diz-nos, sem preoccupações de escola e sem pretenções a abrir caminho pela deslocação do vocabulo ou pela selva escura do escandalo, o que viu, analysou, observou e sentiu.

As suas doces narrativas, penetradas da alma campestre, deslisam suavemente, tocadas a espaços de uma inegualavel melancolia contemplativa que lhes duplica o encanto.

Mas n'esses singelos contos, artisticamente concretisados, Trindade Coelho revela o superior poder evocativo da visão intima, que o singularisa.

A complexa natureza, para tantos inexpressiva e muda, tem para elle, como para todos os artistas de raça, attitudes, expressões, côres e sons, que o auctor vê, adivinha, sente e traduz com a fascinadora eloquencia dos iniciados, e o mysterioso enternecimento, que só nos transmitte a simples leitura dos poetas.

Ha rapidos traços de analyse emotiva ou de commoção reflexa que valem poemas.

[III] E não serão o Idylio rustico, a Mãe e outros contos, soberbamente delineados e intimamente vividos, verdadeiros poemas em prosa?

Felicitamos calorosamente Trindade Coelho, o nosso querido amigo, pelo seu primeiro livro, que embora glorifique o seu nome, não é de certo o seu primeiro triumpho.―Gabriel Claudio


Jornal do Porto:―«Os meus amores.―A collecção Antonio Maria Pereira augmentou se d'um novo volume original. Intitula-se Os meus amores e está escripto pelo nosso illustre collega e litterato distincto o sr. Trindade Coelhho.

D'este livro que, pelas suas destacadas qualidades litterarias, deve achar grande acceitação no nosso publico, escreveremos em breve as palavras apreciadoras que elle merece.»


Correio Elvense:―Trindade Coelho.―Este nosso amigo e festejado escriptor, publicou agora o seu primeiro livro de contos e balladas a que deu o titulo: Os meus amores, editado pela acreditada livraria de Antonio Maria Pereira.

Trindade Coelho, que hoje occupa um proeminente logar no jornalismo da capital, fez ainda ha pouco algumas das suas melhores armas na imprensa em Portalegre, onde creou dois jornaes, um dos quaes ainda vive, que tiveram vida gloriosa em quanto os animou o trabalho do distincto estylista.

Não só nos seus escriptos passados, mas então, conhecemos o grande valor que indiscutivelmente possue. Não nos surprehendem pois os seus triumphos e rejubilamo-nos com elles com a alegria e sinceridade de bons e sinceros amigos.

N'um dos proximos numeros falaremos da impressão colhida em Os meus amores, agradecendo desde já as expressões affectuosissimas que acompanham a dedicatoria do livro, que o seu auctor nos offertou.»


Correio do Norte:―«Os meus amores.―Contos e balladas.―Trindade Coelho, o já conhecido e apreciadíssimo escriptor, acaba de publicar um livro de contos com o titulo acima indicado. É esta uma bella novidade para o nosso mundo litterario, onde Trindade Coelho de ha muito soube conquistar um logar dos mais distinctos, pelo seu bello talento e poderosas qualidades de escriptor.

Limitamo-nos por agora a dar esta simples noticia do apparecimento do novo livro, para depois escrevermos mais detidamente sobre elle.

Agradecemos ao nosso presadissimo amigo a delicadeza do seu offerecimento.»


O Globo:―«Os meus amores.―Mais um livro editado pela livraria de Antonio Maria Pereira. Intitula-se Os meus amores e subscreve-o o nome de Trindade Coelho.

[IV] Não o lemos ainda porque o recebemos agora; mas ha-de ser por certo trabalho de grande valor artistico, como invenção e como execução, porque Trindade Coelho é incapaz de produzir uma obra litteraria má. A sua educação litteraria está feita, e os seus numerosos trabalhos tão apreciados, tão portuguezmente escriptos, tão sentidos e tão espontaneos revelam qualidades de escriptor de raça. Elle tanto póde ser um jornalista eminente como é um contista original.

Os meus amores é uma collecção de contos e balladas. Conhecemos alguns capitulos, que são primorosos, mas carecemos de ler todo o livro para não errar na apreciação. Vamos lel-o com a convicção de que teremos de saborear um d'esses raros mimos litterarios que só os privilegiados de talento sabem offerecer aos seus leitores.»


Diario de Noticias:―«Os meus amores.―Contos e balladas.―Anunciámos, em tempo, o proximo apparecimento d'este trabalho, com que o brilhante contista e nosso collega do Portugal, o sr. Trindade Coelho, ia augmentar a collecção, já tão valiosa, das edições do sr. Antonio Maria Pereira.

O livro acha-se, emfim, publicado, e em nada desdiz do conceito que desde logo nos auctorisaram a emitir os elevados meritos litterarios do seu auctor, tantas vezes comprovados em numerosos escriptos anteriores.

Com uma observação escrupulosa, e um pittoresco estylo, d'uma pujança e d'uma riqueza não vulgares, sem attentados contra o bom gosto, nem rebeldias contra o bom senso, os contos do sr. Trindade Coelho são, a todos os respeitos, um verdadeiro primor, uma obra que ha-de entrar, sem hesitações, na acceitação do publico, e que ha-de ficar longo tempo, a attestar, n'uma formosa prova, a riqueza de um espirito, superiormente educado, ductil e promptamente malleavel.

Porque esses contos são a obra de um genuino artista, cuja maneira, simultaneamente facil e apuradissima, revelando a espontaneidade de uma fecunda phantasia, traduz e affirma a fina sensibilidade de uma alma delicadamente temperada, a viveza de um talento exuberante de vigor e de seiva.

Não póde entrar nos curtos limites de uma simples noticia, a mais desenvolvida critica d'esse trabalho, que tem, na proprio nome do seu auctor, o melhor e o mais seguro titulo de recommendação para obter do publico a consagração de um largo e legitimo successo.

Apenas acrescentaremos que abre o livro um encantador soneto de Luiz Osorio―preciosa chave de oiro, na realidade bem merecida por aquelle rico e primoroso escrinio de verdadeiras e puras joias litterarias.»


A Actualidade:―«Os meus amores.―Este nome é o de um novo livro da collecção Antonio Maria Pereira. Pelo titulo presume-se um volume de versos; mas não é, o que não quer dizer que n'elle se não surprehenda [V] legitima poesia. Trata-se de contos e balladas, originaes do sr. Trindade Coelho, um dos nossos mais apreciados e brilhantes escriptores.

Eis, muito resumidamente, as prendas que distinguem este primoroso contista:

Estylo correcto, elegante, vivo; descripções ricas de observação e attrahentes tanto pelo colorido como pelo esmerado da fórma; despidos de grandes artificios os entrechos, mas subjugantes pela muita naturalidade; o dialogo, em summa, admiravel pela singeleza e, sobre tudo, pela propriedade.

Com estes predicados o livro Os meus amores, do sr. Trindade Coelho, deve incontestavelmente ser de valor. E é. São encantadoras todas as narrativas que contém. Logo ao abrir depara-se-nos um Idylio rustico, que embriaga e predispõe para a leitura de todo o volume, onde se encontram quadros soberbos, reproduzidos do natural com um notavel poder de observação e que deixam o espirito suavemente impressionado. Leiam, e verão que não exageramos na opinião que ahi deixamos rapidamente exposta.

Ao auctor o nosso reconhecimento pelo mimo da offerenda.»


Correio da Manhã:―«Registar o apparecimento de um livro bom, linguagem elevada e singella, desartificioso e artistico, repositorio vasto de observação, vibrado por uma grande impressão pessoal e subjectiva, é sempre agradavel á chronica, n'este tempo sobretudo de litteratura gafada, ou de arte ainda litteraria quasi pornographica.

Os meus amores que amavelmente acaba de nos offerecer sr. Trindade Coelho é um livro d'esses. Collecção primorosa de contos e balladas, em que no mais despretencioso dos estylos nos conta recordações e idylios e nos mostra uma galeria rica de typos e de figuras cuidadosamente observados e primorosamente expostos.

O ultimo conto Para a escola, que d'essa bella collecção acabamos de ler, é encantador de verdade, de singeleza, de arte, e assimelha se notavelmente á maneira de Gustavo Droz.

Não é o logar nem a accasião de fazermos a critica do livro e a apreciação d'este novo, d'este debutante, que ao primeiro assalto parece estar já senhor da batalha.

É por isso que sinceramente o felicitamos.»


Vanguarda:―«Os meus amores.―O nosso collega, o sr. Trindade Coelho, que quasi só conheciamos pelos seus libellos accusatorios, acaba de nos enviar um livro primoroso com este titulo, no qual a feição carregada e sombria do agente do ministerio publico desapparece por completo, para nos deixar apreciar só o espirito finalmente delicado do homem de lettras conhecedor dos melhores processos de arte e verdadeiramente sabedor do seu officio.

Confessamos que nos apraz muito mais admirar este Trindade Coelho, [VI] que o outro que temos visto apertado dentro da negra vestimenta de agente do ministerio publico, que parece lhe oblitera ás vezes as suas excellentes faculdades.»


Primeiro de Janeiro:―«Os meus amores.―Acabamos de receber o formosissimo livro de contos «Os meus amores», de Trindade Coelho.

Não é ainda a occasião de pôrmos em relevo todas as qualidades litterarias, complexas e brilhantissimas, que se evidenciam n'este livro, demonstrando um dos talentos mais vivos e assignalaveis entre os mais illustres cultores da prosa portugueza.

Os contos por onde «Os meus amores» se repartem não são apenas maravilhas de linguagem, onde tão sómente se destaquem dextrezas e fulgurações do estylo: a acção que os anima constitue uma deliciosa galeria de quadros, aspectos intimos e exteriores da vida, colhidos em flagrante com uma extraordinaria subtileza e lucidez de observação e trasladados a uma fórma superiormente artistica, onde ha firmemente accentuados todos os caracteres de uma esplendida organisação litteraria.

É um livro vibrante e magnifico―adoraveis paginas intensamente ou delicadamente emocionadas e primorosamente escriptas, cuja leitura é um verdadeiro encanto.

As nossas cordeaes felicitações a Trindade Coelho, a quem agradecemos a gentilissima offerta do seu livro.»


Folha do Povo:―«Os meus amores.―Esta publicada em volume uma série de contos e balladas com que o sr. Trindade Coelho, o brilhante collaborador do Portugal, vem enriquecer a litteratura contista entre nós, hoje tão querida do publico, depois que os trabalhos de Fialho d'Almeida deram a esse genero litterario um valor até então mesquinho.

A primeira qualidade que notamos logo nos contos e balladas do sr. Trindade Coelho é um estylo muito seu, cheio de uma crystallina naturalidade, affastando-se completamente d'essas excrescencias de mau gosto, que ultimamente têm abastardado a lingua portugueza,―prova da superioridade intellectual do escriptor de que nos occupamos―, visto que não mira a uma falsa gloria, conquistada facilmenle pelas excentricidades de estylo, que são hoje uma verdadeira mania entre alguns escriptores da chamada geração moderna.

O sr. Trindade Coelho escreveu a sua prosa obedecendo á espontaneidade das suas impressões, ao seu sentir, sem deixar de se revelar um artista, porque nunca a phrase lhe sae banal, nem tão pouco envolvida em ouropeis de mau gosto litterario.

E no entanto encanta-nos,―prova de que está alli um primoroso escriptor, um espírito delicado, reproduzindo todos os cambiantes da natureza por uma fórma de observação, que não é d'esta nem d'aquella escola. É simplesmeate sua, individual.

Notamos mesmo um progresso no livro do sr. Trindade Coelho; porque [VII] as suas primeiras producções litterarias ressentiam-se de uma tal ou qual preoccupação de effeito no modo de construir a phrase. Hoje, o escriptor adquire a independencia da sua maneira, do seu processo, e feito a tirar decorre fatalmente d'essa independencia, visto que os seus quadros obedecem apenas a uma rigorosa e fiel reproducção do que o artista observa em volta de si.

Certamente que o publico lerá com encanto o novo livro do sr. Trindade Coelho, pelo que felicitamos o auctor, e―podemos mesmo dizer―a litteratura portugueza.―Silva Lisboa

Diario Illustrado:―«De tempos a tempos chegava-nos do Atemtejo um periodico que não deixavamos nunca de lêr pelo fino gosto litterario, pittoresco e moderno, que se revelava em todos os seus artigos, incluindo os politicos. Esse periodico era redigido por Tindade Coelho, cujo talento conheciamos desde Coimbra, e cuja individualidade litteraria viamos agora accentuar-se com um vigor de originalidade verdadeiramente notavel.

De quando em quando, Trindade Coelho obsequiava-nos com um artigo para o Diario Illustrado e, vindo establecer residencia em Lisboa, algumas vezes tivemos a honra de receber n'esta redacção a sua visita, sempre agradabillíssima para nós, porque a sua conversação scintillante aligeirava as nossas pesadas horas de trabalho.

Pois bem, Trindade Coelho acaba de reunir n'um volume―que faz parte da collecção Antonio Maria Pereira―os seus deliciosos contos, cheios de observação, de verdade, de simplicidade artistisca, que é, a nosso vêr, suprema expressão de belleza n'este genero de composições litterarias.

Os meus amores são um bello livro, em que o estylo se não contorce atormentado, como em tantos outros, em que os rebuscados esplendores da forma litteraria denunciam uma carencia absoluta de espontaneidade. Tudo alli deriva naturalmente, tanto na sequencia logica dos caracteres e dos episodios, como na contextura facil, mas colorida, dos períodos.

N'uma palavra, Os meus amores são a obra de um artista, de um homem que sabe do seu officio, e que tem uma individualidade bem definida por traços profundos de verdadeira originalidade.»


Voz Publica:―«Os meus amores.―Trindade Coelho, innegavelmente um talento de primeira agua, acaba de brindar a litteratura portugueza com um excellente livro de contos subordinado áquelle titulo e que constitue o duodecimo volume da elegantissima Collecção Antonio Maria Pereira.

Contos e balladas é o sub-titulo do livro, e muitos ao lêrem-n'o julgarão que se trata de versos; mas não, é em prosa, em prosa vernacula, correcta e vibrante que estão escriptos os bellos contos de que se compõe este livro, digno a todos os respeitos de ser lido.

[VIII] São todos elles uns contos ligeiros, encantadores pela espontaneidade e verdade dos seus typos e das suas situações, lembrando um tudo-nada os formosos typos de aldeia, tão magistralmente desenhados pelo mallogrado auctor da Morgadinha dos Canaviaes e dos Fidalgos da Casa Mourisca.

Lemos d'um folego o magnifico livro, e ninguem que o comece a lêr deixará de o fazer como nós; tão attrahente é a fórma por que Trindade Coelho conduz todos os ligeiros contos de que elle se compõe, que sem querer, sem se sentir mesmo, chega-se ao fim e fica-se como triste d'elle ter acabado.

Todos magnificos, dizemos, mas se alguns ha que mais nos prendessem, foram os que se intitulam Typos da terra uma galeria curiosa de typos, e A mãe, um conto de natureza, simples e commovente na sua simplicidade, e notavel pela sua originalidade.

Recommendar o livro de Trindade Coelho é prestar um serviço aos nossos leitores.»


Ordem do Dia:―«Os meus amores.―Este é o titulo do 12.º volume da collecção Antonio Maria Pereira, innegavelmente a publicação mais elegante, mais barata e mais interessante do paiz.

Os meus amores são uma serie de contos e balladas, em prosa, devidos á penna d'um moço talentosissímo, de ha muito conhecido nas lides do jornalismo, Trindade Coelho, mas que ainda não lançára ao mercado um livro; com este debuta o auctor, e é uma estreia auspiciosissima a sua.

A leitura do volume, longe de fatigar, faz-se com agrado, e n'elle é cultivado um genero―o de contos, alguns á maneira de Gustave Droz, que prendem e interessam o leitor em todo o sentido.

Foi gratissima a impressão que elle nos deixou no espirito e esperamos que Trindade Coelho continue a brindar o publico com as suas bellas producções, porque estamos certos de que quem lêr Os meus amores será com sofreguidão que esperará novo volume do distincto escriptor, tal é o encanto da sua escriptura».


O Sorvete, (com o retrato do auctor):―«Dr. Trindade Coelho.―Mais uma prova do seu brilhantissimo talento! Mais uma vez justificada a alta competencia e finissimo espirito de escriptor disctinctissimo!

O novo livro de Trindade Coelho,―Os meus amores―contos e balladas―editada pela casa Antonio Maria Pereira, de Lisboa, é, no dizer dos entendidos em litteratura,―uma verdadeira joia.»


O Espozendense:―«Os meus amores (contos e balladas) por Trindade Coelho.―Faz parte este volume da interessantissima collecção Antonio Maria Pereira, tão bem acceite do publico, pela superior escolha das obras publicadas e pela modicidade extraordinaria dos seus preços.

[IX] Os meus amores é um precioso agrupamento de contos, alguns ineditos, outros já conhecidos, e que Trindade Coelho espalhara com applauso por differentes jornaes do paiz. Decorridos quasi todos em plena aldeia trasmontana, cujos costumes o auctor conhece de sobra, pois é natural de Traz-os-Montes, e foi durante alguns annos, delegado do procurador regio n'uma cidade de provincia―os contos d'esta collecção tornam-se sobretudo notaveis pela propriedade e pela fidelidade da acção, verdadeiros, nitidos, reais, palpitando da côr propria da paizagem, vivendo da vida natural, intima e intrinseca, dos personagens e das cousas.

Entre as nossas obras litterarias originaes, Os meus amores merecem, pois, um logar á parte, não como uma estreia auspiciosa, que o nome de Trindade Coelho é já demasiado conhecido de todos quantos se interessam pela litteratura nacional, mas como a poderosa affirmação de um prosador elegante e de um contista distincto, no meio da grande maioria da chata vulgaridade indigena.

Os meus amores é, em summa, um livro de valor, bem cabido nas mais escolhidas bibliothecas.»


O Portuguez:―«Os meus amores.―Delicioso titulo de um livro delicioso.

O livro é uma collecção de graciosos contos, editorada pelo sr. Antonio Maria Pereira; e o auctor é o nosso collega do O livro é uma collecção de graciosos contos, editorada pelo sr. Antonio Maria Pereira; e o auctor é o nosso collega do Portugal, sr. Trindade Coelho, que, nos ocios da magistratura, de que é digno representante, cultiva as lettras com desvelado amor.

Em Coimbra, estudante ainda, era já litterato apreciado, collaborando, com applauso dos mais doutos, em jornaes e revistas, que ha mais de dez annos tornaram o seu nome festejado e querido. Hoje, reune ao seu título de jornalista a invejavel nomeada de contista esmerado, e brinda as lettras portuguezas com um volume, que está tendo a mais justa e lisonjeira acolhida.

O primeiro conto do livro, Idylio rustico, não obstante ser agora publicado pela primeira vez, cremos nós, é já nosso conhecido, porque appareceu manuscripto n'um concurso litterario da extinta Associação dos jornalistas, sendo premiado. Depois da consagração de um jury, terá agora a consagração do publico.

Depois do Idylio rustico, vem o Sultão, um quadro magnifico da vida campesina, notavel de simplicidade e graça; e a Ultima dadiva; e os Preludios de festa; e os Typos da terra; e as Balladas; e a Tragedia rustica; e a Mãe; e os Arrulhos; e as Batalhas domesticas: outros tantos primores, que ás vezes nos fazem lembrar as deleitosas e serenas paizagens de Daudet.

Agradecendo ao auctor a gentileza da sua offerta, congratulamo-nos por não haver ainda expirado entre nós a litteratura san, que, ou nos desperte o sorriso ou nos obrigue a lagrimas, não nos deixa no espirito a impressão doentia das nevroses litterarias...»


[X] Jornal da Manhã, Porto:―«Os meus amores.―Mais um volume acaba de ser publicado da collecção Antonio Maria Pereira, por sem duvida a mais elegante, a mais escolhida e a mais economica bibliotheca que se publica em Portugal.

É o primeiro livro de Trindade Coelho, Os meus amores, contos e balladas, em que o talentosissimo escriptor acaba de reunir todos os seus contos dispersos por varios jornaes, e alguns ineditos.

Do primeiro ao ultimo, os contos que compõem Os meus amores são specimens no genero, porque, além de constituirem uma esplendida galeria de quadros intimos, de retratos, de typos, são a confirmação d'uma verdade já por nós ha muito acceite: que o seu auctor tem todos os requisitos d'um escriptor de primeira ordem; estylista vibrante, correcto e sempre elegante.

E se formos a escolher o melhor d'hesses contos, ver-nos-hemos em serios embaraços, porque são todos por igual deliciosos, constituindo a sua leitura um verdadeiro encanto; entretanto, se ha que mostrar predilecções por algum d'elles parece-nos que os melhores serão A Mãe e Para a escola, aquelle uma delicada e emocionante historia arrancada flagrantemente á natureza, e este saudosas recordações d'um passado que não volta.

A edição, escusado é dizel-o, é nitidissima.»


O Tempo:―«Os meus amores.―Este livro teria vindo melhor nas noites invernosas para serões ás lareiras crepítantes:―as faíscas d'ouro subindo no tecto, o vento zenindo fóra açoitando a chuva, e dentro, no conforto recolhido, gosar-se o contraste das paizagens alegrdas pelo sol, espelhadas na agua rumorosa, com gorgeios e trinados d'aves, paizagens que o sr. Trindade Coelho sabe encantar com a delicia suave e subtil d'illudidor ameno. Mas não se póde aconselhar o leitor a que se prive de saboreal-o desde já, tanto mais que os tempos vão agoureiros para a arte de manancial, e os que a cultívam teem de separar-se dos estragadores d'Ella e das cabeças quasi vasias que expremem e segregam o pus nauseabundo do sadismo mediocre.

Estes estão agora entretendo o publico arrebanhado para saborear com prazer as estapafurdices atoleimadas, e que os eguala―o vingador―ao imbecil que escreveu o Senhor Dupont e aos auctores das Pimentinhas e Berbigões Ardentes.

Que o livro de glorificadora arte do sr. Trindade Coelho seja o perfumador dos excrementicios e appareça em plena luz nas mesas e nas familias dos que compravam os outros, é o voto que faz o alinhavador d'estas linhas corredias, na certeza de que recommenda á attenção um artista recolhido que sabe ter força nos traços tenues e meias tintas dos seus quadros, que capricha em suavisar idylicamente as dôres vulgares da vida acceite, da materialidade animal, dourando-as com recantos de natureza chilreante. Que me perdõem insistir na impertínencia: mas, o que no livro [XI] mais particularisa o talento de quem o assigna é a comprehensão das paizagens, o sabel-as colorir, animar, pôl-as ante os olhos que lêem.

As grandes dôres obscuras e sinceras, as brandas affeições, amisades arreigadas, a placidez do recanto habitado, os amores simples sustentados por ingenuas crenças s suavisada fé, tudo o que a aldeia tem de ameno, d'attraente, de pittoresco, de consolador, os seus ridiculos mesmo, vestindo atitudes de parodia em theatrinho de curiosos, tudo reveste bem o sr. Trindade Coelho, e aligeira com um optimismo de bom humor, sublinhando aqui e acolá umas notas reaes, bem apanhadas, como se diz, e que refrescam o rosto n'um aberto sorriso de ventaróla. O livro encanta porque traz todo o aroma da aldeia onde o auctor encerrou por annos a sua nostalgia―a peior de todas: nostalgia de delegado!―apertando os vôos do seu espírito d'artista que ama pairar com a fantasia para o longiquo, para o que se Imagina, para o Distante, o Inaccessivel, o Insaciavel. Sonhos e fantasias que morreram e se dispersaram como o fumo e as cinzas das fogueiras a que se aqueceria nas noites uivantes do inverno trasmontano; mas que deixaram sementes de recordação e de saudade d'onde brotou o livro, escripto decerto nas horas feriadas do trabalho arido, com a documentação da natureza que vivifica, com a elaboração pachorrenta de quem não tem pressa e se compraz na arte libertadora.

Especificar um ou outro conto não é depreciar os não citados, mas dar preferencia pessoal―e talvez peccadora―ao Idylio rustico, á Ultima dadiva, á Mãe, ás Batalhas domesticas, que fecham o livro e deixam entrever no auctor um desejo de animar os personagens tanto como anima a natureza onde elles sentiram. Ha contos nos Meus amores que fazem lembrar um Cladel menos retumbante e por isso mesmo livram quem lê da patada epica do que fez Créte-Rouge e Ompdrailles.

O sr. Trindade Coelho é um escriptor tão distincto quanto aclarado pelo jorro d'arte que vem de ha muito confundindo os convulsionarios do talento; os serenos no desdem; os enthusiastas; o que, despindo o metaphorico, quer significar que elle está em posição artistica onde decerto o seu talento e o seu trabalho continuarão a chamar attenção e respeito.―M. Caldas Cordeiro


Antonio Maria, (com o retrato do auctor, desenho de Raphael Bordallo):―«Os meus amores por Trindade Coelho.―A livraria portugueza tem tido uma enchente, como raramente lhe succede, na ultima quinzena. Depois do exito do romance de Abel Botelho e do livro de memorias de Luiz Palmeirim, veio o volume de contos de Trindade Coelho, com a amavel denominação de Os meus amores.

Aqui o temos, já todo aberto, já todo lido... É originalissimo, agradabilissimo o modo de escrever, de descrever, de dizer, de contar, que usa o auctor d'este bello livro,―agradabilissimo contista, escriptor originalissimo, cujo nome a bibliographia regista hoje, tão notavelmente, como o jornalismo de ha muito o registara.

[XII] A quem o lêr, garantimos, sob a palavra de honra do nosso gosto, algumas horas muito bem passadas, passeadas por aquellas paizagens e recantos provincianos que elle pinta, tão real e verdadeiramente como se lá se estivesse; em companhia d'aquelles typos que elle retrata, tão photographicos, tão nitidos, que é estar a gente a vêl-os, a ouvil-os, a falar-lhes...

Os meus amores, meus amores, que encanto!»


O Tempo:―«Os meus amores.―É como Trindade Coelho intitula a collecção de formosos contos, publicados em volume, editado pela livraria do sr. Antonio Maria Pereira.

Ha muito tempo que conhecemos e apreciamos o talento de escriptor de Trindade Coelho, desde quando lhe lêmos as suas producções litterarias n'um jornal de Coimbra, e que eram as primicias de trabalhos mais primorosos, como são hoje os contos a que nos vimos referindo.

O livro de Trindade Coelho é dos raros que se lêem da primeira á ultima pagina sem um momento de cansaço ou de fastio. O espirito do leitor delicia-se seguindo todas aquellas scenas campezinas, d'uma singeleza tão commovente, e que nos Meus amores são descriptas n'uma forma em que se revelam todas as qualidades d'um distincto e notavel escriptor. Só póde apreciar bem o merito d'aquelles contos quem souber quanto cuidado ha no labôr paciente do artista para conseguir dar ao estylo o tom de naturalidade e de espontaneidade, que se requer n'este genero de pequenas novellas, talvez o mais difficil de todos.

Não nos demoraremos a falar dos Meus amores, que contém preciosas joias litterarias, e ao qual está, sem duvida, destinado um honroso logar na nossa litteratura contemporanea.»


Correio Elvense:―«Trindade Coelho.―Este nosso amigo e festejado escriptor publicou agora o seu primeiro livro de contos e balladas que deu o titulo: Os meus amores, editado pela acreditada livraria de Antonio Maria Pereira.

Trindade Coelho, que hoje occupa um proeminente logar no jornalismo da capital, fez ainda ha pouco algumas das suas melhores armas na imprensa de Portalegre, onde creou dois jornaes, um dos quaes ainda vive, que tiveram vida gloriosa em quanto os animou o trabalho do distincto estylista.

Não só nos seus escriptos passados, mas então, conhecemos o grande valor que indiscutivelmente possue. Não nos surprehendem pois os seus triumphos e rejubilamo-nos com elles com a alegria e sinceridade de bons e sinceros amigos.

N'um dos proximos numeros fallaremos da impressão colhida em Os meus amores


[XIII] O Dia:―«Os meus amores.―Se fosse no seculo passado, os fazedores de proemios, prologos e conversações preambulares com os pios leitores, á falta de jornalistas que noticiassem ou criticassem, por certo aproveitariam a occasião para sobre o nome do auctor glozarem varios elogios ao livro, visto que aquelle se chama Trindade e é ao mesmo tempo um poeta sincero, um escriptor de raça, e um observador attento, qualidades que se equilibram por tal sorte, que do conjuncto nasceu uma obra formosissima, animada de verdadeira commoção, sentida nas suas mais pequenas minucias, sempre elevada, sempre humana e sempre artista.

A vida e a poesia trasmontana encontram-se a cada passo n'esta reunião de contos, que o sr. Trindade Coelho dialogou com um cuidado meticuloso, copiando do natural, e em que os personagens foram surprehendidos nos seus labores de cada dia ou nas suas intimas cogitações.

Não temos espaço nem tempo para nos alongarmos na noticia d'este livro, e por isso nos limitamos a recommendal-o como leitura attrahente, como obra d'arte tratada com esmero, embora nem sempre com a mesma egualdade nem com o mesmo folego, como uma grande licção litteraria aos fazedores de naturalismo brutal.

Ao auctor agradecemos a remessa do seu livro, ficando fazendo votos para que elles sejam tantos, que afoguem os autos e libellos em cujo meio o magistrado tem de viver, e d'onde sae amiudadas vezes para nos provar que quando se é artista lá de dentro, o contacto dos escrivães não prejudica a indole do escripior.»


Novidades,(entrevista com João de Deus ácerca dos novos):―«Litteratura nova.―Eu conheço limitadamente os novos, porque não leio jornaes, e não os leio porque os litterarios occupam-se na propaganda da immoralidade, e os politicos na propaganda do suicidio, e na do jogo das loterias, que seduz principalmente os engeitados da fortuna, mais sequiosos de domarem, n'um acaso da sorte, as agruras da sua vida. E emquanto o rico joga o superfluo, o pobre joga os trinta réis de tres quartos d'um pão.

Mas aqui está o livro do Trindade Coelho, que me encheu de verdadeira alegria! É um rapaz de talento! O que é preciso é que elle dispa a toga, que lhe impede os movimentos. Não o conheço, mas dizem-me que trabalha muito. Já leu o Sultão? Se ainda não leu, não o deixo sair de cá sem lh'o ler.

―Li já todo o livro.

―E depois, meu amigo, nós andavamos precisados d'uma coisa casta, onde fossemos purificar o espirito d'essas taes observações physiologicas, e não sei que mais, que por ahi apparecem todos os dias. O livro do Trindade Coelho tem o que eu chamo graça, e que não posso bem definir-lhe. Olhe: alli está aquelle quadro, em que os traços são correctos e a execução perfeita, mas não tem graça; e aqui, este, uma bella cabeça de rapariga, a physionomia dôce, o olhar abstracto: este tem graça. Até a [XIV] Virgem Maria se chama cheia de graça, e foi mãe de Deus por ter graça. A graça na litteratura é tudo, mas é muito rara.»


Novidades:―«Novellas rusticas.―Trindade Coelho.―Os meus amores (contos e balladas.)―Lisboa, livraria de Antonio Maria Pereira―1891.

No seu penultimo artigo do Temps, dizia M. Anatole France, esse sceptico amavel e pirrhonico, que tem sido o terrivel sapador de todas as doutrinas axiomaticas da critica: «Il y a beaucoup moins de lecteurs pour les nouvelles que pour les romans, par cette raison suffisante que seuls les délicats savent goûter une nouvelle exquise, tandis que les gloutons dévorent indistinctement les romans bons, médiocres ou mauvais.»

O conto moderno é como o romance, essencialmente analytico e psychologico, escripto em estylo technico, e destinado sobretudo a apresentar uma imagem precisa de qualquer meandro torcicolado da alma humana. A litteratura contemporanea tem procurado, quasi invariavelmente, os seus themas entre os vicios, as paixões e todas as energias depravadas do coração. A arte do sr. Trindade Coelho é muito differente d'isso, porém. O seu idylico livro de contos e balladas, aberto sobre um fundo de verdura reluzente, amorosamente evocado da paizagem trasmontana, e habitado por heroes simples, colhidos com intencional singeleza no meio do seu viver provinciano, não tem, decerto, parentesco nenhum com os volumes carimbados com a etiqueta actualmente em moda. É natural até que o leitor, habituado aos livros dos escriptores realistas, sinta uma profunda sensação de espanto ao emprehender a leitura dos Meus amores, duzentas paginas suaves e simples, sem pedantescas pretenções a passarem como tratado didactico de psychologia.

Disse-se de Julio Diniz que elle era principalmente um paizagista, e que as suas figuras só serviam para dar expressão e vida á paizagem.

O sr. Trindade Coelho possue, egualmente, a sensação visual particularmente desenvolvida, e as suas descripções são tambem, como as do auctor das Pupillas do sr. Reitor, magicamente poetisadas, como que apercebidas de longe n'um esbatido vago de sentimento e de saudade. Chega-se ás vezes a ter a illusão de que o artista está alli, paginas a dentro do seu livro, fazendo reviver no pensamento a alacre impressão das madrugadas lactescentes e dos poentes doirados da sua aldeia natal, cuja lembrança, elle conserva sempre viva, como nos versos de Salvador Rueda:

Por donde voy me sigue como memoria tierna
tu imagen que en mi pecho conduzco en un altar;
¡y mi cerebro canta como una estrofa eterna
el coro que tus árboles entonan á la mar!

Ahi teem, para prova, esse trecho d'um descriptivo de manhã aldeã, quando o sol começa a subir na linha ainda indecisa do horisonte:

[XV] A esse tempo, no ceu alto e lavado a estrella de alva fenecera por fim, e o horisonte começava de carminar-se ao de leve. Por todo o ceu em cupula, a luz fresca e viva da manhã vibrava harmonias estranhas que iam despertar tudo, a côr da paizagem e a musica dos ninhos, cantigas de perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos. Manhã de verão, serena, tranquilla, dulcissima. Ia pelo ar um movimento extraordinario de azas―passarada alegre que saía agora dos ninhos e voava a matar a sede á borda das ribeiras, andorinhas que deixavam as suas casinholas em reconcavos de rocha e tomavam para hortejos convísinhos onde a vegetação era mais rica de seivas e mais facil a presa dos insectos, perdizes gralhadoras que iam de monte em monte, tordos, poupas, melros. Nos vinhedos das encostas, por entre os renques verdejantes, gente em mangas de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos em torcicollos, viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo machos carregados de taleigos, e berrando-lhes cada cho! que se ouvia na outra ladeira. Já nas povoações proximas, sinos chamavam para a missa de alva ou tocavam a Ave-Marias. Nas quintas casaes fumegavam os tectos, dizendo horas de almoço. De modo que o sol quando rompeu, solemne e triumphante no ceu immaculado, encontrou muita vida pelos campos, toda a Natureza accordada para a labuta interminavel do dia.»


«No notavel estudo de psychologia litteraria de M. Fr. Paulhan sobre a descripção pittoresca, então habilmente apreciados os elementos constitutivos da pintura do meio, em todas as suas maneiras diversas na qualidade e na intensidade.

«Chama-se imaginação sensivel», diz o distincto observador, «o acto pelo qual nós nos representamos um objecto ausente, e esta representação, como tem sido ha bastante tempo notada, não é,―principalmente se considerarmos só certas classes de imagens,―senão uma copia enfraquecida d'uma sensação. Por exemplo, se eu trato de me representar um momento, um quadro, uma estatua, qualquer coisa que imagino, se as minhas recordações são bastante nitidas, é uma especie de copia enfraquecida da sensação que eu terei, se vi realmente o monumento, o quadro ou a estatua. A imaginação, tomada até no sentido restricto que lhe damos aqui, varia muito d'uma pessoa para outra, quer em intensidade, quer em qualidade. Por um lado, certas pessoas teem as imagens, as representações muito mais enfraquecidas, mais vivas, mais concretas; em uma palavra, as suas imagens approximam-se muito da sensação; outras, pelo contrario, são inclinadas para as idéas abstractas e teem necessidade d'um esforço para se representarem as sensações d'uma maneira um pouco nitidas. Tem-se reparado que a visão mental, nitidissima em geral nas creanças e nas mulheres, torna-se muito fraca e por vezes desapparece nas pessoas preoccupadas sobretudo de ideias abstractas, ou habituadas a não exercer a sua imaginação visual. Eis uma pequena experiencia indicada por Wundt, que, mostrando as analogias entre a imagem e a sensação, [XVI] parece pôr em relevo tambem as differenças individuaes com relação á intensidade com que a imagem concreta é percebida. Sabe-se que quando fixamos o olhar por algum tempo n'um objecto corado, se voltamos os olhos para uma superficie parda, vemos uma mancha corada da côr complementar da primeira. Se o objecto era vermelho, a mancha será verde, e reciprocamente; se o objecto azul indigo, a mancha será amarella, etc. Ora é possivel, mas isto não succede a toda a gente, perceber esta côr complementar não só depois de ter fixado um objecto corado, mas simplesmente depois de o ter imaginado. Póde-se, por exemplo, pensar n'uma cruz vermelha: lançando em seguida os olhos para um papel pardo, deve-se ver uma cruz verde, se ha uma boa imaginação visual.»

«Essa imaginação parece tel-a o sr. Trindade Coelho. A vivacidade, tonificada quiçá por um poucochinho de nostalgia, do seu descriptivo, que nos dá conjunctamente a impressão da forma, da côr, do som, e até ás vezes do aroma, representa um phenomeno especial de evocação sensacional. E o maior encanto da sua obra é esse, e, depois d'esse, a intima satisfação que faz aflorar, aos labios do leitor inteligente, um sorriso de doce commoção, a cada singelo episodio das suas narrativas, todas frescas e sadias, e cujo menor merito não é, decerto, o de serem escriptas n'uma linguagem airosa e despreoccupada, mas tersa e legitimamente portugueza.

O livro do sr. Trindade Coelho não é para ser sujeito a longas analyses introspectivas, o papel da critica perante Os meus amores é bem facil, porque ella deve quasi cingir-se á affirmação do seu applauso incondicional, ou ao registo da repulsão do processo do escriptor, o que póde muito bem representar uma livre depravação de gosto.

Por mim confesso sinceramente que me deixou no espirito a mais amavel recordação, para a oxygenada, a leitura d'essas bellas novellas rusticas, todas impregnadas d'uma ideal graça campesina, tilintando d'um ecco amoravel de arroio murmurante, que discorre mansamente por entre margens baixas, bordadas de sécias e papoilas: e, para a minha sympathia, desejo mencionar eapecialmente o conto que abre o livro e o caso do Sultão.―Armando da Silva


Tim Tim Por Tim Tim:―«Um grande poder d'observação e uma enorme justeza d'expressão, constituem, quanto a mim, as duas essenciaes qualidades litterarias de Trindade Coelho, puras auxiliares da sua alma de verdadeiro artista, aberta á comprehensão ampla da natureza, e fundindo os phenomenos, as coisas e as creaturas n'um conjuncto nitido que se desata em descripções opulentas de vida e de calor, fulgurantes d'energias dominadoras, prodigas d'imagens que o melhor crystal de Veneza não teria reflectido tão bem, avigoradas em onomatopeias possantes que prendem o espirito mais inculto e o obrigam, alli, a fixar e a comprehender o objecto que o auctor quiz frisar.

E essas qualidades resaltam brilhantemente de todos os contos que [XVII] compõem Os meus amores, realçadas ainda pela fina emotividade que o delicado sentir do auctor transmittiu a cada scena onde o coração tem parte, ou seja o coração de qualquer d'aquelles dois pequenos do Idylio rustico, ou o da Russa, a bella cabra que no meio de mil angustias de mãe morre junto ao filhinho. E se o querem surprehender a elle proprio, a Trindade Coelho, em flagrante de uma ternura honesta, viva e sentida, vejam o affecto que irradia d'aquelle Para a escola, quando falla da velha e boa criada que o levou ao mestre das primeiras lettras.

Se das coisas affectivas, que mais o namoram, e das descripções naturaes, que mais o apaixonam, Trindade Coelho desce a brincar um pedaço caricaturando uns typos com tanta sobriedade de charge que mais nos parece estar fazendo retratos, saem-nos então figurões como os da villoria da Comedia na provincia, que entreteem a tarde na praça a dizer mal uns dos outros. Tão verdadeiro nos croquis como nos habitos. E quando aos typos pode juntar um estudo de costumes, aquella Vespera da festa exemplifica vantajosamente o que elle sabe fazer.

No fim do livro, foi para mim surpreza aquelle excerpto das Batalhas domesticas, onde me pareceu descobrir uma novissima orientação do auctor, inspirada porventura n'uma atmosphera densa d'innovações que vae por ahi. Claro que o seu talento adapta-se mais essa fórma com a malleabilidade com que a tudo se sujeita, mas se eu tivesse a caracteristica litteraria de Trindade Coelho, evidenciada em tantos escriptos, não a sacrificaria a coisa alguma.

O que o livro é, em summa, é um conjuncto de bellezas que tem sido largamente apreciado pelos fanaticos da Arte; e oxalá seja apenas a promessa de muitos outros, que pennas como aquella não devem calotear-nos na contribuição que nos devem.

―Mas,―perguntou-me um dia d'estes alguem―porque Os meus amores, e não qualquer outro titulo?

Não respondi. E demais eu sei porque deu Trindade Coelho esse nome ao livro onde ha tantos trabalhos de tempos que lhe são saudosos e em que lhe foi grande parte da alma, da sua bella alma de rapaz que nenhuma lama d'este mundo é capaz de conspurcar.―Santos Gonçalves


Revolução de Setembro:―«Os meus amores, contos e balladas por Trindade Coelho.―Um livro peregrino, que se lê com encanto e que nunca mais se esquece. É um talento e é um artista quem escreve assim. Uns contos singelos, attrahentes, delicadissimos, admiraveis de observação e de honesto realismo. Esbocetos apenas; mas que admiravel simplicidade de colorido em alguns delles e que tons inapagaveis de verdade!

Uma bella obra d'arte e uma altiva lição.

Alli está como se póde chegar ao naturalismo na litteratura, sem estropear a lingua e sem chegar ás torpezas da pornographia. Para attrahir, para ser original, para impôr a supremacia do seu talento, para conquistar o applauso sincero dos que lêem, Trindade Coelho não precisou de escrever [XVIII] extravagancias, nem de escalavrar pustulas, nem de escancarar bordeis.

Ahí fica uma rapida noticia do livro. Voltaremos a fallar d'elle, se o tempo nos chegar para a homenagem que desejamos prestar ao seu auctor.»


Correio Elvense:―«Os meus amores.―Com poucos dias d'intervallo as lettras portuguezas contaram dois ruidosos successos de livraria.

Depois de apreciar o Barão de Lavos, obra de analyse, de profunda observação, resentida do exaggero do naturalismo e do caracter quasi scientifico que actualmente se pretende imprimir aos livros, que devem ser exclusivamente litterarios, mas que, não obstante este pequeno senão, confirmou plenamente todas as esperanças que o nome de Abel Botelho creára com os seus livros anteriores, a critica tem de render respeitosa homenagem ao trabalho d'um outro escriptor novo como aquelle e como elle egualmente distincto pelos brilhantes dotes do seu espirito, pela sua notavel orientação litteraria e pelo esplendor de fórma que caracteriza todos os seus escriptos, mesmo os mais despreoccupadamente feitos.

Sinto um delicioso prazer de consciencia ao traçar estas linhas. Momentos como este são mesmo os unicos oasis em que se reconfortam os que, dia a dia, esgotam o melhor das suas faculdades na faina improductiva e ingloria do jornal.

Tracto de apreciar o trabalho d'um amigo, d'alguem a quem me unem intimas relações de confraternidade e sympathia e ao ter de formular o meu juizo conheço que posso manifestar o mais incondicional louvor e applauso sem que se suspeite que as minhas palavras são reflexo d'um sentimento pessoal, mas sim a expressão exacta e verdadeira d'uma admiração justamente sentida, solidamente baseada.

O livro a que me refiro intitula-se: Os meus amores. E em tudo corresponde ao encanto d'este titulo.

Com que saudade li as ultimas paginas!

Por vezes desejava espaçar essa leitura para demorar o delicado prazer que sentia, n'outras precipitava-a soffrego de admirar a naturalidade das descripções, a limpidez e o crystallino do estylo emocionante e simples, tão delicado e ao mesmo tempo tão poderoso que dá vida aos mais diversos sentimentos desde o pavor do remorso do assassino José Gaio, até á recordação saudosa e terna que o auctor sente do primeiro dia em que entrou na aula d'instrução primaria da sua modesta aldeia.

Dando a impressão singela e despretenciosa que me cansaram Os meus amores, não vou referir-me demorada e especialmente a cada um dos pequenos quadros que formam esse livro verdadeiramente consolador. Na epoca actual quando os vicios da sociedade e a decadencia dos nossos dias nos gravam no espirito, a cada hora, um carimbo de desanimo e descrença, quando a litteratura, obedecendo á vertigem mais do que nervosa, [XIX] allucinada, que caracterisa o fin de siècle, cria as escolas mais extravagantes que se comprazem em baralhar todas as ideias, em apedrejar as normas mais impeccaveis e até agora consagradas da arte, e em descrever todos os aspectos da natureza com as palhetas mais escuras e muitas vezes asquerosas, sente-se conforto, adquire-se animo, desannuvia-se o espirito ao vêr que ainda ha alguem, a quem sobeja talento e tenacidade, que escreve 200 paginas de prosa sã, eminentemente sentida, deliciando-se na descripção das scenas mais simples e tocantes, na apotheose da natureza em toda a sua magnificencia e no convívio da vida campesina, tão cheia de sinceridade e de encantos, tão livre das convenções e pretenciosidades que dão um tom falso e mentido aos sentimentos da sociedade em que vivemos.

Disse em cima que não me alongaria no esmiuçar de perfeições de cada um dos contos e balladas que formam Os meus amores. Não representa este proposito ideia de menos consideração pelo livro ou por quem com tanto amor o escreveu. Ao contrario, sinto que não posso, a não transformar este artigo n'um hymno laudatorio, referir-me especialmente a cada um d'aquelles contos e balladas. Mais do que este motivo domina-me o de não poder alongar demasiadamente a apreciação que estou fazendo.

Muitas das paginas que Trindade Coelho reuniu no seu livro já as haviamos lido e simultaneamente admirado, publicadas em differentes jornaes. Como escriptor conheciamos tambem o primoroso estylista dos Meus amores pelos seus trabalhos jornalisticos, já na bohemia coimbrã, já em pequenas folhas de provincia e ultimamente nos jornaes da capital, trabalhos em que elle empregava o escrupulo e a correcção que nunca abandonam os verdadeiros artistas.

Pelos seus trabalhos litterarios ha muito que formára a opinião de que elle se podia alistar sem desdouro ao lado do Conde de Ficalho, de Fialho d'Almeida e de Teixeira de Queiroz que, no meu parecer, são, em Portugal, os mais distinctos escriptores contemporaneos d'este genero, na apparencia tão ligeiro, mas no fundo tão complexo e difficil, a que se denomina: Contos.

A leitura do recente livro enraizou-me mais a opinião formada.

Pelo sentimento descriptivo, pela verdade dos typos, pela naturalidade do dialogo, e pela modalidade do estylo que se apropria sem o minimo esforço a todas as impressões que pretende transmittir, o auctor dos Meus amores prova que não desconhece nenhum dos segredos do genero de litteratura que tão brilhantemente cultiva, e que não é inspirada na amizade a opinião dos que, não obstante elle terçar agora quasi as primeiras armas, o consideram já como um escriptor distinctissimo e n'um futuro muito proximo um mestre consagrado.

O livro abre com um soneto formosissimo e nem podia deixar de ser assim desde que se saiba que o firma Luiz Osorio. Portico apropriado ás bellezas que nas paginas que se seguem se accummulam com uma riqueza oriental.

[XX] Não obstante o meu proposito de não me referir nomeadamente a nenhum dos pequenos quadros, não posso deixar de dizer rapidamente da impressão que me causou a Ultima dadiva, um primor de sentimento, uma pagina emotiva arrancada em flagrante a uma das scenas em que tão variadamente se divide a tragedia em que se debate a humanidade; o Vae victoribus, onde passa um folego de epopeia, em que o estylo attinge alturas quasi desconhecidas, casando se com uma verdade admiravel a grandiosa ideia em que se inspira o conto; Para a escola, quadro delicioso a cuja leitura cada um de nos sente accordar uma recordação muito querida de infancia descuidada e alegre, e por ultimo: os Arrulhos, em que Trindade Coelho ostenta gloriosamente todas as qualidades do seu estylo tão malleavel e tão justo.

Além d'estes contos, que especialmente destaco pela admiração que me inspiraram, são modelos de humorismo e de verdade os dois Preludios de festa e Typos da terra.

Quem escreveu os Preludios de festa e especialmente os Typos da terra, é porque estudou com muita attenção, com muito cuidado, os personagens que mais avultam na vida das nossas aldeias e terras pequenas. São typos tirados do natural, com uma perfeição photographica em que Trindade Coelho denota o mesmo rigor de execução que demonstra na descripção da natureza nos seus mais variados aspectos.

Por ultimo, e para não se dizer que eu n'este paiz de má lingua realisei o cumulo de escrever um artigo só de palavras encomiasticas e sem a minima censura ou reparo, devo dizer que não gostei do Sultão, lastimando que Trindade Coelho gastasse tantas paginas d'um estylo formosissimo n'um assumpto que sem duvida é verdadeiro, mas que não commove o leitor, nem lhe imprime, pelo menos assim o julgamos, a minima impressão duradoura. Para Trindade Coelho manifestar todos os seus recursos d'estylista, não precisava realmente do Sultão.

O livro faz parte da edição mensal d'obras portuguezas, editada por Antonio Maria Pereira, um trabalhador incansavel a quem as lettras portuguezas devem assignalados serviços.

Está impresso com o maior escrupulo e revisto com um cuidado e esmero a que nem sempre estamos habituados.

Terminando estas linhas tão despretensiosas como sinceras, fazemos votos para que Trindade Coelho possa continuar a furtar algumas horas á semsaboria dos autos e a deliciar-nos com novos livros, tão perfeitos como este, para honra do seu nome de escriptor já tão justamente laureado, e agradecemos ao amigo a offerta do seu livro, archivando a dedicatoria que elle contem como nova prova d'uma amisade a que somos profundamente gratos, e devotadamente retribuidores.―Lourenço Cayola


Tribuno Popular:―«Os meus amores.―Recebemos o volume da Collecção Antonio Maria Pereira, que sob aquelle titulo contém alguns contos do apreciado contista Trindade Coelho.

[XXI] Pela rapida leitura de dois d'elles―O Sultão e Typos da terra, parece nos que a collecção é estimavel, e que os contos são joias de grande preço da nossa litteratura, pela linguagem pura genuínamente portugueza, e pela graça da contextura originalissima, nacional, sem laivos d'imitação estrangeira, em que se pintam scenas e episodios, cheios de verdade e de encantadoras descripções, da vida portugueza nas provincias.»


O Seculo:―«Os meus amores, por Trindade Coelho.―É um livro de contos, editado pela casa editorial do Antonio Maria Pereira, a publicação recente que mais tem emocionado, com justo motivo, o nosso meio litterario, bem pouco acaroavel e mazorro no fundo, sobresaltando-se com tudo quanto perpetra o escandalo de não ser rotineiro, ou vulgar, e bem pouco emocionavel tambem―diga-se a verdade.

Parece uma contradicção; mas não é. Se o nosso bom publico fosse dado a esbanjamentos de emoção artistica, não o sobresaltaria tanto a pessoalidade, e o imprevisto.

O sr. Trindade Coelho accumula com o seu cargo official de magistrado severo, a profissão, ou antes o desenfastio espiritual de ser homem de lettras, nas suas horas de remanso.

É só, porém, como homem de lettras, que nos compete em tal logar aquilatar-lhe a esthésia, e as faculdades de emoção, ou de attenção artistica.

Ambas estas possue o sr. Trindade Coelho, em subido grau. A fórma adapta-se perfeitamento ao fundo, e é sempre fluente, vernacula, concisa, e precisa. É sóbrio no descriptivo, e não raras vezes enternece. Não commette a velharia de desenterrar obsoletos termos classicos, sem incisão, sem propriedade, e sem côr, muito parecidos com o latim, mas que no fundo não são nem latinos, nem portuguezes, nem onomatopaicos, e que fizeram a delicia de Filynto. Nem perpetra tambem o mau gosto de empregar neologismos inuteis, e risiveis, possuindo na linguagem patria instrumentos magnificos d'expressão. Sabe a sua lingua, como raros: e o conto, que é, quanto a nós, a forma mais perfeita, mais completa, e mais delicada da prosa, e tambem a mais transcendente e lapidar, achou n'elle um habil e equilibrado interpetre. Os contos Sultão, Maricas, Typos da terra, Mãe e sobretudo Para a escola, não contam muitos rivaes na lingua portugueza nem nas estranhas.

O seu pequeno livro ha-de ficar na litteratura nacional, quando de centenas de romances em seiscentos volumes já ninguem rememorar o titulo sequer.―Gomes Leal


Revista Illustrada:―«Os meus amores, de Trindade Coelho.―Que deliciosa impressão me deixou aquelle livro, tão adoravelmente simples e sentido!

Antes, porém, de começar a analysar, conto por conto, esse fino trabalho [XXII] de Trindade Coelho, preciso dizer duas palavras explicando a razão porque me merece tanta sympathia o seu auctor, que de nome conheço só.

Li pela primeira vez o seu nome em umas correspondencias de Portalegre, notavelmente bem feitas, e em que elle elogiava muito um pequenito, distincto em todos os exames.

Aquelles adjectivos de amigo bom e enthsiasta fizeram-me convencer de que―o delegado de Portalegre―era um excellente rapaz.

E digo rapaz, porque todos nós temos o habito de considerar sempre muito novos aquelles que são da nossa edade... Depois, graças a uma amiga minha, escriptora de grande talento soube que Trindade Coalho era um grande admirador de Loti―o meu preferido romancista!―admiração enthsiasta que elle descrevia em cartas deliciosas de uma vibração que fazia pena não ser repercutida mais longe... Fazia pena ser indiscrição publical-as!

Traduzia elle então o «Pescador de Islandia»; tradução esplendida que a Gazeta de Portalegre publicou e que o trazia empoigné. Para elle era já uma suggestão, aquelle trabalho primoroso.

E desde então, Trindade Coelho ficou sendo para mim um artista. Dava a Loti todo o valor que elle tinha e que ultimamente alguem se comprazia em querer negar ao academico gentil.

Em seguida li uma suavissima elegia escripta á memoria de Antonio Fogaça―uma flor ceifada ao desabrochar!―Eram meia duzia de palavras cortadas por soluços:―eu sei, infelizmente, quando se escreve assim!...

Finalmente, o seu nome vibrou de novo aos meus ouvidos, quando os jornaes annunciaram que elle arrancára um preso á cadeia de Portalegre. Um preso que era um innocente, e que, como tantos outros, estava condemnado a ouvir soar, em vida, a hora da justiça... Publicavam tambem o effusivo telegramma em que Trindade Coelho agradecia ao nosso magnanimo rei o seu perdão.

E eu d'essa vez chorei! Como me succede sempre que um homem põe a lucidez do seu talento e o enthusiasmo do seu coração ao serviço da humanidade que soffre...

O nome do dr. Trindade Coelho gravou-se então indelevelmente na minha alma.

Eu só fixo o nome dos bons.

E pensei em que devia ser uma grande mulher a mãe d'aquelle homem! Os filhos herdam, geralmente, o coração das mães...



Ultimamente a imprensa annunciou o livro que acabei de lêr. Pedi-o rapidamente para Lisboa, e li-o de um folego.

Abre com um soneto delicioso, escripto pelo espirito gentil de Luiz Osorio―uma alma luminosa, que brilha na transparencia dos seus versos filigranados e vibrantes...

[XXIII] Segue se o Idylio rustico―um amor―atravez do qual nós vêmos subir lentamente a estrella d'alva que illuminava, coando a sua dôce luz pelo colmo da cabana, duas cabecinhas gentis, adormecidas junto uma da outra...

Depois o Sultão um conto singelíssimo cheio de naturalidade, em que o Thomé nos communica a sua alegria contagiosa levada á loucura com a volta do... amigo―bem mais fiel do que muitos outros!

A Ultima dadiva, um braçado de goivos atirados por «um simples» a uma sepultura onde lhe ficára preso o coração para sahir de lá no dia em que teve de se diluir, na esteira do barco que lhe levara o filho para o Brazil.

A Comedia da provincia, magnifica de côr local. Magnífica, principalmente para quem conhece typos semelhantes e já tem visto a Morgadinha de Valflôr―essa perola!―representada pelo Marques do correio... vestido de saias! Para quem dá todo o valôr a esse esplendido estudo de costumes provincianos.

Vae victoribus, uma sugestão de remorso primorosamente traçada... Maricas, uma adoravel poesia escripta em prosa. Para a escola, um beijo de gratidão de uma singelesa adoravel. Tragedia rustica, um vibrantissimo estudo das miserias humanas.

Abyssus abyssum, o agonisar de dois anjos, sob o olhar de uma estrella... Mãe, a flôr mais linda do ramo, enlevo e agonia de todas as mães que eram capazes de morrer assim―sem abandonarem os filhos... E, finalmente, as Batalhas domesticas.

Repito, deixou-me uma impressão deliciosa o livro de Trindade Coelho, que é, a par de um primor de delicadeza, sentimento e arte, um livro honesto, que não fatiga os homens nem faz córar as mulheres. Por isso aconselho a todos que o leiam.―Margarida de Sequeira


Portugal:―«Livros Novos.―A acolhida feita ao notabilísissimo livro Os meus amores, do nosso querido amigo e illustre confrade, Trindade Coelho, tem sido a que em tempo lhe vaticinámos: em toda a linha o mais legitimo, o mais espontaneo, o mais unanime e o mais carinhoso triumpho.

Bem o merece o crystallino talento, e a ineluctavel tenacidade no trabalho, do brilhante escriptor, que em meio dos violentos paroxismos que na caça de sensações e effeitos novos hoje pavorosamente desarticulam o meio litterario europeu, tem uma força de restringir-se a soltar suavemente, com uma sobriedade campesina e tranquilla, a melodia emocionante, ingenua e simples do viver aldeão; e que por entre o estridulo hallali de obscenidades, imprecações, blasphemias, dôres, gemidos, que doloridamente rebôam pelas soturnas naves d'este immenso hospital, que é o mundo, ainda encontra a suprema arte de fazer escutar, enternecedoramente, um doce trillo sentimental, uma ou outra ligeira nota affectiva, algum limpo e captivante movimento do coração.

[XXIV] Bem haja.

Do côro unisono de quasi incondicional applauso com que a imprensa tem celebrado a apparição d'Os meus amores transcrevemos hoje um magnifico artigo do Correio Elvense, devido à penna d'um dos mais lucidos e impetuosos engenhos da novissima geração.» (Seguia-se a transcripção.)


Diario Illustrado:―«Os meus amores, contos e balladas, por Trindade Coelho.―A forja do tempo caldeia-nos o espirito á proporção que envelhecemos. É por isso que os rapazes se desdoiram ás vezes de ouvir os velhos, e parece-me que teem razão, porque nem sempre o são juizo de uma experiencia larga, sabe limar as arestas da caturrice no estudo circumspecto... Eu tenho acompanhado, cantarolando e um pouco a rir com singular scepticismo, este meu seculo, que está no fim, e com elle tenho vindo estudando e aprendendo. Ruiram as theocracias litterarias, revoluteou-se a philosophia, crearam-se novos processos de estylo, arrancou-se o chiró ás velhas phrases, e todo um mundo novo, extravagante e phantastico tem surgido,―mau grado as furias rabídas de escriptores paleontologicos, apparafusados á Arte e á Critica de ha 50 annos e cheios de amor e melancolia... Ora essa aprendizagem do meu seculo tem-me custado amarguras aterrantes, desequilibrios de espirito e um desfolhar de verdes illusões, que eu tenho visto irem-me fugindo n'um marche-marche triumphal, para nunca mais voltarem,―ai! para nunca mais voltarem!...

A vida do escriptor moderno, toda torturante e nevrotica, dá-me a impressão tenebrosa dos contos de Poe, postos palpitantemente na vida real de nossos dias. E lembro Camillo pedindo ao pedaço de chumbo de uma capsula o ponto final redemptor de agonias crudelissimas; Julio Machado, de pulsos cortados, fitando com olhar sangrento o retrato bem amado do filho,―a alegria ruidosa dos olhos da sua alma,... e quantos outros, bom Deus! Dir-se-hia que uma má sina persegue os homens de lettras:―quando não é a navalha de barba, é o rewolver, é a consumpção, é a tisica, é o retrahimento amargo, é o abandono proprio e alheio! Por isso o meu visinho Gervasio todo se ufana, com certo profundo bom senso pratico, da insistencia com que quer fazer do filho um artista pintor―de portas, e de fóra de portas...

Na troupe de escriptores em flôr do meu tempo,―parece-me que já lá vão 30 annos, e tudo isto é apenas de hontem!―havia, joeirados com singular amor de arte pura, uma duzia de rapazes de incontestavel valor litterario, desabrochando esbanjamentos de talento pelas gazetas e revistas mundanas. Poetas e prosadores, contistas e dramaturgos, miniaturistas da poesia, do romance e da chronica, d'essa pleiade de rapazes, um tanto insubmissos e um tanto bohemios, alguns treparam triumphantes,―poucos; outros, quasi o resto, ou foram ainda verdes da vida para os cemiterios das suas aldeias, ou, o que é quasi o mesmo, deram-se a callejar as mãos, dissolvendo as suas aptidões de plumitivos incipientes, nas minas [XXV] de oiro e de ferro da lucta pela vida. Dos felizes, dos que triumpharam,―como quem diz, dos vencidos da vida,―me sorria eu ás vezes em horas de bom humor, lembrando-me como elles com um livro de versos foram nomeados consules; com um tratado sobre a cultura do repolho abriram o Banco Mineral do Douro, por acções; com um drama em D. Maria foram eleitos deputados; ou como com uma critica do Salon de S. Francisco, se guindaram a bibliothecarios das bellas artes e hortaliças correlativas... Dos outros, dos perdidos pouco me lembra! Eduardo Salamonde foi-se a espantar os philisteus do Pará, applicando-lhes aos figados hypertrophicos a vermelha caudal da sua prosa mirabolante; Xavier de Carvalho desappareceu em Paris pelo alçapão macabro da correspondencia barata; Gualdino Gomes anda ahi amparando o seu rheumatismo a uma certa maneira de má lingua e a uma bengala de canna; Leopoldino Gonçalves viaja como medico da armada; e Fortunato, quando as saudades lhe são mais amargas, abandona o Alemtejo, onde toma pulsos a doentes pela tabella da camara, e apparece ás vezes nedio, côr de fiambre, cheio de barbas, a olhar com tedio os copinhos de cognac do Leão...

De todos os rapazes do tempo das minhas alegrias côr de rosa, o que me traz mais doces recordações é Trindade Coelho,―porque eu ligara á minha a alma d'elle, n'um tempo em que dos salgueiraes de Coimbra elle me fazia para uma folha alegre de que eu era director, umas chronicas soberbas, vivas, rendilhadas, cheias de colorido e de affirmações de uma personalidade litteraria. A sua prosa, a um tempo humana e lyrica, dava-me a impressão de um romantismo degenerado... De Coimbra, como sabem, além de bachareis anonymos, tem-nos vindo a elite das letras. É da tradição universitaria, fazerem os doutores as suas primeiras armas de litteratos e de poetas, na academia, a intervallos do pesado estudo do Lobão e do direito publico, esvurmado ás cavalleiras do nariz de Pedro Penedo... Toda a nossa legião distinctissima de poetas e prosadores modernos deriva litterariamente da bohemia coimbrã:―Theophilo, Eça, Junqueiro, João de Deus, Anthero, etc. É a affirmação do bom Antonio Ferreira feita axioma:

Não fazem mal as musas aos doutoures.

E não fazem. Tem-se visto. Vão lá inquerir a Junqueiro das bellezas do Codigo Civil, meio metaphysicamente original e meio copiado dos codigos de Napoleão! Ah, mas em compensação que appareça ahi o primeiro advogado a escrever a Morte de D. João e a Musa em ferias!

Os cantos de Trindade Coelho são narrativas ligeiras, descripções n'uma bella prosa colorida e transparente, trechos de psychologia trasmontana, e um ou outro caso humano superiormente observado. Sobretudo a maneira do proceder litterario d'este escriptor é deliciosa de côr [XXVI] e de verdade, sem grandes esmerilhamentos de phrase, nem deslumbramentos de imagens na apparencia côr de oiro, que, em regra, não fascinam senão os saloios ingenuos dos cordões de latão... Tem-se chegado ahi, no abuso da originalidade do estylo, a fazer uma prosa estrelicada, engommada, cabellinho á banda, com risca, como os caixeiros de modas ao domingo! O burguez já conhece os processos da chinoiserie, e d'ahi não ha espantal-o com nephelibatismos doentios, de importação barata; bem sabe elle que debaixo d'essas bellezas está a oleographia reles de porta de escada, da sultana escarlate que apara as unhas, ou do frade que enxota a mosca do nariz,―muito de apreciar nos covis da municipal em Alcantara...

O livro de Trindade Coelho tem um certo resaibo de saudavel trabalho, feito com honestidade e sem as preoccupações deploraveis que levam os corypheus da escola modernissima, mais que zolaista, á descripção e estudo de pathologias e casos sporadicos, ou não vivos, ou pouco vívidos. Este livro á quasi um parenthesis aberto como uma clareira consoladora na torrente ultra-realista dos ultimos trabalhos apparecidos, do sujet de um dos quaes, que é em todo o caso a monographia de um caracter, assombrosamente executada, o Gil Blas dizia,―qu'on ne peut lui serrer la main que par derrière...

A feição litteraria de Trindade Coelho parece-me que se define na parte do livro sub-titulada Balladas. Os Arrulhos, principalmente, são uma duzia de paginas encantadoras, que lembram Droz e Daudet. É uma elegia... tragica, encadrée n'uma linguagem côr de opala, em que a gente parece estar vendo Hoffman braço dado a... João de Deus! É uma obra prima. Assim a Tragedia rustica e a Mãe. Dos contos destaco eu os Preludios de festa, Idylio rustico, os Typos da terra, onde ha paginas soberbamente observadas, suggestivas, d'après nature. Magnifico o assasino José Gaio.

Trindade Coelho é inquestionavelmente um lyrico. E nem eu sei como elle chegou até aqui sem trazer na mala um volume de versos―Florinhas de Luar, por exemplo! Devemos-lhe o grande favor de não conhecer os diccionarios de rimas, senão a estas horas era uma vez um contista encantador... sossobrado!―Ignacio da Silva


Nova Alvorada:―«Meu caro Trindade Coelho.―Sabe você, amigo Trindade, que as palavras affectuosas que me endereçou no offerecimento do seu livro Os meus amores, vislumbraram no meu espirito um mundo de saudosas recordações, como se foram fugazes emanações balsamicas d'uma quadra primaveril que não volta mais―a vida coimbrã?

Parece-me que tenho ainda presente na retina a sua figura um pouco baixa mas robusta, as suas feições masculas e energicas, e a sua allure um pouco receiosa ao dobrar a soleira da legendaria Porta Ferrea.

Com o seu olhar penetrante e incisivo, mas velado por umas lunetas de grau apurado, sob a pasta d'um quintannista, mirando á direita e á esquerda, [XXVII] entrou você nos Geraes resignado a um diluvio de troças, martyrios, horrores...

Os segundannistas, de cuja respeitavel corporação eu fazia orgulhosamente parte, não o arreliaram logo, talvez porque lhe não encontrassem uma physionomia de chuchadeira, como a d'um Armelim, nem um rosto gretado, empedernido, de homem terciario, como o do bom Raphael do Ranhados.

Mas em que diabo foram elles depois embicar, os malvados!

Em uma medalha d'oiro que você trazia, á guiza de berloque, na corrente!

O amigo arrancou pressuroso a pedra de escandalo, de forma que a tempestade de piada desannuviou-se a tempo no seu horisonte de novato.

Depois, um ou dois annos, apparece o amigo com accentuações de academico fallado, o seu nome a salientar-se das vulgaridades escolasticas, a sua individualidade a destacar-se, como se fôra um urso. E assim se fallava do Trindade, como do Luiz Osorio ou Feijó por causa dos versos, do Passaro pela fina chalaça, do Saraiva pela força, do Miguel Baptista―pobre amigo!―pelo talento e pelas abstracções, do Banalidades pela gralhadora loquacidade, e tutti-quanti.

Você desencubou o seu nome, pol-o em evidencia―o Trindade―, mas foi por causa d'um excellente resumo das lições de direito romano, d'um bello discurso no centenario pombalino, e sobretudo das suas graciosas chronicas no Diario Illustrado.

Ah! e lembra-se você d'aquelle anno em que formámos «republica» na rua da Trindade, tendo por creada a sr.a Maria de qualquer coisa, que denominavamos a Gorda, matrona muito caroavel e de enxundiosas formas?

Eramos uns poucos:

O Souza, que já tem o galão branco dos tribunaes administrativos, espirito facil, perspicaz e alegre, nada para massadas, que tinha orientações definidas em politica partidaria e expedientes reservados de galopim graúdo contra os progressistas da Barca.

O Manoel Nunes, hoje em Barcellos, muito lucianista, devorando o evangelho do Correio da Noite, sempre em questiunculas com aquelle por causa dos seus ideaes politicos encontrados, grande passeador e jogador de manilha, um tanto lambaz porque sahia mais cedo e sorrateiramente dos theatros, dizia-se, para comer a ceia dos retardatarios, guardada pela Gorda n'um cantinho do fogão.

E o Figueiredo que se ria pelos olhos e pelo hirsuto bigode quando lhe chamavamos o Pêgas, o Covarruvias, e lhe liamos um imaginario plano, rigoroso e draconiano, de reforma dos Estatutos da Universidade? Muito desconfiado e estudioso, só não encavacava quando lhe diziamos que elle se applicava... 25 horas por dia!

Depois o Rocha Peixoto, o Bicho, d'aspecto sournois, olhos á bufo, [XXVIII] que não fallava ainda que o esmurrassem, pobre caloiro silencioso e contumaz!

Em seguida o Sergio Carneiro, o Grillo, seu comprovinciano e hoje conservador algures, com cara de cera, esboçada, sem feições lavradas, muito guitarrista e risonho, se bem que intelligente e applicado.

Eramos mais―você e eu. Você que se mettia muito com a litteratura, fechado no quarto, lendo... lendo... escrevendo...; e eu, que por signal dediquei um fado aos membros da republica, o qual nas vesperas de feriado se cantava, em algazarra tonitroante, quando o Grillo condescendia em o acompanhar na guitarra.

Depois de 1883 creio que nunca mais nos vimos. O amigo marchou mais tarde para Sabugal e eu para Cuba, e hoje está nos tribanaes de Lisboa e eu no berço da monarchia.

Agora vejo-o, litterato conhecido e conceituado, a publicar os seus bellos contos em um elefante volume―Os meus amores.

E bellos na verdade, como todos dizem.

A Mãe, aquella cruciante tragedia da pobre Russa, morta de terror e de amor, é para mim o mais apreciavel e sentido conto da sua collecção.

Costuma-se dizer d'uma mãe descaroavel, d'uma Francisca Fortunata―é uma cabra!―; mas o amigo teve artes de desmentir o erro grosseiro, vingando as calumniadas affeições dos pobres ruminantes.

Quem ler as angustias da misera Russa, na espectactiva do filhito devorado pelo esfaimado lobo circumvagante, restituirá áquelle inoffensivo animal o sentimento d'amor maternal, a natural comprehensão das suas obrigações de mãe e protectora.

E os Arrulhos? Se me não engano você escreveu esse conto em Coimbra. Creio até que um dia, estando a jantar, o amigo recebeu um jornal qualquer de Vigo, Corunha ou Pontevedra, em que a sua bella producção vinha traduzida no idioma de Cervantes com o titulo de Palomas.

Nos restantes contos, entre os quaes me não agradaram menos Vae Victoribus, o Abyssus abyssum e o Sultão, revela o amigo a força da sua educada phantasia, moderada por um largo peculio de observação; a sua poderosa intuição artistica; o seu dialogo curto, vibrante e natural; o seu estylo já caracteristico pela feição franca, saccadèe, de dizer e narrar; a propriedade das locuções; o bom emprego dos termos; a verdade das suas descripções e pinturas, que, ao contrario de muitos, não repete, tinta para aqui, tinta para acolá e vice-versa, n'uma pobreza reles de palheta, que faz lembrar casacos virados ou coisa similhante.

Olhe, amigo. Eu careço de geito para a critica litteraria; mas, emquanto me é licito exprimir a minha humilima opinião, dir-lhe-hei que você alarga cada vez mais e com mais rapidez a sua reputação de litterato distincto e de contista precioso; e que este conceito é merecido, attestam-no os seus valiosos escriptos dispersos e a sua elegante brochura recem-editada.

[XXIX] Resta-me felicital-o cordealmente, amigo Trindade, a agradecer-lhe a sua fineza com um abraço de―Velho amigo―Eduardo Carvalho


Nova Alvorada:―«Os meus amores.―Acabamos de ser distinguidos com a offerenda do novo livro de Trindade Coelho,―o sympathico e distincto escriptor que de ha tempos se vae honrosamente evidenciando no certamen das lettras patrias, onde já agora a sua individualidade tem uma reputação firmada.

Os meus amores é o titulo que o sr. Trindade Coelho escolheu para o seu livro de contos e balladas, e se assim lhe chama, segundo cremos, não é porque estas 200 paginas sejam um auto-historiographico dos idylios romanescos do auctor, n'quella aurea quadra da sua vida academica, ou um repositorio de alheias aventuras amorosas com acompanhamento obrigado ao bandolim do trovador lendario.

Não. A razão do titulo parece-nos antes proceder da affectividade psychologica do auctor para com a sua obra, e induzimos isto do soneto com que Luiz Osorio prefacia o livro, e cuja primeira quadra diz:

Folhas dispersas dos meus annos de oiro,
Vivo enxame das minhas alvoradas,
Tenho zelos de vós, folhas sagradas,
As Desdemonas sois de um outro moiro
.

Se não fosse assim, affirmar-se-hia mais uma vez a verdade do aphorismo―o habito não faz o monge―, porque o Idylio rustico, com que abre esta bella collecção de contos, não seria bastante para justificar o titulo sob que se enfeixam.

Mais que o idylio, preponderam no correr do livro a comedia, o drama e a tragedia: e basta percorrel-o em rapida leitura, para averiguar-se que se ha na urdidura dos varios contos muitas situações que nos pintam o ridiculo, a desgraça ou o crime, poucas ha, entretanto, que nos prendam o espirito ao devaneio piégas d'um Romeu e d'uma Julieta.

Mas, ou bem ou mal baptisado, o que é consoladoramente verdadeiro é que os contos do sr. Trindade Coelho constituem uma das mais bellas collecções que no genero conhecemos.

Uma urdidura facil e clara, movimentada em harmonia com os melhores preceitos da arte.

Uma linguagem correcta e elegante, sempre amoldada à naturalidade das situações e dos dialogos.

Uns assumptos de felicissíma escolha, a reproduzirem fielmente costumes, a pôr em jogo com a maior verdade os vicios e as virtudes do povo.

Como os contos magnificos de Bento Moreno, os contos do sr. Trindade Coelho são a fiel expressão da vida rustica do nosso povo, e facil é de comprehender a importancia moral que estes livros terão quando as gerações [XXX] que nos succedam queiram inventariar nas suas tradições o modo de viver, de sentir e de pensar das populações sertanejas, n'este periodo historico em que vamos.

Sem descer aos excessos da eschola ultra-realista, a que Zola preside como Summo Pontifice, o sr. Trindade Coelho, consegue ser de uma verdade inexcedivel, de um realismo incontestavel, de um naturalismo a toda a prova, que por egual se evidenciam no assumpto, na narração e nos personagens.

E, sobretudo isto, ha nos seus contos, como nos de François Copée e Theodore de Bauville, a artistica encenação que, sem desvirtuar-lhe a naturalidade da fórma e do fundo, lhes imprime o attractivo romanesco que falla à imaginação do leitor.

O Idylio rustico, com que o livro abre, é de uma suavidade deliciosa, e de uma naturalidade tão justa quanto encantadora.

A Ultima dadiva é a expressão fiel de muitas scenas que a emigração multiplica cruelmente pelas nossas provincias do norte.

A acção d'este conto é conduzida com uma tal uncção de sentimentalidade, que nenhum leitor, por mais rebelde que seja a commoções, se poderá esquivar a partilhal-a.

O conto―Typos da terra é a descripção fiel, fidelissima, da mesquinha intriga que fervilha invariavelmente em todas as pequenas terras de provincia.

Os Preludios de festa são de um comico admiravel; Maricas é de um sentimentalismo commovente; Vae Victoribus de uma moralidade edificante; Arrulhos, Mãe, Tragedia Rustica, tudo, tudo n'este livro é bom, e de util e agradabilissima leitura.

A forma―já o dissemos―é correctamente vernacula e elegantemente rendilhada.

A titulo de amostra, para aqui trasladámos do conto―Sultão―este bello croquis de uma tarde de agosto:

«Ao longe, fechando o horisonte que a eira dominava, as arestas dos montes quebravam-se n'uma sombra egual, e embaciavam ainda o poente as suaves e brandas pulverisações doiradas da ultima luz do sol. Riscos vermelhos de nuvens, como grandes vergas de ferro levadas ao rubro, destacavam immoveis n'um fundo verde-mar, esvaecido e meigo, raiado de listrões de uma coloração leve de laranja.

Pequenos algodões transparentes, com alvuras de neve, cortavam aqui e além, alegremente, a monotonia profunda do azul.»

E assim o livro de Trindade Coelho: uma obra á altura da boa reputação do auctor.

A redacção da Nova Alvorada congratula-se com o seu illustre collega por tão brilhante producção, e d'aqui lhe envia um cordealissimo aperto de mão.»


[XXXI] A Independencia:―«Os meus amores.―Acabamos de ler o primoroso livro de Trindade Coelho, Os meus amores. Sem largas aspirações, modestamente, apenas com a consciencia tranquilla de quem escreve bem e com criterio,―Trindade Coelho juntou e concatenou no delicioso volume, que acaba de dar á estampa, algumas producções litterarias que a sua vida de jornalista tinha atirado para a valla commum das paginas de revistas e diarios.

Não é, pois, um trabalho completo, inteiro e homogeneo o que se nos offerece para apreciar: são pequenas joias litterarias, buriladas por mão de artista e d'um fino sabor de naturalismo.

Considerado assim, sem dependencia de escola e confrontação de originaes, o livro é bom.

As suas descripções são perfeitas, correctas, desenhadas por quem se acostumou, desde creança, a ler muita e a adivinhar mais na biblia riquissima e inexhaurivel da Natureza.

Ha vida e colorido em tudo. As telas dos ceus pincelaram-se com as tintas proprias, e os diversos personagens que nos vão passando sob os olhos, romanescos e serios uns, grotescos e ridiculos outros, deixam-nos uma impressão agradavel de realismo, e alta comprehensão. São typos exactos, sem os grandes enfeites que aborrecem e sem phrases banaes que enjoam. Antonio Fagote é um especimen do juiz de festa das nossas aldeias, basofão e vingativo, prompto, olá! a gastar as ultimas moedas da venda do ultimo gado e a deixar fulo e arreliado o seu antecessor; e a deliciosa ballada Mãe é uma preciosidade litteraria, magnificamente pensada escripta, digna da penna dos nossos primeiros escriptores.

Não encomíamos, pois, o valor do livro, dizendo que elle é digno de figurar ao pé das mais bellas producções dos nossos escriptores mais consagrados.»


Correio de Portalegre:―«Os meus amores, contos e balladas por Trindade Coelho.

Acorda-lhes no espirito um echo de sympathia o nome do auctor, pois não?

Eu creio bem isso, porque a verdade é que apezar da celeuma que Trindade Coelho ahi levantou, grangeando com o seu genio turbulento algumas antipathias nenhuma d'ellas alvejou o seu talento, que os senhores jamais negaram, e lhes ficou sendo sympathico. É por isso que escolhemos para encetar esta secção a producção brilhante do distincto litterato, editada ha pouco por Antonio Maria Pereira, um incansavel editor escrupulosissimo.

Li o livro que o talento do auctor recommenda, impondo-o, quasi, a attenção do nosso cerebro, á contemplação da nossa alma; e essa leitura, feita n'umas horas que um encanto enorme fez parecer tão breves, deu-me d'Os meus amores a agradabilissima impressão d'uma caricia, que persiste a sorrir consoladora.

[XXXII] Trindade Coelho, que os senhores conhecem pelo menos do Commercio e da Gazeta, tem, como viram, o poder invejavel de dar á ideia,―algumas vezes injusta, dirão alguns,―a mais correcta fórma, iriada sempre da limpidez mais viva; e isso, n'um trabalho feito agora para apparecer amanhã, à pressa sempre, n'uma fugida aos calhamaços manuscriptos que demandam a sua attenção de magistrado, e em que o periodo mais suggestivo é o do Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo.

É-lhes facil por isso presuppor o livro, que o vagar do auctor desbasta, romodela, lima, muito tranquillamente, muito socegadamente, sob a vigilante direcção do seu delicado gosto artistico.

Os meus amores teem poesia, e teem verdade; e na maioria dos seus differentes quadros, adoravel descripção das scenas simples da vida do campo, da natureza singellamente formosa, o sentimento vibra intensissimo, e é encantadora a phrase, que um conhecimento profundo dictou, de que uma subtil observação resáe. Ha alli retratos d'um brilho sem limite, typos que resumem um estudo fidelissimo.

É um cofre de bellas joias, o livro, que nos deixa embaraçadissimo, se queremos escolher alguma,―tão valiosas são todas.

Todavia,―e isto é uma modesta opinião perfeitamente pessoal,―Vae victoribus, de tão grandiosa ideia, e de tão elevado estylo, Para a escola, tão grata, a evocar uma saudosa recordação dos bons tempos de creança, e os admiraveis contos de fina graça e tão verdadeiros, Preludios de festa e Typos da terra, são os meus eleitos, depois d'uma difficuldade enormissima d'escolha, d'entre tantos quadros da perfeição mais rara, e onde a Maricas e Arrulhos captivam tambem a minha admiração.

O livro é, como todos os sahidos na Collecção Antonio Maria Pereira, esplendidamente impresso em bom papel, e cartonado elegantemente em percalina.

N'esta noticia breve, digne-se o distinctissimo auctor d'Os meus amores receber o preito da nossa homenagem, prestada tão agradavel como sinceramente.»


O Nordeste:―«Editado pela casa Antonio Maria Pereira, de Lisboa, em volume d'impressão nitidíssima, escrupulosa, foi recentemente publicado o primeiro livro de Trindade Coelho―Os meus amores, que vieram pôr em relevo as complexas e brilhantissimas qualidades litterarias do auctor, um novo que já hoje occupa, por direitos justamente adquiridos, um logar proeminente entre os nossos melhores escriptores.

Os meus amores teem obtido na imprensa do paiz uma acolhida enthusiastica, fervorosa e sendo Trindade Coelho um trasmontano, nosso conterraneo quasi, commetteriamos uma flagrante descortezia se nos leitores do Nordeste não dessemos conta da apparição d'esse livro, juntando ao côro unisono d'applausos as nossas sinceras saudações.

Escriptos em prosa vibrante, fluente e musical, correctissima, esses contos, transcendentemente lapidados, com a fina mestria de joalheiro [XXXIII] primoroso, constituem um verdadeiro encanto, captivando-nos com a espontanea naturalidade da narrativa e com a emocionante escolha d'umas historias aldeãs, d'uma simplicidade campesina, repassadas por vezes d'um sentimentalismo suave, lyrico...

A nós, que temos por Trindade Coelho uma vivíssima sympathia, um affecto antigo e vehemente, seguindo com interesse quaesquer particularidades da sua vida, consolando-nos com os triumphos litterarios que teem glorificado o seu nome e com a sua merecida reputação de magistrado intelligente e trabalhador, ganha durante a sua carreira de delegado do procurador regio, estava-nos impacientando o desejo de lêr o seu livro, e foi nervosamente, sofregamente, que o abrimos quando o correio nol-o trouxe. E, agradabilíssima coincidencia! succedeu-nos deparar com o conto Para a escola, quadro tocantissimo que marca distinctamente os dous mais notaveis estadios da vida do escriptor: a altura em que entra na escola primaria, regida por um misero professor, bondoso e marcial, de villota sertaneja, e aquella em que sahe d'uma outra, habilitado com as suas cartas de formatura a encetar a carreira publica, na qual de continuo evidenciará as suas superiores qualidades de talento e caracter diamantino.

Essa historia, exposta n'um estylo formosissimo, malleavel e correntio, deliciou-nos e impressionou-nos profundamente, a ponto―sem pejo o confessâmos...―de lagrimas espontaneas nos marejarem os olhos, tão enternecedoras são essas paginas que evocam em nós as reminiscencias queridas d'um passado que não volta, e no espirito nos reproduzem, com uma precisão photographica, completa, scenas eguaes da nossa infancia, como de certo acontecerá a todos quantos lograrem a felicidade de lêl-as e sentil-as...

Terminado esse conto, foi d'um folego, a bem dizer ininterruptamente, que devorámos o livro, onde o auctor, n'um esbanjamento prodigo de verdadeiras perolas litterarias, se expande em ligeiras narrativas, descriptas n'uma prosa colorida e vibratil, scintillante e rhythmica, apresentando-nos uma serie de quadros, colhidos em flagrante, d'après nature, com uma extraordinaria lucidez d'observação, e um outro caso humano trasladado para paginas d'uma forma impeccavel, accentuadamente artista, e que são uma eloquente affirmação da distincta personalidade de Trindade Coelho, ao presente um dos mais assignalaveis e esmerados cultores da prosa portugueza.

Não querendo, e não nos sobejando espaço para tanto, ampliar esta breve noticia a uma critica a todo o livro, impossivel se nos torna ennumerar todos os contos em que elle se reparte, emittindo detalhadamente as impressões que nos suggeriram. Por isso o nosso applauso caloroso para todo o livro, sem predilecções por este ou por aquelle conto; e d'aqui, d'esta columna de modesto jornal de provincia, enviamos ao nosso queridissimo Trindade Coelho, n'uma effusão d'acrisolada estima, com um aperto de mão, as felicitações que merece, fazendo votos para que não [XXXIV] deixe de ser um cultor assiduo da litteratura nacional, e continue a honrar o seu nome, já laureado, com a publicação de novos e bons livros.―José Pessanha


Da Revista do Minho:―«Os meus amores.―Poucos livros terão vindo á luz da publicidade ultimamente em Portugal tão esplendidos como aquelle cujo titulo serve da epigraphe a esta noticia. Em todas as suas paginas se reune o bello e o agradavel, tornando esta obra de solido merito, e estimavel debaixo de todos os pontos de vista.

Este volume pertence á formosissima collecção Antonio Maria Pereira, e é devido á brilhantissima penna de um dos nossos mais festejados escriptores―Trindade Coelho.

Não precisâmos alongar-nos em chamar a attenção do publico para esta obra, pois é ella sobejamente já bem conhecida dos amadores de bons livros.»


Revista Illustrada:―«Os meus amores.―Ha tempo,―não ha muito,―começou um jornal de Lisboa a publicar, de quando em quando, umas cartas de provincia,―Cartas alemtejanas, nos parece,―assignadas pelo nome, então desconhecido, de Trindade Coelho. Lida por nós a primeira, nunca mais nos descuidámos de procurar as outras, e foi com verdadeiro desprazer que as vimos ir rareando, até deixarem de apparecer de todo.

Essas cartas eram a revelação de um formoso talento; eram a alvorada jubilosa e cantante de um bom escriptor. Trindade Coelho entrava nas lettras portuguezas pela porta aurea dos victoriosos, apresentando natural e simplesmente a sua individualidade, como a fundira n'uma só peça o seu talento alliado com a sua observação e o seu estudo, sem esgrimir com os que tinham chegado primeiro, sem acotovellar os que avançavam ao seu lado, sem o apregoarem tambores nem charamellas de apaniguados e sequazes.

Escrevia de um canto da provincia, da sua terra, em horas desoccupadas; escrevia de assumptos comesinhos, de cousas que tinha alli á mão, das scenas campestres a que assistia, e, sobretudo, do sentimento que a sua alma encontrava no tracto sympathico da natureza inteira. Falava de um ou outro livro, que mão amiga lhe fazia chegar á solidão do seu eremiterio, sempre com acerto, propenso ao louvor, despido de invejas. Era um talento e era um caracter.

Depois, houve na sua vida litteraria um momento de eclipse. Cremos que deve ter correspondido ao periodo occupado e trabalhoso da sua formatura. Bom signal. O estudioso sério sabia reprimir as impaciencias do amor proprio, sacrificando ás altas occupações do seu curso os brilhos attrahentes da facil nomeada. O escriptor experimentara já o pulso; agora conhecia a sua força e sabia e podia esperar.

[XXXV] Eis que nos apparece um dia, subito, no fôro, honrando e glorificando n'um processo de rehabilitação a sua toga de magistrado. O caso deu-lhe celebridade, e ensejo para ser recordado o nome de homem de lettras, que elle soubera fazer distincto e conhecido logo aos primeiros trabalhos.

Alguns mezes de collaboração diaria, n'um jornal bem lançado e bem redigido, avigoraram no conceito publico o renome conquistado, e Trindade Coelho tomou serenamente, na imprensa da paiz, o logar a que tinha direito, sem ninguem lh'o discutir nem contestar.

Estreia-se agora no livro, e difficilmente imaginariamos apresentação mais prometedora e mais sympathica.


Os meus amores são uma collecção de esbocetos, alguns dos quaes, como o Idylio rustico, Ultima dadiva, Vae victoribus!, Abyssus abyssum, chegam a ter a perfeição, o acabamento de verdadeiros quadros. Revelam o amor, o cuidado, o esmero com que o auctor os trabalhou, solicito na sua obra, no empenho de uma execução immaculada. Não porque se conheça o esforço; mas sim porque se sabe que sem elle era impossivel conseguir tão completo effeito, tão seguro resultado.

O estylo do prosador é, quasi sempre, firme, opulento, erudito, original e variado. Não tem reminiscencias d'este ou d'aquelle, e realisa uma das condições essenciaes que deve ter em mira todo o escriptor consciencioso: conservar uma feição propria e individual, sem se afastar da pureza da lingua, evitando ao mesmo tempo o retrocesso archaico, e contribuindo para a evolução progressiva d'ella.

Trindade Coelho, por uma intuição que nos não cançaremos de louvar, em vez de se cingir a modelos cuja originalidade maior ou menor lhe seria facil assimilar, em vez de decorar mestres e de compulsar estylistas, procurou modo de illuminar a sua phrase e de colorir a sua palavra, na fonte natural de todas as inspirações. Penetrou, para isso, nas camadas mais primitivas do povo campezino, enriquecendo n'esse manancial o thesouro das locuções, e trazendo de lá, simultaneamente, scenas e quadros do um sentimento encantador, e de uma singeleza nativa e adoravel.

É de indiscutível belleza a pastoral com que abre o volume. Affigura-se-nos estar lendo algumas paginas de Longo. A descripção da madrugada na aldeia, o encontro dos dois pastores, Gonçalo e Rosaria,―Daphnis e Chloe,―teem um sabor antigo, como o de uma narrativa idylica, passada nos tempos legendarios da Grecia, e ao mesmo tempo toda a verdade de uma scena campestre dos nossos dias. É de um bom gosto supremo a fórma subtilmente delicada como o narrador, deixando primeiro receiar a queda dos seus personagens n'uma brutalidade instinctiva, os conduz por fim nas azas da innocencia e da candura a uma situação divinamente sublime.

E, finda a narrativa, o leitor fica deliciado e satisfeito, n'uma doce e prolongada abstracção, seguindo com os olhos do espirito aquelles dois [XXXVI] vultos de creança a esfumarem-se nas distancias do espaço e do tempo, longe, muito longe, n'uma paizagem ideal, vista nos dias da infancia, vista talvez em sonhos, talvez em Virgilio ou Theocrito, talvez mais longe ainda, na Biblia...―seguindo, com os olhos da alma, em esquecida contemplação, longe, muito longe,

«...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas, voando, voando.»

Em Vae victoribus!, outro quadro de mestre, ha como que um mixto do tragico fatalismo grego e do supersticioso horror christão. Não é vulgar a concepção do assumpto, nem vulgar, tambem, o desenvolvimento que o escriptor lhe deu, o scenario é horrivel e magnifico. Está bem descripto; bem descripta a tempestade, que primeiro se annuncia, depois se approxima, depois finalmente cresce e se desencadeia n'uma convulsão pavorosa e enorme; bem descripto o terror angustioso e suppliciante do misero assassino, o qual vê, na chamma de cada relampago, projectada a cruz negra que marca o logar do seu crime e que lhe prende os pés ao chão, emquanto o seu ouvido, allucinado pelo terror, lhe dá a sensação de uma voz insistente, que detraz de cada arvore, da espessura de cada moita, de cima de cada pedra, da resonancia de cada trovão, o chama inexoravelmente pelo nome:―Ó José Gaio! Ó José Gaio! Ó José Gaio!

Bastava simplesmente esta narrativa para grangear a Trindade Coelho fóros de distincto e primoroso escriptor. Edgar Poe não engeitaria o assumpto, se lhe occorresse, nem o trataria com muita maior perfeição. Dar-lhe-hia pasto para algumas paginas tão engenhosas como as da Genese de um Poema, para alguma composição tão extraordinaria e tão transcendentalmente bella como O corvo ou Ulalume.

Mas como se quizesse mostrar a malleabilidade da sua penna, ou como se quizesse certificar-se a si proprio da multiplicidade e da variedade das suas aptidões litterarias, o prosador que recortou nos mais perfeitos moldes aquellas paginas classicas ou estas sinistras, detem-se na commovente e lacrimosa narrativa da Ultima dadiva e nas ligeiras e facetas descripções dos Typos da terra, dos Preludios de festa, do Sultão, onde transparecem dotes de observação sarcastica, de ironia graciosa e de bem humorado espirito.

Um livro de tantas promessas não póde ser, comtudo, e por isso mesmo, um livro definitivo. Trindade Coelho experimenta apenas a mão para se abalançar a empreza maior, estamos certos d'isso. Já no final do presente volume, em nota do editor a um trecho intitulado: Batalhas domesticas, se annuncia a transição da presente phase litteraria e artistica do auctor, para uma outra phase progressiva.

Progressiva, dizemos nós, porque assim o crêmos. Qual ha-de ser, porém, a predominante caracteristica d'essa phase? Póde a critica conjectural-a [XXXVII] desde já? Talvez o pudesse; mas seria arriscado fazel-o. Porque, a verdade é que o seu talento tem recursos com que lhe é dado contar, que o seu temperamento litterario tem energias que lhe hão de abrir novos caminhos, e que, na sua vida de homem de lettras, ha já precedentes, que enormemente o obrigam.

Temos confiança em que a sua prosa, já segura e elegante, despir-se-ha ainda de um ou outro francezismo escusado, e ha-de adquirir novos dotes de clareza, concisão e vernaculidade. Trindade Coelho sabe onde procural-os. Não é em lexicons, nem em alfarrabios, nem em cartapacios. É na escola, aberta sempre a todos os investigadores, onde aprenderam a falar o portuguez do povo, os seus typos populares.

Não se póde ser bom prosador, sem se ter o sentimento profundo do som, da melodia. Uma das maneiras de adquirir pericia n'esta fórma de escrever, consiste na pratica de versificar. Fazer bons versos é um exercicio util para chegar a fazer boa prosa. Não é, porem, indispensavel, bem entendido.

Contudo, não admittimos que repute possuir as qualidades completas de escriptor, aquelle que só d'uma das duas fórmas da arte de escrever seja conhecedor. Os mais elegantes cinzeladores da prosa, são os que praticaram largamente no manejo da metrificação e da rima.

Trindade Coelho, apesar de todos os dons singulares da sua natureza artistica, teria muito a ganhar, e conseguiria maior fluidez na phrase e maior cadencia no periodo, se praticasse um pouco a arte do verso, embora como simples exercício. E esteja certo de que lhe vale a pena empregar todos os esforços para attingir uma perfeição, que não está longe, e de que o seu talento proprio e a sua estudiosa boa vontade continuamente o approximam.―Fernandes Costa


Aurora do Lima:―«Os meus amores, contos e balladas, por Trindade Coelho. Quando prometti á Aurora do Lima esta ligeira noticia bibliographica ácerca do livro do brilhante escriptor e meu querido amigo Trindade Coelho, mal cuidava eu que a doença me obrigasse a retardar o cumprimento da promessa, ao ponto de me encontrar entre os ultimos da ultima fila, nas saudações enthusiasticas á obra e ao seu auctor.

Tenho para mim como certeza indiscutivel que o publico se começou a fatigar d'essas obras torturantes d'analyse fria, cruel, desoladora. Os que se encontram feridos das asperrimas luctas da vida―e estes constituem a maior parte dos que lêem e estudam, preferem as obras consoladoras, de cuja leitura fica uma sensação delicada, uma recordação docemente suave. Assim, Pierre Loti ainda hoje triumpha sobre Zola, apezar do enorme réclame que antecede sempre a obra do velho mestre da escola realista.

Ora o livro do sr. Trindade Coelho pertence ao numero d'essas obras consoladoras, de serenidade e de paz. É um livro sincero, que prende pela emoção intima, que interessa pela simplicidade elegante com [XXXVIII] que está trabalhado, que impressiona pela correcção impecavel do seu estylo, malleavel e harmonico.

Abre-se o livro e depara-se com o Idylio rustico, que é uma soberba tella, amoravelmente tratada, denunciando logo ás primeiras linhas um alto valor artistico, na verdade rigorosa da observação, na delicadeza suave do colorido, na simplicidade graciosa dos dois pequenos pastores.

Segue-se-lhe o Sultão; e em boa verdade direi que me parece ser este um dos contos mais formosos do volume, em que pese ás opiniões contrarias e até ao proprio auctor, que não perde occasião de o depreciar.

Assumpto simples, esse, e todavia absolutamente verosimil. A descripção da eira, do labutar alegre, da paizagem e dos personagens d'este pequeno quadro, são um primor notabilissimo de execução artistica, de rigorosa e completa observação.

Ultima dadiva, um episodio commovente, completa a primeira parte do livro, a que se segue a Comedia da provincia, onde ha preciosos estudos da vida provinciana; as Balladas, onde se depara com o formoso conto Para a escola, de um alto valor litterario; Arrulhos, uma esplendida phantasia, etc.

Eis uma ligeira noticia do volume de contos Os meus amores, que tamanho exito conseguiu obter, acordando de surpresa a habitual atonia do nosso acanhado meio litterario, com os merecidissimos applausos que lhe foram dispensados.

Dos meritos litterarios de Trindade Coelho fallam mais alto do que a crítica os seus trabalhos, espalhados em todos os jornaes do paiz, especialmente no Portugal, onde escreve como o pseudonymo de Ch. A. Verde, e na Revista Illustrada, do editor Antonio Maria Pereira. É um infatigavel e primoroso jornalista, sabendo dar ao mais frivolo assumpto um delicioso relevo litterario, que prende e interessa o espirito do leitor.―Luiz Trigueiros


Os Gatos:―«Vem a proposito de historias, fallar, bem sei que tarde, dos Meus amores de Trindade Coelho, como do moderno livro portuguez que mais juvenilmente fascia o talento de narrar, em polyedros de multiplices aptidões. Os contos dos Meus amores são pela maior parte uma bagagem de vida academica, assimilativa (Trindade Coelho, muito novo, findou ha quatro ou cinco annos o curso juridico) e como tal sahem da penna do escriptor ainda sem uma crystallisação homogenea de fórma e de processo. Porém na sua factura ondeante lê-se o ascenso d'um espirito buscando a perfeição com escrupulos d'eleito; de sorte que o volume até como auto-biographia se insinua, elle precisando as phases, notulas, e predilecções litterarias do contista, e emfim, depois de hesitações, emancipando-o n'um dos mais delicados microscopistas do coração, das nossas lettras. Como é provinciano, provinciano d'aldeia, e natureza contempladora [XXXIX] inda por cima, Trindade Coelho captiva-se principalmente dos assumptos bucolicos, pequenas scenas de cabana, tempestades de campanario, pastoraes, vida de povo, e sente-se que o não faça por diletantismo de escriptor avocando de cór dramas lambidos, senão por esse estro de visão retrospectiva dos melancholicos despaizados em terras hostis, e que protestam contra o egoismo ambiente, recluinde-se no passado, como n'um sanctuario de mumias adoradas. É a tendencia geral dos nossos mais modernos narradores, buscarem na vida dos humildes, especialmente dos campos, materia prima para seus contos e poemetos. Em poucos porém a predilecção se escóra na sinceridade e conhecimento pratico da vida rustica, e em menos ainda ha perspicacias para uma autopse sagaz da natureza psychica e moral do camponez. Grande parte dos que teem posto o povo em scena, contenta-se com recortar-lhe os andrajos n'um scenario de convenção, e com o fazer fallar aos bonequinhos mancos que resultam, aravias mais ou menos inventadas d'um pictoresco sorna, em cuja trama não ha vislumbres d'alma regional, de caracter profissional, d'individualismo typico, ou de paixão. Se alguma vez tiverem pachorra, mandem vir a collecção dos contistas rusticos portuguezes, e riam á larga das fantasias lorpas que lá virem. Em dialagos amorosos ha por exemplo cousas unicas! Cavadores d'aldeia debitam ás namoradas protestos de paixão, em linguagem que seria preciosa até na bocca d'um pisa-flôres do Martinho e da Havaneza. Ellas, de lhes retrucar em phrase equivalente, e de se mecherem em scena com os ademanes que a Dama das Camelias consagrou na cachimonia dos auctores, como os mais proprios para mimar o amor que as enchaquéca.

Em paizagens e descripções d'interior, a mesma ausencia de detalhe certo e de visão propria, que reduzem esses quadros, a méras caganifancias d'aguarellistas amadores. De tal maneira que o grupo de campestres a quem a arte confia a missão de leccionar aos desregrados habitantes das cidades, os prazeres simples da vida pastoral, em vez de persuadirem os seus leitores, o mais que fazem é pintar-lhes o campo como uma banal imitação da Rua do Ouro, e o camponez como uma arreglo grotesco do alfacinha.

Ora, entre os poucos argutos dedicados a perscrutar a essencia da paizagem provincial, e a alma do provinciano e do camponio, Trindade Coelho é dos que mais lucidamente traduzem o seu criterio do problema, em fórma d'arte, e dos que mais progressivamente vão crescendo á vista do leitor, que não mais lhe perderá de vista os vôos poeticos, e a singular gracilidade ironica dos seus quadrinhos de genero, colhidos em prolongadas estações nas duas mais typicas provincias de Portugal, o Alemtejo e Traz-os-Montes. Ha assím nos Meus amores, a par d'algumas benignas composições representativas da transição critica do rapaz para o homem, e do debutante para o laureado, outras de tal guiza iguaes, sobrias, seguras, que não hesito em as apontar como modelos, e dentro da minusculeria da sua trama, como verdadeiras e encantadoras [XL] obras primas. Typos da terra e Preludias de festa, por exemplo, são duas narrações que mordem fundo a attenção de quem nas lê, e que por sua admiravel sobriedade, intuito pictural, e observação ridente sobre o vivo, cuido que ficarão modelarmente apontadas aos collecionadores de litteratura typica.

Qualquer das peças abrange apenas o folego d'uma ou duas duzias de paginas, deliciosas porém como factura, admiraveis de bonhomia, e d'uma saude moral que faz desejos d'estimar pessoalmente o seu auctor.

Ahi está effectivamente revelado não só um talento plastico e bastante rico em cambiantes, como tambem a pura agua d'um caracter cheio das mais finas intenções. Typos da terra é o quadro satyrico d'uma má lingua d'aldeia, tendo por club a porta da tenda, por scenario a praça publica, e por personagens o pessoal burocratico e elegante da terriola. Preludios de festa é um estimulo de festeiros preoccupados de qual fará a festa do orago mais sumptuosamente. Os tons são leves, os typos rapidos, a descripção dita a correr, mas no conjuncto ha um tal equilibrio esthetico, a meia tinta é tão fluida, e as intenções ironicas sublinhadas tão de manso, que se adivinha logo um mestre miniaturista, Hogarth com laivos de Tenier, raro de sabor entre os semsaborões que por ahi medram, e certamente fadado a uma supremacia qualquer no moderno romance portuguez.―Fialho d'Almeida


Jornal de Santo Thyrso:―«Os meus amores.―Foi penhorante e commovente para nós a gentilissima offerta que Trindade Coelho nos fez do seu adoravel livro de contos, que tem por titulo a epigraphe d'esta singela noticia.

O nome de Trindade Coelho era já gloriosamente festejado quando o brilhante contista frequentava ainda as aulas da Universidade; hoje, porém, apparece mais radiantemente no seu precioso livro, onde a primorosissima fórma se allia com o mais delicado criterio d'artista d'élite e com a fina observação d'um talento verdadeiramente superior.

O que deixamos dito é profundamente sentido, que a nossa humilde e obscura penna não está―seja este o seu unico merito!―habituada a vir entregar ao sagrado lume da imprensa os elogios sandeus que cada dia se prodigalisam aos mediocres e aos banaes, que se desvanecem entre as ondas d'esse barato incenso.

Os nossos leitores melhor ajuisarão, em presença do trecho que lhes offerecemos como mimo de rara valia.»


Diario Illustrado, (com o retrato do auctor):―«Trindade Coelho.―N'esta aspera vida das lettras, cortada de tantas amarguras que ninguem sonha, ha, entre outras, uma grande e profunda alegria,―que nem a todos é dado experimentar, accrescente-se.

[XLI] Essa alegria, sentem-n'a os poucos susceptiveis de comprehendel-a,―na elevada faculdade de admirar o que se impõe pelo dominador prestigio do talento ao culto mental, e sobretudo no intimo orgulho de adivinhar, logo aos primeiros passos, a revelação de Alguem, que vae ser unanimemente admirado.

Devo a Trindade Coelho, que figura hoje por direito de conquista na galeria do nosso jornal, este incomparavel jubilo.

Adivinhei-o (consintam-me esta vaidade) quando poucos o conheciam; admirei-o, muito antes d'elle trazer á litteratura patria o livro Os meus amores, que foi como que a subita illuminação do seu nome.

Que delicioso livro esse, onde Trindade Coelho nos apparece em toda a sua inconfundivel originalidade de narrador, em todo o desartificioso encanto da sua maneira de observar e referir, revendo-se-lhe o temperamento de artista, impressionavel e vibrante, na fluidez do estylo, que lhe repercute nitidamente todas as modalidades!...

O campo, que a maioria dos escriptores conhecem superficialmente, de rapidas excursões alpestres, sem o menor vislumbre de identificação, vive no livro de Trindade Coelho, com um singular relevo de verdade, com um profundo sentimento do natural. «Entre os poucos argutos dedicados a perscrutar a essencia da paizagem provincial, e a alma do provinciano e do camponio, escreve dos Meus amores o nosso grande critico Fialho d'Almeida, Trindade Coelho é dos que mais lucidamente traduzem o seu criterio do problema, em fórma de arte, e dos que mais progressivamente vão crescendo á vista do leitor, que não mais lhe perderá de vista os vôos poeticos, e a singular gracilidade ironica dos seus quadrinhos de genero, colhidos em prolongadas estações nas duas mais typicas provincias de Portugal, o Alemtejo e Traz-os-Montes.»

Antes dos Meus amores, Trindade Coelho começara a affirmar a sua poderosa, individualidade em uma secção do Diario Illustrado, Cartas alemtejanas, chronicas expedidas de Portalegre, em um arranque de talento, com exuberancia de fantasia, modos de ver e dizer, flagrantemente modernos, traços de soberbo humorismo á Vacherai, velados a espaços de um ligeiro fumo de melancolia, que lhe avivava a frisante originalidade.

Por esse tempo, o nosso brilhante chronista emprehendeu, no exercicio das suas funcções de delegado, em Portalegre, a tarefa humanitaria de arrancar um pseudo-criminoso ao rigor da lei, que injustamente o condemnara.

E em torno do nome de Trindade Coelho, que emplumava para os largos vôos, fez-se um côro de bençãos, como que uma apotheose de amor, que deverá ter sido na sua vida e para a fina sensibilidade da sua alma effusiva e enthusiasta, um d'estes supremos jubilos, superiores a todas as desditas e inaccessiveis a qualquer desencanto.

Dá-se em Trindade Coelho e nos transcendentes dotes que o caracterisam e lhe assignalam o ponto culminante em que se evidenceiam, uma dualidade, verdadeiramente phenomenal.

[XLII] É que, sendo elle um artista, na rigorosa accepção titular da palavra, namorado do ideal, amando a Arte com religioso fanatismo, vivendo na extatica adoração de tudo quanto ella sobredoira do seu brilho immortal, é ao mesmo tempo um funccionario exemplar, um delegado do procurador regio, que viu de repente o seu nome respeitado e temido, de tal sorte Trindade Coelho encarna em si, na austeridade do seu caracter e no correcto exercicio da sua profissão, toda a perstigiosa soberania da Lei. Diz ainda Fialho d'Almeida, inteiramente insuspeito, quando se trata de aquilatar o merito de um auctor:

«Ahi está effectivamente revelado não só um talento plastico e bastante rico, em cambiantes, como tambem a pura agua d'um caracter cheio das mais finas intenções.»

Ás vezes, o magistrado recorda-se do artista e estremece de saudade nostalgica ou treme de frio... legal.

É então que elle murmura, (perdoa a indiscreta allusão, meu caro Trindade Coelho?) «Ah! que apertada gaiola esta, em que vejo fechado, o meu espirito! O meu trabalho, amo-o porque é o meu dever. Mas como eu ando longe, afastado, extraviado... de mim mesmo! Não faz idéa, não! Dentro d'esta jaula de ferro, veja! E là fóra, e lá em cima―que amplo céo azul para voar!»

Mas n'esse azul para onde lhe foge o espirito, quantos triumphos ainda o esperam, meu illustre amigo?―Guiomar Torrezão


Revista de Portugal:―(Excerpto de um artigo critico ácerca do de Antonio Nobre).―«Alma doente, o sr. Antonio Nobre soube extrahir da sua doença effeitos de Arte singulares e ás vezes intensos. Outros attingiram o mesmo objectivo pela descripção das emoções naturaes e pelo appello aos instinctos sãos do coração humano. Acabo de rêler o livro d'um escriptor tambem novo: Os meus amores de Trindade Coelho. Com casos da vida corrente e com sentimentos que podem ser comprehendidos por qualquer dos seus leitores, uma despedida, a affeição de dois pastorinhos perdidos na solidão do campo, os remorsos de um homicida junto á cruz da sua victima, o amor materno de uma cabra que se deixa morrer sobre o cadaver do filho recemnascido, consegue o narrador interessar e commover vivamente o espirito de quem o acompanha atravez d'essas duzentas paginas impregnadas dos succos da terra e do suor dos lavradores. Demonstração cabal de que a Arte é vasta e a capacidade pessoal decisiva para a belleza das obras.―Moniz Barreto


Da Vid'Airada: «Trindade Coelho.―Uma vez na sua frente, face a face, olhando-o bem, medindo-o d'alto a baixo,―o que não seria difficil mesmo no caso de que a medida dos homens se tirasse a palmos―fixando o olhar no seu olhar, e não perdendo uma só das suas palavras na mais simples conversa de algum quarto de hora,―ao separar-se elle de nós, porque [XLIII] já então a gente não se atreve a separar-se d'elle, tem-se adquirido a certeza de que aquillo é o que é, e chegado á mais solida convicção de que toda a verdade, toda a sinceridade de um temperamento e de um coração de homem, nunca se manifestaram mais expressivamente, mais insubmissas ao menor proposito do menor disfarce, do que na sua physionomia bem aberta, illuminada em cheio pelo brilho intensíssimo do seu olhar muito limpido, muito penetrante, se expressam toda a sinceridade, toda a verdade do seu grande coração e do seu impetuoso temperamento.

E ao vel-o partir pela rua fóra, decidido e tezo, resoluto e rijo, a cabeça alta, assentando com firmeza o pé pequeno, despejando caminho que dá gosto vel-o, não resistem os olhos ao desejo de acompanhal-o de longe, até que o percam na dobra da primeira esquina, e a gente diz ou pensa:―«Demonio!... Com meia duzia assim, poderia fazer-se alguma coisa ainda!...»

Porque no meio d'esta especie de contagio, que os perversos e as suas perversões vão espalhando em redor de si, fazendo estremecer os honestos quando com elles se cruzam, e tentando para o mal os fracos quando passam―só a presença de homens bons e sãos poderá melhorar este sólo e purificar esta atmosphera.

Na travessia dos dois mundos diversos a que este homem dedicou a viagem da sua vida,―o mundo litterario e o mundo judicial―affigura-se-me elle, talvez, como um antípoda de si mesmo, ora imprimindo o indelevel cunho da sua vigorosa e honesta individualidade em preciosos documentos para a dilacerante historia pathologica da sociedade portugueza n'este agonisar de seculo, quando aponta o implacavel index do Ministerio Publico contra os altos reus de certas causas celebres,―ora imprimindo n'algumas obras de pura arte litteraria, em que a elegancia da fórma é posta sempre ao serviço das emoções mais dôces e das mais penetrantes, esse outro cunho, d'essa outra individualidade que n'elle ha, e tão diversa é, tão original e tão rara, tão comtemplativa e tão terna.

...Sim! toda a verdade, e toda a sinceridade do seu grande coração e do seu impetuoso temperamento!

No tribunal, quando articule algum libello accusatorio em que as suas palavras se não limitam ao cumprimento do dever de officio, não tardará que á serena exposição dos primeiros articulados succeda a expressão calorosa, indomita, sempre crescente, da indignação, e da colera, que lhe provocam e açulam os factos e as razões de que vae deduzindo a tremenda accusação contra o réo―...esse réo que alli está, alli! sentado n'aquelle banco, sentenciado já, e de grilheta aos pés! Agita-se-lhe a circulação do sangue, a respiração accelera-se, a face ruborisa-se, todas as veias do pescoço e fronte se distendem, o peito enche, as narinas dilatam-se, tremem, fumegam... A excitação do cerebro vigorisa-lhe os musculos, affirma-lhe a energia, parece transportal-o ao imperio da força, [XLIV] n'um arrebatamento em que os dentes rangem, e as unhas se crispam, punhos cerrados, braços erguidos, completamente desordenado a frenetico!... A voz, sempre vibrante, chega a parar-lhe na garganta, quasi ronca, vociferando, em discordancias agudas que veem ferir de arripios a espinha dorsal do auditorio... Já não é para a justiça dos homens que elle appella; não lhe bastam, não o saciam as penas maximas dos Codigos! Quer o castigo do Céo, quer a justiça de Deus!

...O que não tira, ainda assim, que resgatasse da morte civil, bem peor que a morte natural, um desgraçado que a cegueira da justiça humana havia condemnado por assassino e ladrão―o pobre Manuel Barradas. Muito commentou a imprensa o facto, espantada de que um agente do Ministerio Publico, um feroz accusador, empenhasse dois annos agoniados da sua vida em apurar uma innocencia... Trindade conserva, encadernada, a collecção desses jornaes, e legou-a em vida ao filho, ao Henrique, pondo-lhe no principio estas palavras: «Meu filho, pela lei de Deus, a vida é só um pretexto para boas obras. Observei um dia a lei do Senhor, e Elle, em premio da minha obediencia, concedeu-me o poder legar-te um pedaço vivo do meu coração. Queres ouvil-o bater? Ausculta essas folhas... Bemdito seja Deus! serão ainda minhas as tuas lagrimas enternecidas, e, ainda depois de morto, viverei na tua commoção e na tua alegria, para a commoção e para a alegria da minha obra...»

Mas passa a tempestade, e volvido o bom tempo, que singular contraste nos offerece a outra phase d'esse mesmo espirito, quando o vulto austero do magistrado, cedendo o logar á delicada individualidade do homem de lettras, o desembaraça da toga e o deixa que vá, em mangas de camisa, muito á vontade e á fresca, pelas tardes serenas do seu bom humor, a vaguear pelos campos do seu sonho―sonho feito de saudade, d'essa muito viva e muito affectuosa ternura que á sua alma de artista dá, e que a sua prosa tão sentidamente traduz, a recordação de felizes tempos que não voltam mais, e que por isso mesmo nunca mais esquecem,―recordação a que andam para sempre ligados, n'uma doce e meiga associação de ideias, certos logares, certas pessoas, certas orações, certa ermidinha e certo olmo, que já lá estavam quando elle nasceu, que o embalaram nos primeiros somnos e lhe deram amparo nos primeiros passos; que ao baptismo o levaram, e o conduziram á escola; alegrando-se com as suas alegrias, entristecendo-se com as suas lagrimas...

N'esses momentos, sob o dominio d'esse lindo sonho, inundado do luar da sua terra, desannuvia-se-lhe o rosto, alisa-se-lhe a fronte, vê-se pousar-lhe nos beiços e nas palpebras a serenidade meiga de um sorriso, como que o doce agradecimento á alma de sua mãe, que tivesse vindo, muito devagarinho, muito devagarinho, abeirar-lhe o leito, aconchegar-lhe a roupa, e pousar-lhe nos olhos e nos labios a amorosa caricia dos seus beijos...

Por isso, a musica do seu estylo produz sobre a nossa sensibilidade [XLV] essas emoções e excitações violentas, em que a tremura dos musculos e a effusão das lagrimas realisam o phenomeno das emoções reaes.

Os seus escriptos obedecem sempre á logica influencia d'esta convicção em que elle está, quando me diz, bem medindo e pezando cada uma das suas palavras:

―«Positivamente, meu amigo, o publico deseja, antes de mais nada, que o escriptor preste na sua obra o culto que é devido á sua lingua. Depois, deseja que o commovam, que honesta e consoladoramente o emocionem, preferindo que o assumpto do quadro seja a exploração das coisas triviaes da vida, certamente porque reside no Simples a formula mais natural da Verdade... Comprehendo que o espirito dos que lêem está fatigado d'essa confusão do romance com o estudo, e convenci-me, emfim, de que a obra d'arte litteraria tem, como primeiro dever, e como condição primeira de agrado, de ser consoladora e suave, tocada sempre de uma pontinha ligeira de poesia que vá direita ao coração e entretenha, em quem lê, as faculdades emotivas, de preferencia, mesmo, ás faculdades intellectuaes...»

Releio Os meus amores, o livro dos seus contos. É o primeiro d'elles, Idylio rustico, de uma deliciosa simplicidade de aguarella, parece que feito sobre um esbatido de céo purissimo, côr de sovaco de andorinha e não sei com que singular sabor eucharistico de primeira communhão... É um sonho de absynto, que serve de aperitivo divino para a leitura soffrega de todo o livro. Dois pastoritos ingenuos, a Rosaria e o Gonçalo, encontram-se e approximam-se, n'uma indecisa alvorada de derriço, cheios de boas tenções e puros ideaes. Acontece, porém, que por viverem longe, raras vezes se falam, e quando essa ventura lhes é dada, imaginem os que como elles se amem a alegria que inunda aquellas duas almas! D'uma vez, passada alguma d'essas ausencias longas, quiz Deus que os dois inesperadamente se topassem, pela madrugada, quando iam levando seus rebanhos ao pasto. Logo combinaram juntarem-se as ovelhas, como juntos os corações traziam, e desde que nasce o sol até que o sol se põe, vagueam nas frescuras marginaes do rio, a par, e sós, elle dedilhando a flauta, ella recordando cantigas, com murmurios d'agua correndo, e ballidos suaves dos lanigeros, n'uma paz d'alma idylica de illuminura. E quando a noite chega, porque lhes custe immenso a separação, o Gonçalo a convida a continuarem juntos, deixando que as ovelhas durmam em mistura e que passem elles a noitada sobre o mesmo colmo, ao abrigo da mesma cabana. Não sem certa instinctiva reluctancia, Rosaria acceita; e como se deitem ao lado um do outro, tornando as mantas cobertor commum, e pousando as cabeças nos bornaes unidos, parecer-vos-ha, como a mim pareceu, que ali rompem os beijos desmedidos... Nada d'isso, perversos! A pouco e pouco vae escurecendo, e os bons dos namorados, n'uma placida orchestração final que se smorza, referem-se casos de moiras encantadas, e assim pegam no somno e adormecem... Tem a gente remorsos do que foi julgar: sente a tristeza da maldade nossa.

[XLVI] Depois, depois os outros, que seguem pelo livro fóra, e que vamos bisando e saboreando a pequeninos gólos, durante algumas horas bem fugidas, passeadas por aquellas paizagens e recantos provincianos que elle nos pinta, tão real e verdadeiramente como se lá estivessemos; em companhia d'aquelles typos que elle retrata, tão photographicos, tão nitidos, que é estar a gente a vel-os, a ouvil-os, a falar-lhes, a deitar-lhes o braço pelo hombro...

Antes dos seus contos nunca a prosa portugueza me havia dado, posta ao serviço da moderna arte, o ineffavel goso de tão estranhas, tão novas, tão encantadoras surprezas! Quizera eu, inedita, bem fresca, pela primeira vez usada a respeito da sua escripta, esta flagrante comparação:―dir-se-ia traçada com uma penna d'aguia... arrancada d'uma aza de pomba.

Os seus livros ficarão pertencendo ao numero d'aquelles que parecem possuir o raro condão de nunca envelhecerem no espirito de quem os lê. Relêr o que elle escreve é sentir o mesmo prazer, sempre renovado, de quando se contempla pela centesima vez algum querido, precioso objecto, que noventa e nove vezes se contemplara já: privilegio esse de eterna seducção, que só disfructam as obras em que o artista deixou pedaços da sua alma.―Alfredo Mesquita


Do Poema do Ideal:

Os meus amores! que livro
Tão fragante e saboroso!
Scentelhas aureas e vivas,
D'um prosador luminoso!

Brisas da serra!
Trechos idylicos
Da nossa terra!»

Fernandes Casta.






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or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.




Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm



Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.



Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.




Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation



The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.



The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations. Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org



For additional contact information:
Dr. Gregory B. Newby
Chief Executive and Director
gbnewby@pglaf.org




Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation



Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment. Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.



The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements. We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance. To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org



While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.



International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.



Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate




Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.



Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.




Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.




Most people start at our Web site which has the main PG search facility:



http://www.gutenberg.org



This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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