The Project Gutenberg EBook of Aves Migradoras, by Fialho d'Almeida

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Title: Aves Migradoras

Author: Fialho d'Almeida

Release Date: September 16, 2007 [EBook #22622]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AVES MIGRADORAS ***




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FIALHO D'ALMEIDA

Aves
Migradoras

4.o MILHAR

LISBOA
LIVRARIA CLÁSSICA EDITORA
DE A. M. TEIXEIRA & C.a (FILHOS)
Praça dos Restauradores, 17
1922

PORTO—Imprensa Portuguesa
Rua Formosa, 116

(p. 005) AVES MIGRADORAS

—Mas tu és minha amiga, balbuciava a creatura querendo tomar-lhe as mãos n'uma supplica desolada. Devias ter dó d'esta fatalidade que me leva ao encontro de Ruy. Oh, tu não sabes! A idéa d'elle tira-me o somno, embebeda-me, convulsiona-me, vai commigo a toda a parte. Tu ao menos tiveste familia, irmãos, alguem. A mim nunca ninguem me quiz. Os garotos puxavam-me os cabellos, meu pai batia-me em estando embriagado. Aos dez annos puzeram-me fóra, que fosse trabalhar. E andei descalça atraz dos porcos, ia aos sabbados pedir esmolas ás portas dos ricos. Um verão agarram-me a furtar uvas n'uma vinha: o vinheiro era um bruto, jogou-me um tiro; e cheia de sangue, quasi morta, uns cavadores que passavam, foram (p. 006) levar-me a casa da minha madrasta. Mas á embocada da aldeia, como eu ia estendida n'uma padiola de ramos, a senhora marqueza viu-me passar da sua janella, e por caridade, recolheu-me. Alli se fôra creando, a fazer companhia ao menino. Ruy n'esse tempo era um despota, obrigava-a a saltar muros, a pendurar-se de cordas, a fazer de cavallo. E batia-lhe. Em compensação Luiza adorava-o com um amor de cadella agradecida. Do fundo da sua humildade, nascia-lhe um deslumbramento inexplicavel, uma curiosidade, uma cegueira de Ruy. E nervosa, franzininha, como a figura d'uma borboleta na melancholia pallida d'um sonho, adquirira já precocidades: e os seus grandes olhos remordiam na belleza do pequenito, substractos de muitissimas aspirações. Na quinta, os trabalhadores ás vezes perguntavam-lhe:

—Queres ser amiga além do menino?

Ella abria os seus olhos vorazes, dizendo com a cabeça que sim. Entrementes o pequeno ia crescendo. Era alto, delgado, divinamente perfeito. Tinha já essa attitude desinteressada d'enthusiasmos, indifferente aos impulsos fortes, desdenhosa, petulante, das creaturas nascidas em meios altos, e destinadas ao predominio. (p. 007) As suas mãos davam cobiça, brancas de cera, e com detalhes mimosos d'obra prima. Oh, mas a bocca, inexplicavel, trazia embrionada na esculptura dos labios, todas as florações mysteriosas d'uma ascendencia patricia—bocca de chefe pela austeridade, de diplomata pela ironia, e de mulher pela doçura com que a descerrava, em sorrisos cicatrizadores das esgarçaduras que a sua altivez antes fizera. Quando elle veio do collegio a primeira vez, empallidecera: mas a expressão dos seus olhos era uma coisa indescriptivel d'encanto, de melancholia e suavidade.

Á enformatura tenra, oscillando como a haste anemica d'uma flôr de estufa, viera juntar-se o mysterio poetico d'um espirito insexualmente delicado, cujas infantilidades corrigia a cada instante um fogo-fatuo d'idéa, e a graça grave, indecifravel cambiante, da esphinge que contempla, sem desmentir jámais a prega austera da bocca. Era já, n'essa idade, a creatura de gostos raros, avara de palavras e gestos, fria, correcta, com preguiças d'ataxica e relampagos de crueldade na pupila augusta de Cesar, adorando o luxo dos palacios antigos, tendo a mania do bibelotage, e antegostando, como todos os homens da sua (p. 008) familia, uma especie de deleite perverso no desnortear pelo testemunho das suas impressões prevaricadas, a sensibilidade reputada normal pela outra gente. Essa susceptibilidade depressa se embotava todavia, reclamando intercadencias, e por vezes derivando em passageiras allucinações. Indole toda de nuances, refrangida d'um sangue com predominio de soro, como uma luz coada através da sêda d'um biombo, elle parecia arvorar o pallido como flamula de guerra da hoste macabra dos nevrosados, cuja vida o tédio do vulgar envenena. Por seu lado, Luiza conseguira ganhar pela viveza dos seus expedientes e remoques, o espirito da senhora marqueza, ao tempo enlanguescido no estranho mal que ia varrendo as gentes da sua raça, mercê das allianças consanguineas em que esta teimára immobilisar-se. Em cinco annos, nada restava já da pequena mendiga chegada ao palacio n'uma padiola de ramos, com os cabellos nos olhos, os pés enlameados, coberta de trapos, e resequida n'uma magreza dolorosa. Era uma bruna de beiços rubros, dentes pequenos, com fórmas d'esculptura e sadias destrezas d'amazona. Desde a partida de Ruy para Campolide, que ella não tinha na casa occupações (p. 009) definidas. Conservavam-n'a, um pouco por gratidão, e por amor tambem, um quasi nada. E assim era um bocado de tudo—leitora, enfermeira, guarda das estufas, esmolér-mór, creada de mesa e bordadora—e assim podera conservar a sua selvageria d'origem, tão familiar aos serviços da propriedade.

Luiza era intelligente: alli se fôra educando, aprendendo, adquirindo pela familiaridade da boa companhia e da riqueza esparsa em obras de gosto, através dos velhos aposentos, essa cultura interior de sentimentos, essa exoticidade de preferencias, essa indiscutivel distincção de conversar e receber, que a tornaram depois tão appetecida cá fóra—isto realçado co'a turbulencia da creatura nascida em pleno campo, espojada nos fenos, e rebelde no sangue, longe das peias deformantes da sociedade. Só de longe a longe, á força de hydrotherapias complicadas, a senhora marqueza obtinha uma ou outra hora de vida serena, e conseguia furtar-se aos lugubres nervosismos da enfermidade. Era o feitio de Ruy, menos a juventude, mais a impaciencia. A custo lhe sahia o espirito das abstracções e somnolencias em que ficava embrenhado horas e horas; e exiguamente, distillando a (p. 010) lucidez como uma essencia, gotta a gotta, n'um ting-ling monotono. A sua vida passava-se n'um canto de capella, entre sombras, enterrada n'um fauteuil com baldaquino, e só de lá sahia para se entregar ao cultivo de quatro ou seis predilecções extravagantes. Resentia-se do claustro onde passára os primeiros annos de educanda, e da côrte onde tinha gosado os primeiros mezes de casada. Era uma natureza extatica, adorando as pompas do culto, os requintes subtilisados da lithurgia, os movimentos dramaticos do orgão no instrumental das grandes cerimonias—um pouco de mysticismo, n'um pouco de miguelismo, n'um pouco de idiotismo,—com paixões de plantas monstruosas e aves singulares, alimentando-se de fructas, vestida de antigos damascos e pompadours de raminhos, e tendo sempre bolos d'ovos no beniterio do seu genuflexorio. Era vêr a ternura de Luiza durante as crises da boa senhora, e a meiga servilidade da sua voz rebuscando as mais enternecidas musicas, para pedir perdão de lhe não ter adivinhado mais cedo o pensamento.

Essa ternura, Luiza não a fazia nascer exclusivamente da gratidão que nutria pela (p. 011) castellã: vinha antes da emoção que Ruy lhe dava, da febre que lhe produzia a lembrança da sua belleza fruste e singular. Todas as dedicações se fundiam n'ella, e assim todas as especies de desejos inquietantes. Vinda d'uma mancebia d'aldeia, onde rolavam a toda a hora palavras bebedas e acções quasi medonhas, Luiza achára entre os moços da quinta, nas conversas surdas da cozinha e da arribana, á hora da ceia, a continuação do que vira e ouvira em casa da madrasta. Fôra preciso um cuidado assiduo, nos primeiros tempos, para refazer-lhe o vocabulario, e transviar para intuitos mais limpidos, a tendencia de vicio que ella trazia no sangue, em purulentos coagulos. Se a educação e o mimo em que fôra subindo, á proporção que se insinuava nas sympathias do palacio, lhe haviam feito a lingua casta, e a expressão virginea, já por fim, no fundo, o terrivel sangue conspirava n'ella, co'as herdanças fataes da vida airada, phosphorejando ardores que a nubilidade ás vezes desencadeava em verdadeiras procellas. Inda creança, o seu amor pelo Ruy já não podia dizer-se immaculado. Não era esse idyllio de bambinos colligados na mesma adoração por uma boneca, nem a celeste comedia, (p. 012) inolvidavel, de duas cabecinhas attentas para o mesmo malmequer que se esfolha á beira d'um campo de trigo, sob o guarda-sol de sêda que a ama baloiça, sorrindo de os vêr tão sérios, os dois noivos pequeninos. Mas uma paixão d'inferior que se deslumbra pelos filhos da raça cujas perfeições não pôde igualar, paixão com haustos de posse, indeclinavelmente physica, prematura, perversa, e cheia d'estonteamentos já torpidos. Com a idade, aquella ancia de Luiza não se corrigia nem purificava, senão ia crescendo, accentuando, colorindo, na medida da sua adolescencia cada vez mais radiosa em seducções.

Nas férias, mal se sonhava o dia em que Ruy devia chegar, já ella não parava quieta em parte alguma. E eil-a passando os dias nos aposentos do menino, revolvendo alcatifas, mudando o logar do leito, perturbando a ordem dos quadros, a disposição dos mobilamentos, agrupando plantas, pelo que sabia das predilecções de seu amo—pondo stores e biombos em todos os portaes por onde francamente entrassem a luz e o ar. Na casa, os creados sorriam, como quem sabe de tudo—gallinha canta... E os ditinhos pullulavam. (p. 013) Mas um que era já ruço, muito gordo, quasi sacerdotal pela rigidez da compostura, costumava deter-se á porta dos quartos, tossindo devagarinho, a vêl-a trabalhar.

—É o Ezequiel menina Luiza.

Ella gostava d'esse, que a defendia sempre das animadversões da creadagem, e por toda a parte a cercava de deferencias tocantes. Mesmo, das suas palavras paternas, ruminadas n'um fundo de reflexão um poucochinho canalha, vinha-lhe uma sorte de lisongeira coragem. Ezequiel era o unico que parecia não pôr em duvida a ascendencia de Luiza sobre a outra creadagem. Emtanto elle ás vezes punha-se a esquadrinhal-a, na sua bonhomia de velho, deixando cahir palavras descuidosas aqui e além, para a fazer dar á lingua, e espaçando reticencias de proposito, no sitio onde a rapariga, simploriamente, logo ia prender revelações.

—Muitos parabens, menina Luiza. Faltam só quatro dias.

Ella, fingindo não entender:

—Ora essa! Para que, Ezequiel?

Elle ia entrando, punha o espanejador ao canto da porta, enxugava os dedos da pitada ao avental.

(p. 014) —Estas raparigas, estas raparigas!... E d'ahi que tinha? Não ha tanta menina pobre casada com pessoas grandes? Eu sempre queria vêr...

—Vossê, Ezequiel, nunca tem melhores lembranças. Ora o mofino!

E o velho, conciliador:

—Acaso admira que vossemecê goste de Ruy? O contrario é que espantava. Creados de pequeninos, no mesmo berço quasi... E olhe que têem muita força os beijos a que uma pessoa se acostuma de creança.

Ella empallidecia e córava sem escrupulo, surprehendida no divino tormento que lhe extasiava o espirito em fogos multicôres.

—Olhe cá, Ezequiel. Cada um no seu lugar. O que diriam de mim, santo Deus?

—Coisa nenhuma, coisa nenhuma. Todos vêem como a senhora marqueza trata comsigo. Zús d'aqui, zús d'alli, está-lhe sempre a chamar minha filha. Olhe que é muita amizade, é amizade de mais para uma servente. Eu sei que isto enfurece os invejosos. Não faça caso, menina Luiza, não faça caso.

—Ah, não tenha medo, Ezequiel.

—E o menino Ruy então, não fallemos. Esse gosta, e gosta muito. Até cartas lhe (p. 015) manda. Não se faça encarniçada, menina Luiza.

—O disparate!

—Já cá sabemos tudo; pois então!

—Crédo! Santo Nome! São cartas que elle manda para a senhora.

—Para a senhora, sim, para a senhora mais nova. Eh! Eh! fazia elle batendo as palmas, n'um tom maligno d'avô condescendente. Essa cama que fique bem fofa, essa campainha que fique bem perto. Rapaziada, rapaziada!

Ouvindo estas coisas, Luiza abandonava-se, perdia a cabeça. E do coração subiam-lhe á bocca ondas de confidencias, gritos d'alma, brutaes franquezas de rebelde. A intensidade do seu sonho interior era tão forte, tão sobreexcitado o delirio da sua imaginação, que para seguir-lhe a trajectoria, Luiza compromettia-se mentindo, gabando-se de scenas imaginarias, sem quasi perceber que se calumniava. Não, Ruy não lhe escrevia. Não, Ruy não gostava d'ella. Mas Luiza, Luiza morria por tel-o ao pé de si. Esses dias eram uma doidice, e Luiza não dormia, Luiza não comia, Luiza não dava attenção á leitura, Luiza estava distrahida á missa da senhora marqueza. (p. 016) A cada instante, omissões no serviço, pequenos confortos descurados nos aposentos, portas abertas deitando correntes d'ar, stores erguidos nas janellas, que endoloriam os olhos da enferma, apenas familiarisados co'as penumbras cinzentas do seu canto d'oratorio.

Então a fidalga impacientava-se: as impaciencias traziam-lhe o nervoso. Era um horror. Para poisar os dedos no braço de Luiza, abrir o livro de rezas, dar uma dentada n'um bolo, a pobre creatura estava minutos em sobresaltos choreicos, debatendo-se contorcida, sentando-se e erguendo-se apenas se sentava, lançando da bocca palavras improprias, repetindo certos adverbios no meio das phrases: e amargurada, presa de terror, por ter a consciencia de não estar fallando bem.

Raro, raro, o senhor marquez que residia em Lisboa, na roda dos alegres viveurs d'então, se aventurava até áquelle deserto da quinta, calado, religioso, e com uma expressão claustral d'austeridade. N'essas poucas visitas, sua excellencia não vinha por certo estancar saudades de sua mulher, senão solicitar da pobre dama, mais uma vez, assignatura (p. 017) para alguma hypotheca que o auctorisasse a proseguir na sua vida libertina de velho rapaz. Chegava então pela noite, em caminho de ferro, estava até ao outro dia, e na madrugada seguinte, zut! elle ahi vai. As palavras que os dois esposos trocavam, eram uma simples formula de deferencia imposta pelo orgulho ás cogitações chocarreiras da creadagem, em que ella buscava mostrar o desdem que nutria pelo esposo, e o esposo parecia artificialisar ainda mais, a sua amabilidade correcta de marido desencantado. Na primavera comtudo, a visita do marquez prolongava-se d'alguns dias, como era o tempo das caçadas. Trazia então quatro ou cinco velhos amigos, alguns creados, e as matilhas de galgos requeridas para a diversão. A marqueza recluia-se mais, se é possivel, no seu angulo de palacio, pretextando que a luz lhe encadeava a vista, que o ruido lhe exasperava a migraine, e o aspecto da alegria dos outros mais fazia contrastar a sua mortal e esmaecida tristeza de antiga moribunda. E os caçadores ficavam sós, livres inteiramente para deixar correr sem respeito, n'aquellas duas ou tres semanas de campo, uma impetuosa existencia de barões feudaes, accesa nas (p. 018) risadas do bom vinho das cavas, nas correrias em pós das rapozas e lebres, e castigando-se á noite, finda a ceia, Deus sabe, entre os braços das mulheres que Ezequiel recrutava discretamente pelo burgo, na grande sala de lambeis gobelinos, com mobilias marchetadas de quatro seculos. Todas as manhãs, Ezequiel ia aos aposentos da senhora marqueza deixar galantemente um ramilhete da parte de seu amo, que á volta da caça lhe mandava em plateau tambem, a melhor peça da correria. Os fidalgos de ha trinta annos eram ainda mais inuteis que os de hoje. A mordomos e intendentes abandonavam a gerencia dos seus negocios interiores. Restos d'altivez faziam-lhes encarar desprezivelmente o que elles chamavam classes subalternas. Isto contrastando nas suas horas lucidas com a intimidade que a mór parte abria a fadistas e toureiros, nos momentos de vinhaça, por esses bordeis que ficaram celebres em cantigas do fado. Este marquez de Selmes foi como os outros, um perdulario espargindo fortuna e forças no rodilhão dos prazeres mais em voga ao tempo. Em Lisboa, dava talher a uma turba de litteratos, graciosos e moços de curro, com quem elle gostava de mesclar os seus jantares d'intimos, (p. 019) por manter o ar d'um grande senhor amigo das artes, requestado pela popularidade dos varios conventiculos elegantes da capital. E na quinta, aquelle mundo heterogeneo de parasitas representava-se um pouco, mais resumido, pelo critico Lagoaças, Alberto M., Marquez das Flôres, grande pegador de bois, pai nobre Cezario, e festejado Mattos, que fazia rir a sociedade referindo historias da Lisboa duvidosa, no seu aranzel comico de tatibitati. N'aquella primavera, a surpreza do marquez fôra Luiza, a grande Luiza que lhe surgia de repente uma senhora, e cujas infantilidades o velho galante distrahidamente afagára até ahi. Lagoaças, que era forte apreciador de fructos no cedo, foi o primeiro a chamar-lhe a attenção para a deliciosa frescura d'aquella maçã prohibida, que promettia co'os seus acres succos perfumar a bocca de quem lhe cravasse os dentes primeiro. Foi então um movimento geral de galantaria no grupo dos caçadores, sobre Luiza. Com a sua nonchalance habitual, o marquez dava carta de corso aos amigos, admittindo-lhes correr palacio a qualquer hora, em pós da famosa presa, se tudo fosse discretamente acontecido. Quem mais lesto e galanteador se antolhasse, (p. 020) mais esperanças poderia nutrir de successo. Alberto M. começou uma elegia.

Deliciosa aranha delicada,
E com pennugens d'oiro revestida:
Ligeira, dôce, setinosa e leve...
Tens a peçonha lubrica mettida,
Na caricia das patas côr de neve.
.................................

Marquez das Flôres era outro genero: confiava na mocidade viril dos seus braços, e nas casacas vermelhas de caçador com que apparecia todas as manhãs no grande pateo da casa, soado o primeiro hallali nas trompas dos monteiros. E a batalha começou, estando Ezequiel empenhado em fazer triumphar o marquez.

Uma manhã fazia Luiza o ménage dos passaros, sobre o terraço, Ezequiel que chega d'acaso. Bons dias d'um lado, bons dias do outro, e começou uma conversa d'introito, ao fim da qual, sem se saber como, Ezequiel já fallava nas graças de seu amo, ideal dos fidalgos generosos, nata dos amigos commodos, e non plus ultra dos amantes discretos. Não é verdade, menina Luiza, não é verdade? Ui! que gorgetas elle lhe dava! Pares de calças (p. 021) que lhe abandonára, novinhos em folha! E a sua maneira de tratar então, como d'igual para igual!

—Boa pessoa, fez machinalmente a rapariga, é muito boa pessoa.

—Uma coisa não sabe a menina. Elle está doido por si.

—Ai! o tramouco do velho...

—Diz que a ha-de fazer muito feliz.

—Brr! Pois quem somos nós?

—Tanto que me encarregou...

—Vossê alcovita agora, Ezequiel?

—Desejaria vêl-a amparada, menina Luiza. Conheci-a pequena n'esta casa, vi-a medrar e fazer-se mulher, e gosto de si como os avôs das netinhas tagarellas. D'ahi, não promette grandes dilatamentos a vida da noss'ama: cedo, tarde, quando menos cuide, ahi vai ella caminho dos anjos. E fallando claro: a situação que ella lhe fez n'esta casa, é uma coisa postiça que lá fóra a menina não poderá continuar sem uma protecção. Quer que mudemos de conversa?

—Posso, Ezequiel, isso posso. Não digo a servir, mas escolhendo rapaz com quem me case.

—Da aldeia, da quinta... Que creação é (p. 022) a d'esses homens? Afeitos ao trabalho das terras, querem mulher da sua condição, que sache, que monde, que moireje, e vista d'estamenha, e tenha rijeza p'ra lhes parir um creanço, em todas as paschoas de Deus. Além d'isso, duas naturezas desiguaes na educação—marido ciumento da mulher que não merece—mulher desprezando o marido que a não soube captivar. D'ahi zangas, ralhos, maus tratos, que sei eu? Ao passo que sendo rica, poderia encontrar um moço d'estimação que lhe fizesse a vida doirada, n'uma casa cheinha como um ovo.

—Mas rica, rica... Vossê conhece a minha gente. Morrem todos de fome, lá por casa. Se me não comem os olhos, é que não podem tirar-m'os sem que eu dê por isso. Ser rica, de que modo, por que processo? Diga.

—Eu a bem dizer, não tenho plano. Idéas vagas, muito d'alto, que se não podem assim contar a uma rapariga nova e com principios diversos dos meus. Idéas de velho que viu mundo e sabe chamar os bois pelo seu nome. Olhe. Quando eu era rapaz tive uma patrôa viuva, entradota, mais que medonha—inda esbraseada por noivar, pobre senhora!—que uma noite me beliscou o assento, de passagem (p. 023) por um corredor ás escuras. Eu não quiz: gostava muito mais da cozinheira: opiniões de galucho, menina Luiza! Fui p'ra rua como era de justiça. Quatro annos depois estava o cocheiro nomeado visconde do appellido da minha antiga adoradora. Perdidinha por mim, menina Luiza, perdidinha. Carago! E eu tão bruto que não quiz! Se lhe ponho as calças em cima, andava agora de sege por essas capitaes.

—Fallando claro, o teu sermão quer dizer: amiga-te com o senhor marquez, rapariga. Não é isto? Por sua morte, talvez sejas rica; em vida d'elle por força has-de ser feliz.

Ezequiel não retrucou, mas poz-se a contar historias de raptos, vergonhosos amores, coisas cynicas e patuscas, sem apparente colligação de sentido. A voz fizera-se-lhe surda, d'uma firmeza espaçada que lhe espargia na face aspectos graves de prégador e de magistrado. E recapitulou da prédica, pitadeando, que a vida era um quotidiano mercado onde a gente adquiria o que por acaso tivesse de sobrecellente. Manoel Antonio Ferro, sahira da aldeia com elle, Ezequiel, em 40, com tres pintos no bolso, e o saquito da roupa branca. Entrado marçano n'uma loja do Porto, roubou (p. 024) o dono: primeira façanha, vá vendo... Foi ao Brasil mercandejar nos escravos, volta millionario. Chegado a Lisboa n'um estadão de principe, recommendado até aos olhos, nenhuma casa se abriu para o receber. Trazia na consciencia duas mortes, ao que se contava, e uns poucos de processos por contrabando e moeda falsa. O homem não se ralou muito co'a recepção dos patricios. Fez tranquillamente um palacio na Junqueira, talhou jardins, comprou herdades, derribou azinheiras, plantou vinha, fez eleições: e um bello dia, quando já entrava a ser necessario, deu doze contos para escolas, reclamando farda de moço fidalgo, pelos Ferros de Santo Thyrso, que eram ladrões d'estrada e sapateiros. Toda a gente entrou a chamar-lhe venerando, desde os doze contos. Hoje, ninguem funda um banco sem o nomear director, e não se inaugura uma escóla sem elle lá ir botar discurso, com os seus ares de pai-avô. Está par, está conde; e se ainda não põe na cabeça a corôa real, é que já tem uma de cornos, mimo da mulher, a sogra d'este Marquez das Flôres que ahi está de visita. A duqueza de Montes, menina Luiza, hoje velha, e tão virtuosa senhora, que manda rosarios da Terra Santa (p. 025) a noss'ama... era uma dançarina do primeiro café-concerto que se fundou em Lisboa, cheia de molestias. Depois da dança, vinha p'ras mesas embebedar-se com genebra, sentada no collo de quem lhe desse dois pintos. Eh! Eh! Tudo se vende e se compra: caras geitosas, virgindades velhas e novas, familia, patria, salvação, condecorações, reputações, sapatos d'ourello e garrafas de vinho. Quer um bom camarote no reino dos céos, menina Luiza? Dê quatro contos ao papa: manda-lhe a chave na volta do correio. Faz-se de côres? Ora adeus! Não digo que seja dos Evangelhos, esta doutrina. Mas é o resumo de cincoenta annos de trambulhões e miserias. Seja-me rica! A primeira felicidade é ter que vender. Mas a unica, a verdadeira, é poder comprar.

—Ezequiel, vossê tem a alma ruim.

—Por lhe confessar que só os imbecis se portam bem? Por lhe dizer que este mundo é dos descarados? Ai, se eu tivesse podido convencer-me d'estas coisas na sua idade! Não traria agora senão a libré de mim proprio, e o mundo havia de fazer o que me viesse á cabeça. Faça o que quizer, menina Luiza. Mas esta fabula é clara como agua. O senhor marquez gosta de si. Qualquer dia (p. 026) a senhora marqueza, trrr... foi-se. Que ha de fazer a Luizinha? Estará resolvida a dar-se por mulher ao primeiro labrego que venha? Mas creatura! Voltar para os casebres da sua madrasta, d'onde fugiu a honra com medo aos piôlhos? Brada aos céos! Viver pura como a luz, uma vida escura como a noite? Olha a tolice! Despir trajos de senhora, deixar este palacio e os confortos da vida farta, a que se afez desde pequena?.. Bau! Bau! não tem coragem. Isso sim! Vá, tane as mãosinhas em trabalhos que humilham e não salvam da pobreza e da fome. Hum! Hum! menina Luiza. Esses olhos não mentem no que deixam adivinhar. Venda, venda! O senhor marquez gosta de si.

As lagrimas saltavam já dos olhos de Luiza.

—É mais facil morrer, disse ella.

—Pois minha rica, não será rondando o Ruy noite e dia, mais de noite que de dia, que a menina ha de ir á cova de capella e palmito. Gostar do filho, tem todos os inconvenientes de gostar do pai, menos as vantagens. Esse pequeno é um cabeça louca; póde fazer apetite ao femeaço—o que não faz com certeza é uma bizarria que a deixe independente (p. 027) a si. Porque não póde! Porque não tem! D'ahi, tarefa inutil perseguil-o. O fedelho por ora não larga os amiguinhos do collegio. A menina não tem fortuna, parece-me ambiciosa... Venda. O seu genero está na alta. Dezoito annos. Uma lindeza! Venda. Bocca de morango, voz de seraphim... Venda, venda. O senhor marquez gosta de si.

Era o tempo das florações e dos ninhos. Divinas juventudes explodiam d'amor nas seivas da terra, na luz e nos perfumes do ar. O céo dôce, todo o campo uma distillaria d'essencias: lá baixo, na aldeia, as romarias começavam, e os casamentos tambem. Luiza guardava silencio, co'os olhos longe, vendo subir a manhã pelo cantar dos passaros. Comprar e vender. Vender e comprar. Uma carinha bonita, um corpinho perfeito. O senhor marquez gosta de si.—E Luiza chorou todo o santo dia.

 

N'essa cabeça de fogo entretanto, surgia cada vez mais fascinadora, a imagem de Ruy, toda abrasada d'estranhos prestigios: e diante d'ella ardendo sempre o lampadario d'um culto cego e inexoravel. Com o pequeno (p. 028) tinham vindo á quinta passar as férias da Paschoa, tres ou quatro dos seus companheiros mais intimos—Palhalvo, já gordo aos quinze annos, cujas bochechas tinham o geito d'estarem soprando uma desconforme trombeta, á semelhança d'esses anjos papudos que fazem apotheose ao calix mystico, nos frontões das capellas-móres—Mattoso, filho d'um criado velho, que a senhora marqueza destinava ao sacerdocio, e dominava o grupo com os seus modos severos de preceptor—Jorge Forjaz, primo d'Albertina, era o litterato, e recitava Rodrigues Cordeiro e Palmeirim nos banhos da Nazareth e Praia da Vieira—emfim Biscaya, especie d'aranhiço adunco, côr de feno, sempre tossindo, era um engeitado que o marquez recolhera e mandára ensinar, e cuja maldade e azedume transpareciam já nos seus dichotes de gaiato. Esta ronda de meninos bonitos, uns mais precoces do que outros, alvoroçava o palacio logo ao romper da manhã, extravasando nos pateos em exercicios de força e gymnastica, furtando beijos ás moças por onde quer que as topasse, partindo n'uma algazarra, em carretas de lavoira, para as searas onde mondassem raparigas, ou organisando correrias, d'onde os cavallos voltavam (p. 029) desferrados e cobertos d'espuma. Póde-se calcular o que estes diabos accrescentavam de desordem á volta dos festins do marquez: excepto Ruy, que ia ao almoço e jantar fazer companhia a sua mãi. Era a unica imposição tambem da boa senhora, ter o filho em toilette, defronte de si, nas refeições. E isto enchia d'importancia o pequeno, todo esforçado em infiltrar na melancolia austera da enferma, um raio da sua graça juvenil. Mesmo, o seu respeito por ella, timbrava em mimos, pieguices, ternuras, pequenas dedicações que a velha dama absorvia sem transluzir na face exangue emoção d'especie alguma.

Desde que Ruy chegára á quinta, a marqueza dispensava Luiza de lhe lêr as orações e velhos livros de pastoraes, villancicos ou novenas aos santos patronos mais dilectos. Era então Ruy o encarregado de lhe percorrer as passagens estimadas. Elle a tudo se prestava, com um tocante respeito de pagem amoroso, tentando seguir nos olhos d'ella o grau de satisfação que promovia, e evitando as crises com uma ligeireza d'alma adoravel e compadecida. Immovel por traz da cadeira da marqueza, Luiza servia-os, interpondo a enferma como medianeira innocente, no jogo (p. 030) galante em que ella buscava encasular a adolescencia do rapaz. Alguma vez este lhe dirigia a palavra, a buscar apoio n'uma asserção, a preferir o conselho de Luiza no tocante a qualquer pormenor de solicitude para com a mãi. E a alegria da pobre creatura, quando elle erguia aos olhos d'ella, os seus olhos picados de scentelhas leaes! N'essa alma de collegial, toda escrupulosa no froufrou da sua alvinitente plumagem, parece, nenhuma idéa de mulher passára ainda. E Luiza interrogava-se, sofreava-se, confusa, estonteada, aterrada das suas audacias, e sem coragem de revolver co'a sombra d'uma coquetterie, o lago azul d'aquella pureza celeste.

Uma manhã, cedo ainda, Luiza ia acordar Ruy para um almoço na horta, antes da caçada, quando se deteve á porta do quarto, sentindo rir e cochichar por entre as cortinas do leito. Talvez que Palhalvo, madrugador, a tivesse antecedido. Uma avidez de saber espicaçava-a entretanto. Pé ante pé, esgueirou-se por entre os batentes da porta, franzindo pouco o reposteiro, para se ir acocorar, sutilosa, por traz do grande biombo de coiro que resguardava a entrada. Era um dialogo abafado, d'um tom unido, e com palavras expirantes (p. 031) que ás vezes se perdiam entre murmurios de suspiros e beijos. Luiza avançou traiçoeiramente a cabecita de vibora para fóra do esconderijo. E os seus olhos estavam como uma interrogação rancorosa, através das phantasticas elegancias d'essa camara, que nos seus mais pequenos detalhes evocava em estatua a organisação desconnexa, fruste, mysteriosa, desigual, que lá vivia. Bem podia a estranheza da installação ser tomada em amostra de faculdades singulares. D'aquellas fórmas erraticas e symphonicas de côres amortecidas, via Luiza exhalar-se, sob um dia novo, a alma exotica a que ellas serviam d'involucro. As paredes eram forradas de velludo sombrio, já desbotado nos sitios do sol, e com pinturinhas vaporosas de figuras e flôres. Sombrios tapetes, quasi uma relva, amorteciam a bulha dos passos, até aos degraus do immenso leito toucado d'escuro, á laia d'eça, e com cercaduras á moda das da armação mural. Uma quantidade de moveis singulares: credencias d'ébano sobre ligeiros pés, trabalhadas como uma renda preciosa de volutas, entre ferrarias de prata batida a martello; nudezas d'estatuas aos cantos, brancas d'insomnia no rasgo genial das suas attitudes, (p. 032) servindo de cabide a chapéos de mil formatos: grandes jarrões sobre cubos esculpidos, em cujas arestas noctiluziam douradas vagas de pregos: e mesas carregadas d'estatuetas, marfins, velhas miniaturas, bocetas esculptadas: espelhos de metal, tenebrosos, por cima dos canapés, fazendo surgir da sua agua verde, esqualidos phantasmas d'enforcados: roupões de grandes desenhos na espalda dos tamboretes: e defronte do leito, um enorme divan com os cochins em desordem, alguns atirados, e livros por cima, cujas folhas os galgos iam passando entre as patas, por distrahir-se, nos intervallos da somneca. De cada um d'esses pormenores, um braço sahia e apontava um capricho, escaninhos velados de religião instinctiva, qualquer coisa de cavalheiroso em que palpitava uma raça, ou se iam espreguiçando as passivas mollezas da anemia hereditaria. Lentamente, os olhos de Luiza afizeram-se a divagar por toda aquella confusa penumbra. Pela direita, acima do genuflexorio, n'uma especie de tryptico negro, havia um quadro: era estranho: duas mãos brotavam da carbonosa noite do fundo, implorativas, mãos d'asceta devorado pela tentação: uma cabeça (p. 033) funebre movia-se nas sombras d'um capuz, insistindo em affirmar o quer que fosse d'asperrimo—se a lampada gothica de tres bicos, cahida do tecto, oscillava, no tom mortiço que as luzes têm de dia, mesmo ás escuras. Aquillo parecia um templo, sob a agonia terrivel da lampada. Mas já lambendo o muro, o clarão d'ella fazia valer tropheus d'armas, radiando d'estapafurdias panoplias: a mitra d'um bispo, cravejada de joias, um parasol de coiro arrancado ás escavações d'um templo romano, em Evora, peitoraes d'uma antiga cota sarracena... E dir-se-hia uma sala d'armas então. Porém do outro lado, a luz ia aclarar perto do leito, um perfumador de cobre sobre tripé de bronze. Luiza reparou. Ligeiros fumos fugiam á tona da caçoila, espojando arômas de flôres de Takeoka, bolas de styrax, coiro da Russia, jasmins... E santo Deus! a narina farejava lupanar. De quando em quando, as cortinas do leito mexiam, e pelo ar respirado da peça, aquelles perfumes torpidos erravam, n'essa calentura das alcovas habitadas pela reminiscencia de muitos amores sobrepostos. Luiza sentia-se desfallecer, á idéa d'outra mulher antes d'ella, ter captivado o estudante. Mas que mulher? dizia (p. 034) a camareira emparvoecida. O nome d'ella? O feitio d'ella? Dentro do palacio, por mais que procurasse, não descobria uma rival. Sua irmã não era bella: e fatigada, arrastando saias de barra immunda... Na cozinha, as creadas, todas feias de perder os sentidos. Alguma creatura de fóra? Isso é que não! De noite, Luiza rondava os corredores: a galeria que abraçava exteriormente o quarto de Ruy, era Luiza que lhe fechava a grade de ferro, aberta sobre os jardins. E irresoluta, tinha um suor na raiz dos cabellos. Aquelle sonso! Aquelle vil!—A sua primeira gana tinha sido correr ao leito, afastar as cortinas, ir contar tudo á senhora. Mas um terror apoderára-se dos seus membros. Que medonha noite na sua alma, que singular e perfida violação do seu destino, quando ella visse com os seus olhos, palpasse com os seus dedos, o que já alcunhava de traição a uma fé que ninguem lhe havia ainda jurado! E lá dentro, n'aquelle infame ninho de volupias, sempre o murmurio de beijos e suspiros. Urgia emtanto chamal-o para o almoço. Já no pateo havia rumores de vozes e relinchos de cavallos. Luiza sahiu pé ante pé, para entrar outra vez com grande ruido de portas (p. 035) atiradas. Mas ainda ella não transpunha a área de resguardo marcada pelo biombo, Ruy sahiu do leito com impeto, muito pallido, vestido apenas d'uma camisa de sêda: e vindo a ella, volubilmente, abraçou-a a plenos braços, deu-lhe um beijo furioso na bocca, e de rodilhão pôl-a fóra, fechando a porta sem mais explicações. Foi n'aquelle idyllio triste a unica impressão feliz que ella sentira: e todo o dia, toda a noite, lhe sabia a bocca áquelle beijo de rapaz que lhe entrára na carne pela furia virulenta da lingua.

D'alli a pouco, os caçadores deixavam o pateo direito ao laranjal. Luiza chegou-se ao terraço a vêl-os partir. Era o resto. Alberto M., empurrava para a porta Marquez das Flôres, retardado em dizer madrigaes á camareira. Festejado Mattos ia bifurcado n'um burro, immovel como um bonzo por baixo d'um grande chapéo de esteira do Algarve, entre cabazes de provisões. Marquez de Selmes fôra o ultimo a transpôr a porta. Reparando em Luiza, gentilmente:

—Tira a cabeça do sol, não adoeças.

E mandou-lhe um beijo nos dedos. Então ella alongou a vista para além dos muros do (p. 036) pateo, viu Ruy pelo braço de Mattoso, conversando a passos vagarosos.

—Menina Luiza.

Era Ezequiel com uma caixa de marroquim.

—Da parte do senhor marquez.

Luiza abriu o cofre, na ingenua expansão de Margarida ao atacar a aria das joias, na scena do jardim.

—Joias, joias! e houve no orgulho d'ella, um romper do sol vertiginoso.

—Para começo, é do melhor, dizia Ezequiel. E Luiza tocava n'um bracelete ao acaso, com safiras e pequenas perolas d'agua duvidosa. Havia mais um afogador, seu par de brincos, outra pulseira... E a sua bocca sorria de pasmo, na sua cara enxovalhada de pejo.

—Vale quarenta libras, toda esta caganifancia, quarenta. O homem faz limpamente os seus negocios, dizia Ezequiel. Eh! Eh! ponha lá as pulseiras, menina Luiza:—abriu uma.—Que lindeza! Metteu-lh'a no braço. É para vêr como fica.

Luiza toda se arrepiava ao frio do metal na pelle trigueira do seu punho. Lembravam-lhe aquelles beijos na camara de Ruy, pela manhã. E fechou o cofre de repente, (p. 037) dizendo a Ezequiel que o tornasse a levar ao marquez. Com certeza houvera engano. Ella não podia aceitar presentes d'aquelles.

Então c'o gesto grave, Ezequiel:

—Nada, nada. Seu amo ficaria fulo, se visse as joias recambiadas.

Mas Luiza não o escutava, nem ouvia. De novo, o ciume lhe fizera derivar a attenção por outra corrente.

Oh, a mulher que estava com elle! Não poder ella agarral-a sem testemunhas! Não lhe poder tomar o nó da goela entre os pollegares furiosos; e desagregar-lh'o, e esmagar-lh'o fazendo-lhe espalmar a lingua para fóra da bocca, até á base toda sangrenta nas mordeduras da agonia! Via-o então apparecer d'entre as cortinas—como elle vinha, lesto, branco, em sobresaltos!—na sua esguia camisa de sêda, vermelha e longa, muito franzida á volta do pescoço, e toda ella moldando a estatura elançada d'algum d'esses reisinhos loiros das phantasmagorias poeticas de Shakespeare. E o beijo que lhe déra, tão sapido de delicias inéditas, bocca a bocca, Luiza tinha-o sempre no fremito dos seus labios, e guardava-lhe o perfume no halito, como se o embalsamára uma pastilha de harem.

(p. 038) —Além de que, tenho fé que a menina vai d'aqui a pouco mudar de tenção. Olá se vai!

—Que está a rosnar, Ezequiel?

—Nada, nada. Aceitar, que quer dizer? É um presente: meu amo não pede nada por elle. D'ahi, seria a primeira vez... Eu cá recusei deitar-me co'a viuva, que era barbosa e medonha, mas sempre lhe fui recebendo bom relogio de oiro. Gente pobre põe de banda orgulhos tolos. É metter n'algibeira, menina Luiza. É de boa creação.

Luiza ficou cogitando. Joias tinha-as ella visto nos gavetões da marqueza, em grandes cofres de setim desbotado: estylos modernos, velhos estylos, todos os metaes, todos os esmaltes, pedras de todas as aguas e de todas as côres. O mal da pedraria, que faz cúpida a mulher do alto luxo, Luiza não podia soffrel-o ainda, no seu humilde papel de camareira. Vagamente ella entrevia a seducção d'aquellas faiscantes areias, que os romances acclamam como talisman de todas as concessões, sem todavia desconfiar que atmosphera mordente põem de roda á belleza, as fulgurantes pedras lapidadas. Ir contar tudo á senhora marqueza? Boa idéa. Luiza foi aos aposentos da enferma. Ahi lhe daria o ataque (p. 039) de nervos, desharmonia na casa, e talvez para ella o olho da rua... Muito embora! Entrou. Mas logo ao entrar ouviu tossir. A velha passára mal durante a noite, vomitos sêccos, uma ponta de febre, e a manhã passou-se n'isto. A marqueza não tinha querido erguer-se da cama, e ouviu missa mesmo deitada, pela porta entreaberta do oratorio. A cada momento, Luiza tinha que voltal-a, trazer-lhe um livro, executar uma ordem, aconchegar uma cortina, vêr o tempo. E só pelo meio dia pôde tirar um bocado para se ir vestir. O quarto d'ella era junto aos aposentos da senhora, com uma porta sobre o grande corredor que levava aos quartos de Ruy, não longe dos quaes demorava Ezequiel. E Luiza começou um toilette minucioso e cuidado. Ao canto fumegava o banho, em que ella entornára meio frasco d'agua flórida. E sobre a commoda, o cofre aberto, deixava vêr os presentes do marquez. Das gavetas saccou Luiza a roupa que precisava: uma camisa d'abertos, bem fina e trabalhada por ella, saias brancas—era um domingo—e d'uma gaveta pequena, o retrato de Ruy que poz á vista, sobre o pequeno movel de cabeceira. Já uma a uma, as saias d'ella iam cahindo, diante do espelho, (p. 040) com a friorenta graça, um pouco crispada, d'um faisão que se banha no regato, ruflando as plumas, depois de haver bebido. E ainda apoiando ao seio a camisa, que despira, espremeu d'alto, vagarosamente, sobre a tina, a esponja ensopada em agua tépida. Desnastrára os seus cabellos, que eram grandes, espiralados, bem fartos, reluzentes e negros, torcendo-os após sobre a nuca, n'um grande molho de serpentes, como nas estatuas classicas, os cabellos da Venus aphrodite. Espiralitas doidas, carrapitos finos, muitos frisados, soltavam-se-lhe do turbilhão de cabellos, por brinquedo, cocegando-a na pelle doirada do pescoço. Emfim a camisa cahiu; e era assim adoravel de nudez, triumphante de mocidade, cheia de revelações e surprezas virginaes. Quasi morena, a sua pelle vestia uma carne rija, symetrica, cantando sonatas perfidas de volupia, em que resoavam estribilhos de dentadas, gritos hystericos, spasmos e soluços d'insaciavel peccado. Mesmo, á volta da banheira, dirieis que as coisas abriam palpebras, e por entre as palpebras, olhos que a fitavam, furiosos de deboche, gritando infamias por centenas de boccas invisiveis. Ui! como a sua divina garganta, (p. 041) rapazes, parece crystallisar em bellezas inéditas, toda a luxuria em que as gerações têm urrado, sedentas da fórma, ha tantos seculos! Que bazar de tentações delirantes era o seu peito, que duas pétalas de rosa maculam, tão altas, tão iguaes, tão erecteis, que antes pareciam beicitos de criança, estendidos n'um momo candido para aceitarem o beijo d'um velho amigo da casa.—E mergulhou, espanejada, dilatada de prazer, cantarolando baixo uma cantiga. A espaços chapinhava a agua, immergia, tornava a cahir, amollecida n'um desejo, sonhando noites de nupcias com elle, sobre o leito de cortinas sombrias, onde as suas respirações se estrangulassem entre um murmurio de beijos e suspiros. O retrato de Ruy nem a fitava, receando a perscrutação impreterivel dos seus olhos, e o jugo d'aquelles braços, absorvente e pantanoso.

Uma hora no relogio do corredor.

Ainda agora Luiza não sabe explicar, como é que tendo jurado a si mesma, recambiaria o estojo ao marquez, se encontrou no fim do banho em frente ao espelho, núa como Cypris na areia de Cythéra, ensaiando o effeito do afogador e dos braceletes, na pelle rosada ainda dos attritos da esponja. Á medida que (p. 042) ia fixando sobre o espelho, tantos e tantos detalhes de perder a cabeça, passava no clarão dos seus olhos o mudo extasi de si propria, e a coriscação do oiro novo, nas flocosidades brunas da garganta e dos hombros. E comsigo mesmo acabou por achar razão a Ezequiel. Por fim de contas, aceitar que quer dizer? É um presente. O senhor marquez não pede nada em demasia da offerta. Virava a cabeça para vêr o luzeiro dos brincos, ageitava o colar, punha as pulseiras... Deliciosa, fascinadora, appetecivel! Se Ruy pudesse vêl-a a plena luz, assim despida, e sem a hypocrisia do mais ligeiro véo, talvez que elle sustasse de vez tantas repulsas—ai, talvez!—e viesse cahir-lhe aos pés absorvido na sua belleza immortal. Oh, como da esbelteza nervosa dos dois corpos, ventre a ventre, se evolaria o poema de mysteriosas caricias n'esse instante, rimado a beijos, labio a labio; esse divino poema, através de cujas estancias rola a batalha do gozo, e do calice de cujas imagens gotteja a tripla-essencia das mais celestes devassidões! Duas vezes ou tres desenrolára a camisa, esfregando-a da gomma entre as mãos sobresaltadas: e ainda por fim se adorava no espelho adulador, furiosa por dar-se, (p. 043) n'um paroxismo que ia até ao deslumbramento. De repente pareceu-lhe ouvir rumor no quarto proximo. Enfiou a camisa á pressa, atarantada; pé ante pé foi indo de mansinho até á porta, receosa, d'ouvido á escuta occultando a nudez por traz dos reposteiros. Não se enganára. Estava entreaberta a porta do corredor. Então lançou um chale pelos hombros, enfiou as chinellas á pressa, sem se atrever a perguntar quem andava lá. Mas deu um grito de susto, vendo Ezequiel diante d'ella, lívido de morte, tremulo e babado como um satyro decrepito.

Luiza apenas tivera tempo de acocorar-se a um canto da peça, buscando encobrir-se toda no chale, pallida de vergonha e gritando ao malandro que se fosse.

Porém este, apopletico, nem fallar podia, fulminado por aquella visão de mulher núa, e com o cuspo a espessar-se em grossos fios nos cantos da bocca.

—Aquelle ruivo, menina Luiza, tartamudeou elle por fim, rolando os olhos,—o que faz versos... Entregou-me este papel para vossemecê.

—Bem, bem, vá-se embora. Ande! Não ha maior atrevimento.

(p. 044) —Ouve, Luizinha, rica filha, eu já me vou. É uma coisa que eu trago aqui guardada. Des'que te vi. E tão núasinha, tão boa, Jesus do céo!

—D'aqui p'ra fóra! Já! Ou chamo gente.

—Os outros querem-te por uma vez, pai, filho, moços e velhos, anda tudo atraz de ti. É uma canalha, já t'o disse, é uma canalha. Até me propuzeram que te amordaçasse, uma noite, p'ra se refocilarem comtigo, aquelles ladrões.

A sua voz rastejava, o seu aspecto era terrivel.

—Pelo amor de Deus! supplicou elle. Ouve-me ainda.—Estou quasi rico. Estou velho. Oh, chega-te a mim! Podemos casar. Ámanhã. Hoje mesmo. Filhinha! Que és bonita d'offender a Deus no céo.

Estendia os braços para cingil-a, co'a lingua sêcca na bocca, e alongando os beiços lividos contra os claros de nudez que lobrigava.

—Anda commigo. Sahirás d'esta espelunca. Só em Lisboa, tenho doze contos no banco, á minha ordem. Pratas, inscripções arrecadadas ao canto do meu bahú. Ouve, Luiza! Tu matas-me, diabo! tu estás deitando (p. 045) a minha alma no inferno. Um beijo só n'essas carninhas. Deixa dar. Que mal te faz?

E vergado á tremura senil dos debochados, Ezequiel cambaleava, crispava-se, indo para ella de rastros, assim como um cão leproso conquistando a codea que lhe negam, sob golfões de chicotadas.

—Não tenho herdeiros. Um pobre velho! De hoje p'r ámanhã posso morrer. Lembras-te do que te tenho dito? Os conselhos, os mimos... tristezas que eu soffro por causa de ti. Eh! Eh! Está decidido que aceitarás.

Então conseguiu agarrar-lhe um braço, o que desligou Luiza das algemas nervosas que a sustinham, estarrecida, perante o sapo de cujo visco escorria tanta lascivia torva d'impotente. Houve uma lucta. Os cabellos de Luiza rolaram.

—Larga-me, ladrão! dizia ella n'um choro baixo, rapido, soluçando em convulsões. Comtigo, nem morta, estupor! Doira-te, a vêr se eu te não cuspo n'essa cara. A tua vida, todos a conhecem. Devias andar na costa d'Africa, amarrado com cadeias a algum canzarrão da tua parecença. Larga-me, larga-me, quando não dou cabo de ti!

Elle porém, retendo-a, sem violencia ainda:

(p. 046) —Tu deves lembrar-te, Luizinha, do bem que eu te tenho feito. Os teus desejos, ando a adivinhal-os. O teu nome é-me sagrado em toda a parte. Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus!

—Rua d'aqui! De quem eu gosto é do menino. Eu hei-de ser d'elle por força. Inda que eu haja d'entrar na vida depois.

Os dentes do velho rangeram. Chorava, ria, esse homem, cobrindo o peito de baba; era assombroso de vexame! Luiza conseguira libertar uma das mãos; e pregou-lhe nas ventas uma bofetada medonha. Áquella affronta, Ezequiel perdeu a cabeça. As obscenidades golfaram-lhe da bocca, como granizos espessos, pintando toda a decrepita infamia da sua alma. Ella estava de pé junto da porta, quasi núa, sem se importar. Tinha no collo e nas orelhas as joias que lhe mandara o marquez. O velho viu-as.

—Eh! Eh! Sempre aceitaste o cofre de meu amo. Já lhe posso ir contar que o mais difficil trabalho está vencido. É melhor ser amásia de fidalgo que mulher de creado de servir. Inda tu procedeste com brio. Ha marafonas honradas! Podias ter escolhido as duas profissões ao mesmo tempo. Ella ria-lhe na (p. 047) cara. E o miseravel, volvida a crise, apresentou-lhe as ultimas concessões. Ajoelhára. E jurou-lhe consentiria o adulterio. Dava-lhe as suas riquezas por uma noite só d'intimidade. Casada com elle—ao dia seguinte, podia partir com dinheiro dos seus cincoenta annos d'escravidões e economias.

Luiza não retrucou: agarrára um papel de cima da cama.

Deliciosa aranha delicada...

Mas casualmente, erguendo os olhos, viu na bandeira da porta tres cabeças gravemente assestadas á vidraça, gozando a comedia com a paz d'alma de bons espectadores das galerias. Marquez das Flôres tinha um grande binoculo com que a mirava. O poeta estava em extasi. Do festejado Mattos mal se via a careca luzente, como era mais pequeno, e uma ponta do nariz guloso que vinha adejar contra os vidros, como um focinho de morcego encandeado contra a luz d'uma fogueira.

 

Perto da quinta, sobre um outeiro coberto de cevada verde, do outro lado da aldeia, (p. 048) houvera de tarde uma festarola d'ermida. Todas as creadas tiveram licença para ir até lá, depois do jantar, excepto Luiza que estava de serviço á marqueza, e Ezequiel que, já velho, quizera ficar junto de seu amo. Dos terrados do palacio via-se, já noite, a foguetaria estrondeando no adro, e clarões de fogueiras lambendo as saias das moças na sarabanda dos bailaricos. De quando em quando, uma labareda mais clara desenhava no azul profundo a branca fachada da igreja, d'onde sahia um campanario em agulha, cujas sinetas desde a manhã tagarellavam festivamente. Extinctos os rumores das officinas, no andar terreo, silenciosas as cocheiras e mais dependencias da casa, toda a enorme residencia dir-se-hia acachapada n'uma somnolencia lugubre, entre a confusão dos arvoredos. Apenas nos quartos da fidalga cochichavam tres ou quatro velhas damas das quintas perto, que tinham vindo de visita, aproveitando a aberta do dia santo; e na casa de jantar, logo depois do café, o jogo começára entre os convidados do marquez.

Sósinha no terraço, Luiza seguia a curva dos foguetes no céo primaveril, esmagada pela espantosa scena com Ezequiel. Queixar-se..., (p. 049) ella tinha pensado em queixar-se. Mas Ezequiel contaria a scena do afogador e das pulseiras, a sua loucura pelo Ruy, e todas as tagarellices que a pobre cahira em confiar-lhe. Á tardinha, vencida de remorsos, ainda ella ousára ir com o estojo ao marquez, a recusar-lhe nitidamente aquellas offerendas que não merecia. Elle olhou-a com a bondade um pouco ironica que costumava ter.

—Meu padrinho, eu vinha...

—Ah, não me agradeças, pequena. Sei da companhia que fazes á senhora. É uma lembrança de minha parte. Nas raparigas bonitas é que essas coisas dizem bem. Vai.

E Luiza não tivera coragem d'insistir.

Essa noite, Ruy que passeava, fumando, ao longo da balaustrada, observou-lhe:

—Estás com pena de não ter ido ao arraial?

—Eu cá sim! respondeu ella. Olhe que ha de ser por lá uma balburdia. Se lá estivesse, o que eu fazia era voltar.

—Ainda é tempo, se queres. Minha mãi dá-te licença.

—Ai, não. Gosto pouco de romarias.

—O que é que tens então? Pareces triste. Pareces doente.

—Eu não tenho nada, menino.

(p. 050) Elle fez mais duas vezes o comprimento da balaustrada, lentamente, fumando: e o seu passo não fazia ruido sobre o xadrez da plataforma.

—Só se te zangaste esta manhã... Foi brincadeira minha, não faças caso.—Mas Luiza sorriu-se: zangar, porque?

—Eu sei! Podias não ter gostado.

—D'um beijo? Ora! não vinha talvez p'ra mim.

Ruy tossiu um pouco. De cada vez que elle dava costas, os olhos de Luiza seguiam-n'o. E a sua figura perdia-se no escuro, ficava um instante indecisa entre as sombras das arvores. Luiza aguardava então que elle voltasse, com extasis de devota, e quando o lume do seu cigarro apparecia, ella retomava a sua postura de Manon batida.

—Já sei, que tem um namoro, disse ella em voz baixa, ao fim d'um esforço.

Elle voltou-se.—Eu!

—Tem, tem.

Ruy estava muito familiar.

—Póde ser. Na vizinhança ha bonitas raparigas.

—Não, não, cá em casa.

E o pequeno rindo.—Então és tu.

(p. 051) —Ai, a mim ninguem faz festa. Acham-me feia.

—Ao contrario. Toda a gente anda por ahi a fazer-te a côrte. Eu percebo.

—Esses!... disse ella, fazendo olhinhos de gata sobre Ruy. E encolheu desdenhosamente os hombros.

—Mas, emfim, quem namóro eu?

—Não disfarce. Quando entrava no seu quarto esta manhã, ouvi...—Já elle proseguia no giro interrompido, como se entendera a indiscrição. Essa vez demorou-se mais. E ao topal-a, bruscamente:

—E tu que recebes presentes! Dizes que não.

—Ah, sabe.

—Esta manhã.

—Á hora dos beijos... juntou Luiza para lhe metter ferro.

Elle tinha ficado nervoso.—Hein? presentesinhos...

—Quem m'os deu explicou-me o motivo porque m'os dava. A minha recusa seria prova de soberba, e tinha de passar por desagradecida aos olhos de meu padrinho.

—Quero dizer, eu não me importa...

—O tal Ezequiel que enxafurda os outros (p. 052) na calumnia, devia lembrar-se das muitas infamias da sua vida. Olhe que se eu quizesse fallar!

—Não. Isso cautella. É um creado velho, elle prudente, elle fiel... Emfim, agrada-me.

—Deus fará com que se desilluda, menino, quanto mais depressa melhor. Mas ao menos, devia ter-lhe contado tudo, o intrigante.

—E achas pouco? tornou elle em ar de mofa.

Luiza interdicta, não sabia bem ao que elle se estava referindo. Ficaram calados.

Até que resoluta, um pouco tremula, pondo-lhe as mãos sobre as mãos:

—Ha uma pessoa só de quem eu gosto, disse ella.

—Cá em casa estão muitas. Provavelmente gostas de todas.

Ella dava grandes suspiros, afflicta: e desatou n'um choro subitamente.

—Mas vamos! Que é isso? Porque choras tu?

—Não é nada, não é nada...

—Não, isso has de dizer.

Ella deitou-se-lhe aos joelhos, e n'uma anciedade:

—Oh não me deixe! Não me deixe! Se (p. 053) elle soubesse! Era tão desgraçada, tão maldita! Todos na casa queriam perdel-a; Ezequiel antes de todos, lhe infundia um pavor funebre e desgrenhado. Que mal fazia ella? Porque insistiam em lhe fazer sentir a sua falsa posição n'aquella casa?

—Mas cita os nomes, conta o que te fazem, insistia Ruy por acalmal-a.

—Não sei, não sei, dizia a rapariga: e soluços bruscos abalavam-lhe o peito. Era uma angustia que a tomava, uma tristeza que lhe vinha sugar o coração. De noite acordava espavorida, com um novello nas goelas, sem poder respirar. Tinha que dormir fechada á chave, por sentir passos de roda do seu quarto, sombras fugindo na curva dos corredores... Tudo lhe parecia hostil n'aquelle palacio agora... os olhares dos homens, as tagarellices das creadas, os proprios rumores indistinctos d'altas horas.—Ezequiel dissera que a havia de perder.

—Olha a mania! Ezequiel não passa d'um pobre velho.

Ella quasi o cingia pela cintura, estreitamente, fazendo-se pequenina, e como se quizesse abrigar-se no concavo das suas axillas. Supplicava em voz surda, com a bocca collada (p. 054) ao peito d'elle. Dirieis uma liana de martyrio enlaçando a haste flexivel d'um cipó.

—Não, não, menino Ruy. Luiza bem adivinhára os intentos d'aquelle homem sinistro. Elle queria-a. E ousára dizer-lh'o com que palavras, sabe Deus!—E outros ainda. Marquez das Flôres, que outro dia, ao encontral-a no jardim... Finalmente Biscaya vinha arranhar-lhe á porta do quarto... O ruivo mandava-lhe poesias... Nas cozinhas, em ella entrando, todas as moças tossiam como se lhe soubessem d'um pôdre. Até os da cocheira tinham ousado chalaças crúas, quando succedia toparem-n'a de perto. E Luiza tremia, Luiza perdia a cabeça!—Uns por ciumes da protecção que os senhores lhe dispensavam; outros por maus desejos que ella sempre tinha repellido; e todos buscando precipital-a da sympathia de Ruy e da marqueza. Oh, já não sabia como fugir áquella calcinante atmosphera de odio e rancor.

—Casar, disse elle. É o que deves fazer. E o seu olhar evitava-a.

—Casar, ella! quem queria uma mulher sem fortuna, e com a educação mais alta que o nascimento? Os habitos que contrahira (p. 055) n'aquella casa prohibiam-lhe de se unir a um qualquer homem do campo que ella de resto não saberia amar sinceramente. Esses mesmos habitos haviam compromettido a serenidade da sua consciencia, e quem sabe se auctorisado os desbragados propositos dos que buscavam perdel-a? Mesmo, a sua razão tresvairava: era necessario um esforço desesperado para varrer da cabeça as loucuras que por lá corriam.

Loucuras, sim?

Ella não delirava. Casar com este ou com aquelle, tudo era cahir do sonho radioso a que se afizera primeiro. O homem que ella adorava, jámais poderia sem descer, tocar-lhe com os labios na testa. E o seu futuro, ella bem no via, descendo n'uma espiral d'angustias e desalentos. Em creancinha, quando o menino estava ausente, Luiza dir-se-hia no palacio a filha unica da marqueza, que todos acariciavam de passagem, buscando por ella captar a benevolencia da fidalga. A felicidade era tão facil d'aprender! Assim se fôra educando, como se a destinassem a algum homem de condição superior. Até a familiaridade de Ruy, n'aquelle tempo, lhe ajudára a fomentar a sua illusão de grandeza. Agora Ruy estava (p. 056) um homem—adeus encantamento! Luiza teria de voltar a ser uma guardadora de porcos.

Elle apadrinhou-a com um magnifico gesto fidalgo. Quasi nem metade das suas palavras ouvira, porque havia um instante, surpreso, se escutava, sentindo-se invadir d'um sentimento indefinivel, delicioso, inquietante, que lhe ascendia no sangue, e o esbraseava no mais recondito da sua carne, e lhe punha fervores pela nuca, até ás fontes, como se fôra um veneno. Aquillo espraiava-se n'elle em bruscas ondas: era uma sensação inexplicavel de vaga delicia, sobresalto, receio, queimadura... Já trinta vezes quizera afastar Luiza, sacudir os filtros que vinham da sua provocadora belleza, retomar o seu bello ar de principe herdeiro, impassivel aos arrulhos do serralho: e outras trinta sentira faltar-lhe a coragem. Entrou então a dizer-lhe consolações ao acaso. Ella estava por força na sentimentalidade ephemera d'um mau momento, vendo côr de cinza por uma ennublação instantanea da sua viveza de rapariga—nem admirava, com a doença da senhora marqueza... E senão, que queria dizer tudo o que lhe ouvira? Das suas palavras, não resahia (p. 057) uma só causa de soffrimento legitima. Era quasi tudo pesadello romantico, trahindo a crise dos nervos convulsivados, hemorrhagia sem lançada, preludio d'amor latente, que fluctuava ainda sem escolha d'idolo. No fundo d'essa avenida de projecções melancolicas, era evidente que a sombra d'um homem adejava, mas sem physionomia, sem cabeça... uma insurreição do feminino em cata de nupcias. As mulheres aos vinte annos vibravam todas n'aquella passageira crise do sexo reclamando o culto para que foi votado. O necessario agora era pôr uma cabeça sobre os hombros d'aquella translucida apparição, dar-lhe face, dar-lhe caracter, dar-lhe nome... Finalmente, tornar o phantasma em homem!—E sorrindo: hei de procurar-te um noivo, deixa estar.

Luiza erguera a cabeça.

—Tu?

Surprehendido, elle encarou-a. Viu-lhe o perfil dealbado por um lampejo da sulfatara interior, e a lascivia da bocca aspirando o halito das suas benignas palavras.

—O meu noivo, balbuciava ella n'uma especie de amoroso delirio, poetisado pelas cadencias da voz debordando em melodias. Procura-o perto. Talvez te não responda, apesar (p. 058) dos meus suspiros que o chamam, noite e dia. É uma estranha creatura, esse noivo, bella como a apparição do Christo a Santa Thereza, porém fria e fatal aos que se lhe approximam. Só prostrada na terra eu ouso chegar-me a elle, como um reptil a uma corça branca dos bosques. Entre nós, eu bem conheço, ha o boqueirão d'uns poucos de seculos de cultura. Quero preencher com a minha belleza esse formidavel precipicio que me prohibe de o adorar. Ai de mim! Embalde os meus braços tremulos se lhe estendem, e os meus olhos extaticos vão pousar-se, como pombas, no esplendor da sua belleza tão pura. Elle não quer ouvir os meus soluços, nem derramar nos meus cabellos a calorosa uncção das suas caricias. É nobre, é altivo. O seu destino o preserva das minhas traiçoeiras ciladas. Todas as aflicções da minha alma, todas as reluctancias da minha juventude, dias de esperança, noites de delirio, nostalgias a olhar do angulo d'um terraço o cotovello d'estrada por onde a sua carruagem se sumiu... tudo ahi fica murcho e desfeito no caminho dos seus passos, sem que elle volte a cabeça para me lêr no branco dos olhos a cruciantissima dôr que a sua pisadura fez (p. 059) verter. Annos e annos, esta cegueira luctou por captivar-lhe a misericordia, sem reparar nas concessões infamantes que a minha alma ia fazendo aos desejos que a torturavam. Quiz transfigurar primeiro o meu amor n'um celeste e casto poema, todo espiritual, todo intimo; subtilisal-o em dedicações, impôr-lhe sacrificios... devotar-me emfim á sua felicidade, calando o grito do meu coração que reclama sem partilha, essa creatura em que elle não póde pensar sem deslumbramentos. Protesto inutil! Filha de grosseiras gentes, puidas de miseria, e fazendo do vicio desforço para amordaçar o desespero, estava escripto que eu havia de andar a rojo, como a serpente, tentando a claridade immortal da sua adolescencia.

Luiza calou-se, arquejante. E os seus cabellos roçavam pela bocca de Ruy, mordicando-lhe a pelle do queixo com uma titilação imperceptivel.

—Emfim, a minha paixão chega a um limite e rebenta, prevendo o instante em que elle me vai fugir para não voltar. Oh não me abandones tu!

—Vem gente, tornava Ruy n'um sobresalto.

(p. 060) A mesma loucura os tomava e fazia pulsar estreitamente unidos, assim como n'uma bocca muda, um labio a outro labio.

—Não! É um minuto mais, dizia ella. Eu já não sei o que digo. A idéa de que outra mulher terá beijado a tua bocca tira-me o somno, e o meu sangue tumultua e allucina-se desde que perdi a esperança de te captivar a um simples fremito das minhas sobrancelhas. Eu não te peço um desses amorfos e dessorados amores que sob a umbella da igreja podem mostrar-se a toda gente, na atonia estupida em que a lei amosenda as fioriture do coração. Tornei-me um animal de luxo, não é assim? cuja posse disputam em tua casa esses homens. Então escolho-te! Estou no meu direito. E como uma escrava, estatelo-me no chão que tu pisas, para que me esmagues a cabeça depois de me haveres cingido, uma vez só que seja.

Ella cahira-lhe aos pés, e beijava-lh'os com a exaltação d'uma louca e os phrenesis d'uma enfeitiçada. N'aquele instante, Ruy nem sequer teve um gesto para apanhal-a do chão. Fizera-se muito pallido. Os seus braços tinham cahido. E um terrivel sorriso zigzagueava na sua bocca enygmatica. Dirieis uma (p. 061) creança, que chegada ao fim d'um bello conto, subito se desencanta do entrecho, e passa adiante, sem lhe ligar mais attenção. Assim elle entrou nos quartos da marqueza, bruscamente, deixando-a prostrada nos primeiros degraus da escadaria.

Por conseguinte, Ruy tinha-a recusado, depois de a ouvir monologar como uma actriz fastidiosa. Interdicta e buscando vencer o asco que de si mesma lhe vinha, Luiza escutava o furioso debater da sua vaidade sacudida na estriadura d'aquella humilhação. Sahiram as visitas, voltaram da festa os creados, que pouco a pouco, ceia finda, iam desertando para os seus dormitorios. Luiza trouxe o caldo á marqueza, vazou-lhe o calice de Madeira com a mesma solicitude machinal, sem ter reparado na escarradeira cheia de sangue, na somnolencia e na pallidez da pobre dama. Renovou o azeite da lampada do oratorio, desceu á cozinha onde sua irmã pela centesima vez insistia em lhe aconselhar o casamento com Ezequiel, como mastro de cocagne para a familia inteira: e de joelhos, na capella, para as rezas da noite, por mais que fizesse, o seu espirito perdia-se em oceanos de magua: até que afogueada, estupida de (p. 062) scismar no seu destino, veio ao terraço banhar a cabeça nas brisas da noite.

Os ultimos romeiros desciam do monte, e amadornavam por esses caminhos os echos das cantigas, deixando atraz de si n'uma espectativa lugubre, a somnolencia espectral dos arvoredos. Uma livida noite amortalhava o immenso descampado. Entre cerraceiros de nevoa, a lua minguante subia por ondas de claridade torva, gordurenta, sem reflexos, como uma agua-forte sinistra que rolasse as suas tragedias de cinzento, desfazendo nos macissos as ultimas nuances de paisagem. Ai, pobre Luiza! Aquella repulsa fazia-a rolar na sua idéa a uma condição, além de cuja ignominia ella julgava se não podia descer mais. Quanto daria ella agora, a pobre tonta, por voltar a ser na estima d'elle a sua companheira de brinquedos, a sua pessoa de confiança, a sua amiga, a sua irmã?... e poder encaral-o com os olhos limpidos d'outr'ora, sem córar por aquella scena de seducção premeditada, que até na propria consciencia a envilecia! Agora ella olhava á roda de si cahida da exaltação que a levára a cingir-se com elle, interrogando-se, perscrutando-se, dizendo-se indigna de todas as commiserações. (p. 063) Era uma mulher sem vergonha, quasi ignobil, que inspirára o nojo, mesmo formosa, mesmo intacta, ao primeiro homem a quem estendera as pomas dos seus desejos. Podia aceitar quaesquer das infamantes soluções que lhe propunham: ser a amante do creado, ou ir saciar o deleite ephemero d'um dia ao marquez e aos mais debochados do seu sequito. O seu desejo extincto, tudo o mais lhe era indifferente; e a morte começava d'ali por diante, com a frialdade do seu coração prohibido de bater por alguem. Mesmo, não via outro destino além de prostituir-se ou matar-se. Para ella o mundo começava em Ruy, acabava em Ruy, e só durára no cyclo em que elle a trouxera enfeitiçada. Ruy sequestrado ao seu amor: adeus mocidade, alegria chilreante, manhãs no terraço á hora de dar alpista aos canarios, projectos, ardores, phantasias, esperanças! Elle recusára-a: de que lhe serviam pois as turgidas pomas, a cinta ondulosa de serpente, e o divino ventre de geraneo e espuma, todas as expansões, todos os calafrios, todos os mimos, de que a adolescencia avelluda e povôa o corpo da mulher? Na contensão capitosa dos seus extasis, Ruy vira apenas a selvageria do goso que extravasa (p. 064) em gestos de braços e na effervescencia torpida dos beijos. Além da grosseira exterioridade lasciva e calida, tudo o mais lhe escapára d'aquelle amor confessado violentamente, refinamentos, fremitos, intellectuaes sobresaltos... o prazer dos sentidos vibrantes á visão da pessoa que se adora... os infinitos respeitos, supplicas balbuciadas por entre os dentes cerrados, transluzindo ameaça—e delicadezas submissas d'escrava—e esse fluido que sobrenada da alma amorosa, e enche de poesia tudo o que se palpa e respira, em torno d'ella.

Desceu ao jardim, direita ao poço. Havia um silencio opaco e terrivel, que pesava no ambito á semelhança d'um remorso que fibra a fibra estivesse roendo um coração. O poço era largo, com uma nora por cima, e a amura de pedra escancarada ao ar. Se ao menos elle diria «Coitada!» quando lhe fossem contar como ella tinha morrido!... E inhalava para se dar alento, grandes haustos d'ar frio. Os seus olhos deram co'as janellas do palacio, illuminadas ainda. Eram, d'uma banda, as janellas de Ruy, e da outra a lampada do oratorio, cuja porta abria sobre o quarto de dormir da senhora marqueza. Vamos! era preciso (p. 065) ser forte. Nossa Senhora estenderia os braços para impedir que ella se despenhasse no inferno. E pôz-se a medir a queda, esburcinada no boccal de pedra da nascente. Atafulhada de sombra, a pavorosa goela não mexia. De quando em quando, uma gotta escapava-se dos alcatruzes da nora, indo fazer lá no fundo um plhau! glacial. Entretanto a nevoa fazia aos arvoredos, toilettes de gaze, para a festa funebre de Luiza. Solicitamente o luaceiro vinha, aqui, além, tocar o bojo d'uma perola d'orvalho, as transparencias d'uma renda de bruma, os claros da argentea brancura immaculada... Ella desfolhou a rosa que puzera nos cabellos. Ergueu o espirito para o alto, com uma doçura branca de martyr; e persignando-se, enxugava as ultimas lagrimas. Na calada começou então a retinir uma campainha. Nos quartos da marqueza? Era a chamar Luiza. Oh pobre madrinha! Luiza estava já sentada á beira do poço, prompta a escorregar-se á agua. Porém uma instantanea sombra tinha passado nos stores do oratorio, cujas vidraças soaram no terraço em bocadinhos. Que era aquillo? Alguma coisa de anormal se estava passando. Quem gritára? Engano? Allucinação? Luiza fez um salto, esquecida (p. 066) da morte, e deitou a correr para d'onde o barulho partia. Quando entrou no quarto da marqueza, cahira pelas escadas, derribára Ezequiel que vinha pelo corredor, rasgára as saias nas portas, tropeçando nos moveis umas poucas de vezes. Viu a cama vazia e toda cheia de sangue nos travesseiros. A porta do oratorio estava aberta, e sobre a alcatifa, entre portas, a pobre senhora estorcia-se, quasi núa, vomitando sangue em espumosas golfadas. Luiza agarrou-se a ella, gritando que lhe acudissem: e em toda a casa, de repente, tinha sido um alvoroço extraordinario. Ezequiel, que foi o primeiro a chegar, inda viu a velha revolver os olhos, dar um estremeção que lhe retezou as pernas ao comprido. E de repente ficou-se.

—Coitadinha, coitadinha! Está prompta, dizia o velho em tom beato. Eu bem previa esta desgraça! Mas Luiza barafustava para que elle fosse chamar depressa o marquez, e mandasse á villa buscar o doutor Souza.—Depressa, depressa que ella vai-se-nos aqui sem sacramentos! Elle abanava a careca, tendo remodelado na face a mascara patriarchal dos dias serenos. Desolava-se muito pelos cantos. Como aquillo fôra depressa! Uma coisa que (p. 067) ninguem esperava! Lá conseguiram transportal-a para a cama. O corpo estava frio. Um dos braços, levantado, cahiu inerte nas roupas, apenas o deixaram.—Está morta! Mas ninguem vinha acudir! Que estava fazendo nos quartos toda aquella gente que não ouvira os gritos d'alarme? Ezequiel entrava e sahia, ia a uma porta, voltava á capella, idiota d'espanto, abanando as mãos, sem saber.—Ah menina Luiza, menina Luiza; eu bem lhe disse esta manhã. Chegou-se a ella:—O que ha de ser agora de ti?

A camareira não ouvia, agarrada á marqueza, e seguindo a installação da morte n'aquella physionomia de cera. A sua rica madrinha! A sua amiga! A sua unica affeição!

—Casa commigo, insistia Ezequiel. A minha vida é pouca coisa. Deixo-te tudo. Casa commigo.

Já o marquez vinha entrando, com Ruy e os seus amigos, e toda a gente da casa áquella hora estremunhada.

O fidalgo curvou-se para o leito: dizia phrases d'espanto, allucinadas e d'um grande effeito decorativo.

—Mas, senhores, ella resfria! Oh fatalidade! e outras muitas, que os amigos, um (p. 068) pouco lassos na digestão da ceia, trocavam por outras da mesma polida complacencia. Compuzera um rosto d'afflicção reprimida, conforme de rigor na circumstancia, e que foi muito apreciado pelo que dizia dos seus affectos maritaes. Lagoaças e pai Cezario tinham-n'o abraçado a tres quartos, dizendo—coragem! n'um magnifico accento de contra-basso.

Quando de repente Luiza deu um grito, vendo os olhos da marqueza irem ficando vitrosos. Alguns curvaram-se a vêr. Ezequiel e Lagoaças trouxeram velas accesas. E o choro das creadas abriu de repente no quarto uma ladainha horrifica de lamentos. Uma especie de teia d'aranha revestia devagar as pupillas pallidas da morta.

—O espelho, o espelho.

Ezequiel trouxe do gabinete um espelhinho de punho ornado; puzeram-lh'o á bocca.

—Inda respira!

Mas o pulso perdia-se. O coração queria calar-se. A aura hysterica descorrelacionava os movimentos de Ruy, cujas mãos buscavam juntar-se n'uma supplica frenetica de que ninguem fazia caso.

—Jesus! dizia Luiza erguendo os braços, (p. 069) entre as mulheres de joelhos. Onde está o nome de Jesus não ha perigo á salvação. E as rezas perdiam-se em ondas de soluços. Então o marquez tirou a boina da cabeça, avançou dois passos com o espelho que já não embaciára, collado á bocca da fidalga. E n'um tom alto:

—A senhora marqueza de Selmes morreu.(Voltar ao Conteúdo)

(p. 071) O SINEIRO DE SANTA-AGATHA

Ha quinze annos, vespera de Natal, n'uma noite bem frigida e chuvosa, ia eu em jornada através das serras, caminho da minha aldeia, a fim de consoar, conforme a velha usança, no aconchego patriarchal da familia: quando a sege que me levava estalou com fracasso, desabando em bocados pelo chão. A custo pudéra salvar-me do destroço, que a sege velha e de correias, sobre duas grandes rodas esculptadas, esbarrondara de chofre contra um amontoado de penedos, e o cocheiro contuso em muitas partes do corpo, era quasi impotente para sustar os galgões dos cavallos sacudidos pelo terror da derrocada. No meio das trevas, áquella hora, sob a chuva sibilante, como encontrar agasalho?

Era no mais cerrado das brenhas. Lugubres penedias estacavam por toda a banda.

(p. 072) Asperas montanhas pareciam vir a despenhar-se sobre as gargantas estreitas da passagem. E nem a mais dubia fogueira de pastores, casinholo de coutada, voz ou campanario, revelando a proximidade de creatura humana! A muito custo podemos remover do caminho as bagagens e destroços da pesada traquitana, eu, o cocheiro e mais um velho creado que me seguia a cavallo.

Com fortes brados, aos quatro ventos do campo, fomos chamando alguem que alli vivesse; mas nem sequer latidos de cão logramos saccar das goelas carbonosas da noite. Sempre aquelle ruido prostrado, regular, desesperante, da chuva nas urzes e pinheiros anões, que o vento trazia e levava no mesmo agreste rythmo, como o jogo uniforme de uma joeira que joeirasse d'alto, bagos d'agua frigidos, e crueis.

Por infelicidade, o cocheiro não era do sitio, e mal sabia dizer d'aquelles caminhos incertos. Beja inda talvez ficasse a nove leguas d'ali. Os cavallos extenuados não queríam marchar. E olhavamo-nos interdictos, á luz da pobre lanterna que por milagre escapára ao desastre.

Emfim, já nos decidiamos a ficar por baixo (p. 073) das azinheiras, n'algum abrigo escavado da montanha, quando se ouviram badaladas de sino distinctamente.

—Graças a Deus! exclamei eu todo alegre, que vamos ter guarida no passal do bom padre ou eremitão que d'aquelle campanario nos está chamando. Onde é, cocheiro?

O homem esteve sem responder um bocado. Era um alemtejão supersticioso, tostado, leal, e gigantesco.

—Aquillo, senhor, disse alfim o colosso, fica por traz de cerros que levam vinte horas a galgar a um homem. De noite, sempre os sons parecem mais perto, e enganam uma pessoa nas contas que deita.

—Bom! mas que sino é aquelle? Convento, freguezia, castello ou casa do diabo?

Vi o rapaz benzer-se com um movimento brusco, e lentamente ir contando, que era o sino de Santa-Agatha, ruinaria maior que uma cidade, com quatro torres dominando as chapadas dos montes, e casarões aonde ninguem tinha ido desde que houvera lá fogo.—Ninho de demonios e malfeitores! Em trinta e tres, a guerra civil correra lá, farejando as riquezas do culto—as freiras tinham debandado pelas serras, com os seus habitos brancos e os (p. 074) seus rostinhos macerados—por quatro dias as chammas lamberam os sanctuarios—e diz que duas ou tres religiosas, entrevaditas, centenarias, se deixaram morrer nas suas cellas, cantando psalmos, por não haverem já parentes e amigos, em cujo seio ir acabar. Agora só voltava ao mosteiro algum maltez perseguido, ou pessoa empenhada em roubar cantarias, alguma porta de carvalho, e restos d'alfaias sepultas nos entulhos.

Lentamente então, como um fumo d'incenso que oscilla subindo pelas incertezas penumbrosas da neve, assim a lenda se formára e fôra condensando, detalhando, subindo em espiras poeticas, dos claustros gothicos da velha abbadia. E o cocheiro accrescentou:

—Pelos modos, os diabos dizem lá missa a deshoras, com mitras que nem bispos!

—Venha essa lanterna, disse eu sem mais ouvir. Meia ração d'aguardente e tabaco! Vossês abriguem-se ahi como poderem, que eu já volto!

—Mas onde é que o senhor vae?

—Ora essa! á abbadia. Tocou-se á missa: o diabo já deve ter subido ao altar. O cocheiro ainda quiz accumular obstaculos; até que vendo-os sem resultado, apontou-me o caminho (p. 075) provavel do mosteiro, lá longe, sobre as altas serranias, a cujo sopé se tinha desmantelado a nossa berlinda de viagem.

 

Pondo-me a caminho, confesso, foram-me os primeiros passos bem duros. O terreno pedregoso abria fendas onde os pés se enterravam em lama; tufos d'esteva e piorno vedavam a passagem, circumdavam-me, prendiam-me o fato, ou vinham dar-me bofetadas nas faces com as suas mãos pegajosas. E assim fui mais d'uma hora, tropeçando d'um lado e cahindo d'outro, pelo espinhaço lugubre da cordilheira. Entanto as nuvens desdobravam-se, menos espessas, correndo, té que uma claridade de lua velada poude orientar-me na marcha.

Alguns corpos avançados da ruinaria começaram alfim a mostrar-se, pequenas capellas com arcos gothicos, sombras esguias de cyprestes, casarões onde bulia a herva açoitada pelo vento... Dez passos além, achei-me n'uma alpendroada vasta de pedra, toda em arcarias de capiteis mutilados. Ao centro murmurava (p. 076) uma fonte, cahida ás gottas sobre uns restos de tanque esculpido; e via-se um portico ao fundo, com feixes de columnelos, e nichos de apostolos em oração.

Mais dois passos e entrava na igreja. Parte da abobada tinha já cahido. Arcarias altas, flexuosas, em series parallelas d'uma extensão desmedida, iam até ao sanctuario. No parapeito d'um ou outro pulpito, pendiam tapetes de hera—e por um bocado de muralha derrubada via-se o claustro, contrafortes, arcos butantes, rendas de janellas manuelinas, estatuas partidas, e montões de pedras lavradas que a vegetação damninha ia vestindo, engolfando, no labyrintho das suas teimosas grinaldas.

Lentamente, emquanto marchava entre as maninhas plantas da serra, eu fôra evocando da nevoenta penumbra das minhas reminiscencias d'infancia, a lenda que tantas vezes tinha ouvido contar, pelo inverno, quando finda a ceia os pastores e couteiros vinham fazer circuito comnosco, de roda do brasido, na cozinha abobadada da herdade, cujas chaminés se erguiam dos tectos, como duas torres quadradas de solar.

Lembrava-me de ter ouvido a minha avó, (p. 077) como a abbadia fôra uma das mais venerandas casas de reclusão de todo o reino, successivamente enriquecida pelos reis, visita de prelados, e refugio de muitas princezas e bastardas que alli dormiam o ultimo somno, nos seus jazigos de pedra, de cujos nichos a velhice alluira figuras e inscripções.

Apesar das enormissimas riquezas que as religiosas mandavam repartir pelas gafarias e misericordias da provincia, a regra impunha ás monjas uma pobreza frigidissima. Dormiam n'uma tabua, as pobres servas, sem enxergão nem cobertura, e com uma pedra tosca por cabeceira. E vivendo de hervas e legumes, sem mais tempero que um fio d'azeite e um punhado de sal, ellas appareciam na estamenha branca das tunicas, afiladas na sua espiritualisação perpetua de prece, antes como umas sombras de loucas, espectros de mal soffridas angustias, marchando nos claustros em genuflexões de extaticas, e como dobradas ao peso das camandulas e das orações. Um velho Papa da idade gothica doara então o mosteiro de reliquias, compadecido por austeridade tamanha d'enclausura, e permittindo que as monjas pudessem dar-se a glutonaria mundana d'um cordeiro guisado, na ceia do (p. 078) Natal, sob a condição expressa de ser branco e acabado de nascer.

Sempre na minha lembrança, desde então, tinha ficado aquella humilde historia das freiritas, dormindo em tarimbas de castanho, e jantando couves de azeite e sal. No collegio, muita vez, punha-me a fazer esforços para me representar a figura benevola d'aquelle santo Papa da idade gothica, risonho sem duvida e encarquilhado, com o seu barretinho de purpura, e um grande annel de turqueza, concedendo ás filhas de Santa-Agatha o cordeiro branco para a consoada do Natal. Vinham-me aquellas coisas n'um fundo de fantasia, para assim dizer bysantino, sem perspectiva aerea, com o nimbo de oiro nas cabeças, e pregas miudinhas no bocatel das roupagens—e tão longe do nosso tempo! tão longe do nosso espirito que eu acabava sempre por sorrir á inverosimilhança das legendas contadas por minha avó.

Todos os annos na herdade, depois de se haver dito a ladainha diante do presépe armado no oratorio, com grande pompa de vellas accesas, cobertas de sêda, paineis de santos, flôres, amuletos e cearinhas de trigo grelado em pratos da India, ás escuras, (p. 079) durante os vinte e cinco longos dias de uma lua—todos os annos, á hora de servir a espetada de lombo de porco com migas, da ceia do Natal, quando já tudo se assentára em volta da mesa, eu me não esquecia de inquirir.

—Avó. Se o cordeiro de Santa-Agatha estará tenro e capaz de ser manducado pelas freiritas sem dentes?...

Lá me sorria a bôa velha, com uma expressão de melancholia que eu n'esse tempo não era capaz de interpretar. E á direita d'ella marcando intervallo na mesa, um talher inactivo aguardava meu avô, que fazia já onze annos de fallecido quando eu tocava os dezeseis.

Ai! esse talher era a grande nota solemne da ceia, o symbolo sacrosanto do espirito de familia, perpetuando o respeito do nome através das revoluções da idade. O copo estava cheio, o guardanapo desdobrado, e chegado á mesa o tamborete.

A todo o instante ia entrar na sala o phantasma do velho lavrador, com a sua matilha de galgas argelinas, e uma d'aquellas grandes risadas que elle dava, em nos vendo felizes a todos.

(p. 080) Ceia de Natal! Ceia de Natal! Não seria eu, não, que d'aquella vez havia de começar cantigas ao Deus-menino, ante o presépe da nossa casa das Torres.

Nem iria assentar-me, tão pouco, entre meus irmãos, partilhando a espetada de lombo no meio da gralhada das creanças, e dos sainetes dos pastores e maioraes. Oh como o frio da montanha me fazia agora lembrado o madeiro do Natal, tão escrupulosamente escolhido entre os troncos mais corpulentos das cathedralescas médas d'azinho da nossa provincia; o madeiro que as comadres vão vêr a casa das comadres e cuja enormidade d'alguma fórma passa por luxo e synthetisa a abundancia da casa! Ceia de Natal! Ceia de Natal! N'aquella noite de cordealidade, tão intima na vida do campo alemtejano, em que o primogenito da familia tem obrigação de consagrar aos creados o primeiro toast da ceia, a minha ausencia, eu bem n'a via! trazendo lagrimas aos olhos de minha mãe, e longos annos permanecendo archivada entre as tristezas do seu amantissimo coração.—Paciencia! dizia eu, deixando os meus olhos correr por cima da phantastica decoração de ruinas, (p. 081) como quem busca fixar a realidade no meio das oscillações que a sombra despregava das arcarias.

Cessára a chuva de todo, e o vento que ennovelava os castellos de nuvens, muito baixas, vinha depois marrar com ellas de encontro ás fragas da cordilheira.

Torvos luaceiros cardavam sobre as coisas, aspectos pardos e monacaes, d'esse tom vago, inquietador, inexplicavel, que permitte á imaginação de agigantar o que apenas entrevê.

E assim dirieis que se alongavam na noite os butareus das quatro torres, e que os boqueirões da treva mastigavam, e como lanças tremiam os columnelos do templo, espetando na abobada imaginarias cabeças; emquanto patrulhas de cyprestes paravam a escutar, se áquella hora rastejaria no mosteiro um infinitesimo de vida, só que fosse. A primeira coisa que notei, foi que não estava só, porque ao raspar d'um phosphoro para accender o cachimbo, pude lobrigar na portaria vultos de gente acocorada.

Pouco a pouco, os meus olhos afizeram-se a destrinçar na sombra os objectos; e entrei a bispar vultos pequenos, corcovados, que surgiam por todas as bandas da serra, vagarosos, (p. 082) cosidos ás pedras, derreados do caminho, e arrastando sapatos de trabalho, com gorros nos olhos e capotes negros sobre os hombros.

Pelas encostas, longe, perto, muitas luzinhas deslocavam-se em direitura ao mosteiro, como fanaes guiando a um conclave outros tantos conspiradores.

Duas ou tres cadeirinhas entram no adro, buscando a sombra dos arcos com uma cautela apavorada, e aos hombros de homens, que pelo rastejo dos passos e lentidão dos meneios, ia jurar tinham passado os oitenta annos. Em poz das liteiras, mulas brancas trazendo mulheres embiocadas em ponches... jumentinhos de trabalho com gente que tossia... e até n'uma especie d'esquife, um vulto entre roupas dava grandes gemidos, quando os portadores oscillavam mais bruscamente a padiola em que o traziam.

Muito embuçado na capa, eu ia-me approximando da turba, corcovado e arrastando os passos como os outros; e já sem medo, pois não podia ser capitania de ladrões aquella gente assim misturada de invallidos. Quando de repente, patas de cavallos fizeram estrupida nas lages, e eu vi fazer-se um movimento (p. 083) simultaneo em todos os magotes, para acorrerem ao encontro dos cavalleiros. Eram quatro. E dois d'elles, que porventura seriam os juvenis da cavalgata, a julgar pela ligeireza com que apearam, tinham vindo ajudar o que ficára sobre a cella, aguardando que o desmontassem da mulla branca onde viera escarranchado.

Era este um grande velho de cabellos compridos, em ligeiros flocos por baixo d'um chapeirão d'ecclesiastico, envolto n'uma capa com romeira de lontra, e de quem todo o mundo se acercava para lhe beijar a mão. Caminhando, espargia bençãos sobre as cabeças curvadas á sua passagem. Aprumava com esforço a grande figura biblica e severa, em cujas linhas fulgurava como um relampago genial d'estatuaria, e em cujos gestos calmos rescendia a solemnidade d'um apostolo enviado a remir d'um captiveiro.

Tinham acceso entretanto algumas tochas, cujos clarões deixavam vêr a fisionomia de aquella assembléa extravagante. Oh minha cabeça esvaida de cansaço! Eu não posso affirmar lucidamente se acaso era sonho o que se estava passando: tão extraordinarias visões me tiveram estarrecido na formidavel sombra (p. 084) do templo. Lembro-me que o sino tocou de novo. Era um som funebre e longinquo de gong, espargindo na noite um terror de evocação; alguma coisa como a voz do tempo, chamando os homens a um ajuste de contas definitivo.

Pelas arcarias do claustro, que eu avistára por entre a derrocada d'um muro, vinha marchando uma procissão de monjas lentas, mirradas, pequeninas, cambaleantes, e tão brancas e diaphanas á luz das tochas, que ellas pareciam ter acordado n'aquelle instante dos seus sepulchros, transpondo os seculos á voz expiadora do gong. Entre os véos cahiam-lhe os cabellos, mais alvos do que a neve, e das suas sandalias batendo as pedras do claustro, vinha um som baço de sepulturas vasias, sepulturas com fome, chamando por aquelles destroços de santas, d'onde a alma parecia ter voado, através das divinisações augustas do martyrio.

Poucas eram: mas vagarosamente a procissão ia crescendo no percurso, ao clarão bruxuleante das luzes; porque a todo o instante a turba se abria para deixar passar uma velhinha segurando uma tocha entre as mãos descarnadas. Alguem lhe tirára o capote de cima (p. 085) dos hombros, e da cabeça o bioco de burel que a encapuchava. E surgia assim, daquella lugubre crosta, uma monjasinha branca de Santa-Agatha, cingida na estamenha da ordem, o véo de nodosa e rude grossaria... e que a pequeninos passos de centenaria, oscillando a trémula cabeça, lá ia enfileirar-se no préstito, com as suas rugas cheias d'eternidade.

A esse tempo, a enorme basilica rompia violentamente da sombra, ampla, majestosa, cheia de mysterios e esplendores, mesmo assim na ruinaria das suas esculpturas e rendas ogivaes. E prolongava-se em crepusculos doces, além das naves, pelos rasgões da derrocada, ondeava á oscillação das luzes, parecendo expandir-se, como outro'ra, num grande hausto d'uncção fervorosa e fé christã.

Em cada recanto, cada arco, por todos aquelles nichos, pelas capellas, diante dos baixos-relevos e das estatuas, agora bruxuleavam lampadas, cirios, fogueiras, luzes bizarras de fachos, cuja vermelhidão tingia de sangue os caprichos manuelinos da architectura.

Em face a gigantescos lampadarios de prata e oiro, pendentes da cupula arruida em cachos de lumes lividos, o altar-mór appareceu de subito n'uma aureola de pompas, damascos, flôres e (p. 086) vasos de oiro cravejados de pedraria. O frontal todo de lhamas, faiscava entre a fumarada dos thuribulos, as grandes flôres de purpura emmaranhadas no estofo, em cuja trama buliam bruscos formigueiros de diamantes, saphiras e esmeraldas. E por cima na abobada, a noite errava, espavorida dos fogos que oscillavam cá em baixo, nas inquietações do vento. E ao rumor das rezas accordavam as aves nocturnas nos seus ninhos: pombas e francelhos voejando de friso em friso, grandes corvos sinistros partindo em bandos das rosaceas, encandeados co'a luz, tornando a vir, tornando a ir... Pensarieis que regressavam das tumbas, os espiritos das monjas, e se iam familiarisando ás ruinas, e conhecendo n'ellas o maravilhoso sanctuario doutro tempo.

—Meu senhor, disse uma voz.

 

A vista das monjas, a multidão cahira de joelhos, tocada de veneração por aquellas creaturas celestes, mumias da fé catholica, que a oração transfigurára até á innocencia ideal dos serafins.

Tosca e triturante, a estamenha lhes cingia a esqualidez das ossadas: vinha na frente a abbadessa, de báculo e mitra, com uma capa (p. 087) de brocado, sob o pallio d'uma riqueza estonteadora. As mais seguiam duas a duas, acocoradas quasi pela idade, e guardando não obstante uma especie de aerea graça da infancia, através da caricatura d'aquelle cerimonial complicado. Em todas, o olhar extincto, como um brasido nas cinzas, perdera a incandescencia entre as macerações da vida ascética. E d'entre a mortalha alvacenta das vestes, cada vulto sêcco vos lembraria um violoncello com todas as cordas partidas, de haver tocado, longos annos, a symphonia pathetica da dôr.

O que dissera, meu senhor, puxou-me de banda: era um embuçado d'estatura pequena, gestos aduncos, e botas molles.

Levou-me para detraz da escadaria d'um pulpito. Engolfamo-nos por um portello baixo e tenebroso, em cujo trevo marinhava, luctando, na frialdade limosa da pedra, uma caterva horrivel de grotescos. E como transpunhamos o portello, o homem tirou da capa uma lanterna. Vi então diante de mim um velhito lesto, pequeno, azougado, os olhos debruados de purpura, e com um grande nariz pendido como um monco, até encontrar a aresta d'um queixo arqueado como a prôa d'um saveiro. Dirieis que as duas pontas iam tentar brava (p. 088) guerreia: a do nariz embirrando com a do queixo, a do queixo não sentindo lá grande sympathia pela do nariz. Mas felizmente interpunha-se a bocca, sentinella vigilante daquella discordia d'appendices, e que mesmo sem dentes, intervinha, mordendo o que primeiro rompesse as hostilidades.

—Que quer dizer toda esta mascarada? disse eu.

O velho olhava para mim com um riso estupido de bobo. Tinha um barretinho de sêda no craneo, grandes orelhas espalmadas aos lados dos olhos, a bocca em meia lua e um collar de barba dura, direita, branco sujo, prestava-lhe a caricatura demoniaca d'um bode, á luz fumosa da lanterna. Foi pelo corredor aos saltinhos, e eu seguia-o tomado de um espanto sem saber por que.

Ao fundo começava uma escaleira aberta na muralha, tortuosa, falhada nos degraus, e obstruida por grandes pedregulhos. E o velho começou a subil-a, levando a lanterna na mão. Como a escadaria era de volta acanhada, e o passo de espira excessivamente baixo e deprimido, forçoso nos era de subir corcovados, porque não fendessemos o craneo d'encontro ao rebordo dos degraus superiores. Fomos (p. 089) tropeçando assim nas pedras soltas e alluidas, partindo as unhas nas junturas da muralha—elle sinistro, lesto, arqueado, escorregando, pulando certo quatro e cinco degraus d'uma vez; eu agarrado ás pregas da sua capa e á morna viscosidade das suas mãos, cujas unhas se me cravavam na carne, como os dentes metalicos d'uma pinça.

—Afinal não me explicou que diabo vem fazer aqui toda esta familia.

Elle sorriu-se. Tambem d'esta vez não fizera caso da minha pergunta.

E eu começava a não vêl-o com olhos lisonjeiros.

A escada não tinha fim, caracolando sempre nas trévas humidas, onde passava o voejar dos morcegos, os guinchos dos ratos, e toda a sorte de sopros e rizadas maléficas.

O ultimo trago d'aguardente acaba de se me sumir nas profundezas da goela. E valha a verdade, eu ia perdendo um pouco a noção justa das coisas. Fórmas, rumores, simples idéas e suggestões me lançavam de roda, n'uma sarabanda de incoherencias.

Dir-se-hia nos iamos sequestrando, pouco a pouco, ao mundo normal e quotidiano, com os seus phenomenos e leis eternamente as (p. 090) mesmas, para invadirmos não sei que exotica região onde tudo era diverso: a atmosphera e a luz, as figuras, as sensações, e as naturaes affinidades de ser a ser.

Por instantes, quando o homemzinho passava na luzerna do luar lançada por alguma fresta da torre, eu ia jurar que elle mudava de figura, á proporção que ia subindo. Já não tinha na cabeça o solidéu de sêda preta. As suas orelhas avantajavam-se aos lados dos olhos despegando-se-lhe do craneo como as dos morcegos, em grandes pregas cobertas de cabellos. E deixei de ouvir o rumor dos seus passos, emtanto que a subida se tornava vertiginosa, inquietadora, embriagante. Cada vez os degraus me pareciam mais estreitos, o passo de espira mais apertado, e o caracol de pedra mais asphyxiante. E nas trévas da torre, emquanto eu ouvia os resfollegos do velho saltando os degraus com furias de possesso, um ar denso e gorduroso forçava-me o cavername do peito a centuplicar d'inspirações, como n'um paroxismo de syncope.—Ar! Ar!

A minha cabeça rolava entre vertigens: via moscas de fogo saltarem-me por diante dos olhos. E era como se cada um dos meus sentidos, estando separado de mim, não pudesse (p. 091) ou não quizesse procurar-me sensações nitidas e exactas—tanto as coisas que eu tocava me pareciam differentes. Larvas de gelo, escorregadias, sem fórma, tocavam-me nas mãos shake-hands bruscos. Abria então a bocca para gritar que me acudissem: e percebia que elle voltava logo a cabeça, porque sentia, positivamente eu sentia na cara o caustico dos seus olhos dilatados nas trévas, acobardando a minha alma varada d'um inexplicavel calafrio. Até que emfim chegamos a uma especie de sala rasgada de porticos, por onde a lua entrava. E rompemos n'ella como o estampido d'uma granada: o velho indo cahir de bruços no pavimento, e eu por cima d'elle, n'uma exaltação furiosa—a ponto de por cinco minutos rolarmos no chão corpo a corpo, engalfinhados, como se algum de nós pretendesse esquartejar o companheiro. Prestes porém o lesto demonio se me escapulira das mãos, e sem uma palavra, deixando a capa, correra aos varandins da torre a debruçar-se.

A sala era grande, com varandins d'esculptura aberta, que pareciam bordar uma antiga renda de cruzes de Malta e folhagens, sobre o azul pallido do céo.

Uma floresta de cordas, mastros, travessões (p. 092) e guindastes, emmaranhava o ambiente e corria de banda a banda. Pendiam sinos dos porticos, negros, immoveis, suspensos, como aves de rapina dormitando... mil tamanhos, mil formatos, uns grandes, outros pequenos, bojudos estes, aquelles campanulados... E na cupula toda aberta de lucarnas até á flexa, a zunida do vento fazia uma especie de côro em surdina, instrumentado a risadas e pequenos silvos de mangação.

 

O velho fizera um gesto. Uma badalada profunda sacudiu de chofre a ruinaria inteira, dos alicerces ás grimpas, e foi-se alargando pela cordilheira, attenuando, extinguindo, n'uma vibração magnifica de sonoridade.

Terrífico e supremo era o accento d'aquella lingua de cyclope, que o pulmão de bronze insufflára, no seu vagar prophetico, e que retalhava o silencio da noite como um echo da vida eterna, soado através da impenitencia dos homens.

Outra badalada mais forte, e outra, e outra ainda. Crucitando d'assombro, os bandos de corvos fugiam por todos os lados. E as massas de sonoridade precipitavam-se nos ares, desgrenhando (p. 093) uma procella de bramidos, e como um apocalypse prégado ao universo estarrecido a nossos pés. Para fazer dobrar alguns d'aquelles grandes sinos, o velho trepava aos varandins e supportes, desdenhando as vertigens da altura: e eu via-o marinhar então pelas cordagens, correr como um gato ao longo dos cabrestantes, suspender-se, desapparecer, cabriolar, suffocado, e insistindo, e voltando, n'um jogo macabro d'esforços, que ainda mais lhe accentuava a contornadura demoniaca que elle tinha.

A cada manobra do velho, era como se as badaladas me fossem batidas em cheio, no coração, derramando-se-me em crises d'angustia por toda a rede dos nervos convulsivados. Foi n'este estado que eu corri direito a elle, e pude agarrar-lhe as pernas no momento em que o maldito se preparava a descrever nos ares uma arrojada espiral, como Quasimodo, abraçando pela cinta o reboleiro maior do carrilhão.

Ao mesmo tempo, começava a produzir-se um phenomeno extraordinario. Seria illusão dos meus sentidos?... effeitos da minha sensibilidade doentia, que perdendo o caracter proprio, se mutilára, exaltára, para rolar depois (p. 094) nas phantasmagorias verdes da loucura? Mas affigurava-se-me que uma especie de vida magnetica ia atravessando as ruinas, como se a falla dos sinos houvesse resuscitado no edificio o genio hostil que alli reinava, e este agora reagisse, contra o germen christão que os nocturnos visitantes todos os annos insistiam em replantar no sanctuario.

Aquillo era evidente, pulsava na pedra, rumorejava na esfusiada dos ventos, cahia em gottas das arestas e das folhagens parasitas.

A principio disse commigo—é uma vertigem do meu espirito exasperado pelas extravagancias da viagem, uma perturbação do alcool que eu ingeri em dóses abusivas... O velho fizera-me frenetico... Os meus nervos estavam carregados de fluido... Porém já na egreja me ferira esta percepção de movimentos disfarçados, esta matinada occulta da sombra contra a luz, esta suspeita de bruxaria latente.

Tinha-me rido d'aquilo—Ora adeus! Estou sonhando. E agora, Jesus! não era engano. A sarabanda macabra rompia.

Muros e escaninhos começavam a debater-se n'uma lucta mysteriosa de encantamentos.

(p. 095) Em cada molecula, em cada penumbra, em cada vôo, a energia decompunha-se em fluidos antagonicos; um que tinha saudades do velho culto, e era mesquinho em quantidade; outro que assoberbava o primeiro, e se declarára no campo adversario. Mesmo, esta sombria batalha toldava-me a cabeça, estava patente á minha alma, obscurecia-me a razão; e o meu proprio corpo vibrava d'ella, e eu sentia em mim os dois guerreiros buscando derribar-se a golpes d'espadão. Não, não era engano! Andava tudo, falava tudo, mexia tudo, e tudo parecia sentir, deliberar e ter vontade. Dos baixos relêvos brotavam gestos, mimicas, summulas de dialogos...

Iam falar as boccas das estatuas. Os velhos doutores resuscitando os velhos schismas. Velhos demonios trucidando as ingenuidades da fé no carnaval das velhas ironias. Muitos santos pretendiam mesmo disputar com os demonios.

N'um baixo relêvo da Ceia, a figura do Christo ergueu-se e bateu com força na meza, colerico por um apostolo se rir, quando elle, sagrando o calix, disse do vinho—este é o meu sangue!

Debaixo dos pés da Madona, renasciam as (p. 096) cabeças da serpente, á medida que ella as esmagava.

E uma circulação impetuosa girava nas arterias da pedra, insufflando vida ás columnatas, fazendo palpitar as rendas das ogivas, e dando apoplexia ás faces das cariatides.

—Velho! Velho! exclamei eu fóra de mim, deitando-lhe as mãos ás goelas. Quem és tu? Fala! D'onde vens? Que queres de mim?

Já a raiva me escumava nos cantos da bocca. A minha gana seria esmagar-lhe a cabeça d'encontro ás pedras da muralha. Porque eu via n'elle o médium da farandola macabra que ia na egreja. Eram obra sua os tregeitos dos monstros esculpidos nas columnatas, o riso mau dos demonios-morcegos nos frisos manuelinos do côro; emfim, o exaspero do Christo, no baixo relêvo da Ceia—e todos os fremitos, todos os sôpros, todas as oppressões, todas as desconfianças, todas as risadas, que eu ouvia, que eu sentia, e passavam por mim o visco do seu contacto asqueroso.

Á sua voz obedeciam aquelles milhões e milhões de forças occultas e satanicas: e elle tinha o dom d'arrastar na espira lôbrega dos seus maleficios, o desgraçado que se lhe approximasse.

(p. 097) Oh, não era ausencia d'energia physica que me impedia de o acabar—elle era magro, ossoso, quasi decrepito... Mas a sua vista dava-me um embaraço! Com o mais ligeiro impulso eu poderia derribal-o. Mas um assombro terrivel, um pavor inexplicavel, uma fascinação que eu não sabia definir, amordaçavam-me, faziam de mim um destroço de captivo em poz d'aquelle tenebroso e phantastico vencedor.

A essa hora, na egreja, tudo estava a postos. Pela abobada cahida, eu pudéra vêr, a nossos pés, o côro profundo, sobre uma massa amarellenta de pilastras fasciadas de relêvos. D'alli surgiam á luz dos brandões, as primeiras bancadas de carvalho, com logares separados, onde cada figura de monja apparecia dobrada sobre a estante do livro de rezas.

Na grande cadeira gothica da abbadessa, a meio do côro, duas vellas faziam brilhar o baculo de oiro, uma mitra mexia ás vezes sobre uma cabecinha pellada de centenaria—e para traz a sombra invadia tudo, e via-se na parede uma rosacea sem vidros, por onde entrava, poeirenta e diaphana, uma grande cheia de luar. Depois a egreja enorme, com as esculpturas mutiladas, as rendas em bocados (p. 098) pelo chão, os nichos, muitos, desertos, e os jogos e caprichos da luz e da sombra, forjando effeitos de scenographia formidavel, de cujo tumulto, ao fundo, o altar mór destacava n'uma apotheose de magnificencias, entre a fumarada do incenso, e os vôos dos pombos espavoridos.

O velho reaccendeu a lanterna. Havia ao centro da casa uma especie de grande cravo de castanho, com teclas de cobre oxidado, aonde vinham ter as cordagens de toda aquella sinalhada. Com gesto placido elle conduziu-me ao teclado, sobre cuja arca depuzera a lanterna escancarada. E desenrolando um grosso manuscripto de musica, pol-o na estante, e fez-me signal a que me assentasse n'um monte de cordas que estava perto.

A musica era torturadamente escripta, coberta de emendas, intercalada de referencias á margem.

É obra sua? perguntei eu. Elle fez que sim com a cabeça. E começou; já o arcebispo ao altar dizia o orate, e soava nos mosaicos da basilica o rumor dos que ajoelhavam.

 

Ahi começa o velho a fazer soar o carrilhão, e eu já sinto outra vez os meus pavores (p. 099) tomarem fórma, e as minhas angustias irem cavalgando extravagantes bruxarias. Cada vez mais á roda dos meus sentidos, fosforeja e zumbe esta encarniçada lucta dos dois fluidos antagonicos, que a pouco e pouco se depuram, quando a minha percepção lhe consegue fixar a transcendencia.

Um revindica o culto das florestas, das aguas e dos rochedos. É a grande alma pagã da natureza, que impulsiona os mundos d'uma vida extraordinaria, e tem voz, no bramido das vagas, e faz as flôres e os archipelagos, e chispa das rochas que o ferro morde, e chora lagrimas de leite nas folhas arrancadas da figueira. É o mais antigo, é o mais forte: e a todo o transe elle tenta reconquistar o solo, com a audacia heroica d'um régulo expulso de dominios seus. Tem a symbolica dos antigos mystérios, o outro. E bisonho e tenebroso, desceu do outeiro onde uma noite uns soldados estavam crucificando um vagabundo. Prégando jejuns e penitencias, emquanto ia fazendo da cobardia uma virtude, e não sei que refrigerio da morte, gritava ao mundo—venho destruir a obra da Mulher. E por entre o unisono das harpas, na choral dos serafins, ouve-se o alarido dos que na fogueira (p. 100) escruciam, e os latins do inquisidor que os manda morrer em nome da misericórdia celeste.

—Velho!

Repara bem, como até na gralhada dos sinos parece evidenciar-se a batalha das duas legiões. Aquelles sinos além são pela egreja; mas aquell'outros aposthasiaram e insurgiram-se.

As mesmas tuas mãos de maestro ferindo o teclado, parecem obedecer a dois musicos diversos, degladiando-se sem quebrança de rythmo, n'uma especie de sabbat artistico, alternativamente piedoso e diabolico. Por momentos, tudo isto se me afigura symptoma d'alguma psychopathia bizarra, evolucionada no exaspero mental que esta noite em mim produziu.

Faço esforços de rehaver a minha antiga serenidade, ponho-me a vêr se coordeno as minhas faculdades d'analyse e de critica, e se restabeleço a limpidez do meu juizo, a sangue frio.

—Eu é que sou talvez duplo, e não a maneira de ser das fórmas que me circundam.

As minhas operações mentaes é que estão (p. 101) fraccionadas e desparallelas, como se a fouce do cerebro me não dividisse o esferoide em dois ovulos estrictamente iguaes, senão o houvesse desigualmente bipartido, lobulo maior, lobulo mais pequeno... e cada um derivando em modos de ser incompativeis.

Porém esta hypothese eriça-me os cabellos. Adeus harmonia de funccionalismo mental! Falta d'obediencia a uma mesma força coordenadora e dirigente! Para cada metade do meu corpo, uma contenção vital diversa da outra, energia differente, outro caracter, outra impulsão...

Actividades parciaes, cerebrações avulsas, acordariam n'esses varios districtos do meu encephalo sem rei, nem roque, chocando as suas indoles sobranceiras, como pequenos despotas em gran-ducados rivaes. A dualidade surgiria por fim d'esse chaos encephalico, como uma terrivel dupla vergontea de loucura: venho a dizer, dois individuos n'um corpo, discutindo, acotovellando-se, perseguindo-se, um contrariando a vontade ao outro, annulando este os esforços d'aquelle: e nenhum deixando dormir nem descançar o companheiro. Mas é isto. Positivamente é isto—estes dois maus irmãos que juraram anniquilar-se (p. 102) d'um golpe: fratricidas que a mesma impulsão vae arrastando de roda um do outro, á espera do instante em que possam beber-se o sangue. Um d'elles fraco, cheio de mysticismos poeticos e visualidades atravessadas de inquietações. Timido, nasceu comigo, é filho de minha mãe, uma devota. Mas o outro foi crescendo nos livros, o estudo inoculou-lhe audacia, a arte agigantou-lhe as dimensões, n'este momento elles barafustam, e eu cuido que estremece pela basilica toda, este tragico drama que apenas se me debate nos nervos, e ensanguenta os musculos da cabouqueira que eu trago sobre os hombros.

 

Por consequencia estou doido. Um pavor gelado invade-me o peito.

Estendo para o altar os braços supplicantes. E o velho continúa a sua musica grandiosa, indifferente a tudo o mais, emquanto no altar celebra missa o arcebispo.

A execução d'essa musica parece absorvel-o e mirral-o como um galope d'annos desgraçados.

A primeira investida é confusa, o velho treme de medo, correm-lhe lágrimas na cara, (p. 103) quatro e quatro, e murmura não sei que palavras cabalisticas. Eil-o se endireita e recomeça.

E pouco a pouco a minha alma abre as asas e suspende-se n'um paiz lilaz de supremos extasis acusticos.

Já a riqueza dos timbres e a gracilidade dos motivos me fazem esquecer que seja um carrilhão de sinos que eu escuto. Alguma coisa da potencia orchestral do orgão, profunda, gothica, lithurgica, mas mais unida, mais colossal, mais grandiosa, se evola d'essas campanulas de bronze que faz soar no meio das serras o mais prodigioso maestro do mundo. O carrilhão faz-se voz da architectura de repente, e o desdobramento na musica dos caprichos floreteados na pedra pelo cinzel—tanto os meios d'expressão se centuplicam e vão fasciando de originaes melodias, arrancos trágicos e indomáveis rouquejos de paixão.

A voz de cada sino presta uma inflexão, uma emoção á voz da cathedral que desperta e vive como um ser perplexo e gigantesco: e d'aquellas resonancias que a mão do artista humanisára, como interpretando um estado d'alma doloroso, a angustia d'uma raça, cahiam tristezas, desprendiam-se adeuses, voavam (p. 104) recordações... recordações de vozes ouvidas n'outro tempo, na bocca d'alguem que eu, valha a verdade, já não sabia dizer quem fosse.

Vamos ao Credo. O carrilhão centuplica o enxame instrumental de grupos harmonicos, e é o momento em que o universo une a bocca á poeira, para afirmar essa fé que elle tanta vez terá sentido esmorecer no coração. Oh, a musica do velho era uma grande opera de effeitos supremos, onde a alma se banhava aspirando ao mysterio d'um ideal celeste e inaccessivel. Vinha d'ella uma intensidade de dôr heroica que dava soluços á melodia unanime dos motivos symphonicos; desencadeando-se em rajadas no badalar dos grandes sinos. A principio era uma coisa lenta, que se apagava como um rythmo de reza, de nave em nave.

Era uma grande litania de humildes, cortada por algum soluço afflictivo, e em cuja penumbra se apercebiam circulos d'almas cada vez mais vastos, n'uma paisagem de ballada, livida e nocturna.

Outros soluços vão repercutindo o dobre d'aquella angustia suprema, n'um côro trágico de sessenta seculos de soffrimentos.

(p. 105) Já o effeito cresce, desencadeia-se, rebenta. Ha gritos funebres, insurreições apenas suffocadas, roucas ladainhas que chegam de longe pedindo socorro...

Ai! n'essa apotheose de crença espiritual, por vezes a estridencia dos brados faz suspeitar o terror em vez da luminosa confiança que deita a cabeça no regaço da fé, e a imposição feroz d'um credo absurdo, em vez de simples doutrina conciliante ao caracter, e inteiramente suave ao coração. E o offertorio passa, a campainha do acolyto annuncia o Sanctus, e o sacrificio da missa principia.

Emtanto que no meio d'aquellas instrumentações picturaes do carrilhão, d'onde o mysterio da missa se ennubla e desenvolve, sempre o pensamento musical podia seguir-se, com a pureza d'um psalmo; tão limpido, que eu cerrava os beiços de medo que o meu halito embaciar pudesse, a crystallinidade d'aquelle adoravel motivo.

Mas da bocca dos sinos, como d'uma cornucopia emborcada, vão golfando inumeraveis turbilhões d'espiritos fatuos, sylphos de carrilhão, vibrações tornadas fórma que vão e vem, sobem e descem, cabriolam, zigzagueam, rolando, partindo, tornando a ir, e diffundindo-se (p. 106) nos longes em grandes circulos concentricos, onde as figuras se perdem emfim, n'uma bruma côr de cinza. Todos são excessivamente pequenos, com uma multidão de caras differentes, pequeninos braços, pequeninas pernas, que se agitam n'uma quantidade de mimicas pittorescas. Apenas escapados dos sinos, eil-os correm uns ao encontro dos outros, larvas do medonho, embryões do pesadello, conforme a imanação sonora d'onde procedem: e agarrando-se pelos hombros, continuam nos ares a fantastica batalha que eu assignalára já para cada atomo das ruinas. Cada vez mais, cada vez mais, esses milhares de anões parecem recrudescer das sinistras gargantas do bronze, e bem depressa elles foram tantos, que faziam uma espécie de exhalação fumosa interposta aos meus olhos e os objectos, que se alongava depois n'uma grande lingua, rapida e turbilhonante, ascendendo na flecha audaz do campanario.

Já a torre estava cheia d'aquellas larvas cúpidas do som, sedentas de lucta, phreneticas de movimento, em cuja carcassa podiam vêr-se todas as espécies de caras, idades, sexos e configurações. Tinham umas a côr verde das folhagens; eram as mais numerosas e as (p. 107) que mais robustamente cabriolavam. Mas outras eram pardas, alongadas, noctiluzentes, com a vibratilidade dos vermes e a cabeçorra disforme dos peixes-sapos. Havia-as corcundas, havia-as tortas, havia-as barbudas. Encarquilhadas, hydropicas, leprosas.

Em figura de rato, em figura de sapo, em figura de morcego... e mesmo certas pareciam esqueletos d'aves antediluvianas, marchando aos pinchos, com um grande bico maior que o corpo, direito, espesso, que não podiam erguer da melancholica postura em que o levavam pendurado. Tinham asas quasi todas; algumas eram armadas de espinhos, outras traziam capuzes sobre os olhos, o breviario na manga e camandulas á cintura: e até muitas, brandindo fachos, corriam através da batalha, pondo um clarão de sangue em todo esse pavoroso arraial de maleficios.

E as que nasciam iam empurrando as que já eram adultas.

Crescia a chusma atropellando-se, comprimindo-se: até que não cabendo na torre, cahiam pelos varandins, aos milhares, ou esmagadas contra a parede ahi seccavam e por fim desappareciam. Na debandada, um panico lhes convulsionava ainda mais os (p. 108) pequeninos membros, e de rustilhão precipitavam-se, agarradas umas ás outras, e dispersando-se em circulos, quando já as suas figuras pareciam ganhar d'aptidão o que iam perdendo em nitidez de contornos. Pelo céo, aquelles circuitos simulavam fortes migrações de passaros cinzentos, cerrando os seus exercitos até aos confins do horizonte.

E mal os sinos paravam, havia um claro turbilhão de mostrengos... só um ou outro mirrava, n'uma asfixia de silencio, lentamente, pingando ás gottas no chão que o consumia, ou ficava cabriolando nas cordas em piruetas de acrobata, ou pouzado n'um ferro, arésta, teia d'aranha, entrava a balouçar-se monotonamente, até agonizar de todo e desfazer-se.

—Oh Deus! Deus grande, Deus omnipotente e misericordioso! ampara, por quem és, a minha fé, e não deixes apagar na loucura a bruxuleante luz da minha razão.

Quando o arcebispo ergue a hostia, e sôa em concavo pela igreja, o bater das mãos contricto sobre os peitos, porque é que este musico soluça, errando a vista pelos angulos da torre, á procura d'alguem que alli não está? E a sua figurinha de satyro arrepela-se, (p. 109) lugubre e grotesca, como a d'um macaco que tivesse por dentro a alma contricta d'um christão. Já as pombas volitam de novo sob a cupula, brancas, purissimas, adejando outra vez pacificadas, quando os ultimos turbilhões de mostrengos se despregam dos sinos mudos, esfusiando pelas ogivas, sob os lategos da uncção celeste que se irradia da hostia, feita carne, e do vinho do calix, feito sangue.

No momento, o benedictus segue, e o carrilhão murmura de mansinho, como n'um unisono de violinos e harpas, a mais suave preghiera que o perdão do Senhor haja inspirado a um penitente. Manso e manso, os seraphins de pedra unem as mãos, batendo as asas de jubilo, com os seus typos frustes de creanças, em cujas cabelleiras se accende um oiro fosco d'aureolas; e das partidas lyras arrancam, com os seus dedos, vagos preludios de um mysticismo fluido, vaporoso, que embriaga d'extase, e em equivalencia approximarieis dos mais recatados perfumes de jasmim e de nardo, violeta e rosa branca, vaporizando-se de corollas abertas no claro-escuro d'um claustro, e que á noite espargissem suggestões de bemaventurança, na cella virginal d'uma noviça.

(p. 110) Sim! n'esse preludio do velho, chora talvez a imploração d'um crime antigo, expiado em annos de supplicas nunca ouvidas, e centuplicando d'eloquencia, através do tempo, té que afinal a tortura do musico excede os limites d'expressão concedida ao homem, e iguala e imita a eloquencia de Deus, para, confundida n'ella, coagir o Monarcha dos céos a perdoar. Tudo n'este supremo instante a solicita, os fieis que voltam a face para o carrilhão que os arrebata, as esculpturas, as pombas, e o arcebispo emfim que ao dar a benção, estende para a torre o braço tremulo, e absolve d'um gesto o extranho musico.

Limpo de nevoas todo o céo de dezembro esmaecia, d'uma pureza elysea incomparavel—e argentea a lua rola, espalhando ao redor madeixas claras, como uma cabeça morta de baby, á procura do tronco, pelos valles, antes que o gallo da missa solte o seu primeiro apello, para o baptismo de Jesus feito creança.

Na poeira do luar, pelos rasgões da rosacea, um turbilhão de seraphins rompe na igreja, brancos de marmore, nascendo da nuvem como uma geração espontanea de caritas bochechudas, boccas em flexa, olhos (p. 111) de saphira, e o tom chlorotico, translucido, que participa do paraiso e da tumba, e no qual poderá lêr-se, mau grado a espiritualização da eterna estancia, essa infinita nostalgia dos pequeninos seres arrancados ao calor dos seios maternaes.

Por um instante, palpita sobre o côro alada tromba, como uma emigração de passaros radiosos, pyrilampos, borboletas, que oscilla e se desloca na fumarada argentea do astro, turbilhonando em rodopios d'apotheose: depois do que converge á torre, e pelos varandins enfia, n'uma espiral de sonho alvinitente. Mas é um exercito que lentamente baixa o vôo, silencioso, rufado apenas, no frou-frou das asitas quasi imperceptiveis. A alguns mal se lhes lobriga a cabeça, envoltos como voam, nas suas camisotas de nuvem; outros inquietos, não podem estar poizados muito tempo em qualquer ponto, e n'um phrenesi de movimento, mexem, debicam, bolem no teclado dos sinos, nas esculpturas, chamando-se, vindo em chusma rir de um monstro ou cariatide, arrepellando-se os cabellos uns aos outros, jogando as escondidas por traz das heras que abraçam a muralha, de roda dos varandins, pelas cordagens—e até (p. 112) um que escorregou nas lageas, ficou de bruços, choramingando, com birra, á espera de que alguem o fosse levantar.

Os mais robustos então descolam do pavimento uma das lageas, a um canto, e acocorados na terra, escavam com as unhas uma toca.

Pela segunda vez, o gallo da missa gritou da cupula, e elles, que o escutam, precipitam com furia o seu trabalho, a fim de que a tarefa esteja prompta antes que a ave solte o seu terceiro grito de alarme.

Bem depressa ha um buraco fundo no chão da grande sala, e—oh surpresa!—aparece um pé, um microscopico pésito de creança roxo de frio, inteiriçado: e logo depois do pé uma pernita, o tronco, uma cabeça... Já a curiosidade impertiga a pequenada, que se achega e acocora, em circuito cingindo-se pelos pescoços, n'uma profusão de momos espantados.

O pequenino cadaver está descoberto, e cada qual n'elle procura insuflar o ligeiro filete vital que em si conduz. Uns lhe aquecem as mãos com seus beijitos leves como abelhas, outros lhe sopram das palpebras a vilissima terra que lh'as come, emquanto (p. 113) muitos lhe fabricam uma samarra, com os pedaços que arrancam ás suas proprias vestimentas.

Emfim, a creancita ressurge, esfrega os olhos—dois ou tres calafrios passam de manso á flôr da sua epiderme opaca e ecchymosada—e a vida nasce, ha movimentos, pequenos haustos, suspiros... mas sempre á roda do pescoço um vergão negro estrangula-a, estygma de infamia paterna, que o velho encara estralejando os dentes, n'um terror confuso de assassino. Pela terceira vez o gallo canta, e triumphante, o turbilhão de seraphins levanta vôo, ascendendo pelo céo, n'uma espiral de nevoas côr de rosa.

Porém de repente, o pequenito recorda-se, volta a cabeça, estende os braços para o musico que de rastos avança, desesperado, por não lhe poder tomar as mãositas protectoras. Oh, era tempo! Ha já cem annos que elle assim vagabundea nas ruinas, sem repouso esse sineiro que amara uma abbadessa; e annos e annos desfilam, e sempre a terra a recusar sepultura ao amante, e sempre a colera de Deus a expungir da sua gloria, o monstro que assassinára o filho, no proprio dia em que elle foi nascido. Annos e annos o miseravel tentara (p. 114) apaziguar a colera do Eterno, vindo á missa do gallo da abbadia, interpretar pela musica do carrilhão fantastico as escruciadoras angustias da sua alma lassa, atormentada, mas ainda no fim d'estes esforços o céo que redimia a creança, como se não julgasse bastante a expiação do pae, abandonava-o!

Surdo, maldito, o desespero começa a babar-lhe da bocca, imprecações incoherentes. De novo o carrilhão blasphemo, vomita das campanulas de bronze, a sua bruxaria macabra de mostrengos. Os ultimos fieis arrastam as sapatas no adro, e pela montanha as luzitas descem ondulosas, hesitantes, como um bailado de pyrilampos.

Agora um, outro ao depois, os lampadarios se extinguem diante das capelas: o altar-mór não phosphoreja mais as suas rutilancias d'estofo e pedrarias: o arcebispo foi-se, as monjas voltaram talvez aos seus sepulchros, porque as procuro em balde nos cadeirões do côro, pela egreja e nos claustros, á chamma dos ultimos archotes que lambem de sangue os gestos das estatuas, as arcarias confusas, os baixos relêvos e os nichos.

Deito os meus olhos de roda, espavoridos, e ha risadinhas, voejos, as heras trepam em (p. 115) grossas lianas, que se abraçam nos columnellos da torre, e prolongadas, tenazes, n'uma luxuria contorcida de serpentes, alastram as suas pernadas entre as pedras, como uma avançada de exercito que em nome da natureza, toma posse do terreno que lhe havia sido usurpado. O terror dá-me epilepsias de fuga, d'uma vertigem, d'uma raiva! e precipito-me na escada, ás escuras, sem mais ouvir os queixumes do musico, que as vegetações vão sugando, assimilando em si, absorvendo, n'uma troncagem monstruosa de figueira.

Chego á igreja, quebrado pelas brutalidades d'essa queda espiral de oitenta metros. E atraz de mim não ouço mais que a floresta a esbravejar, tomando posse da ruina, e os estalidos da cantaria que rebenta, escarvada pela violencia das raizes que esconjuntam a architectura a punhaladas de ciume. Agarro um facho, em bramidos, delirante d'um medo que centuplica as minhas ancias de vida livre, em meio dos campos: e ao acaso, entre os cyprestes, pelo claustro, os risos guiam-me: bem depressa descubro uma luz vaga, coando-se por baixo d'uma porta baixa e carcomida. Dentro ha rumores, leves frou-frous de sêda que se acamam, tinir de pratos... E no (p. 116) phrenesi medonho que me agita, deito os hombros á porta—a porta voa, e uma orgia d'espectros patenteia-se, n'uma luz glauca em que as figuras mergulham, confundidas, alongando as roupagens pardacentas. A principio eu não pude destrinçar as lugubres carcassas, uma a uma, mas já a minha vista insiste sobre as fórmas... ha um festim servido sobre a mesa, flôres que se desfazem em poeira; e n'um brilho d'enterro as tochas ardem, mostrando á roda esqueletos de monjas, a devorar co'as mandibulas descarnadas, e cardeaes, marquezas, gentis-homens, que entre si permutam toda a casta de motetes dulcerosos.

E mais distante, á luz do fogo que enrubesce na chaminé de pedra armoriada, o senhor arcebispo tange um violão, meneando a calva emquanto a abbadessa ergue os seus vestidos veneraveis, para esboçar o primeiro passo do minuete, acordado nas cordas do instrumento.

—Rompe a manhã! grita o creado aos meus ouvidos.

Esfrego os olhos.

A nevoa esfarrapa chuveiros na montanha. É dia claro. Uma caleça nova nos aguarda. E o sineiro da abbadia? A gente sempre sonha cada asneira!(Voltar ao Conteúdo)

(p. 117) PEQUENO DRAMA NA ALDEIA

Devo dizer-lhes que este Carlinhos era um adoravel petulante de buço preto e olhos claros, cheio de vivacidades com raparigas, prompto a rir, delgadito e forte, tendo pelos actos de bravura uma quasi religião. Compensavam-se n'elle delicadezas de femea, brancuras de mãos, flexibilidades de cinta, uma doçura candida de feições, toda a graça ondulosa emfim, dos que adolescem á larga, sem cuidados nem represalias paternas, com os primeiros esboços d'essa energia physica, tenaz, inquebrantavel, leviana e generosa, que ainda agora é tradição em certas raças da provincia, e guarda fama de povoado em povoado. A escóla fôra-lhe apenas um pretexto de troça, onde esse incorrigivel tinha posto em debandada a auctoridade classica dos mestres. E como n'esse periodo as primeiras (p. 118) desordens do sangue, ensaiavam pelo campo da aventura, mais agora ou mais logo, as suas sortidas, não havia mesada que chegasse, nem horas para folhear as lições. Demais, a sua impetuosidade que esplendia côr e frescura de saude, pouco dava á vida cerebral; portanto, voltou á aldeia sem curso, elançado de figura, tendo as olheiras symtomaticas do amor esbanjado, lendo romances, com uma arte especial de surprehender mulheres, e predilecções decididas por quanto fosse prazer.

—Doido, dizia a gente pobre da aldeia, mas que rapaz!

A fortuna da familia fazia-o no sitio uma especie de menino d'oiro, sagrado e por todos querido; desculpavam-lhe as audacias, tinha entrada em todos os lares, e quando nas romagens o seu cavallo piafava nos adros das ermidas, ou a galope ia cortando a chafranafra das feiras, as raparigas deslumbradas achavam-n'o bello como um deus, e muitas fugiam com elle, mandando á fava os namorados. Realmente ninguem achava extraordinarias estas coisas. O que as velhas camponezas então faziam, era ter saudades do pae, rico grão-senhor de herdades e quintas, destemido, brilhante, alegre aventureiro, que ainda em (p. 119) vesperas de morrer tinha raptado a lavradora das Lages; aquella russa magnifica de carnação, que tinha o ar d'uma grossa madona eborense, hão-de estar lembrados, hein? Carlinhos mesmo, era um filho do amor, vindo não se sabia d'onde, amor d'acaso, d'alguma arribana de granja, d'algum arredado logarejo entre serras e moinhos. O certo era que dias após haverem enterrado no velho cemiterio, a filha que ao rico homem restava da esposa legitima, entrara o marido em casa com um pequenito pela mão, fôra junto da esposa mortificada de prantos, e sem palavra tinha-lhe deposto no regaço aquella encantadora miniatura de Carlinhos pequeno, a mais fresca e divina que era possivel sonhar. A pobre senhora que se via sem descendencia, já não estava em idade de ter filhos; resignada ás traições do marido, e ennobrecida d'esse grande orgulho benevolo e senhoril, que ainda na provincia revelam as antigas familias, acceitara o bambino sem cousa alguma perguntar. Além de que, adoptando a creança, assegurava-se herdeiro á casa, e os filhos do irmão de seu marido não participariam ceitil na grande fortuna do casal. Ah, mas esse exemplo d'adopção tinha dado a mulheres sem (p. 120) marido, phrenesis bruscos de contagio, e certo foi que muitas creanças appareceram dizendo-se irmãs de Carlinhos. Talvez calumnias forjadas pela outra familia, ainda que fallando sério, não faltassem a taes pretenções, uns signaes de verosimilhança. Tanto os da Oriola, que assim era conhecida a familia do Carlinhos, como os da Torre, que assim nomeavam a casa do tio adversário—eram fortunas de respeito e gente de poderio. Os primeiros tinham o maior nucleo da propriedade de redor da Oriola, aldeia perdida entre carvalhaes e sobreiros; os segundos faziam séde de governo proximo a S. Mathias, outra aldeia nos valles de Beja. Uns tinham cabellos pretos, alta estatura fina, nariz direito, olhos claros, e uma côr fulva de pelle, nuançada em deliciosos duvets; eram da Oriola. Mas outros insculpiam-se herculeos e loiros, nariz recurvo, dentes carniceiros, barba rara, e os olhos singularmente obliquos contra um nariz que arfava com destrezas de hispano-arabes; eram da Torre.

Pois extraordinaria bizarria! Dos trinta annos para baixo, toda a Oriola copiava o typo do pae de Carlinhos; e acontecia o mesmo em S. Mathias, a respeito do typo (p. 121) loiro da Torre. Nas terras de roda, estas coïncidencias faziam riso, ainda que se explicassem com honra, aqui para nós. Os da Oriola davam pão á sua aldeia, como os da Torre a S. Mathias. Lá vinha o proverbio—mesmo pão, mesmas feições. E sendo assim...

Ora cada qual d'estas familias rivaes—e nunca pude saber porque rivaes, questões de ciumes talvez, uma herança mal repartida, ambições de riqueza ou voga entre os povoados, eleições renhidas n'algum anno de mais gastos, emfim qualquer pequenino attrito d'esta natureza ou d'outra, onde o orgulho dos senhores ruraes, tão vehemente e meticuloso, faisca determinando incendios e intimas assolações—cada qual d'estas familias, ia eu contando aos senhores, não passava dia sem discutir com uma rica metralha de descomposturas, escarneos e desdens, o viver da outra. Em torno d'estes odios interfamiliares, tinham-se formado mesmo pequenas côrtes, feitas com figurinhas insipidas de proprietarios, mulhersitas seccas e beatas, maldizentes na sua dentuça podre, com poucos meios e grandes deslumbramentos pelas pratas de casa rica, sabendo as mesmas historias e queixando-se dos mesmos flatos, levando e trazendo (p. 122) recadinhos, segredinhos, pequeninos fetidos d'intriga, em preço do chá com doce que pelos serões lhes serviam, e da quasi familiaridade que em publico, esses senhores de terreola lhes dispensavam. Na casa da Oriola sabiam-se por exemplo a horas e a tempo, os vestidos de sêda da prima Dora de S. Mathias, como ella se vestia em sendo madrinha de baptisado, o que tocava no piano, e quem estivera a jantar no dia dos seus annos.

—Diz que houve balancé até de manhã.

E noticias da cortiça exportada para Inglaterra, lã que vendiam os da Torre, e dos rebanhos, carneiros, vaccas, porcos, cavallos, poldras...

—Tão maus, que elevaram o preço dos carneiros, só para prejudicar os lavradores somenos. E os porcos d'elles não prestam, carne de cão, mais dura!...

Cada viajata de Dora durante a estação de banhos, cada mez d'opera em Lisboa, no inverno, as primaveras com o pae pela Andaluzia, no Algarve, ou em Marrocos e Gibraltar, para espreitar o dolente azul do Mediterraneo do alto das artilhadas escarpas inglezas, eram motivos de censuras na Oriola, e surdas prophecias de ruina iminente. As mulheritas (p. 123) da terra vinham aos serões com seus maridos, trazer o que sabiam da Torre, inventar quando não havia que trazer, e a mãe de Carlinhos commentava os casos entre velhas creadas que a tinham acalentado, velhinhas que davam tu á sua dona, enroscando-se-lhe aos pés com somnolencia de gatas fugidas ao serviço. Mas, desgraçadas das visitas que ousavam julgar diante da rica viuva, o proceder da sobrinha ou do cunhado—que tombadas em graça, nunca mais lhe viam os dentes e provavam o dôce! Ella só, viuva de Fernando Zarco, podia discutir os desvarios de seus parentes; o resto contava sem commentarios o que ouvia por fóra, ou ia escutando o que ella dizia, sem retrucar mais, aliás...

Na casa da Torre, exasperação identica a respeito da Oriola, não havendo serão que as estroinices do primo não fossem esmiuçadas, exageradas e discutidas. Carlinhos não tinha pae, Dora não tinha mãe. Mas auctoritaria e toda orgulhosa do seu reino domestico, da riqueza e alta educação que recebera, tambem ella punha em torno de si uma pequenina côrte dulcerosa e servil. Era mais nova que o primo, e a sua belleza de loira, magnifica e (p. 124) alta, toda fresca em batas d'estofo exotico, deliciosa de cabellos e mãos, com uns ares d'inaccessivel castellã, fazia d'ella a musa do districto, e a paixão de quantos gordos filhos de casa opulenta, batiam por feiras e lavouras em grande. Viam-se os dois muitas vezes, Carlinhos e Dora, casualmente nas festas de Beja, em praias de banhos, e por Lisboa, onde até acontecia ficarem no mesmo hotel. O pae d'ella, Manuel Zarco, fingia não dar pelo sobrinho, o engeitado, como elle dizia na sua brutalidade morgadia. Os rapazes, porém, é que se iam mirando ás furtadellas, sem querer saber das caturrices do velho. Carlinhos, tão ruidoso e leviano por onde quer que andasse, ficava sério e perturbado sob esses rapidos encontros com Dora, e os seus olhos claros esmaltavam profundezas ardentes, e melancolias de quem fica a scismar. Porque em verdade, mulher alguma podia equiparar-se a Dora, pela nobreza do seu typo, estudada elegancia de maneiras, vestuario, contos de fortuna e altivez de familia. Os bem informados n'isto d'interesses e allianças possiveis ou premeditadas, não viam por essa orla toda do districto, um casamento á altura de Dora, a menos que a (p. 125) orgulhosa descesse, o que todos diziam não ser provavel. Apenas um noivo a merecia bem, Carlinhos.

—Esse, opinavam as terras circumvisinhas, quando as gallinhas tiverem dentes.

Precisamente esse dia, a aldeia de S. Mathias suspendera os trabalhos do campo em signal de festa; os das herdades tinham vindo com os seus cajados e as rudes botas altas de coiro branco, rolavam bailaricos por todas as casas; e no terreiro da egreja, ás portas das vendas, no balcão da escola régia, ou mesmo ás embocadas das ruas, por aqui, por alli, os camponezes em ranchos, fato novo, ruborescencias de vinho no queimar da face, havia mais de tres horas que aguardavam a boda. Os campos n'esses meados de junho, tinham primeiros doirados do trigo maduro, ondulante e farto, que a aura por zonas encama n'uma saudação graciosa; por um lado e outro, entre gavelas arrepeladas sem ordem, remoinhos desflorados de messe, como labios de rapariga ardente, ria o escarlate das papoulas; e como aos sóes da quadra tinham vindo as cigarras, ruido de cega-rega, trocavam alertas d'arvore em arvore, á medida que ia avançando o verão. Entanto ainda as (p. 126) noites eram frias, e o orvalho da manhã perlava nas folhas, secretas lagrimas d'amor trahido; corria mesmo agua por alvercas e ribeiros, fria, salobra das terras atravessadas, dando erectos viços aos panascaes verdejantes, ás junças e mentrastes das ribanceiras. Microscopicamente, as vinhas iam esboçando cachos, entre pampanos pizados d'amarello e vermelho ferrugem; começam a vir os perdigotos, as rolas tinham chegado d'uma aspera migração, e desconfio que os melros, casados de fresco fazendo musica de opereta entre os murmurios das cannas e dos silvados, arredondavam já os seus ninhos, á espera da petizada. N'essa grande paz bucolica, a alma abraçava simples ideaes de ventura, nua d'ambições desordenadas e volupias lividas, e na doçura de palpitar entre aromas silvestres, ia voando em cata de amores delicados e mansos idyllios, pelas veredas onde as condoidas espigas se curvavam, a depôr nos regaços esmolinhas do primeiro trigo em sazão. Vista de longe, a aldeia era encantadora d'alegria e brancura. Nas collinas, de roda, empoleiradas ermidas vigiavam por ella dia e noite; Deus foragido pela descrença das cidades, andava por alli talvez na estatura (p. 127) de algum velho mendigo de fallas doces e resignada humildade; e pela noite, quando os rebanhos vagarosos seguiam para os curraes, esse cantinho rustico tinha scenas biblicas d'uma graça innocente, pastores e pastoras ajoelhando ao toque das Trindades para dizer o angelus, risos de ganhões pelas devesas, cantigas que se apagavam nas corcovas dos caminhos, emfim tudo quanto entretece a elegia plangente do morrer do sol. Esse dia casava-se o Carlinhos com a prima Dora, e as duas casas fortes do districto, tantos annos separadas por odios, iam emfim restaurar-se na bôa cordealidade, por esse laço dos primogenitos.

 

Imagine-se o espanto e a curiosidade que um tão inesperado successo derramou por toda a provincia, conhecidas como eram as desavenças dos Zarcos, desde tanto apregoadas. Mas assim como tinham ficado na sombra os motivos de apartamento, assim tambem incognitas ficaram as molas intimas da nova amizade entre as duas casas. Evidente, que o principal motivo de ligação era o casamento dos rapazes; isso não bastava entretanto; outras secretas ponderações deviam ter (p. 128) influido; e essas, quaes? Porque, emfim, era conhecida a indole orgulhosa e tenaz da viuva; as suas phrases sobre o cunhado citavam-se em modelo d'altivez varonil e decidida independencia; e por seu lado o da Torre não a poupava tambem. Nem uma só vez Dora tinha fallado a sua tia; creancita ainda, succedera encontral-a não sei que de vezes; os olhos pretos da viuva detinham-se um momento na figurinha petulante da bébé, e desviavam-se logo sem rastro d'affecto. Verdade é que o velho Zarco referindo-se a Carlinhos, punha sempre palavras crueis, marau, vadio, o filho d'aquella...

Subitamente, eis que os rapazes iam casar! Jámais por aquellas redondezas se tinha dado coisa parecida. Vamos nós agora a vêr, se a da Oriola virá dormir á Torre! diziam muito interessadas, das suas soleiras, as gordas comadres de S. Mathias. A mór parte nem tal acreditaria, mesmo vendo. E as apostas começaram. A vêr como dorme! Apostar em como não dorme! A camarilha de Manuel Zarco arengava com sobranceria, entre os grupos mais impacientes:

—Afinal, quem se humilha são os da Oriola. É bom saber!

(p. 129) E uma de preto, a Fevronia, toda preponderante, meia azul e sapato rôto, batia palmas n'uma loucura, dizendo por todas as casas:

—Quem viver tem muito que contar, não haja duvida.

Foi n'este marulhar d'opiniões e trocadilhos, que um forte rumor de sege alborotou a aldeia e emquanto rapazes descalços corriam, cães ladravam, e cabeças de mulheres vinham ás portas espreitar avidamente, os trens da Oriola romperam a grande passo pela rua larga, vindo topar alfim nas escaleiras do adro. Este caso foi muito fallado, e ainda se pasma da magestade com que se apeou a viuva da sua grande berlinda estofada a casimira perola, grandes fivelões e lanternas de prata esculpida. Tinha-se chegado muito povo a vêr, as janellas guarnecidas de madamas, e o mordomo da senhora viuva, gordalhudo, com uma expressão presidencial, desenrolou um rico tapete amarello e branco pelo adro, desde o estribo até aos portaes do templo; os creados da taboa tinham-se erguido e descoberto; e n'isto Manuel Zarco com um riso amarello, todo curvado de obsequios, casaca e luva branca, saíra a receber sua cunhada; e quasi a medo, todos repararam, offerecera-lhe (p. 130) a mão para saltar. Diz que ella nem o encarou, e foi sósinha pelo tapete fóra de cabeça alta, um dos braços pendentes, e a cauda do seu vestido de damasco negro roçagava que parecia mesmo da senhora rainha. Carlinhos ia atraz, um pouco deslocado na casaca de noivo, porque em verdade ia-lhe melhor a jaqueta e o chapeu largo. E fechavam cortejo as velhitas que tinham embalado a viuva, ambas de roxo, ajoujadas, chapeus muito profusos de violetas, e mitenes de renda onde as suas velhas mãos boiavam carcomidas. Junto ao altar tinham posto uma grande poltrona em setim rutilante, flordelisado a ouro velho, onde a viuva se assentou sem mais cerimonia; e todos em pé serviam-lhe de côrte, com passadinhas respeitosas e pequenas vénias cheias d'uncção. Apoiado á espalda da poltrona, velho Zarco mastigava demoradamente as palavras com o seu modo somnolento, siflando os ss de quando em quando, e ella sem lhe dar attenção, um momo altivo de labio, entretinha-se a esfolhar com o seu pé de fidalga, rosas brancas espalhadas pela alcatifa.

Embalde o da Torre lhe fez notar que melhor seria assignarem as escripturas em (p. 131) casa d'elle, como era natural, até ficava alli perto, no largo. V. ex.a descançaria um pouco nos quartos de minha filha...

—Meu cunhado, não me sinto fatigada, assignaremos isso no gabinete do prior, onde quer que seja, mas sem arredar pé da egreja, que é casa de todos. E a proposito, disse ella tirando o relogio, é a hora, duas e meia. Janto ás seis, o caminho é longo.

O da Torre ia a sair, a viuva tinha-se erguido sem reparar na impressão que estavam fazendo os seus cortantes modos de dizer. Manuel Zarco deixou-se caminhar ao lado d'ella foi-lhe lembrando com voz mansa que os velhos rancores deviam acabar com aquelle enlace dos filhos: tudo afinal se esquece.

—Tudo não! disse ella bruscamente. E proseguiu: pódem casar, pódem casar. Carlinhos além de tudo, não é meu filho, aliaz tinha-lhe prohibido esta alliança, meu cunhado!

—V. ex.a é então muito orgulhosa, notou velho Zarco despeitado d'aquelle tom.

—Crê isso? disse a viuva abrindo o grande leque d'oiro e plumas, que reluzia n'uma polvilhação de pequeninas pedras.—E de repente, n'um accesso de voz intimativo: Sabe, meu cunhado, que seu irmão era homem para o (p. 132) ter morto, se acaso tem vindo a saber... Porque francamente, disse ella com os dentes cerrados, rigida e faiscante nos seus damascos negros, francamente, é desprezivel, o senhor! Tenho ainda nos pulsos signaes das suas unhas. Adoro o Carlinhos, creia—eis porque ás vezes me aterro da mulher que elle escolheu. Meu Deus, se essa creaturinha sahir ao pae!

Os dentes do outro rangeram—porque não casou então comigo? disse elle com frenesis na raiz dos cabellos.

A viuva riu-lhe na cara.

—Eu? Eu? Ora, meu cunhado!

Fez dois passos na alcatifa, quebrando n'uma crispadura electrica e larga, a enorme cauda applicada de rendas antigas, ao tempo que os dedos de Zarco rasgavam convulsivamente a luva descalça de rompante. Ambos trahiam colera nos zig-zagues que faziam marchando. Os olhos ainda magnificos da viuva procuravam o da Torre, phosphorentes d'ameaça. E o velho, como quem não acha outro caminho para fugir:

—Emfim, desmancha-se este casamento, se quer.

—Não, já agora, elles desgraçadamente (p. 133) adoram-se, Carlinhos mostrou-me as cartas, amor de muitos annos, inda eram pequeninos. Deus sabe se o senhor mesmo approximou...—E subia-lhe a voz em graves dramaticos, com vibrações de metal.—Mas, meu cunhado, acautele-se, acautele-se! Sua filha vai comigo, voltal-a-hei contra o senhor.

—Oh, disse elle, experimente.

—Pois veremos.

—Vou buscal-a, resumiu elle transtornado, curvando-se. E muito baixo, querendo dominal-a: que inimigo horrivel eu tinha, se a senhora fosse um homem!

—Matava-o, respondeu ella estendendo o punho n'um gesto de Rachel. E ajuntou a rir: tão certo!...

Carlinhos vinha para elles, já o velho Zarco se afastava. E vendo-o no seu ar de cavalheiro, estatura correcta, alto, um fulvo esplendido de pelle, bocca firme nos cantos sob a velludagem do buço, quasi innocente na graça leal do sorriso, esse rir da viuva, correndo imperceptiveis nuances, foi gradualmente adoçando, enternecendo, perfumando como um licor que se evola entornado, de modo que era divino quando Carlinhos, femininamente, lhe deu a beijar a testa. Ella (p. 134) então sem se importar, attrahiu-o a si n'uma paixão de leôa, como se nunca mais se vissem, e dizia-lhe coisas entrecortadas, a chorar, a beijal-o furiosamente, estreitava-o mesmo sobre o coração, com impetos d'abandonada, que se fica nos occasos da vida, sem mais ninguem que amar. Fosses tu das minhas entranhas, não te queria mais que te quero! E essa maldita, hade expulsar-me do teu coração.—Elle queria contel-a, quasi envergonhado de os estarem olhando á roda, jurava-lhe, promettia tudo, n'um precipitar de palavras meigas. E á flôr da abobada nua e branca da egreja, andorinhas corriam chilreando, filhos e mães que inda não tinham emigrado, e demoravam residencia no calor dos velhos ninhos patriarchaes.

 

N'isto, fez-se um grande rumor, que alastrado, mais e mais confuso, por todas as ruelas, ia pondo as gentes de sobreaviso; viram-se rapazes e mulheres correndo ás esquinas que defrontavam com o largo, janellas que abertas de chofre inchavam de gentio com fatos de gala, grupos freneticos buscando posição de vêr melhor; e de repente, quando (p. 135) a orchestra de Beja entrou a choramingar uma symphonia no côro, ondas de familia romperam na portada sem guardavento, invadindo as capellas, enchendo a nave, querendo forçar a balaustrada carunchosa do sanctuario. Jámais S. Mathias tinha visto coisa igual, nem quando D. Pedro V fôra a Beja—e francamente, de logo perdeu a esperança de tornar a gosar outra grandeza assim de boda. A casa da Torre era no largo, grande, pesada, singular, com esquinas de granito negro, onde os escudos postos ao través esculpiam complicados symbolos de nobreza, leões com asas, metade de um cavalleiro armado de lança e capacete, Nossa Senhora dentro d'uma torre, cabeças de moiro n'um molho: e só aguias eram algumas tres! Sobre os portões de columnellos gastos, com argolas de bronze para prender as bestas, e portas de carvalho fortalecidas com magnifica pompa de ferrarias damasquinadas, esses brazões repetiam-se mutilados; no fundo do pateo aberto, d'um sabor arabe, e com arcos á volta cobertos de hera via-se a ampla escadaria de corrimões de bronze, alcatifada de fresco e cheia de vasos decorativos; um velho cypreste lhe fazia sentinella, hirto á beira d'um poço octogono, todo (p. 136) em altos relevos de pedra rugosa—em casotas, acorrentados, inquietos, dois grandes mastins abriam sobre quem chegava, o duro olhar sanguinolento. Na fachada cá fóra, a correnteza de janellas senhoriaes, fria de butareus e cimalhas onde os estorninhos gritavam, deixava pender ricamente sobre as velhas saccadas, preciosas colchas hereditarias, amarellas com grandes passaros em lhamas de prata, azul pallido n'uma loucura de mandarins e pagodes, ou d'altos relevos brancos, verdes, escarlates, sobre foscos de oiro indiano, onde as grossas franjas luziam. Pois d'essa casa severa, vomitára subito um cortejo bizarro de noivado—á frente vinham os figurões de Beja em grande mise, ricassos das terras proximas que tinham chegado nas suas seges, velhos amigos de Zarco, lavradores, funccionários, ultimos parentes da familia... E rodeavam o da Torre todo pallido na sua grande barba, que levava a filha pelo braço como uma grande musa germanica, alta, pudica, esplendidamente branca e vaporosa n'um véu que lhe cahia aos pés. Fez bulha na aldeia o senhor coronel do 17 com as suas medalhas ao peito, e um velho general de metro e vinte e cinco, gesticulando (p. 137) para a direita e para a esquerda, que mirava as femeas lampeiro como um galo, ao pé do vigario capitular, um côr de parede, que mui dulceroso e beato, afiára o dente em tres dias d'abstinencia, sonhando as delicias do copo d'agua. Seguiam damas paramentadas de oiro e plumachos, luvas chinfrins de dois botões, pulsos eticos chincalhando braceletes, muito estrepitosas em sêdas de côr terrivel: e disse uma d'ellas para a outra, que seguia ao lado, mortificada no peso da cuia—quem está mesmo um cangalho é a Sardinha. Esta coisa causou grande pasmo; estar a Sardinha um cangalho! Hi!... Muitas agglomerando-se em trouxa, discutiam tão famoso caso. E gabou-se a morgada das Palmas, uma trigueirona de cabello corredio, labio gretado, sêcca e presumida, que de chapéo branco e vestido verde, fazia pensar n'um grande molho de nabos. Depois as creadas, sinceras raparigas que choravam—isto deu pena em S. Mathias—e quasi em braços no meio d'ellas, uma velhita em sêda preta, pequenina como uma creança, levava um ramo de rosas brancas e o leque da noiva, abanando n'um triste ar resignado, a sua cabeça branca d'octogeneria. A aldeia estava toda no largo, gralhando a (p. 138) essa hora, gente das lavoiras de roda, uma chafranafra de mulheres e homens que se rasgava e bipartia, ao passar o acompanhamento. A cada passo, pequeninos lances detinham a procissão bruscamente, e viam-se as raparigas sahir dos ranchos, tostadas, fortes, rindo com soberbas dentaduras, cabellos de trigo maduro remoinhando em serpente no alto das cabeças...

—Com sua licença—e deitavam flôres sobre a herdeira, commovidas, um ar de filhas de burgo medieval. Á porta da igreja, o Carlinhos estava entre os seus, crescia a turba embatendo-se; e por traz a viuva muito pallida, tinha os vagos olhos das frias estatuas antigas, inertes, dilatados d'insomnia, como prescrutando ao longe os tempos em que ainda não eram de pedra, e uma vida lhes circulava e ria no alvor dos membros nús. Deu-se então no Zarco e na viuva, ao mesmo tempo, um calafrio de ciume, quando os noivos se encontraram com a mesma flamma nos olhos; e os dois perceberam que iam ficar de mais n'esse idyllio de creanças, absortas uma na outra, que esquecidas de tudo, iam de mãos dadas pela igreja fóra. N'essas velhas idades d'amor egoista, em que os filhos são o (p. 139) calor, o orgulho o motivo de viver—o choque d'ambos, percebendo que lhes tinha acabado o imperio sobre essas adoradas creaturas, foi tão violento e fulminante, que se deixaram ficar atraz no meio da turba, com vagares de fundo desalento, ella direita, sem desmanchar a estatura soberba, derrubado elle, pacifico, apagado, enorme como um elefante, e sem dar uma palavra para não desatar alli em soluços, trespassado dos primeiros regelos do abandono. Cortando então por entre a gente, ouvia por toda a banda humildes palavras de conforto e piedade; velhas mães que o encontravam, lacrimejantes, attentando-lhe na face descahida—Vae ficar só n'aquella casa tamanha, coitadinho do amo Zarco hade-lhe custar. Isto de filhos!

—E são os da Oriola que levam a nossa menina! Abaixar-se o amo...

Porque todos os subditos sabiam já da capitulação deshonrosa d'esse velho rei de charnecas e montados; umas poucas de palavras colhidas na altercação com a viuva, serviram de base a toda a sorte de commentario e parlenda sobre o casamento; pintava-se e repintava-se de grupo em grupo, a expressão terrivel da viuva fallando a seu cunhado, (p. 140) palavras cruas ditas por ella, acautele-se, acautele-se levo-a comigo, e outras muitas; e o amo Zarco todo enfiado, ali a ouvir, a rezar desculpas, a fazer-lhe vénias. C'os diabos—nem que comesse os sobejos d'aquella magana!

—Fosse comigo, fazia cada qual em grandes quizilias.

—Ai, argumentavam muitos pachorrentos, é o que se vê hoje em dia.

—Tão má, filhos, que nem as escripturas quiz assignar em casa do cunhado.

—Inda assim não entalasse o rabo, figurona!

Mas depois de longas conjecturas, recapitulando, toda a gente acabava por dizer que andava ali o quer que fosse. Olá se andava!

 

No gabinete do parocho tinham posto uma grande mesa, e em roda bancos negros da confraria das Almas, para os convidados se assentarem. Era uma casa verdenta de paredes, com fendas ao través na abobada, pintada de frescos mais que barbarengos; e por um buraco de cima, passava a corda da sineta, que desde que se rachára o sino, servia para chamar á missa a freguezia. Ao fundo, pezava (p. 141) um grande armario de carvalho negro com espelhos de metal que verdejavam; e paineis de santos esburacados á navalha, cahiam aqui e além, emmoldurados em talhas carcomidas. Uma luz de cava vinha de cima, por uma janella sem portas, onde se cruzavam varões de ferro. Como a casa era estreita, apenas foram á leitura do contracto, os intimos amigos ou personagens de pezo. E o tabelião Mathias homemzarrão com uma cabecinha humoristica de japonico, estimavel e estupido, principiou com a sua voz em falsete nos fins de cada periodo, a ler artigo por artigo as escripturas, circumvagando a cada clausula os seus olhitos por cima d'umas olheiras paposas, onde as bexigas tinham picado covinhas de sombra.

«...e mais dou a minha filha Dora Victorina Maria de Sousa Alvim Mexia Zarco da Cunha Menezes... as herdades denominadas da Cova, das Sesmarias, da Chaminé, e Côrtes tanto Grandes como Pequenas, com seus montes, gados, arvoredos, dependencias e serventias, a partir do dia em que desposar o dito seu primo Carlos; e mais lhe faço doação de todas as minhas lavoiras do Guadiana, que vão entre os moinhos da Coitada e a minha (p. 142) quinta de Valle de Borrucho, constando de doze herdades seguidas, partindo d'uma banda com o Guadiana, da outra com a estrada de Moira, da outra...» E aqui Mathias foi obrigado a parar, porque um borborinho d'espanto se levantára entre os convidados.—Que? Dava tudo aquillo á filha? As lavoiras do Guadiana, o melhor trecho de propriedades do Baixo Alemtejo? Mas endoidecera esse homem com certeza! Despir-se para enriquecer o genro! Tomé dos Panascos, que trouxera arrendadas muitas terras da Torre, e passava pelo melhor avaliador da cercania, punha as mãos na cabeça com uma face attonita e consternada.—Jesus! Não contente de humilhar-se ante a viuva, inda em cima lhe cobria o filho de oiro. Mas é que ia ficar arrasado! Dar á filha mais de seiscentos contos, sem restricções, sem condições, sem cautellas... E Thomé foi junto do seu velho amigo, e disfarçadamente puxando-lhe a manga:

—Olha que te arrependes, Manuel. Que é que te fica para viver?

O da Torre encolheu os hombros.

—Desgostos, fez elle muito baixo, e disse ao tabellião para continuar.

—«E outrosim lhe entrego toda a plantação (p. 143) de vinha e olival, que possuo livre e isempta, no sitio das Barrocas, freguezia de S. Pedro de Portel, cerca de quatrocentos milheiros de cepa e tres mil pés de oliveira...»

—Meu pae, balbuciou Dora, avançando para o velho que estava junto da banca ennovelando a barba n'um movimento calmo.

—Vá, Mathias, depressa! ordenou elle, emquanto cada vez mais, n'um phrenesi crescente, os convidados se acotovellavam e comprimiam, não querendo acreditar no que lhes fôra lido. O tabellião enumerou o que restava d'uma fortuna rural cedida em dote, moinhos, hortas, ferragiaes, montados de retalho, ruas inteiras da aldeia; tudo que Zarco possuia, bom e mau, pequeno e grande, tudo dava a sua filha com a mais generosa confiança.

—Mathias, disse ainda o velho Zarco, falta a casa da minha residencia, o quintallão e as abegoarias. Accrescente que a contar de hoje, lh'os dou tambem.—E voltado para a cunhada, com a sua face radiante de altivez fidalga, fingia não sentir as murmurações de roda. Fóra, na igreja, no adro, no largo, por essas casas todas da aldeia, já se contava que o amo Zarco estava doido, e peor ainda, ia (p. 144) ficar ás sopas da filha. Dera-lhe tudo, sem acautelar a sua rica subsistencia, o seu vestuario, o seu sequito. E uma hesitação quebrava agora em facções a gentana: á piedade succedera nos ganhões o fatigante receio de serem despedidos da casa pelos amos novos. Zarco descia—quando um tocante episodio deu nos espiritos a nota mais viva da emoção. Foi a leitura, do que a pequena velha que levava o ramo de rosas e o leque, dava á sua menina. Mathias, elle mesmo commovido, ia dizendo:... Umas contas de oiro com imagem de Nossa Senhora da Conceição, a sua capoteira de velludo verde, duzentos dobrões em oiro n'uma bolsa vermelha, a tapada da Vanga...

Dos bellos olhos pudicos de Dora saltaram lagrimas por baixo do véu; nos proprios olhos de Carlinhos faiscavam pontos humidos; de redor nas gentes, faziam-se monossyllabos ternos; mas toda radiante de ser o alvo, correndo a assembléa com a sua cabeça tremula, a velhita exclamou:

—Esperem lá, esperem...—e para Mathias, muito ruidosa nas sêdas pretas: leia lá!

—«...com a expressa condição de residir seis mezes do anno em casa de seu pae, (p. 145) durante nove annos, ou em logar d'ella, algum de seus filhos, caso seja fecundo o casal.»

—Ouviste bem? redarguiu ella sensibilisada, abraçando-se a Dora, e a sua cabeça dava pela cintura da noiva. É que nós não queremos ficar abandonados, nem eu, nem teu pae, e a nossa casa.—O que fez com que o dos Panascos fosse dizer baixo a Manuel Zarco:

—A velhota teve mais juizo que tu. Emfim lá estou, se um dia... É como se fosse tua casa, Manuel, bem sabes!—Chegou então a vez de se saber o que dava ao Carlinhos a senhora viuva. Mathias começou com a sua voz gordurosa, e para ouvir, inda os convidados se apertavam mais. Era quasi uma replica da viuva, á arrogancia com que o da Torre amontoára riquezas aos pés da filha. Foi longa a lista, novas herdades iam passando, arribanas, laranjaes, vinhedos, joias, louças, palacios, rebanhos, casebres, trens... D'esta vez quem se espantava era a Oriola—e por seu turno a viuva ficou nua.

Processionalmente então, e á medida que iam firmando o contracto, como a cerimonia findava, em reverencias de vassallos ante (p. 146) uma grande potencia, passavam os convidados diante dos noivos, com sorrisos de grande gala, alguma graça estudada, dando parabens com ares cavalheiros, ou demorando-se a affirmar esta ou aquella intimidade, na adoração dos mil e setecentos contos de dote. As mulheres sobretudo, cercavam Dora de pequenas ternuras ridiculas, beijos muito repenicados, segredinhos entre risadas. A morgada das Palmas fez-lhes prometter que a iriam visitar ao seu monte de residencia; o general citou alguma coisa no gosto bocagiano; velhos lavradores que tinham trazido ao collo Carlinhos e Dora, de palpebra humida davam-lhe conselhos, descançando-lhes no hombro as suas grossas mãos de trabalho. E n'uma avidez, sempre de longe, a viuva contemplava a sobrinha, idealisada no meio dos tules, como uma grande figura de legenda.

Quando viu menos gente no gabinete, Zarco foi apresentar Dora a sua cunhada; a recepção foi quasi affectuosa, abalada a viuva como estava, pela grande batalha de generosidade que momentos antes ferira com o da Torre. Foi quando Dora levantou para beijar a tia pela primeira vez, o grande véu de noiva em que vinha envolta. Essa belleza (p. 147) senhorial d'uma soberba esculptura, que a viuva nunca pudera contemplar assim em plena efflorescencia, pareceu feril-a com o seu esplendor de pureza e brancura, porque se pôz muito pallida, apenas o véu de Dora se erguera. E por muito tempo ainda, considerava sem poder fallar, a sobrinha. Em volta, nas gentes da Oriola, o mesmo fremito de surpreza fizera correr murmurios de labio em labio. As duas velhas aias tinham corrido a Dora, e soluçavam. E a viuva de mãos no peito, como sustendo-lhe o frenetico pulsar, reconhecia por verdadeiro o que por varias vezes lhe chegára aos ouvidos, vagamente, como uma opinião sem força—isto é, que Dora era o retrato vivo d'aquella querida filha, tão meigamente loira e tão formosa, unica creatura que ella amára no casamento, e pela qual mesmo tinha chegado a aborrecer menos o marido, Laura emfim, a sua pobre creança, morta com vinte annos, pouco antes da adopção de Carlinhos.

Evocação da unica memoria que ainda hoje a fazia toda vibrar, esta resurreição em Dora, da celeste creatura nascida das suas entranhas, exacerbando angustias passadas, acordaram na viuva de Fernando Zarco, menos (p. 148) asperos propositos de conducta. E voava-lhe a idéa pelas lembranças já longinquas dos seus primeiros tempos de esposa, aos dezasseis annos, quando por cubiça do pae, uma vez acordára no leito do lavrador da Oriola.

Seis annos de infecundidade tinham assignalado depois melhor essa frieza d'esposos, que quasi nem se haviam conhecido. Era ao tempo ainda dos dois irmãos serem amigos, companheiros de caçadas e aventuras. Manuel com as suas espaduas de hercules, e uma barba de scandinavo muito frizada nas pontas, quasi branca junto dos labios, era o typo da prudencia, fallava pouco, e ria com todos os dentes, um riso ingenuo que antes parecia de rapariga pela doçura do esmalte; e quando os seus olhos de violeta, atravessados d'um brilho leal e timido, se erguiam a procural-a, ella experimentava não sei porque, tamanha melancholia e quebramento, que se ficava ainda com mais pena de ser mulher de Fernando, um tostado, para mais grosseiro e leviano. Ah, como isso ia já longe! E Manuel todos os dias achava alguma pequena lembrança que lhe trazer; ninharias primeiro sem intuito previsto, depois expendidas a furto, acceites em segredo... O certo é que ella amou o (p. 149) cunhado, porque o perfume d'esses beijos a embriagava, no carmim dos seus labios d'adolescente. Fernando, que era soberbo, aspero, intractavel, brutal, coração ao pé da bocca, desconfiou mas sem medir a profundeza da culpa. Ella vivia n'esse tempo inteiramente só, sem amigos, nem protecções do marido, muito nova, tão cheia d'impetos! E das profundezas do seu corpo exhuberante, cheio de fecundas desordens e d'amores indomaveis, vendo-se alli abandonada, vinham-lhe furias de peccar. Um domingo, os irmãos tinham ficado mal; nascera aquella filha, de quem Dora copiava a belleza—e tal documento da sua culpa, trouxe-lhe a secreta vergonha que agora gotejava odio sobre o irmão de seu marido.

 

Depois da benção, o sr. vigario geral pronunciou uma allocução toda faustosa e erudita, em que se comparava a vida a uma nau vogando no mar procelloso das paixões, entre escolhos de vicios e malquerenças; e alli sua rev.ma descompôz mais uma vez os seus adversarios politicos, attribuindo-lhes a ultima estiagem e a decadencia dos costumes; (p. 150) e com philaucia denunciou que os maridos não tratando senão d'eleições abandonam as esposas á phantasia das suas pobres cabecitas, do que se aproveitava o demonio para ir centuplicando os adulterios. Isto levou tamanho donáto a philosophar sobre a familia, e desfilaram as qualidades dos Zarcos, o seu amor ao progresso e á liberdade, e do que os povos de roda lhes deviam, pois ainda no inverno passado, os fidalgos tinham dado córte gratuito nas herdades perto, afim da pobre gente ter lume nas asperas noitadas.

Saltou d'aqui naturalmente nas inimizades que por tantos annos tinham separado as duas familias (inimizade não, emendou logo com um meneio unctuoso; diremos antes melindre, susceptibilidade ferida, pequena divergencia de familia—era de mui bonitos termos s. rev.ma! Inda que...) Mas, proseguia o orador, o distrito todo exultava de vêr unidas de novo as duas casas, todos davam graças.—E batendo no pulpito, com gestos de quem chama a si o melhor da christandade, uma imponencia no carão, fechou trecho com um latinorio dos santos padres, faustoso e seraphico, que por sinal mereceu uma palavra irreverente ao lavrador dos Panascos.

(p. 151) Quando a cerimonia acabou, foguetaria e vivorio estrondeavam por essa aldeia toda, repercutindo os entônos e ritornellos de fraga em fraga—enternecia a tarde nos campos com a descida do sol, uma poeira de oiro tamisava os fundos, aqui, além, immovel sobre o ar, e dando á paisagem velhos tons de pintura fanada. E o cortejo sahiu da igreja como viera, mas bem numeroso e mais rico, pois lhe estava adiccionada toda a Oriola, ganhões, creados, convivas, amigos, as duas velhas aias, e coisa pasmosa! a propria senhora viuva.—Anda, sempre te abaixaste, bem feito! dizia-se á da Fevronia, na passagem do cortejo. O coronel dera o braço á viuva que descera meio véu; o generalito, gazil como um rato sabio, levava a morgada das Palmas, muito birrenta de lhe terem descosido a cauda verde nabiça; e Dora pelo braço de Carlinhos, vermelha, comovida, grandes olhos de saphira humida, radiava a frenetica belleza d'uma virgem que se abala e palpita, ao primeiro contacto d'um homem.

O cortejo é que não ia directamente ao portão d'entrada da Torre, mas enfiou pelo enorme pateo de lavoira ao lado, a pretexto de vêr a funcção que se preparava aos servos (p. 152) e trabalhadores. N'um banquete monstro, S. Mathias e a Oriola congraçavam, comendo ao lado uma da outra, na melhor harmonia e folgança; e só no intuito de sagrar esta confraternagem, a viuva accedera vir a casa de seu cunhado, sem quebrar as juras que fizera, pois não passaria o terreno neutro do pateo. Desconforme como um dominio, era esse pateo de muralhas rudes e portadas soberbas, onde os varões de bronze raiavam, e pendiam das portas formidandas, como corações de molochs, os grandes cadeados de ferro. Descia-se das cozinhas por um balcão de pedra com escadarias lateraes e mutiladas estatuas, em cujos velhos pilares se vinha tanchar a dentuça dos corrimões estruidos. Diante do balcão, ia ao fim do pateo uma alameda de castanheiros gigantescos, murmuros sob a verdura das suas folhas acres, d'onde um frescor gottejava no esmaiar da tarde. Um grande portão aberto ao fundo dava sobre os laranjaes da horta, sombrios áquella hora n'um verde metallico condensado, redondos até ao chão relvoso pelas imbibições da rega, humidos, picados de fructa, e filtrados d'uma aura toda enervante em nupciaes essencias. N'essa alameda de castanheiros amigos, tantas vezes percorrido (p. 153) do pae e da filha, onde pela manhã palafreneiros passeavam á redea os cavallos de sella, ou vinham limpar o pequeno coupé de serviço, onde tinham logar as tosquias, as ferras e as matanças nas epocas da praxe; n'essa alameda tinham construido uma mesa sem fim para quem chegasse, homem, mulher ou creança, fosse d'onde fosse e viesse de onde viesse. Aos lados alargava-se o pateo até ás abegoarias, cavallariças e estabulos. E um tom de boda reinava por toda a parte; nas carretas de trabalho postas em bateria, mais os seus tropheus de forquilhas, ensinhos e pás, radiando das joeiras, arneiros e mulins, como panoplias em sala d'armas; nas paredes cobertas de murta e gilbarbeira, onde as corôas d'espigas maduras faziam rodopiar serpentes de oiro pallido; nas largas manjadouras que as bestas esfocinham rilhando os fenos perfumosos; em arcos de flôres de arvore em arvore, risos e saudações levadas a um delirio realmente captivante. Em quatro dias tinha-se abatido um rebanho de carneiros e bodes, o arroz viera n'uma quantidade de carretas, não sei quantos moios de lobeiro em farinha para a amassadura, o poder do mundo em couves, para mais de vinte pipas (p. 154) de vinho... E a Fevronia punha as mãos do error de moedas que ia custar a frescata ao fidalgo—mas coitada! era uma pobre, sempre foi atando ao cós das saias a mais funda taleiga de quadrados, e sumindo-se debaixo do chále a mais disforme escudella da sua pilheira, para arrepanhar as sobrasinhas. Ora, deixal-o custar caro! Em compensação, que grande kermesse em plena tarde, sob a viva e sagrada cupula das arvores, onde trigueiros e loiros dos dois burgos rivaes, se abraçavam cantando e rindo nos seus luxos domingueiros, cinta escarlate, chapéus de borla, jaleca ao hombro, e a camisa crua de grandes collarinhos molles, acolchetada pelo nó da goela. Com a largueza do terreiro, a malta farandolava em quantos recreios havia: por aqui atiravam a barra os valentões arregaçados até aos hombros, estriando as musculaturas bovinas nos rompantes d'uma destreza infrene aos berros de cada vez que alguem passava a baliza, ou não chegava a ella; por além bailava-se de roda das arvores, deitando as vagarosas cantigas do trabalho rustico; em tal sitio havia saltos, n'outro luctas, desgarradas n'outro; e tudo isto n'um borborinho infernal que ensurdecia a gente. Vinham (p. 155) chegando as raparigas de claros cabellos lisos nas fontes, com flôres no remoinho das tranças. E a Oriola abrasava de as vêr tão brancas, boas carnações flamengas, saude affiançada, perna dura, seio fecundo, dentes finos, e essa maravilhosa doçura d'olhos violeta, tão peculiar como era sabido, aos bastardos do amo Zarco da Torre. Ellas iam apparecendo a pequenos ranchos, envergonhadas dos de fóra, lenços em cruz sobre os seios inviolados, de mãos dadas e braços bamboleantes, como os recrutas em passeio.

Os negros da Oriola diziam-lhes então gracinhas, botavam-lhe rima na passagem; e era vel-as a rir escondendo os olhos c'os braços, abalando côr de romã umas atraz das outras, para dizerem de longe aos mariolas—que não se fizessem destemidos nem confiados, e fossem lá ter chalaças com as pretas da sua terra, perceberam? Mas a outra porção da Oriola por seu lado, gente madura e reflectida, ainda desconfiada da senhoril hospedagem na Torre, sempre tinha querido inspeccionar, vêr com os seus olhos, apalpar com os seus dedos, todo o maravilhoso arsenal agricola, instrumentos, machinas, animaes, bombas, poços, bebedoiros e hortejos—e por (p. 156) essa aldeia que viera, subia um respeito de gente cavadora e mandada, que mal disposta para o da Torre, agora se dobrava, reconhecendo n'elle o genio de um lavrador modelo. Ah! o que se chama grandeza, ordem, elegancia e precisão! Que gados, que acommodações, as cathedralescas médas d'azinho, pombaes, palheiros, ferramentas de trabalho!

Colossal tudo aquillo—e os tostados da Oriola baixavam os seus olhos arabes e premiam os seus beiços de negros, ante a victoriosa grandeza dos loiros de S. Mathias. Quem havia de esperar, compadre, uma coisa assim?—N'isto, um velhote grosso e vagaroso, que do balcão andava mirando tudo, apenas o cortejo apontou para o lado das abegoarias, poz-se a repicar do alto uma sineta: era o jantar. E duas philarmonicas romperam latindo musicatas gentias, emquanto as palmas, os gritos, os vivas e os saltos, centuplicavam de toda a banda.

E a viuva deixava-se ir entre as aldeias congraçadas, que no abandono animal da vida rustica, riam alto com dentes famintos, e na passagem dos amos, tirando os gorros, acenando de longe com os chapéus, erguiam meio corpo da mesa, para lhes dar bôas tardes (p. 157) familiares. Alguns mais ratões da Oriola—e sempre a Oriola teve fama de moços reinadios—botando cantiga ás raparigas, que chegadas tarde ficavam sem logar nas mesas, offereciam-lhes por cadeira os joelhos e por encosto o coração. Ellas riam largo, já menos esquivas; muitas, sollicitadas, davam-se por noivas d'aquelle e mais d'este; e á ordem do homensinho da sineta, chegava a creadagem com o arroz dos fornos, aloirado entre ramos de salsa, empilhando-se em alguidares desconformes, d'onde rompiam fumando, tenras, succulentas, as pernas dos perús e dos patos. Então foi uma loucura de vivas, saltos, gritos e cantares. Passava o vinho em picheis de barro, as saudes choviam nos estimulos da sede, o tenir dos pratos era inquietador. Nunca Carlinhos fôra mais querido que n'essa tarde placida de noivado, onde tudo ria á sua mocidade leviana; a Dora que elle levava pelo braço e readquiria vivezas de pomba; os pavões, que sob os telhados das abegoarias, inquietos, gritando d'entorno ás femeas, abriam enormes leques mosqueados d'ouro verde; nuvens de pombos que o ruido assombrava forçando-os a revoar de cimalha em cimalha; e ao largo a paisagem caindo (p. 158) n'uma paz luminosa, muito irisada em tintas subtis.

Ella foi-se isolando, isolando do ruido, até ao portão que dava para a horta; parecia conhecer aquelles logares, distrahida, como quem resuscita apagadas memorias. Olhava o muro de buxo talhado em fórmas architecturaes, circumscrevendo o jardim pela esquerda, até se perder n'uma folhagem aspera d'alfarrobeiras. Para aquelles lados n'outro tempo havia um murmurio de fonte: tinha sido uma noite sem estrellas, o braço de Zarco sustinha-a pela cintura e levava-a, de modo que os seus pés nem tocavam o chão. E assustada, ficára a ouvir aquele choro timido d'agua corrente: espera! ouço passos...—É o vento, disséra elle, e os seus beijos endoideciam-n'a. Lá estava ella ainda a gottejar na pequena concha musguenta, que um grupo de ephebos sustinha, cavalgando golfinhos. Fôra em maio, a flôr dos favaes enchia os campos d'essencias, o marido caçava o javali por Hespanha—n'essa noite elle tinha querido roubal-a, conduzil-a aos seus dominios—ella resistira, não! não!... mas o perfume da sua barba tão loira envolvia-a n'uma fascinação terrivel, e a bocca pequenina, sincera, humida, talhada a (p. 159) buril, ao mesmo tempo imperiosa e feminina, tinha-se collado por ella toda: quem poderia recusar cousa alguma? Ouvia ainda o breack rolando pelas asperidões da estrada, os cavallos que voavam, elle a guiar; e ao curvar-se para puxar as redeas ou chicotear os hanoverianos, o clarão das lanternas illuminava-o de perfil... Oh, as venturas absorventes que se resumem n'um momento de peccado! Dir-se-hia o perfil antigo d'um Deus hellenico, branco, herculeo, alado em juventudes divinas.

—Vaes ter frio, minha filha.

—Frio, eu, ao pé de ti!...

E do capuz negro do bournous que ella levava, forrado de pelles setinosas, os seus olhos ficavam absorvidos n'elle muito tempo, muito, muito. A noite fazia as arvores terriveis, interminaveis os campos; e apagando a perspectiva, approximava mais as montanhas, e punha traições na goela dos precipicios... Vinham-lhe a cada passo pequeninos medos, as pupilas verdes do remorso que a penetravam de faúlhas calcinantes—lá está um vulto além, n'aquelle canto da estrada... Os troncos corriam atraz d'elles com pernas de gigantes, ennovelando-se, augmentando (p. 160) em numero á medida que o breack fugia.

—Jesus! dizia ella n'um terror, são talvez espiões de meu marido.

Depois na ponte, um passaro tinha dado um grito, secretos escarneos foram ciciando pelos labios das folhas; de longe em longe, uivavam as raposas com fome. A cabecinha d'ella descahia no braço do cunhado, fazendo uma caricia penetrante. Era espirituosamente tocada, correcta, d'um modelo audacioso em que havia primores. E como ambos eram pouco lidos, incapazes de fazer um amor litterario, dialogado por imagens, cheio de contrascenas, permutavam as suas emoções tocando os corpos, n'uma descarga de volupias balsamicas. O que ella lhe admirava era a seriedade do aspecto, a forte enformatura dos encontros, uma força de gigante cingida em delicadezas de creancinha. Esse rapaz sem violencias, envergonhado de ser tamanho, uns receios de a molestar a cada beijo, silencioso, tranquillo, com melancholias brumosas do norte, subjugava pelo contraste, os impetos e os orgulhos da natureza d'ella, toda impaciencias, coquetteries e ardores.

Á chegada eram deshoras, cantavam os (p. 161) primeiros gallos em S. Mathias—ella nunca tinha por alli passado.

—Gente na estrada, estamos perdidos!

Manuel tinha atirado os cavallos por um olival a dentro, apagára as lanternas, e o break em solavancos lá ia arrastado pelos terrenos declivosos. Pararam. Um rumor de carros vinha da aldeia, guisos de mulas, a voz de um homem cantando... Elles, á escuta, ouviam bater os corações, com medo de alguem os ter pescado. Agarrada ao pescoço de Zarco, ella batia os dentes, tresvairada n'uma paixão.

—Viram-nos, Jesus.

—Não, escuta, redarguia elle sopeando os cavallos. Em roda, iam e vinham as sombras, no pavor das coisas sonhadas a arder em febre. Ella exaltara-se: adoro-te.

—Mas, por Deus, não grites! dizia elle.—Davam beijos de lava, o amplexo accendia-os, nenhum luctava, foram-se possuindo...

E agora velhos, inuteis na felicidade dos filhos, tendo-lhes dado tudo, sem amor, nem coragem, cheios de cabellos brancos, odiavam-se por desgraça!—Era ao fim do laranjal, o muro de buxo apparecia de novo, nespereiras em flôr abriam parasol por cima (p. 162) d'um portello baixo—toda a aventura se lhe reconstruia na idéa, nitida, chammejando horriveis saudades. Sim! os carros de matto abalando á meia noite de S. Mathias, a voz do homem cantando, esse fluctuante mysterio da noite, é verdade, um sapatinho de velludo que perdera ao entrar, por aquelle portello, ao collo d'elle... Oh, a medonha angustia de se não ter outra vez dezeseis annos! Para além, olival, terrenos declivosos: o break parára ao pé d'aquella grande oliveira.

—Não sentes pena de deshonrar teu irmão?

—Mas cala-te, dizia Manuel num tom de queixa, emquanto a levava nos braços docemente, como uma creança adormecida. Ella, supersticiosa, fallára-lhe do grito que déra o passaro noctambulo, quando o break entrou na ponte. Talvez prenuncio de desgraça!—Ao que elle respondia: doida! Reparou nas roseiras que por alli floriam agora, como n'um cemiterio consagrado pela saudade de muitos amores fenecidos. Fôra alli, junto ao murosinho de buxo, que a respiração d'elle tinha sifflado n'uma furia de titan semilouco, e o sapato caíra... Quantas vezes depois o amaldiçoára, sentindo impreteriveis desejos d'ir contar tudo ao marido, ao mesmo tempo (p. 163) que um suor frio a aljofrava, só de pensar que Fernando podia vir a ter noticia do adulterio. Sim, odio, era odio que lhe tinha n'este momento! Mas como seria bom desabrochar n'outra juventude, radiar a seducção d'uma nova belleza, ter ainda pudores de vestal, frescuras d'epiderme carminea, virgindades de noiva, para ir direita áquelle infame, atirar-lhe os braços ao pescoço, e dizer-lhe: adoro-te, macula-me outra vez!

Outras recordações então, lugubres, implacaveis, acastellavam na sua mente, espectros de remorsos longinquos e gumes de suspeitas mal esboçadas. Lembrava-lhe Fernando trazendo Carlinhos pela mão, depois da morte de Laura, a dizer-lhe com palavras de chumbo, espaçadas intencionalmente—este é meu, ficará n'esta casa! E como a olhára dizendo isto, apenas ella n'um movimento de repulsa, erguera a cabeça para dizer que não. O terror d'esses annos conjugaes tinha sido bem cruel. Era o marido fital-a—tremia toda como um vime. Quando elle se exaltava, ou se bebia, ou em os negocios correndo mal, a cada momento ella receiava, que arrastando-a pelos cabellos, o marido lhe gritasse: prostituta! Crescera nos povos a sua reputação de santidade; as (p. 164) esmolas que fazia nem tinham conta, ia de noite vêr os doentes, matar a fome ás cabanas sem chefe, e o seu nome incubava-o uma lenda de poeticas virtudes e castidade suavissima. Se viessem a saber, que vergonha! E ante o marido, o seu orgulho vergára, e fizera-se neutra a sua violenta personalidade. Nos ultimos annos, Fernando Zarco tinha caído n'um marasmo desopilante, não saía, não recebia, não fallava. Ás vezes, ia ella levar-lhe de comer com o riso nos labios, uma palavra carinhosa para lhe inspirar conforto; e estendendo o braço para agarrar no talher, lentamente, como tendo alguma coisa grave a indagar, elle ficava a miral-a com o ardor dos seus olhos encovados; depois ia baixando a cabeça n'uma confusão, vagarosa, funebremente—sim! sim!—e viam-se-lhe as narinas arfando nos haustos d'uma raiva subterranea.

Chegou á porta que rasgava no muro, por sob a cupula das nespereiras; correu-lhe o ferrôlho depressa, empurrou-a com o pé, cheia de curiosidade de penetrar no olival, até á velha oliveira onde n'aquella noite, o carro tinha parado. Mas recuou com um gritinho de susto. O cunhado nas almofadas do break, (p. 165) á sombra da arvore, aguardava por ella como n'outro tempo.

 

Manuel Zarco não quiz prolongar á viuva, a visão theatral que se impozera, e desceu do carro para vir ter com ella. Em vez de veredas e barrancos tortuosos, uma larga estrada cortava agora o olival, entre eucalyptos colossaes, que sacudiam á briza molhos de folhas em cutello. Ella nem podia fallar, branca de susto, humilhada de vergonha, e sentindo o coração grosso de lagrimas. A voz de Zarco era triste, porque tambem elle não tinha sido feliz.

—Como não quer demorar-se, disse elle, mandei os carros aqui. Partirá quando quizer, as creadas nao tardam. A carruagem em que veio fil-a reservar aos noivos, por ser ampla. Póde ir n'este break, é velho mas de boas molas, tenho-o ha vinte e quatro annos...

—Antigamente, tornou ella junto ao portello, vencendo um grande embaraço, não havia roseiras aqui.

—Não, disse elle galante, nasceram por onde o teu vestido roçou.—A sua voz tremia.

—Chut! casaram hoje os nossos filhos.

—Mentes. Carlinhos vem d'uma cigana (p. 166) velha, a quem hoje dei o que ella quiz levar. Teem-m'o dito muita vez! É negra, traz uma filha, ouço que vivem de roubar por essas feiras.

—É verdade, murmurou ella suspirando; filhos só os tive de ti.—Chorava a sua mocidade agitada, as terriveis dôres que soffrêra, os orgulhos feridos de mulher.

—Ouve, disse-lhe então elle com supplica, não me tenhas odio, não tenhas. Dora é tuna creança, ama-a um pouco, assim como amarias a que nos morreu. Ellas parecem-se. Sobretudo, não lhe digas mal de mim.

—Ah, bem vejo que amavas tua mulher...

—E tu que amastes meu irmão?

—Mas é falso.

—De que serviria acreditar agora n'isso? Estavamos doidos quando nos amámos.

—Sim, doidos d'amor. Ai como a gente envelhece depressa!

—Razão para ficarmos amigos, já que tudo morreu. Fernando nunca veio a saber...

—Prouvera a Deus que assim fosse! Cala-te d'ahi! disse ella bruscamente. Na hora da morte ia beijal-o, repelliu-me; morreu, dizendo a horrivel palavra. E por tua causa! Não poderás dizer nunca que te provoquei. (p. 167) Quando vinhas, fugi-te muitas vezes. Tudo me abandonava então!...

—Esqueçamos: a vida dos nossos rapazes, exige. Vá, perdôa. Elles viverão seis mezes comigo, seis mezes comtigo. De mais, ficámos pobres. Os pobres não devem ter ruins paixões.—Ella cortava rosas, no rosal que extravasava de roda. As velhas aias tinham chegado entanto a pequeninos passos, arregaçando muito as suas sedas festivas; em carros de toldo, jumentos e mulas, a creadagem repleta, cantando, chalaçando, deixava S. Mathias caminho da aldeia. A viuva relanceou ainda os olhos por aquelles sitios, lentamente, como a impregnar a memoria d'aquella idyllica paisagem.

E para que ouvissem todos, fallando alto, pediu desculpa a Manuel Zarco de não assistir ao copo d'agua, mas sentia-se indisposta, tinha que receber os noivos... Elle abriu a porta do break, esperou curvado que ella subisse.

—Zarco, disse a viuva aconchegando-se a um lado, emquanto as velhas subiam e se anichavam tambem. Os nossos filhos que não demorem a partida, vão ter frio pelo caminho. Principiavam córos de grilos na espessura amarellenta das hervas, o sol cahia por (p. 168) traz das arvores; á esquerda, nos vagos fumos da tarde, Beja torrejava.

—Adeus, disse a viuva sem colera, estendendo ao velho as duas mãos descalças. Zarco sem fallar, beijou essas mãos inda pequeninas e brancas.

Os cocheiros tinham vindo; e sob o pingalim, os cavallos arrancaram o break d'ao pé da oliveira, em direitura á estrada.

—Adeus, disse a viuva, apertando ao seio as rosas que colhera no rosal.—Zarco parado, as mãos cahidas, ficára imbecilmente de pé, todo vasio de reacção.

—Eh, esperem, gritou de repente aos cocheiros.

O break tinha outra vez parado. Com os olhos estourando lagrimas, elle correu á portinhola com um pequeno embrulho para a viuva, que conforme disse, esquecera na igreja.

—Obrigada, respondeu ella com a voz um pouco tremula.—E o carro abalou. Junto da ponte, já longe, a estrada fazia um cotovello para a esquerda, e bruscamente o olival desapparecia. Então a viuva voltou-se muito, chorosa, inda viu Zarco immovel no meio da estrada, disse-lhe adeus com o lenço. Depois tudo se foi com as arvores que se interpunham, (p. 169) a estrada, o muro da horta, os olivaes, a aldeia. Ficou a desembrulhar o pacote que elle lhe déra.

—Que chinellinha mais rica! disse uma das velhas bispando o que continha o embrulho. Ere o sapato de velludo bordado a oiro, que ella, a tal noite...

—Cabeça a minha! Quiz trazer sapatos largos para o caminho, e afinal só vem um, que para mais me não serve.

A outra velha acudiu com admiração:

—Nem eu sei de pé, que possa caber n'uma chinellita d'estas.

E a viuva com um rir doloroso:

—Cabiam os meus, no tempo em que eram leves a ponto de atravessarem jardins sem pousar no chão.

—Ora! isso é o tal conto de fadas, disse a mais pequena das velhas.

—É verdade, um conto de fadas, tornou a viuva. Mas aconteceu!—E os seus olhos iam na direcção do olival.(Voltar ao Conteúdo)

(p. 171) A PROVINCIA

Á meia noite, depois de ter abraçado os amigos no Martinho, com uma ternura de adeuzes que o caracter blasé de quasi todos tornára, valha a verdade, intempestiva, Jorge Miguel tomou vagarosamente o caminho habitual da sua casa, scismando em que era esse o seu ultimo «fóra de horas» de Lisboa. Morava ao Monte havia nove annos, no pincaro do outeiro mesmo, sobranceiro á cidade, ao pé da ermida—n'uma casinhola de pobres cujo primeiro andar o novo senhorio repartira entre elle e um empregadorio velho do Museu.

Alli, com os seus livros, sem creado, varrendo a casa elle mesmo, com pares de calças por cima de todas as cadeiras e cartapacios n'um tumulto de rumas pelo chão, Jorge Miguel fazia uma vida concentrada de alchimista, (p. 172) silenciosa, de porta fechada ás visitas e cerebralidade muda ás expansões.

A cidade, que o conhecia n'um fumo de lenda um pouco feita através das suas blagues, afizera-se a lhe consentir em publico um eu á parte, explicando por maluquice a concentração solitaria dos seus giros, e mesmo por bebedeira as apoplexias de humor que a certas horas convertiam a sua apathia triste em improvisação epileptica, archi-estouvada.

Áquella hora a cidade apaziguava os seus tumultos, cahia do gaz um langoroso bruxuleio; os transeuntes, menos; e todo aquelle socego entrava na solidão mental do pobre moço, escruciando-lhe a vida de um nunca mais á vida de solteiro. Porque Jorge Miguel, farto de viver sósinho, ia casar.

A historia d'esse amor era uma d'estas cousas occasionaes, despertadas na vida entre duas cogitações mais amargosas, arrastadas longos annos entre preguiças de affecto e desfallencias de vontade, relegadas successivamente para os longes do futuro, e que um dia afinal se impõem como a solução pelo absurdo de um problema economico impossivel de resolver de outra maneira. A vida litteraria, unica paixão absorvente que se lhe (p. 173) tinha conhecido, chegada ao cume, collocára-o na alternativa de, ou ter de rebentar de martyrio n'um meio hostil a toda a ideia de arte independente, ou de pôr ponto brusco n'uma producção que mesmo apesar de fulgurante e vigorosa só conseguia produzir no publico uma surda irritação minaz contra o escriptor. Entre a miseria odiada e a espectativa de uma madorna plethorica n'um canto de provincia, Jorge Miguel acabára alfim por se vencer; e d'esta vez, arrazado, dera no orgulho o golpe mestre, fazendo as malas para esse desterro onde a bestificação do matrimonio lhe açaimaria os ultimos piaffões de archanjo revoltado.

Quando chegou a casa estavam quatro malas fechadas na ante-camara, um couvre-pieds acorreado com guarda-chuvas e bengalas, dois moveis envoltos em lona que os gallegos não tinham podido levar na ultima padiola, para a gare—e os aposentos sem trastes, o relogio parado no muro, o vento ronronando nas arvores do adro, tudo aquillo lhe pareceu como o responso da sua mocidade já fria e decomposta. A um canto da pequenina sala de trabalho, um monte de papeis, tombo da sua bohemia, aguardava o auto-de-fé liquidador. (p. 174) Jorge Miguel despiu o casaco, trouxe um alguidar da cozinha, e chegando para o pé da papelada uma das malas, começou á luz da vella o inventario d'esse archivo de quinze annos rebolados por todas as maluqueiras da vida sensacional e litteraria. Eram primeiro bilhetes de visita e bilhetes postaes agradecendo livros, pedindo entrevistas, artigos, palavras de favor—menus de jantar, convites de exposições e de concertos, ramitos sêccos, retratos insepultos, carteis com monogrammas, dizendo, em lingua inverosimil, adorações litterarias com resaibos a estranhos sentimentos—e Jorge Miguel passeiava os olhos devagar n'aquellas coisas, evocava um momento as epochas e as respostas, e phreneticamente, para asphyxiar a saudade, chegava os papeis á vella, e ia-os atirando incendiados para a concavidade do alguidar. Cartas de Paris, cartas de Roma, da America, de Coimbra, todos os cantos do mundo e da provincia, homenagens fervorosas, anonymias de odios truculentos, discipulados timidos, identificações a distancia n'um ideal sonhado, em pontos antipodaes de educação e temperamento, consultas de mysteriosas litterarias, de celibatarias impacientes pedindo conselho para (p. 175) casos de psychologia individual cheios de acirrante... e desatavam-se os maços das fitas já ardidas da poeira das gavetas, as velhas folhas rolavam, talhes de lettra e prosa succediam-se, e sempre a impassivel vella, com a alma da luz azul, muito direita, consumia implacavelmente essas chimericas memorias onde tantos corações tinham batido d'elle ao mesmo tempo. Quando o pobre alguidar foi cheio de restos, e da mocidade de Jorge Miguel nada restava a mais do que algumas lagrimas a ferver-lhe na pelle do rosto, uma vacuidade estranha entrou-lhe n'alma, sendo então que o relogio parado e o silencio da casa pareceram marcar um fim de mundo.

Abriu a janella um pouco sobre a noite, e com o alguidar ainda quente despejou á rua a sarabanda das cinzas aggregadas ainda em folhas inteiriças, que o vento espiralou no ar em borboletas tenebrosas; e as que tinham vindo de longe, tomaram por caminhos rapidos, ao largo; e algumas hesitavam, sem se lembrarem já da morada de seus donos; entraram-lhe pela janella outras, eram as orphãs, como a pedir ao escriptor que as adoptasse; e algumas finalmente, como suicidas inertes, baquearam no chão pulverisadas, (p. 176) e o vento d'alba as varreu pouco a pouco aos quatro cantos do destino.

 

Accendeu um cigarro, o somno fôra-se, e como aquellas cinzas fatidicas, a attenção pulverisava-se-lhe, incapaz de reflectir sobre o problema terrivel que era esse internato de vagabundo illustre na aldeia, em agricultor, ao lado de uma mulher com quem mal entretivera fallarios triviaes alguma vez.

Estavam a dar quatro horas da manhã, e silenciosas nevoas vindas do mar cobriam lentamente o céo de pallidos vapores, toldando a lua poente, e alongando-se para o interior da terra em farrapanas obliquas, que incineravam phantasticamente os bairros afastados. Áquella hora Lisboa offerecia, das alturas do Monte, quasi sem luzes, uma desolação madornal de cemiterio, planificada na bruma, rebatida toda em lavouras de sulcos que eram bairros dobrados sobre si.

As cinzas dos papeis, minutos antes queimados, de certo áquella hora se estariam espalhando pelo inextricavel de todos aquelles bairros inquietantes, procurando, n'uma afflicção, os signatarios das cartas e bilhetes n'elles escriptos para lhes fazerem queixa da (p. 177) deserção de Jorge Miguel. Eil-as no ar, tiritando, as pobres borboletas, a orientarem-se no dedalo das casas pelos milhões de fios do telegrapho, receiosas de que o vento as pulverise antes de chegarem, com palavras legiveis ainda, ao seu destino. Eil-as a adejar de angustia nas vidraças, entrando nas casas pelo respiradouro das chaminés, indo ás alcovas, pousando nos travesseiros, indo aos cemiterios, pousando nos jazigos, e n'uns e n'outros interrompendo os somnos e as doces mortes.

—Não sabem? Jorge Miguel aposthasia de cavalleiro templario do paradoxo, de arcebispo da leria, de arcabuzeiro da rotina a balas de loucura...

E o alarme acordado apenas na mágoa d'elle, affigurava-se-lhe entenebrecer de luto a terra inteira, parecendo-lhe que de cada bairro, cada café, cada cartaz, cada esquina de rua, cada casa, mentes dispersas, adorações indefinidas, affectividades anonymas nascidas do deslumbramento da sua arte estravagante, se erguiam da cama no estado inconsciente de phantasmas, tomavam pelo caminho dos papeis queimados vindo de roda, pelo ar, a lhe fazer um côro de implorações. Lentamente, como (p. 178) amanhecia, por todo aquelle vasto mappa encinzeirado, luzes de gaz vinham-se apagando em linhas divergentes, como se esse extinguir gradual de estrellinhas somnambulas fosse a sua gloria de escriptor morrendo nos esquecimentos da aldeia, quando outro espirito subisse, mais vivamente moderno, a allumiar a ingratidão das gerações.

Encostou-se um bocado, mas não podia dormir, os rumores matinaes sobresaltavam-n'o; dir-se-hia que toda a cidade se levantára mais cedo para trepar á montanha e lhe invadir a casa de vozidos. Entrementes, o dia clareava, e quando foram horas de partir, Jorge Miguel, chegando pela ultima vez á varanda, casualmente viu no parapeito um bocado de papel carbonisado, onde subsistiam legiveis duas rapidas linhas de escriptura. Leu o seguinte: «de resto, meu caro, para ser celebre é necessario viver longe, e não ter tido nunca amigos intimos».

Foi sob esta impressão martyrisante que elle deixou de vez a capital.

 

O rebentar na provincia foi terrivel; receberam-n'o á chegada da diligencia com uma musica de pretos, que era a estreia da phylarmonica: (p. 179) quatro carpinteiros a trombonear canudos de latão, um barrigudo a zurzir os pratos como fulo, e o do zabumba, macanjo, dando co'a maçaneta nos garotos. Como os musicos não soubessem senão a marcha da Ione, ensaiada á pressa para as procissões da Semana Santa, com esse batuque funebre seguiram, em passo de enterro, pela rua da grande villa, no meio dos raios te partam do cocheiro que despregava as pilecas na subida, e de um certo riso de um padre, de lhe fazer calafrios pela medulla.

Em breves dias fez-se o casamento, para o qual Jorge Miguel, foi sem curiosidade, decidido a resolver o problema do seu destino por um criterio de vontade estoica contra o qual piaffavam todas as suas selvajarias de indomavel vagabundo. Sua mulher não lhe inspirou a principio mais que uma especie de pretenciosa piedade: franzininha, um pouco loura, com as orelhas pequenas, a bocca pura na esquadria de um queixo quasi viril de voluntaria, e toda a graça de viver na infantilidade dos olhos melancolicos. Não era pela belleza de certo que essa imponderavel bonequinha viria a exercer no espirito do esposo qualquer cousa similhante á seducção.

(p. 180) Senão quando, attenuadas um pouco pelo aconchego de uma casita provincial as saudades litterarias de Lisboa, subitamente, uma manhã, Jorge Miguel começou a sentir orgulhos vagos de vêr labutar por elle a companheira.

Reparou que os seus cabellos eram finos, a testa pensativa, e que as suas breves palavras resabiam a qualquer coisa de penetrante, como se derivassem de uma vontade séria de enfermeira. Os seus vestidos escuros, mal roçando nos moveis, como levados n'um vôo de borboleta, as suas lentas mãos guiadas á descoberta de fazerem o lar confortavel sem parecerem tocar nos objectos, uma percepção sagaz de concentrarem cuidados no gabinete dos livros, na ordem dos papeis, na tamisação da luz, nas flôres da secretária, tudo isto que dir-se-hia casual, por vezes como que se lhe affigurava nascido de uma ardilosa malicia de o prenderem pelo reconhecimento a essa vida a dous que em principio tamanhos sustos lhe trouxera. Esta fascinação que derivára primeiro do egoismo envaidecido de sentir em tôrno a vida sem attrictos, com as comidas a horas e bem feitas, a casinha tépida, macios os fauteuils, a atmosphera perfumada e a (p. 181) plethora de bem-estar constante de riqueza, defendida ás linguarices dos estranhos, pouco a pouco começou a lhe subir do estomago á intelligencia, e a figurita d'ella, severa, apagando-se na meia luz de um recato freiratico, pallida e diaphana como uma sombra do paraizo, passava ás horas calmas de estudo pela cabeça d'elle com uma ponta de desejo que lhe tornaria a nupcia fecunda, se não fôra a fatalidade dos homens de genio não poderem propagar-se sem degenerações na descendencia. Começou a presentir então a companheira por toda a parte, nas suas ideias e nas suas leituras, no leito, a seu lado, com os olhos fechados e acordada a espreitar se elle dormia, nos seus passeios longinquos pelo campo, nos bicos da sua penna, nos calculos dos seus negocios, a um tempo causa e fim, phantasia e realidade, e com tal poder de avassallação e absorpção que o pobre bohemio acabou um dia por confessar a si proprio essa incondicional escravatura, deliciado, abjurando as antigas brutalidades de publicista solitario, a arte mascula da analyse violentando as psychologias verde-podres do moderno, os excessivos de lingua, as irreverencias sardonicas da boutade,—todas as qualidades crueis (p. 182) que haviam feito d'elle em solteiro o bacteriologista maximo das degenerações sociaes do seu paiz.

Longe de parecer reparar n'este rebaixamento de plano psychico do esposo, ella como que só pensava em lhe encadear as attenções no sentido dos antigos trabalhos litterarios, afastando-o das convivencias massadoras da aldeia, pondo ao alcance da sua mão livros de estudo, interessando-se pelo seu passado jornalistico sem ciumes e até repassando ella mesma, através dos seus conselhos, os assumptos que mais pudessem oriental-o na directriz do seu antigo frondismo de escriptor. Em alguns mezes o predominio foi tal que o espirito d'ella transfilhára-se inteiramente ao corpo d'elle.

 

Uma noite de novembro, já depois das colheitas da uva e da azeitona, aconteceu que examinando os dous detidamente as contas da lavoura, ella de repente observasse que era tempo de sahirem da modestia financeira em que viviam.

Como a situação de fortuna do casal nunca fora nem melhor nem peior do que ora estava, aquillo surprehendeu Jorge Miguel, como se (p. 183) nas palavras da esposa houvesse reprimenda á sua inercia.

Ella, sem se perturbar, tomou ao acaso um papel da secretária, agarrou n'uma penna, e ao cabo de alguns pequenos calculos feitos n'uma calligraphia tortuosa, começou a dizer, com a sua voz de pauzas doces, que as vinhas estavam velhas, o phylloxera á porta, os terrenos estanques da produção sem adubo, o vinho sem mercado, da qualidade horrivel do fabrico; e quanto ás terras de cereal, parte não dava, por desleixo do preparo, o que devia, e a outra parte em pousio, coberta de abrolhos e de estevas, apenas nos começos do outomno era pascigo para as cabras dos pastores furtivos da visinhança. O remedio era uma remodelação completa do regimen agricola, em quatro annos: nas terras de pousio lançar plantações americanas, reengorgitar os almargios da ceara com os elementos chimicos necessarios á cultura intensiva, ampliar a extensão aravel das terras, plantar arvoredo, regenerando ao mesmo tempo a industria da vinha, cujo grosseiro preparo estava ainda na fermentação do mosto em barros pesgados, e seu esforço alcoolico com aguardentes de balsa ao esturro e á porcaria do alambique.

(p. 184) Demandava a nova empreza capitaes de alguma fórma custosos para a relativa modestia dos seus teres; mas poderiam começar aos poucochinhos, e para isso as economias de tres annos de vida provincial talvez bastassem, e a actividade e a vigilancia d'elle fariam o resto. Ficou decidido que encetariam os trabalhos logo esse anno, e que os habitos indolentes de Jorge Miguel cessariam, por a vida de lavrador exigir assiduidades constantes na faina, e uma vigilancia quanto possivel methodica e regulada.

—Resta vêr agora, objectára-lhe a esposa sorrindo, se cumprirá escrupulosamente o que promettes. Esta vida contemplativa estava-te a inutilisar todos os dias, e chamado á acção não terás tempo de te aborrecer a pensar futilidades. De mais o caminho é extenso, e estou a vêr que quando te habituares a fazer co'a terra, dinheiro, serás naturalmente conduzido a tambem aproveitar como bens de fortuna essa notoriedade de escriptor de que não tens querido tirar senão vaidades espirituaes, ephemeras e... irritantes.

—Tu não me aconselhas de certo que eu entre a escrever sobre a politica do districto...

(p. 185) —Em que estaria o mal? Não ha assumptos chalros. Um talento nobre transfigura todas as cousas porque passa. Ouço-te flagelar a estupidez e a má fé dos que açambarcam despoticamente, e para fins deshonestos, a politica da nossa região; porque te não decidirás, pois, a intervir n'ella com os recursos superiores que Deus te deu, e os teus estudos teem desenvolvido? Maldizer é facil. Quem se não mostra, esquece, e eis-te chegado á idade de reappareceres homem de acção.

—Tens-me então estado a sonhar governador civil ou deputado...

—Não pelo desforço platonico de assumires sob essa forma a authoridade, mas principalmente porque estaria n'isso o começo de uma fortuna decisiva.

—Em dinheiro talvez?

—Que a final é tudo n'este mundo. Se Jesus Christo voltasse a fazer na terra os doze apostolos, precisaria de pelo menos ter doze milhões. Olha á roda de ti o que se passa. Não ha mediocre que te não tenha suplantado; tu desesperas-te, fingindo desprezal-os, mas no fundo da tua consciencia o sentimento dominante é o ciume porque esses que tu declaras cerebralmente inferiores (p. 186) desenvolveram na vida qualidades de lucta que te faltam.

—Suppões então que eu não segui o caminho d'elles por impotencia...

—A que chamavas altivez, e afinal não foi mais que cobardia.

—Entristeces-me com esse juizo estreito que me fazes.

—Mas prova-me o contrario. Era tão facil! Ha na cidade um jornal sem redactor; offerecem-t'o e tu não respondes; ora se desenvolvesses n'um sentido sagaz as tuas qualidades de foliculario, em pouco tempe esse jornal seria a tua arma envenenada, e verias realisadas todas as tuas antigas ambições.

—Mas se eu não tenho nenhumas, minha filha!

—Ambições precisas não tens, porque a multidão assusta-te, mas quererás tu persuadir-me de que a tua obra critica de solteiro apenas fosse uma galopada de humorista? É lêr os teus pamphletos. Se se trata de litteratura, achas a obra dos outros má, e tens o cuidado de fixar um sonho de obra que não é mais do que a tua, idealisada. Se se trata de costumes, flagellas os vicios de que não gostas, e calas-te ou defendes aquelles para que (p. 187) tens uma certa vocação. Em politica achas todos os ministros imbecis, dizes que as nomeações não visam nunca individuos de valor, e que os dinheiros do paiz andam a rodo pelos regabofes dos seus administradores. Dir-me-has o que é tudo isto senão um processo ingenuo de, desbastando nos outros, ficares sendo primeiro e unico de pé?

—Mas afinal tu és uma creatura incongruente. Essa obra desenvolta de mocidade nunca te inspirou senão o enfado de uma cousa grosseira, mau grado os teus disfarces, e tanto fizeste que acabei por me envergonhar de a ter escripto. Passam seis annos, está mumifeita, esquecida, e és tu mesma que m'a vens galvanisar agora n'uma phase de empregomania que eu detesto!

—O caso é simples. Todo o homem que esgrime sem alvo, é caricato ou doido. Os teus proprios discipulos perguntavam: mas que quer elle? porque ninguem comprehende que se gaste energia sem proveito. Dez annos d'essa campanha asperrima, n'uma agua-furtada, sem roupa nem confortos, coberto de calumnias e de dividas, desprezado, odiado, o que te deram? A gloria de seres conhecido entre os estudantes como um canalha sarcastico, (p. 188) e quarenta adeptos que apenas servidos desertaram de ti como da peste.

A logica d'estas combinações chocava fundo os quarenta annos já frios do antigo pamphletario, que hesitava, no entanto obsecado da tradição dos genios famintos. Embuido das doutrinas utilitarias da esposa, via effectivamente o dinheiro como uma causa geral de toda a culminencia, e as suas antigas ambições gososas de grande homem despertando da indefinida madorna em que o estagnára a vida provincial. Via-se reapparecer de novo em plena vida, com outros ideaes mais largos e mais firmes, senhor da sua razão e da sua força, já sem os platonismos de artista e as nebulosas philosophias de pamphletario demolidor joeirado das antigas relações compromettedoras de café, homem de acção, batido no desprezo, monosyllabico, hypocrita, insolente, fazendo a sua entrada sem ruido, sondando os typos, avaliando a frio os consagrados, e n'uma reviravolta leonina, de repente, apoderando-se dos cimos, e fazendo-se sagrar chefe de clan. Tudo estaria em fazer do seu talento o molosso incorruptivel de uma ideia fixa. Essa marmorisação de vontade, porém, onde formal-a, com o seu caracter feminino e (p. 189) dominavel, acobardando-se diante dos obstaculos, e que a primeira mão resoluta guiaria a sabor dos seus caprichos? Então, lançando a vista de roda, apercebeu como sempre os olhos claros da mulher, interrogando-o com uma tristeza escarninha sobre a sua falta de coragem. A pretexto de inspecção ás escólas primarias, o governador civil percorria n'esse momento o districto, a sondar o espirito das terras sobre o exito das proximas eleições. Era um antigo companheiro de Jorge Miguel, sucio pomposo, que começára por gazetilhas obscenas no Pimpão, subindo d'ahi a amanuense da Junta, e redactor politico da Nova, jornal do presidente do conselho, que o despachou depois aos bejenses com subscriptos de funccionario de confiança.

Jorge Miguel inspirára-lhe sempre mesmo nos dias de convivencia litterária no Martinho, uma especie de rancor desconfiado, com orlas de desprezo, e póde-se imaginar a surpreza do conselheiro, quando, avistados na aldeia os dois bohemios, Jorge Miguel lhe communicou as suas tenções de comprar o jornal e entrar de vez na politica militante. Sentindo-se de cima o governador civil prometteu com uma sublime benevolencia, apoiar-lhe (p. 190) as pretensões, combinando-se depois de tres dias de hospedagem e de jantares pantagruelicos, que adquirida a gazeta, com typografia e pessoal conveniente, Jorge Miguel fosse a Lisboa munido de cartas prestar ao ministério vassallagem, e receber dos magnates do partido a sua iniciativa de cavalleiro. Quinze dias depois ia na casa do nosso pacifico contemplador uma barafunda dos demonios.

Pelo caminho de ferro chegaram de Lisboa umas poucas de charruas, caixotes de adubos e sementes, milheiros e milheiros de bacellos americanos. A adega foi quasi toda guarnecida de toneis; lagariças novas no pateo, com toda a sorte de machinas modernas. Os pousios das herdades eram começados a revolver a talho fundo, para o que foi necessario alugar juntas de bois a todo o preço; de fóra viera um regente agricola, de monoculo, que se levantava ao meio dia, e achava mau passadio um jantar de cinco pratos; e finalmente, negociado por quinhentos mil reis, typographia e tudo, o jornal apparecera depois onerado por uma hypotheca de dois contos, e com o typo delido, os prélos n'um cangalho, tendo Jorge Miguel de dispender, (p. 191) por conselho do governador civil, proprietario secreto da folha, mais de novecentos mil réis para acquisição de material. Na aldeia, quando estas coisas correram, foi o alvoroço que se tem por um individuo que emaluquece, de rodilhão, e todos punham as mãos na cabeça, antegozando com lastimas hypocritas a hora opipara em que rebentaria a casa do «escriptor». A audacia d'esta renovação agricola pelos risiveis processos scientificos, que nenhum rico ousára, e de que ria o povinho como uma brincadeira de creanças, além de não parecer condizente á remediada fortuna do litterato, tão pouco pelo estapafurdio do regente agricola, e resultado incerto das colheitas parecia estribar-se lá muito na económica prudencia que deve sempre guiar um lavrador. Viticultura americana? dinheiro perdido, bufavam todos. O phylloxera immobilisando-se no Douro perdera a força para chegar aos valles do Tejo. Reengorgitação das terras pelo adubo? mas onde ia isso parar de dispendioso, e para que necessario? se a vinha nunca se estrumára no Alemtejo, e quanto ao cereal, a bósta dos animaes abundou sempre, para fazer de alqueires, moios.

A reapparição do Clamor de Beja, jornal (p. 192) independente, um typo novo, e uma factura litteraria elegantissima, foi verdadeiramente um caso nos annaes da sornice alemtejana, e claro se viu o influxo que essa incisiva folha fumegante de vida e tocando os assumptos locaes com lúcida ironia, certo viria a ter na politica do sul da grande provincia.

Jorge Miguel recebia em casa os jornaes da redacção, preparava o seu artigo, fazia o noticiario e a correspondencia de Lisboa, e o resto era arranjado em Beja por um alferes do 17, seu antigo commensal n'uma republica de estudantes. Em pouco tempo o successo attingiu pela provincia as proporções de uma victoria; choviam as assignaturas, os annuncios pagos succediam-se, e em todas as questões locaes e partidarias começou o jornal a fazer authoridade, o que o lembrou em Lisboa, levando as attenções dos malignos para a espécie de furor com que Jorge Miguel, jacobino medonho, ainda na vespera, defendia os actos do governo. Eleições á porta: era o momento de ir a Lisboa, jurar fidelidade ao gabinete. Atochado de missivas bejenses para os magnates graúdos do partido, sahiu Jorge Miguel de casa uma manhã, com o seu chapéo alto e o seu bahú de roupa, disposto a (p. 193) levar de vencida as agruras da jornada graças a certa gallinha de recheio, mais meio presunto que a mulher lhe embrulhou, para farnel, na folha de um dos seus antigos pamphletos anarchistas. A viagem foi cabeceada de somno n'uma segunda classe onde voltavam de férias tres alarves de tres seminaristas, e só no Barreiro, quando a cidade começou a surgir vaporisada nos azues violetas do horizonte, é que Jorge Miguel sentiu tomal-o uma infinita e estranha nostalgia. Indo no barco atirou ao rio os restos do presunto, para evitar o cheravisco aduaneiro, e com o gallego do bahú veio a dar fundo nas Duas Nações, ante uma canja que tinha todo o ar de um soluto de caspa em agua de lavagens. Sopeteou como poude as vitellas flacidas com cenouras, um roast-beef de folha, e varios outros acepipes corneos d'aquella conceituada casa alimenticia, e barbeado, de sobrecasaca fina, cheirando a agua de Colonia, eil-o baixa do hotel á cóca de tipoia que o solavanque a S. Vicente. Chegado á rua, os luzeiros da Baixa estontearam-n'o: via, extasiado, uma multidão febril, pelos passeios, os carros cheios de gente, e o indefinido rumor repercutíndo-se a distancia, entre pregões de jornaes e (p. 194) silvos de comboyos. Mentalmente, com esforços de memoria dolorosos, desemburrando-se da bisonheria de seis annos de vida marital, tomava outra vez posse da cidade, buscando familiarisar-se no dedalo das ruas, achar no asphalto outra vez o seu rail de flaneur nocturno; e mulheres que surgiam de chapa nos reverberos das lojas pintadas de branco, olhando os homens de lado, como as gansas, tinham para elle o ar de apparições; nos americanos pareceu-lhe tudo duques e duquezas, um deslumbramento as lojas, os caixeiros uns personagens ideais; e a sua emoção subia n'um galopar de antigas reminiscencias, á mercê das surprezas esgarçadas por qualquer cousa, na volta de uma esquina, ante o estylo de um predio novo, um novo monumento—emoção de provinciano fóra da moda, cego do gaz, picado de ciumes, desesperado de já ninguem o conhecer, e que ao apear-se em Santa Clara, á porta do «nosso glorioso chefe» levava já tres ridiculos de aldeia a chateal-o: a fadiga dos calos, o remorso do casamento, e pairando a tudo, um desejo frascario, exhaustinado, d'ir rebentar a noitada ao baile de mascaras do Trindade. Seis annos de provincia tinham liquidado n'isto o grande homem...(Voltar ao Conteúdo)

(p. 195) O JURAMENTO DA CONDESSA ESTHER

—Tenho consultado tudo, tudo! A homeopathia, o systhema Brugrave, o Raspail, tudo! Mas os alivios poucos, nenhuns mesmo. É esta dôrzinha vaga no peito, esta tosse secca, pouca vontade de comer, ventre preso... Quando se chega á minha edade, é esperar pela morte, bem o sei.

—Qual!

—Ah! eu não a receio, meu bom amigo. Somente me affligiria a saudade dos que amo, e o amor da minha filha...—Baixava a voz para dizer-me—Tem-me perseguido a ideia de consultar um enfermeiro. Ouço que entendem muito de doenças... Morrer, deixar Esther, seria o ultimo castigo.

Em resposta, eu ria. A condessa ia começar a narrativa de uma cura estrondosa, feita (p. 196) n'uma senhora das suas relações, por um dos taes.

—E está hoje gorda e alegre, que não faz ideia.

—Faço, faço.

—Depois, os remedios que me receitam os medicos, repugnam-me. Tenho horror á magnesia, horror ao cheiro da camphora, horror ás pilulas, que bem podem ser manipuladas por sugeitos pouco limpos. Alguns dos medicamentos nem os tomo.

—Eis porque se não cura, condessa. As aguas de Loeches são suaves...

—Horriveis! E tão prosaicas...

—De certo, de certo. Tanto mais que V. Ex.a tira effeitos poeticos da doença que diz soffrer, confesse.

—Ahi vem a sua má lingua, doutor. Na minha edade a poesia é o amor dos filhos. Eu sofro muito, sofro, palavra d'honra. E se fosse um aneurisma, meu Deus!...

—Ahi, está V. Ex.a poetando com hypotheses de martyrio, simples achaques a que todos estamos sugeitos. Que diria então eu, que V. Ex.a vê na flôr da vida e na apparencia da mais radiosa saude? O meu estomago!

—E o meu, doutor, o meu?

(p. 197) —A condessinha Esther tem a paixão das begonias; a sr.a duqueza de Serpa adora os cães d'agua; a sr.a marqueza de Valle de Perdizes esculpe; a esposa do negociante Domingues trabalha em créches e premios de escolas. E cada uma faz d'estas predilecções a sua aureola de poesia, de que se circunda no mundo. V. Ex.a tem os seus soffrimentos. É uma compensação.

—Já vejo que está hoje peor, Conde! gritou ella para a meza do jogo onde quatro homens faziam whist, á luz d'uma serpentina. Um velho calvo e magro severamente abotoado e de bigodes altivos, ergueu-se respeitosamente e veiu junto de nós.

Por detraz dos oculos, luziam-lhe aguçadas as pupillas de miope: andava com ares magestosos de ministro, gesticulando sobriamente.

—Que é? disse elle firmando as mãos nos gomos do divan da condessa mãe.

—Pode fallar-me da sua pre-historia, porque o meu amigo doutor teima em satyrisar os meus padecimentos. Vamos, sente-se aqui.

—Mas a partida...

—O doutor vae substitui-lo, sim?

(p. 198) —E a condessa assim me desterra tão cruelmente!—Ella estendeu-me a mão dizendo:

—Será por pouco tempo.—Fui. Esther não viera ainda. As senhoras começavam a chegar em pequena gala, com bournous de casimira branca forrados a setim e pelles. Eram os convivas certos d'aquellas pequeninas soirées, tão intimas, tão aconchegadas e tão doces, que os ditos e excentricidades da condessinha animavam, e a rabeca de Zebedeu Kebler, israelita loiro como Jesus e tão casto como elle, enchia de fremitos extranhos e infinitas harmonias. Kebler adorava a condessinha com uma paixão supersticiosa e ardente. Estava sempre onde ella estava; em São Carlos, a sua cadeira era defronte da friza d'ella; apparecia nos bailes a que ella ia, melancholico e pallido, uma elegancia fina de gentleman; e nas conversações mais frivolas, em podendo, mettia, sem quasi dar por isso, o nome d'ella. Esther era trigueira e alta, de uma distincção unica e de uma elegancia sem rival. O esmalte dos seus dentes destacava fresquissimo no vermelho das gengivas, como um adereço rico num estojo de velludo cereja. Nada mais explendido que a linha do seu busto nervoso e cinzelado, e a redondeza das suas espaduas (p. 199) reaes, surgindo de espumas de renda na fervilhação opulenta dos bailes. Fui ter com o judeu. De pé, junto da banca de jogo, elle olhava sem vêr cousa alguma. Tomei-lhe o braço e fomos para o vão d' uma janella. E antes que eu fallasse, elle disse:

—Já penetrei no mysterio.

—Qual?

—O da condessinha.

—Vamos a vêr como.

—Ella é muito supersticiosa. Não admira, sangue judeu...

—Sangue judeu! Ella?—Kebler baixou a voz e contou-me:

—Que certo vendedor de tamaras, freguez assiduo de uma hortaliceira, chegára a amar esta. Do amor dos dois, fermentou um garoto que se metteu cambista, d'onde mais tarde surgiu uma obesidade millionaria que um governo individado fez barão e par.

—Que perspicacia audaz empregou o meu amigo para saber tanto? Caramba!

—Ouça: implantada por esta fórma, a nobreza foi subindo de um grau de filho para filho. Até que um dia, o pae de Esther appareceu conde.

—A esposa era muito formosa então, para (p. 200) poder alcançar tudo. Seria duqueza até, se o houvesse querido, disse eu sorrindo.

—Lingua damnada!

—Adeante. É então supersticiosa, hein?

—Não imagina.

—Eis o meio de sustar-lhe a golfada de sarcasmos de que ás vezes nos cobre. Em ella me ferindo, quebro um espelho da sala, verá. Mas vamos ao mysterio. Creio que foi mysterio, que disse.

—Foi. Esther teve uma grande paixão!

—Como a da hortaliceira gollegã, sua avó, pelo vendedor de tamara e sabonetes. Fermentou alguma cousa de?...

—Olhe que me zango sériamente, e fica sem saber nada.

—Está bem; estou já calado.

—Uma paixão fatal! Amou...

—Essa reticencia traz um padre ou um trintanario.

—Infelizmente. Amou um primo, doutor em theologia, que já dissera missa.

—Bem dizia eu!

—Dizem que bella figura.

—Não me custa a crêr, pois que o affirma. E o primo amou a prima? Sacrilegio no ultimo acto, suicidio ao cahir do panno. Adivinhei?

(p. 201) —Quasi. O primo era um homem digno; além disso não chegou a saber toda a verdade da bocca d'ella. Desconfiou apenas que era amado e fugiu para as missões do ultramar.

—Oh incomparavel levita! Eu não fugia para tão longe. E ella?

—Ella jurou que não amaria mais ninguem na vida.

—E como não lhe fosse permittido professar...

—Não seja leviano. Esther adora as begonias, como sabe.

—Paixão que acarreta ao meu amigo uma despesa séria. Cada dia lhe traz uma especie nova, numa corbeille admiravel.

—Essa adoração tem a seguinte historia. Á hora da partida o missionario mandou á condessinha num vaso da China, uma explendida begonia rex-isis, especie do mais bello effeito decorativo. É um vaso amplo, de figurinhas em relevo e pequenas azas de oiro, representando dragões engalfinhados.

—Conheço bem essa preciosidade! Vale a olhos fechados cem libras. E depois?

—A begonia durou pouco. A estufa para onde a transportaram, e a convivencia das (p. 202) mais plantas abreviaram-lhe os dias. Já entrou na estufa da condessinha?

—Muitas vezes. O vaso está ao centro, sobre um pequeno pedestal de marmore branco e debaixo de uma redoma de crystal em gomos.

—É isso, com a begonia sêcca.

—Tal qual! Muitas vezes perguntei á condessinha a historia d'aquelle esqueleto de planta. E agora me lembro—ella ficava triste e suspirava. Era a theologia do primo adorado.

—Hontem vim visitá-las de manhã. Trazia-lhes um euforbio raro do Mexico, que os francezes chamavam Poinsettie, exemplar soberbo. Conhece?

—Dos livros. A minha clinica modesta não me permitte dispender sem proveito o que elle custa. Folhas oblongas bordadas de verde, envernisado e vivo. Centro canario raiado de verduras sanguineas. Envolvendo as flôres, uma corôa de grandes bracteas ovaes, do tamanho de folhas, e do mais bello escarlate, dando o effeito duma grande flôr. Uma opulencia, em resumo.

—Pois bem. Eu mesmo fui collocá-lo na estufa, permissão graciosa da condessinha.

(p. 203) —Os perfumes aphrodisiacos perturbaram os sentidos de ambos e... amor do judeu das tamaras com a...

—Mau!

—Está bom: curvo a cabeça. Venha o resto.

—Quando nos achámos na estufa e em meio das folhas de mil desenhos que alli ha, ella tomando-me as mãos, disse-me commovida:

—Como hei-de eu agradecer a sua sollicitude, Zebedeu?

—Ella disse: Zebedeu?

—Disse.

—Meio caminho andado, então. Mais dois minutos, e tinha-a pendurada no pescoço. Que gata, essa trigueira tentadora!...

—Eu nem podia fallar!

—Oh castidade loira de vinte annos!

—E apertava-me tanto as mãos...

—Sim? Depois, um beijo... ou dois... ou tres...

—Falle com franqueza, disse-me ella. O senhor ama-me.—Eu estava a tremer como um poltrão.—Ouça, tornou Esther; fiz um juramento.

—Qual? perguntei em voz baixa.

(p. 204) —Que não amaria ninguem mais. A não ser...

—A não ser?...

—Que aquelle vaso de pedestal apparecesse em pedaços um dia, sem ninguem lhe tocar.

—Mas isso é impossivel.

—Então veja se posso amá-lo. Ella estava tão triste!... Talvez não creia: chorei!—Callamo-nos, porque n'aquelle instante, uma voz fresca deu uma risadinha á porta, e as senhoras correram para uma rapariga de branco, que vinha entrando. Era Esther.

—Zebedeu Kebler, meu incomparavel artista, um pouco da sua rabeca, disse ella em voz alta, antes de beijar ninguem.

—Bom sinal! resmunguei ao pobre rapaz.

O judeu deixou-me logo, alegre por ser lembrado, e foi abrir o estojo do instrumento.

—Que ridiculos são estes sentimentos! pensava eu. Apertam-lhes as mãos n'uma estufa e a sós, muito e muito, e desatam a chorar. Grandissimo tolo! Não o pode amar? Fez ella muito bem. Amar um homem que em logar de cobrir de beijos uma mulher lindissima que se rende, fica a tremer, seria uma vergonha: apre! Fui ter com a condessa, enfastiado e murmurando:

(p. 205) —Fosse a cousa commigo...

No dia seguinte, tinha eu acabado a consulta quando chegou Kebler.

—Vem acabar-me a historia de hontem?

—Venho sollicitar a sua presteza de atirador.

—Chegou o theologo? desafiou então um ministro do altar? Barbaro! Cruel! Desalmado!

—Qual! Tenho um projecto.

—Acceite este charuto, aqui tem lumes, sente-se e conte-me o projecto.

—O alvo do irmão de Esther fica perto da estufa; pois não fica?

—Creio que sim.

—O senhor vae alli exercitar-se muitas vezes, segundo me disse o Alvaro.

—Vou.

—Ouça. Eu levanto um caixilho da estufa...

—Mas é preciso a chave que abre todos esses caixilhos. Talvez não pensasse em tal?

—Tenho-a aqui; roubei-a agora mesmo. Posso guardá-la por estes dias. O tempo está chuvoso e frio, de modo que não ventilarão a estufa por agora.

—Então?

(p. 206) —Aberto o caixilho, o senhor fingindo apontar ao alvo, aponta ao vaso da China e...

—O senhor ganha o premio, e eu fico a chuchar o dedo.

—Que? Ama a condessinha?

—Eu amo toda a gente; que diabo!...

—Estou esperando a sua resposta.

—Que eu parta aquelle vaso da China porque daria tudo? Está louco!

—Olhe para mim. Se o não fizer...

—Dá um tiro no craneo; dá?

—Qual! fico solteiro toda a vida.

—Bem, essa simplicidade enternece-me. Esteja amanhã aberto o caixilho, e a bala esmigalhará o vaso. Mas como entra o senhor no jardim?

—Saltando o muro que o separa da casa em que habito.

—O senhor é o diabo.

—Se a adoro!

Na noite seguinte, havia reunião em casa da condessa. Os grupos das mais noites. Ao fundo do salão, a banca de whist, onde o cultor da pre-historia se notava de lunetas altas, sob que as pupillas fuzilavam. No divan amarello, a condessa queixando-se-me da falta de apetite e de tosse sêcca. Esther radiosa, no (p. 207) meio das suas amigas. Zebedeu Kebler muito pallido e muitissimo preoccupado, ferindo de um modo inteiramente magistral as cordas da rabeca.

—Meus senhores, disse a condessa em voz alta, erguendo-se. Tenho a honra de lhes annunciar o casamento de minha filha Esther com o senhor Zebedeu Kebler.

Ouviu-se o estalido de uma corda de rabeca, subitamente quebrada. O conde das lunetas erguera-se, aprumando a alta estatura. Esther confessava ruborisada que... Deus o queria. Tinha apparecido em pedaços o vaso da China, sem que lhe tocassem. E de mais amava aquelle rapaz, tão elegante e tão distincto, de cujo braço seria um encanto pender coroada de flôres de larangeira.

—És meu padrinho! disse-me com um abraço de reconhecimento, o judeu.

—Já agora... respondi.

O meu presente nupcial, foi um vaso chinez inteiramente igual ao que apparecera esmigalhado. Crescia n'elle um hibiscus do Japão, trepadeira da mais rendilhada contextura, folhas exoticas e flôres em grinaldas.

—Eis porque eu daria tudo pelo vaso quebrado, disse a Kebler, com uma vaga saudade (p. 208) de amador. Se o conseguisse adquirir, completaria o mais bello par europeu. Guardem esse vaso no logar do pobre esmigalhado, e que elle seja o talisman de um amôr, fecundo em bébés de olhos azues, menos romanesco que o amôr do primo, e mais durador por isso mesmo.

Um frou-frou de saias fez-me voltar a cabeça; á porta, a cabecinha de Esther assomára curiosa, e os seus dentinhos brancos de gata contente brilhavam, sorrindo de um modo encantador.

Nunca fui piegas, palavra de honra—mas inda hoje tenho calafrios pensando nos dentes d'aquella mulher.(Voltar ao Conteúdo)

(p. 209) CORONADO

Ha sete ou oito annos vinha eu do Poço do Bispo no electrico, quando nas alturas da Mitra entrou um meu velho amigo e camarada, Dr. P., clinico da localidade, com quem vim conversando até á Baixa.

Trazia na mão um numero de revista litteraria, e abrindo-o no sitio d'uma peça poetica, impressa, perguntou-me se eu ouvira alguma vez fallar da Coronado. Fiz com a cabeça que não, e elle, explicando que era o médico da casa, em duas palavras fez o elogio sumário da sua cliente. Mez e meio havia que esta senhora, já então de oitenta a oitenta e dois annos d'edade, mas completamente em plena validez mental e muscular, se fôra por uma escada de pedra, quebrando um braço pelo terço inferior do cubito e do rádio.

(p. 210) Poucas esperanças tinha o clinico, dada a edade provécta da paciente, de se virem a soldar os topos da fractura; senão quando, ao lhe ser tirado o aparelho, se viu como os ossos quebrados tinham adherido, e a cura se fizera completa e ás maravilhas!

Emquanto imovel no leito, a doente, cuja nervosidade frenetica espantosamente sofria de estar preza, para enganar o tempo e distrahir o espirito volitante, ideára e compuzera em quadras endecasylabas, uma poesia festiva ás suas mãos.

E aqui o médico estendeu-me a revista para eu lêr.

Uma das mãos da Coronado estivéra mez e meio entrapada nas ligaduras do aparelho de fractura, sem vêr a outra, e a poetiza figurava-as como duas amigas ou irmãs gémeas afeitas a comunicarem no seu dia a dia impressionista, a imitarem-se os gestos, a procederem por sentimentos e instinctos identicos, e que uma tão longa separação lançára no desespero e na saudade.

A alegria do novo encontro fazia-as exultar em caudaes de ternura e hossanas de prazer. Os versos eram ricos, nem farfalhudos, nem ôcos, com significados precisos, frases de bronze (p. 211) sonoro, imagens faiscantes, claras, simples, dando uma ideia de riqueza sóbria, e mostrando uma artista experiente e um pulso de homem. Não havia hesitação nem cançaço, nem essa pulverisante banalidade dos velhos que vivem de restos e, perdido o séstro construtivo e inventivo, fazem litteratura de toadas e sandezes. Qualquer Fernandez Shaw ou Eduardo Marquina, Santos Chocano ou Manoel Machado, Ruben Dario ou Francisco Vilaespesa, poderiam ter assignado esse texto de bravura, doce e intenso, vivido e sentido, verdadeiro cantico d'uma alma unindo a transcendencia lyrica á precisão. No tempo da Coronado os poetas ainda eram só romanticos ou classicos...

O individualismo hysteropatha não tinha creado os grupos de cabaret e as patrulhas maniacas de symbolistas, instrumentistas, decadistas, ideologos, esthetas, neo-mysticos e magnificos, que depois inçaram a poesia de brochuras pathologicas, dando a impressão d'uma casa d'orates com mais exhibicionismo que estro, e menos inspiração que maluqueira.

A poetiza desde 1874 ficára isolada, pela tristura claustral da sua vida, das correntes poeticas que agitavam o mundo, vindas dos (p. 212) altos de Montmartre, té aos centros d'insurreição de Madrid e de Lisboa. Poetava á antiga, com um gesto nobre e a palavra fluida da velha escola hespanhola, que tinha em Espronceda, seu conterraneo tambem d'Almendralejo, um dos mais altos e orgulhosos paladinos.

Despertou-se-me então o desejo de, senão conhecer de perto, pelo menos entrevêr uma vez sequer a singular creatura que aos oitenta e dois annos rimava com uma pujança feraz tão bellas coizas. O visconde de Castilho e o dr. Souza Viterbo a quem algumas vezes fallei na Coronado, depois d'elogios enlevados ao talento e viveza de conversação da illustre enclaustrada, evitavam pormenorisar detalhes que me ajudassem á creação d'um retrato physico ou moral, justaponivel ao indeciso perfil que a leitura dos versos me acordara.

Pouco a pouco porém outros informadores foram surgindo, ao acaso das apresentações e das palestras, e agora um, outro ao depois, pequenos traços de luz vieram vindo, á força d'indiscrição, devo dizer, que talvez pareça violar o recato da vida intima, mas que pelo significado ultimo d'exaltação admirativa, estou que m'o perdoarão aquelles que como eu não pódem examinar uma obra d'arte, (p. 213) senão tocando-a e palpando-a, primeiro que se enthusiasmem da sua rareza e possam comungar da sua singularidade e formosura.

 

Com os informes de todos esses confidentes anonymos, pela mór parte amigos e para assim dizer vassallos graciosos, pude alfim reconstituir da gran senhora a estatua arcaica, entrevêl-a como atravéz dos veus d'um santuario, e do lado esquerdo do peito acender-lhe uma luz, que póde ser não seja alma, mas que servirá para marcar o sitio onde bateu um coração.

Morto o marido em 1891, Carolina Coronado não consentiu, por mais que a lei portugueza insistisse, em separar-se do cadaver. Veio a policia, vieram os magistrados, veio o ministro de Hespanha, veio o ministro da America, e deante de todos estes symbolos de força irrevogavel, a varonil mulher opôz a razão absurda da sua paixão esponsalicia, a aflição das suas saudades, e a ofegancia romantica dos seus zelos mortuarios. Não queria que a terra do cemitério provasse o corpo amado, (p. 214) e os adorados restos deixassem um momento d'estar sob a impressão dos seus cármes dolorosos, ouvindo-lhe todos os dias a voz, como se sob o encanto d'ella o drama da podridão custasse menos ao morto, e, sucessivamente exaladas do seu féretro, odes[1] vitaes pudessem vir impressionar e envolver de sugestão passional, o espirito amoroso, supersticioso, solitario e monjil da abandonada.

Como Joanna a doida ella acompanha, da casa de Paço d'Arcos para o palacio da Mitra, o cadaver de Justus Perry, e á força de teimosia imperiosa, de soluços, de suplicas, consegue alfim que as autoridades fechem os olhos, movidas talvez pelas imposições dos diplomaticos; quem sabe mesmo se pela feitiçaria dramatica do feito, deixando vêr n'essa estremenha uma alma do Romancero, de grandiosa esculptura e anormal poder de sugestão!

Desenove annos, n'um simples caixão de chumbo, envolto em madeiras de cedro ou (p. 215) d'ebano, o corpo de Justus Perry permaneceu na capella da Mitra, sob o fulgor perpetuo da lampada alumiando as estatuas dos nichos e os icones dos altares: até ha poucos dias irem os dois, marido e mulher, caminho do pantheon de familia, em Badajoz, onde como na vida as suas nupcias seguirão, na paz do nada.

 

Esta casa da Mitra foi não só mausuléo de Justus Perry, como tambem da Coronado, pois, salvo uma ou duas vezes que teve d'ir a Hespanha por motivos de familia ou d'interesses, nunca mais a illustre mulher deixou aquella estancia melancholica, que foi realmente o seu claustro e o seu mosteiro.

Quem passava na estrada d'aquelle laborioso e popular Poço do Bispo, em plena turbulencia dos carros de carga, dos silvantes comboios, do martelar das oficinas, do fumegar das altas chaminés, dos grupos de gente tisnada e arremangada, certo não poderia supôr que por traz d'aquellas cantarias altas e d'aquellas podridas janellas, uma creatura (p. 216) rara sofria e meditava—uma creatura d'alma heroica, da raça das Virgens d'Avila e das Donas Marias de Molina, e que aos oitenta e dois annos deslumbrava os amigos com a sua lucidez desconcertante, a sua verve picaresca, a sua eloquencia de homem, a sua belleza de rainha, e tal poder de ressurreição e recordação, que todos os fantasmas da sua mocidade viviam e existiam reaes, a cada simples apêlo dos seus dedos e estranha palavra dos seus labios, como as ressurgiria o medium Egglinton, ou Eusápia Palladini, n'alguma sessão de hermetica e telepatica.

Fechada completamente para as menores sugestões e aparições contemporaneas, não recebendo senão dois ou tres velhos amigos que lhe fallavam do passado, não chegando sequer á janella, por uma especie de horror aos inventos modernos e aos aspectos da multidão grosseira e circulante, Carolina Coronado vivia como se ha trinta annos a tivessem fechado n'uma caixa, tapando-lhe os ouvidos e os olhos para não sentir as evoluções e reviravoltas do mundo alheio e exterior.

D'aqui resultaria o que geralmente sucede aos cegos e a certos surdos-mudos perspicazes, que á mingua de sentidos proprios que lhes (p. 217) desdobrem a attenção sobre o de fóra, vêem para dentro, com força décupla; d'onde uma hyperacuidade d'imaginações, visões, uma vida febril de sonhos e quiméras, uma sagacidade felina para induzir de pequenas causas, efeitos mysteriosos e longinquos, que explica em muitos, por exemplo, suas faculdades de poetas e de musicos, de calculistas e filosofos, e na Coronado esse fulgurante poder de, em meia hora de palestra, nos abrir perspectivas profundas, de historiador e psychologo, sobre os meios sociaes e a gente illustre, ou simplesmente anedótica, que ella conhecera e tratara em tempos idos.

Graças a essas faculdades cydoramicas, a esse instincto artista da escolha de traços com que rhembrantizar e exprimir o mais intenso das personalidades e das almas, Carolina Coronado fazia-nos viver com emoção profunda quadros das tormentosas ou desvairadas epochas do reinado d'Izabel II, entre 1836 e 66.

Era o corregedor Pontejos, uma especie de intendente Manique, que elegantisou e saneou Madrid com requisitos de benemerencia e energia eguaes aos d'este, mas sem o sobrecenho despotico que a historia lhe atribue.

A aristocracia e a elegancia representando-se (p. 218) pelas casas ducaes d'Ossuna, de Liria, de Vistahermosa, de Gor, de Rivas, de Fernan-Nunez, d'Alba, de Medinacelli, de Dénia, d'Abrantes, de Frias; pelos marquezados de Miraflores, do Socorro, de Casa Riera, de Santa Cruz e de Pover; pelas casas condaes de Oñate, de S. Bernardo, de Guaqui, d'Altamira, Torre Muzquiz, etc., cujos paços disseminados pela cidade velha, verdadeiros museus d'artes sumptuarias e riquezas, se abriam d'inverno para sucessivas festas e saraus, e cujas mulheres faziam ás tardes, nos desfiles do Prado e da Castelhana, nas soirées do Theatro Real, ou nas recepções do Palacio do Oriente, revoadas esplendidas de bellezas que as memorias do tempo deixaram celebradas.

Era o tempo das primeiras emprezas d'irrigação, navegação e ferro-carris, que acordavam em todos os paizes, na ancia de renovação trazida pelo constitucionalismo, como um reverdecer de novas estações; o tempo dos grandes emprestimos para expedições coloniaes e guerras politicas, quando argentarios como Caballero, Salamanca, Ceriola, Perez-Sevane, Calderon, Benisa y Lafont, floresciam na finança hespanhola, como nas cathedraes os monagillos encarrégues, (p. 219) d'entreter o oleo das lampadas, para que a fé se não extinga, e os deuses se não vejam abandonados.

Politicos e estadistas como Arguelles, Mendizabal, Martinez de la Rosa, Calatrava, Olozaga, Herros, Narvaez, O' Donell, Espartero, Serrano, Prim.

Homens de letras como Lista, Gallego Breton, Gil e Zarata, Lopez d'Ayala, o poeta Quintana, o poeta Zorrilla, Mariano Larra (El pobrecito hablador), Vega e Hartzennbuch, Mezoner Romanos, Pedro d'Alarcon, Fernandez de los Rios, Cambronero, Juan Valera... Artistas como Ventura d'Aguilera, os esculptores Llaneces e Solá, Marinas (o autor da estatua de Velasquez), e nos seus doces recuerdos de Sevilha, os dois Becquer, mortos de fome; Valeriano o pintor, e Gustavo Adolfo, poeta d'estirpe grega, d'essencia olympica com a delicadeza e a graça d'um Hegesipe Moreau, na fantasia lunar d'um Nathaniel Hawtorne ou d'um Bret Hart.

Ouvil-a descrever, comentar, caricaturar toda esta gente, desenhando-a em dois riscos, caracterisando-a com duas anecdotas d'escolha, relampejantes sempre, e sempre finas, lançando-a na melée social, depois de que (p. 220) esquissava sumariamente as essencias directrizes e as paixões tendenciosas, era um d'estes cursos de historia fallada, uma d'estas delicias cerebraes que davam da narradora a impressão mais assombrosa, e induziam o ouvinte a ficar alli a escutal-a eternamente.

 

Ha quatro ou cinco annos que sob pretexto de notas para uns artigos sobre azulejaria artistica, consegui da residente illustre da Mitra licença para percorrer rapidamente a escada e alguns salões. De combinação, alli me esperava um amigo da dona da casa, e meu, o qual, fingindo surpreza no encontro, me apresentaria á Egéria, ao tempo sósinha em palacio, pois sua filha estava em Badajoz. Das riquezas patrimoniaes da Coronado, e das acumuladas pelo marido durante as vastas emprezas comerciaes e industriaes em que fallei, grande parte devia ter cahido em sorvedoiro, pois tudo na residencia denotava, senão estreiteza de meios, pelo menos um estado de finanças bordejando de perto a derrocada.

(p. 221) Em 1891 a casa e quinta da Mitra tinham já sido vendidas por 54 contos a certo advogado artista de Lisboa, cujas consultas então se pezaram a oiro, e que a Coronado trouxera ao seu serviço em não sei que trapalhadas juridicas, demandas, pleitos, que levariam parte dos caudaes. A escriptura de venda estabelecia a clausula de residir na Mitra a vendedora, até final de vida, e certamente o preço da propriedade fôra para liquidar os honorarios do causidico, e provavelmente cobrir compromissos ou dividas que tirariam o somno á escriptora. Ella não podia fugir á lei fatal que põe os cerebraes do ramo artista na contingencia d'ignorarem, pela mór parte, o valor do dinheiro, e a arte judenga de o fazer frutificar em especulações e trafegos rendosos.

A morte de Perry, pondo ponto na tutela sensata e escrupulosa gerencia dos fundos do casal, não teria precavido a viuva, par e passo, contra os futuros perigos de gastar sem contar, mórmente ficando as contas entregues ao zelo incerto e enganosa honradez d'administradores e feitores, que são bons ou máus conforme a fiscalisação a que os sujeitam.

(p. 222) Está-se a vêr o mecanismo porque, morto o marido, a Coronado transita da fartura cómoda para a escassez molesta e tragica.

É sempre o mesmo, n'estes navios onde o piloto falta, e onde a tripulação perde o respeito. Corro pois uma gaze sobre este lance da historia, que de resto só entristeceria o leitor contra as injustiças da vida, e passo a dizer que a minha apresentação foi captivante, e a illustre escriptora, em quatro palavras d'aquella cordealidade hespanhola que em cortezia familiar nenhuma eguala, pôz a minha alma rendida deante do gesto infinitamente nobre da sua mão d'abadessa e imperatriz viuva, que pude alfim beijar, mui reverente.

Com um vestido de velludo preto, de cauda, branca de neve, os imensos olhos de velludo molhado, que o fulgor do genio rejuvenescia no leve engêlho das póchas orbitarias, Carolina Coronado aos 82 annos era uma mulher alta e direita, de talhe esbelto, por ter ficado magra, e com dois bandós nas fontes, frizados e nevados, como esses que os retratos dão á rainha Izabel II nos seus ultimos annos de Paris.

Fallava um hespanhol claro e castiço, florido (p. 223) de modismos que pela graça rebuscada tinham um oloroso sabor de lingua velha; hespanhol de provincia classica e de convento, que seria o fallado entre a gente bem educada de ha meio seculo.

Ás minhas palavras de saudação, ella, certo para atalhar o discurso, e evitar talvez que eu me estendesse, perguntou-me se era de Lisboa; e conhecida a minha origem transtagana e a terra de charnéca onde eu nascera, acrescentou que então eramos quasi vizinhos, pois Villa de Frades distaria talvez uma duzia de legoas d'Almendralejo e La Serena, a patria da sua familia, em cujas parochias tinham banco fechado os Romeros Tejadas e os Coronados Cortez d'aquellas terras. Envaidecia-a, de resto a sua origem estremenha sem mistura. Ha dois sitios de Hespanha que imprimem caracter proprio aos naturaes: Estremadura e Aragão. D'alli teem sahido artistas, guerreiros e politicos d'excepcional fragor e intensidade.

—Se eu tinha viajado em Hespanha?

Todo o hespanhol é sedentario e bairrista, porém o portuguez quasi que o excede... De resto, para um portuguez viajar em Hespanha, é percorrer um pouco a sua terra. (p. 224) «Hespanhoes, resumiu ella, somos todos nós, os peninsulares».

E de repente, voltando-se para mim—Se eu era iberico?

Cuido ter feito um gesto que, imperceptivel embora, contudo a minha interpelante colheu, al primer vuelo, medindo n'elle a patriotice chocada em leituras da Filippa de Vilhena e outros canastrões theatraes archisandeus.

No se moleste usted. No es mas que hablar, contraveio logo com o mais gracioso gesto d'acalmia. E foi dizendo:

—Tinha sido o erro de Filippe II, tão grande politico, não transferir logo para Lisboa a capital do reino unido. Se assim tem feito, Portugal e Hespanha estariam hoje abraçados n'uma nacionalidade unica e pujante, o que evitaria a ambos a decadencia funesta que durando vem té ao presente. De mais que, segundo as datas da historia fidedigna, a perda da independencia não foi tão dolorosa a Portugal como se diz nos manuaes para as escolas. Em toda a parte os povos mechem-se principalmente por interesses, e os primeiros passos da dominação hespanhola em Lisboa foram até sympathicos (p. 225) á população, sobre quem Filippe II exerceu uma atracção benevola e singular...

Um erro deploravel! Os nossos dois paizes reunidos ficariam na carta com uma massa de territorio maior que a França, e as suas colonias somadas dariam um dominio colonial superior ao da Inglaterra.

Tinhamos tomado assento na ultima de tres salas que formam a parada de recepção da residencia, e que com quatro janellas de varanda sobre a rua, e duas janellas-portas ao terraço, tinham luz deslumbrante, em grandes resteas de sol primaveral.

Tudo no mobiliario velho e desbotados tons das braçadeiras, cortinas e alcatifas, chorava a tristeza pudica das coisas de luxo que a penuria assedia, e teem de morrer em serviço, como os cavallos velhos nas carroças. Cadeiras modernas de Vienna alternavam com esplendidas poltronas e sofás, cuja seda o sol e o roçar das cabeças fanára e mesmo tinha esgarçado em certos pontos. Nas carpets de preço, gusano e pés tinham já consumido a lã das flores e dos desenhos apparecendo a trama em séries de cordas varicósas.

A alguns moveis artisticos faltavam-lhes ferragens, precisavam ser refrescados e envernizados; (p. 226) jarras da India, sobre columnas, voltavam para a parede os buracos e as rachas dos desastres; casaes de pombos, livres pela casa, tinham feito ninho sob um bufete, borrando tudo; e até, n'uma estante lindissima, os proprios livros amigos, confidentes de dores e desalentos, até esses tinham um ar d'exilados, e o geito de nos dizer que o seu tempo passára, e lhes doía a velhice e as suas imensas saüdades de Madrid...

De pé, na sala, a illustre senhora mostrava pela janella aberta aquella enseada morta de tres leguas que o lisboeta chama mar da palha. A outra margem silhuetava no azul sua paysagem terna e esfumadiça.

—Diga-me se isto não é a rada d'uma cidade de dois ou tres milhões de habitantes, chave do comercio atlantico, e capital soberana da Iberia una e congraçada.

Eu por mim não queria saber da tal Iberia una, reconhecendo entretanto que o erro de Filippe II impedira talvez a realisação d'um bello sonho de nacionalidade formidavel, enquanto na hora presente, com dois paizes egualmente preguiçosos e incapazes, loucura fosse ajuntar misérias que já dolorosas eram, separadas.

(p. 227) A enseada do Tejo é que verdadeiramente prendia os meus olhares, vasta, amorosa, em azul pallido, listrada de correntes, e com placas espelhadas d'agua morta. Algum vaporeto passava para Aldegallega ou Barreiro, fumando distrahidamente o seu charuto; alguma falúa ou barco de pesca desfraldava a véla de guião, quadrada, vermelha com a latina á pôpa, e aquelle gesto airoso, ideal, gaivotal, de fender a agua, patinando. Aquillo lembrava em Veneza as travessias para o Lido, sob os esverdeados céus do Adriatico, por uma tarde assim primaveral.

Entanto, por uma escadaria de balaustres, tinhamos descido ao jardim, do seculo XVII, todo em meandros e porticos de buxo, que de resto ha muitos annos ninguem tosquiava, e canteiros adentro mantinha uma desordem d'arbustos sem trato, e hervas bravas crescendo á doida, como nos pouzios da devêza, ao Deus dará.

—E de leitura hespanhola, como vamos? Aventurei varios nomes de modernos: Pio Baroja, Benavente, Rusiñol, Felippe Trigo, Antonio Palomero, Anton del Olmet, Lopez Barbadillo, Ciges Aparicio, Isaac Muñoz, que ella pareceu escutar sem conhecer.

(p. 228) —E Juan Valera? interrogou.

—Conheço.

—Lopez d'Ayala?

—Sim.

—Campoamor, Nuñez d'Arce, Menendez Pelayo...

—Um pouco, um pouco.

—Pereda, Galdós, La Pardo...

—Sim, sim, tudo isso li.

Hombre, exclamou ella com uma acerada ponta ironica. Es usted un portugués mui sabionado.

—Que quer! A lingua hespanhola tem para mim um prestigio e uma musica que me não canço d'ouvir e de gostar. É uma lingua de guerreiros e d'oradores, para hymnos e para suplicas, compativel com a expressão de todos os estados emotivos. Ella sorrindo, repetia o proloquio:

—Falla francez ao teu cozinheiro, inglez ao teu cavallo, alemão ao teu cão, e hespanhol á mulher que mais te agrade...

Tinhamos vindo ao cabo do jardim, e por uma porta de ferro chegamos a um grande trecho murado de floresta ou bosque, onde a vegetação deixada ao esbracejar liberrimo de vint'annos, apagava o torcicollo das ruas, (p. 229) emaranhando para todos os lados, labyrinthos de folhas e de ramas.

Aquillo lembrava o Paradou da Faute de Zola, com a noite glauca dos macissos, as lucarnas das cópas deixando feixes de luz zebrarem d'esmeraldas liquidas os fundos. Uma aluvião de melros silvava, uma guarda de honra de passaros respondia.

Era recolhido, intimo, profundo, e ouvia-se, não sei onde, um tenue telingar d'agua corrente. E eu lhe disse erguendo a vista áquella intensa ablução d'asas e folhas:

—Aqui se vive em plena natureza.

E ella tornou:

—Não. Aqui se morre em plena soledade.(Voltar ao Conteúdo)

(p. 231) A EMINENTE ACTRIZ

Cahiu o panno entre chamadas ovantes, gente de pé nas cadeiras, debruçada dos camarotes, e em chusma junto ás portinhas de sahida, acotovelando-se, clamando, bravo! bravo! A geral estava deserta, um grupo ao meio da sala berrava, fóra o auctor.

E quando elle veio de casaca, agradecer com aquelle seu geito modesto, muito risonho e de rosa amarella na botoeira, a sala aqueceu ainda, houve bravos, e o Moreira das magicas, enfiando o pardessus, disse para um desenterrado de luneta, com a sua bella emphase de auctor laureado:

—Vae longe, este camello, sim senhor, vae longe.

—É possivel, opinou seccamente o desenterrado, e a cabecita em pyramide, com pellos (p. 232) de rato sobre a testa, pendulava-lhe para um lado e outro, desengonçada sobre o gasnate côr de moka. E puxando amigo Moreira de parte, olho acceso em iras biliosas, o plastron descosido, disse alli que a peça não tinha fundo, que o estylo era rocambolesco, e toda a litteratura devia mirar um intuito critico, sem o que ficaria um brinquedo de gaiatos. E que se em Portugal o publico desprezava litteratos, e podia passar sem o que elles exgregavam nas gazetas, a razão era taes litteratos serem mais ignorantes, ou menos intelligentes, que a multidão a que se pretendiam impôr.

—Que damnada lingua me sahiste! dizia Moreira das magicas, com pancadinhas d'applauso no hombro do desenterrado.—Baixava a voz para insuflar, que em parte assim era. Todavia exceptuava muita gente. Ahi está o José Maria, por exemplo. O nosso Mendes Leal, tão conceituado lá fóra. E este, e aquelle...

—Eu creio bem, argumentava o da luneta, que no meio d'esta sucia, por engano, ha talento uma ou outra vez. Mas diabo! Não estamos já nos soláos do Serpa, nem no Conde Alarcos do Cunha. Dêem alguma coisa mais do que phrases ôcas, meus senhores! A formula (p. 233) litteraria é apenas vehiculo da ideia, e não pode tornar-se em preoccupação, como ahi estamos vendo. Mais! Quer-se em toda a obra um ponto de vista elevado e philosophico que a domine. Eis o que não ha n'essas mioleiras, meu filho! Veja-me vossê o Pimentel, que esses localistas parvos andam a proclamar nas gazetas. Idiota! E vou-lhe ás ventas; vou! E o menino Felix de Macedo, mais o cretino Fernandes! Ocos que nem uma cabaça, immortaloides de redacção, sem testa, nem estudo, nem officio. Que tenho eu que vêr com tal romance ou tal drama, com tal phenomeno scientifico ou tal processo de pintar, se estas coisas me apparecerem abstractamente, sem uma orientação que as filie e correlacione n'uma dada corrente—não sei se me faço entender?

Com o largo aceno de quem trunca pela base a tolice humana, estabelecia—que tudo vinha sob dependencias e condições, facto moral ou facto physico. Tal livro é effeito do livro anterior, e causa do posterior, como tal estado politico ou mental, derivam do estado anterior, e preparam o que depois vier. E desgraçada a geração que por sua anarchia psychica não sabe fazer progredir (p. 234) um systhema, assimilar um código de doutrinas, desenvolver e tornar perfeito qualquer ideal em arte.

Ás vezes, é o povo que por ignorancia repudia a lei nova; cabe aos escriptores, aos homens politicos, e aos artistas, uma lucta sem treguas em prol da conversão ao credo ambicionado. Eis o naturalismo expulsando da arte os romanticos, em meio das repugnancias geraes.

Mas acontece—e o desenterrado levou á parede o Moreira das magicas, enfiando-lhe um dedito successivamente pelas diversas casas do collete branco—acontece um bello dia, haver mais illustração na massa que no grupo dirigente d'artistas e pensadores. Em tal caso, a massa vota legitimamente ao desprezo aquelles nigromantes. É o que se está dando entre nós co'a politica e litteratura. A corrupção dos partidos dá de si...

Moreira escancarava a queixada num bocejo desopilante: quando uma rebanhada de talentos da geração novissima furou por entre os conversadores, ao tempo do desenterrado citar Beaumarchais, Ben Johnson, e aquelle pobre Molière, coitado! No entanto o theatro esvasiava ao de manso. A ribalta extinguira-se, (p. 235) os da orchestra enfiavam os instrumentos em saccos de chita e erguiam as golas para sahir. Aqui e além, nas ultimas ordens, um arrastar de cadeiras soava ainda, vozes chamando, risos altos, e um deserto fazia-se na sala, sob a agonia do lustre, e o cynismo do relogio que marcava cinco horas, havia mais de sete annos.

Fôra a primeira representação dos Dois Rivaes na Côrte, quatro actos de capa e espada escorrendo phrases feitas n'um entrecho infantilmente pavoroso, onde as personagens se davam o vós comparando-se ao systema planetario, e reforçando os lances de effeito, com allusões aos phenomenos atmosphericos e biblicos mais assustadores... o raio em sua furia indomita, o diluvio, pragas do Egypto, miseria de Job... havendo um monologo sobre a capa de José, que os fauteuils tinham mimoseado com surdos bravos d'adhesão. A peça era estreia de Rogério, Rogério Vasques, primo da Alcina, moço que por tão raro trabalho tomára definitivamente logar na phalange dos nossos mais talentosos escriptores, pelo que felicitamos o nosso amigo, diziam os jornaes. Um triumpho completo, os Rivaes na Côrte! Critico Borbas, do Seculo, tão exigente (p. 236) em coisas de palco, parado no camarim da Velledo, recitára com voz lacrimejante, no fim do acto, aquelle bocado da separação—parto, o coração me fica suspenso n'estas paredes, testemunhas de tanto perdido amor! Só vós, ó Conegundes de minha alma, conhecereis a fundo este báratro d'angustias, que como o universal diluvio...

Ah, mas como o Taveira dizia aquillo!

Dias antes, toda a litteratura em evidencia recebera do joven dramaturgo um amavel convite de ceia na sala grande do Central, á hora de acabar a primeira representação. Tinha sido um regosijo fremente. Aquelle Vasques, bello moço, que talento maleavel, e tão instruido! Com que então Champagne fino? Um pouco prejudicado em preconceitos d'escóla talvez.

Genial Pirralho, todo cheviote amarello, bigodeira mephistophelica e o grande ar de Paris, tinha mesmo dito—é um temperamento. E o menu passava de bocca em bocca.

 

Deixando Alcina, Rogério não foi mais o bonifrate de provincia com preoccupações de Chiado, ares de saude camponia, e ingenuidades (p. 237) de primeiro amante. Gastára no convivio d'actores, janotas, litteratos, cocheiros, e femeas avariadas, toda a bruteza sincera e boa que na educação caseira adquirira. E hypotecando as ultimas migalhas de herança, dormindo fóra, bebendo e jogando ás noites, tornava-se pedante, depravado, amarello e pulha.

O theatro d'opereta em que primeiro Alcina estivera escripturada, tinha sido para ambos a melhor escóla pratica de malandrice e usura. Alli, cada figurante de scena ou frequentador de camarim, dir-se-hia passar os dias na cogitação de explorar quem apparecesse á noite com cara de tolo. Apenas Rogério, tendo a prima por amante, começou de acompanhal-a ao theatro todas as noites, e a fazer na ausencia d'ella, a quem chegava, as honras do camarim, viu-se logo rodeado por uma série de ratos de bastidor e polvos de redacção—gente faminta, intrigante, educada a comboiar boatos, cartinhas, subscripções, pequenas calumnias de casa d'um para casa d'outro—que ia girando n'uma baixeza d'inveja á roda dos charutos fumados, das correntes de relogio, impingindo bilhetes de beneficio, offerecendo-se para alcovitar, com (p. 238) pormenores de creada sobre as pernas d'uma, os amigos d'outra, os seios d'esta e os cabellos d'aquella... todo o arsenal de canalhice exigido em curso para tão equivoco mister. Desengalfinhado d'esta tropa á custa de generosidades forçadas, desprezos, empuxões, até soccos, Rogério teve de rechaçar depois uma ciganagem d'outro genero, amabilissima, risonha, com emphases altivas, articulando as palavras musicalmente, pondo luvas frescas todos os dias, e tendo o nome a ouro nos annaes das lettras e das artes. Eram os grandes actores da cidade, todos os generos e theatros, paes nobres, ingenuas, galãs, graciosos—tenores tysicos, barytonos sem voz, e essa variedade neutra de comediantes cognominados entre nós de conscienciosos ou diseurs, que serve para tudo e goza a estima dos auctores, em razão do merito reles que exhibe, de jámais desmanchar o conjuncto.

Eram tambem escriptores intermedios, amanuensando das onze ás quatro, fazendo jornal das quatro ás onze, finorios chouteando na esteira dos gabinetes corrompidos, em faro de boa posta, louvando aqui a vaidade dos ministros, além atirando lama ás ventas dos adversarios, em eternos clamores contra a (p. 239) decadencia dos costumes, mas rindo por dentro de tudo, tudo ouvindo, sabendo tudo, explorando com tudo, e exhibindo-se em publico os ares de grandeza impeccavel, que Vautrin recomendava aos Rastignac e de Marsay que lhe sahiam do ventre. Rogério amou esta camaradagem nova, que nos seus annos de provincia tanto admirára atravez das hyperboles dos diários. E por influencia de contacto, relações, letras assignadas, condescendencias d'Alcina, jantares, e uma bicharia d'assignaturas para publicações que falliam ou não chegavam a ver a luz, acordou tambem litterato certa manhã. Entrado na imprensa fez subir Alcina, que sem voz a esse tempo, debandava para o drama, já tão magra e lombricoide, que não era senhora d'engulir uma pilula, sem os jornaes a dizerem gravida de cinco meses. Esta ligação d'Alcina com o primo durou pouco, vindo a ser truncada apenas apresentaram Rogério á Velledo. Alcina era ciumenta e teimosa; um nadinha infiel além d'isso! Não resistindo ás furias de prazer exigidas pelo seu temperamento frenetico, a sua franzina e pobre organização murchava e cahia. De manhã estava côr de morta, seios sorvados, olheiras á bocca, olhos imbecis, e um ar (p. 240) de prostração assustador, casado com uns reflexos glaucos, que raiando-lhe das fontes, aos cantos das orbitas, iam terminar n'uma griffe de ruga.

E vinte e quatro annos apenas!

—Não bebas, muitas vezes lhe dizia Rogério, vendo-a engulir entre chavenas de café e charutos fortes, uma quantidade de calices de cognac. Mas ella sempre gostando. Ora adeus! Até punha fortaleza, voz mais alta, o espirito vivo como um passaro. Depois tão petulante a beber!... A viveza com que molhava a linguinha rutilante no licôr esbraseado, revirando aquelles extraordinarios olhos pretos, humidos, audazes, cheios de ganas secretas, que a salvavam ainda pelo fluido calido em que ardiam, e de grandes que eram lhe faziam a cara pequenina!...

—Não é tudo, disse-me Rogério uma occasião no Aterro. Beber é mau, mas perdoava-lhe, que diabo! Com o cognac porém, vieram os vicios supplementares, que de resto não aprecio nas mulheres, nem estava para subsidiar em proveito dos devassos que iam lá por casa. Entende vossê?

Escrevia elle folhetins na Gazeta do Sport, chronica da alta-vida segundo a testada, e (p. 241) bastante mal escripta para se crer que assim era. Esses folhetins fizeram-no celebre, secretario d'um gremio d'escriptores, successivamente premiado de Mont-Real e irmão dos terceiros. Centros de litteratura amena e critica austera, livrarias com cavaco e sociedades com bilhar, brindaram por elle. Deitou almanach com bocadinhos democraticos, e um juizo do anno em que era ameaçado o throno. Lindôso, que era quebrado, e ás bancas do Martinho maravilhava localistas myopes e uma quantidade d'aspirantes, abraçava-o em publico com palavras de pompa. E por duzias, os albuns, os semanarios e jornalecos de districto, reclamavam trechos d'essa penna hilariante que gottejava sol peninsular, ortographia sonica, e mesmo asneiras, querendo Nosso Senhor. Discutiam-no. Já lhe davam escóla e processo de factura. Era um moderado, um joven ecletico, meio romantico, meio positivista, com predilecções d'assumptos doces e a ambição das finas coisas mundanas, cheio d'imagens originaes, chispando mordentes graças, vigoroso e probo, tendo os nervos irritaveis d'uma mulher. Na frente, como chocas, os jornaes iam conclamando unisonos:

(p. 242) —O talentoso amigo e brilhante escriptor...

Uma das bellas organizações da Peninsula...

Erguiam-no em rival de Lindôso, que a tantos se afigurava um prodigio além de toda a espectativa. Festejado Peres nem dizia sim, nem não. Deixar vêr! E o colossal Pirralho advertia que não era bom thuribular debutantes, que podiam perder-se de vaidade, imaginando-se deuses.

E n'uma vocalisação emphatica:

—É o defeito dos homens do Meio-Dia, onde os temperamentos são cálidos, e os modelos a seguir não abundam. Quando encetámos a nossa publicação critica, era notoria a esterilidade litteraria em Portugal...

Mas Horacio fazia um passo no grupo, armado dos seus oculos de ferro, nisa curta, um pigarrinho erudito. E cuspilhando:

—Systematisemos a these, conforme o proceder do meu Comte!

 

Os convidados por Rogério tinham ordem de reunir no foyer, findo o espectaculo. A peça acabára tarde, duas da noite; e primeiro que (p. 243) a Velledo apparecesse, tiveram d'esperar boa hora e meia. Emtanto falava-se da peça. Estava o melhor da litteratura e da arte. E faziam-se apresentações. Festejado Peres trinta annos de dramas historicos com applausos freneticos, rapoza velha em coisas scenicas, conforme corria, apresentou a Rogério o grande Aurelio, uma gloria da scena, interprete das suas creações, de quem Doux dissera n'um atonismo absorto:

C'est un petit prodige, ce marmot là. E a phrase ficára celebre. Aquella apresentação penhorára Rogério, que muito commovido, voz mansa agradecia com ar modesto. Além o pensador Horacio que fazia as primeiras carambolas na cervejaria e continuava virgem de contacto impuro, definia a arte segundo Comte ao Moreira das magicas e sainetes, emquanto Pirralho dizia a vida na Comédie Française, o ceremonial d'entrada no foyer, e como Croizette era a musa dramatica moderna. Bulia em volta a ninhada d'esperançosos côr de cidrão, ganymedes que se davam ares, corcovando a espinha e rindo alto das facecias do mestre, com o faro na ceia offerecida. E o mestre esfogueteava pela sciencia em citações vehementes, fuzilando, causticando, (p. 244) vibrando a nota heroi-comica, que na sua proza fazia o delirio dos discipulos e a admiração do publico. Reinava grande cordealidade. Pae nobre Tiburcio, que desde o desastre da Filha Roubada, não falava ao inflexivel Borbas, veio lacrimoso abraçal-o pelas costas. E em volta acharam bonito, e houve beijos como entre damas. Rogério ia radiante por todos os grupos, abraçado, elogiado, n'uma effusão d'intimidade que lhe punha o coração nas mãos. Não se ouvia á sua passagem senão palavras quentes, bocados de critica enthusiastica: a maior vocação, o mais extraordinario dramaturgo entre os modernos, um dos maiores da Peninsula—e explendidissimo, scintillantissimo—e como Sardou, e como Dumas filho, e como o velho Augier... Os famintos tiravam o relogio, chamavam-no de parte, davam-lhe tu, relembrando que tinham andado no mesmo collegio, muito amigos sempre, não te lembras? Mas quem diria! Rogério, o 34, tão enfezadito de cara, cheio de zeros em portuguez, e sahir-se agora um escriptor d'aquella alçada! Elle a todos dava uma boa palavra, pedindo opiniões em separado sobre a peça; o que esperava era franqueza, visto não arder nos orgulhos (p. 245) balofos de certas sumidades. Moreira tinha-lhe achado grande fundo historico, côr local como o diabo—sim senhor—e que pena terem cortado o sarau do terceiro acto! De resto afigurava-se-lhe D. Fagundes o seu tanto herético para uma plateia de damas. No theatro, na escóla e no templo, a religião primeiro que tudo: já Garrett o escrevera. Bem sabia que o espirito moderno... E muitos parabens.

Mas festejado Peres, saracoteando a nalga roliça:

—Meu Rogério, disse elle cingindo o dramaturgo, has-de conceder-me, conceder-me, que tenha a sciencia do drama historico... drama historico... tão descurada pelos rapazes de hoje, rapazes de hoje... Já o fiz saber no prologo da minha Duqueza de Bragança... de Bragança. Eu cá, escrupulosissimo no theatro. Será casmurrice, eh! eh! casmurrice... mania de velho; deixal-o ser!... Hein? deixal-o ser. Missonier, antes d'algum quadro militar... quadro militar... até estudava os botões dos fardamentos... eh! eh! dos fardamentos. Eis onde eu levo o escrupulo tambem... E o publico dá palmas... dá palmas. Posto isto, e como teu amigo que (p. 246) sou... teu amigo... sempre direi que commetteste um crime de lesa historia... eh! eh! lesa historia... pondo compota de pecego no festim de Januario de Mendanha... compota de pecego.—E de chapéu alto para a nuca, as orelhas despegadas do craneo, o grande homem recordava um d'esses burros com mitra, arrancados ás festas dos doidos, nas cathedraes da Edade Média.

—Pelo correr do seculo quatorze... seculo quatorze... proseguiu elle, não era conhecida no reino aquella doçaria, conhecida no reino... que só remonta ao ultimo quartel do seculo dezeseis, eh! eh! seculo dezeseis... Consulta Viterbo, fr. Bernardo de Brito, o abbade Castro, abbade Castro... Este pormenor não é futil, como parece, futil... porquanto é da compota de pecego, da compota... que sáe a grande scena do terceiro acto, a grande scena... aliás magistral, sem favor, magistral! Linguagem vernacula, linguagem Herculano... lá isso sim, meu velho, isso sim... Falta talvez o fundo historico, eh! eh! fundo historico... vacillações na côr local, hein? côr local... Mas és novo, coisas d'estas só veem na minha edade... na minha edade. E aqui para nós, hein? para (p. 247) nós. Vão sendo horas de manducar uma bucha, manducar.

Rogério ardia por ouvir Borbas, e sobre todos o desenterrado, Lindôso de nome, critico d'altos processos, por muitos calumniado de precoce e viridente genio das raças modernas, o manitanço! Mas sentiu-se um froufrou de sedas no escadim doirado do foyer, e uma voz argentina e alta em que dominava o grave, disse duas vezes ou tres, risonhamente:

—Boas noites, boas noites!

Era a Velledo. E atraz d'ella pelo braço d'actores, maridos ou coisa parecida, outras actrizes se mostraram, a Laura, a Elisa, a Maria Freitas... Os trens esperavam á porta do theatro. Falando ao mesmo tempo, n'uma alegria de boa gente que alarga o coração, essa sociedade foi abandonando o foyer. Havia de todos os generos, modestos, espirituosos, eruditos, familiares, calemburistas, os de má lingua, os de má fama, e trambolhos lyricos, gente infeliz ao jogo e fanada de orgia. Aprumado e grandioso, ia Pirralho no meio dos seus discipulos, citando descobertas e ramos de sciencia que mais peso causavam no seu caco de homem celebre, pelo arrevezado (p. 248) das designações, forçando os contrastes, e querendo achar a nota original das coisas por um burlesco d'encomenda. No alarde d'erudição e individualidade que o preocupava, as citações saltavam-lhe aos magotes, desordenadas, occasionaes, n'um fogo d'artificio a duas côres. Ás vezes calava-se interdicto, circunvagando as lunetas, na desconfiança de haver sido vulgar como a outra gente. Mas rodeavam-n'o para algum paradoxo applaudido, farejavam-n'o os discipulos por todos os lados, inquietos, com a gargalhada prestes, tendo nos olhos piscos o deslumbramento das gravatas do grande homem, os seus sapatorros inglezes, e o largo gesto que parecia ceifar de roda as mediocridades que de longe vinham recolher palavras da sua bocca de semi-deus.

De seu lado, o desenterrado Lindôso abotoava modestamente o casaco de botões recomidos e cotovellos surrados, não tendo ainda coterie; e humilde, olho aceso, faulhava d'inveja sobre os que iam de braço com femeas, sentindo as primeiras seccuras do amor vicioso. Então foi um movimento alegre de partida, um borborinho de risos e vozes que já não procuravam entender-se. As senhoras carregavam (p. 249) sobre a fronte os capuzes das sorties-de-bal, rendas de froco, ou simples tules picados de abelhas de oiro; e pela escada, apanhando os vestidos n'um desleixo provocante, mostravam meias de seda bordadas de lado, e esses primeiros lineamentos da perna, que lembram contornos de jarra etrusca, pela expansão esvasada e alta das curvas. Laura, uma loira redondinha que findava o primeiro amante, borboleteava pelo braço do festejado Peres, cujos sessenta mantinham pretensões ainda de galanteria e elegancia. E a cada passo ella deitava-lhe a cabecinha no hombro, mostrando os dentes miudos. Maria Freitas era uma grande morena, esqueletica e muda, a quem davam papeis de velha, para que sempre tivera vocação. Não tinha amor permanente, e como quartos d'estalagem, alugava a quem vinha, o seu coração hospitaleiro. Entanto as collegas toleravam-na, porque apesar de tudo era util, e pelo contraste fazia as outras virtuosas. Declinando nos quarenta e cinco, os olhos de Elisa começavam a turbar-se, cercados de pequeninas rugas nas palpebras, como os dos papagaios moribundos: e apenas lá longe, nos dias de crise frenetica, se incendiam ante collegiaes (p. 250) frescos, d'ar timido e riso doce. Era uma gorda pintada de branco, cheia de signaes, grande talento de comedia, e tendo pelas mulheres o desprezo d'um homem. E o cortejo ordenava-se, desfilando direito á rua. Rogério deixára-se ficar, na esperança de dar o braço á Velledo, que tambem aguardava o quer que fosse. E quando ia offerecer-se, viu-a voltar-se contra o brasileiro, pôr-lhe no hombro a mãosinha calçada em luva de canhão molle, a dizer-lhe com a bella voz de scena:

—O meu amigo será bastante bom para me deixar o seu braço?

Ficou attonito a semelhante desfeita! Quanto por ella tinha feito era sem preço—a ceia, o drama, as toilettes d'apparato... E enxotado! Mas jurou alli mesmo uma desforra estrondosa. Quando chegou á rua, já toda a sociedade se estava armazenando nos trens. Elisa abandonára os velhotes que a tinham comboiado escada abaixo, para n'uma velha tipoia se enroscar entre os seus ricos frangãos da geração moderna, aos empurrões em pae Tiburcio, e mandando á fava a historia brejeira que elle insistia em contar-lhe. Maria Freitas installou-se nos joelhos de (p. 251) Moreira, n'um pequeno coupé d'aluguer, á direita do festejado Peres, e á esquerda d'um revolucionario côr de melão, que insubordinava Alcantara com discursos socialistas. No meio da rua, mordendo o bigode com melancholias de birrento, Rogério procurava companhia de mulher, olhando quem se ajoujava nos trens. Viu Borbas estender os braços de dentro d'um carro, e puxar Laura, a quem genial Pirralho, dizendo-se Hamlet, chamava a sua pallida Ophelia. De duas carruagens ou tres, vozes chamavam brejeiramente a rapariga; e como doida, ella ria de cabeça para traz entre os desavergonhados, debatendo-se na furia dos abraços. Hirto como um lacaio, o brasileiro escancarava a portinhola d'um bello carro de noite, servido por cavallos claros, e moços de taboa aguardando de pé que ella entrasse. A eminente actriz circunvagava a vista em procura d'alguem. Como Rogério se tinha approximado um pouco, á semelhança d'estes cães batidos que veem de rastos para o dono, ella, n'um rir cascalhado, disse-lhe assim:

—Ouvi que não tinha gostado do meu desempenho no segundo acto. Um homem difficil, o senhor. O monologo então, detestavel! Mas (p. 252) podia ter-m'o ensaiado, com o seu ponto de vista.

—Mas, atalhou o pobre auctor balbuciante, eu não disse...

—Se a peça tem musica, foi ella dizendo com volubilidade, quem fazia uma creação unica, por certo, era a prodigiosa Alcina. Sua prima! E a proposito. Que faz isso agora?

—É cruel o que está a dizer.

—Justiça ao merito e mais nada. Assim, prejudiquei-lhe o debute... Que infeliz eu tenho sido com os genios d'incubação demorada! Talvez inda arranje um remorsosinho por tanta incapacidade.

—Lá se lhe é agradavel fazer-me soffrer...

—Diga á Laura que tem logar aqui. Ella só—e como elle aventurava desculpas n'um tom de collegial submisso:—mau! perdemos tempo.

Rogério foi chamar a ingenua, que parou logo de rir, e sem dar boas noites aos que pensavam detel-a, veio lesta anichar-se no carro da Velledo; e foi em surdina uma altercação entre as duas. O brasileiro atirou a portinhola, e rodaram sem fazer caso de Rogério. Quando um pobresinho gemeu ao pé do dramaturgo:

(p. 253) —E eu?—Era o pensador Horacio tiritando sob a nisa rapada, com olhos de fome e gestos vasios de mãos.

—Que é? perdeu o capote? disse Rogério distrahidamente.

—Não acho logar, meu bom amigo.

—Pois enfie por ahi, grande massador.

—Ponhamos a questão nos devidos termos, ia começando o desgraçado. Enfiar seria...—mas Rogério agarrou-o pelos fundilhos, ergueu-o do chão vigorosamente, e arrumou com elle para a almofada d'um cocheiro.

—Nós cá, pronunciou Lindôso dando o braço ao dramaturgo, iremos a pé, ha tempo de sobra. E venha de lá um charuto ao seu amigo, venham de lá dois!

 

—Não me dirás, começou elle, porque razão pouzam com tamanha filaucia estas sirigaitas d'actrizitas, que segundo parece, fazem a honra de ter por mim o mais tocante desprezo? Que diabo! Antinoüs não era positivamente meu pae. Mas sinto-me bastante feio para ser sympathico a uma mulher; e a lingua em que solicito d'ellas algum favor pequenino, (p. 254) pequenino, é um portuguez todo metaphoras côr de ceu, e com o agridoce das ginjas garrafaes. Já digo, é-me odiosa a meia mascara. Mulher completamente honesta, ou então mulher completamente perdida. Nada de meios termos! Contempla agora tu o monstrosinho defecante que se chama a femea dos nossos palcos, especie de tatu dessorado e desgeitoso, que nem arte põe no prazer, nem teve a coragem de se conservar intacta de culpa. Borbas garante, que nunca alguem primiu polpa de actriz luzitana, donde não sahisse logo algodão, palha de centeio ou cautchu. Olha que ha-de ser do clima.—E depois de um silencio—Dize cá. De que ceu artistico choveu esta Velledo, a quem dizem tanta coisa em superlativo? Mas tem o ar d'uma maritornes, essa dona, meu filho! Hombros, talvez, não discuto... Mas como artista, é uma tragica de feira. Mulher boa para sophá d'um pernambucano. E concedamos-lhe que encha Alpalhão d'assombro. Mas d'ahi ao talento, que insondavel abysmo vae!...

—Eis o que eu digo tambem, notou Rogério, picado.

—Pois meu filho, o asteroide dispõe do mais quantioso orgulho, que tenho visto (p. 255) fazer teia em cabeça oca de mulher. O modo de receber então. Lembra a rainha Dobrada, esposa de S. M. Termo tinto, dando beijamão aos aguadeiros. Eu vivo retirado, e não tinha ainda podido escutar tamanho obelisco dramatico. A tua peça arrastou-me, não admira, arrastou-me. Pois querido, agradece-lhe, estragou-te a obra, comprometteu-te, achatou-te. Cuidas que és ainda o Vasques? Mas não! Estás feito n'um pataco macanjo.

E como o outro ria, o desenterrado proseguiu:

—O segundo acto então, fez-t'o ella em frangalhos. Que falta d'intenção, que gaucherie de piso scenico, que berros e que tregeitos de maritornes! Castello Picão e Rua das Trinas jouant la duchesse. E todavia ha n'esse acto um monologo, artificial como reconstituição historica, porém habilmente instrumentado como crescendo d'estylo.

—Ah, reparaste? disse o outro animando-se. Estragou-m'o ella. Imagina que acaba de me passar uma sarabanda em fórma, só de me vêr frio no fim do segundo acto. Sabe que me faz doido de desejos, abusa d'esta fraqueza, e dia por dia, hora por hora, me tortura. (p. 256) Se lhe vou dizer qualquer coisa, é capaz de não representar mais a peça.

—Eu a arranjo, deixa tu estar.

—Diabo! não lhe vás para ahi dizer...

—Homem, não ponhas a tua cubiça pela femea acima do teu amor pela arte. Ou se é artista ao sacrificio, ou se muda de rumo. Zurzamos esta corja, que ha tudo a ganhar com a campanha. Porque emfim! Dirigimos nós ou não dirigimos a opinião? Sendo assim, não te parece crime sem fiança estarmos tolerando a desmoralisação que ahi se vê por todos os ramos litterarios? Mas onde vai isto parar? A nossa lingua acanalhada d'estrangeirismos parvos e inuteis. O bello ideal de Garret, colhido no elemento tradiccional, posto de banda. Um tropel de cavalgaduras colligadas pelo rèclamo, tolhendo o passo aos talentos validos. Litteratura ingloria, atravessadiça e somnambula. Litteratura filha de paes incognitos. Peste! insistia, cuspindo, o desenterrado—e animando-se:

—O quadro é flagrante, e não necessita de Taines nem Paulos Bourgets para o tracejar. Basta vêr o que se passa. Por toda a parte jovens espinafres nos declaram em sonetos e odes, como acabam de dissecar as amantes, e (p. 257) deitar por terra as religiões e as sociedades. Na mascarada dos poetas originaes (supponhamos) vão uns com dominó de Byron, outros de Musset, Baudelaire, Heine ou Coppée. Sahem do collegio já desesperados, blasphemantes, com o fatal amor, as ambições e os cynismos dos caracteres opprimidos pelas ferocidades da vida social, que á nascença lhes houvesse esmigalhado os rompantes. Alguns deitam-se a interrogar a historia, philosophias, podridões de sepulchros...

Pensadores que não pensam nada: archeologos capazes de reconhecer etruscos nos cacos que os barris do lixo patenteiam á porta das escadas—e apenas um ou outro nome clareia na bancada onde esphacelam uns de cachexia, e idiotisam outros na adoração da propria chateza. Necessario pôr em armas um forte cordão de tropas, que preserve d'um tal contagio o resto da gente limpa. Por mim, insurjo-me ámanhã: os valentes que me sigam! O theatro sobretudo, ergamol-o da bestificação em que jaz. Se não ha quem produza bom, resuscitemos os velhos, como em França. A Comédie dá Molière, Racine e Corneille duas vezes por semana. O mesmo nas matinées do Odéon. Não prestam os artistas? É derribal-os, reconstruil-os, (p. 258) ou educar artistas novos. Forçados a dezenas de papeis differentes no espaço d'uma season, os actores não profundam papel nenhum. Os nossos escriptores de theatro, por outro lado, entretidos a esquissar palhaçadas sem graça nem coherencia, estão inaptos para traçar um typo de fortes linhas e energia contornadora, que o comediante revista e agite co'a sua personalidade. E chegamos a isto—Borbas empunhando o sceptro da critica dramatica, e o borrachão do Peres arvorado em, galvanisador da historia no palco portuguez. A culpa teem-na vossês—distinguindo actores que nem sabem virgular o papel, formando traine nos camarins das estrellas faceis, indo de rastos para os comicos lhe representarem as peças: tolerando n'uma palavra, o jugo dos idiotas coifados de pontifices. Inda mais. O espirito das plateias está grosseiro: pouca vibratilidade, nenhum prazer ante as finuras do dialogo, emoção n'uma só corda... D'onde resulta que a ficelle mais decrépita, um berro d'imprecação, um esgare terrifico no fascias, qualquer mutação vocal ou passo enfatico contra o tyranno, alarmam a turba e tocam a rebate no sino grande da ovação. Tudo que fôr delicado, nervoso, reconditamento ironico, (p. 259) escapa a essa frandulagem d'arrière-boutique. Eis o resultado de trinta ou quarenta annos d'arte roubada aos dramalhões da Porte-Saint-Martin, mal traduzida, mal representada, mal criticada; elaboração sezonatica d'escrevinhadores que não souberam comprehender a obra inicial de Garrett, e continual-a, muito menos. Em França, o theatro romantico, brilhante e fecundo, inda agora impera, e está truncando a via ao naturalismo no palco, attenta a persistencia do gôsto publico pelas violencias dramaticas, pelo talho geometrico dos actos, e essa rara habilidade no savoir faire que caracterisou sempre a escóla, desde Casimiro Delavigne a Feuillet e Dumas pae. Não dá a impressão d'um trabalho de genio, esse theatro, mas é cheio d'arte e vigor, e comprehende-se a febre que o incende, e lateja-se na incoherencia e na furia que o convulsionam. Sardou e Dumas filho representam a transição, inda dubia e pallida, para o naturalismo continuador de Molière e Ben Johnson, d'onde brotará talvez o jacto arterial que avivente a scena, decadente em nossos dias.

—Mas os novos... tornou Rogério afagando na mente o drama que fizera.

—Entre nós levaria a palma quem soubesse (p. 260) continuar Garrett. Somos um povo sem drama intimo no presente, um povo cuja vida não tem caracteristicos, e onde os temperamentos fallecem d'originalidade. Quadro de natureza morta. Por conseguinte, o nosso theatro terá de viver do passado. E que passado! Artista que o assimile e insculpa sobre a scena, precisa ser ao mesmo tempo colosso e homem de genio, pois tem de crear figuras mais altas que a flexa de Strasburgo. Queres a verdade? Palpei hombros de titan no teu talento, esta noite. Só tu poderás resuscitar o nosso palco.

Rogério tinha-lhe logo cahido nos braços, lacrimoso, dizendo coisas commovidas.

—Mas que trabalho de cem sabios e vinte artistas, se quizeres levar a cabo essa incontestavel vocação! Terás de estudar a historia pedra a pedra, ruina a ruina, figura a figura, pergaminho a pergaminho; critical-a, sentir-lhe o lado artistico á luz d'uma philosophia profunda; insuflar-lhe a alma, calor, pulsação; e ir pelas ruas depois, em busca de comediantes, a arrancal-os d'onde elles estiverem, pelas officinas, pelas prisões, cavando batatas na courella d'um padre, ou vendendo agulhas com o pregão d'um belfurinheiro. (p. 261) E educal-os por tua conta, á tua vontade, sob o teu ponto de vista e o cyclone da tua inspiração. Para que ao vermos em scena as tuas figuras, rei, conspirador, frade, princeza e pagem, não tenhamos de berrar—bem vos conheço, heroes de tal seculo! Esse ahi é o Miranda, que tem varizes nas pernas e bebe aguardente na tasca do Ferra Moscas; essa altiva rainha esmagando o cofre de perolas d'el-rei de Castella, é nada menos que a Joaquina, que leva pancadas do amigo, e ata as meias com uma guita, a meio da barriga das pernas. Passa fóra, ó reinadios! Mas sem lisonja, sem a menor lisonja, a tua peça respira enormissimo ta... pois esqueci-me de pagar os juros na Exactidão esta tarde, disse o desenterrado subitamente, quando iam a voltar para o Alecrim. Leilão amanhã.

Perco tudo, nao tem que vêr.—Era a roupa branca da mulher, o seu vestidito de sahir, coitada!... e chailes, um prussiano acabado de fazer... Tudo para pagar remedios de botica. Terrivel coisa a miseria! Dias de jantarem café. Se emprestasses quatro libras até amanhã...

A assaltada fôra um tanto brusca, pois Rogério parecia lento em esportular a quantia (p. 262) implorada. Então começou o desenterrado uma cantilena gosmada entre o cuspilhar do charuto, que ora se perdia, em divagações lyricas, ora habilmente voltava a frizar certos detalhes de intuito prático. E disse as duras precisões do seu lar, essas grandes batalhas tenebrosas da miseria que não pede esmola, e os frenéticos sacrificios do talento amordaçado pelas conspirações do silencio. Rogério inda duas vezes fez—homem, é que... homem, é que...—mas engasgava-se, achou-se somitego, considerar-se-hia odioso se recusasse aquella miseria a um amigo; e ao fim de dez minutos tirou a bolsa.

—Quatro é que tu dizes, não?

—Ou cinco... ou seis... ou sete... ia dizendo Lindôso, e Rogério deixava cahir cada moeda por sua vez—talento, muito talento expendido a mãos plenas pela tua peça. Lá isso! Selvageria, furias shakesperianas, sim! A vertigem da execução prejudica sempre a lucidez do problema. Cinco... seis... É o sonho tenebroso e dantesco, com sobresaltos e recahidas, que sacode pelos hombros os personagens do Hugo. Um positivista, juntava elle n'um riso pallido de caloteiro, deve proceder com mais sangue frio. Sete... obrigado, salvaste-me.

(p. 263) —Vê se queres mais, menino...

—Não. Outra vez. De todo me tinha esquecido pagar esta insignificancia. Deita mais esses meudos. Os pequenos precisados de botas... Diz que querem vêr a tua peça. Oh a infancia! E fechou a mão que estendera ao dinheiro.

—Verás o meu artigo. Comparo-te aos mestres, não has-de ter razão de queixa. E subiu á casa de prego, que era na sobreloja, á esquina, com a sua lanterna de tres gumes, dizendo: Exactidão, penhores, juro modico, emquanto Rogério esperava mordicando o charuto.

 

Dias e mezes correram, sem que realmente as relações de Rogério com a artista adeantassem muito. O pobre auctor sentia-se exhausto de ceremonial, perdia tempo em declarações, não largava o camarim com presentes de flôres e versos da melhor fabrica; mas fitando a grande Velledo nas pupillas, não via n'ellas fuzilar essa scentelha brusca com que a mulher reclama a intimidade de um homem. E dia a dia, como ella lhe escorregava dos braços, como uma cobra, cada vez mais astuciosa, (p. 264) o desejo d'elle parecia congestionar-se d'infrenes ardores, a cada repulsa soffrida. Ia sendo tempo de se pôr á vontade com ella, de se conhecerem de perto—Rogério tinha pouco geito para lunatico. O amor platonico era irrisorio á sua alma de provincia, positiva em negocios, e acostumada a satisfazer de prompto os apetites que lhe vinham. Por mais porém que fizesse, para aos frequentadores do camarim parecer na intimidade da artista, não ouvia rosnar em volta, da supposta ligação. Ella via-o chegar como aos outros, apertava-lhe a mão com um pequeno riso, fazendo telintar os braceletes.

—Bem, meu caro?

E continuava a palestra interrompida. Depois a correcção exigida ao penetrar n'aquelle camarim. Vinha-se de cabeça descoberta, cortejal-a com grandes reverencias. Os homens não fumavam. Uma palavra familiar, uma graça mais núa, transmutavam na côr as iris da divindade. E nenhuma familiaridade antes de se ter sido apresentado com as formulas mais puras do estylo. Porque era de saber que se tratava com uma mulher superior, a primeira actriz portugueza, astro, deuza, musa do drama, Rachel, Sarah, M.lle Mars, (p. 265) e as mais chapas consagradas n'este genero d'apotheoses. Depois, mulher do mundo, espirito de duqueza á Balzac, leituras finas, e seriedade de porte, dizia-se, não vulgar entre lonas pintadas. Era d'estas mulheres de scena afinal, corrompidas d'espirito e gastas de sensibilidade, pelo habito de fingir, representar ao vivo, e pintar tudo, labios, cabellos, sentimentos. O abuso de cosmeticos, estragando-lhe a epiderme da face, prohibira-lhe as transparencias do rubor, que na mulher mesmo velha, são a juventude eterna da alma—ao tempo que os papeis violentos, embotando a sua vibratilidade, lhe não deixavam já sentir as coisas originalmente e por si proprias, como se cada sensação sendo um dedilhar de corda eolea, ficasse impossivel, estando esta corda partida. Como todo o artista fatigado, a Velledo só obedecia agora aos moveis extremos, o interesse, o orgulho, um vicio, um desejo, sentindo desprezos pelo mais. Tudo era n'ella preparado scientificamente, ensaiado, solemne, feito de cór—um papel, um sorriso, uma generosidade, um cumprimento. Aos trinta annos percorrera já tudo na vida, os cimos e baixos fundos torvos, onde as podridões são pictorescas; bambochas de fabrica; mancebias (p. 266) d'acaso, em aguas furtadas, com estudantes e carpinteiros; fomes de palmo, pantomimas de feira, noites sem leito... todas as escoriações do vicio caloteado e baixo. Teve um filho aos quinze, de que já não sabia aos dezoito. E pancadas, figurou no livro das prisões, foi bailarina e creada de hospedaria. Agarrada para povo n'um dramalhão de apparato, uma noite em que vagueava á busca de homem, entrára a crescer. O ponto levou-a para casa, o ensaiador achou-lhe geito; dois ou tres noticiaristas entraram com referencias á novel artista. E engrossou, encheu de hombros, fez-se mulher; e este viver a fôra curtindo, ficando-lhe o frio olhar calculista, que farto de se vêr explorado e cuspido, tudo agora revertia em proveito proprio. A sua belleza, embryonaria aos quinze, eflloresceu após o primeiro filho em exhuberancias mimosas e brancas, e delicados tons de face. Aos trinta annos, levando uma existencia tranquilla, boa meza, dois cavallos, o palacete da Graça, e brasileiro para argent de poche, Velledo era uma mulher alta, branca, sólida, admiravelmente moldada. Isto dava aos seus grandes gestos de drama, pomposos á força de convencionaes, uma soberania e relevo que eram (p. 267) o furor do corpo commercial, brasileiros de volta, provincias e ilhas, todo o paiz inda rançado em banhas lyricas e sentimentaes tradicções. Nenhuma d'esse tempo possuia olhos, hombros e braços como a Velledo. Gentes decahidas por edade ou excessos, iam ouvil-a de rainha, princeza d'isto ou d'aquillo, Fernanda, Magdalena de Vilhena ou Morgadinha, a galvanisarem-se e readquirir tom, pela excitação ou deslumbramento da sua voz dizendo tiradas pomposas, ou d'essa extraordinaria carne extravasando em maravilhas plasticas. N'uma cidade como a nossa, onde as mulheres filiformes e glaucas lembram bichos de seda na muda, aquella magnifica e authentica mulher fazia imperio e dava cubiça, mesmo assim fria de mascara, e parecendo viver fóra de scena a eterna insomnia das estatuas. Não era muito talento, mas os gestos salvavam-n'a, depois de se haverem salvo pelos braços. Os amantes tinham-n'a feito distincta, linha de princeza, uma graça real a receber os que promettiam, nenhum, titubiamento em tête-à-tête, e esse vestuario esmanchado, cheio d'exquisitice, um pouco doido e pictoresco, que as aborrecidas inventam para se distrahir.

(p. 268) Succedia andar ás aranhas n'uma peça, não tendo percebido palavra do papel, gaguejando se o lance queria vehemencia, rindo se exigia dolorosa gravidade, avançando em vez de recuar, partindo as tiradas, surripiando phrases ás outras personagens, e compromettendo os collegas, na espectativa de fazer quebrar a empreza.

Apesar do fanatismo pela diva, o publico esfriava, torcia-se na plateia com bocejos somnolentos, errando a vista pelos camarotes, com tossinhas de gato, errantes, communicativas, e esse leve rojar de pés, que perturba de morte os actores, e tem feito o de-profundis de muito drama e comedia. Contra inanição semelhante, era conhecido no palco o efficaz revulsivo. Dos bastidores, o emprezario mandava á dona Eulalia trouxesse o corpete depressa. A costureira vinha a correr com elle, emquanto o emprezario, baixinho, para dentro de scena:—sss... giralda!—Signal para a Velledo desertar de scena, mesmo cortando a situação, e fazendo falhar o pathetico do lance. E mesmo alli a grande artista mudava de trajo, envergando o famoso corpete azul, uma nudez como qualquer outra. Reduzia-se n'um cinto applicado a Bruxellas (p. 269) finas, e servindo nas occasiões desesperadas, desde que estava eminente o fiasco. Applicava-se no publico como um sedenho ou um caustico, no intuito de suppurar ovações. Apertada n'elle, a grande Velledo ficava pouco menos de núa, contando bem da cinta para cima. Corpete de fatal origem e luctuosa historia! Tinha-o inventado o octogenario marquez das Berlengas, um galante da sociedade do delirio, que pelos modos se enfeitava, quando certa madrugada nos braços d'ella se sentiu esfriar como burro morto. E indo a vestir-lh'o, mais animado e banzeiro, cahiu com o aneurisma rôto, em fralda de camisa, como estava, o desdichado!

Esse collete, justo atraz por um cordão de seda lasso e cruzado, recordava uma corbeille d'onde espumasse a radiosa floração da sua carne, musical e superabundante—e seios turgentes gottejando rubis das mamellas; braços torneados, á Clodion, desde o punho até aos hombros; garganta e espaduas resplendendo essa polida brancura que o frio marmore nunca dá, e vem talvez da circulação juvenil e do azul aponevrotico, coados por uma epiderme vibratil e sã.

E apenas ella entrava assim eloquente e (p. 270) vil, um rumor corria por toda a banda, e em ondas, sentia-se ir aquecendo a sala. Já das varandas vinham estalos de lingua, e a velhada ia esfregando uns contra os outros, febrilmente, os seus joelhos carcomidos. Gradual, a tempestade de bravos ia-se encapellando, agglomerando, contundindo. Havia no ambiente podre revoadas de sss... E a excitação, como uma cheia, afogava tudo, derrancando pela raiz os impulsos da bestialidade humana, e pondo á mostra a torpeza physica dos mais graves funccionários. Era então que se viam velhitos da mais austera prudencia, curvando em gestos macabros sobre os vizinhos—juizes, antigos ministros, conspicuos directores de banco, e chefes de secretaria—furiosos d'amor canino, e dando a sua opinião d'olho esgazeado. Ella, na scena, parecia uma bella estatua reanimada, tão nobres as linhas da sua anatomia esplendente. E quasi núa, corria-lhe na carne um arfar d'emoção radiosa. O pescoço era maravilhoso de finura; ria-lhe uma sensualidade no modelado do queixo; emquanto a narina n'um frémito, dir-se-hia seguir o rolar d'olhos reaes que ella pela sala deitava. Erguia o braço n'um movimento afadigado; e viam-se cabellitos na axilla, muito pretos. (p. 271) O arco das duas sobrancelhas, quebrado em accento circumflexo, exprimia maravilhosamente o desdem. E suspensa, a sala aguardava que ella fallasse.

Senhor! Ousa insultar uma mulher que se não defende? Perigoso me tinham dito que era; cobarde nunca!...—e ao meio da scena, n'uma colera de deuza, a cauda em serpente, um dos seios espreitando a tourada de focinho sobre a orla do corpete, bramia a terrivel sacerdotisa:

Saia!

Sublime! Sublime! era a palavra de toda a gente.

 

Precisamente n'este remoinho de celebridade e de gloria, depois da grande scena do terceiro acto, uma noite, Rogério declarou-se a Velledo, n'um portuguez que a actriz não usava escutar lá muitas vezes. Fôra n'um escaninho do palco, durante a mutação de scenario.

—Palavra, adora-me, o senhor? disse-lhe ella escarnecendo.—Elle compunha uma attitude fatal, como se quizesse magnetisal-a de paixão. E despiam-n'a, os seus olhos faiscantes de vicio.

(p. 272) —Dizer-m'o não basta, tornou a eminente actriz. É necessario que m'o prove.

—Mas como? disse elle surdamente.

—Isso não é commigo.

E depois d'uma pausa:

—Ha talvez um meio de principiar. Porque não começa a ter talento?

Rogério não respondeu, mas os seus olhos, como brasas, na pelle branca do colo d'ella, redondo e nú, chamuscavam-n'a, mordiam-n'a, apalpavam-n'a, servindo-a como um goso arrancado á força. E n'um desvairamento, agarrou-a pelos dois braços sifflando, engasgado de furia.

—Cala-te estupor, cala-te diabo!—Era n'uma sombra de panno de fundo, que vinham, de correr. E a Velledo debatia-se, aterrada do escandalo, cahida do respeito usual por semelhante violencia. Rogério tinha-a cingido pela cintura, e apertado contra o peito, nas agonias d'um toiro; e aos beijos por toda ella, na bocca, na garganta, nas espaduas, sobre o peito, percorria, babava-a, delirante, horrivel de desejo, deixando-lhe vermelhidões por toda a parte, signaes de dedos crispados, babugens de raiva lubrica, que no pó d'arroz deixavam listrões nojentos de vêr. Enxovalhada (p. 273) da brutalidade, a Velledo chorava, gaguejando:

—Infame! Infame!

Despenteara-se na lucta, tinha-se aberto o colar, um dos colibris da túnica cahira, violentamente roçado. Rogério ficára a resfolegar n'um canto. Mas ouviu-se o contra-regra chamar para a scena do jardim; e com a voz musical de quando estava elegre, a Velledo desatou a rir alto entre os bastidores. E mal o galã disse—é ella, conheço-a, o coração m'o diz!—entrou em scena radiante e magnifica, monologando para si:

Elle prometteu-me que viria. O seu amor é leal. Virá de certo—e n'uma expansão d'amor:—adoro-o, sim, adoro-o!...

—Has de cá cahir, cegonha! fez Rogério esfregando as mãos. E ao outro dia foi-lhe pagando as contas da modista. Mas já entravam a rosnar. Os ganymedes de palco, gentinha disposta a explorar, intrigar, levar e trazer segredinhos, bilhetinhos, cobriam Rogério de perguntas sobre a tristeza em que o viam, com subtis allusões á actriz. Nos camarins não se fallava n'outra coisa. Sabia-se que elle hypothecára as ultimas propriedades, perdia ao jogo, e mandava á Velledo todos os (p. 274) dias, uma grande corbeille de camelias e rosas confeccionada no Neves. De quando em quando, presentes de galantarias antigas que ella colleccionava com paixão, bibelots de Sèvres, pratos e netskés do Japão, aguarellas, bronzes e moveis delicados, pequenas peças vasculhadas nos adelos e casas de penhores, com paciencia de santo, regateadas durante horas, e muitas vezes adquiridas por preços escandalosos. Como amador de bric-à-brac, Rogério era uma besta, chegando a pagar por libras monos de loja de chá, fallidos de todo o merito. Velledo encolhia então desdenhosamente os hombros, mirando a bugiganga. E com irónica piedade:

—Decididamente tem o gosto caraíba. Vê-se logo que é da provincia. Foi do leite. Obrigado. Ou era uma fayança repetida, qualquer peça que ella pedia para lhe comprar, e Rogério já não encontrava no bazar indicado. A actriz impacientava-se então, fazia momo com o seu beicinho vermelho, batia o pé vendo-o chegar de mãos vasias.

—Se elle é um desastrado! Fosse quando eu lhe disse.

E predilecções de momento, ambições por quanto via nos armazens, e logo tédios pelo (p. 275) que ia adquirindo. Em dias de nervos quebrava, mordia e rasgava tudo para se vingar, na epilepsia dos que tendo feito das impressões violentas um habito abusivo, desesperam por fim, se acaso em vão apoz ellas correm. Tão raras as horas de bom humor, que Rogério, se alguma surprehendia, dir-se-hia gosal-a como recompensa disputada. Esse homem altivo cahia aos pés da sua gata sabia, em pieguices de collegial, deixando-se explorar por prazer. E sobre a posse tão ardentemente implorada, nem rastro d'esperança! Se ia beijal-a com mais furia, se a queria enlaçar pela cinta, ou a respiração cortada n'elle trahia alguma ideia occulta de deleite, ella logo de pé, faiscante e sarcastica, para o repellir com desprezo.

—Olhe que me não esqueci d'aquella canalhice do theatro, hein?—ou fazendo saltar o lorgnon Regencia:

—Ora filhinho! Deixa-te d'asneiras. Isto é do brasileiro.

Mezes passavam assim. Se por um lado Rogério não adeantava com a actriz, recebia por outro, do brasileiro, provas de deferencia e familiaridades em cada dia mais profusas. Tinham começado as relações por uma polidez reservada, que parecia occultar as mais cathegoricas (p. 276) antipathias. Dopois, aquella crosta d'indifferença estalára aqui e além, n'um cavaco mais vivo, n'um accordo ou outro d'acaso. Rogério sondava os gostos do brasileiro, lisongeava-lhe os ridiculos, punha-se ao lado das suas opiniões, aturava-lhe as estopadas, ou conseguia rir das graçolas d'elle. Era um pobre homem, limitado e benevolo esse brasileiro, que todo entretido a enriquecer-se, na mocidade, mal tivera tempo para gostar d'uma mulher—e assim conseguira embarcar na velhice, conservando intactas, pudicas quasi, as intimas juventudes do seu coração, uma singeleza timida e crédula, uma especie de convicção da sua inferioridade, como animal, em face daquella grande rainha da scena, e pequenas attenções balbuciantes para os caprichos d'ella, torturas soffridas sem revolta, e humilhações inda por cima agradecidas, n'uma effervescencia de lagrimas.

Esse mudo velho de olhar ardente e mãos de cavador, de continuo enluvadas, alto, negro, com uma barba branca de negreiro, e uma gravata de coleira á volta dos collarinhos molles, esse mudo velho, parecia marchar somnambulo na sua idéa fixa, dolorosamente algemado á sua paixão como a um cepo de (p. 277) patibulo, para toda a gente affavel, dizendo muito obrigado á creadagem, orgulhoso de ter em casa da Velledo o ar d'um intendente, desolando-se em suspiros que a edade já fazia grotescos, desdenhado, repellido, porém fincando sempre nas derrotas de cada dia, a coragem para insistir nos dias seguintes. Emquanto o pobre suspeitou que as denguices de Rogério viessem a ter resultado, foi sempre mantendo á vista d'elle, uma reserva polida, quasi fria. Os cumprimentos que trocavam, traziam, mesmo de longe, um asco a desconfiança. Os risos d'elles, ao toparem-se, no serão da tragica, eram um espremer de beiços seccos, com distillo d'amargura. Mas breve o nababo concluiu que não viria de Rogério o vento mau de desgraça, que lhe varresse a Velledo, como uma nau dos quintos, do mar banzeiro em que elle a trazia balanceada e repreza. Uma magua identica, parece, lentamente os conduzira a uma sorte de camaradagem. E vieram jantares, pequenos conselhos ditos na meia intimidade d'um segredo, favorsinhos que se calculam e estão prestes ao primeiro signal. Por fim deram o braço, trocaram brindes, começaram a sympathisar; e havia quatro mezes que o brasileiro (p. 278) já não passava sem Rogério, e Rogério se afizera a procurar todas as tardes o brasileiro. Velledo espiava aquelles manejos, deixava-os consolarem-se um no outro, e ia-os explorando systhematicamente. Era o tempo em que a fortuna de Rogério via o começo do fim, e Lisboa lhe ia notando as primeiras joelheiras, as luvas safadas e as golas russas. E os beiços d'elle enlivideciam, uma magreza patibular fazia-lhe duro o perfil; e enfastiado, mãos febris, não dava palava a ninguem. Em volta ao caso ria toda a gente. Apenas o grupo sério de Pirralho, philosopho Horacio, festejado Peres, e a ninhada de fedelhos positivo-publicistas, lia n'essa fronte sulcada, n'esse olhar fixo e interior, a gestação laboriosa d'algum grande livro. Actores, já o tratavam de resto, não o sentindo como outr'ora, generoso d'emprestimos, e tão prodigo d'alegres ceias no Gibraltar. A primeira vez que appareceu sem relogio, fumando cigarros de mendigo, quasi todos, achando-o pulha, lhe voltaram as costas.

Por esse tempo revelava-se Alcina, que passára da opera-buffa ao theatro de declamação, prima de Rogério e sua primeira amante. Fôra na Suzanna do Demi-Monde, (p. 279) papel de prova, cheio de movimento e finura, em que por confronto a Velledo tinha dado um estenderete medonho, e que Alcina fez com distincção surprehendente. Sobre o caso, a critica fez-se ouvir muito acerba contra a Velledo, mau grado as supplicas do brasileiro e de Rogério, a que fosse poupada a grande sacerdotisa. Em quasi toda a linha jornalistica, de repente, as hostilidades romperam com violencia brutal, bipartindo-se os criticos na hoste dos que bradavam—Velledo!—e na dos que punham Alcina na mais brilhante evidencia. A prima de Rogério, por conseguinte, passou a synthetisar a escóla nova, como a Velledo era a expressão da antiga arte. Pirralho e o magreirão Lindôso, macacos-pontifices da alta critica moderna, saudaram a musa nova em rutilos artigos crivados de referencias picaras á antiga primeira actriz portugueza, na qual tudo, segundo elles, era convencional. A historia do corpete fez escandalo de morrer a rir. E dois ou tres distinctos escriptores e nossos amigos estiolavam-se a calcular os annos que ella teria d'edade, o que esbanjava em cabellos postiços, e da composição chimica d'aquelles seios esculpturaes...

(p. 280) A actriz Alcina, não! Era a mocidade maleavel e viva, a intelligencia sagaz que tudo penetrava sem esforço, o genio desprezando artificios, e dando-se á plateia em relampagos—e como mulher, uma nympha de Clodion, elançada e viva.

—É necessario derribar os falsos deuses, escrevera Lindôso. A arte é constantemente evolucionista. Quem não progride, não a acompanha, e elimina-se pelo esquecimento ou pelo desprezo...

—Isso é forte, homem...

—Qual forte! Uma velhaca que nem bilhetes manda para o jornal! E d'ahi põe recusas ás nossas mais ternas blandicias. Póde-se lá soffrer!

No entanto crescia o desespero da Velledo, que chorava dias e dias accusando o emprezario, não querendo estudar os papeis, cobrindo a imprensa d'insultos, Rogério e o brasileiro de repellões. Uma manhã, apenas aquelle veio, ella resolutamente:

—Essa creatura que elogiam por ahi, é sua prima, e foi sua amante, já sei. Porque não accedo ao que o senhor pretende, move-me guerra nos jornaes.

Rogério ia protestar. Ella disse—canalha! (p. 281) e mais rapido:—em todo o caso, oiça. Se a peça nova fizer reviramento completo na imprensa, expulso o velho e entrego-me a si. Ha uma condição de que não abdico, note bem. Que essa bebeda seja posta de rastos, fóra do theatro em que eu represento. O resto é com o senhor. Acceita?

Elle poz o chapéu na cabeça, disse:

—Não!—E sahiu como doido.

 

Chovia, e elle sem guarda-chuva, pisando a lama com sapatos de baile, seguia alagado ao longo dos predios. Dois ou tres amigos chamaram-n'o de dentro de trens, para que viesse abrigar-se. Olhou-os com ar vasio e foi andando. A sua paixão pela actriz, avolumada pela resistencia, obstruia-lhe a livre esphera da deliberação, da acção, e desvairava-o. Que havia de fazer? A pobreza fizera-o mesquinho: e vinha-lhe com teimozia a ideia do dinheiro gasto com essa mulher, sem reserva, sem egoismo e sem calculo, n'uma boa vontade de rapaz. E nem mulher nem dinheiro!... Então recrudescia-lhe o desejo d'ella, e era uma febre bestial d'amor que o espicaçava a todo o instante e lhe fazia delirios. Foi pelas (p. 282) ruas de mãos nas algibeiras, flanando ao acaso na lama. Vendo um antigo freguez, os cocheiros paravam fazendo-lhe signal—e era uma humilhação para Rogério ter de recusar, ou virar a cabeça fingindo não ver. As ruas surprehendidas por essas primeiras gottas de chuva hibernal, tinham sobresaltos e gritos de vida que procura abrigar-se, a um tempo frenetica e contente... mulheres apanhando os vestidos, homens erguendo as calças até á origem das polainas, chamando os trens, ou entrando á pressa nas escadas.

O ar frio dava ás epidermes das mulheres um côr de rosa mais pudico. Era a hora do Chiado, e os trens desciam para os armazens de modas, em cujas vitrines se encontravam já densos estofos, chapéus e capotas do ultimo modelo. Lisboa, que voltava das praias e estações d'aguas, procedia á sua installação, buscava nos livreiros as ultimas edições, lia os cartazes dos theatros, escolhendo a sua noite, dictando a sua toilette, familiarisando-se com os aspectos das ruas e o rolar das carruagens. E a cada instante, Rogério tinha de fazer um signal aos conhecimentos antigos, actrizes dos pequenos theatros, jornalistas, dandies, horisontaes; toda a mascarada elegante passeando (p. 283) os primeiros paletots estofados, no giro da evidencia e da moda. E intimidades que roçavam pela fadiga do seu casaco um velho dito maldoso, desdens que lhe acenavam de longe co'as pontas das luvas amarellas, piedades vis que o lastimavam, ou peccadoras que lhe riam pela ferida dos beiços pintados, tendo partilhado outr'ora o luxo dos dias aureos de Rogério. Parece que tinha combinado cruzar com elle hombro a hombro, essa tarde, toda a revoada de doidas sereias avivadas de chic!—Primeiro Laura, a condessa, uma soberba rapariga que explorava um club de velhos, e era gosada por acções. E as mais: Annita, que surprehendendo a primeira sombra na face, ia casar com um judeu capitalista; Hermine, o vampiro, de cujo leito phosphorejavam as monstruosidades dos harens da Asia; Luiza, alta, morena, sã, com os seus eternos grandes sapatos de homem, e os seus modos decididos de commis-voyageur... E o pobre auctor de preoccupado, nem reparava no espanto e na commiseracão com que o fitavam. Uma patifaria sem nome, quererem voltal-o contra Alcina, rapariga de talento afinal, cuja carreira difficil ella percorrera toda, sem auxilio nem reclame! Doida, boa, sincera de mais, (p. 284) e por isso mesmo enganada sem rebuço. Eil-a ahi na celebridade, chegando ruidosamente ao pinaculo, musa de um grupo de artistas. Promover-lhe a queda, expulsal-a do primeiro theatro—que negra infamia pretendia então a outra d'elle? Chegara ao jornal do Lindôso sem dar por isso. Subiu. Inda não tinham sahido das repartições, e a redacção estava deserta.

—O snr. Lindôso, disse Rogério para o gerente.

—Primeiro gabinete, á esquerda.

Estava lá. Ora viva! disse Rogério.

—Sei a que vens. Não posso pagar-te inda hoje. Sê benevolo uns dias mais. E volubilmente:—Então sabes? Os constituintes venderam-se. Estou aqui a rachal-os de meio a meio. A que chegámos! E mostrava os linguados escriptos—Lisboa vae vêr o bom.

—Eu cá, disse Rogério, vinha para outro negócio. Janta hoje commigo. Tenho lá baixo um trem.

—Demonio! pois sim. Ao Central?

—Em minha casa. Descobri uma cozinheira incomparavel. Pulcheria se chama. Então a mais acrisolada sciencia nos molhos! Tenho um Murillo no quarto, que outro dia, (p. 285) sentindo o olor d'um bacalhau confeccionado por ella, sahiu á casa de jantar acceso em fome.

—Raio de cozinheira!

—Vens d'ahi?

—Dois minutos para terminar a demolição d'um partido politico. E como se porta na lebre ensopada, essa tal Pulcheria?

—N'isso então! Imagina um d'estes acepipes tenros, alpestres, perfumados, extranhos... A pastoral de Beethoven com tubaras de recheio. Homem, no Algarve estava um defunto no esquife; vae ella, chega-lhe ás ventas carneiro com batatas—e o morto pega a bailar no meio da casa.

—A caminho, fez o outro espicaçado pela fome de quarenta cães sem dono.

A casa de Rogério era perto, e em dez minutos faziam elles a sua entrada no escriptorio. Rogério fechou a porta da escada e metteu a chave na algibeira.

—Ah diabo! exclamou Lindôso com uma palmada na testa. De todo me esqueceu falar da tua peça. E que tinha planeado uma coisa magnifica! Artigo para o publico, está claro, coisa d'arrombar ahi tudo. Entre nós, franquezinha. Deves deixar o genero: o teu drama, aqui para nós, era quasi infantil.

(p. 286) Rogério, surpreso, nem falava. Que exhuberancia de malandro! pensava elle.

—Nem admira, continuou Lindôso. Tu, o que ha de mais moderno no estylo ligeiro, de mais elegante, de mais parisiense, cahes agora na monomania de fazer viver sobre a scena os assumptos historicos!? Primeiro, não és um erudito. Segundo, não tens a corda dramatica. E olha que influe alguma coisa, a gente não se chamar Walter Scott ou Shakespeare, menino.

—Sopra-te o vento d'outro lado, esta manhã, tornou o dramaturgo com os beiços brancos. Em todo o caso, ouve. Eu li o que escreveste sobre a Alcina...

—O artigo para amanhã é superior. Vaes vêr que maravilha d'analyse e graça humoristica. A sagacidade do Taine na fórma irisada do Wolff. Ah, meu caro Rogério, meu bem! Ponho a Velledo em picado. Dez annos de lucta, e regeneramos o theatro portuguez.

—Trazes o artigo?

—Vou lêr-t'o. Ficas assombrado.—Mas onde foi elle buscar este vigor de linguagem, este conhecimento do assumpto, esta chuva de sarcasmo e pedras preciosas? dirás tu. Ah, Rogério! Nasce-se.

(p. 287) Enfastiado, risonho, o dramaturgo fez-lhe signal para que lêsse. O artigo era uma catilinaria habil, gradual, bem deduzida, e feita com esse sarcasmo sereno, quasi limpido, de quem não receia lhe tomem contas. Definia a arte nova em termos firmes, historiava-lhe a evolução rapidamente, frisando-lhe os intuitos, explicando-lhe o destino e o nivel philosophico. Cahia em seguida sobre os actores, no tom desdenhoso de quem trata subalternos—e uma vez alli, tocava na Velledo. Desde esse instante, uma furia explosia no artigo, e as ironias eram um crivar de balas no corpo d'um fuzilado. Segundo elle, não era possivel mais tolerar sobre a nossa primeira scena, uma actriz cheia d'artificios e ronceiras manhas; cantando, se declamava; e não tendo mais a voz maleavel, nem vivaz o gesto, nem a pose esculpida na proporção da figura que reproduzia. Desmemoriada, envaidecida, tola, velha, quasi feia...

E no final, em palavras metallicas, enthusiasmadas, relampejando fundos d'apotheose, entrava a dizer que Alcina era o astro do dia novo na arte, subindo tocado de flammas, com a grandeza d'uma redempção pronunciada de ha muito, pela critica imparcial...

(p. 288) —Admiravel, hein?

—Pois sim, fez Rogério retesando as pernas. Quanto ganhas tu por essa canalhice?

O outro, embasbacado! Quanto ganhava?

—Ora essa! Eu não trafico com o sacerdocio. É convicção.

—Sabido! O artigo de hontem trazia as tuas iniciaes. Publica o de hoje com o nome todo; tens dez libras.

—Hein?

—Sómente onde estiver Alcina, porás Velledo, e onde Velledo, Alcina.

—Que quer dizer toda essa cantiga?

—Nada de scenas. Entre pulhas, o descaramento é a alma dos negocios. Dez libras para virares d'opinião. Recusas? perdes o dinheiro e quebro-te as costellas. Tão certo!...

Lindôso fizera-se verde, queria-se erguer, não podia; e tudo era olhar para a porta, calcular a retirada.

—De maneira que o teu jantar era isto? E a cozinheira Pulcheria... Traste!

Rogério nâo respondeu.

—Mas tu? a ferro e fogo com a Velledo, porque te voltastes á ultima hora? Arranjos! A corja que se entende e se harmonisa.

(p. 289) —Faz as emendas que te disse, tornou Rogério docemente.

Mas o desenterrado hesitava.

—Com quem imaginas tu que estás falando? aventurou-se elle a perguntar.

Rogério agarrou-o pelo pescoço, como as cozinheiras fazem aos gatos lambareiros.—Anda! Senão desfaço-te! Senão atiro comtigo da janella!

—É violencia. Protesto! ganiu o desenterrado debatendo-se. Mas a voz de Rogério rebentou n'um estampido.

—Olha que eu estrangulo-te. Escreve!

Fez-lhe pegar na penna.—Emenda!—E roxo d'asphyxia, cyanosado, humilhado, escorrendo suor, o outro emendava. Rogério agarrou no artigo, leu tudo minuciosamente, e inda apontou um ponto ou outro para Lindôso corrigir—Agora assigna!

O miserável em soluços, arquejando horrivelmente, assignou.

—Tratante! Eu me vingarei. Ai de ti! Rogério ria freneticamente.

—Amanhã peça nova, ajuntou elle n'um sarcasmo tranquillo. Quatro actos d'Augier, alguma coisa de fino e superior. Alcina lá vae enrodilhada n'um papelito quasi de comparsa. (p. 290) O melhor papel para a Velledo! Ella que até agora só fazia os pezados centros dramaticos, Joanna a doida, a Mulher que deita cartas... entra n'uma phase nova, quer mostrar que conhece a escóla moderna. Eh! Eh! que diz a isto o scintillante Lindôso? O publico tel-as-ha na mesma noite, as duas, face a face. Elle é imparcial. Julgará.

E emquanto a raiva branca epileptisava o outro—Amanhã os jornaes saudarão a eminente actriz, pela penna dos mais festejados escriptores. E na noite da peça, enchente á cunha, bilhetes a libra, uma chuva de corôas. Ah, desforra estrondosa! Triumpho como ninguem viu outro! E alcançado por mim. Não que eu admire a Velledo. O que escrevem contra ella é verdadeiro. Mas apraz-me esmagar essa tropa de canalhas vendidos, a começar por ti.

—Sim! Ainda hontem a querias derribada, essa Velledo, já hoje lhe advogas a victoria. Quanto paga o brasileiro por esse enthusiasmo? És dos meus. Vendeste o que te restava, entras a viver d'expedientes. Eu cá fui sempre pobre, ao menos. Seguia o meu caminho bem ou mal, sem pão muita vez, oito dias n'um quarto alugado, oito n'outro, (p. 291) expulso quando não tinha com que pagar, desempregado, mal visto, esbarrando com a antipathia de toda a gente. Queriam no meu porte a nitidez d'um cavalheiro? Dessem-me de comer. Rogério, inflexivel, chamou o creado.

—Isto ao jornal.

—O jornal não publicará, disse Lindôso.

—O teu não. Mas o meu... Agora vamos a jantar.

—Obrigado. Acabemos com isto. Abre-me a porta!—Era quasi noite.

—Nao. Dormes cá hoje, tornou Rogério.

—Vou gritar, n'esse caso.

—Hum! Não cahirás em semelhante tolice. Ao primeiro berro, amordaço-te, e passas a noite n'uma camisa de forças.

—Mas isto é inaudito!

—Creio que sim.

—Hei-de tirar uma desforra.

—É da ordem.

—Mas quando me deixam sahir então?

—Quatro da manhã. Hora em que a tiragem dos jornaes está toda feita. E coração ao largo, anda jantar. Conversaremos como bons camaradas. Isto aqui não é agora nenhum carcere; podes circular pela casa toda. Hein? (p. 292) Não me arreceio das gavetas: vendi as pratas, e não ha vintem por cima das mesas.

—E promettia-me dez libras, isto!...

 

Quem hasteava a Velledo era um grupo d'escriptores de pulso (como então se dizia) feito do pae nobre Tiburcio, critico Borbas, festejado Peres, Rogério, Moreira das magicas e os inimigos d'Alcina. Uma espécie de cenaculo, que receando a decadencia da scena, se impuzera alumiar o gosto da turba, com a luz dos seus talentos conspicuos quanto experimentados. Esta tropa de massadores, quasi todos carecas, decidira pôr dique á sedição de Pirralho e Lindôso, creando o Binoculo, semanário que definiria a missão do theatro, pondo em relevo as regalias dos auctores, e encarregando-se de catalogar os comediantes pela ordem e genero dos meritos que patenteassem: quem havia de ser o primeiro, quem havia de ser o segundo...

A convite de Borbas tinha-se o conclave reunido n'uma botica da rua do Amparo, com penna e tinta para tracejar das resoluções adoptadas. E houve logo disputas sobre o titulo da folha.—O Binoculo, dizia festejado (p. 293) Peres.—Arte de Talma, opinava pae nobre Tiburcio.—Diabo Verde, era o parecer do Moreira das magicas. Porém Borbas, um auctoritario que tinha o culto das civilisações antigas, disse logo: O Capitolio! Cada qual então pediu a palavra afim de justificar o seu titulo. Engalfinharam-se uns nos outros, á descompostura. Como estava vivo de vespera o artigo de Pirralho exaltando Alcina, urgente se tornava fazer sahir resposta bem official, bem da mestrança, que trancasse as doutrinas da escóla avançada. Suspensa a sessão por vinte e quatro horas, cada um foi estudar para casa o que havia d'escrever no jornal, com promessa d'assembleia no laboratorio da botica, ao dia seguinte.

No outro dia, eil-os de volta arrastando as passadas, beiços lividos, olho morto, tendo perdido a noite sobre os melhores auctores. Varios, seguidos de gallegos, tinham feito conduzir annos inteiros da Revista dos Dois Mundos. Borbas, em casaca e tira branca, solemne, convencido, radiando uma vasta auctoridade, appareceu com a sua resma d'apontamentos. Aberta a sessão, palavra a um, palavra a outro, combinaram-se notas, organisou-se o plano d'ataque... resultado, (p. 294) duas columnas de sandices e a ideia do jornal posta de banda. Foi o momento de Rogério fazer a sua entrada na sala. Inquiriram todos: então?—Era na manhã sequente á detenção de Lindôso.

—Sanou-se tudo, ganhamos, exclamava o dramaturgo n'um jubilo. Lindôso nosso. Vem o artigo na Gazeta do Sport.

—E viva!

—Quasi todos os jornaes fallam da Velledo em quatro columnas e cinco. Grandes letras, titulos d'arromba... Um genio! A primeira tragica da Europa. Continue progredindo...

Já vinte mãos cresciam ávidas para os jornaes que elle trazia.

—Venha de lá isso. Venha de lá.

Estendiam as folhas por cima da mesa, tumultuosamente, vangloriando-se dos artigos como d'obra sua, dizendo alto as passagens flammantes. Gritava um:

—Isto soprei eu ao articulista. Outro:

—São as minhas ideias escriptas e escarradas.

—Escarradas sobretudo, insinuava um terceiro.

Nenhum d'elles escrevera uma virgula, mas procuravam enganar-se, dizendo:—é como (p. 295) se os artigos fossem escriptos por nós, visto que demos a substancia.

—E pagos por mim, suspirava Rogério arruinado, auctor e victima do triumpho que elles se attribuiam. Mas Borbas, esfregando o nariz como um botão de campainha, rosnava com entonos de leão:

—Tiveram medo. Inda valho alguma coisa.

D. Maria, essa noite, offerecia o mais bizarro e pictoresco aspecto. Uma furia revolvia a turba na plateia; havia conclaves pelos cantos, palavras altas; gestos doidos sahiam dos grupos, accentuando alguma affirmativa audaciosa—e os decididos declaravam que havia d'ir tudo raso! Já os informadores de jornal, correndo os olhos pelos camarotes, de carteira aberta, tomavam nota dos nomes e toilettes. Aqui e além, pelas ordens caras, faziam-se ruidos vagos, arrastar de cadeiras, risinhos cantados de senhoras: um bournous desacolchetado no fundo d'uma frisa, distrahia subito as palestras, e luminosas espaduas gottejadas de diamantes, vinham á luz do gaz espanejar brancuras exoticas de magnolia. Toda a galante guarda de semi-mundanas, destacava pelos logares de honra, os seus estapafurdios (p. 296) couraceiros, todos os typos, trajos e côres de cabellos. Laura a condessa, em pellucia verde pavão e rendas pretas, tincta de loiro essa noite, punha um bonnet de pennas delicioso. Luiza em escarlate, bordada de vidrilhos, admiravelmente grande e bem feita, dir-se-hia brotar d'um cacto com a rebeldia d'um génio de volupia e ruina. Hermine, de damasco branco, decotada até ao ventre e coberta de geraneos pallidos, soberba de carne, divina d'impudor, affixava o seu riso de bacchante, vago, inquietador, sem ponto de mira, como essas estatuas d'Egino que riem ceifando cabeças.

O sport era feito de figuras bassas, estranhas, espigadas, bonitas algumas, e com um tom d'elegancia doentia. Uma especie de figurino geral corrigia os typos, dava o rythmo dos cumprimentos trocados, parecia decretar do entono da pronuncia, e haver stereotypado das boccas, o mesmo modo de rir altivo e frio. E apontavam-se as figuras salientes—o marquezito de Selmes, imberbe, loiro, quasi ideal, com vicios perversos e um geito cynico na bocca de cherubim: tão predestinado a gommoso, que apenas parido, entrára a pedir cognac e vinte libras, afim de (p. 297) se abalar chez Tata. Junto d'elle, o visconde de Palhalvo, de craneo em pera, com bochechas immensas que lhe esmagavam a bocca e o nariz, mostrava nos olhos ternos, genero carneiro morto, a todas as ricas herdeiras, o seu joven coração devoluto. Alberto M., poeta insonso, tortulho ultimo da epocha romantica, muito estimado nos salões, e causador dos mais finos adulterios, debruçava-se todo para uma viuvita loira que vinha d'aliviar o luto. E a phalange alegre das ceias nos gabinetes do Matta e do Augusto: mulheres fugidas aos maridos, actrizes sem theatros, filhos de banqueiros, vergonteas fidalgas afundando os ultimos contos d'uma antiga opulencia, medicos em voga, personagens alvares vivendo á sombra d'um nome de familia, janotas pagos por uma velha.

Barão de Murtede tinha-se installado mais a franceza, n'uma frisa de bocca, mesmo em face da esposa e das filhas, que estavam ouvindo contar ao Alfredinho torto, o Alfredinho dos cotillons, uma scena de sopapo nos corredores de S. Carlos, por causa de não sei que bailarina americana. A franceza, muito desengonçada, d'olhos pardos, irritante de magreza, quasi diaphana, coberta de signaes (p. 298) postiços, ouvia-lhe distrahidamente uma tolice qualquer, abrindo e fechando o leque, com as suas mãos cobertas de pelle de Suède, que rescendiam heliotropo. A espaços:

Oh, que c'est charmant! Oh, que c'est charmant!... e fitava com provocação a frisa fronteira, d'onde a baroneza de Murtede fazia olhinhos doces sobre um delegado de barba sedosa, um vello vaicharel da Veira, recem-chegado á côrte, que a compromettia na plateia, á vista de toda a gente. N'outra frisa, ao fundo da sala, as Simas, mãe e filha, davam audiencia, antes de subir o panno, a uma multidão turbulenta e esfaimada de viveurs. De longe, Hermine lhe fazia signaes, affixando á sala a sua familiaridade com senhoras d'aquellas; emquanto mais circumspecta toda rigorista no seu programa de senhora, Laura, apenas de leve respondia aos cumprimentos que ellas de lá lhe mandavam, por entre macaquices de beijos, nas pontas dos dedos. Na frisa das Simas, aquella noite, era uma algazarra de metter medo; tinha-se installado alli o quartel general da má lingua, e o centro expedicionario das frescatas para depois do espectaculo. A mãe, uma gorducha quasi nova, com dentes chumbados na frente, e o (p. 299) ceu da bocca de platina, branca, myope, dando-se um tic de palpebras muito impertinente, esposa d'um general, e sobrinha, dizia-se, do senhor D. Miguel, tinha começado vida na melhor roda lisbonense, entre os explendores das festas e a convivencia das grandes familias. Habitos de grande vida, tão funestos ás pequenas fortunas, deram-lhe com a casa de bancarrota em bancarrota. Já por fim, ellas mesmas faziam a cozinha, e cortavam os seus vestidos de sahir, convidando as amizades a um chá, todas as terças-feiras, com piano e castiçaes de cristofle, n'um casebre apalaçado ao Bairro Alto, em cujo rez-do-chão, por signal que viera installar-se uma typographia socialista.

Para vir a casa d'ellas, em principio, inda era de rigor ser-se apresentado—mais tarde, o general, intercedido, fez concessões, como era bom homem... pedia então sua meia libra, dez, quinze tostões, e a cada conviva, além do chá, revertia o direito de tratar por tu a dona da casa. O general fôra rico em solteiro, o jogo porém tinha-lhe comido tudo, e a mulher esbanjára-lhe o resto. Uma filha mais nova, Fernanda, toda mimosa na sua figurinha etherea de Gretchen, inda chegou a ser pedida em casamento, mesmo assim pobre (p. 300) e mal educada, por um guarda-marinha que, a adorava, e depois a repudiou, sabendo a vida crapulosa da mãe e da outra irmã. Desolada, e desconhecendo outro caminho que não fosse o da sua singela honestidade, sem vocação para cocotte, e sem coragem para costureira, a pobre pequena atirou comsigo ao fundo d'uma cisterna que havia no pateo.

Entanto, já a vida as apertava d'urgencias, dia a dia insaciaveis—o luxo d'um lado—do outro lado a penhora—do outro ainda o general... em termos que a mãe, tomando as redeas da casa, durante o delirium tremens do marido, entrou a dar bailes de mascaras no casebre armoriado, abrindo as suas portas a toda a casta de rodilhões e torpezas. Alli debutaram muitas raparigas na vida galante, costureiritas que os devassos encommendavam á mãe Simas; filhas de pequenos empregados, que entravam no baile em musselina branca, sem brincos, nem colar, accedendo ao appello d'uma amiga de collegio; noivas que vinham ganhar o enxoval de casamento, n'uma prostituição secreta e cheia de rancores; hespanholas retiradas da má vida, por algum amante que as desejasse gosar mais por detalhe... algumas ingenuas, lindas algumas, e outras (p. 301) simplesmente irritantes, pela virgindade physica que traziam, esculpida em desejos, mal sazonados ainda, nos meios limões erecteis do peito.

Durante o dia, era frequente encontrar-se a mãe Simas por todas as ruas da cidade, offegante, enrodilhada no fundo d'uma tipoia, fazendo adeusinho aos caixeiros, rindo para os ociosos das tabacarias, apeando-se á porta de todas as escadas sem guarda-portão. Ia em serviço.—Até á noite, até á noite, dizia ella, apanhando as saias a molhe, por baixo de cujas barras, não raro badaleavam penduricalhos de lama immunda. E esquecida da mala por todos os cantos, voltava atraz, esbarrava n'um taipal, ouvindo sem pestanejar, no seu aplomb de condessa, os apropositos mais desavergonhados...

Dentro de pouco, a casa foi creando fama, pelo expedito das suas encommendas e gosto fino das suas requisições, creando fama sobretudo na provincia, no Brasil, e por essas possessões d'Africa, d'onde annualmente chegam a Lisboa, os mais tenebrosos, os mais acerbos apetites de homem, recalcados na solidão, e centuplicados de força pelos delirios côr d'absintho da abstinencia. Á chronica da (p. 302) casa mesmo, no livro de oiro dos escandalos mais reconditos, tinham vindo jungir-se muitos nomes da nobresa, sangues de mil castas, fibrina dos Gamas, materia corante do mestre d'Aviz, soro e saes de Nun'alvares, Miguel de Vasconcellos, ou algum sapateiro da Bairrada—todas as elegantes ociosidades patricias e dinheirosas, que por Lisboa entreteem o fogo da luxuria, nas saturnaes nocturnas da cidade baixa. A policia, tão meticulosa para com outros gyneceus de menos alcandorados brazões, guardára sempre ante o alcouce das Simas, um mysterioso receio ennastrado de deferencia, alguma coisa como a protecção da lei aos grandes monopolios. De grandes personagens se dizia, que nas dobras d'uma capa andaluza, altas horas, alli vinham beijar, entre duas taças de Champagne extra-secco, velludosas covinhas de barba, divinas de mocidade, surprehendentes de frescura, pacientemente rebuscadas, negociadas, cathechisadas, pelas Simas, mãe e filha, durante uma alcovitice de semanas e semanas; através dos viveiros mais bem fornidos de caça, bairros pobres, casas de modista e bastidores. Os melhor informados, frizavam precisamente, as jerarchias e nomes dos grandes freguezes, apontavam (p. 303) os cocheiros de noite, muito em segredo commissionados para este serviço deshonesto; e outras historias lugubres... gritos de virgindades laceradas, rumores surdos de luctas no socego tragico da casa, sombras correndo em negro, de cabellos soltos, na brancura dos stores illuminados por dentro... Até d'uma vez... emfim, a instituição das Simas, entrada nos habitos lisboetas, fazia-se agora tão necessaria á cidade como os albergues nocturnos ou a Escola Polytechnica.

 

Farejando a sala, o frequentador habituado, teria podido adivinhar uma especie de plano de campanha na ordenação dos espectadores da plateia, plano sabio traçado por algum grande claquista envelhecido nas barafundas do proscenio. Cada ala de fauteuils tinha o seu chefe. Ao pé da cadeira d'um espectador indifferente, viera installar-se um espectador comprado. Nas primeiras filas, destacando a sua linha temivel de luvas brancas e faces terrosas, installara-se a escóla que protegia a Velledo, na pessoa de dez ou doze escriptores cambados, e uma tropa de conselheiros e velhotes de bom tempo, por cujos (p. 304) leitos a actriz espargira os perfumes talvez do seu banho matinal. Festejado Peres e Moreira das magicas, inquietos, encasacados, cavalleiros de Christo, profusos d'adeuses e abraços, tinham-se postado ás portinholas da sala como duas fuinhas, passando palavra aos que iam entrando, distribuindo poesias, pedindo applausos descaradamente. E ao passo que o brasileiro cuidava da ceia, com profusão de flôres e philarmonicas, Rogério levára ao Monte-pio os ultimos penhores que pudessem pagar um brinde a essa mulher que o entontecia e deslumbrava. No momento de descer a escada da Velledo, ainda o dramaturgo estava decidido a romper com ella. Porém cá fóra, a sua indole cobarde, amollecida de desejo, perdidos uns restos de pudor, tinha concebido possuir a todo o transe aquelle bello corpo de espuma e rosa, custasse o que custasse, uma só noite que fôsse—e assim organisára a reunião de criticos no laboratorio de pharmacia, a detenção de Lindôso, o chuveiro de panegyricos em todos os jornaes, e emfim a bella enchente d'aquella noite. A imaginação de Rogério fôra de tal ordem e presteza, que Pirralho e os adoradores d'Alcina apenas tinham encontrado cadeiras nas ultimas filas, (p. 305) e camarotes das ultimas ordens. Desterrados para tão longinquas paragens, perdidos por escaninhos taes, facil seria suffocar a pateada que elles intentassem. Lindôso, desacreditado pelo artigo d'essa manhã, não tinha julgado prudente apparecer. Pirralho voltara-lhe as costas, os amigos d'Alcina ameaçavam esbofeteal-o em publico. Já o calor aljofrava as calvas susceptiveis, e as asas dos leques, por centenas, faziam no ambito como um borborinho de pombal.

Á hora de subir o panno, o triumpho negociado por Rogério era coisa decidida ou quasi; e os animos pareciam propensos a victoriar, mais uma vez, a nossa primeira actriz. A peça, retalhada a dialogos scintillantes, era alguma coisa no genero Sardou e Dumas filho, estapafurdia como senso dramatico, mas irritante d'ironias e perfumada de gentilissimas graças—um adulterio desculpado por theorias de folhetim, em cuja imoralidade ninguem fizera attenção. N'essa comedia, toda sublinhada com uma rara finura, esfuziando os paradoxos por jorros e as mordacidades por turbilhões, sem entrecho quasi e profunda não obstante, combinando argucias de gentil-homem com sahidas de garoto, (p. 306) imagine-se o que faria a Velledo, quasi gorda, chegada aos quarenta, com gestos atufando-se na plastica sólida dos braços, e não possuindo já a nervosa vida de scena, inspirativa, momentanea, nem já podendo facetar pelos entonos da voz, as mil intenções e subtilezas de dialogo, d'uma peça toda intellectual como aquella. Em compensação, as toilettes de rigor, os setins roçagantes, os pufs d'estofo adamascado, bordados de flôres, plumas, franjas e peitilhos de contas, iam direito á fascinação das burguezas. E apenas ella appareceu, foi na sala um borborinho atufado—sss... sss...—alguns tacões bateram ainda, e houve nas torrinhas um bocejo em voz alta, intencional. Mas estava calculada a reacção. De varios pontos, subito, ao mesmo tempo, sahiram palmas destacadas, quatro ou cinco vezes gritando:—bravo!—e uma formidavel salva revoou no theatro, louca, ensurdecedora, como nunca se vira. Vibrado o centro emocionavel da turba, podia a peça ter corrido como quizesse, bem, mediocremente ou mal; o resultado tinha de ser uma victoria. Foi assim que no segundo acto as chamadas eram já tantas, que Velledo fatigada, resolveu, desmaiar em scena. As flôres enchiam completamente o (p. 307) palco e choviam sem conta dos camarotes. De pé nas cadeiras, debruçadas lá cima das torrinhas, centenas de figuras batiam as mãos; e Rogério achando ainda uma scentelha dos juvenis enthusiasmos d'outr'ora veio á scena offerecer-lhe um volumoso cofre de sandalo.

Disse-lhe rapidamente:—a peça nova fez successo. Cumpri a minha promessa. Espero não esquecerá a sua.

—Obrigada, disse ella, estendendo-lhe a mão, e a sua voz commovida, dir-se-hia fluctuar n'um lago cerulo de promessas d'amor.(Voltar ao Conteúdo)

INDICE

  1. Aves Migradoras
  2. O Sineiro de Santa-Agatha
  3. Pequeno Drama na Aldeia
  4. A Provincia, 171
  5. O Juramento da Condessa Esther
  6. Coronado
  7. A Eminente Actriz

 

Nota de Rodapé 1: Fluidos telepaticos, animicos, que se desagregam dos mediuns em somno hypnotico, chegando a tomar formas fotografaveis.(Voltar ao Texto Principal)






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