Project Gutenberg's Epistola de Heloysa a Abaylard, by Alexander Pope
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Title: Epistola de Heloysa a Abaylard
composta no idioma Inglez por Pope
Author: Alexander Pope
Translator: José Nicolau de Massuelos Pinto
Release Date: October 3, 2007 [EBook #22870]
Language: Portuguese
Character set encoding: ISO-8859-1
*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK EPISTOLA DE HELOYSA A ABAYLARD ***
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EPISTOLA
DE
HELOYZA A ABAYLARD,
COMPOSTA
NO IDIOMA INGLEZ
POR
POPE,
E TRASLADADA
EM VERSOS PORTUGUEZES
POR * * Mos.
LONDRES:
NA OFFICINA DE GUILHERME LANE,
RUA DE LEADENHALL.
1801.
III
ASSUMPTO.
Abaylard, e Heloyza viveraõ no duodecimo
Seculo; merecendo neste a mais destincta
Contemplaçaõ, assim pelos seus talentos,
e Conhecimentos literarios, como pelas qualidades
externas, de que a Natureza liberalmente
os tinha dotado, nenhuma couza porem
concorreo tanto para os fazer celebres, como a
sua Paixaõ desgraçada: Depois de huma longa
serie de infortunios, se retirou cada hum
delles a Mosteiros, aonde consagraraõ o resto
de seus dias a exercicios de Religiaõ, e Penitencia.
IV
Succedeu, que alguns annos depois da
sua separaçaõ, huma Carta, em que Abaylard
narrava a hum de seus Amigos todas as suas
desgraças, chegou por cazualidade ás maõs de
Heloyza, despertou esta narraçaõ toda a sua
ternura; e deu occaziaõ a esta famoza Carta,
que pinta taõ vivamente os Combates da
Natureza, e da Graça.
1
EPISTOLA
DE
HELOYZA A ABAYLARD.
Neste retiro quieto,
Onde em morna solidaõ
Levanta os olhos aos Ceos
Cançada contemplaçaõ;
No Lugar onde o Silencio
Repouza profundamente
Que movimentos perturbaõ
Minh'alma com dõr vehemente!
Porque razaõ se extraviaõ
Fòra do sancto retiro
Meus sentimentos profanos
Porque motivo eu suspiro!
2E porque meu coraçaõ,
De Amor o fogo esquecido,
Inda será devorado
Ja a cinzas reduzido?
Que! Amarei ind'agora!
Eis a Carta qu'elle envia,
He o nome de Abaylard,
Que inda bejo entre agonia;
Nome fatal e querido!
Nunca mais proferirei
C'os meus labios, a que os votos.
Impoem do Silencio a lei:
He para sempre encerrada
Terna idea de Abaylar
No coraçaõ, que naõ posso
C'o a do meu Deos separar.
Que minha Maõ se suspenda,
Tal nome naõ và traçar....
Mas, oh Ceos, que tenho escripto!
Va-o meu pranto apagar.
3Debalde Heloiza aflicta
Recorres ao pranto, á prece,
Determina o coraçaõ,
E sempre a maõ lhe obedece!
Muros, que encerrais sombrios
Mais de mil votos ardentes;
E que os ecchos repetis.
De Suspiros penitentes;
Rochedos, grutas de espinhos,
Por toda aparte errissados,
Penhas que o uzo amacia
Dos joelhos lacerados:
Altàres, aonde Virgens,
Com hum fervor incessante,
Vellaõ de noite, e de dia
Com palidez no semblante:
Imagens d'aquelles Sanctos,
Que aos Ceos por vencer se aprazem
Tua vista, e meu silencio
Insensivel me naõ fazem:
4Sempre o Ceo em vaõ me chama,
Quando em fervente Oraçaõ,
Subjeita me a Natureza
Metade do Coraçaõ;
E as preces, jejuns, e o pranto
Naõ póde extinguir thé gora,
Nem ao menos moderar
O fogo que me devora.
Apenas tremula abri
Tua Carta, ah meu Querido!
Logo teu nome s'of'rece
A meus olhos, meu sentido;
Eis que subito rebenta
O sentimento magoado
De minhas desgraças todas,
Nome fatal, e adorado!
Que jamais eu pronuncio,
Sem que meu pranto amargozo,
Envolto em crueis suspiros,
Me lembre o trance horroroso
5Tremo sempre, se o meu nome
Co'a vista infeliz acerto,
Pois sei que algum infortunio
O seguirá de bem perto,
Meus olhos nadando em pranto,
Correndo de linha em linha,
Achaõ somente desgraças
Da minha sorte mesquinha
Mil vezes de ardente amor
M'inflama a voracidade,
Outras da dor opprimida
Geme a tenra mocidade;
Em fim no retiro escuro
D'hum Mosteiro clauzurada
Manda a Religiaõ se extinga
A paixaõ mais inflamada;
Aonde deve acabar
Com impossivel victoria
As duas paixoens mais nobres
O terno Amor, e a Gloria.
6Mas assim mesmo, Abaylard,
Escreve me, sim, consente
Que eu saiba os ternos transportes,
Que inda tua alma hoje sente:
Nossas dores se confundaõ,
Se temos o mesmo Fado,
Naõ escape hum só suspiro,
Que naõ seja compensado;
Se he est'unico remedio,
Illezo do Fado inhumano,
Serás dos meus inimigos
Abaylard o mais tirano!
Minhas lagrimas--saõ minhas,
Naõ as poupo á Amor saõ dadas,
Ainda as que ser deviaõ
Na oraçaõ derramadas:
Meus tristes olhos naõ tem,
Nem podem ter outra acçaõ,
Será o ler, e o chorar
Sua eterna occupaçaõ.
7Huma parte em tuas penas
Tenha por triste prazer,
Ou inda mais venhaõ todas
O meu Coraçaõ encher;
O Ceo inspirou primeiro
Das letras alta invençaõ,
Para dar aos desgraçados
Suave consolaçaõ:
Para huma captiva amante
Foi hum celeste favor;
Ellas exprimem, e fallaõ
Toda a ternura de Amor;
Hum juvenil Coraçaõ,
De seu soccorro ajudado,
Puros dezejos sem susto
Explica ao seu Bem amado;
A alma se manifesta
Co'a singeleza devida,
Aos olhos do charo objecto
He longa auzencia illudida;
8Juntando longiquuos Lares,
Corre hum suspiro inflamado
Por seu magico poder
Do Indo ao Polo apartado.
Bem sabes com que innocencia
Teu amor antecipava;
Que da amizade a apparencia
O nosso ardor disfarçava;
Que achei sempre em teu aspecto
Huma angelica figura;
Que emanava dos teus olhos
Huma chama etherea, e pura;
Tua Amante, sem receio
Absorta a teu lado estava,
Por isto, sim, sem remorso
Minha paixaõ fomentava:
Se erguias celeste canto
Ao Supremo Author do dia,
Me figura que o Ceo
Attentamente te ouvia;
9Athé as verdades sanctas,
Reveladas com certeza,
Parecia que de teus labios
Cahiaõ com mais belleza.
Que perceitos dictarias,
Que hoje mesmo eu naõ estime,
Facilmente me ensinaste
Que o Amor naõ era hum crime:
Á seducçaõ dos sentidos
Depressa me abandonei,
Naõ vi outra Devindade
Senaõ a que em ti achei;
A posse da Gloria eterna
Com tanto prazer naõ via,
Deixei de invejar hum Ceo
Que por te amar perderia.
Ah! Quantas vezes eu dice,
Se á eleiçaõ de hum espozo
Paterna lei me obrigasse
Com laço eterno, e odiozo.
10Julgara toda a uniaõ
Pelo tormento maior,
Se naõ fosse vinculada
Com os encantos de Amor;
He amor qual avezinha,
Se vê prizoens conjugaes
Estende ligeiras pennas,
Eis voa, naõ torna mais:
Embora d'honras, riquezas
Seja hymeneo coroado,
E o nome de quem o abraça
Seja sancto, e respeitado;
Mas brilhantes apparencias
De vulgar satisfaçaõ
Tornaõ se em nada ao aspecto
Da verdadeira paixaõ;
Honras, credito, riquezas
Que sois á vista de Amor?
Inspira este Deos ciozo
Com vingativo furor
11Inquietas paixoens terriveis
Ao que profano dezeja
Nelle buscar outro bem
Que so o de Amor naõ seja
Se visse a meus pés prostrado
Do Mundo o amplo Senhor
Inda pelo Throno do Mundo
Desprezára o seu amor;
Thé recuzando do Cezar
O consorcio o mais brilhante
Preferira de quem amo
Ser huma fragil amante.
Se outro titulo encontrasse
Mais terno, e livre seria
Este o nome preciozo
Que para elle tomaria.
Que dita se duas almas
Com indissoluvel firmeza
No seu livre amor conhecem
Só as leis da Natureza!
12Hum so objecto ocupa
O Coraçaõ que amor sente,
He possuido, e possue
Em mutua paixaõ ardente;
Em dous Amantes se encontraõ
Pensamentos sempre iguaes;
E sem que os labios se expliquem
Os olhos expressaõ mais.
Se he esta a maior ventura,
Que hum amante pode achar
Esta mesma n'outro tempo
Foi a minha, e de Abaylar....
Mas que subita mudança
Me apprezenta o impio Fado!
Ceos que vejo! O meu amante
Prezo, nû, ensanguentado!
Aonde estava Heloiza
Neste momento horroroso!...
Gritos, forças se armariaõ
Contra o lance sanguinozo.
13Oh barbaros, suspendei
A feroz maõ homecida,
Ou arrojai toda a raiva
Contra a minha infausta vida!
Ao menos se ambos culpados
A mesma sorte condemna
Recaha em dous o castigo
Soframos a mesma pena...
A dôr me opprime, e perturba...
Por pejo, e piedade cesse...
Meus soluços, e vergonha
Na garganta a voz impece.
Poderás ser esquecido,
Dia solemne, e fatal
Onde quais victimas fomos,
E esp'rando o golpe mortal
Junto aos tremendos Altares,
Entre combates violentos,
Correo meu inutil pranto
Em taõ funestos momentos.
14Dei ao Mundo hum adeos eterno
Á flor dos annos mingoados,
E bejo o sagrado véo
Com os meus beiços gelados.
Tremem os Altares sanctos
Quando minha voz conhecem,
E até os sagrados Lames
Arquejando se amortecem:
O Ceo acredita apenas
A Conquista que fazia;
Ouvem com espanto os Anjos
Os votos que eu proferia;
Mas com tudo ao Sanctuario
Com palidez penetrava,
E os olhos que à Cruz proponho
Em ti somente os fitava.
Graça eficaz, puro zelo
Da santa Religiaõ
Naõ compunhaõ o caracter
Desta infeliz vocaçaõ;
15Era hum amor desgraçado
Essencia d'hum Ser constante,
Tudo entregava e perdia
Por ter perdido hum Amante.
Com teus olhos, teus discursos
Vem suspender meu tormento,
Este poder te deixaraõ;
Possa em teu seio hum momento
Repouzar minha cabeça:
Seja em teus labios bebido
De amor o doce veneno
De teus olhos recebido;
Ja naõ pertendo do Fado
Que outro algum bem me destine,
Da-me, sim, o que dar podes,
Deixa que o resto imagine....
Porem nao! Fujaõ de todo
Pensamentos criminozos,
Có meu dever vem mostrar-me
Eternos bens mais ditozos,
16Tira a meus olhos a venda,
Pinta-me a Celeste Gloria,
Faze minh'alma te fuja
Dando ao seu Deos a Victoria.
E se a meus votos te negas
Minhas fieis companheiras
Os teus cuidados merecem
Saõ do teu gremio as primeiras,
Saõ plantas que cultivaste,
Filhas da tua piedade.
Que o Mundo vaõ desprezáraõ
Na mais tenra Mocidade,
Ao innocente Retiro
Pela Virtude guiadas
Dentro das Paredes sanctas
Por ti mesmo levantadas.
O teu zelo fervorozo
Tem ornado este Dezerto,
E n'hum Ermo dezabrido
Vio-se O Parayzo aberto;
17Aqui nem orfaõ aflicto
Chora a paterna riqueza
Para os Altares roubada,
Que fas profana grandeza;
Nem bellos quadros se admiraõ,
Nem as dadivas brilhantes,
Offertas de pecadores,
Sem virtude agonizantes,
Tributo de hum vaõ dezejo
De comprar o Ceo, negado
Por cauza do meio torpe
Para alcançar empregado;
Mas singela Architetura,
Como a Piedade que a habita,
Melhor os Hymnos repete
Á Magestade Infinita.
Se ao menos te transportasses
Ao lugubre Retiro,
Que da pezada existencia
Verá meu final suspiro
18Debaixo destes Zimborios,
De piramides c'roados,
Que os tectos de eterna noite
Seriaõ sempre afumados,
Mas pelas sombrias fréstas,
Somente huma luz escassa,
Com as trevas de mistura,
O Sol medrozo traspassa:
Teus olhos dessipariaõ
A escuridaõ tenebroza;
E em torno de ti brilhára
Huma gloria radioza;
Mas aqui nenhum objecto
Consolador se apprezenta,
Tudo, tudo ergue gemidos?
E do pranto se alimenta.
Vem pois meu Pay, meu Irmaõ,
Meu Espozo, meu Amante,
Tua Escrava, tua Irman,
Tua Filha nesse instante,
19Possa em favor de taes nomes,
Nomes que dicta o Amor,
Tua excessiva piedade
Excitar em seu favor;
Couza alguma melhor põde
Dar me erforso a meditar
Ou meus voluveis dezejos
De huma vez determinar;
Thè vejo com indif'rença
Simples divina belleza
Do espetac'lo qu'off'rece
O quadro da Natureza;
Estes pinheiros plantados
Entre erguidas Penedias,
Donde hum vento surdo agita
As suas comas sombrias:
Os regatos serpiando
Por entre penhas fragozas
Co'murmurio, que retumba
Em as grutas cavernosas;
20Estes lagos de cristal,
Onde Favonio contente
Com seu agradavel sopro
Encrespa a face dormente:
Objectos saõ, que algum dia
Eraõ por mim taõ prezados,
Naõ me daõ alivio agora
Naõ suspendem meus cuidados:
Pelos solitarios bosques
A negra Tristeza erra,
Esta abobeda sombria
Sepulcros somente encerra;
Espalha em torno hum silencio
Qual da mort' atro, e medonho,
Com seu ar afea hum quadro
N'outro tempo taõ rizonho:
Murcha o esmalte das flores;
Fas denegrida a espessura,
Thè do Mar horrido o som
Que em sequebrando murmura;
21Porem devo aqui viver,
Em quanto durar o alento,
Da submissaõ a hum Amante,
Triste fatal monumento.
A morte so quebrar pode
Estas cadeas illezas,
Nas suas maõs deixarei
Todas as minhas fraquezas;
Entaõ meu ardor extincto
Minhas cinzas recolhidas
Aqui esp'rarei que sejaõ
Com as tuas confundidas.
Ah infeliz! Pois te julgaõ
De hum Deos Espoza leal....
Quando somente es escrava
Do Amor, e de hum Mortal!
Vinde, Oh Ceos, em meu socorro...
Mas vem esta imprecaçaõ
D'hum effeito de piedade?
Ou d'atroz exesp'raçaõ?
22Que! No azilo o mais puro
De Castidade glorioza,
Nutro de hum profano amor
Huma chama criminoza?
Eu me devo arrepender....
Mas fazer posso o que devo?
Choro o Amante, e minha culpa
A choralla naõ me atrevo?
Eu reconheço este crime,
Subjeito a perpetua pena;
Mas o coraçaõ me arrasta
Quando o remorso o condemna;
Dos prazeres me arrependo,
Em que engolfada medito;
E por fragil contextura
Outros iguaes solecito.
Mil vezes levanto os olhos
Aos Ceos, minha ofença choro,
Outras mil o pensamento
Em contemplar te demoro,
23Electrizada de Amor
Desprezo emfim a innocencia,
Que recobrar pertendia
Com austera penitencia;
De ti esquecer me posso!
Odiar minha fraqueza!
Quando a cauza do delicto
He a propria Natureza!
Se destruilla pertendo
Sinto emfim, que o seu Author
He o pranteado objecto
Do meu excessivo amor!
Como separar do crime
A minha paixaõ intento,
Se existe em confuza maça
Amor arrependimento!
Como pode hum coraçaõ,
Qual o meu taõ consternado,
Pertender hum vencimento
A esforço humano vedado!
24Antes que minh'alma possa
Seus males adormecer,
Que combates se preparaõ
Entre o amor, e o dever!
Arrepender-se mil vezes,
Recahir, chorar o amante,
Repulsallo; em tudo incerta...
Sem o esquecer hum instante...
Mas naõ! Ja ethereo influxo
De todo o temor separa
Para consumar meus votos
Sacro auxilio se prepara.
Vem meu Pay, faze qu'eu possa
A Natureza enfrear,
Qu'amor renuncie, á vida,
A mim... Ao proprio Abaylar;
Enche do divino Amor
Meu coraçaõ, sim acode;
E quando delle evadires
Somente hum Deos entrar pode.
25Ah! Mil vezes de huma Virgem
O destino afortunado,
Que ao seu Creador somente
Tem seus dias consagrado;
Esquece o Mundo enganozo,
Que assim esquecido a tem,
Com as doçuras do socego
Goza o mais solido bem:
Humilde resignaçaõ
Faz sua prece attendida;
Entre o trabalho, e o repouzo
Se reparte a sua vida:
Hum sono doce a dispoem
Para a Vigilia, e Oraçaõ;
Tem com serenos dezejos
Sempre a mesma inclinaçaõ;
He o pranto o seu thezouro,
Aos Ceos penetraõ seus hymnos,
Cercaõ a de graça pura
Fulgentes raios divinos;
26Vellaõ-a em torno os Anjos,
Bafejando hum sono grato,
Tecem de apraziveis sonhos
Da eterna Gloria o retrato;
Para ella o Divino Espozo
O annel nupcial prepara;
Escuta o Côro das Virgens,
Que em seu louvor se entoara:
Fragantes rozas do Edén,
Que naõ podem ser murchadas,
Com mais viva côr rebentaõ
As que lhe saõ destinadas;
As azas dos Serafins,
Que os bandos rentos abalaõ,
Mil perfumes esquezitos
Benignamente lhe exhalaõ;
E su'alma emfim voando
Entre a celeste armonia
Sente o seu fim antevendo
A sempre eterna alegria
27Dif'rente tropel de sonhos
Minh'alma errante extravia;
E quando em nocturnas sombras
Me retrata a fantezia
Bem como te hei conhecido;
Entaõ minha consciencia
Se immudece, e á Natureza
Deixa liberta influencia;
Meu coraçaõ todo inteiro,
Naõ tendo mais que temer,
Voa para ti a buscar
O seu unico prazer
Eu sim te escuto, e te vejo,
Com minhas maõs deligente
Vou a segurar-te ancioza
Cerro o fantasma apparente;
Desperto-me, e nada escuto,
Naõ vejo mais que o engano;
Dezaparece o fantasma,
Como tu foge tirano;
28Eu o revoco, e he surdo
Á minha suplica activa,
Estendo os braços, so acho
Huma sombra fugitiva;
Outra vez os olhos fecho
Para o sonho recobrar...
Vinde outra vez illuzoens,
Vinde outra vez me encantar.
Ah que em vaõ vos torno a ver
Pois comtigo irei vagar
Pelos aridos dezertos
Nossas desgraças chorar:
Logo a huma torre te elevas
Do tempo meia escarpada
Pelos carcomidos muros
De tristes heras cercada;
Ou sobre montoens de rochas,
Cujo cimo as nuvens fende;
Que em arrogante estructura
Sobranceiro ao Mar se estende;
29D'ali, qual dos Ceos me fallas;
Mas negras vagas me aterraõ,
Separaõ-nos densas nuvens,
Os ventos furiozos berraõ;
Gélo de horror, eis o sono
Foge de arranco, e me deixa
Outra vez entre os tormentos
Da minha amargoza queixa.
O destino a teu respeito
Tem seu rigor moderado,
Pois dos prazeres, e penas
Fria suspensaõ te ha dado:
He tua vida o socego,
Teu Coraçaõ sem paixoens,
Similhante ao Mar, em quanto
Naõ conheceo Aquiloens:
He igual o teu estado
Ao de hum sancto adormecido,
Que he de todos os pecados
Plenamente absolvido;
30E que em seu Deos confiando
Huma certa salvaçaõ
Para alcançar naõ preciza
D'outra alguma espiaçaõ.
Vem pois, querido Abaylard,
Que receio te domina?
Amor o abrazado faxo
Para os Mortos naõ destina;
Imperio em ti ja naõ tem
O fogo que amor ordena,
A Natureza immudece,
A Religiaõ o condenã;
Mas quando fria indif'rença
Governa em teu Coraçaõ,
Por ti ainda Heloiza
Sente a mais viva paixaõ!
Oh chama em meu peito eterna
Activa chama exesp'rada!
Á alampeda sepulcral
Tristemente assemelhada;
31Que dà innutil calor
Ás urnas de pedra fria,
Que para os Mortos se accende,
A quem somente alumia:
Que outras scenas se preparaõ
Por onde os meus passos seguem!
Qu'imagens ternas, p'rigozas
Com profia me perseguem!
Ou quando sobre os sepulcros,
Ou prostrada ante os Altares,
Illudindo os meus sentidos
Cauzaõ me acerbos pezares:
Sempre entre o Ceo, e Heloiza,
A imagem tua apparece;
Apenas escuta hum Hymno
A tua voz reconhece;
E quando em truncadas preces
Aos Ceos minha voz levanto,
A cada som que articulo,
Me corre alternado pranto.
32Ou se entre nuvens de incenso,
Que á Imagem d'hum Deos se envìa,
E o som devoto do Orgão
Me enche toda de armonia;
Se occorre hum so pensamento,
Que a imagem tua m'offerece
Vejo Abaylar; e a meus olhos
Tudo o mais dezaparece;
Lumes, Templo, Sacerdotes
Á minha vista naõ tornaõ;
E quando aos Sanctos Altares
Mais de mil faxos adornaõ;
E aos Anjos que emtorno os cercaõ
Penetra o maior respeito
Hum mar de paixoens ardentes
Me innunda o cançado peito,
Mas se no tempo em qu'of'reço
Hum coraçaõ mais contricto
Ante o Throno do meu Deos;
E arrepender me medito;
33Que invoco este Deos Piedozo
Com meu pranto penitente;
Que vai penetrar minh'Alma
Huma Graça transcendente;
Se te atreves, qual me encantas,
Abaylard es poderozo,
Vem revogar os decretos
Do mesmo Ceo rigoroso;
Disputa-lhe hum Coraçaõ
Com teus olhos, inda mais,
Aos meus escurece a imagem
Das Ditas Celestiaes;
Desvia a Graça Divina
Com hum Mando absoluto
E o meu arrependimento
Se te apraz torna-o sem fructo,
Dos Ceos me fecha o caminho,
Acharás minh'alma franca,
Dos braços do mesmo Deos
A tua Victima arranca....
34Mas que digo, desgraçada!
Foge-me!... O Ceo mé depare
Entre nós altas montanhas,
Immenso Mar nos separe;
Naõ tornes mais, naõ me escrevas,
De mim algum pensamento
Naõ tenhas, nem leve parte
Do que he por ti meu tormento:
Teus juramentos disolvo,
De ti nem lembrar-me quero
Tudo o que a mim se refere
So que aborreçao espero....
Olhos cheios de ternura
Qu'inda tanto me lembrais,
Doces ideas queridas
Adeos para nunca mais....
E tu, Oh Graça Divina;
Virtude Celestial,
Esquecimento tranquillo
Do Mundo torpe, e fatal;
35Continua esp'rança qu'es filha
Do Ceo, e tudo alegrais,
Fé que d'immortalidade
Nosso gozo anticipais;
Quaes Hospedes, doces, ternos
Em meu Coraçaõ entrai;
E a hum eterno repouzo
Minh'alma aflicta entregai.
Sobre o tumulo estendida
Triste Heloiza pondera
Como hum bem que ja no Mundo
Somente dezeja, e espera....
Que escuto! Que som he este!
Será dos Ventos rugido?
Ou será voz que me chama,
Que julgo ja ter ouvido?
N'huma noute, em que eu vellava:
As alampedas sombrias,
Que estendem seus frouxos raios
Em torno das Campas frias;
36Os lumes quaze expirantes,
Me figura a fantezia
Profunda voz subterranea,
Que d'hum sepulcro surgia,
Exclamando--"Triste Irman,
Eis aqui o teu lugar,
Este o azilo que deves
Eternamente ocupar;
Como tu fui algum dia
Huma victima de Amor,
Tremi, orei, devorando
A mais tormentoza dôr;
So neste perpetuo sonno
Pude o repouzo encontrar;
So aqui os desgraçados
Se deixaõ de lastimar
Cessaõ dos tristes Amantes
Os dolorozos clamores,
E perde a superstiçaõ
Os seus lugubres temores;
37Porque hum Deos mais indulgente,
Que o Mortal se persuade,
Benignamente perdoa
A humana fragilidade."
Eu corro, eu corro, que os Anjos
Os seus bersos rescendentes
De fino aroma preparem,
E as palmas sempre virentes;
Eu corro onde os Pecadores
Podem repouzo encontrar;
E os Justos de chamas puras
Seus Coraçoens inflamar:
Charo Abaylard, me difere
Pias honras luctuozas;
Vem adoçar-me a passagem
Ás Moradas Gloriozas;
Vê os meus labios convulsos,
Meus olhos immoveis cerra,
Recolhe o final suspiro;
Que minh'alma dezencerra...
38Porem naõ... Antes pertendo
De tua maõ vacilante
Co'as sacras Vestes cingido
Huma vella agonizante:
Of'reçe a cruz a meus olhos;
Que pertendo aos Ceos volver,
Ensiname, e ao mesmo tempo
De mim aprende a morrer;
Olha entaõ esta Heloyza,
Que tanto chegaste a amar,
Quando naõ he ja hum crime
O seu rosto contemplar;
Em lividez convertidas
As rozas do meu semblante,
Ja eclipsado nos olhos
Da vida o verniz brilhante;
Toma minha maõ, e aperta
Thé que cesse o respirar,
Que extincta minha existencia,
Eu deixe emfim de te amar...
39Quanto es eloquent', oh Morte,
So tu dás liçaõ preciza,
Que he louca a paixaõ profana,
Que hum mero pó diviniza.
Virá tempo, em que este objecto,
Que me vence, e me domina
Na materia organizada
Sofrerá total ruina!
Praza aos Ceos, que estas angustias
Do trance da vida á morte
Por hum Extasi Divino
Teu sofrimento conforte:
Anjos em nuvens brilhantes
Baixem do Ceo desvellados,
E sejaõ dos Ceos abertos
Raios de gloria emanados;
E os Celestes Moradores,
Saudando tu'alma pura,
Te abracem c'hum mesmo afecto
Igual á minha ternura.
40Hum mesmo marmore possa
Os nossos nomes conter;
E immortal minha paixaõ,
Qual tua fama fazer;
Entaõ se em fuctura idade
Dous Amantes viajando;
E do Paraclito as fontes
Com devoçaõ procurando;
Unindo suas cabeças
Para ler nossa Inscripçaõ
Bebendo seu mutuo pranto
Co'a mais viva compaixaõ.
"Praza aos Ceos, que em nosso Amor,
Ambos diraõ transportados,
A sorte naõ imitemos
De Amantes taõ desgraçados."
Que enternecidos seriaõ!
E o que ás Aras s'of'recendo,
Inda na pompa solemne
Do sacreficio tremendo;
41Que comoçaõ sentira,
Se os olhos seus dirigir
Sobre o piedozo Sepulcro
Que nossas cinzas cobrir!
Por hum instante deixando
O Ceo, do pranto assaltado,
Seo movimento de dôr
Logo será perdoado.
Se o Destino a algum Poeta
Da mesma sorte afligisse
Que hum pezar igual ao meu
Na su'alma pressentisse;
Que a chorar annos inteiros
Elle fosse condemnado
Os encantos que perdera
Auzente o seu Bem amado.
A considerar de continuo
Na imagem que o faz arder,
Aflicto sem esperança
De mais a tornar a ver.
42Se ao meu excessivo Amor
O seu Amor igualar
Escreva a funesta Historia
De Heloyza, e de Abaylar.
Aquelle que mais piedozo
Nossos infortunios sente
Este o Genio, aquem he dado,
Cantallos mais dignamente.
FIM.
GUILHERME LANE, RUA DE LEADENHALL.
End of Project Gutenberg's Epistola de Heloysa a Abaylard, by Alexander Pope
*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK EPISTOLA DE HELOYSA A ABAYLARD ***
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