Nota de editor:
Devido à
quantidade de erros tipográficos existentes neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Dez. 2007)
BIBLIOTECA DO SÉCULO XVIII
II
CARTAS
SÔBRE A EDUCAÇÃO DA MOCIDADE
POR
A. N. RIBEIRO SANCHES
NOVA EDIÇÃO
revista e prefaciada
pelo
Dr.
MAXIMIANO LEMOS
COIMBRA
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
1922
CARTAS SÔBRE A EDUCAÇÃO DA MOCIDADE
BIBLIOTECA DO SÉCULO XVIII
II
CARTAS
SÔBRE A EDUCAÇÃO DA MOCIDADE
POR
A. N. RIBEIRO SANCHES
NOVA EDIÇÃO
revista e prefaciada
pelo
Dr.
MÁXIMIANO DE LEMOS
COIMBRA
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
1922
Desta edição
fez-se uma tiragem especial de 100 exemplares,
numerados e rubricados.
N.º_______
NOTÍCIA BIBLIOGRÁFICA
As
Cartas sôbre a
educação da mocidade que a
benemerência do sr. dr. Joaquim de Carvalho
hoje colocam nas mãos dos estudiosos são uma
das obras mais raras, se não a mais rara, do
grande sábio que se chamou António Nunes Ribeiro
Sanches. Não admira que isto suceda,
visto que hoje se sabe que a tiragem foi apenas
de cinqüenta exemplares que em Paris foram
entregues a Monsenhor Pedro da Costa de Almeida
Salema que em França nos represent que a
benemerência do sr. dr. Joaquim de Carvalho
hoje colocam nas mãos dos estudiosos são uma
das obras mais raras, se não a mais rara, do
grande sábio que se chamou António Nunes Ribeiro
Sanches. Não admira que isto suceda,
visto que hoje se sabe que a tiragem foi apenas
de cinqüenta exemplares que em Paris foram
entregues a Monsenhor Pedro da Costa de Almeida
Salema que em França nos representava
[1].
¿A quem eram dirigidas estas cartas? O
sr. dr. Teófilo Braga, na sua
História da Universidade,
vol. III, pág. 349, afirma que o destinatário
[VI]era o principal
Almeida que fôra nomeado
director geral dos estudos e remetera a Sanches
o alvará de 28 de junho de 1759 abolindo as
classes e colégios dos jesuitas.
Não é assim. As
Cartas foram dirigidas a
Monsenhor Salema e a êle se refere Sanches ao
escrever: «Quando V. Illustrissima foi servido
communicarme o Alvará sobre a reforma dos Estudos,
que S. Magestade Fidelissima foi servido
decretar no mez de julho passado e juntamente
as Instruçoens para os Professores de Gramatica
Latina, etc., logo determinei manifestar a V. Illustrissima
o grande alvoroço que me causou a real
disposição sobre a Educação
da Mocidade Portugueza;
mas embaraçado com algũa dependencia
que então me inquietava e com a saude mui quebrantada
ao mesmo tempo, não pude satisfazer
logo o meu dezejo».
Camilo Castelo Branco não possuía exemplar
impresso das
Cartas, mas tinha em
seu poder
uma cópia que começou a publicar no
Ateneu,
revista conimbricense. Não identificava o manuscrito
que possuia com as
Cartas sôbre a
educação
da mocidade, mas a obra era dirigida a Pedro
da Costa de Almeida Salema. Esta idea varreu-se-lhe
[VII]com o tempo. Nas
Noites
de
insómnia,
n.º 2, de fevereiro de 1874 num artigo intitulado
O oráculo do Marquez de Pombal
diz: «O Marquez
de Pombal, ou não quiz, ou apesar da sua
omnipotencia não logrou assegurar repouso na
patria ao seu douto oraculo, em paga dos conselhos
e projectos de boa administração que o neto do
hebreu lhe suggeriu de Paris, e o valido ingrato
aproveitou, occultando-lhes a procedencia. A
creação do
Collegio dos
nobres por carta de lei
de 7 de março de 1761 havia sido aconselhada
por carta de Ribeiro Sanches, datada em Paris,
em 19 de novembro de 1759».
Esta data é precisamente aquela que se lê no
termo das
Cartas sobre a
educação da mocidade.
Publicou Camilo alguns trechos do seu manuscrito.
O que saíu no
Ateneu compreende as
primeiras 16 páginas da edição
original que correspondem
às primeiras 22 páginas desta; os que
apareceram nas
Noites de
insómnia são transcritos
das
Cartas a contar da
pág. 104 que correspondem
a
pág. 168 desta.
No
Perfil do Marquez de Pombal de
novo considera
Ribeiro Sanches «o mais proficiente collaborador
das reformas pombalinas» e diz que êle
[VIII]
imprimiu em 1760 umas cartas sob o título de
Cartas sôbre a
educação da mocidade,
provàvelmente
enviadas ao Conde de Oeiras. Esta hipótese
encontra a desmentí-la o tratamento de
Vossa
Ilustrissima que êle dá
à pessoa a quem se dirigia.
Estamos hoje em circunstâncias de dizer dum
modo incontestável que o correspondente de
Sanches era Monsenhor Salema. Os dois documentos
que pela primeira vez foram publicados no
nosso livro a que atrás fizemos referência o
atestam.
«O Dr. Sanches me remetteu hoje o livro incluso
com a carta junta, obra que já insinuei a
V. Ex.
a e que me parece merecer a
attenção de
El Rey Nosso Senhor e do seu sabio e respeitavel
ministerio pelos
mesmos objectos
de utilidade que
ella propõe para a educação e
ilustração da mocidade
portugueza e que é a materia de varias
conversações que tive com este douto e honrado
patriota; julgando-a de grande proveito, lhe signifiquei
a quizera pôr por escripto para que
deste modo resultasse ao nosso reino todo o bem
que se póde tirar da dita obra: a mencionada
carta narra o motivo porque pareceu mais conveniente
que se preferisse a impressão do manuscripto,
estando certo que o numero de exemplares
[IX]não
excede o de que o autor faz
menção
e que amanhã vem todos para meu poder»
[2].
Junta vinha a carta de Sanches a Monsenhor
Salema com a mesma data:
«
Illustrissimo e Reverendissimo
Senhor.―Foi V. Illustrissima
servido conceder-me mandar-lhe esse exemplar
do manuscripto que tive a honra de communicar-lhe,
pedindo-lhe seja servido remettel-o á nossa Corte, e
das precauções que tomei para que toda a
impressão
viesse a ficar no poder de V. Ill.
ma, como
consta da
obrigação do impressor aqui junta: tão
(bem) peço a
V. Illustrissima humildemente queira declarar o motivo
porque se imprimiu este papel, reduzindo-se todo a
diminuir o volume do manuscripto, e para que se lesse
o conteúdo com mais facilidade e egual recato. Espero
amanhã levar a V. Illustrissima os cincoenta exemplares,
porque não foi possivel estarem promptos mais
do que esse unico que remetto agora. Se V. Illustrissima
fôr servido tambem de dar parte á nossa
Côrte que dita impressão ficará no seu
poder até receber
ordem para dispôr della; porque só deste modo
ficará a nossa
Côrte persuadida que não sendo do seu
agrado este impresso ninguem o verá, nem
lerá...»
Os dois documentos provam que as
Cartas
foram dirigidas a Monsenhor Salema e que êste
[X]até
tomava para si uma parte da autoria do livro,
ao menos como colaborador.
O livro é um opúsculo de 130 páginas
além de
2 de índices. O frontispício é o
seguinte:
Cartas
/
sobre /
a
educação /
da
mocidade / (uma vinheta) /
em
Colonia / (um filete) /
MDCCLX.
Na última página, remata:
Deos guarde a V. Illustrissima muitos anos.
Paris 19 Novembro 1759. Isto em letra de fôrma
e em letra manuscrita, mas não de Ribeiro Sanches,
a assinatura: Antonio Nunes Ribeiro Sanches.
Os documentos que atrás reproduzimos demonstram
que a impressão foi feita em Paris.
Se não tivessemos esta prova irrefragável,
tornaria
muito provável a asserção de que a
impressão
tinha sido feita em França a circunstância
de que a
taboa das divisoens, ou,
como hoje diriamos,
o índice, tem a seguinte indicação, em
seguida à designação
Das Escolas e dos Estudos
dos Christãos até o tempo de Carlos Magno, no
anno 800...
Page 5
O formato é de 0,86×0,15, tendo cada
página
46 linhas. O tipo empregado foi o elzevir de
corpo 8.
CARTAS
SOBRE
A EDUCAÇAÕ
DA MOCIDADE.
EM COLONIA.
M. DCC. LX.
(Reprodução do
frontispício da
1.ª
edição)
[XI]
Lendo o livro, não se encontram nele, senão
por excepção, as notas pessoais que tanto
interêsse
dão ao
Método para aprender e
estudar a
medicina, mas estas destacamos:
No § que se intitula dos
Estudos Mayores ou
Colegios
Reaes (pág. 95 da
edição original;
pág.
154
desta) referindo-se a um dos Colégios Reais que
se deviam fundar na Universidade escreve: «Mas
como sou obrigado escrever do método de ensinar
e aprender a Medicina, então he que tratarei mais
particularmente desta Escola». Outra passagem
fez-nos descobrir uma edição de Camões
em que
êle colaborou: «E por esta razão mostrei
eu a
necessidade que tinhão as Escolas Portuguezas
de adoptar o Poema de Camoens, para educar a
Mocidade, como se poderá ver no Prefacio da
ultima edição (pag. 101)».
A edição a que Sanches se refere é a
que em
1759 publicou em Paris o editor Pedro Gendron
e ofereceu ao nosso ministro em Paris, Pedro da
Costa de Almeida Salema. Efectivamente em
uma advertência que se encontra no primeiro
volume com o título
Ao
leitor lêem-se as seguintes
palavras:
«Que considerem agora aquelles que tem pela
[XII]
maior fidelidade de um estado a boa educação
da mocidade, que effeitos não produziria nella,
se nas escolas onde se aprende a ler e escrever
ou nas do latim, se explicassem aquelles logares
em que o Poeta exprime, com imagens tão vivas
e amaveis, a
fidelidade e a
obediencia devida aos
Paes e ao seu Soberano; a
esperança e um animo
invicto aos perigos; a
circunstancia
das grandezas
humanas e o pouco que são o illustre do nascimento,
honras e riquezas, ao serem declaradas
com a virtude, valor, sciencia, industria e amor
do bem publico! Este e outros muitos preceitos
da vida civil, que se lêem neste Poema, formariam
em tenra edade um caracter nacional tão louvavel
e de tanta importancia no resto da vida, que Portugal
veria ainda renascer homens tão excellentes,
como o Poeta cantou em todas as suas obras.
«Se tivesse tanta fortuna que fizesse presente a
Portugal do mais excellente Auctor classico para
a instrucção da sua mocidade; se eu visse ainda
que havia mestres tão amantes da sua patria e
da virtude, que adoptassem este Poeta para instruir
e plantar no coração dos seus discipulos os
fundamentos de toda a felicidade humana, ficaria
bem recompensado do trabalho que tomei em
[XIII]
imprimil-o e da despeza que fiz imitando as
edições do melhor Elzevir para merecer esta obra
(ainda por este titulo) o nome de primeiro Autor
classico portuguez. Então ficarei satisfeito por
que contribui para augmentar a gloria da nação
portugueza: e que dei motivo de lembrar-se das
acções heroicas que tem obrado, para perpetual-as
por esta instrucção á mais dilatada
posteridade».
Dissemos no
Ribeiro Sanches que
não julgavamos
fácil determinar a parte que o grande
sábio tomou nesta edição do poeta por
quem
tinha tanta admiração. Pendemos, todavia, para
acreditar que o seu papel se não limitou a escrever
esta pequena advertência e que as palavras
que se lêem no princípio das
Cartas sôbre
a educação da mocidade
sôbre os motivos que retardaram
a escrita dêste livro:
embarassado com
algũa dependencia que então me
inquietava se relacionam
com a edição de Camões.
Raríssimas, as
Cartas sôbre a
educação da mocidade
houve uma ocasião em que se poude julgar
que se tornariam mais divulgadas. Em 1882
começaram elas a ser republicadas pela benemérita
Sociedade de Instrução do Pôrto na
Revista [XIV]que
era o seu boletim. No
número de 1
de maio começaram a aparecer com esta nota:
«Estas cartas são raras, como preciosas
são
publicadas por iniciativa do Presidente d'esta
Sociedade que possue o exemplar impresso em
Colonia em 1760 na sua escolhida livraria. Inocencio
da Silva (
Dicc. Bibliogr.) declara
na biographia
do celebre medico conhecer apenas um
unico exemplar que existia em Lisboa. É escusado
encarecer o valor scientifico das
Cartas.
Ellas fallarão por si. Faremos uma tiragem á
parte d'ellas que daremos pelo custo aos socios
e assignantes da
Revista, e pelo
dobro aos extranhos.
A publicação seguirá ininterrupta,
dando-se
cada mez 16 pag. de modo a completar-se
a collecção até ao fim do anno
corrente. O snr.
Presidente José Fructuoso Ayres de Gouvêa Osorio
fará uma introducção especial a este
notavel trabalho
do medico portuguez».
Estas promessas não foram inteiramente cumpridas.
Neste ano de 1882, o periódico publicou
com toda a regularidade as
Cartas e
ainda sairam
no primeiro número de 1883; a
introdução de
Aires de Gouveia nunca se escreveu e só agora,
passados quási quarenta anos, as famosas
Cartas
[XV]
reaparecem completas; e, coisa singular, o mesmo
exemplar que serviu para a publicação da
Revista
da Sociedade de Instrução
é o que serve para esta
edição. Esse exemplar pertence hoje ao dr.
José
Carlos Lopes, filho do ilustre professor da Escola
Médica Cirúrgica do Pôrto que teve o
mesmo
nome.
A reprodução faz-se com toda a
exactidão, limitando-se
a nossa colaboração à
revisão das
provas e à colocação dalgumas
vírgulas e acentos.
Setembro de 1922.
Maximiano
Lemos.
CARTAS
SOBRE A
EDUCAÇÃO DA MOCIDADE
Illustrissimo Senhor,
Quando V. Illustrissima foi servido communicarme
o Alvará sobre a reforma dos Estudos, que S. Magestade
Fidelissima foi servido decretar no mez de Julho
passado, e juntamente as Instruçoens para os professores
da Grammatica Latina, &. logo determinei manifestar
a V. Illustrissima, o grande alvoroço que me
cauzou a real disposiçaõ sobre a
educaçaõ da Mocidade
Portugueza; mas embarassado com algũa dependencia
que entaõ me inquietava, e com a saude mui quebrantada
ao mesmo tempo, naõ pude satisfazer logo o meu
dezejo; naõ só applaudindo o util desta ley, mas
taõbem,
renovando os mais ardentes votos pela vida e
conservaçaõ
de S. Magestade que Deos guarde, que com o
seu paternal amor cuida taõ efficazmente no augmento,
como taõbem na gloria dos seus amantes e fieis Subditos.
Esta ley, Illustrissimo Senhor, incitou o meu animo,
ainda que pelos achaques abatido, a revolver no pensamento
[2]o que tinha ajuntado da
minha lectura sobre a
Educaçaõ civil e politica da Mocidade, destinada
a servir
á sua patria tanto no tempo da paz como no da guerra.
Ninguem conhece milhor a importancia desta materia,
que V. Illustrissima, e nesta consideraçaõ he que
determino
patentear-lhe naõ só hũa
succinta historia da
Educaçaõ civil e politica que tiveram os
Christaõs Catholicos
Romanos até os nossos tempos, mas taõbem
hũa noticia das Universidades, com a utilidade ou
inconvenientes,
que dellas resultaraõ ao Estado Civil e
Politico, e á Religiaõ. Espero que
será do agrado de
V. Illustrissima que me ocupe nesta indagaçaõ por
algum tempo, e que admirará, depois de ser servido
lê-la, a admiravel providencia de S. M. Fidelissima,
expressada neste Alvará que venho de lêr
novamente.
Verá V. Illustrissima que naõ temos inveja aos
Imperadores
Theodosio, Antonino Pio, ou a Carlos Magno;
porque ainda que todas as monarchias, e Republicas
decretáraõ leis para reger-se a
Educaçaõ da Mocidade,
naõ li ategora que Soberano algum destruisse os abuzos
da errada, e que em seu lugar decretasse a mais recomendavel.
Mostrarei pelo discurso deste papel,
que toda a Educaçaõ, que teve a Mocidade
Portugueza,
desde que no Reyno se fundáraõ Escolas e
Universidades,
foi meramente Ecclesiastica, ou conforme os
dictames dos Ecclesiasticos; e que todo o seu fim foi,
ou para conservar o Estado Ecclesiastico, ou para
augmentalo.
Somente S. Magestade Fidelissima foi o primeiro
entre os seus Augustos Predecessores, que tomou a si
aquelle
Jus da Magestade de ordenar
que os seos
[3]
Subditos aprendaõ de tal modo, que o ensino publico
possa utilisar os seus dilatados Dominios. Só este
grande Rey conheceo que como a alma governa os movimentos
de todo o corpo para conservalo; assim elle,
como alma e intelligencia superior do seu Estado, era
obrigado (
a) promover a sua
conservaçaõ, e o seu augmento
por aquelles meyos que concebeo mais adequados.
Aquelle benegnissimo Alvará nos dá a conhecer que
só
a Educaçaõ da Mocidade, como deve ser, he o mais
effectivo e o mais necessario. Porque S. Magestade,
que Deos guarde com alta providencia, considera que
lhe saõ necessarios Capitaens para a defensa; Conselheyros
doutos e experimentados; como taõbem Juizes,
Justiças, e Administradores das rendas Reais; e mais
que tudo na situaçaõ em que está hoje
a Europa, Embayxadores,
e Ministros publicos, que conservem a harmonia
de que necessitaõ os seus Estados; esta
Educaçaõ
naõ seria completa se ficasse somente dedicada á
Mocidade Nobre; Sua Magestade tendo ordenado as
Escolas publicas, nas Cabeças das Comarcas, quer que
nellas se instruaõ aquelles que haõ de ser
Mercadores,
Directores das Fabricas, Architectos de Mar e Terra,
e que se introduzaõ as Artes e Sciencias.
Á vista do referido permittame V. Illustrissima que
satisfaça aquelle ardente desejo, que conservei sempre,
ainda taõ distante e por tantos annos longe de Portugal,
de servi-lo do modo que posso, ou que penso lhe servirà
de algũa utilidade. Nem a
ambiçaõ de sahir do
meu estado, nem a cobiça de fazelo mais commodo,
me obriga a occupar aquelle pouco tempo, que me
deyxaõ os achaques, em ajuntar neste papel tudo aquillo
[4]
que tem connexaõ com o Alvará que V.
Illustrissima
foi servido ultimamente communicarme. He somente
aquelle ardente zelo, he somente aquelle amor da patria,
que V. Illustrissima acendeo de novo em mim pelo seu
claro e penetrante entendimento taõ judiciosamente
cultivado,
pela sua clemencia, pela sua piedade, e por
aquelle ardor de promover tudo para mayor felicidade
da nossa patria; que satisfaçaõ que tenho neste
instante!
que louvo estas virtudes, taõ raras nos nossos dias,
sem a minima adulaçaõ, e sem o minimo interesse
servil. Aquelles Portuguezes que vivem pela piedade
de V. Illustrissima, e todos, naõ só
confirmariaõ o
pouco que digo, mas augmentariaõ de tal modo o que
agora callo, que temeriamos ficasse offendida aquella
modestia e aquella inimitavel affabilidade, com que V.
Illustrissima sabe render os nossos coraçoens.
§.
Das Escolas, e dos Estudos dos Christaons
até o tempo
de Carlos Magno, no anno 800
Logo que os Santos Apostolos sahiraõ de Hierusalem
a prégar os preceitos do seu Divino Mestre, e
estabeleceraõ
Congregaçoens de fieis Christaõs, e juntamente
Escolas para ensinar a Doutrina Christaâ: os Mestres
que nellas residiaõ eraõ os Bispos, e os
Diaconos, e
taõbem alguns Christaõs mais bem instruidos, que
ensinavaõ
áquelles, que queriaõ bautisarse. O Abbade
de Fleury
[3]
que seguiremos nestas noticias, dis que
[5]nestes tres
primeiros seculos da christandade naõ havia
outras Escolas publicas, entre os Christaõs, que as
referidas.
A doutrina que se ensinava nestas Escolas era a
explicaçaõ
das sagradas Escrituras, os Mysterios da Fé,
e tudo o que conduzia para a observancia da Religiaõ
Christaâ. Na Escola de Alexandria, Origenes e Clemente
de Alexandria ensináraõ esta doutrina, e
naõ
lemos nas suas obras, que ensinassem sciencia algũa
humana, como taõbem nas de Santo Athanasio, San
João Chrysostomo, San Cyrillo, ou Santo Augustinho,
que todos ensináraõ, e
formáraõ discipulos excellentes.
Ainda que Clemente de Alexandria, e quasi todos os
Santos Padres fossem doutissimos, e inteiramente instruidos
nas sciencias humanas, naõ as tinham aprendido
nas Escolas Christaâs, mas nas dos Gentios Gregos, e
Romanos; e como destes muitos se converteraõ á
Religiaõ
Christaâ, daqui procedeo serem instruidos taõ
cabalmente em toda a sorte de Litteratura; porque
naquelles tempos a Egreja naõ necessitava para a sua
conservaçaõ e augmento, que da sciencia das
Cousas
Divinas, poisque vivia debayxo do Dominio das Potencias
mundanas; e se tinhaõ entaõ por profanos
aquelles Ecclesiasticos que ensinavaõ, ou
estudavaõ
outros conhecimentos, que os sagrados.
O methodo de ensinar nestas Escolas Sagradas era
primeiramente corregir e arrancar do animo daquelles
que se queriaõ bautisar, os máos costumes, que
tinhaõ
contrahido na sua educaçaõ; quando
hũa vez
chegavaõ
a sahir do caminho dos vicios, e que nelles se observava
o ardente dezejo de bautizar-se, eraõ admitidos
ás
[6]
instruçoens mais elevadas como saõ as da
Fé e das
Escrituras Sagradas.
Ja vemos nestas Congregaçoens dos primeiros
Christaõs
duas sortes de ensino, o primeiro dos
bons
costumes,
e o segundo dos
mysterios da
Religiam. Do
primeiro tinhaõ cuidado dos Inspectores ou guardas
dos Costumes; e do segundo os Mestres que eraõ os
Bispos, Diaconos, e os mais instruidos nas Escrituras
Sagradas.
De taõ limitados principios, como veremos pelo discurso
deste papel, sahio aquelle poder que tem os
Bispos sobre todos os Estudos e Escolas da Christandade,
como taõbem aquella geral inspecçaõ
sobre os
costumes: veremos que os Emperadores Christaõs, e
os Monarchas seus sucessores deyxáraõ no seu
poder
e arbitrio, estas duas obrigaçoens, que tem de mandar
educar os seus Subditos pelas suas direçoens, e de
corrigir e regrar os costumes nos seos Dominios.
No principio do IV seculo já estava a Religiaõ
Christaâ
espalhada por quasi todo o mundo conhecido; já
floreciaõ as Escolas Christaâs em Alexandria, e
Hierusalem,
Antiochia, e em Roma; ja nellas se ensinavaõ a
Grammatica, as Humanidades, e a Philosophia, e principalmente
depois que começou a reynar Constantino
Magno, e seu Filho Constancio. Porque vemos que o
Imperador Juliano Apostata prohibio por hũa ley
decretada
no anno 362
[4],
que nenhum Christaõ ensinasse
publicamente a Grammatica ou Philosophia, nem outra
[7]
qualquer sciencia; sinal evidente que os Christaõs naquelles
tempos eraõ já Professores destas sciencias.
Mas como esta prohibiçaõ naõ durou
muito tempo,
ficáraõ os Professores Christaõs
senhores das Escolas,
nas quais ensinavaõ antes. Porque por
hũa ley dos
Emperadores Valentiniano, e Valente, decretada no
anno 365 entráraõ de posse os Mestres das Escolas
nos
seus cargos
[5].
E para que mais facilmente se comprehenda,
que toda a Educaçaõ da Mocidade
Christaâ
ficou á disposiçaõ dos Bispos, tanto
na instruçaõ como
nos costumes, relatarêmos aqui as leys que decretou
Constantino Magno em seu favor, e da Religião
Christaâ,
para ficarmos persuadidos do que fica dito antecedentemente.
Relata Baronio
[6]
que Constantino Magno mandou
abolir os templos da idolatria e os collegios dos seos
Sacerdotes, que permittio aos Bispos dar liberdade aos
Escravos que abraçassem a Religiaõ
Christaâ, authoridade
que só tinha o Pretor Romano com muitas formalidades:
que ordenára aos Thezoureyros, e aos
Collectores dos Selleyros de todo o Imperio, dar aos
Bispos a quantidade de trigo que lhes pedissem para
distribuir por aquelles Christaõs que fizessem ou tivessem
feito voto de castidade; abrogando ao mesmo
tempo a ley Julia Papia e Poppea de Augusto Cesar,
pela qual os Celibatarios ficavam excluidos das heranças
[8]
dos gráos transversais. Que todos os Ecclesiasticos
fossem izentos de todo o cargo civil e militar; abrogando
por esta ley a do Imperio, no qual para entrar
nos grandes cargos da Republica era preciso estar
alistado em algum collegio Sacerdotal do Gentilismo.
Permitio tanto aos Seculares como aos Ecclesiasticos,
apellar para os Bispos depois da final sentença nos
Tribunaes Seculares, e que do Tribunal dos Bispos
naõ haveria apellaçaõ
[7]: que os
Bispos e os Clerigos
se vestissem da mesma sorte de vestidos, de que uzavaõ
os Sacerdotes da Gentilidade: permitio a cada qual
testar bens moveis e immoveis em favor das Igrejas,
ainda que esta ley foi abrogada pelos Emperadores
seus successores: que as terras pertencentes á Igreja
seriaõ izentas de todas as tassas e tributos. Esta ley
he a ultima que se lê no Codex Theodosiano com data
do anno 315; e a mayor parte dos Commentadores a
tem por espuria.
Naõ era factivel em hum Imperio taõ dilatado,
como
era entaõ o Romano, que todas estas leys se executassem
como requeria o zelo dos Ecclesiasticos; mas he certo
que no tempo do Emperador Theodosio o Grande, a
mayor parte das leys referidas, ou estavaõ em seu
vigor, ou tinhaõ sido reformadas em utilidade, mais da
Religiaõ Christaâ e Ecclesiasticos, que do Estado.
Autorizados os Bispos com a jurisdiçaõ do Pretor,
e da divina instituiçaõ, de ensinar e de
prégar, instituiraõ
[9]
cada qual nas suas Igrejas, naõ somente
as Escolas
para aprender a Religiaõ Christaâ, mas ainda as
sciencias humanas, que naquelles tempos, quasi todas
se reduziaõ á eloquencia e á sciencia
moral do Evangelho
e ao mesmo tempo tomáraõ a si a incumbencia
de regrar os costumes, com tanta exactidaõ que do
tempo de Constantino, acabou em um seu Tio aquelle
honorifico e tremendo cargo de
Censor, dignidade
deste Imperio, para correcçaõ dos costumes da
Gentilidade.
Até o tempo de S. Gregorio o Magno, a mais Illustre
Escola foi a de Roma, ainda que existia aquella de
Alexandria e de Constantinopla; mas ou porque as
sciencias humanas naõ eraõ necessarias para o
augmento
da Fé, ou por outras cauzas que relataremos, he certo
que do tempo de Theodorico, primeiro Rey dos Godos
em Italia, no anno 494, reynava tanta ignorancia, que
todas as lettras se extinguiriaõ totalmente, se os Frades
de S. Bento, de S. Basilio, e os Ecclesiasticos nas suas
Sés, naõ conservassem os originais Gregos e
Romanos,
que temos ainda nos nossos tempos.
Naõ somente a invasaõ das Naçoens
barbaras no
dominio do Imperio Romano destruio as sciencias, mas
taõbem a errada economia do Emperador Justiniano
[8].
Este supprimio os sallarios aos Mestres e Professores
nas Escolas e nas Academias tanto de Athenas, Alexandria
e Roma, como no resto do Imperio; porque
[10]este Emperador,
como nos consta de Procopio
[9]
e
Zonaras
[10],
dispendia profusissimamente em edificar
Igrejas e muitos outros edificios; e naõ bastando as
rendas Imperiais a tantas despezas, lhe foi preciso
supprimir aquellas que fazia o Imperio com os Mestres
e Professores das sciencias.
Entre os Canones do Concilio de Carthago, celebrado
no anno 686
[11],
se lê que dali por diante naõ
fosse
permitido a nenhum secular entrar nas Igrejas Cathedrais,
e que nenhum Bispo pudesse ler livros compostos
por Autores idolatras.
Até ao septimo seculo, todos os frades eraõ
leygos,
e todos pela Regra de S. Bento
[12]
trabalhavaõ sete
horas por dia, e o resto do tempo gastavaõ na
meditaçaõ
dos divinos preceitos. Mas depois que acrescentaram
o officio de Nossa Senhora ao grande officio ou
reza, e hum grande numero de Psalmos, o que tudo se
cantava já pelo Canto Gregoriano que S. Gregorio
Magno tinha introduzido nos Conventos e nas Cathedrais
pelos annos 600, naõ havia mais tempo, que para
satisfazer a obrigaçaõ do Coro, faltando aquelle
que se
empregava no trabalho corporal, e nos estudos das
letras sagradas e profanas: como já nestes tempos havia
Conventos bem dotados com terras em Italia, Allemanha
e França, sempre nelles se conserváraõ
as Escolas e
[11]persistiraõ
na Ordem de S. Bento, até ao anno
1337;
e neste mesmo, o Papa Benedicto
XII lhes prohibio que
ensinassem; ordenando somente que os Frades estudassem
a Philosophia e a Theologia
[13].
No seculo VIII
começou
a Ordem dos Conegos de
S. Chrodegang; viviaõ nos seos cabidos do mesmo
modo que os Frades nos seos Conventos; ensinavam
publicamente a Grammatica, a Rhetorica, a Arithmetica,
a Musica, a Geometria e a Astronomia; mas com tam
pouco conhecimento da verdadeyra sciencia, que passaõ
estes tempos por barbaros, e os mais depravados nos
costumes
[14].
Nos Capitularios de Carlos Magno
[15],
decretados no
anno 787, se ordena que se erigissem Escolas de ler
para os meninos; e que em cada Mosteyro, e em cada
Sé houvessem Mestres que ensinassem a Grammatica,
o Canto Gregoriano e a Arithmetica; esta ley naõ era
mais que para obrigar aos Bispos, e aos Prelados dos
Conventos, a observar pontualmente o costume que
tinhaõ de ensinar naõ só as artes
referidas neste Capitulario,
mas taõbem a Theologia e o Direito Canonico.
Do referido vemos claramente que até o
IX seculo somente
se ensinaraõ nos Mosteyros e nas Sés a
Grammatica,
a Arithmetica, o Canto Gregoriano, a Rhetorica,
a Dialectica, a Theologia e o Direito Canonico; que os
Mestres eraõ unicamente os Frades e os Ecclesiasticos,
[12]e que
naõ havia Escola algũa onde ensinassem
os
Seculares.
Desde o anno 500, quando toda a Europa se
desvastava em guerras continuas pelas barbaras Naçoens
do Norte e os Sarracenos, nenhum Principe tinha
outra mayor necessidade do que ter um exercito potente
para resistir a taõ poderosos inimigos. Nenhum
Secular tinha tempo de applicarse ás letras, e
eraõ
raros naquelles tempos os que sabiaõ ler, ou escrever:
foi preciso aos Ecclesiasticos applicaremse ás letras,
naõ só para ensinar a Religiaõ
Christaâ, mas taõbem
para servirem aquelles Estados, que todos por necessidade
vieraõ a ser militares. Necessitavaõ os Principes
de Ministros de Estado, de Embaxadores, e de
Medicos; necessitavaõ os povos de Juizes, de Advogados,
de Notarios publicos, só nos Conventos e nos Cabidos
achavaõ as pessoas que podiaõ exercitar estes
cargos.
Naõ nos devemos admirar que os Frades e os mais
Ecclesiasticos servissem estes empregos meramente seculares,
considerando a ignorancia daquelles tempos,
causada pela irrupçaõ de tantas
Naçoens barbaras e
conquistadoras de toda a Europa.
§.
Reflexoens sobre as Escolas
Ecclesiasticas
Louvemos e admiremos, Illustrissimo Senhor, a real
disposiçaõ de S. Majestade, que Deos guarde, de
supprimir
as Escolas que estavaõ no poder dos Ecclesiasticos
Regulares: alegremonos e redupliquemos os nossos
ardentes e amorosos votos pela sua conservaçaõ,
quando
[13]
temos nelle hum taõ amoroso Pay como Senhor providente
no nosso bem e do nosso augmento.
Tem visto V. Illustrissima que as Escolas ecclesiasticas
foraõ somente instituidas para ensinar a doutrina
Christaâ, a saber os Mysterios da Fé, expressados
nas
sagradas Escrituras e nos Sanctos Padres. Todo o
fim, e todo o cuidado daquelles primeiros Mestres, era
de formarem hum perfeito Christaõ, e naõ
pensavaõ
ensinar aos seos discipulos aquelles conhecimentos necessarios
para viver no Estado civil, ou para o servir
nos seos cargos: Estavaõ aquelles piedosos
Christaõs
taõ fóra de servir a Republica, que
tinhaõ entaõ por
peccado assentar praça de soldado, ou ser Juiz para
julgar cauzas Civis ou de Crime. Governáraõ os
Santos
Apostolos, e os Bispos seus sucessores as suas Igrejas,
ou as Congregaçoens de Fieis; como se
governáraõ
depois os Conventos dos Frades; todos uniformes na
Santa Fé, todos unidos pela caridade Christaâ; e
se
havia algum entre elles que se naõ conformava á
santa
doutrina que professava a Congregaçaõ, lhe
negavaõ
os Santos Sacramentos, e lhe impediaõ assistir aos
Officios Divinos. Assim viveraõ estes Christaõs
nos
primeiros tres seculos da Christandade, hũas vezes
tolerados
com clemencia pelo Estado dominante, outras
vezes com crueldade pelos Principes tyranos; mas
sempre foraõ obedecidos, e venerados, a pezar de sua
tyrania; porque lhes pagavaõ os tributos como devidos,
e executavaõ as suas leys como fieis, e obedientes Subditos.
Seria naquelles tempos peccado que os Bispos
ou Prelados pensassem a possuir bens de raiz, a ter
jurisdiçaõ temporal sobre os leigos, e a servir
cargos
[14]
da Republica. Repouzavaõ no governo politico que os
defendia das invasoens dos inimigos do Estado; porque
tinhaõ por peccado pertencerlhe para o sirvirem; estando
todos dedicados a servir somente de todo o
coraçaõ, e
com todas as suas forças, a seu Divino Mestre Nosso
Senhor Jesus Christo.
Mas logo que o Emperador Constantino Magno
abraçou o Christianismo; logo que mandou fechar os
templos da idolatria, izentar os Ecclesiasticos de servir
cargos da Republica, e ao mesmo tempo dar
jurisdiçaõ
aos Bispos de julgar cauzas Civis, e de serem sem
apellaçaõ as suas sentenças,
immediatamente sahiraõ
os Christaõs Seculares e Ecclesiasticos, daquella santidade
de vida, e para fallarmos ao modo dos nossos
tempos, pode-se dizer, que os Christaõs do tempo de
Constantino voltáraõ para o seculo: porque pelas
doaçoens
que faziaõ ás Igrejas e aos Conventos, ja
tinhaõ
bens moveis, e de raiz; ja serviaõ cargos Civis e militares;
ja eraõ reputados por Subditos para servirem a
sua patria.
Mas o que he digno de reparo nesta mudança de
vida, he que naõ mudáraõ nem
adiantáraõ o ensino das
Escolas que tinhaõ antes de Constantino; e que
adiantáraõ
com excesso aquella incumbencia de ensinar, e
de corregir os costumes; o que veremos abayxo. Parece
que os Ecclesiasticos, Mestres das Escolas no
tempo deste Emperador, eraõ obrigados a ensinar as
obrigaçoens com que nascem todos os Subditos antes
de ser Christaõs: porque logo que por ley do Imperio
a Religiaõ Christaâ era a dominante, logo que os
Christaõs eraõ obrigados a concorrer com os seos
bens,
[15]
ou com as suas pessoas, a servir a sua patria; parece
era da obrigaçaõ daquelles Mestres educalos com
tais
principios, que satisfizessem á
obrigaçaõ com que naceraõ,
e á obrigaçaõ que
contrahiraõ, quando se bautizaraõ.
Ja as Escolas do Gentilismo pela mayor parte
estavaõ extinctas: já naõ havia outras
mais que as
dos Ecclesiasticos; e se nestas a Mocidade naõ fosse
educada para aprender o que havia de obrar pelo
resto da vida, ficava destituida de todos os fundamentos
para viver como bom Cidadaõ e como bom
Christaõ.
Mas que fizeraõ os mestres das Escolas nos Mosteyros,
e nos Cabidos das Sés? Naõ
ensináraõ outra doutrina,
nem outros conhecimentos, que aquelles que contribuiaõ
para fazer hum bom Christaõ, ou hum bom Ecclesiastico.
E que fizeraõ os Bispos auctorizados ja a governar
e a reger os costumes? Extenderaõ este poder naõ
só
dentro dos seos Cabidos e das suas Igrejas, mas ainda
dentro de todas as cidades e aldeas, obrigando a viver
como viviaõ os Christaõs dentro dos Conventos, ou
naquellas Congregaçoens da primeira Christandade das
quais dissemos assima a sua constituiçaõ e
governo.
De tal modo que os Ecclesiasticos quizeraõ governar
e governáraõ o Estado civil, pelas regras e pelas
constituçoens
dos Conventos e das Cathedrais, onde se vivia
em communidade; onde os bens temporais eraõ em
commum, onde as vontades e as opinioens tanto nas
couzas celestes, como nas mundanas, eraõ e deviaõ
ser
conformes, poisque todos viviaõ debaixo da regra, e do
mando de hum Prelado.
[16]
Mas o que deu mayor movimento a estas disposiçoens
ecclesiasticas, foraõ as leis referidas assima de
Constantino
Magno. Este pio Emperador poz em execuçaõ,
como taõbem seus sucessores,
Que
o Estado
civil fosse
regido e governado pelas regras e constituiçoens dos
Conventos e dos Cabidos; abrogando e derogando ao
mesmo tempo as leis civis, e as politicas do Imperio
Romano, como vimos assima, abolindo o cargo de
Censor, do qual se apoderáraõ os Bispos:
derogando
ao cargo de Pretor, ou Chanceller Mor, o poder de dar
alforria aos Escravos, e que as sentenças dos Bispos
fossem sem apellaçaõ; abolindo a natureza das
couzas
que haõ de servir ao Estado em todo o tempo; dando
immunidades aos Subditos delle, e aos seos bens de
raiz, para naõ servirem, nem pagarem os tributos, sem
os quais naõ se póde conservar
hũa Republica.
Ainda que muitas cauzas concorreraõ para a
destruiçaõ
do Imperio Romano, he evidente que estas disposiçoens
e leys de Constantino foraõ a cauza principal.
Mas ja me apercebo que vou sahindo muito do objecto
deste papel que propûz a V. Illustrissima para ver o
fundamento da Educaçaõ politica, que deve ter hum
Estado Christaõ Catholico. E como as Universidades
saõ hoje os Seminarios do Estado politico e religioso
da Republica Christaâ, permita-me, V. Illustrissima,
indagar a sua origem e seos objectos, e quantas circumstancias
concorreraõ para que os Emperadores,
Reys e Republicas fossem governadas, como saõ ainda
hoje, por estas Escolas.
[17]
§.
Continûa a mesma Materia
Já que os summos Pontifices e os Bispos
[16] se
arrogáraõ
o poder absoluto da Educaçaõ das Escolas da
Christandade, e de corregir os costumes, he preciso
que indaguemos a origem d'estes poderes: e entaõ veremos
que Sua Magestade Fidelissima he o Senhor
com legitimo
Jus de decretar leys
para a Educaçaõ dos
seos leaes Subditos, naõ só nas Escolas da
puericia;
mas taõbem em todas aquellas onde aprende a Mocidade.
Pareceme, Illustrissimo Senhor, ser da mayor
importancia esta materia, porque ategora naõ achei
Autor que tratasse della, como necessita o
Jus da Magestade.
A forma, a uniaõ, o vinculo do Estado civil e politico,
e o seu principal fundamento he aquelle consentimento
[18]dos Povos a
obedecer e servir com as suas pessoas e
bens ao Soberano; ou que este consentimento seja reciproco,
ou que seja tacito ou declarado, sempre forma
hum Estado, ou Monarchico, ou Republicano.
Mas o que constitue ser o Estado hum ajuntamento,
ou corpo civil e sagrado, he o
juramento de
fidelidade
mutuo entre o Soberano e os Subditos, tacita ou declaradamente.
No acto desta convençaõ invocaõ os
contractantes deste pacto ou contracto, a
Divindade
que mais veneraõ por
testemunha e
cauçam, que
haõ de
executar o que prometem; sujeitandose ao premio ou
ao castigo, conforme o comprirem.
D'aqui vem que todos os Estados Soberanos estaõ
formados por invocaçaõ daquella Divindade, que
mais
veneravaõ os Povos e o Soberano
[17].
Daqui vem chamarse o Estado, sacrosanto, e cousa
sagrada.
Daqui procede que nenhum estado civil pode formarse,
nem existir em seu vigor, sem hũa
Religiaõ, e
sem observarse o sagrado do juramento.
Eu bem sei que nas Monarchias, que se fundáraõ
conquistando, naõ entreveyo nellas aquelle consentimento
mutuo, nem juramento de fidelidade, no instante
que se formáraõ pela força da espada.
Mas logo que
o Conquistador quizer conservar a sua conquista, he
necessario decretar leys; he necessario que elle dê a
conhecer aos povos Conquistados, que viverâõ mais
felizes
no presente governo, que no passado; os povos
consentem tacita ou declaradamente, daõ juramento
[19]
para exercitar os cargos daquelle Estado, e deste modo
o Conquistador e os Conquistados, cada qual por seu
interesse proprio, convem reciprocamente; o Soberano,
de os conservar, e os Subditos, de obedecer, invocando
a Divindade por cauçaõ e testemunha da
convençaõ que
celebraõ.
Quando os Portuguezes no campo de Ourique acclamaraõ
Dom Affonso Henriques por seu Rey; quando
em Coimbra acclamaraõ o Mestre de Avis por Rey de
Portugal, tacita ou declaradamente, lhes deraõ todos
Juramento de Fidelidade, invocando o
Summo Deos
como testemunho e cauçaõ que lhes
obedeceriaõ e serviriaõ
com suas pessoas e bens, com tanto que estes
Reis os governassem e defendessem, e que vivessem
mais felizes, que no Estado precedente.
Deste modo taõ livre e taõ excellente, ficou o
Estado
de Portugal formado: os seos Soberanos naõ conhecem
superior, mais do que a Divindade suprema, que
invocárão
no acto do juramento de fidelidade, que lhe prometiaõ
os seos povos, prometendo tacita ou declaradamente,
de governa-los de tal modo que fossem mais
felizes do que antes eraõ.
Daqui provem o sagrado do Estado, porque foi formado
com invocaçaõ do Altissimo como testemunha e
como cauçaõ dos juramentos reciprocos.
Daqui vem, o supremo poder dos nossos Reis, que
tem em si vinculadas todas as jurisdiçoens do primeiro
General, que pode dar juramento, levantalo, alistar
tropas, e licencealas, &c. tem a
jurisdiçaõ de primeiro
Juiz, pode condenar a penas pecuniarias, exilio, e de
vida e morte; he o primeiro Védor da fazenda do Estado,
[20]pode cunhar moeda, fazer
todas as leys que achar
saõ necessarias para promover toda a sorte de agricultura,
comercio e industria: he o primeiro pay e conservador
dos seos Estados; he o Senhor de decretar
todas as leis que achar necessarias para a
conservaçaõ
e augmento dos seos dominios; fundando estabelecimentos
para formar toda a sorte de Subditos na Educaçaõ
da mocidade, nas artes liberaes e mecanicas, nas
sciencias necessarias no tempo da paz, e da guerra, &c.
Está taõbem incluido no
Jus da Magestade aquelle
supremo cargo de primeiro Mestre ou de primeiro Sacerdote
da Religiaõ natural, desde aquelle instante que
se formou o seu Estado civil e politico pelo juramento.
Naõ se offenderá, V. Illustrissima, deste
attributo,
que dou aos Monarchas Christaõs Catholicos: todos se
convenceraõ facilmente do que affirmo, quando pensarem
que as duas leis mais irrefragaveis de qualquer
Estado assim formado, saõ as seguintes.
«Que a conservaçaõ do Estado civil he a
primeira e
a principal ley».
«Que cada subdito está obrigado a obrar com os
outros, como elle quizera que obrassem como elle».
Em quanto os homens viviaõ como feras, e como
vivem ainda hoje muitos povos da America e da Affrica,
o mais esforçado, e o mais valente era o que
caçando
e matando, tinha o mayor dominio; porque estes homens,
ou viviaõ e vivem da caça, ou dos frutos,
conchas,
peyxes da borda do mar: e o mais experimentado seria,
e he ainda hoje, o maioral daquelles ranchos. Ja se
sabe que a mayor parte destes povos vivem sem nenhum
conhecimento da Divindade, como na Ilha de S. Lourenço,
[21]e em outros muitos lugares
do mundo habitado.
Mas tanto que os homens se ajuntáraõ por pacto e
consentimento mutuo de se ajudarem e soccorrerem entre
si, ja nem o mais valente, nem o mais ouzado, ha de
ser o primeiro. Porque os homens no ponto daquelle
contracto mutuo depuseraõ no poder e na
disposiçaõ
do Soberano ou Mayoral, todas as acçoens voluntarias
que obravaõ antes que se ajuntassem em Sociedade;
depuseraõ nas suas maõs aquelle poder que
tinhaõ,de
matar, de furtar, e todas aquellas acçoens que
seriaõ
nocivas, e destruidoras da Sociedade.
Ficou entaõ em deposito na maõ do Soberano
aquelle
poder dos Subditos para obrar acçoens exteriores; ficou
á sua disposiçaõ regralas por leis,
prevenir que se naõ
cometesse insulto que alterasse ou corrompesse a uniaõ
e harmonia que deve Reynar no Estado Civil; ficou no
seu poder castigalas como achasse conveniente para a
sua conservaçaõ.
Duas couzas ficáraõ somente no poder dos
Subditos,
mesmo naquelle instante que deraõ juramento de fidelidade
ao seu Soberano.
A primeira: a Propriedade dos seus bens, com
obrigaçaõ
tacita ou declarada, que parte da sua renda seria
para sustentar o Estado.
A segunda: Aquella liberdade interior de querer, naõ
querer, amar, aborrecer, julgar, ou naõ julgar, ver, ou
naõ ver: que saõ as acçoens interiores
que passaõ dentro
de nós, e que se naõ mostraõ por
acçoens exteriores,
que todo o mundo possa observar visivelmente.
Deste estado da Sociedade civil, assim formado,
resultáraõ
[22]logo
a
igualdade entre todos os Subditos, e
a
subordinaçam aos
magistrados.
Porque todos os Subditos, em quanto Subditos, em
quanto estaõ ligados por aquelle juramento de fidelidade,
todos saõ iguais; e a maior ruina de hum Estado, he
que entre elles haja diversidade, huns com
obrigaçaõ
de obedecer, e outros absolutos; huns sujeitos ás
justiças,
e outros sem nenhum Imperio
[18].
Como o Principe Soberano naõ pode exercitar todos
os cargos dos seos exercitos, e das suas armadas; como
naõ pode julgar todos os processos e demandas; como
he impossivel a pessoa humana comprir com todos os
cargos que requer a fazenda Real e os tributos para
sustento do Estado, o que faz he dar estas varias incumbencias
áquelles Subditos que forem mais capazes
de as exercitar, e comprir. Assim que cada hum destes
é condecorado com parte, ou porçaõ do
Poder da Magestade.
Daqui vem que toda a distinçaõ,
subordinaçaõ, preeminencia
que houver entre os Subditos, provem somente
do
Jus da Magestade. Aquella
distinçaõ de
Nobreza, e da Fidalguia, provem somente do Poder do
Soberano, e naõ da ascendencia, nem da
geraçaõ:
porque todos os Subditos pelo juramento de fidelidade
saõ iguais, como fica demonstrado.
[23]
§.
Idêa das Obrigaçoens da Vida
Civil,
e do Vinculo da mesma Sociedade
Ja vimos o Estado Civil formado
pelo juramento de
fidelidade, já vimos que o Soberano, como
alma, e superior
intelligencia deste corpo civil, era aquelle que
moderava, que movia, e retinha as acçoens delle para
a sua conservaçaõ, e seu augmento; auctorizado
com o
poder de todas as acçoens exteriores dos Subditos, de
fintalos naquella parte dos seos
proprios bens para
conservaçaõ do Estado, de obrigalos a servir
pessoalmente
para o mesmo fim, e por ultimo a nomear os
Subditos mais capazes para executarem as varias obrigaçoens
da Magestade.
Ponhamos agora em exercicio esta Sociedade Civil,
este Reyno, esta Republica, assim formada e unida;
mandemo-la apparecer em hũa feyra, ou em
hũa praça.
Huns trariaõ ali fazendas a vender, outros para trocar,
ou comprar: Huns quereriaõ comprar hum campo,
hũa caza, fretar hum navio: outros
quereriaõ buscar
hum Amo: era necessario que cada hũa destas pessoas
fallassem em hũa lingoa, para se entenderem; e que
cada hum que procurava sua utilidade estivesse persuadido
que o que adquiria neste trato lhe pertencia em
propriedade. Ali seria necessaria a
affabilidade, a
verdade,
a fé, a pontualidade; o ouvir facilmente,
o responder
com agrado; a cada hum era necessaria hũa
certa igualdade; em fim todas aquellas qualidades, e
virtudes civis que saõ necessarias para o trato, e para
[24]
o comercio da vida, sem o qual naõ pode subsistir o
vigor de hũa Republica.
Supponhamos que todos os que appareceraõ nesta
feira ou praça, que conservavaõ ainda aquelles
costumes
silvestres, duros, e barbaros; que em lugar de contractar,
que roubassem; que em lugar de persuadir com
razoens, que pelejassem, se debatessem, ou ferissem;
que allegassem, que por serem filhos de fulano, e
fulano que naõ deviaõ pagar pelo que
compravaõ;
que por pertencerem a certo Senhor, que podiaõ
tomar o que lhes agradasse: ja toda a Sociedade, ja
toda a feyra se revolveria, e acabaria por desordem e
confuzaõ.
Deste tosco retrato da vida civil posta em acçaõ,
se
vê claramente, que para a conservaçaõ
de cada qual,
lhe saõ necessarios tais habitos, e tais virtudes, que
dependaõ do principio seguinte.
«Todas as acçoens que naõ forem uteis a
si, e ao
Estado, e ao mesmo tempo que naõ forem decentes,
saõ viciosas, destruidoras da
conservaçaõ propria, e por
consequencia da vida civil».
Todas as leis que decretar o mais excelente Legislador,
todo o trabalho e industria de cada particular,
se naõ levar a
utilidade
por ultimo fim, vem a ser a
destruiçaõ do Subdito, e do mesmo Estado: assim
que
a utilidade publica e particular vem a ser o vinculo e
alma da vida civil
[19];
esta utilidade deve ser sempre
acompanhada com a
decencia, que he
aquella virtude
[25]
que modera os excessos, ainda aquelles da mesma virtude,
por que de outro modo seria vicio.
Em quanto as Republicas da Grecia e a Romana,
conserváraõ as virtudes referidas com a
frugalidade, a
fé particular, e
publica nos Tratados; o
respeito, e a
observancia do
juramento de
fidelidade; a
verdade, a
sinceridade, a
constancia, e aquela
subordinaçam admiravel
entre os Subditos, e os Magistrados sempre se
conservaraõ potentes, e conquistaraõ seos
inimigos com
gloria.
Ainda que tinhaõ Religiaõ, e mui varias sortes de
Sacerdotes adorando muitas Divindades, estes Ministros
Gentios naõ tinhaõ incumbencia
algũa de
ensinarem as
virtudes referidas, nem o minimo cuidado da consciencia:
S. Augustinho, e Lactancio Firmiano
[20]
o affirmaõ
claramente: o seu officio era declarar aos povos os
dias de festa, celebrarem os seos sacrificios, presidirem
nas procissoens, e mais spectaculos publicos, em jantares,
em danças, e outras acçoens, que todas
eraõ exteriores;
somente os Philosophos, e os mais velhos
tinhaõ este cuidado, como lemos nas obras de Marco
Aurelio.
De tudo o referido se vê claramente que he do
jus
da Magestade fomentar e promover a
utilidade
publica
[26]
e particular, com
decencia; e que nenhũa requer
maior
attençaõ no animo do Soberano, do que a
Educaçam
da Mocidade, que deve toda empregar-se no
conhecimento,
e na practica das virtudes sociaveis referidas, e
em todos os conhecimentos necessarios para servir a
sua patria. Mas antes de entrar no plano d'esta
educaçaõ,
satisfaremos o promettido assima, que he mostrar
mais circumstanciadamente.
§.
A Constituçam Fundamental da Sociedade
Christaâ
Eu sei que os livros, que tratam da Origem do poder
Ecclesiastico, como saõ as obras do Abbade de Fleury,
de Gianoni, Natal Alexandre e outros mais, saõ prohibidos
pela Inquisiçaõ; que o Direito Canonico, que
se contem no Decreto, Decretais, Sexto, e Clementinas,
se ensina, e se crê como de fé nas Universidades,
e que
quasi todos aquelles que estaõ empregados nos cargos
publicos tomaraõ o seu gráo n'aquella Faculdade;
e
que todos aquelles que o tomaõ na Universidade de
Coimbra, que juraõ defenderáõ as leis
d'ella, que saõ
as Ecclesiasticas: bem sei que se acháraõ muitos
Graduados
em Portugal, tanto Ministros Seculares, como
Ecclesiasticos, levados do ensino que tiveraõ em Coimbra,
e da lectura do Direito Canonico, e Concilio de
Trento, que duvidáraõ se S. Magestade tem poder
para
ordenar Escolas, e Universidades; porque esta materia
dependia ategora dos Bispos, e do Summo Pontifice.
Considere V. Illustrissima, que bem executadas seraõ
as Ordens de S. Magestade ordenadas pelo Alvará referido,
[27]se esta sorte de Doutores
forem os executores?
Bem vê V. Illustrissima ja as consequencias, e
taõbem
a indispensavel obrigaçaõ que tenho de tratar com
clareza, da origem do
Poder dos
Ecclesiasticos, que se
arrogáraõ fundar as Escolas, as Universidades,
como
taõbem a correçaõ dos costumes.
Deos seja louvado que me chegou ainda a tempo que
os PP. da Companhia de Jesus, naõ saõ ja
Confess
Deos seja louvado que me chegou ainda a tempo que
os PP. da Companhia de Jesus, naõ saõ ja
Confessores
nem Mestres; porque se conservassem ainda aquella
acquisiçaõ, taõ antiga,
nenhũa das
verdades, que se
leráõ neste papel poderiaõ ser
caracterizadas com outro
titulo, que de herezias! A Deos sejaõ dadas as
graças,
que pela infatigavel providencia de S. Magestade, todos
estes obstaculos se dissipáraõ, e que como no
tempo
de Nerva posso dizer com Tacito: «Rara temporum
felicitate, ubi sentire quae velis, & quae sentias dicere
licet»
[21].
§.
Continûa a mesma materia
O Fundamento da Religiaõ Christaã, he aquella
charidade,
aquelle amor do proximo que obriga por preceito
divino, nam só a perdoar as offensas, mas ainda
soccorrer e fazer bem a quem offendeo. He certissimo
que a Igreja fundada por Christo, e os seos Apostolos
tem jurisdiçaõ sobre as consciencias, sobre todas
as
acçoens mentais, do mesmo modo que a
jurisdiçaõ civil
tem todo o poder sobre todas as acçoens exteriores humanas.
Esta sagrada jurisdiçaõ deu Christo aos seos
[28]Apostolos,
dizendo-lhes
[22]:
Andai e ensinai todas as
Naçoens, e tambem as bautizareis en nome do Padre,
do Filho e do Espirito Santo, ensinandoas a observar
tudo o que vos ordenei. Vé-se claramente
que toda a
jurisdiçaõ que Christo deu á sua
Igreja, se reduz a ensinar
os preceitos do seu Evangelho, e a administrar
os Sacramentos, incluindose todos na base delles, que
he o bautismo. Mas esta jurisdiçaõ toda se
redûz aos
bens espirituais, á graça, á
santificaçaõ das almas, e á
vida eterna; porque Christo declarou elle mesmo que
o seu Imperio nam era deste mundo, nem sobre as
acçoens exteriores dos homens. Recuzou ser arbitro
entre dois Irmaõs que queriaõ repartir a sua
herança,
dizendo:
E quem me autorizou a mim para vos julgar[23].
Deu tambem auctoridade aos Apostolos de absolver os
peccados, e de negar a absolviçam aos peccadores
impenitentes[24].
Esta he a base e o fundamento essencial da Religiaõ
Christaã. Se os Ecclesiasticos conservassem esta santa
doutrina, se considerassem que o seu poder se reduzia
todo dentro da Igreja sobre os Fieis que espontaneamente
queriaõ participar aos Mysterios divinos, jamais
pensariaõ castigalos com penas corporais, como se tivessem
cometido crimes contra o Estado civil: disproporcionando
o castigo, contra o que Christo e os seus
[29]Apostolos
ensináraõ taõ clara e
taõ evidentemente:
confundiraõ os peccados do Christaõ com os crimes
do
Subdito: os peccados de Christaõ saõ culpas
mentais
contra a fé, contra a esperança e contra a
charidade
christaã, que Christo ordenou se castigassem
sómente
com penas espirituais, isto he a penitencia ecclesiastica
ou a privaçaõ da
Congregaçaõ Christaã e divinos
Mysterios:
estas acçoens peccaminosas saõ mentais, e o seu
castigo ha de ser espiritual. Pelo contrario os crimes
do Subdito do Estado civil saõ acções
exteriores, como
matar e roubar, saõ acçoens que
perturbaõ o vinculo
do Estado civil, e o castigo proporcionado ha de ser
nos bens, na honra e na vida. Mas esta santa policia
ecclesiastica logo se alterou tanto, que Constantino
Magno e os seos successores deraõ
jurisdiçaõ aos
Bispos, e dotáraõ as Igrejas com bens moveis e de
raiz: tanto que lhes concederaõ ensinar publicamente
nas escolas do Estado, logo tomáraõ a si a
reforma
dos costumes da Republica, e todo o ensino da Mocidade.
Mas quem dissera no principio do IV seculo
que do
Sacramento da penitencia havia de
sahir aquelle poder
dos Ecclesiasticos que fundáraõ pouco a pouco
até o
seculo XII
hũa
Monarchia dentro do Estado civil? Quem
pensaria entaõ que do mesmo
Santo
Sacramento haviaõ
de sahir os abuzos das
Indulgencias,
as
Romarias, as
Cruzadas, para conquistar a Terra
Santa, as
Ordens
Militares, os
desterros,
excommunhoens, com aquellas
terriveis clauzulas,
confiscaçam de
bens,
incapacidade
de servir
cargo publico, nota de
infamia,
prizam,
relaxar
ao braço ecclesiastico? Mas qual seria a
causa
[30]
porque os Principes consentiraõ a tanta
usurpaçaõ da
sua auctoridade e jurisdiçaõ?
Permitame V. Illustrissima, indagar com algum
cuidado, as cauzas de taõ notaveis alteraçoens no
Estado
civil e na policia
Ecclesiastica
desde o seculo
IV
até o XII
porque me
parece necessario estejaõ informados
d'ellas naõ só aquelles que haõ-de
executar as Ordens
de S. Majestade em consequencia do seu Alvará sobre
os Estudos, mas taõbem os que haõ de estudar o
que
n'elle se ordena.
Todos confessaõ pellos monumentos que temos na
historia, que o Imperio Romano foi subjugado e
despedaçado pelas Naçoens Barbaras do
Norte, e que destes
destroços se formáraõ as Republicas de
Italia, e as
Monarchias de França e Espanha. A politica destas
Naçoens, antes da Conquista, e depois que
fundáraõ os
seos Estados, se reduzia a premiar o mais
valente e o
mais
ouzado com os primeiros cargos
do exercito, com
propriedades de terras, e com as primeiras honras daquellas
Monarchias; estas Naçoens por natureza caçadoras,
viviaõ do roubo e de rapina; naõ
conheciaõ a
agricultura, o comercio, as artes, nem as sciencias como
base do Estado civil: estas Monarchias se governavaõ
como hum exercito sempre acampado, prompto para
acometter, subjugar e conquistar, porque a sua
conservaçaõ
e o seu augmento dependia do que conquistavaõ
sobre as Naçoens vencidas, que eraõ aquellas que
dependiaõ
do Imperio Romano: assim a
valentia
e o
esforço,
era a sua base fundamental. Todas as suas leis
e costumes tendiaõ para conservar e augmentar aquella
força e aquella
ouzadia, para vencer e conquistar.
[31]
Depois de feita a conquista, tinhaõ seos concelhos
gerais que chamavaõ
Parlamentos, que em Espanha se
chamáraõ
Cortes, nas quais tinhaõ
assento os Generais
e os Officiais da primeira distinçaõ. Ali se
repartiaõ
as terras, as Provincias, as Comarcas, as Cidades, e
as Villas, com os seos termos, pelo Monarcha e pelos
Generais. Pelas leis decretadas n'aquellas Cortes, ao
Senhor da terra ou Cidade se dava poder soberano nos
povos que a habitavaõ: tinhaõ a
Jurisdiçam de vida e
morte, na honra e nos bens; de tal modo que ficava
despido o Monarcha de toda a Jurisdiçaõ que devia
ter
naquelles Subditos; que vemos ainda hoje em França
de algum modo, e em Castella e Portugal ainda se
conserva o nome
Senhor de baraço e
cutello.
Davaõ estas Cortes aquellas terras em
Feudo, que
quer dizer que o Possuidor seria obrigado em tempo
de guerra vir em pessoa á servir com os seos villoens
no numero, á proporçaõ das terras de
que era Senhor:
sómente os descendentes Varoens depois de fazer nova
omenagem ou obediencia, podiaõ possuir estas terras.
Ellas eraõ consideradas pertencerem ao Estado; e
pagavaõ
somente no serviço da guerra; e nenhũa
outra
decima, peita, nem sisa pagavaõ ao Monarcha, nem ao
Estado. A nossa Ley Mental teve aqui a sua origem:
só permittia possuirem as terras da Coroa, aquelles
que podiaõ servir na guerra; depois por graça e
favor
dos Reys, veyo o sexo a gozar destes dons da Coroa,
como os Varoens. Os Bispos e os Prelados os possuem
hoje sem irem á guerra, como hiaõ até
o anno 1400;
e ainda naõ pagaõ couza algũa
estas terras ao
Estado.
Os costumes destes Imperios Godos todos se reduziaõ
[32]
a fazer o corpo robusto pela caça, por
escaramuças,
alcancias, torneos e justas, festas onde a
ambiçaõ de
ser applaudido pelo sexo teve muita parte: naõ necessitava
a constituiçaõ do Imperio simplesmente militar,
naquelles tempos sem polvora, e sem fortificaçoens
regulares,
de outra sciencia, mais do que do
valor e da
força; e para adquirir
estas qualidades se empregava
toda a Mocidade: naõ sabiaõ ler nem escrever, e
desprezavaõ
todas as sciencias: as superstiçoens, os agouros,
os vaõs prognosticos da Astrologia, como prosapia legitima
da ignorancia, occupava geralmente os animos
do povo e da Nobreza, apezar de tantos Concilios que
prohibiraõ todos estes abusos.
He hoje maxima incontestavel «que os bons ou maos
costumes de hũa Naçaõ, a sua
sciencia e valor
dependem
das leis da Monarchia, do trato e do emprego dos
Grandes, e da Corte que os domina». Muitos destes
Monarchas, logo no principio da conquista do Imperio
Romano, abraçaraõ a Religiaõ
Christaã; pelo discurso
do tempo todas estas Naçoens Barbaras, que ou
eraõ
Gentias, ou infectadas com a heresia de Arius, vieraõ
Christaãs Catholicas; como dominavaõ e
governavaõ
aos Christaõs antigos, entravaõ a possuir os
cargos da
Igreja, sem repugnancia dos Bispos; todos eraõ
Christaõs,
e hum Bispo Godo ou Clerigo, era de taõ bom
sangue, como um Italiano ou Castelhano. Mas os
Bispos, os Clerigos e os povos conquistados
tomáraõ
os costumes dos Monarchas e dos Grandes daquellas
Monarchias. Os Bispos tiveraõ taõbem terras do
Estado
em lotaçaõ, e taõbem muitos Prelados
de Conventos;
tinhaõ a jurisdiçaõ ou mero Imperio,
sobre os
[33]
seos villoens, do mesmo modo que a tinhaõ os Nobres:
tinhaõ taõbem assento em
Cortes porque eraõ
Senhores
de terras e souberaõ nellas adquirir o primeiro assento;
vieraõ Condes e Duques, como se vé hoje em
Allemanha,
e no Conde d'Arganil Bispo de Coimbra; vieraõ os
Bispos e os Prelados Guerreyros, porque aceitavaõ os
Senhorios com essa condiçaõ de servir
pessoalmente na
guerra com os seos villoens, o que compriraõ até
anno 1400; as suas terras naõ pagavaõ couza
algũa ao
Estado, naõ porque pertenciaõ á
Igreja; mas porque
eraõ dadas com obrigaçaõ de servir na
guerra o Possuidor,
do mesmo modo que os Senhores Seculares as
possuiaõ. Vieraõ os Bispos e os Prelados
caçadores,
dissipadores, banqueteando, sustentando Cavallos, conservando
numerosa familia; e como lhes era preciso
fazer frequentes jornadas, hũas vezes para assistir
nas
Cortes, outras nos Concilios, que
até o anno 800 se
celebravaõ cada anno, e as vezes duas, no mesmo
espaço
de tempo conforme o primeiro Concilio de Nicea
no principio do IV seculo, á tal excesso
dissipáraõ os
bens da Igreja que tinhaõ em feudo, ou por esta
obrigaçaõ
de fazer jornadas, ou pela vida dissoluta militar,
que foi prohibido por Concilios que os bens da Igreja
fossem inalienaveis, e desta origem he que veyo aquelle
destrutivo invento para o Estado de se estabelecerem
os
Morgados, cujas terras applicadas
a hũa capella saõ
inalienaveis, como as dos Cabidos e dos Conventos.
A
ignorancia destes Monarchas na
politica, considerando
todos as Naçoens vizinhas por inimigas, e naõ
conhecendo nenhum Direito das Gentes; a ignorancia
dos Generais, e dos seos Conselheyros naõ conhecendo
[34]
principio algum do Estado civil, nem das obrigaçoens
da Sociedade, naõ sabendo ler, nem escrever, se espalhou
pelos Ecclesiasticos; ficáraõ estes por tanto com
os conhecimentos necessarios para administrar os Sacramentos,
ensinar os povos na doutrina christaã, e
ensinar nas Escolas das Sés, e dos Conventos; isto he
que sabiaõ ler, escrever; e aquella lingoa latina corrupta,
que se extendeo até o anno 1440; porque nesta se
escreviaõ
até o anno 1220 todas as resoluçoens das
Cortes,
todos os processos, e demandas; e el Rey Dom Dinis
foi o primeyro Rey de Portugal que ordenou se processasse
em Portugues, e naõ na lingoa latina. Esta
superioridade no saber, ainda que mui limitada, comparada
com o saber dos Reis e dos seos Grandes, valeo
aos Ecclesiasticos serem Senhores de todas as disposiçoens
das Monarchias em França, Italia e Espanha,
e mais particularmente, porque tinhaõ Escolas donde
toda a Mocidade era educada. Vejamos os rodeos que
fes nestas Monarchias o viciozo circulo da ignorancia,
e naõ nos admiraremos entaõ do atrevimento que
tiveraõ
os Ecclesiasticos de dominar os Reis e de depólos.
Como nestas Monarchias cada anno se celebravaõ
Cortes, e como nellas se deliberava
o que era necessario
para conservalas e augmentalas; como ali se nomeavaõ
os Embayxadores; se despachavaõ as graças, se
resolviaõ
os castigos, eraõ necessarios Conselheyros, Secretarios
e outros cargos que soubessem ler e escrever, e
aquellas leis e costumes que se observavaõ naquelles
Imperios. Mas entre todos os que tinhaõ assento naquellas
Cortes, somente os Bispos, e os
Prelados,
porque sabiaõ escrever, podiaõ servir estes
empregos:
[35]
daqui he que vemos aquelles Concilios de Toledo, de
Sevilha e de Milaõ, serem hũa
compilaçaõ de leis civis
e ecclesiasticas; porque os Bispos eraõ os unicos que
redigiaõ por escrito estes actos; nada se fazia sem seu
parecer, e tudo se publicava e decretava pelo seu voto
e approvaçaõ
[25];
mas naõ somente nas
Cortes tinhaõ o
primeiro logar e voto os Ecclesiasticos, elles eraõ os
primeiros Conselheiros nas Cortes dos Reis, os Chanceleres,
os Juizes, os Medicos, os Embayxadores; os
Clerigos eraõ Secretarios, os Notarios publicos, os
Advogados; emfim tudo o que era necessario
escrever
nestas Monarchias até o seculo
XII o
administravaõ e
executavaõ os Ecclesiasticos. No Concilio de Toledo
terceyro celebrado no anno 589, no tempo del Rey Recaredo,
se ordena que os Bispos celebrem hũa vez por
anno Concilio, e que nelle assistaõ os Intendentes del
Rey, para aprenderem da boca dos Bispos, como deviaõ
governar os povos, e que elles seriaõ os Inspectores
[26].
[36]
Como era costume d'aquelles tempos mandarem os
Reys criar seos Filhos nos Conventos dos Frades, já
se sabe que os Filhos dos Cortezoins teriaõ o mesmo
ensino e educaçaõ; e como toda a Nobreza por
costume,
por vangloria, e sobre tudo por interesse, imita com
gosto, ainda os mesmos vicios dos Monarchas, bem se
pode considerar, que se reputâriaõ felizes os
Nobres
que tiviessem aquella educaçaõ: já
vimos assima o que
se ensinava nestas Escolas: no tempo de Carlos Magno
e de seos Filhos estava tanto em voga o Canto Gregoriano
que nelle se consumia a mayor parte do tempo;
houve repetidos dezafios entre os Musicos Italianos e
Francezes
[27],
e naõ se desprezáraõ os
Reis entrar nesta
contenda, porque a sua educaçaõ tinha sido a
mayor
parte neste exercicio.
Entaõ he que vieraõ os Reis e as suas Cortes
ignorantissimas,
crueis, falsas e supersticiozas: o ensino
naõ tinha sido mais, que fazer o corpo robusto e ouzado;
e as potencias da alma embebidas somente para venerarem
[37]os
Ecclesiasticos que
tinhaõ sido seus Mestres;
estes ja ignorantes, como vimos, ja soberbos, poisque
eraõ e que viviaõ como Senhores, já
Senhores das resoluçoens
das Cortes e de todas aquellas que occorriaõ
em todo o Reyno, bem podemos ver claramente a origem
de todas aquellas contendas que houve entre os Ecclesiasticos,
e os Reis e Imperadores até o anno 1350.
Deploremos com o Imperador Diocleciano
[28],
o Estado
dos Reis que tem maos Conselheiros, mas ainda muito
mais aquelles que tiveraõ somente por Mestres os
Ecclesiasticos naquelle tempo que
haviaõ de aprender
a obrigaçaõ de Rey e de Subdito.
§.
Continûa a mesma Materia
Ja os Ecclesiasticos eraõ os arbitros nos Gabinetes
dos Reis e dos Emperadores Christaõs, ja eraõ
Soberanos
nas
Cortes, onde por direito da
Monarchia tinhaõ
assento; ja tinhaõ jurisdiçaõ civil
nos povos dos seos
Bispados
[29];
ja todos os Clerigos estavaõ empregados
nos cargos civis; ja tinhaõ universalmente a
educação de
[38]
toda a Mocidade, até os filhos dos Reis á sua
conta;
tinhaõ a correçaõ dos Costumes, como
do seu cargo e
da sua obrigaçaõ decretada, por varios Concilios
Provinciais,
quais saõ os de Braga, Toledo
[30],
Sevilha,
Saragoça, e infinidade de outros celebrados em
França,
Inglaterra, Allemanha e Italia; mas estes Concilios naõ
eraõ universais, nem serviaõ de ley na Igreja;
era necessario
aos Ecclesiasticos leis universais que toda a
christandade venerasse, que toda a christandade temesse,
e que cada christaõ, fosse castigado se as quebrantasse:
ja a Monarchia Ecclesiastica estava estabelecida, mas
naõ tinha leis politicas para governarse: appareceo no
fim do VIII seculo Isidoro Mercator, com as suas falsas
Decretais
[31]
que todos os Ecclesiasticos seguiraõ por
verdadeyras naquelles tempos, a tal excesso que Graciano
no seu
Decreto naõ
só se funda nellas, mas ainda
enxirio e adiantou aquella doutrina.
Vejamos esta jurisprudencia nova desconhecida aos
santos Apostolos e seos successores, até o fim do
VIII seculo.
Que naõ he permittido celebrar Concilio algum sem
permissão do Papa
[32].
[39]
Que os Bispos naõ podiaõ ser julgados
definitivamente
que pelo Papa somente
[33].
Que naõ somente qualquer Bispo, mas todo o Clerigo,
ou Christaõ leygo, que se vio vexado por potencia alguma
secular, ou ecclesiastica, póde em todas as occasioens
appellar para o Papa
[34].
O Decreto de Graciano adiantou mais estas prerogativas,
dizendo: Que os Papas naõ estavaõ, nem
deviaõ
estar sometidos aos Canones da Igreja
[35].
Que os Clerigos naõ podem ser julgados pelos Juizes
leygos em nenhum cazo
[36].
Que o Sacramento da ordem imprime hum caracter
indelevel no Clerigo ou Sacerdote, sendo que pelos
Canones dos Apostolos
[37]
o Clerigo ladraõ ou manchado
com crimes publicos, era deposto do Sacerdocio,
e ficava no estado de leygo, como qualquer Subdito do
Estado; practica da Igreja Grega até o dia de hoje.
He verdade que as referidas leis nunca foraõ conhecidas
nem seguidas pelos Tribunais de França até o dia
de hoje; mas nos Dominios de Italia e das Espanhas
esta nova jurisprudencia foi abraçada e seguida nos seos
Tribunais até os nossos tempos.
Ja a Monarchia Ecclesiastica estava defendida e fortificada
[40]
por estas leis, e os Bispos cada dia adiantavaõ
esta auctoridade nos seos Bispados de mil modos; todas
as cauzas onde podia haver
peccado,
todos os contractos
ou Tratados de paz entre Principes, onde concorria
juramento; todas as promessas ou votos, onde se podia
incorrer em peccado, todas dependiaõ do Tribunal
Ecclesiastico: desta origem vieraõ aquellas cauzas mixtifori
que recebem e seguem as nossas Ordenaçoens
[38].
E deste modo ficáraõ os Tribunaes seculares, para
executar o que os Ecclesiasticos sentenceavaõ
[39].
Até o anno 1400, lemos na Historia Ecclesiastica e
Profana tantas contendas e tantas disputas entre os
Papas, e os Reis e Emperadores: se hum Rey tirava
as terras a hum Bispo que tinha em
Feudo, ou foro,
porque naõ compria com a obrigaçaõ de
ir a guerra;
se o obrigava a pagar algum equivalente, o Bispo
appellava para o Papa; o summo Pontifice ou nomeava
hum Legado, ou mandava hum a
latere,
para decidir a
contenda; daqui as concordias
[40]
sempre feitas com
diminuiçaõ do Direito da Magestade.
Naõ entrarei na
desolaçaõ que cauzava hum Legado a
latere, por onde
passava com Comitiva de Principe sustentado, á custa
dos povos, por onde passava, presenteado pelos contendores,
e bem pagos exorbitantemente os seos Cancellarios.
Se os Reis queriaõ defender os seos povos
[41]
das vexaçoens das excommunhoens dos Parrochos e
daquellas dos Bispos, estes appelavaõ para o Papa;
nova contenda, e logo traziaõ consigo os Legados, e
cada contendente da sua parte Theologos, que à
força
de syllogismos provavaõ que os Reis naõ
tinhaõ razaõ
[41],
e que o summo Pontifice era o Rey dos Reis, e que lhe
foraõ dadas duas Espadas, huma para julgar as cauzas
espirituais, e outra para as temporais. Desta pretendida
auctoridade veyo ser o Emperador Henrique IV, e
nosso Rey Dom Sancho segundo chamado o Capello,
deposto do throno, e os seos Subditos absolvidos do
juramento de fidelidade. No anno 680 se celebrou o
Concilio de Toledo XII.
Nelle foi
deposto el Rey Vamba
por 35 Bispos, quatro Abbades e 15 Senhores. Era o
costume que se hum cahia enfermo, e perdia conhecimento,
deitavaõ-lhe o habito de Frade por penitencia;
se vinha a si, ficava Frade; assim sucedeo a el Rey
Vamba: vendose Frade declarou por successor a Ervigio,
e foi reconhecido por Rey neste Concilio
[42].
Mas naõ acabaria taõ depressa, Illustrissimo
Senhor,
se quizesse abreviar o que se lé na Historia Ecclesiastica
desde o seculo oitavo até o anno 1400: deyxo esta
[42] materia a quem
quizer ler
com cuidado,
les Discours
sur l'Histoire Ecclésiastique, par M.
l'Abbé de Fleury.
Paris. 2 vol.
in 8.º
§.
Como os Ecclesiasticos introduziram governar
os Estados Catholicos, pelas Congregaçoens
dos primeiros Christaons, e pelas Regras dos
Conventos
Bem me persuado, Illustrissimo Senhor, considerando
o claro juizo de V. Illustrissima que me naõ
accuzará,
que tomo mais a peito relatar os abuzos dos Ecclesiasticos,
do que tratar da Educação Politica, que prometi
no principio deste papel: porque o meu intento sendo
para demonstrar que he perjudicial ao
Jus da Magestade
e ao bem do Reyno, que os Ecclesiasticos sejaõ
os Mestres da Mocidade, destinada a servir a sua patria
no tempo da paz e da guerra, pareceome mui necessario
tratar, taõbem que assim, como os Ecclesiasticos
naõ
tem legitimamente poder algum nem jurisdiçaõ que
no
espiritual sobre os Fieis dentro da Igreja, que do mesmo
modo, naõ tem auctoridade alguma para ensinar a Mocidade,
que puramente na doutrina christaã: porque V.
Illustrissima vio assima que a jurisdiçaõ, que
Christo
deu aos Apostolos foi somente espiritual; que os mandou
prégar o Evangelho, isto he ensinar a doutrina
christaã,
e a bautizar, isto he administrar os sacramentos, com
poder de ligar e desatar conforme entendessem: e que
como he abuzo notorio que os Ecclesiasticos extendessem
a jurisdiçaõ espiritual que lhes pertence,
até suffocar e
absorber quasi toda a jurisdiçaõ politica e
civil, assim
[43]
he abuzo, e perjuizo á Monarchia, que elles ensinem a
Mocidade destinada a servir a sua patria. E para que
V. Illustrissima julgue se tenho fundamento no que
digo, quero em breves palabras mostrar-lhe que todo o
mal que temos experimentado desde o principio da Monarchia
provem: «Que os Ecclesiasticos quizeraõ, como
Constantino Magno, governar os Reynos e os Imperios,
pelas regras e leis das primeiras Igrejas e Conventos,
que saõ puramente espirituaes; naõ attendendo ao
Sagrado
do Estado civil, nem á sua independencia: naõ
attendendo que todo o seu poder he sobre os Christaõs,
e nunca sobre os Subditos do Estado.
A principal maxima que servio aos Ecclesiasticos de
extender a sua jurisdição sobre os leigos, foi a
seguinte:
«Que a Igreja em virtude do poder das chaves de
San Pedro, tem direito de conhecer, e julgar de tudo
aquillo que he peccado, para estar inteirada se deve
absolver delle o peccador, ou negar-lhe a
absolviçaõ:
e como (continûa l'Abbé de Fleury,
Discours VII,
page 224) em qualquer contestação por interesses
temporais,
ordinariamente hũa das duas partes defende
hũa
pretençaõ injusta, e as vezes ambas ellas; e que
esta injustiça
he
peccado; daqui he que
conclûiaõ que pertencia
esta cauza ao Tribunal Ecclesiastico: por esta maxima
os Bispos vieraõ (
a
ser) os Juizes de todas as demandas
e de todos os processos dos seus Bispados, e os Papas
de todas as guerras entre os Soberanos; quer dizer que
deste modo o Papa era o unico Soberano no mundo
[43].
Isto he quererem os Ecclesiasticos governar as Monarchias
[44]pelas leis do
Sacramento da Penitencia; o castigo
dos peccados saõ as penitencias ecclesiasticas
[44]:
os castigos aqui saõ espirituais, que os Fieis
vaõ buscar
dentro da Igreja para remirem os seos peccados: confundiraõ
os Ecclesiasticos a jurisdiçaõ espiritual, com a
jurisdiçaõ
civil, e quizeraõ governar o Reyno pela auctoridade
daquella: como os Bispos depois do
VI seculo
vieraõ
(
a ser) Senhores de terras com
jurisdiçaõ civil nos povos
dos seus Bispados, como vimos assima, tinhaõ cadeas
e julgavaõ as cauzas ecclesiasticas com penas corporais.
Desta mistura de jurisdiçaõ ecclesiastica e
secular nos
mesmos Bispos ou Prelados, veyo aquelle poder que se
arrogáraõ serem
tutores
dos orphaõs e das viuvas,
ainda mesmo das Rainhas e dos Principes. No principio
da Christandade custumavaõ os Bispos por caridade
amparar os orphaõs e as viuvas, naõ somente
soccorrendoas com os alimentos de que necessitavaõ,
mas defendendoas das vexaçoens que lhes
intentavaõ os
seculares.
Estenderaõ esta caridade christaã a reduzila em
direito
[45]
de pôr em depozito e a sua ordem os bens das
viuvas e dos orphaõs, e
(
a) estarem debayxo da sua tutela,
que mantinhaõ pelas leis civis. Tinhaõ o mesmo
poder
nos bens dos Romeiros e no dos
Cruzados á Terra
Santa, e nos hospitais dos leprosos, e nos bens destes
que ficavaõ ordinariamente ás Igrejas se
vinhaõ a morrer
os legitimos proprietarios.
A santa e exemplar vida dos primeiros Bispos fez
nacer a veneraçaõ que tinhaõ nelles os
primeiros Christaõs:
se entre elles havia contendas, porque huma das
partes naõ comprio o
pacto, ou
contracto que
concordáraõ;
nas alteraçoens que sobrevem nos
Matrimonios,
ou na execuçaõ dos Testamentos,
escolhiaõ estes Prelados
por arbitros, que achavaõ taõ justos, que
foraõ
preferidas as suas sentenças, áquellas das
justiças dos
Emperadores, debayxo do qual Dominio viviaõ. As
leis de Constantino, de Arcadio, de Theodosio e Justiniano,
permitiraõ esta practica, e a
fortificáraõ por
leis a seu favor: mas quando os Bispos se viraõ Senhores
de terras com jurisdiçaõ civil, vieraõ
arbitros
naõ por caridade, mas por direito, e
decretáraõ em
muitos Concilios, que no mesmo tempo eraõ
Cortes,
que em todos os
Contractos,
Matrimonios e
testamentos,
adonde havia
juramento,
Sacramentos, ou promessa de
obras pias, que todas estas transacçoens eraõ da
sua
jurisdiçaõ; tinhaõ a seu cargo ter
cuidado dos dottes e
das arras em cazo de adulterio, e no estado dos filhos
que procediaõ deste matrimonio, para julgar se
eraõ
espurios ou legitimos. Por cauza das obras pias expressadas
nos testamentos, estava determinado nas
Cortes de judicatura ecclesiastica, que todos fossem
[46]
feitos diante dos Parrochos; e os Bispos obrigavaõ aos
testamenteyros darlhes conta se estavaõ executados, e
todas as mandas satisfeitas; daqui vinha que os Ecclesiasticos
faziaõ todos os inventarios, e que levantavaõ
os sellos nos depositos, &c.
Dilataraõ e estenderaõ a
jurisdiçaõ Ecclesiastica, que
só tinhaõ legitimamente dentro da Igreja, a
castigar
com penas civis todas as acçoens criminozas que
offendiaõ
a Religiaõ; a
herezia, a
blasphemia, a
schisma, a
uzura, o
concubinato, e outros mais cazos
chamados
mixtiffori (sic)
[45].
Ja notamos assima que estes mesmos
tinhaõ naquellas Congregaçoens dos
Christaõs á sua
conta a inspecçaõ dos costumes: depois que os
Emperadores
Romanos abraçaraõ o Christianismo, por varias
leis, e principalmente pelas do Codigo
[46]
ficáraõ
debayxo
da sua direcçaõ os
Costumes, e a honestidade
publica. Se os Pais ou os Senhores queriaõ prostituir
as suas filhas ou Escravos, podiaõ estes implorar a
proteçaõ do Bispo, para conservar a sua
inocencia: os
Bispos juntamente com o Magistrado conservavaõ a liberdade
[47]
aos Engeitados. Naõ se podiaõ eleger
Tutores
ou Curadores dos menores ou dos Mentecaptos sem
intervençaõ dos mesmos Prelados: era
taõbem da sua
obrigaçaõ visitar huma vez por semana as
prizoens;
informarem-se da cauza da prizaõ, e advirtirem os
Magistrados de comprir com elles a sua obrigaçaõ,
e em cazo de negligencia darem parte ao Emperador.
Já vimos de que modo os Bispos e os Papas
quizeraõ
governar as Monarchias pelas leis e pelas regras dos
Conventos; agora veremos com que penas os castigavaõ;
se eraõ com aquellas primitivas espirituais, que se reduzem
a penitencia, ou as corporais, nos bens, na
honra e na vida, como castiga o Estado Civil. Ja notei
assima, fundado nos Auctores Ecclesiasticos, que
quando o peccador espontaneamente buscava o Sacramento
da penitencia, que compria aquella que o Confessor
lhe impunha; e que deste modo reconciliado tornava
a gozar da communicaçaõ dos Fieis, e á
participaçaõ
dos Divinos mysterios. Nestes primeiros tres
seculos da Christandade, estava na livre vontade de
cada Christaõ confessarse: os Bispos, ou Parrochos
naõ
obrigavaõ, nem tinhaõ poder algum para obrigalos
a
desobrigaremse da quaresma, nem em outro qualquer
tempo, somente no cazo que este peccador cauzasse
escandalo á Congregaçaõ dos fieis, ou
que dogmatizasse
contra a Religiaõ revelada e establecida, nesse cazo os
Bispos lhe negavaõ a entrada naquelles santos lugares,
para impedir o contagio que se podia communicar aos
mais: rarissimas vezes excommungavaõ, e antes
consentiaõ
com caridade que tornasse para o gentilismo,
[48]
do que chegar a tal excesso de excommungar hum
peccador que escandalizava.
Mas logo que os Bispos se viraõ com
Jurisdiçaõ que
lhes concederaõ os Emperadores Romanos, logo que se
viraõ Senhores de terras com
Jurisdiçaõ Civil, dilataraõ
aquella penitencia espiritual, convertendo-a em castigo
corporal, com perda de bens, com infamia. No
VII Seculo
os Bispos de Espanha
[47]
vendo que muitos peccadores
naõ vinhaõ someterse ao Tribunal da penitencia,
se queyxáraõ nas
Cortes desta omissaõ, e
supplicáraõ
aos Monarchas de os forçar pelo braço secular.
Practica
desconhecida até li na Igreja, e que ainda naõ he
conhecida hoje em França: e com razaõ, porque
deste
modo de proceder, se seguem cada anno infinitos sacrilegios.
Em Portugal e Castella he obrigaçaõ de
desobrigarse todo o adulto pela Quaresma; se naõ se
desobriga he perseguido por monitorios, e por ultimo
excomungado; se continua hum anno neste estado, he
reputado pelo Tribunal Ecclesiastico por hereje, entaõ
toma conhecimento deste cazo a Inquiziçaõ,
processando-o
segundo as disposiçoens do seu Directorio.
Deste modo he que do Sacramento da Penitencia fizeraõ
hum Tribunal Civil, governando o Estado pelas leis
das Congregaçoens dos Fieis, e dos Conventos.
Mostrase mais vizivelmente esta intençaõ dos
Ecclesiasticos
em Portugal e Castella, e em algũas partes de
Italia, pelo que vou a relatar.
Custumava a antiga Igreja impôr penitencias por
[49]
muitos annos por hum peccado habitual, como vimos
assima, e só deste modo he que se conciliava com a
Congregaçaõ dos fieis. Mas no cazo que
reincidisse
no mesmo peccado, no cazo que este peccador espontaneamente
fosse buscar o remedio a sua culpa no Sacramento
da Penitencia, a disciplina daquelles tempos
lhe refusava totalmente confessarse: dali por diante se
lhe negava a Communicaçaõ dos Fieis, e participar
aos
Mysterios Divinos. Mas este peccador fóra da Igreja
naõ era vexado, nem perseguido, nem ficava excommungado.
Correraõ os tempos, mitigouse a severidade
desta disciplina, e já se admitiaõ os que
reincidiaõ nas
mesmas culpas, ao Sacramento da Penitencia, como
taõbem aos mais Sacramentos.
No XIII seculo, pelo
Concilio de
Narbone
[48],
os Inquisidores
observáraõ com os Albigenses herejes, a
mesma severidade da Primitiva Igreja, naõ admitindo
á
Confissaõ Sacramental o peccador que reincidisse no
mesmo peccado; mas aquelle Tribunal, como hoje o de
Portugal e Castella, naõ se contentava uzar com aquelles
relapsos da mesma piedade e moderaçaõ, como
uzavaõ
os antigos Prelados. Relaxavaõ ao braço secular
com
infamia e perda de bens, como fazem hoje as Inquiziçoens
de Castella e Portugal, privandoos mesmo na ora
da morte do Sacramento da Eucharistia, ainda que
protestem morrer na Ley de Christo.
De onde se vê claramente que os Ecclesiasticos
governaõ
ainda hoje o Estado Civil pelas Regras das
Congregaçoens Christaãs, vê-se
claramente que só no
[50]
Tribunal da Inquisiçaõ ficou esta practica de
naõ admitir
a penitencia, o que reincidio no peccado, porque este
Tribunal tem por executores, sem vistas dos Autos e
das Sentenças, os Magistrados
[49].
Governaõ o Estado Civil, taõbem com as
Regras das
primitivas Igrejas e Conventos admitindo a
Intolerancia
Civil, pondoas em todos os Tribunais Ecclesiasticos e
Seculares, como base e fundamento da Religiaõ e da
Monarchia. Vejamos os fundamentos desta Ley taõ
auctorizada, contra a qual nenhum Magistrado, nem
Rey Catholico jamais se atreveo fazer a minima
objecçaõ.
Era justo, era santo que naquellas primitivas Igrejas
do Christianismo, nas quais os Christaõs viviaõ
em
communidade, todos conformes pela Ley de Christo na
mesma fé, caridade, e pureza de
coraçaõ, com os bens
em commum, como he a practica dos Conventos, vivessem
todos nas mesmas ideas, e pensamentos sobre
os Mysterios de fé, conhecendo, e reverenciando a
Missaõ de Jesus Christo: era justo que aquelle
christaõ
que naõ pensava assim, que dogmatizava contra a Doutrina
estabelecida, ou que naõ frequentava a Igreja, vivendo
ao mesmo tempo em peccado publico, que se lhe
negasse a entrada naquella Congregaçaõ, e a
participaçaõ
aos soccorros caritativos, e aos Mysterios Divinos.
Que assim viviaõ os Christaõs, Clemente de
Alexandria,
Origenes, e Tertuliano, e outros muitos Padres o
relataõ: Plinio mesmo Gentio
[50],
em hũa carta que escreve
[51]
ao Emperador Trajano o diz taõ claramente, que
he o mayor elogio da primitiva Christandade: era justo
então que fossem os Christaõs intolerantes, e que
entre
elles naõ consentissem algum ou Scismatico, ou Hereje.
Do mesmo modo que hoje approvariamos que hum
Guardiaõ mettesse em hum carcere, a paõ e agoa,
aquelle Frade que naõ compria com a Regra, e que a
contrariasse de palavra, e por escripto: esta
Intolerancia,
Ecclesiastica, Fraternal e christaã he
fundada na natureza
das sociedades feitas por contracto, adonde todos
mutuamente se prometeraõ
crer,
obrar, e
exercitar as
mesmas cousas, que neste cazo eraõ os artigos da
fé,
e os dez Mandamentos.
Mas que os Ecclesiasticos queyraõ governar o Estado
Civil e Politico, por esta
Intolerancia
Ecclesiastica, e
que os Reis corroborem, e fortifiquem por leis e penas
corporais estas Regras das primeyras Congregaçoens
dos Christaõs, he o mesmo que dissolver e arruinar o
Estado Civil, e quebrar o fundamento e base da sua
instituiçaõ. Vimos assima que quando o subdito
dá
juramento de fidelidade ao seu Soberano, clara ou
tacitamente, quando dá todo o seu consentimento para
[52]ser regido, e
governado, que só depóem no seu
poder
força
e
vigor, com que podia
ferir,
matar,
furtar,
offender;
ficaõ estes poderes no Soberano, para uzar delles como
achar que convem milhor á conservação
dos seos Subditos;
mas nenhum Subdito se despio daquellas
acçoens
interiores mentais, que saõ
querer, naõ
querer,
aborrecer,
crer,
julgar, ou naõ
julgar; nem jamais
ficáraõ
no poder do Soberano, quando recebeo o consentimento
universal de ser obedecido. Porque da natureza do
Estado Civil, somente as acçoens exteriores violentas
saõ aquellas que o alteraõ, e que o podem
destruir. O
amar,
aborrecer, julgar, ou
ser mentecapto, no mesmo
Estado, se reputaõ como se nunca existiraõ;
porque se
naõ demonstram com acçoens, que perturbem e
arruinem
a concordia da Sociedade Civil.
No contracto entre Christaõ e Christaõ na mesma
Igreja se estipulou serem todos concordes na mesma
crença, na mesma fé, recitarem as mesmas
oraçoens,
celebrarem com o mesmo coraçaõ os mesmos Divinos
Mysterios.
Pois se as convençoens do Estado Civil e da Igreja
saõ taõ differentes, como póde ser
justo e util para
ambas, que a
Intolerancia
Christaã, se estenda a ser
Intolerancia civil? Se os
Ecclesiasticos venerassem
mais os Estados Civis do que fizeraõ atégora, se
os
considerassem como cousa
Sacrosanta,
porque foi formado
com a cauçaõ da
Suprema
Divindade, e invocada
como testemunha, naõ haviaõ de assentar por
maxima
a
Intolerancia Civil, que he a sua
ruina e a sua destruição.
Mas que hade ser, Illustrissimo Senhor, o
[53]
Papa Gregorio VII,
no seculo
XII, nas suas Bullas
e breves
affirma, e defende as maximas seguintes contra os Soberanos
e contra as Monarchias
[51].
«Que a Igreja
tendo toda a Jurisdiçaõ das couzas espirituais,
que com
mais forte razaõ a tem de julgar as temporais. Que o
minimo Exorcista he Superior aos Emperadores, pois
que elle tem mando sobre os Demonios; e que a
Soberania,
ou o officio dos Reis he
obra do
Demonio,
fundada na soberba humana; em lugar que o Sacerdocio
he obra de Deos; e que o minimo Christaõ virtuozo,
he mais verdadeyramente Rey, que um Rey criminozo,
porque este Principe logo fica despido da Soberania,
que já naõ he Rey legitimo, mas que vem
naquelle instante Tyranno, &.»
A intolerancia com que uzou Castella com os Moiros
depois da conquista de Grenada, formaraõ aquellas potencias
da Africa que com os seos Corsarios cada dia
persecutaõ a Religiaõ, e as Monarchias
Catholicas.
Relatar aqui os males que fez a Intolerancia, seria
deyxar de mostrar o que me propuz; mas de passo
direi que aquella que Portugal desde el Rey Dom
Joaõ o III praticou com os XX.
NN. foi a origem da
perda das Indias Orientais, do Estabelecimento da Republica
de Hollanda, das marquezas de Hamburgo, e
da grandeza do commercio de Inglaterra.
Ainda tenho mais provas incontestaveis para mostrar
a V. Illustrissima que os Ecclesiasticos
governáraõ, e
ainda governaõ pela ignorancia dos Magistrados, o estado
[54]
Civil com as suas regras, e constituiçoens da
Primitiva
Igreja, e dos Conventos. Bem se vê claramente
pelo que referi do Papa Gregorio VII que elle se considerava
Superior a todos os Reis, e que todos deviaõ
pagar tributo ao Solio Romano, porque só deste Potentado
tinhaõ as suas Dignidades.
Viviam os Christaõs, como já dissemos tantas
vezes,
em commum, somente os verdadeyros fieis, como era
justo, participavaõ as esmolas daquella
Congragaçaõ ou
Convento. Se este Christaõ pela sua vida, pelas suas
palavras, ou acçoens escandalizava seos Irmaõs,
se lhe
negavaõ os soccorros temporais e espirituais. Daqui
sahio que com justiça, somente aos Santos e aos Justos
pertenciaõ os bens temporais, e espirituais, e que os
impios e os peccadores estavaõ privados delles.
Levantasse na Africa a herezia dos Donatistas e a
peditorio de S. Augustinho se executaõ as Leis Imperiais
contra os Hereges; ficaõ privados dos seos bens,
e das suas Igrejas: queyxaõse e clamaõ, e o mesmo
Santo lhes responde
[52],
levado de hum santo zelo, sem
[55]
pensar mais do que á Constituiçaõ da
Religiaõ Christaã,
e a Disciplina Ecclesiastica que se tinha observado nos
primeiros seculos, sem pensar á Ley Regia do Imperio,
nem á Constituiçaõ da Republica de
quem era subdito,
dá-lhes por toda a razaõ
que com
justiça os privaraõ
dos seos bens, e das suas Igrejas, porque só os Justos
saõ os legitimos possuidores, e que os impios naõ
possuem couza algũa a justo titulo, e confirma esta
decisaõ
arguindoos:
os fundamentos que
tendeis para defender
bens e Igrejas saõ a Ley Divina, ou a dos Emperadores:
por Ley Divina estais privados de todo bem
porque sois hereges; pelas Leis dos Emperadores taõ
bem e deste modo naõ tendes de que vos queyxar que
de vós mesmos. Aqui temos a decisaõ de confiscar
os
bens aos hereges, que seguio Gratiano no seu Decreto,
que se ensinou e ensina nas Universidades, que por elle
se sentenceaõ as cauzas Ecclesiasticas, e mixtifori em
todos os Tribunaes de Portugal e Castella.
Admiraõ-se todos que S. Augustinho sendo taõ
douto,
naõ distinguisse n'esta occasiaõ a
Constituiçaõ do Estado
Civil, daquella do Estado Christaõ, governado por
Bispos, e por Prelados nos primeiros tres seculos. Dis
claramente que a
propriedade dos
bens, (que é o mesmo
que a propria conservaçaõ), depende ou da
auctoridade
Divina, ou da auctoridade dos Emperadores: o que é
[56]intoleravel. A
propriedade
dos bens,
he anterior a
todas as Sociedades; ella he de
Direito
Natural, como
he defender a sua vida e a sua honra; naõ depende a
legitima posse, e disposiçaõ do seu proprio bem,
de ley
algũa positiva. He verdade que os primeiros
christaõs
peccadores deviaõ ser privados dos seos bens logo que
o seu peccado era publico; porque tinhaõ contractado
viver em commum, e tinhaõ cedido tudo o que
tinhaõ
á communidade, quando entravaõ nella, practica
hoje
dos Conventos, onde se conservou este modo de contractar.
Mas no Estado Civil ninguem fez cessaõ de
bens ao mesmo Estado antes de dar juramento de fidelidade;
logo é incoherente que se julguem as cauzas
civis pelas leis dos Conventos, e das Igrejas da primitiva
Christandade; logo aquellas Leis que privaõ os
herejes dos seos bens, pertencendo ao Estado como
subditos, naõ saõ Leis Civis, saõ Leis
Ecclesiasticas
prevertidas.
Naõ entrarey na especificaçaõ daquelle
proceder
violento que tiveraõ os Papas com os Emperadores
Christaõs depois do XII
seculo; bem pode V. Illustrissima
considerar, o que resultaria das maximas de Gregorio VII,
que referi assima; bem poderá considerar como
seriaõ
tratados os Monarchas por Innocencio III, do seculo
XIII,
quando escrevia que Deos criára duas Luzes no Universo,
hũa mayor e outra menor, que pela primeira se
entendia o poder Pontifical, e pela segunda o poder
Real. Que Christo dera a S. Pedro duas espadas,
hũa para governar o espiritual, e outra o temporal.
Com semelhantes allegorias, que he arbitrario concedellas,
ou negallas, porque naõ tem outro fundamento
[57]
do que a imaginaçaõ viva, e as vezes viciada, de
quem
as applica ás couzas sensiveis, estavaõ
instruidos os
Mestres que ensinavaõ nas Escolas, estavaõ
instruidos
os Tribunaes, e disgraçadamente os Reis, que vexados
e despidos da sua Real autoridade, brotavaõ em contendas
funestas cada dia com os Ecclesiasticos, e por
ultimo com os Papas, do que temos bastantes monumentos
na nossa Historia naquellas concordias feitas
com os Reis de Portugal desde el Rey-D. Alfonso II,
até D. Phelipe terceyro, que selem em Gabriel Pereyra
de Castro
[53]
como taõ bem que el Rey Dom
Sebastiaõ
por Alvará seu deu tal poder aos Ecclesiasticos que
absorberaõ o Jus da Magestade
[54].
Naõ
consideráraõ
atégora os Ecclesiasticos a distinguir entre o Sagrado
da Magestade e entre o bauptismo de Christaõ: como
Monarcha depende somente do Altissimo Deos, porque
he a cabeça do Estado, formado com o consentimento
[58]
dos Povos que o invocaraõ no acto do juramento de
fidelidade como testemunha e cauçaõ d'aquelle
facto;
naõ teve, nem terá jamais o Papa, nem o
Christianismo,
intervençaõ algũa neste acto
de formar o
Estado. A
pessoa do Rey he Christaõ, e como tal depende da
Igreja, e por consequencia do Papa que he a Suprema
Cabeça: todo poder que tem neste Christaõ, he
semelhante
ao que tem em qualquer outro. Bem sei que
naõ admittem esta necessaria
distinçaõ; mas que me
digam, quando um Fisico Mor ordena ao seo Rey que
lhe sarjem o lado doloroso de hum pleuris, e que o
Rey obedece e se deyxa cortar, e banhar em sangue,
perguntase? A quem ordenou o Physico Mor, fazer
aquella operaçaõ? foi a el Rey? ao
Christaõ? ou ao
Homem? El Rey obedeceo ao seu Fisico Mor, naõ
como Rey, mas como Homem, como hũa parte da
natureza
humana; e que o Medico sendo Ministro da
natureza tem autoridade de governalla do modo mais
a proposito para conservar a vida. Todos
approváraõ
esta distinçaõ: e porque naõ querem
admittir aquella
que ha entre o Rey, e o Christaõ. Acha o Rey a sua
consciencia gravada; chega aos pes do Confessor, e
confessasse: perguntase, quem se está ali confessando,
he el Rey, ou o Christaõ? Quem souber que o Confessor
naõ he Deos, quem souber que elle he somente
naquelle acto hum Ministro da Religiaõ, dirá
logo: ali
se está confessando hum Christaõ; porque el Rey
naõ
adora, nem deve adorar mais que a Deos em quem crê,
e de quem somente depende na terra; porque do mesmo
modo que o Fisico Mor ordenou a el Rey que o sargem
para curallo, assim o Confessor ordenou a el Rey que
[59]
fassa penitencia; obedece o Rey ao Confessor como
Christaõ, do mesmo que obedeceo ao Fisico Mor, porque
he Homem.
Pareceme que tenho mostrado com bastante clareza
o que prometi no titulo deste paragrapho; e he facil
tirar dali a consequencia que ja os Ecclesiasticos tinhaõ
fundado hũa Monarchia a seu modo dentro da
Monarchia
Civil: ja tinhaõ decretado leis para sustela, e fortificala;
ja os tribunais, e as Cortes dos Reis as observavaõ, e ja
o Estado Civil estava governandose no XII seculo, pelas
falsas Decretais de Isidoro Mercator, e pelo Decreto de
Graciano: ja se ensinavaõ nas Escolas, mas ainda nellas
naõ estavaõ introduzidos aquelles
gráos de Doutor, e de
Bacharel; ainda naõ estavaõ decorados com
dignidades
aquelles que estudavaõ o Direito Canonico, e
acharaõ
no seculo XIII os Papas todos os meyos para os decretarem,
fortificando deste modo o seu novo poder de tal
modo que ficáraõ as Monarchias dependentes da
Corte
de Roma, tanto no espiritual como no temporal; e he
o que mostrarei no paragrapho seguinte.
§.
Das Universidades
Naõ he o meu intento tratar aqui das Universidades,
que para mostrar a V. Illustrissima, se as que existem
actualmente saõ uteis ao Estado, e se nellas se
ensinaõ
todas as sciencias necessarias ao seu governo civil e
politico; se nellas a Mocidade destinada a servir a sua
Patria, podera ser educada para servila no tempo da
paz e da guerra, no tempo em que estiver occupada, e
tempo do descanço. Sucintamente declararei se
foraõ
[60]
instituidas e auctorizadas a ensinar e graduar aos que
nellas estudaõ pelo poder Real, ou do Papa, na
intençaõ
de mostrar evidentemente que S. Magestade he o Senhor
de abolir e de instituir as Escolas e Universidades que
achar saõ perjudiciaes ou uteis á
conservaçaõ dos seos
dilatados Dominios.
Ja vimos assima que pelas leis do Codex Theodosiano
podiaõ os Ecclesiasticos ensinar publicamente; e pelos
Capitularios de Carlos Magno foi ordenado que nas
Igrejas Cathedrais, e nos Conventos se ensinassem as
sciencias conhecidas naquelles tempos: vimos taõbem
que já os Ecclesiasticos tinhaõ estabelecido leis
reconhecidas
pelos Parlamentos e
Cortes, e que os
Tribunais
tanto seculares, como Ecclesiasticos julgavaõ
por ellas: agora veremos que logo que Graciano Frade
Bento de Bolonia publicou a sua Coleçaõ
intitulada,
Concordia Discordantium Canonum, no
anno 1151; e
que Gregorio IX no anno 1230 publicou os cinco livros
das suas Decretais; e o Papa Bonifacio VIII o sexto
livro, que he a continuaçaõ, no anno 1299; e que
Clemente
V no anno 1311 augmentou esta collecçaõ com as
suas Constituiçoens, chamadas Clementinas, que ficou
mais que nunca estabelecida a Monarchia Ecclesiastica;
porque o Decreto, as Decretais e as Clementinas referidas
começaraõ a ser ensinadas nas Universidades
[55].
Até o anno 1230 pouco mais ou menos,
nenhũa das
Escolas estabelecidas na Cathedral de Paris, de Bolonia,
de Roma, e outros Conventos, nenhũa se chamou
[61]Universidade:
este nome
tiveraõ as Escolas publicas,
logo que os summos Pontifices instituiraõ n'ellas aquellas
dignidades ou Graós de Bacharel, Licenciado e Doutor
nas quatro
Faculdades de Theologia,
Canones, Leis, e
Medicina: indicio certo que estas Escolas com gráos
saõ da instituiçaõ Pontificia.
M. Boulaeus, na Historia da Universidade de Pariz
[56],
affirma que pelos annos 1150 todos os Estudantes que
estudavaõ em Bolonia o Direito, se applicavaõ a
ouvir
as liçoens de Irnerio, que naquelle tempo ensinava ali
o Direito Civil, com universal applauso; e que Graciano
vendo que os Estudantes naõ estudariaõ o Direito
Canonico
que se continha no seu Decreto, que pouco
tempo depois recorrera ao Papa Eugenio III, propondolhe
que instituisse algũas honras academicas, com
as quais fossem condecorados aquelles que estudassem
os Canones; e que Pedro Lombardo, chamado o mestre
das Sentenças, fora o primeiro que na Universidade de
Paris as introduzio. O mesmo M. Boulaeus affirma
que naõ consta pelos registros da Universidade em que
anno começaraõ estes Gráos mas que
já no anno 1236
se achaõ assentos de Estudantes que tinhaõ sido
condecorados
com elles. Que as Universidades saõ Corpos
Ecclesiasticos; e que Phelipe Augusto no anno 1200,
dera um Decreto a favor dos Estudantes matriculados
[62]na de Paris, que se
fossem prezos pelas suas justiças,
que seriaõ entregues a Justiça Ecclesiastica. Que
os
mesmos Estudantes, naõ somente gozaõ das
immunidades
dos Clerigos, mas que andam vestidos do mesmo
vestido. Que os gráos de Bacharel, e de Doutor
saõ
dados pelo Cancellario que he o Legado do Bispo;
porque os Bispos saõ considerados os Juizes ordinarios
das Universidades. Que aquellas insignias, quando se
doutoraraõ os Estudantes, de
habito
talar,
capello,
livro,
anel, e
beijo de paz, foraõ instituidas, como se o
Doutorado entrasse no Estado sacerdotal, ainda que
seja leygo, tomando o gráo de Doutor em Leis ou em
Medicina: e que estas honras
provem
originalmente do
summo Pontifice, e jamais de Principe ou Monarcha.
Parece que Nicolao IV foi aquelle que instituio estas
insignias, porque elle foi o primeiro que ordenou que
os Cardeiaes trouxessem chapeo forrado de seda vermelha;
e como os doutores mesmo de Theologia vestem
a roba tallar d'esta côr forrada de arminhos, (este he
o costume da Universidade de Paris, com o capello do
mesmo forro), parece que delle veyo esta
introducçaõ.
A tradiçaõ o mostra claramente, por que em
França e
em Italia antigamente chamavaõ a todos os Doutores,
Clerigos; e os Medicos da Faculdade de Paris naõ lhes
era permitido casaremse, ainda que fossem leygos até
o anno 1450, pouco mais ou menos, quando o Cardeal
de Estoutiville, como Legado do Papa, os dispensou
desta obrigaçaõ
[57];
e que os Reis de
França somente
[63]depois do anno 1573
começáraõ a ter auctoridade
sobre
a Universidade de Paris, porque de antes somente dependia
do Papa.
Quando hum destes estudantes toma o gráo de Doutor
jura nas maõs do Cancellario «que será
sempre fiel e
constante a defender os Direitos da Universidade, e a
Doutrina que se ensina
nella», de tal modo que todo
aquelle assim graduado, que fallar ou escrever contra
os dogmas e doutrina d'ella, ficará perjuro, e por
consequencia
excomungado; e que senaõ retractar, que
será persecutado como herege.
Eu naõ achei prova mais authentica para provar o
que pensa a nossa Universidade de Coimbra do poder
do Papa e da sua Jurisdiçaõ, do que a
approvaçaõ que
ella deu Sendo Reytor Nuno da Silva Telles no anno 1717,
á Bulla unigenitus, em claustro pleno, assinando aquellas
decisoens todos os Doutores Seculares e Ecclesiasticos
[58].
Lamentemos, Illustrissimo Senhor, o estado
[64]de hum Monarcha,
que naõ tem, nem pode ter hum
Conselheyro, hum Juis, nem hum Procurador da Coroa,
que naõ esteja ligado por juramento defender todo o
que tem decretado hũa Potencia Extrangeyra,
hũa Potencia
que fundou na sua Monarchia, outra que faz os
mesmos effectos que aquellas plantas chamadas
parasitas
que se sustentaõ do succo da arvore, adonde estaõ
pegadas; lamentemos que está S. Majestade, e cada
hũa das suas villas, sustentando a nossa
Universidade,
para diminuir o Poder Real, para absorber-lhe a
jurisdiçaõ
que tem nos seos Subditos, e em Portugal hum
em vinte, pela doutrina da Universidade, ficaõ subtrahidos
d'aquella indispensavel obrigaçaõ: e assim he
que se consideraõ os Ecclesiasticos.
Vejamos agora
se sam uteis ou perniciosas ao Estado
Civil? Para satisfazer a esta questaõ, he
necessario
declarar aqui summariamente o que se ensina na
nossa Universidade, e de que modo se ensina. Bem
[65]vejo que
naõ serei exacto, mas com tudo naõ
deyxarei
de satisfazer em geral ao que pede este papel.
§.
Dos Estudos da Universidade de Coimbra,
depois da sua Renovaçam no anno 1553
V. Illustrissima me excuzará facilmente se omittir
aqui as mudanças que teve a Universidade de Coimbra
desde el Rey Dom Dinis seu fundador, e em que tempo
foi transferida de Lisboa, para aquella cidade e desta
para Lisboa, até que tomou o assento que hoje tem no
tempo del Rey Dom Joaõ o III. Este Monarcha sustentava
em Paris no Collegio de Santa Barba desde o
anno 1530, pouco mais ou menos, alguns Estudantes
Portuguezes, na intenção de formar Missionarios
para
as Indias Orientais; destes Estudantes como foraõ os
dois Gouveas e Diogo de Teyve, e alguns extrangeyros
Francezes, e Buchanan Escosses, se compoz a Universidade
de Coimbra nesta sua renovaçaõ; e podemos
dizer que ella he filha da Universidade de Paris; porque
em ambas se ensina a mesma doutrina. No que toca
a Disciplina Ecclesiastica, V. Illustrissima sabe o que
se entende
pour les Libertés de l'Eglise
Gallicane.
V. Illustrissima sabe muito milhor do que eu, de que
modo se ensina a Theologia, e o Direito Canonico na
Universidade de Coimbra. Mas naõ he deste papel
mencionar estas sciencias: por essa rezaõ naõ
fallarei
nellas, porque tomára que se aprendessem separadamente
em tres Collegios:
v. g. em Braga,
Lisboa, e
Evora, separados de todos os outros, ou da Universidade
[66]
onde se deviaõ ensinar as Sciencias humanas, de
que necessita o Estado Civil.
Estudasse a Jurisprudencia, ou as Leis Romanas, e
V. Illustrissima sabe que rarissimo he o Estudante que
toma o gráo nesta Faculdade: muitas saõ as
cauzas;
mas naõ callarei todas; ainda que todas eraõ
necessarias,
se este papel fosse hum livro.
Entra hum estudante na Universidade, instruido bem
ou mal na
Lingoa Latina,
matricûlase em Leis ordinariamente
para ouvir, ou saber a aula, onde se explicaõ
as
Instituiçoens de
Justiniano. Continûa quatro annos
o Direito Civil, escrevendo o que o seu Lente lhe dicta;
chega ao quinto anno, e faz a sua conta; que lhe será
mais util fazer as suas concluzoens em Canones, ou o
seu Bacharel; porque sendo canonista:
1.º Pode ler no Paço para seguir as varas;
2.º Opporse aos Beneficios das Ordens Militares, e
dos Cabidos;
3.º Ser Pregador;
4.º Ser Vigario Geral, Provisor, ou Promotor de
algum Bispado;
5.º Advogar.
E que faz entaõ? faz petiçaõ ao
Reytor, pedindo que
se lhe commutem os annos, que estudou em Leis, nos
cursos do Direito Canonico; e sahe despachado como
pede. Isto he o commum, e igualmente mui notorio.
Mas o que hade ser? A Universidade he Ecclesiastica;
augmentar o numero dos Canonistas he servila,
he augmental-a. O Estado serve-se delles porque todas
as suas Leis estaõ restrictas pelas Leis do Decreto, das
Decretais, e mesmo das Clementinas.
[67]Mas concedamos que
estudou leis por sete annos, e
que nesta Faculdade fez os seos Actos approvado,
nemine discrepante. Que me
digaõ em que poderá
servir ao Estado este Bacharel, ou este Doutor em Jurisprudencia?
Sabe Deos se comprehendeo as Instituiçoens
de Justiniano, com Minsingero, ou Vinnio:
porque naõ creyo que o commum destes Estudantes
viraõ jamais as Pandectas. Estudou por sete annos
para ser letrado, ou Juis, e naõ estudou naquelle tempo
as Ordenaçoens do Reyno.
Mas hum Juis, e um Letrado, que ha de servir a sua
patria, necessita ter um conhecimento naõ ordinario da
Historia Romana, do Governo daquella Republica, da
sua Religiaõ, e dos seos costumes; como taõbem
ter
igual noticia dos seculos barbaros, da Historia patria,
e de Castella, porque de outro modo naõ entenderá
jamais as Leis das Pandectas, nem as das nossas Ordenaçoens.
Mas na Universidade de Coimbra naõ ha
taes Cadeyras; como taõbem naõ ha aquella para
ensinar
o Direito publico com a Historia da Europa, sendo
absolutamente necessarias a hum Juis, e a hum Letrado
que ha de servir os empregos e os Cargos na sua patria.
Mas esta Universidade he Pontificia como as mais da
Europa; e naõ convem, e seria castigado aquelle que
votasse, que tais conhecimentos se ensinassem publicamente.
Deyxo por agora aquelles dois abuzos notaveis,
introduzidos pela barbaridade das Escolas scolasticas,
defender
concluzoens, e fazer os
exames, por Syllogismos;
aquellas
liçoens de
ponto, e as
ostentaçoens, a
abertura das Pandectas, ou do Direito Canonico, subir
á cadeyra, e discutilo
ex
tempore.
[68]
Persuadome que desta vez sahio fóra dos Dominios
de sua Magestade aquella Philosophia das Escolas
depois que se publicou o seu Alvará sobre a reforma
dos Estudos: e por essa cauza naõ allegarei tudo aquillo
que tinha determinado escrever contra ella; por tanto
naõ callarei tres males que cauza. O primeiro, que se
um rapas tem boa letra, que perde esta bella prenda,
escrevendo em sima do joelho por tres annos, o que
seu Mestre lhe dicta. O segundo, que se apprendeo
algum pedaço de Latim nativo de Cicero, Quinto
Curcio, ou Virgilio, que o perde por aquella Lingoa
destas Escolas, com nomes, e frázes taõ barbaras,
que
nem saõ Latim, nem Lingoa algũa
conhecida. O terceyro,
que depois de estudar esta Filosofia, que o Estudante
saye, ou com o juizo torto, ou que fica incapas
de estudar, e de applicarse por toda a vida. Se este
Estudante tem boa capacidade, se se applicou seriamente,
e comprehendeo aquella giria filosophica, ficou
destituido de todo o juizo natural, e naõ pode fallar que
por syllogismos; contradiz tudo, e tudo prova com a
sua dialectica, ainda mesmo aquellas noçoens commuas,
o total he mayor que a sua parte;
fica inchado e desvanecido
de hũa soberba insoportavel, porque ninguem
o pode convencer; e fica o seu coraçaõ mais
depravado
do que o seu juizo. Mas no cazo que o pobre Estudante
naõ aprendeo, nem concebeo aquella lingoa de
giria, esmorece, naõ estuda, aborrece a
applicaçaõ
porque naõ tem gosto algum na lectura, adquirio
habito de naõ indagar couza algũa;
occupa o tempo em
aprender a Musica, a jugar as cartas, a espada preta,
e queyra Deos que naõ occupe aquelle tempo destinado
[69]
para aprender, em vicios que o faraõ inhabel para si,
e para a sua patria. Ninguem que passou por aquellas
Escolas negará o referido: esta Filosofia he a
produçaõ
dos seculos da Ignorancia, do ocio dos Frades depois
que deixáraõ o trabalho de maõs que
ordenava a sua
regra; he a produçaõ da Monarchia Gothica onde o
vençer, e ignorar as leis da humanidade, era o seu
fundamento.
O fructo, que deve pretender o Legislador dos estudos
da Mocidade, he que sayaõ das escolas com o conhecimento
das primeyras noçoens das couzas naturais, e
das couzas civis; com o juizo taõbem formado que
saibaõ
o que he
util a si e a sua patria, o
que he
licito, o que
he
decente: e quem sahio com estes
elementos das Escolas,
os adiantará facilmente na Sociedade Civil pela
lectura, e pelo trato dos homens instruidos. Mas das
Escolas de Filosofia que havia em Coimbra tudo se
observava em contrario; e se he licito dizer outro tanto
dos Estudos da Universidade, he certo que merecem
igual reforma, como S. Magestade ordenou nos estudos
das Classes.
§.
Resume do Referido
Tenho mostrado a V. Illustrissima, me parece, com
a brevidade e clareza que me foi possivel, a
Constituiçam
da Monarchia Civil, e taõbem aquella
da
Monarchia Ecclesiastica, establecida dentro da mesma.
Mostrei o Sagrado da primeira, fundada, especialmente
Portugueza pelo
consentimento geral
dos Povos, pelo
juramento de Fidelidade aos Reis que
invocáraõ a
[70]
mesma Divindade, que os seos Povos, como
testemunha
e como cauçaõ daquella
convençaõ, e solemne pacto.
Mostrei que todos os Monarchas, e com especialidade
os nossos, tem em si incluido todos os poderes, que
tinhaõ os seos subditos antes daquella solemne
transacçaõ;
e que Nelles existe a
Jurisdiçam do Primeiro
Juis, do
Primeyro General; do
Primeyro Pay, do
Primeyro Censor; auctorizado (a) decretar todas as leis
que forem uteis para a conservaçaõ e augmento do
seo
Estado.
Mostrei taõbem que pelos primeiros
tres
seculos da
Christandade, viviaõ os Christaõs em commum
debayxo
do Governo dos Bispos, ligados em Congregaçoens,
como aquellas Sociedades de Christaõs hereges em
Hollanda, e Alemanha chamadas
Hurrenhutters, permitidas
e ás vezes persecutadas pelo Estado Civil.
Que os Christaõs nestas primeyras
Congregaçoens,
como os frades de St. Basilio, e St. Bento viviaõ em
communidade de bens, de vontades, de crença, na
Fé,
e na charidade christaã. Que os bens destas Igrejas
consistiaõ em esmolas dos Fieis, das quaes se
sustentavaõ
os Sacerdotes, os pobres, e conservavaõ edificios,
onde se celebravaõ os Divinos Mysterios.
Que o officio dos Bispos consistia a ensinar os Mysterios
Divinos, a administralos, e a inculca
Que o officio dos Bispos consistia a ensinar os Mysterios
Divinos, a administralos, e a inculcalos pelos
sermoens, e practicas espirituais; e taõbem a ordenar
e a formar Parrochos, e Diaconos para exercitarem as
mesmas funçoens. Que naõ tinhaõ poder
algum coactivo
nos Christaõs, conforme a doutrina do Evangelho; que
castigavaõ somente refuzando os Sacramentos aos Peccadores
escandolozos, ou que recahiaõ no mesmo
[71]
peccado, e ás vezes até á ora da
morte: que impunhaõ
penitencias graves por muitos annos, á aquelles que
espontaneamente procuravaõ aliviar a sua consciencia
pelo Sacramento da Penitencia.
Mostrei que Constantino Magno foi o primeiro que
governou o Estado Civil, por estas Leis e regras das
Congregaçoens Christaãs, e dos Conventos; dando
Jurisdiçaõ
aos Bispos de Pretores, e de Censores; premiando
a continencia, e abrogando as Leis Civis do
Imperio; e que deste modo ficáraõ os Bispos e os
Prelados,
Senhores das Escolas da Mocidade, e Censores
dos Costumes Civis.
Que os Bispos augmentáraõ a sua auctoridade no
temporal tanto que os Monarchas Godos ja Christaõs
lhes deraõ terras, e villas em propriedade, e com
Jurisdiçaõ
de vida e morte; ainda que com obrigaçaõ de
irem á guerra com os seos villoens. Que esta auctoridade
no civil cresceo pelas Leis das dittas Monarchias,
nas quais todos aquelles que eraõ Senhores de terras
com Jurisdiçaõ, tinhaõ assento nos
Parlamentos, e nas
Cortes que celebravaõ
frequentemente.
Que como a ignorancia era universal, que ninguem
sabia ler nem escrever, exceptuando os Ecclesiasticos;
que por essa cauza elles eraõ os Concelheyros dos
Principes, os Chanceleres, os Embayxadores, os que
redigiaõ os actos das
Cortes, os que eraõ
Secretarios,
Juizes, Notarios, Advogados, e os Medicos. Que os
mesmos Reis cahiraõ na ignorancia que reynava, porque
os seos filhos, e da Nobreza, eraõ educados nos Conventos.
Que todo o ensino que houve na Europa até á perda
[72]
do Imperio Grego no anno 1453 estava nas Sés, nos Conventos
e Universidades, adonde todos os Mestres eraõ
Ecclesiasticos, ou que viviaõ conforme a Disciplina
Ecclesiastica estabelecida por muitos Concilios, e principalmente
os de Toledo, que duráraõ até o anno
701;
pelas falsas Decretais de Isidoro Mercator, e sobre tudo
pelo Decreto de Graciano, pelas Decretais, e pelas
Clementinas.
Que as Monarchias Godas eraõ totalmente ignorantes
da sua Jurisdiçaõ: que davaõ villas e
cidades com ella
a seos filhos e molheres, e outros subditos que naõ
conheciaõ outra que de primeiros Generais; e que por
essa cauza os Ecclesiasticos, nesta ignorancia dos
Direitos
da Magestade, os absorberaõ, e uzáraõ
delles,
como Senhores. Que naõ distinguiraõ nunca entre o
Christaõ e o Rey, e o Homem; que tinhaõ por
maxima,
e que ainda se conserva hoje, que o Estado de Christaõ
apaga o Estado de Rey, de Magistrado e de Homem;
e que deste modo elles eraõ os Senhores de tudo que
dependia do Christaõ, do Homem, do Subdito, ou do
Soberano. E para que se comprenda como foi governada
a Europa Catholica por treze seculos, trarei um
exemplo que o mostrará evidentemente. Pareceme que
vejo um Sachristaõ ensinando a doutrina christaã,
rodeado
de meninos: por cada erro, ou falta que algum,
ou por ignorancia ou por inadvertencia, fez, o castigo
he immediato, sem distinçaõ se he filho de Nobre,
ou
plebeo, ou se he livre ou escravo: todos estes ouvintes
recebem aquelle castigo com a mayor submissaõ.
Mostrei que as Universidadas Catholicas são de
Instituiçaõ
Ecclesiastica, e que nellas se ensinaõ sómente
[73]
aquelles conhecimentos, que conservaõ e augmentaõ
a
auctoridade e primazia dos Ecclesiasticos; e que sendo
sómente da sua obrigaçaõ ensinar nas
Igrejas, e nas Sés
a Doutrina Christaã, a Theologia, e as Escrituras Sagradas,
que por sua auctoridade e direçaõ
ordenáraõ
ensinar as sciencias humanas, sobre as quais naõ tem
nem devem ter inspeçaõ algũa;
que os
Privilegios dos
primeyros Emperadores Christaõs aos Bispos, a ignorancia
dos Reys Godos, e Visigodos, o terem assento
em Cortes, e possuirem terras com jurisdiçaõ
civil, foi
a cauza que os mesmos uzurpáraõ governar pelas
leis
da Igreja o Estado, como taõbem ensinaõ as
sciencias
humanas, ainda que taõ precariamente, que vem ser
inuteis ao mesmo; que nas Universidades naõ se
ensinaõ
a Physica, a Historia Natural, as Mathematicas, a Astronomia,
a Philosophia Moral, o Direito das Gentes,
nem as nossas Ordenaçoens, Sciencias das quais necessita
o Estado para o seu bom governo, e augmento:
e que só ao Soberano pertence fundar estes Estudos, e
aos Mestres Seculares ensinar nelles; do mesmo modo
que só he da Competencia dos Ecclesiasticos ensinar a
Theologia, Escritura Sagrada e Canones, e a elles
mesmos estudar estas sciencias.
Que Sua Magestade he o Soberano Senhor de fundar
Universidades ou Escolas onde se ensinem as sciencias
naturais, e as Civis, naõ dependendo estas por nenhum
principio da auctoridade Ecclesiastica: que tem a mesma
para decorar com honras aos que tiverem estudado com
applauzo, sem intervençaõ do Summo Pontifice, ou
dos
Bispos.
He o que por agora ouzo prezentar a V. Illustrissima;
[74]
e se achar que foi do seo agrado o que acabo de escrever,
continuarei o que tenho meditado sobre a Educaçaõ
da Mocidade Portugueza, e a dar as mais incontestaveis
provas do mayor respeito que conservo para
V. Illustrissima, que Deos guarde muitos annos.
Illustrissimo Senhor:
Na introduçaõ assima vio V. Illustrissima, que
toda
a Educaçaõ que tivemos até os nossos
tempos, foi conforme
as maximas Ecclesiasticas, tanto nas Escolas do
Latim e Philosophia, como nas Universidades. Agora
mostrarei os seos effeitos: mostrarei as Leis que sahiraõ
deste ensino; e taõbem os costumes que sahiraõ
destas
Leis: mostrarei de passo o prejuizo que recebeo o
Reyno, e a Religiaõ; e que se o Reyno se podia conservar
com aquella Educaçaõ em quanto havia conquistas,
e podia conquistar, que actualmente naõ as
havendo já, que se deve mudar aquella antiga
Educaçaõ
que tinhamos; e que por existir ainda hoje, que vem a
ser mui prejudicial ao Estado. Ajuntaõ-se a estes
inconvenientes
que o nosso Estado actualmente he hũa
mistura da Constituiçaõ Gothica, e da
Constituiçaõ
daquellas Monarchias, das quais a base consiste no
trabalho e na
industria: porque conservando as
conquistas,
e as Colonias que temos, somos obrigados (a)
conserval-as pela
agricultura e pelo
commercio; e para
fundar estes empregos, e conservalos, como base do
[76]
Estado, necessitamos derogar as Leis Gothicas que
temos, que se reduzem aos excessivos Privilegios da
Nobreza e ás Immunidades dos Ecclesiasticos, as quais
contrariáraõ sempre todo o bom Governo Civil. Em
quanto existirem estes obstaculos, que saõ firmados
pelas Leis das nossas Ordenaçoens, he impossivel
introduzir-se
hũa Educaçaõ universal da
Mocidade destinada
a servir a sua patria no tempo da
occupaçaõ e
do
descanço, no tempo da
paz e da
guerra.
Eu bem sei, Illustrissimo Senhor, que nem tudo se
pode fazer de hũa vez; bem sei que os obstaculos
que impedem
o bem, devem ser attendidos muitas vezes com
mayor ponderaçaõ, do que o proveito e utilidade
que
se vai buscar, quando forem vencidos: mas se tudo se
naõ pode fazer, he da obrigaçaõ do
juiso humano prever
tudo, e conhecer as cauzas das desordens presentes,
para evitalas, ou supprimilas pelo discurso do tempo.
Espero do claro entendimento de V. Illustrissima que
naõ accuze o meu obediente e fervoroso animo no
serviço
de S. Magestade, se adiantar algũa
decisaõ que
indique erigirme em Legislador, ou que reprovo as Leis
fundamentais do Reyno. O meu intento he declarar á
V. Illustrissima o que tenho pensado e penso sobre o
Estado de Portugal; hũas vezes lendo, outras
escrevendo,
e meditando depois de muitos annos: naõ pretendo
que se siga o que o meu reverente animo ouza
communicar á V. Illustrissima; nem confio de mim
tanto, que me persuada seja irrefragavel o que digo.
No cazo que me engane, será um proveito para a
Patria, que tenha Subditos que com milhores e mais
acertadas razoens, me contradigaõ; porque esses mesmos
[77]
aceitaraõ com milhor methodo, de propor as Leis pelas
quais se deve governar o Reyno e a Educaçaõ da
Mocidade.
§.
Effeitos que cauzáram em Portugal as
Escolas,
e as Universidades da Europa e do mesmo Reyno
Vio, V. Illustrissima, na introducçaõ assima a
total
ignorancia dos povos Christaõs da Europa desde o
anno de 600, até o de 1400: e que só os
Ecclesiasticos
por saberem ler, e escrever a Lingua Latina, e
algũas
sciencias, tinhaõ no seu poder a
Legislaçaõ dos Reynos
Christaõs, e toda a Educaçaõ da
Mocidade, e ainda
aquella dos mesmos Reis, educados nos Conventos e
sempre ensinados por Ecclesiasticos. Vio, V. Illustrissima,
taõbem que toda a Christandade foi governada
pelos Papas, e pelos Bispos, e que sem a menor repugnancia
obedeciaõ, naõ só a abraçar
a doutrina, mas
ainda o castigo. Deste modo he que fizeraõ Leis de
Disciplina que existem no Decreto, e Decretaes; erigiaõ-se
Universidades com os seus Estatutos Ecclesiasticos,
adonde aprendiaõ aquelles Subditos que haviaõ
de servir hum dia a sua patria, nos Cargos de Conselheyros
de Estado, de Secretarios de Estado, de
Magistrados, Juises, Advogados, Embayxadores, Enviados,
etc. E que estes naõ
tendo aprendido outra
sciencia nem conhecimento scientifico, (como taõbem os
Reis dos seos Mestres) que nas Universidades dittas,
era força que tudo o que fizessem publica e particularmente,
fosse conforme as Leis decretadas pelas Decretais,
e ensinadas nas Universidades.
[78]
Desta Origem vieram as nossas Leis e as nossas
Ordenaçoens. Joaõ das Regras, ensinado na
Universidade
de Bolonia por Bartholo, ordenou em hum volume
as Leis de Portugal, que andavaõ dispersas, e
lhes ajuntou as Leis do Codigo, com as Interpretaçoens
de Bartholo e Acursio, que valeriaõ por leis, e assim
as publicou no anno de 1425. No tempo del Rey
Dom Affonso o Quinto, o Infante Dom Pedro sendo
Regente, foraõ reformadas: el Rey Dom Manoel, no
anno de 1514, as mandou publicar com este titulo,
Ordenaçoens do Reyno de
Portugal: foram reimpressas
com augmentaçoens por mandado dos Reis Dom Joaõ
o III, Dom Sebastiaõ, Dom Felipe o Primeiro, e Terceiro,
Dom Joaõ o Quarto, Dom Pedro, e Dom Joaõ
o Quinto. E em tantas e taõ variadas impressoens
sempre esta obra constou de cinco livros, e cada hum
de diversos titulos, que se foraõ augmentando ou diminuindo
conforme os directores da impressaõ, como diz
Diogo Barbosa Machado na sua Bibliotheca Lusitana,
no articulo
Joam das Regras.
A primeira Educaçaõ regular de que temos noticia
da Historia, começou no tempo del Rey Dom Dinis;
elle mesmo foi educado por Mestres Francezes, e particularmente
por Dom Aymerico, que foi Bispo de
Coimbra, que seu pay Affonso Terceiro tinha visto em
França, quando estava cazado com a Condessa Mathilde.
Este Principe assim educado, tanto que possuio o throno,
erigio hũa Universidade, onde se ensinava o
Direito, e
a Medecina; porque a Theologia se ensinava nos Conventos
de S. Domingos e S. Francisco. Continuou esta
Universidade hũas vezes em Lisboa, outras em
Coimbra,
[79]
até os nossos tempos; e sem embargo que nella aprendia
a Mocidade Portugueza, sempre aquella que mais se
queria distinguir sahia aprender em Bolonia, Florencia,
e Paris, como era costume no tempo del Rey Dom Joaõ
o Segundo, el Rey Dom Manoel, e Dom Joaõ o Terceiro,
particularmente em Paris. O Chanceller Mor Joaõ
Teyxeyra, e seu filho Luiz Teyxeyra, Jurisconsultos
doutissimos, tinhaõ aprendido em Florencia, e este
ultimo com Angelo Policiano.
As sciencias que se ensinaõ e ensinavaõ nestas
Universidades
desde o seu establecimento tanto em Portugal,
como no resto da Europa Catholica, sempre foraõ
as mesmas; e as decisoens do Decreto, das Decretais e
das Clementinas foraõ taõ observadas e ensinadas
como
as decisoens do Concilio de Trento: a Mocidade naõ
podia aprender outra doutrina; e quando vinhaõ a ser
Magistrados Dezembargadores do Paço, e em outros
Tribunaes, naõ podiaõ propor lei
algũa nova,
ou abrogar
algũa velha, que naõ fosse conforme
á doutrina
recebida
que aprenderaõ nas Universidades Catholicas; e como
os Reis naõ tinhaõ outra sorte de Mestres, nem de
Conselheyros,
firmavaõ tudo o que se lhes propunha, julgando-o
util para a conservaçaõ do Estado.
Deste modo he que se compuzeraõ as
Ordenaçoens;
e vemos nellas aquellas leis em favor dos Ecclesiasticos,
como se naõ fossem reputados Subditos do Estado.
«
Que sejam exemplos, e excusos de pagarem
decima,
portagem, siza, do que comprarem e venderem, elles e
todos os seos domesticos. Ord.
liv.
2. tit. XI.
Julgam
todas as cauzas Mixtifori, naõ sendo
preventos pelas
justiças seculares (o que succede rarissimas vezes).
[80]
Ord. liv. 2. tit. IX. Que as Justiças do Reyno executem
tudo o que a inquisiçaõ lhes ordenar. Ibi. tit.
VI.» e
outras mais immunidades, e Jurisdiçaõ em materias
quando
ouver peccado, como
poderaõ ver mais particularmente
os que amarem esta indigaçaõ, nas mesmas
Ordenaçoens.
Como os Dezembargadores que propuzeraõ as ditas
ordenaçoens naõ tinhaõ aprendido a
differença entre
hũa Monarchia fundada e conservada
com a
espada, e
entre aquella fundada pelo
trabalho e
industria, seguiraõ
cegamente na sua composiçaõ, mesmo até
os
nossos tempos, as maximas da nossa antiga Monarchia,
que essencialmente he a Gothica; conserváraõ
nellas
aquelles exorbitantes privilegios aos Fidalgos, e aos
Dezembargadores. «Que os seus domesticos, lavradores,
criados, naõ paguem peitas, fintas, pedidos, nem
talhas.» Ord. liv. 2. tit. 58 & 59. As suas pessoas
naõ
podem ser prezas por dividas nem venderem-se os
Morgados, nem serem prezos por crimes leves.
Ibi.
liv. 5. tit. 120. liv. 3. tit. 54. §.
15. liv. 5. tit. 134,
& tit. 25. e outros muitos que se lem em
muitos logares
das mesmas Ordenaçoens.
Desta Origem aquellas Leis, destrutivas da agricultura,
e do Comercio sobre os
Reguengos;
almotaçar as
carnes, o peyxe, os frutos, e o paõ; prohibirem que
se possa negocear com os frutos e sementes, como se
faz comercio com os panos de Linho e de Lam: he verdade
que os Reis igualmente instruidos fizeraõ, de seu
moto proprio, Leis destruidoras do Estado e da Agricultura.
El Rey Dom João o segundõ por hum mal entendido
[81]
zelo ordenou que se executassem as Bullas dos Summos
Pontifices, sem serem revistas pelos seos Ministros; o
que estava em uzo de antes, e establecido por muitas
Concordias ou Concordatas entre os nossos Reis e os
Papas. El Rey Dom Manoel estando em Çaragoça
decretou hũa Lei, de seu moto propio, sem
intervençaõ
das Cortes, pela qual eximio todos os Ecclesiasticos (de)
pagarem peitas, sisas, e outros tributos,
que pagavam
de antes, como os
Leigos, como diz o seu Cronista
Damiaõ de Goes. E o mesmo Rey decretou outra,
com summa perda da nossa agricultura, que os frutos
e sementes que desembarcassem nos portos do Reyno.
sendo estrangeiros, naõ pagassem tributo, portagem,
nem outro qualquer direito. A ignorancia do
Jus da
Magestade, da obrigaçaõ que tem todas as terras,
rios,
portos, mares, e enseadas de pagarem ao Estado a
proporçaõ do seu rendimento; a ignorancia da
obrigaçaõ
que todos os subditos tem de pagarem, ou com os seos
bens, ou com o serviço pessoal, tassas ao Estado, foi a
causa daquellas Leis das Ordenaçoens, e Leis decretadas
por estes Reis.
§.
Continûa a mesma Materia. Effeitos que
causaram
nos costumes as Leis referidas
Estes privilegios e immunidades foraõ a cauza dos
Custumes depravados, e por consequencia da má
Educaçaõ,
foraõ os que perderaõ a igualdade entre os
Subditos, considerados unicamente como Subditos de
hum Estado Civil; e destruida esta igualdade, ja
naõ
pode haver justiça, propriedade de bens, respeito aos
[82]
Magistrados, nem subordinação. E eu,
Illustrissimo
Senhor, naõ escrevo este papel que para introduzir esta
Educaçaõ: naõ emprego tanto tempo para
propor meyos
que facilite a Mocidade Portugueza ser douta; o meu
intento he propor, e persuadir mesmo que seja boa, e
util a sua patria, considerando as sciencias que ha de
aprender como meyos, mas naõ por ultimo fim.
Eu bem sei que para conservar a Constituiçaõ da
Monarchia Gothica, que eraõ necessarios tantos privilegios
como tem hoje a Fidalguia, porque até o tempo
del Rey Dom Joaõ o terceyro, conservandose o Reyno
pela conquista, e conquistando, era indispensavel entaõ
premiar taõ prodigiozamente á aquelles que se
empregavaõ
naquellas guerras. Mas como trato agora dos
effeitos que cauzáraõ estes
privilegios nos Custumes e
na Educaçaõ, pouco importa que sejaõ
fundados em
justiça, ou na sem razaõ.
O Fidalgo estando costumado aver criados e villoens
nas suas terras que pertencem á Coroa, e nos seos
Morgados, os trata em escravos; isto he que o criado,
nem o villaõ diante do Fidalgo naõ he
proprietario do
seu corpo, porque o senhor o maltrata quando quer;
nem dos seos bens, nem da sua honra; todo o bem
deste Subdito he precario. Daqui procede que no
animo do Fidalgo naõ ha justiça, porque
naõ attende a
igualdade que deve existir entre elle e o seu criado, ou
villaõ; destruido este vinculo da Sociedade, já
naõ ha
excesso que naõ possa ser cometido por quem assim
foi criado. Como pela Ley do Reyno naõ pode ser
prezo por dividas, como os seos bens naõ podem ser
vendidos para pagal-as, daqui vem que este Senhor he
[83]
dissipador, nem sabe o que tem, nem o que deve;
perde toda a idea da justiça, da ordem, da economia;
pede prestado com mando, maltrata, e arruina aquem
lhe refuza; os seos domesticos imitaõ este proceder,
e cometem á proporçaõ as mesmas
faltas: o povo nas
cidades, nas villas, e nas aldeas imitaõ em todo o
mundo, o trato e os costumes dos Senhores das terras;
e bastaõ dois delles em hũa Comarca
establecidos,
para fazerem perder nella toda a idea da equidade e
da justiça.
Estes saõ os effeitos destes Privilegios da Fidalguia
nos Custumes dos Criados, e dos Villoens; mas o peyor
he que fica frustrado o Cargo dos Magistrados, e o
Jus
da Magestade. A Fidalguia por estes Privilegios despreza
as Justiças do Reyno, e pelo menos dentro de si
as considera para castigar somente os seos inferiores
que saõ o povo; resiste, e insulta a todo o Magistrado
que quer executar a incumbencia do seu cargo: considerem-se
estas consequencias, e que as Leis das
nossas Ordenaçoens saõ a cauza dellas.
Mas as immunidades dos Ecclesiasticos, expressadas
nas nossas Ordenaçoens, destroem toda a
subordinaçaõ,
toda a igualdade, e toda a justiça do Estado Civil: que
a pessoa do Ministro da Religiaõ seja respeitada,
considerada,
que fique isenta de todo o cargo publico, e
de servir pessoalmente ao Estado, he da obrigaçaõ
do
Estado Civil Christaõ; mas que os seos criados, e familia,
as suas terras, o que compraõ e vendem, estejaõ
privilegiados, naõ pagando as alfandegas, etc., como
pagaõ os Leigos, isso he arruinar o Estado Civil, e por
ultimo destruir a Santidade da Religiaõ. Naõ
necessito
[84]
outra vez pôr deante dos olhos de V. Illustrissima, que
os bens da Coroa, que deraõ os nossos Reis ás
Ordens
Militares, aos Bispos, e aos Prelados, como aquelles
que derão aos Senhores, era com expressa
obrigaçaõ
de irem á guerra, e fazella aos Mouros que eraõ
inimigos
de dia e noite pois que estavaõ ainda establecidos
em Portugal: foraõ por ultimo expulsados; acabouse a
obrigação que
tinhão os Ecclesiasticos,
ficáraõ lhe as
terras sem nenhũa e por consequencia ficou o Estado
defraudado daquelle Serviço Militar, ou dos rendimentados
daquelles bens.
Os Ecclesiasticos por estas immunidades, e pelas
Leis do Direito Canonico, e pelos Privilegios dos nossos
Reys se consideraõ huma certa Monarchia, cuja
cabeça
he o Papa; independente del Rey para obedecer lhe, e
para servilo, nem com os seos bens, nem com os seos
domesticos: consideraõ-se superiores ás
Justiças do
Reyno, e a todos os que os servem; que os bens que
tem, e os tributos que não pagaõ, que lhes
são devidos,
como um tributo á Igreja, e naõ por favor e
graça dos
Reis. Basta apparecer hum Frade na Alfandega, para
tirar a mercancia que quer; porque o respeito que está
de posse do animo dos Guardas e do Provedor, e o
medo da excomunhaõ em que incorreriaõ se lhe
resistissem,
deyxavaõ fazer o Frade e o Clerigo ousado; e
com razaõ, porque sabe que ninguem se atreverá a
tocar-lhe: nas Provincias conservaõ o mesmo despotismo
com os Juizes, com os Meyrinhos, e com todos os
Subditos, quando querem exercitar os seus cargos.
Os effeitos que cauzaõ estas prerogativas nos animos
dos Subditos saõ perderem o habito de exercitarem a
[85]
sua obrigaçaõ nos seos cargos, contra o juramento
que
deraõ quando entraraõ nelles: depois perdem
aquella
inviolavel veneraçaõ que devem ter para as Ordens
do
seu Soberano, vicio o mayor que pode haver em hũa
Monarchia, perdese toda a idea da igualdade, da justiça,
e do bem comum, que deve existir no animo do mais
infimo Subdito. Deste modo cada Portuguez quer ser
Senhor no seu estado; reprehende ao rapas que vae
cantando pela rua, porque lhe naõ agrada; e julga
que tem authoridade para fazello emmudecer. Está
em companhia, observa algũa
acção que lhe naõ
agrada,
com a mesma fantastica authoridade o reprehende e
o maltrata, porque se imagina Senhor, e porque o
Fidalgo faz o mesmo, e o Ecclesiastico, ainda muito
mais nas acçoens que naõ saõ da sua
competencia.
Por estes privilegios e immunidades fica hũa
Naçaõ
taõ dividida entre ella mesma, que vem a ser insociavel;
por isso sempre armada, sempre em defensa,
como se os seos compatriotas fossem seos inimigos
declarados.
Mas o mayor mal que cauzaõ estas Leis vem a ser,
que cada dia estaõ sahindo do estado de villaõ e
de
cidadaõ muitos e muitos Subditos, para entrarem naquelle
da Nobreza, e dos Ecclesiasticos. Todos os homens
levaõ por objecto nas acçoens que fazem, ou no
trabalho
que emprendem, o proveito, a distincçaõ, e a
honra;
e se lhes faltaõ estas esperanças, esmorecem, e
perdem
todos os estimulos para obrar. Em Portugal todo o
que naõ nasceo Nobre, ou naõ he Ecclesiastico,
dezeja
vir a ser menbro destes dois Corpos respeitaveis, adonde
a conveniencia, a honra, a distinçaõ e o proveito
tem
[86]
ali o seu assento: o Lavrador, o Obreyro, o Official
trabalhaõ dia e noyte para fazerem hum Clerigo, hum
Abbade, e hum Cavalheyro do Habito de Christo; hũa
viúva e tres ou quatro filhas estaõ fiando dia e
noyte
para meterem um filho Frade, pela honra que dará
á
familia, e porque vindo a ser Pregador ou Provincial a
establecerá toda com honra e cabedais. Todo o Comum
do Reyno está continuamente trabalhando, e forcejando
para sahir do estado em que naceo; todo se considera
violentado, porque lhe falta aquelle Senhorio que vé no
Nobre, e no Ecclesiastico: para isto servem as Leis que
temos, e para isto somente he que gasta o Reyno tanto,
na Educaçaõ das Escolas e das Universidades.
Pezame, Illustrissimo Senhor, ser obrigado a dizer
aqui sem rebuço, que naquelles Estados que tem por
base a sua conservação no
trabalho, e na
industria,
não ha nelles nenhuma sorte de Subdito
mais perniciozo
a sua harmonia, do que he hum Nobre, ou hum Fidalgo
com os Privilegios que lhe permettem as nossas Ordenaçoens.
A Nobreza he essencial naquellas Monarchias
Gothicas como a nossa, em quanto dependia a sua
conservação de conquistar e de subjugar os seos
inimigos;
mas logo que se acabou a conquista, logo que
não houve que conquistar, he necessario que o Legislador
mude as leis: o Estado que tem terras e largos
dominios, e que delles ha de tirar a sua
Conservação,
necessita decretar Leis para promover o trabalho e a
industria, e derogar ou abrogar aquellas que se estableceraõ
no tempo que adquiriaõ com a espada.
Deste modo podiaõ ficar os Ecclesiasticos possuidores
das villas, e terras que tem; podia Alcobaça ficar com
[87]
as suas trinta e duas villas, e a ordem de Malta com
quatorze ou quinze: mas que pagassem aquelles bens
de raiz do mesmo modo que os dos villoens; que os
mesmos lagares, moinhos, e azenhas não tivessem privilegios;
que a jurisdiçaõ que tem tornasse á
Coroa de
donde sahio, e que o equilibrio entre os bens do Subdito
se restablecesse, para fundar-se aquella tão natural Ley
da propriedade dos bens, base da Monarchia fundada
no
trabalho e na
industria, entre as quais entrou a
nossa, depois que não temos que conquistar, o que
veremos pelo discurso deste papel.
No anno de 1500 pouco mais ou menos, Henrique
Septimo de Inglaterra queria diminuir os privilegios da
Nobreza (que gozava dos mesmos como a nossa), e ao
mesmo tempo queria introduzir a agricultura e o comercio,
desconhecido antes naquelle Reyno; sem violentar
nenhum Nobre, sem tirar-lhe nenhum privilegio
executou o que quiz, e foi a base da grandeza daquella
Monarchia. Decretou huma ley: Que cada Barão, ou
Senhor de terras vinculadas, ou pertencentes á Coroa,
ou a Morgados, ficava authorisado de as vender, alienar,
ou arrendar, dispondo-se de toda a posse e uzo-fruto
dellas. O que succedeo que foi como naquelles tempos
começava o luxo, os Senhores pouco a pouco foraõ
vendendo, e alienando as suas terras, as quais compravaõ
aquelles que tinhaõ dinheyro; deste modo vieraõ
os bens livres e se introduzio a igualdade e a justiça
naquelle Reyno, e foi conhecida a propriedade dos bens
de cada Subdito.
[88]
§.
Continûa a mesma materia. E sobre a
Escravidam,
e sobre a intolerancia Civil
Temos visto que da Educaçaõ das Escolas e
Universidades
procederaõ as nossas Ordenaçoens; temos visto
que das Leis que temos, procedem os nossos custumes:
agora veremos que dos privilegios da Fidalguia concedida
pela constituiçaõ da Monarchia Gothica, se seguio
a
escravidam.
He facil conceber esta consequencia: porque todas
as Naçoens conquistadoras como as do Oriente, os
Gregos, Romanos, e Godos, conheceraõ, e uzaraõ
dos
povos vencidos por escravos. Esta pratica se conservou
em Portugal pela conquista do Reyno contra os Mahometanos;
e se continuou pela conquista de Guiné e de
Angola. Hoje he permitida em todo o Dominio Portuguez;
e naõ creyo que até agora ninguem cuidou ponderar
os males que causa ao Estado, á Religiaõ, e
á
Educaçaõ da Mocidade.
A escravidaõ sem termo, como he a que se practica
em Portugal, he pernicioza ao Estado. Porque não
recupéra pelos Escravos, os Subditos que perde na
conquista, na navegaçaõ e nos establecimentos que
tem
na Africa. Já disse que os Romanos permitiaõ aos
escravos
cazaremse, mesmo ainda com as molheres Romanas,
e que os seus netos vinhaõ a ser cidadoens, e
deste modo cada anno recuperava a Republica pela escravidaõ,
o que perdia pela conquista. Portugal naõ
tem senaõ a perda dos Subditos por estas victorias e
acquisiçoens.
[89]
Eu não posso conceber como os Ecclesiasticos não
tem remorsos de consciencia em permitirem que fique
escravo o menino que naceo de Pay ou May escrava,
no meyo do Reyno e da Religião Catholica. Que o
adulto que foi captivo, ou comprado na Affrica, ou na
Isla de S. Lourenço, fique escravo depois que foi bautizado,
passe por razoens politicas, e naõ por aquellas
do Evangelho; mas que o mesmo se uze com seu filho
nacido nos Dominios Portuguezes, e bauptizado nos
braços da May Christaã, isto he para mim
incomprehensivel!
Aqui só saõ incoherentes as maximas
Ecclesiasticas:
ellas governáraõ a Republica Christaã
e Civil,
estendendo o seu poder fora da Igreja, e governando a
Sociedade Civil em todo o Dominio da Monarchia como
vimos: mas pela Religião Christaã todos os Fieis
saõ
iguais em quanto observaõ os Mandamentos da Igreja;
porque consentem os Ecclesiasticos esta desigualdade
de Escravo e Homem livre entre os mesmos Christãos;
porque naõ estendem fora da Igreja esta igualdade, e
fazem entrar os Escravos Christãos na classe do Subdito
livre, e cidadão? Esta contradiçaõ he
notoria; e indigna
de conservar-se na Christandade, pela honra, pela Santidade,
e pela veneraçaõ que devemos ter para a
Religiaõ
Christaã.
Se eu pretendera sómente que a Mocidade Portugueza
fosse perfeitamente instruida, como ja disse assima,
não havia de reprovar a
Escravidam introduzida em
Portugal: o meu intento he que seja dotada de humanidade,
de aquelle amor de conservar os seos semelhantes,
e de promover a paz e a uniaõ da sua familia,
como aquella de toda a sua patria. Mas não he possivel
[90]
que se introduzaõ estas virtudes em quanto hum Senhor
tiver hum Negro a quem dá hũa bofetada
pelo menor
descuido; em quanto cada menino, ou menina, rica,
tiver o seu negrinho, ou negrinha. Aquella Companhia
taõ intima pela criaçaõ altera o animo
daquelles Senhorinhos,
que ficaõ soberbos, inhumanos, sem idea
alguma de justiça, nem da dignidade que tem a natureza
humana. Eu vivi muitos annos em terras adonde a
escravidaõ dos Subditos he geral, e vi e observei que
nellas naõ se concebe idea
da
humanidade, e coração
maviozo, capas de obrar acçoens de justiça, de
ordem,
com aquelle amor para a especie humana. Por esta razaõ
naõ creyo que se poderá establecer jamais
educaçaõ
boa nem perfeita naquelle Estado, adonde a Escravidaõ
estiver introduzida, ou a tempo, ou sem termo. Esta
materia he taõ clara que com razoens ninguem se
poderá
convencer, se elle mesmo naõ reflectir interiormente,
lembrandose do que vio, e ouvio nesta materia,
e cada Portugues terá muitas provas do que digo assima.
Como dos
Privilegios dos Fidalgos e
da Nobreza
procedeo a
Escravidam, assim das
Immunidades Ecclesiasticas,
procedeo a
Intolerancia Civil.
Mas aqui, Illustrissimo Senhor, necessito eu mais o
seu favor e a sua benignidade, para permittirme que
diga alguma couza de hũa materia, da qual ninguem
ouzou mesmo fallar onde o poder Ecclesiastico teve o
menor ascendente nas monarchias. Nem persuado,
nem aconcelho nos nossos dias, a
Liberdade da
consciencia
nos Dominios de sua Magestade: nem escreverei
contra as decisoens da Igreja universal, ás quais sempre
me submeto, sendo hũa das principaes, que fora da
[91]
Igreja não ha salvaçaõ; nem contra os
Politicos que
assentáraõ, ha 200 annos, que a donde existirem
muitas
Religioens com liberdade de consciencia no mesmo
Estado, que haverà sublevaçoens, guerras civis,
traiçoens,
e ruina total do Estado, que he o mayor mal
que pode succeder ao genero humano em Sociedade.
Eu não farei agora sobre as referidas decisoens, mais
do que algũas observaçoens fundadas no
conhecimento
das cousas ordinarias, e na experiencia que tenho dos
Estados onde a liberdade de consciencia he permitida
e premiada: nem me valerei de authoridades, nem ainda
daquellas sagradas, nem dos Santos Padres, a favor da
Tolerancia, mesmo Christaã; e por ultimo mostrarei a
V. Illustrissima, o prejuizo e o dáno que cauza á
boa
educação a Intolerancia, e que parece impossivel
introduzir-se
o
trabalho e a
industria, como base de hũa
Monarchia, onde existir esta Lei.
Que nas Congregaçoens dos primeyros Christaõs,
que nos Conventos não fosse nem seja permitido
Christaõ
ou Frade, que não seja da mesma Religião, he
justo
e he necessario, porque a sua Constituição e
consentimento
comum assim o requeria: mas que estas Congregaçoens,
ou Conventos queyraõ obrigar com prizoens
e excomunhoens aos Subditos do Estado que sejaõ
Christaõs, he contra a Ley Christaã, que ordena
naõ
violentar as consciencias de quem naõ he ainda
Christaõ:
a questaõ agora he se estas Congregaçoens, ou
Igrejas
Christaãs tem poder coactivo para obrigar á hum
Christaõ
bauptizado ja, á continuar na pratica da mesma
Religiaõ no cazo que naõ queyra observala, ou
mesmo
declamar e escrever contra ella?
[92]
Nenhum Bispo, nem Prelado tem poder coacitvo,
nem mesmo por auctoridade divina: todo o seu poder
he espiritual. Os Emperadores Romanos do quarto e
quinto seculo concederaõ algum poder aos Ecclesiasticos
sobre os Seculares Christaõs; e este poder se augmentou
quando os Bispos vieraõ em França, e em Espanha
Senhores de terras com jurisdição, como vimos
assima.
Mas este poder de que uzáraõ, e uzaõ
ainda os Bispos,
e o seu Appendix que he a Inquisiçaõ, he
hũa
uzurpação
da Jurisdiçaõ da Magestade; e he contrario
á instituiçaõ
da Religiaõ Christaã. O Poder Ecclesiastico he
e deve ser sobre aquelle Christaõ que vai espontaneamente
offerecerse á Igreja para satisfazer á sua
consciencia:
mas não tem direito nenhum sobre aquelle
christaõ, ou Gentio que não quer entrar na
Igreja.
Logo os Ecclesiasticos não podem assentar por maxima
universal que a Tolerancia, ou Liberdade de consciencia,
he Contraria á Conservação da
Religião. He contraria
na verdade naquellas Congregaçoens Christaãs, e
Conventos;
he contraria entre os mesmos socios, e que
vivem de comum consentimento em communidade de
bens, mas de nenhum modo he contraria á
conservação
do Estado Civil.
Ponhamos diante dos olhos o que se practica em
Hollanda, e sobre tudo em Russia: nestes dois Estados
tem livres exercicios todas as Religioens, que naõ
saõ
contrarias ás Leis fundamentais delles. Em Hollanda,
como em Russia ha Igrejas Catholicas Romanas; os
Catholicos que vivem ali vaõ espontaneamente á
Igreja,
e se conformaõ á doutrina e á
disciplina Christaã Catholica:
hum destes, por exemplo, se naõ quiz confessarse,
[93]se quiz mudar de
Religiaõ, ser Calvinista, ou da
Religiaõ Grega, que he a dominante de Russia, o
Parrhoco, ou Missionario naõ tem que fazer com este
Apostata; negalhe os sacramentos, e obriga-o a sahir
da Igreja, se quer entrar nella: mas naõ tem outro
poder. Mas se este Apostata cometeo algum crime,
ou fez acçaõ contraria á Ley civil da
terra, he castigado
por ella. Deste modo se vê o que he a
intolerancia
Christaã e o que he a
tolerancia civil: esta pode existir
sem prejuiso algum da Religiaõ Christaã; mas
aquella
naõ, por que o Apostata poderá persuadir a seus
antigos
Irmaõs em communidade de largar a Religiaõ, como
elle fez.
A experiencia de quasi trezentos annos a esta parte
mostrou estes dois principios, incriveis, e mesmo absurdos
no tempo de Carlos quinto e de Phelipe segundo; saõ
estes, 1.º Que nos Reynos adonde ha liberdade de
consciencia, cada dia sahem das Religioens toleradas,
que deyxaõ e abjuraõ, para abraçarem a
Religiaõ dominante.
2.º Que em todos os Reynos onde existe a
intolerancia civil, que cada dia perdem Subditos, que
abjuraõ a Religiaõ dominante, para
abraçarem outra,
ou tolerada no mesmo Reyno, ou dominante nos outros
Reynos.
No Imperio dos Turcos cada dia os Christaõs Gregos,
Armenios, e de outras Religioens abraçaõ a
Religiaõ
Mahometana: em Inglaterra os Christaõs chamados
Quakers ou Tremedores e Anabaptistas, e outros,
abraçaõ a Religiaõ Anglicana. Em
Russia do mesmo
modo tem feito muitos Protestantes, Catholicos, e Mahometanos
abraçando a Religiaõ dominante que he a
[94]
Grega. Pelo contrario em Italia, França, Castella e
Portugal, adonde existe a intolerancia civil, taõ
severamente
observada, cada dia sayem Italianos a ser Protestantes,
Socinianos, e ás vezes Turcos. De França
se conta que cada anno sayem entre quatro a cinco mil
para abraçarem o Calvinismo. De Castella e Portugal
naõ quero dizer quantos sayem abraçar o Judaismo,
o
Mahometismo, e o Protestantismo: mas he certo que
na Suissa, Inglaterra e em Hollanda ha muitos destas
Naçoens que naõ saõ Catholicos
Romanos.
A intolerancia dos nossos Bispos e Missionarios nas
Indias Orientais foi a original cauza que os indios bautisados
se fizeraõ Calvinistas, que ficaraõ na
Dominaçaõ
dos Hollandezes, dos Inglezes e Dinamarquezes: a intolerancia
dos Reis Catholicos, do Cardeal Cyreiros, e
do Frade Torquemada fez hum prodigioso numero de
Judeos e de Mouros, que vieraõ a ser os Corsarios de
Tunes, Argel e Sale, que tem feito arrenegar tanto
Christaõ, e destruido tanta riqueza nos resgates e nos
navios, que vem da America, e que negoceam.
Em Hollanda, Russia, e Prussia, jamais houve a
minima discordia, levantamento, traiçaõ por cauza
da
Religiaõ, em quanto por Leis esteve establecida a
liberdade
de consciencia universal a todas as Religioens.
De onde se vé que a differença das Religioens
naõ he
contraria á paz, nem á concordia, nem
á caridade que
deve reynar no Estado Civil bem unido e bem governado.
Naõ he deste lugar, Illustrissimo Senhor, considerar
aqui a Intolerancia Civil nos Reynos que conquistamos
na Affrica e na Asia, porque vou applicar o referido á
[95]
Educaçaõ da Mocidade: mas de passo direi que era
impossivel conservar o que conquistaraõ os Portuguezes,
sendo intolerantes das Religioens daquellas Naçoens
conquistadas: Naçoens, tanto a Mahometana ou Indiana,
que naõ conhecem tal maxima, qual he a
Intolerancia:
toda a Asia e toda Affrica saõ tolerantes; e nós
queriamos
fundar nestes povos subjugados Imperio Portuguez.
Como a
Escravidam cauza
distinçaõ e preeminencia
entre os Subditos, assim a
Intolerancia
Civil poem
hum muro de separaçaõ entre o Christaõ
da Religiaõ
dominante, e o persecutado, ou o intolerado: com razaõ
o Christaõ Catholico em Portugal, ou Castella, se considera
milhor que o Calvinista, ou o Judeo de sinal,
fallalhe com agrado pelo interesse, e na alma o despreza,
e o tem como couza danada, indigno da humanidade
e Caridade Christaã, porque naõ crê
como elle.
Assim se vai criando naquelle animo hũa
aversaõ para
a humanidade; hum odio para os Homens que naõ
estaõ
sujeitos ás mesmas ideas que elles crem, e
adoraõ;
daqui vieraõ aquellas tyranas inhumanidades, que
exercitáraõ
os Castelhanos na conquista da America, e nos
taõ bem em alguns lugares de Affrica. Se a
escravidaõ
faz perder aquella igualdade civil que faz o vinculo e
a força do Estado, a intolerancia faz perder aquella
humanidade, que he o dezejo de a conservar para
imitar o Supremo Creador, que tudo creou, e tudo
está continuamente conservando.
Estes saõ os males que couzaõ a
Escravidam e a
Intolerancia civil á
Educaçaõ da Mocidade; quem mais
tiver a peito a sua perfeiçaõ e adiantamento,
pensará
de que modo se devem exterminar estes obstaculos.
[96]
§.
Que a nossa Monarchia se podia conservar
com a Educaçam Ecclesiastica, que tinhamos, em quanto
conquistava: mas que nam he sufficiente depois
de acabadas as Conquistas
Se as Leis se devem mudar, tanto que mudaõ as
circumstancias nas quaes se conservava o Estado Politico
civil; assim he necessario mudar a Educaçaõ da
Mocidade no mesmo Governo. Como todo o intento
do Legislador deve ser, conservalo e augmentálo,
não
hesitára jamais de começar a reformar o que se
pode
emmendar, sem que da emmenda ou reforma resulte
mayor dano que beneficio.
As urgentes necessidades da Monarchia Gothica se
reduziaõ á ter bons Soldados e Generais sempre
promptos
a guerrear, como um exercito acampado: as Leis
politicas e civis se continhaõ no limitado circulo das
Assembleas geraes da Naçaõ ou Cortes; a
propriedade
dos bens, os conctratos e as successoens, sendo os
povos Escravos, eraõ raras vezes postas em litigio,
exceptuando
no Tribunal das Cortes, nas quais os Juises,
os Conselheiros, os Secretarios, os Letrados eraõ os
Ecclesiasticos.
Deste modo naõ necessitáva o Estado mayores
conhecimentos,
nem establecimentos para conservarse; e
seria entaõ inutil (até o anno de 1450 pouco mais
ou
menos) haver hum Tribunal para a Navegaçaõ e o
Comercio. E como a Monarchia Gothica naõ conhecia
o Direito das Gentes, considerando as mais Potencias
[97]
como inimigas, daqui vem que naõ necessitavaõ ter
Escolas,
para aprender a Historia antiga e moderna, as
Lingoas que se fallaõ hoje, aquellas sciencias que
ensinaõ a governar os Estados e a conservalos por
allianças e a dirigirem-se para perpectuar
hũa paz com
reputaçaõ da Monarchia.
Mas estas circumstancias em que se conservou a
Monarchia acabáraõ, e se
levantáraõ em toda a Europa
outras mui differentes, e taõbem no Reyno, o que
mudou totalmente o Estado Politico e Civil do mundo
Christaõ conhecido.
D. Affonso o V, e Dom Joaõ o segundo, foraõ os
primeiros Reis Portuguezes que da conquista das Ilhas
de Guiné e de Angola tiveraõ riquezas, e os
Subditos
começaraõ a ter cabedais: trinta annos depois
descobre
Christovaõ Colombo a America, e o nosso Pedro Alvares
Cabral poucos annos depois o Brazil: e no anno
de 1497 descobrio Vasco da Gama a India Oriental.
As riquezas que vieraõ destes Continentes descobertos,
em ouro, prata, pedras preciozas, especiarias, sedas,
roupas, e outras commodidades da vida para o luxo e
para as artes, mudaraõ a face da Europa totalmente.
E foi preciso a Portugal, e a Espanha acrescentar á
constituiçaõ Gothica, com que se governava,
aquella do
trabalho e da
industria, que naõ
subsiste sem artes e
sciencias.
Como em Portugal nem em Castella havia todos os
materiaes para fazer navios, em taõ grande numero,
para navegar para os novos mundos, os compravaõ em
Genova e no Norte: como naõ tinhaõ fabricas, nem
para todo o vestido, nem para o luxo, compravaõ estas
[98]
mercancias em Flandres, em França, Inglaterra e Allemanha,
e taõbem em Veneza e Florença, Reynos que
estavaõ ja com mais artes e fabricas do que nos tinhamos
e os Castelhanos.
Lisboa e Sevilha vieraõ as feiras de todo o mundo;
ali se trocavaõ as mercancias da Europa, pelas riquezas
do Oriente e da America, como em Portugal naõ havia
fabricas sufficientes, passavam de maõ em maõ
aquelles
thesouros até irem parar na maõ de quem
trabalhou, o
que passava a India, o que succedia igualmente com
Castella. Deste modo toda a Europa mudou de face:
de antes se conservava roubando e conquistando, depois
das Descobertas dos novos mundos começou a conservarse
pelo trabalho e industria, base da Navegação e do
Comercio.
Outra novidade naõ menos notavel alterou o Governo
Gothico da Europa, e foraõ as
sciencias e o conhecimento
da Historia Antiga. Mahomet II subjuga o Imperio
Grego, e toma Constantinopla no anno 1453,
dezampáraõ muitos Gregos, homens doutos, a sua
patria,
achaõ refugio em Italia, e proteçaõ no
Papa Nicolau V,
na casa de
Medicis, e na de
Este: communicaõ
aos Italianos a Lingoa Grega, e as sciencias que nella
se continha; e como de toda a Europa hiaõ estudar a
Bolonia, Padua e Florença, em poucos annos se espalhou
por toda ella, pelo menos aquelle conhecimento
das Historias da antiguidade, a Eloquencia e a Philosophia
Moral de Plataõ e de Aristoteles, e foraõ
bastantes
estes conhecimentos, para que toda a Europa
mudasse o modo de pensar, em que tinha vivido quasi
por 15 seculos. Desde aquelle tempo
começáraõ os
[99]
Europeos a conhecer
Direitos da
Magestade; a
Jurisdiçam
Ecclesiastica; a
Subordinaçam aos
Magistrados:
e desta origem disputada e agitada com mil controversias,
sempre com mayor animozidade, que caridade
christaã, resultou o Lutheranismo e o Calvinismo, e
outras iguais transaçoens, mostrandose que nenhum
bem succede taõ puro aos homens na sociedade, que
naõ vinha abrindo a porta a algũa
desventura. Neste
mesmo tempo se descobrio a arte da
Impressam, ou
em Francofort, Strasburgo ou Harlem, e se communicou
por este meyo a sciencia taõ rapidamente, que vinte
annos depois já muitos Europeos eraõ celebres nas
Sciencias Divinas e humanas.
Já se tinha descoberto a polvora, e com a ajuda da
Geometria edificáraõse fortalezas conforme as
regras
daquella sciencia; e mudou esta preparação
chimica o
modo de fazer a guerra em todo o mundo.
Todos estes conhecimentos descobertos no espaço de
pouco mais de um seculo deraõ fundamento a formarse
Europa como hũa grande Republica; a communicarem-se
as suas Potencias, como amigas, e a conhecerem as
obrigaçoens da humanidade, como he da
obrigação de
cada homem com outro, conservaremse mutuamente
em quantos ambos tem daquella amizade a sua
conservaçaõ.
Desde aquelle tempo começou a minarse e a
desfazerse a constituição da Monarchia Gothica,
fundada
na força e na violencia; e no mesmo começou
abrotar o fundamento da Monarchia Politica e Civil,
que tantas vezes dissemos, consiste na igualdade dos
Subditos (não das condiçoens) na propriedade dos
bens,
no trabalho e na industria.
[100]
Necessitava tanto Portugal começar a mudar as Leis
do Reyno no tempo del Rey Dom Manoel e de Dom
Joaõ o Terceyro, que ainda na
supposiçaõ que Inglaterra
e Flandres, e de algum modo França as não mudasse
(como mudáraõ), era-lhe preciso tomar esta
necessaria
precauçaõ. Porque tendose acabado as guerras com
os povos Conquistados, estava na indispensavel
obrigação
de conservar estas conquistas; e para conservalas,
nenhum outro meyo lhe ficava do que pelas disposiçoens
seguintes.
Nas conquistas adonde os povos eraõ benignos e
mansos, adonde naõ havia temor que se levantassem,
estabelecer ali a agricultura e as artes que necessariamente
dependem della: naquellas onde os povos eraõ
feroces, e que levavaõ mal o jugo, o comercio com a
agricultura devia ser promovido entre elles: nenhũa
couza faz os homens mais humanos e mais doceis, do
que o interesse: o comercio tras consigo a justiça, a
ordem e a liberdade: e estes eraõ os meyos, e o
saõ
ainda, de conservar as conquistas que temos.
Agricultura
e
Comercio saõ as mais
indissoluveis forças
para sustentar e conservar o conquistado: mas esta
vida de Lavradores, de Officiaes, de Mercadores, de
Marinheiros e Soldados, não se conserva com privilegios
dos Fidalgos, com immunidades e jurisdiçaõ civil
dos
Ecclesiasticos, com escravidaõ e com a intolerancia
civil.
Naõ se conserva com a educaçaõ de
saber ler e escrever,
as quatro regras da Arithmetica, latim, e a lingoa
patria, e por toda a sciencia o catechismo da doutrina
Christãa; naõ se conserva como ocio,
dissoluçaõ, montar
[101]
a cavallo, jugar a espada preta, e ir a caça: he necessaria
ja outra educaçaõ, porque já o Estado
tem mayor
necessidade de Subditos instruidos em outros conhecimentos:
ja naõ necessita em todos elles aquelle animo
altivo, guerreyro, aspirando sempre a ser nobre e distinguido,
até chegar a ser Cavalheyro ou Eclesiastico.
§.
Objecto que devia ter a Educaçam
da Mocidade Portugueza, no tempo del Rey Dom Joam
O Terceyro, e parece que ainda hoje
Todos sabem que o objecto da Educaçaõ da Mocidade
deve ser proporcionado ás leis e aos costumes do Estado
a quem ella pertence: he superfluo relatar aqui a
Educação dos Persas, dos Lacedemonios e dos
Romanos.
As Leis destas Monarchias, eraõ militares, o
seu objecto era vencer e conquistar, como era o das
Monarchias Gothicas; e a sua educação era
militar.
Para determinarmos o objecto da Mocidade Portugueza
naquelle tempo desde o anno de 1500 até 1580, quando
Portugal cahio debayxo do jugo Castelhano, vejamos
em que estado se achava entaõ, e os Reynos seos vizinhos
da Europa.
El Rey Dom Manoel e el Rey Dom Joaõ o Terceiro
nunca tiveraõ guerra na Europa: e este Rey foi o que
deyxou aquella conquista da Affrica, conservando somente
tres ou quatro portos ou praças naquelle Continente:
resolução parece acertada, ja que tinha
determinado
destruir todos aquelles que naõ eraõ Catholicos
Romanos, ou convertelos: as riquezas da Affrica e de
[102]
toda a India Oriental (porque do Brazil, exceptuando
papagayos, algũa madeyra, e asucar, naõ
chegava a
Portugal outro rendimento) cobriaõ as prayas de Lisboa:
estas immensas riquezas a mayor parte dellas procedidas
da conquista de mar e terra, outra dos tributos
dos Regulos conquistados se distribuia pelo Soberano,
pelos Fidalgos e valentes Soldados, e pelos Ecclesiasticos:
tanta riqueza nos primeyros trouxeraõ o mayor
luxo que jamais tinha visto Portugal: el Rey Dõm Manoel
com pessimo concelho foi o primeiro que deyxou
o vestido Portuguez nas Solemnidades, vestindose
hũas
vezes á Flamenga, e outras á Franceza: prodigiosa
quantidade de Conventos se edificáraõ de novo por
estes annos, de Capellas e de Oratorios, mas he reparar
que naõ se augmentáraõ as parrhochias:
cresceraõ
as immunidades dos Bispos e dos Prelados; a
sua jurisdiçaõ pelo novo Tribunal da
Inquiziçaõ e poderem
por sua ordem por seos Meyrinhos e Familiares
prender os leigos: porque esta Monarchia já formada
tinha para fazer os gastos nas suas pretençoens.
Mas no Reyno naõ se fabricava nenhũa
materia de
luxo, nem ainda tudo o necessario para viver, pois que
no anno de 1519, libertou el Rey Dom Manoel os trigos
e mais sementes estrangeiras de pagarem direitos da
alfandega: indicio certo que faltava gente que cultivasse.
Era preciso que todas aquellas riquezas fossem parar
em Inglaterra, Italia, França, e em Flandres; muita
parte taõbem em Roma. Como o povo Portuguez naõ
entrava na Legislaçaõ da Monarchia Gothica,
nenhũa
parte d'aquellas riquezas se distribuia por elle; e exceptuando
alguns Palacios em Lisboa e quintas, e coutadas
[103]dos Arredores, Igrejas e
Conventos, nada ficava
mais em Portugal destas riquezas: assim vemos ainda
o Reyno sem caminhos, sem pontes, com os portos e
fozes dos rios entupidas, sinal certo que naõ se
espalháraõ
aquellas riquezas pelos officiaes, nem pelos
Mercadores do Reyno.
Se el Rei Dom João o Terceyro fosse taõ tolerante
com os seos Subditos, como Carlos Quinto com Castella
e Flandres, poderia repartirse muita parte destas
riquezas das Indias por todo o Reyno: havia naquelle
tempo em Lisboa milhares da descendencia dos Judeos
bautizados, que comerçavaõ com as
Naçoens Estrangeiras:
a Inquiziçaõ desde o anno de 1544 ou 1545, fez
tal estrago nestes Mercadores, que a mayor parte se foi
establecer em Anveres, Londres e Hamburgo, e não
só
leváraõ Cabedais immensos, mas
ensináraõ áquellas
Naçoens mercadoras ja, o comercio da
Navegação Portugueza;
e desta origem veyo aquella potente Companhia
das Indias de Hollanda e a de Inglaterra fundadas
pelos annos de 1600 pouco mais ou menos.
Quando considero as imensas riquezas que chegáraõ
aos portos do Reyno, quasi por oitenta annos, e que
todas hiaõ parar nas maõs de quem trabalhava o
que
dispendiaõ os Portuguezes, pareceme que era impossivel
conservarse Portugal por hum seculo mais, ainda que
naõ viesse a cahir (como veyo) debayxo do dominio
Castelhano: porque estas riquezas fizeraõ os Inglezes,
os Hollandezes, os Hamburguezes, e muita parte da
Italia, ricos e potentes, augmentandose na agricultura,
nas artes e nas sciencias, e do estado em que estavaõ
antes bem moderado e mesmo abatido, vieraõ depois
[104]
da descoberta dos dois mundos, poderosos e altivos a
poder molestar os seos Descobridores.
Hũa como epidemia affligio e transtornou o juizo
quasi de toda a Europa desde o anno de 1520, quando
Luthero em Saxonia começou a pregar contra as indulgencias,
em Suissa Zuinglio, e Calvino em França,
contra a Eucharistia, primazia do Papa, e celibado dos
Clerigos, que poz em confuzaõ estes Estados, e
taõbem
Flandres e Inglaterra. Como todos estes Potentados
eraõ Catholicos, e pelas suas Leis, a heresia era condenada
com penas de bens, cargos, honras, e mesmo
da vida, desta origem se augmentou o trabalho e a
industria prodigiosamente: porque as familias persecutadas
ficando pobres, só no trabalho tinhaõ o seu
sustento. Muitos mais ouzados se fizeraõ pyratas,
assaltaraõ as nossas frotas e as Castelhanas, e
buscáraõ
remedios a sua persecução: deste modo
passaraõ de
França muitos milhares para Inglaterra no tempo da
Reyna Izabel, e taõbem de Flandres, quando Phelipe
Segundo, bem differente de proceder de seu pay, e seu
Tio o Emperador Fernando, persecutou e destruio
tantos Flamengos. Nestes tempos he que se estabeleceraõ
taõ immensas e ricas manufacturas em todo o
genero de mercancia por todos aquelles que
abraçaraõ
o Protestantismo que até infectou muitos lugares de
Italia, donde sahiraõ muitas artes para se cultivarem
no Norte.
Este incidente do Protestantismo, junto com a severidade
das Inquiziçoens de Castella e de Portugal em
todos os seos Dominios, fizeraõ estas Naçoens
mais
pobres, e mais faltas de Subditos uteis. Parece que o
[105]
Concelho de Estado de Dom Joaõ o Terceyro e de el
Rey Dom Sebastiaõ tomavaõ de proposito as
resoluçoens
mais contrarias á conservaçaõ de
Portugal e da
India. Nesta parte do mundo queriaõ establecer a
Religiaõ,
pela força e pela intolerancia; o Estado Militar
e Civil pela tyrania e pelas Leis Civis: estableceraõ
Bispados, Cabidos, Conventos e Seminarios, Tribunaes
Civis; a mesma constituiçaõ da Monarchia Gothica,
com privilegios aos Fidalgos, e com immunidades aos
Ecclesiasticos, conservando a Escravidão e a intolerancia:
o que tudo era ignorancia ou insano zelo dos
Conselheyros, porque o objecto de conservar e de
augmentar aquellas conquistas e Colonias, devia ser a
navegaçaõ, o comercio, a agricultura, a igualdade
dos
Subditos; hũa Justiça Civil, para julgar
as couzas do
comercio, onde os Mercadores fossem os Juizes, sem
Letrados, nem Procuradores; hũa justiça
para o crime,
semelhante á do Auditor de um exercito em Campanha;
para manter e espalhar a Religiaõ, Somente Missionarios
Portuguezes (e naõ Estrangeyros como foi e he de costume)
sem Jurisdiçaõ, poder nem auctoridade, nem nas
Igrejas, nem nos Christaõs Portuguezes nem Indios; e
cada um destes Missionarios devia ter a sua parrhochia;
e se houvesse mais Missionarios que Igrejas, ficaria
determinado o numero exorbitante nas mesmas parrhochias
sem poder de adquirir bens de raiz: naõ eraõ
necessarios Bispos, nem aprender Latim, nem ter impressoens;
muito menos Tribunal da Inquiziçaõ para
castigar feyticeiros e embusteyros Indios, practicas de
Castella na America, e que nos imitámos á risca
nos
nossos Dominios.
[106]
No tempo referido de el Rey Dom Joaõ o Terceiro
chegou a constituiçaõ do Reyno a tal estado, que
no
cazo mesmo que não estivessem descubertas tantas
Ilhas e tantos portos das tres partes do mundo, era de
boa politica mudar o systema das Leis: a
constituiçaõ
da nossa Monarchia sendo só para guerrear e Conquistar,
era força que acabasse logo que hũa paz
durasse
por 80 ou cem annos: porque nenhũa Lei, nem
Educaçaõ da mocidade, havia para se empregar a
Nobreza
neste tempo do descanço. Esta foi a causa,
porque nestes tempos chegáraõ os vicios ao cume
de
toda a perversidade; a Nobreza rica, era soberba,
ocioza, e por consequencia sepultada nos vicios de toda
a dissolução, do jogo, de comidas e trages: e
gastando
sempre mais que as suas riquezas, cometiaõ mil extorsoens,
arruinando deste modo aquella regularidade
que deve haver nos portos do comercio. Nesta
situação
pertencia ao Legislador establecer por degráos
algũas
Leis que serviam de fundamento a hũa Monarchia
mista de Militar e de Civil; isto é que conservaria hum
exercito, e hũa frota, onde naõ haveria
destinçaõ algũa
do nascimento, mais que aquella que daria o gráo Militar;
e ao mesmo tempo, imitando Henrique Septimo
de Inglaterra, que por hũa Ley ordenou era livre a
cada Senhor Baraõ ou Morgado, vender ou alienar as
suas terras, e supprimirlhe os privilegios de naõ serem
vendidas por dividas: abolindo e suprimindo todos os
Monopolios dos lagares, moinhos, etc., como do comercio;
e prohibindo que ninguem pagasse o que devia
em frutos, exceptuando os dizimos. Deste modo se
extinguiraõ igualmente aquelles privilegios da Nobreza,
[107]
como ella se vai extinguindo pelo ocio e pelos vicios;
pois que no tempo del Rey Dom Manoel havia duzentas
cazas de Fidalgos, e hoje naõ chegaõ a sesenta.
Resultaria daqui que os Cidadoens, que tinhaõ adquirido
Cabedaiz ganhados com as mercadorias das conquistas,
entrariaõ sem privilegios naquelles bens; já
estes pagariaõ tassas e os seus Criados, como os bens
dos Villoens; e começaria pelo comercio, e agricultura
establecerse a igualdade, o trabalho e a industria no
Reyno, como se estableceo desde Henrique VII em
Inglaterra. Todas as Ordenaçoens deviaõ ser
reformadas;
supprimir alguns Tribunais que entaõ existiaõ,
e em seu lugar erigir outros para establecer e conservar,
ou pôr em execuçaõ, as novas Leis que
deviaõ decretarse
para establecer a agricultura, o comercio e a
Educação da Mocidade proporcionada
áquellas Leis.
Determinadas e decretadas assim as Leis do Reino
para sustentar um exercito e hũa frota para defensa
dos
Dominios proprios e adquiridos, e ao mesmo tempo,
para establecer o trabalho e a industria, seria já
necessario
mudar a Educaçaõ da Mocidade Portugueza,
apercebendose facilmente o Legislador, que naõ tinha
Subditos para executar esta segunda parte da
Constituiçaõ
da Monarchia.
Sempre a Educaçaõ das Escolas Seguio a
Legislaçaõ
do Potentado a donde estaõ establecidas: e o Poder,
Jurisdiçaõ Real estava entaõ reduzida
aos dois Tribunaes
do
crime e do
Civil, e todo o seu objecto e
exercicio, era castigar os delitos, e metter cada hum na
posse dos seos bens. Mas faltava naquella
situaçaõ hum
Tribunal de economia universal no Reyno e nos seos
[108]
Dominios: faltava um Tribunal do Comercio, com
jurisdiçaõ
especial para que as suas cauzas se processassem
de modo mui differente e mais summario, do
que he a practica do Direito Civil: faltava um Tribunal
taõ bem que tivesse a seu cuidado a
Educaçam da Mocidade,
e a correçaõ dos costumes; couza na verdade
desconhecida na Legislaçaõ dos Reynos Catholicos,
porque os Ecclesiasticos tinhaõ tomado á sua
conta
estas incumbencias: mas apezar do seu zelo naõ vemos
que naquelles tempos se preveniaõ nem os crimes, nem
os maos costumes, nem os erros da Fé; porque aquelle
seculo foi o mais estragado e luxurioso, que conheceo
Portugal; e como a Inquiziçaõ castigou mais de
cinco
mil apostatas Portuguezes, era força que fossem muito
mal instruidos na Religiaõ Christaã.
Já vimos assima, Senhor Illustrissimo, a que se reduz
a sciencia com que sahimos das Escolas, e que toda se
reduzia a sentencear hum matador ou ladraõ, ou meter
deposse a cada um no seu bem: agora veremos que ja
do tempo del Rey Dom Joaõ o Terceyro necessitava o
Reyno de outra Sorte de Educaçaõ, e
necessitará sempre
logo que tiver Ilhas, Colonias e Dominios de Ultramar;
logo que for obrigado a ter allianças com Espanha, com
França, Hollanda ou Inglaterra.
§.
Da Natureza da Educaçam da Mocidade,
e do Objecto que deve ter no Estado onde he nacida
Naõ tratarei aqui daquella Educaçaõ
particular, que
cada Pay deve dar a seos filhos, nem daquella que ordinariamente
[109]
tem a Mocidade nas Escolas. Seria superfluo
este trabalho á vista do perfeito livro que compôz
aquelle Várro Portuguez
Martinho de
Mendonça de
Pina e de Proença, intitulado
«Apontamentos para a
Educaçaõ de hum Menino Nobre» e de
varios Autores
que tratáraõ da Educaçaõ
nas Escolas, que relata
Morhofio no seu
Polyhiflor Litterarius. O meu
intento
he propor tal ensino a toda a Mocidade dos dilatados
Dominios de Sua Majestade, que no tempo da
occupaçaõ e do trabalho, e no tempo do
descanço lhe
seja util, e a sua patria
[59]:
propondo a virtude, a paz
e a boa fé, por alvo desta educaçaõ, e
a doutrina e as
sciencias, como meyo para adquirir estas virtudes sociaveis
e christaãs. Nunca me sahirá do pensamento
formar hum Subdito obdiente e deligente a comprir as
suas obrigaçoens, e hum Christaõ resignado a
imitar
sempre, do modo que alcançamos aquellas immensas
acçoens de bondade e de misericordia.
A Educaçaõ da Mocidade não he mais que
aquelle
habito adquirido pela cultura e direçaõ dos
Mestres,
para obrar com facilidade e alegria acçoens uteis a si
e ao Estado onde naceo. Mas para se cultivar o animo
da Mocidade, para adquirir a facilidade de obrar bem
e com decencia, naõ basta o bom exemplo dos Paes,
nem o ensino dos Mestres; he necessario que no estado
existaõ tais Leis que preméem a quem for mais bem
creado, e que castiguem aquem não quer ser util, nem
a si, nem á sua patria.
Logo me perguntáraõ se toda a mocidade do Reyno
[110]deve ser educada
por Mestres, se o Estado ha de contar
entre esta Mocidade o filho do Pastor, do Jornaleyro,
do Carreteyro, do Criado, do Escravo e do Pescador?
Se convem que nas Aldeas e lugares de vinte ou trinta
fogos, haja escolas de ler e de escrever? Se convem ao
Estado que os Curas, os Sachristaens, e alguns Devotos,
cujo instituto he ensinar a Mocidade a ler e a escrever,
tenhaõ escolas publicas ou particulares de graça
ou por
dinheyro, para ensinar a Mocidade, que pelo seu nascimento,
e suas poucas posses, he obrigada a ganhar a
vida pelo trabalho corporal? Com tanta miudeza me
detenho nesta classe de Subditos, porque observo nos
Autores taõ pouca ponderaçaõ do seu
estado; e he por
tanto donde depende o mais forte baluarte da Republica,
e o seu mayor selleiro e armazem.
Os que querem e persuadem que a classe dos Subditos
referidos aprendaõ todos a ler e a escrever, e arithmetica
vulgar, dizem para provar a sua resoluçaõ que
tanto mais se cultiva o entendimento, tanto mais se
abranda o coraçaõ; que a piedade e a clemencia
saõ
tanto mayores virtudes, quanto saõ mayores os conhecimentos
das obrigaçoens com que nascemos, de adorar
o Supremo Creador, de obedecer a nossos Paes e Superiores,
e de amar os nossos iguais
[60].
He verdade mas estes Auctores levados do seu bom
coraçaõ assentam estas maximas como se todos os
homens
houvessem de habitar no paraizo terrestre, ou naõ lhe
ser necessario ganhar toda a sua vida, o seu limitado
[111]sustento, com o
trabalho de suas maõs, e com o suor
do seu rosto. Que filho de Pastor quererá ter aquelle
officio de seu pay, se á idade de doze annos soubesse
ler e escrever? Que filhos de Jornaleyro, de Pescador,
de Tambor, e outros officios vis e mui penozos, sem os
quaes naõ pode subsistir a Republica, quereraõ
ficar no
officio de seos pais, se souberem ganhar a vida em
outro mais honrado e menos trabalhoso? O Rapas de
doze ou quinze annos, que chegou a saber escrever
hũa
carta, naõ quererá ganhar a sua vida a trazer
hũa ovelha
cançada ás costas, a roçar depella
manhaã até noyte,
nem a cavar.
Ha poucos annos que nos Estados del Rey de Sardenha
se promulgou hũa ley, que todos os filhos dos
lavradores fossem obrigados a ficarem no officio de
seos pays; dando por razaõ, que todos
dezemparavaõ
os campos, e que se refugiavaõ para as cidades adonde
aprendiaõ outros officios: Ley que parece mal concebida,
e que jamais terá execuçaõ. Se os
filhos dos lavradores
dezemparaõ a casa de seos pais, he porque tem
esperança
de ganharem a sua vida com a sua industria e
intelligencia; e já lhe naõ saõ
necessarias as simples
maons para sustentarse; sabem ler e escrever; tiveraõ
nas aldeas onde nasceraõ escolas pias de graça ou
por
mui vil preço, e do mesmo modo as molheres, que
ensinaõ
os seos filhos a escrever, quando naõ tem dinheiro
para pagar Mestres; e esta he a origem porque os filhos
dos Lavradores fogem da caza de seos pais: o remedio
seria abolir todas as escolas em semelhantes lugares.
Queyxaõse em França que depois cento e trinta
annos
se despovoaõ os campos, e que todos buscaõ as
cidades
[112]
ou se expatriaõ a buscar fortuna em outros climas: a
cauza he a infinidade de Escolas de ler e escrever na
minima aldea de dez ou doze cazas; ha certas ordens
Religiozas sem clausura espalhadas por cada parrhochia
que tem esta incumbencia; todo o rapaz, e rapariga,
sabe ler, escrever o seu catechismo e o Testamento
novo na Lingoa Materna: vendo-se com esta
educaçaõ
á idade de doze ou quinze annos naõ querem ficar
em hum officio laborioso, penivel e ás vezes infame.
Por isso, dizia o Cardeal de Richelieu ja do seu tempo,
que todo o proveito que retirava o Estado de tanta
Escola de ler e de escrever, consistia no rendimento do
Correyo.
Nenhum Reyno necessita de mayor rigor na suppressaõ
total do ensino de ler e escrever, nem ainda permittido
aos Ecclesiasticos de graça, do que o nosso: o clima
cria aquelles espiritos altivos, mais para dominar, que
para servir; até nos animais domesticos se observa
esta indocilidade. A may do Jornaleyro naõ
cessará cada
dia que ve ir seu filho á escola de lembrar-lhe que tem
um Tio, Frade ou cura em tal lugar: o rapaz já quer
ser Frade: e como só no Ecclesiastico se acha honra
sem fazer o Pay despeza, bastaõ as inquiriçoens
para
chegar aquelle Estado, e ficar a caza do Pay sem
successor.
Todo o rapaz ou rapariga que aprendeo a ler e a escrever,
se ha de ganhar o seu sustento com o seu trabalho,
perde muito da sua força em quanto aprende; e
adquire um habito de perguiça e de liberdade deshonesta.
Como saõ os Mestres de ler e escrever, homens rudes,
ignorantes, sem criaçaõ, nem conhecimento algum
da
[113]
natureza humana, tem aquelles meninos tres horas pela
manhaã e tres de tarde, assentados, sem bolir, sempre
tremendo e temendo: perdem a força dos membros,
aquella desenvoltura natural, porque a agitaçaõ,
o movimento
e a inconstancia he propria da idade da meninisse:
e naõ convem hũa
educação
taõ molle a quem
ha de servir á Republica de pés e de maons, por
toda
vida.
Assim o Ministro ou o Tribunal que havia de ter
inspecçaõ da Educação da
Mocidade, parece havia de
ordenar «Que em nenhũa Aldéa,
Lugar, ou Villa
onde
naõ houvessem duzentos fogos, naõ fosse
permittido a
Secular, nem Ecclesiastico, ensinar por dinheyro ou de
graça a ler ou a escrever».
Mas já vejo que clamariaõ os Bispos e os
Parrhocos,
e taõbem muitos devotos, que, pela ley proposta, era
tratar a mocidade plebea em bestas sylvestres, destituida
do ensino da Religiaõ Christaã, naõ
podendo ler, nem
entender o Catechismo; e que ficavaõ sem principio
algum de humanidade, nem de virtude ou obediencia.
Se estes que assim arguirem, soubessem a
obrigaçaõ
dos Parrhocos e Sachristaens, se soubessem que o trabalho
corporal, ter o animo occupado, he a mayor virtude:
se soubessem que adquirindo aquelle habito de trabalhar
desde a primeira meninisse que lhe serviria da melhor
instrucçaõ por toda a vida, se
retractariaõ, e naõ clamariaõ.
Nos Domingos e dias de Festa devia o Parrhoco e o
Sachristaõ ensinar a doutrina Christaã a estes
meninos;
e com a sua diligencia ficaria o menino instruido na
obrigaçaõ de Christaõ; e
naõ seria necessaria a escola,
[114]
para aprender o catechismo; porque esta obrigaçaõ
pertence á Igreja, e naõ ao Mestre de ler, nem de
escrever;
ainda que abayxo se lhe imporá esta
obrigaçaõ.
Se hũa vez o Estado abraçar fazer
executar a Ley
assima, conceberá no mesmo instante que o trabalho e
a industria se deve considerar como base do Estado
Civil: helhe necessaria a providencia de procurar pela
agricultura e pelas artes onde o povo adquira o seu
sustento: helhe necessario establecer pelo menos hum
comercio interior, e communicaçaõ de villa a
villa, de
comarca a comarca, para promover a circulaçaõ,
que
sem ella naõ continuará o trabalho do povo, nem a
industria;
em hũa palavra, era necessario para establecer
a prohibiçaõ das Escolas de ler nas Aldeas,
gastar o
Estado hũa certa parte do seu rendimento na
ereçaõ,
e fundamentos do trabalho e da industria.
Naõ necessitaria esta classe do povo de outra
educaçaõ
do que os Paes e Maens estivessem empregadas no
trabalho, e seos filhos, naõ tendo outro recurso para
ganharem a vida, seguiriaõ aquelle caminho que
exercitavaõ
os proginitores e os tutores. Quem trabalha
faz hum acto virtuoso, evita o ocio; vicio o mayor contra
a Religiaõ e contra o Estado: e St. Bento achou o trabalho
de maons de tanta virtude que o poz por regra
de sete oras cada dia. Isto he o que basta para a boa
educaçaõ da mocidade plebea.
Alem disso o povo naõ faz boas nem mas acçoens,
que por costume e por imitaçaõ; e rarissimas
vezes se
move por systema nem por reflexaõ; será
cortés ou
grosseyro, sesudo ou ralhador, pacifico ou insultador,
conforme for tratado, pelo seu Cura, pelo seu Juis, pelo
[115]
Escudeyro ou Lavrador honrado. O povo imita as
acçoens dos seos mayores; a gente das Villas imita o
trato das Cidades a roda; as Cidades o trato da Capital,
e a Capital da Corte: deste modo que a mocidade
plebea tenha ou naõ tenha mestre, os costumes que
tiver seraõ sempre a imitaçaõ dos que
vivem nos seos
mayores, e naõ do ensino que tiveraõ nas escolas.
Todo
o ponto, he que as Leis do Estado estejaõ de tal modo
decretadas, que naõ falte á mais infima classe
dos
Subditos o trabalho, e que se dispenda nisto, o que se
dispende nos Hospitaes geraes, e nas Confrarias.
Mas naõ se imaginem os Bispos, nem os Devotos, que
pela Ley assima ficam excluidos de aprender a ler e a
escrever os filhos dos Lavradores e officiaes que tiverem
cabedal, para sustentallos nas pensoens ou seminarios
que proporemos abaixo erigidos nas villas ou lugares
que excederem duzentos vizinhos: com esta providencia,
seria louvada a Ley, que naõ houvesse escolas nas
Aldeas.
§.
Qualidades dos Mestres,
para ensinar a ler e a escrever, &
O Mestre que ensina a ler e a escrever, he hum
cargo publico, naõ de taõ pouca consequencia para
a
Republica como vulgarmente se considera: ordinariamente
saõ empregados neste ministerio homens ignorantes,
muitas vezes com vicios notorios, que escandalizaõ.
Para exercitar este officio basta hũa
informaçaõ
de
vita & moribus, e com
ella alcança do Bispo a permissaõ
[116]de ensinar;
algũas vezes
ouvi que se requerem
as inquiriçoens de sangue, para o mesmo emprego.
Nem as Camaras das Villas, nem das Cidades, nem
as Justiças Reais, tem mando ou
inspecçaõ nestas Escolas;
e com razaõ, porque naõ tem nenhum sallario
publico; o proveito destes Mestres he taõ tenue que
apenas os tira fora do estado da miseria.
Hum Mestre de escola naõ deve ter defeito vizivel no
seu corpo, nem vesgo, torto, corcovado, nem coxo;
porque se viu por experiencia hũa escola de meninos
serem
vesgos, porque o seu Mestre
tinha aquelle defeito.
Imitamos o que vemos, e sem nos apercebermos do
que fazemos, adquirimos o habito, antes de pensar que
he vicioso: somos dotados desta admiravel propriedade,
que influe tanto em todas as acçoens da vida humana;
e por isso não convem que tenha aquella tenra idade
taõ apta a imitar e taõ subcetivel das
impressoens extraordinarias,
ter por objecto continuado hum Mestre
no corpo defeituoso, e muito menos no animo; e por
essa razaõ devia ser de costumes approvados e conhecidos
com louvor. Mas nem estas qualidades, nem a sua
capacidade no que devia ensinar, seriaõ bastantes para
exercitar este emprego.
Nenhum Mestre poderia ter escola (do modo que
propomos) sem ser cazado, condiçaõ sem a qual
naõ
obstante todas as mais qualidades, naõ poderia exercitar
esta funçaõ; e no cazo que ficasse viuvo, seria
obrigado
cazarse dentro de pouco tempo ou obrigado a deyxar a
Escola.
Este mestre he o primeiro que vé a Mocidade destinada
pela mayor parte a servir a sua patria; desde
[117]
aquella mais tenra idade dever ter por objecto hum
cidadaõ: alem disso os homens cazados, se tem filhos,
saõ mais carinhosos e maviosos, com os meninos, do
que os solteyros. Deyxo á consideraçaõ
de quem conhece
o que he hum homem que sahio do recto caminho
da virtude, se convem neste perigo, que hum
homem solteyro seja Mestre de meninos e rapazes? e
se será acertado que o publico ponha nas maons do
Celibato a inocencia da primeira idade?
Mas o bem publico e o sagrado do Estado me favorece
nesta occaziaõ mais que nunca. Todos os Subditos
empregados no serviço Civil, como Mestres, Juizes,
Notarios, Secretarios, e todos aquelles que tivessem
sallario do Estado, deviaõ ser cazados;
condiçaõ sem
a qual naõ poderiaõ exercitar Cargo algum Civil,
como
Medico ou Letrado, com sallario do Reyno: Somente
os Sexagenarios, tendo filhos, seriaõ dispensados desta
condiçaõ sem excepçaõ.
Este Mestre para ser admitido a ter escola publica,
tendo as qualidades e requesitos referidos, devia fazer
petiçaõ ao Director dos Estudos e das Escolas da
Provincia,
para ser examinado: e no exame havia de constar:
1.º Que sabia a Lingoa Latina, e a Materna, com
propriedade;
2.º Que sabia bem escrever;
3.º Como taõbem a Arithmetica, pelo menos as
quatro Regras; e seria conveniente com a de tres, e as
fraçoens, ou dos quebrados;
4.º Que sabia de que modo se tem pelo menos o
livro de conta e razaõ, pelo do
deve e hade
haver, com
index ou alphabeto, ou de cayxa dos Mercadores.
[118]
Constando pelo exame proposto, que satisfizesse ao
que se pretendia delle, o Director lhe passaria provisaõ
para exercitar o emprego de Mestre de Escola, com
obrigaçaõ de alcançar outra do Bispo,
por cuja ordem
seria examinado no Catechismo da Religiaõ
Christaã:
e munido com estas duas provisoens se presentaria,
no lugar adonde havia de ensinar, ao Delegado do Direitor
dos Estudos e Escolas, para exercitar o seu
cargo.
Seria necessario que estivessem compostas e impressas
as
Direçoens,
ás quais cada Mestre de Escola
se devia conformar no seu emprego: e na visita que
devia fazer hũa ou duas vezes por anno nestas
Escolas
pelos Delegados dos lugares, onde estavaõ establecidas,
se tomaria conta se o Mestre satisfazia as dittas
instrucçoens.
Este Mestre alem de paga de cada discipulo devia
ter sallario do publico, taõ sufficiente que bastasse para
sustentarse com decencia; attendendo a carestia e ao
trato da Villa, onde ensinara. Estes sallarios taõ pouco
a cargo do Estado, fariaõ sollicitar estes empregos
homens mais capazes do que hoje se empregaõ nelles:
seriaõ taõbem mais respeitados, o que convem
aquem
ha de ensinar publicamente.
§.
Do que haviam de aprender os Mininos alem de ler,
escrever e contar, etc.
Bem sei, Illustrissimo Senhor, que me accuzáraõ
de
gastar assim o tempo nestas particularidades que pertencem
[119]
a meninisse, de hum modo taõ rasteiro, e fora
de todo o discurso que ninguem que pretende a algum
gráo de litteratura gastará o seu tempo em ler o
que
escrevo; mas não o julgou assim Plutarcho
[61] Quintiliano
[62]
nem aquelles restauradores das letras humanas
Erasmo
[63],
nem Luis Vives em muitas das suas obras
ainda que decorado com o honroso cargo de Mestre de
Phelipe Segundo: estes referidos Authores puzeraõ
todo o seu cuidado na educaçaõ da primeira
infancia,
porque daquelles principios depende a disgraça ou a
felicidade de toda a vida.
Que auctoridade naõ acharia eu para provar o que
digo? Mas que provas são necessarias, quando a
propria experiencia nos convence; e a alheya nos
admoesta que ponhamos todo o nosso cuidado nestes
principios do Estado e da Religiaõ.
Queyxasse David Hume e l'Abbé de St. Pierre, que
nas Escolas se enchem os juisos da
Mocidade de muita
instruçaõ, e que nenhum cazo fazem os Mestres de
[120]
formar os costumes, nem de fazer o menino bom: todo
o seu disvello he que saibaõ muito, que recitem de
memoria muitas laudas de proza, e outras tantas de
versos. Seria taõ necessario que os meninos que sayem
da escola, ficassem taõbem instruidos na
obrigaçaõ que
tem de serem homens de bem, como na de Christaõ.
Cada menino naquelle tempo aprende o seu catechismo:
seria necessario que no mesmo tempo aprendesse outro,
para saber as obrigaçoens com que naceo. Se houvesse
hum livrinho impresso em Portuguez, por onde os meninos
aprendessem a ler (e naõ por aquelles feitos de
letra tabalioa), onde se incluissem os principios da Vida
Civil, de hum modo taõ claro que fosse a doutrina
comprehendida
por aquella idade; e ao mesmo tempo, que
o Mestre a fizesse praticar na classe com castigos e com
premios, costumando aquella idade, mais a obrar conforme
a razaõ, do que a discorrer; me parece que se
naõ sahissem dali com outro ensino, que teriaõ
aproveitado
mais, do que se aprendessem tudo aquillo que
os Pais dezejaõ.
Se neste livrinho e catechismo da
Vida
Civil estivessem
declaradas as propriedades do homem no estado
natural, que consiste em buscar o que lhe he necessario
para conservarse, satisfazendo á fome e a sede,
e que naturalmente temos, aquella propriedade de
imitar
o que vemos com amor e com
admiraçaõ, que temos
naturalmente; a piedade e a compaixaõ de ver soffrer
e maltratar os nossos semelhantes
[64],
e que destes dois
[121]
principios provem todas as acçoens que obramos, em
quanto naõ forem suffocados pelos maos exemplos de
soberba, de tyrania, de crueldade, que daõ os Pays, as
Maens, e os que criaõ aquella aurora da humanidade
[65].
Quanto cuidado deviaõ ter os Pays e os Magistrados,
que as maens e as amas soubessem criar as crianças
até sahirem do seu colo? Em outro lugar se tocará
o
mal que redunda a hũa Naçaõ
de naõ
criarem as Maens
os seos Filhos.
Se o Mestre destas Escolas explicasse com exemplos
este Compendio que proponho da vida civil; se o fizesse
observar por acçoens, e habituar aquella infancia a
[122]obralas, e a
fazelas, e ao mesmo tempo lhes inculcasse,
e lhes fizesse applicar este principio em todas as suas
acçoens: «Que o homem nacido entre os homens devia
obrar e fazer tudo conforme as Leis estabelecidas entre
elles; que a ninguem era licito viver conforme a sua
vontade, conforme o seu prazer e fantasia.
No mesmo Compendio queria eu que estivessem escritas
as obrigaçoens com que nacemos: como devemos
venerar a Deos: como somos obrigados honrar nossos
Pays, e a quem tem o seu lugar: que temos a mesma
obrigaçaõ de respeitar os mais velhos: que
devemos ser
amigos fieis: guardar-lhe segredo, palavra, cuidar do
seu bem, como do nosso propio: e como nos amamos
naturalmente a nossa patria, assim devemos ser-lhe
fieis; cuidar em tudo do seu bem, que he o nosso: e
como el Rey he a cabeça della, que a este, como a
nosso primeyro Pay na terra, devemos respeytar e
honrar.
Aquella tenra idade poderia comprehender quando
os castigaõ (naõ barbaramente com
açoutes e palmatoadas),
que na adversidade ninguem se deve abater:
que sempre ha de ficar a esperança ou de se emmendar,
ou de melhor fazer: quando for premiado, fazer-lhe
notar o principio do Catechismo, que ninguem na prosperidade
e na grande alegria se deve desvanecer nem
ensoberbecer: porque somos nacidos para viver hũa
vida cerceada sempre pela alegria e pela tristeza; que
nenhum bem he sem mistura de mal, nem nenhum mal
sem mistura de bem.
A meninisse he capas desta instrucçaõ, se o
mestre
lhe fallar na lingoa e na frase que he propria á aquella
[123]
idade. He admiravel o juizo humano: na idade de
tres annos aprendeo hum menino a sua lingoa; fallar
sem saber o que fas, com o nominativo, com o verbo
no singular, ou plural, no tempo, no modo, etc. O que
he taõ difficil aos adultos que aprendem as lingoas
doutas ou estrangeiras. Pode o menino aprender no
dia, de trez ou quatro Mestres, sem confundir o que
aprende. Mas abayxo mais distintamente trataremos
desta materia.
Pareceome advirtir aqui que necessitava o Director,
ou o Concelho da Educação, mandar
compôr hum piqueno
livro em 8.º de 150 a 200 paginas, com o titulo
Arte de ter livros de conta e razam.
Este seria o
modelo para que cada qual soubesse governar a sua
casa, onde haveria exemplos de algũas cartas de
rois,
de quitanças, de letras de cambio e de
procuraçoens:
fazendo copear a cada Discipulo hum livro semelhante,
ditado pelo seu Mestre.
Bem sei a difficuldade de achar Mestres nas Provincias
que possaõ pôr em practica o que
conterá o livro
proposto: he a difficuldade que encontraõ sempre os
nossos establecimentos. Mas he necessario hum principio;
e os homens pelo uzo, com o premio, e a esperança,
e pelo medo de perda, e pela deshonra, augmentaõ
os seos conhecimentos, e instigaõ as potencias da
alma a penetrar e vencer as difficuldades do seu officio.
[124]
§.
Das Escolas da Lingoa Latina e da Grega,
Humanidades, e da Lingoa Materna
Naõ he o meu intento, Illustrissimo Senhor, indicar
aqui a minima instrucçaõ para aprender as
Lingoas,
Latina, Grega, e Hebraica, nem as Humanidades, por
que já S. Magestade que Deos guarde, foi servido ordenar
aos Professores seguirem aquellas, que decretou
neste anno, e que foraõ impressas em caza de Miguel
Rodrigues. O meu intento he somente de mostrar qual
deve ser o fim destas Escolas; como devem ser dirigidas
para serem de utilidade ao Estado; que qualidades
deviaõ ter os Mestres que haviaõ de ensinar
nestas, e
aquellas que haviaõ de ter os discipulos; e as duas
differentes classes delles; e como dos mesmos Mossos
ali educados, haviaõ de sahir Mestres para ensinar nas
Escolas onde faltassem. Porque como, V. Illustrissima
sabe que deve o Estado retirar hum proveito proporcionado
á despeza que fizer com este ensino; e essa he
a razão que me move a satisfazer este objecto.
A Lingoa Latina he necessaria a todos os Ministros
da Religião Catholica Romana, a todos os Conselheyros
de Estado, Ministros publicos, Magistrados, Juizes,
Letrados e Medicos: e outros empregos, e cargos que
hoje naõ temos ainda em Portugal.
Representarei aqui todos os males que fazem o grande
numero das Escolas do Latim, e particularmente gratuitas:
mostrarei claramente que vem a servir de escolas
do ocio, da dissolução, e de toda a desordem
civil,
taõ commua como se observou atégora.
[125]
Entraõ
cem Meninos a
aprender Latim, e o estûdaraõ
até á idade de quatorze até desaseis
annos. Ponderemos
quantos foraõ que aprenderaõ esta Lingoa, capazes
de
se matricularem na Universidade, ou de entender hum
Autor Latino? Acharemos que apenas sahirá a terça
parte. Mas quero que
cincoenta
aproveitassem o seu
tempo: vejamos a destinação destes cincoenta
até estarem
establecidos. Veremos que
trinta
delles viraõ
a ser Ecclesiasticos,
dés
virão a ser Juizes ou Letrados,
e outros
dés
viraõ a ser Medicos.
Os
cincoenta que, ou por lhes faltar
quem os sustentasse,
não acabáraõ os seos Estudos, ou por
serem
taõ rudes, e de maos custumes, que não se
aplicáraõ,
sahiraõ ignorantes, e incapazes de proseguir os Estudos;
sigamos a sua destinação. O rapás que
não pode
aprender Latim, fica impossibilitado para aprender hum
officio: naquelle tempo que devia aprendelo se costumou
ao ocio nas Escolas, adquirio a soberba e a vaidade;
despreza hum officio mechanico, e quer ganhar a sua
vida a cavalheyra. Desta origem vem aquella multidaõ
de individuos sem officio, nem beneficio. Desta
classe de Estudantes reprovados sayem os jugadores,
os alborcadores, os tratantes, os que tem titulo de
page, Mestre sala, os escreventes, os tendeyros, tanto
Frade Leygo, e sobre tudo, tantos e tantos, que
passaõ ultramar a buscar fortuna. São estes
Subditos
pela mayor parte perdidos para o Estado. Este
he hum dos menores males que cauzavaõ as Escolas
do Latim demasiadas, e principalmente aquellas gratuitas.
Mas o mayor a meu ver, he que são a cauza de tanto
[126]
Ecclesiastico sem vocação: o Pay e a May querem
pela
mayor parte, entre a gente ordinaria, hum filho Ecclesiastico
para honrar a familia; o mesmo filho entra
naquelle intento, e para ter a sua subsistencia com
honra e sem trabalho, sempre se acharaõ devotos que
daõ o que basta, ainda por titulos falsos, para fazer o
patrimonio: para entrar nas Communidades Religiosas
Mendicantes, ainda ha mayores facilidades. He couza
notavel que para que hum official possa ter logea aberta
que necessite aprender por seis ou sete annos, sustentando-o
seus Paes, ou pagando o ensino, e que hum
rapás que aprendeo o Latim nas Escolas gratuitas, sem
gasto algum, que ser vestido e sustentado por seos
Paes, que possa adquirir um establecimento, e que a
sua patria o perca; e que seja educado este Subdito
até idade de 21 annos para entrar debayxo de outra
Monarchia, que he a Ecclesiastica!
Philipe Quarto no anno de 1623
[66],
attendendo aos
males que cauzavaõ tantas Escolas de Latim decretou,
hũa Ley, que copiarei aqui. «Porque de
haver en tantas
partes destos Reynos Estudios de Grammatica, se consideran
algunos inconvenientes, pues ni en tantos lugares
puede aver comodidad para ensenarla, ni los que
la apprenden, quedan con el fundamento necessario
para otras facultades: Mandamos que en nuestros
Reynos no pueda aver, ni aya Estudios de Grammatica,
sino es en las ciudades, y villas donde ay
Corrigidores,
en que entren tambien Tenientes Governadores, y Alcaides
[127]
Mayores de
lugares de las Ordenes, y solo uno
en cada Ciudad, ó Villa: y que en todas las fundaciones
de particulares ó Colegios, que ay encargo de leer
Grammatica, cuya renta no llega a trecientos ducados
[67]
no se puede leer. «Y prohibimos el poder fundar
ningun particular estudio de Grammatica, con mas ni
menos renta de trecientos ducados, sino fuere como
dicho es en la ciudad y villa, donde huviere Corrogimiento,
o Tenencia: y se se fundáre no se poderá leer;
sino es que en el no aya otro; porque en tal cazo
permitimos, que se pueda fundar, y instituir, siendo
la renta en cantidad de los dichos trecientos ducados,
y no menos. Y assi mismo mandamos que no pueda
aver estudios de Grammatica en los Hospitales donde
se crian niños expuestos e desamparados, y que los
Administradores y Superintendentes tengan cuidado de
applicarlos a otros actos y particularmente al exercicio
de la Marineria, en que seran mui utiles, por la falta
[128]
que ay en estos Reynos de Pilotos: pero queremos que
se conserven los Seminarios que conforme al Santo
Concilio de Trento ha de haver».
Mas esta Ley produzio effeitos contrarios, ou ó que
pretendia prohibir. Observáraõ os Seculares esta
Ley,
e faltavaõ as Escolas nas villas e nas cidades: neste
cazo vendo as Communidades Religiosas, que tantos
meninos não aprendiaõ Latim por falta de Escolas,
ou
por caridade ou por interesse começaraõ a ensinar
Latim; e succedeo que hoje em todo aquelle Reyno ha
mais destas Escolas, que no tempo de Phelipe Quarto.
Deste modo, pois que pelo Decreto de sua Magestade
se determina o numero das Escolas, e os lugares onde
hão de ser fundadas, havia de haver defensa expressa
que nenhũa Communidade Religiosa, nenhum
Ecclesiastico,
ou Secular pudesse ensinar publicamente, ou
ter Escola da Lingoa Latina, sem permissaõ do Director
dos Estudos.
Nesta Ley se concedem aos Bispos os seos Seminarios
establecidos pelo Concilio de Trento, que
acceitáraõ
Portugal e Castella. Neste cazo podia cada Bispo
fundar a sua vontade muitos Seminarios no seu Bispado
com mui pouca despeza: conservariam hum Mestre de
Latim e trez ou quatro Seminaristas em cada Seminario,
e daria liberdade a cada Pay de mandar aprender o
Latim naquellas Escolas a seos filhos, e deste modo
ficariaõ frustradas as utilissimas disposiçoens
de S. Magestade,
e a sua clementissima Ley.
Mas se fosse do Real agrado de S. Magestade decretar
hum Supplemento a ditta Ley; que os Bispos
conservassem os seos Seminarios, e que nelles mandassem
[129]aprender e que
ordena o Concilio de Trento;
mas que naõ servissem as Escolas dos Seminarios,
mais que para os Seminaristas educados e sustentados
a custa do mesmo Seminario; prohibindo admitirem
nelle a Mocidade que he sustentada e educada em caza
de seos Pays: pondo obrigaçaõ ás
Justiças do Reyno,
e aos Delegados do Inspector dos Estudos, de manter
a observancia desta Ley.
Allegariaõ os Bispos e os Provinciais das Ordens
Monasticas e Mendicantes, que determinando S. Majestade
o numero das Escolas Latinas, e prohibindo o
exercicio de todas as mais que havia de antes; que não
haveriaõ Sacerdotes bastantes, para servir as Parrhochias,
nem Frades para povoar os Conventos. Estas
tão apparentes difficuldades se podiaõ vencer, e
ficar
no seu vigor a Ley de S. Magestade. Não tinhaõ os
Bispos mais do que calcular quantos Parrochos lhes
serião necessarios nos seos Bispados, e a
proporçaõ
logo saberiaõ quantos Clerigos simplices lhes
eraõ necessarios
no mesmo Bispado: e se naõ bastasse hum
Seminario, para formar estes Ministros da Religiaõ,
que fundassem dois, ou mais se necessarios fossem.
Se as rendas do Bispado fossem sufficientes, para sustentar
os Seminaristas propostos, o Bispo faria essa
despeza; quando naõ, se podiaõ transmutar muitas
Igrejas collegiadas em simples Parrochias, e applicar
aquellas rendas para o sustento dos Seminarios: do
mesmo nas Abbadias e Priorados do rendimento alem
de mil cruzados; Vigarios serviriaõ estas Abadias, e os
rendimentos primitivos seriaõ applicados aos dittos
Seminarios. Assim haveria Parrochos mais bem educados
[130]e instruidos; nem
tanto Clerigo Simples, que naõ
conheceo a primitiva Igreja; por que todo o que vinha
a ser Sacerdote era para ser Cura de almas: e esta he
hũa innovação de haver
Clerigos tonsurados com
beneficios,
e Sacerdotes simplices, que os Bispos introduziraõ,
tanto que os Papas lhes tiráraõ a
Jurisdiçaõ
espiritual nos seos Bispados.
Muito mais facilmente se podia responder aos Provinciais
das Ordens: he notorio que depois do Noviciado,
que tem os Frades que aprendem a Philosophia
e a Theologia dos Collegios ou Conventos: e porque
naõ aprenderaõ a Lingoa Latina depois de terem
professado?
Este he o modo mais efficaz de entrarem as
Ordens Regulares no seu primitivo instituto: todos os
Frades eraõ Leygos, e a sua occupaçaõ
era orar, e
trabalhar trabalho de maõs; e só um ou dois
Sacerdotes
tinhaõ em cada communidade para administrar-lhe
os sacramentos; e deste modo he que hoje dia se governaõ
os Conventos de S. Basilio na Igreja Grega.
Mas depois que os Frades usurpáraõ o officio dos
Parrochos; depois que os Papas os isentáraõ da
visita
e da dominaçaõ dos Bispos, e que dependem
sómente
da Sé Apostolica, exceptuando para confessar e
prégar,
não puzeraõ termo ás suas
pretenções. Põdiaõ aprender
Latim depois de professos como aprendem a Philosophia
e a Theologia, e ainda lhes ficaria muito mais
tempo, para aprender esta lingoa, para trabalhar e
confessar, como já fica dito se faz em Napoles, se lhe
fosse prohibido absolutamente prégar qualquer sorte
de Sermão, fóra dos seus Conventos: ficando
somente
aos Parrochos esta incumbencia, ou lendo de pulpito
[131]
para bayxo sermões impressos, ou aquelles que elles
compuzessem: he certo que mui poucos Frades entaõ
estudariaõ nem Philosophia, nem Theologia: porque
faltando-lhes o proveito, lhes faltaria a vontade de estudarem.
He couza notavel que pretendaõ os Bispos e os
Frades, que estejaõ sustentando e educando os Subditos
a seos filhos até a idade de dezoito annos, para ir fazer
presente delles á Monarchia Ecclesiastica, da qual
somente o Estado tem necessidade na pessoa dos Bispos,
e dos Parrochos!
§.
Dos Mestres e dos Discipulos das Escolas do Latim
etc.
Este cargo de ensinar a Rhetorica e as Humanidades,
era no tempo dos Gregos e dos Romanos, hum dos
principaes daquellas Republicas, como vemos pelas
Leis Romanas a seu favor. Pela destruição do
Imperio
Romano do Occidente, e pela fundação das
Universidades
no Seculo XIII, ficaraõ os Grammaticos ou
Humanistas
excluidos das honras e dos premios com que
foram decoradas as quatro Faculdades; e ainda que no
XV e XVI seculo Lourenço Vala, Angelo Policiano, Joviano
Pontano em Italia, e outros muitos por toda a
Europa, como Erasmo, Luiz Vives, Turnebo, e os
nossos Gouveas illustraraõ as letras humanas, sempre
os Mestres das Lingoas Latina e Grega ficáraõ
excluidos
daquellas honras, e emolumentos das Universidades, e
principalmente depois que se erigiraõ as Escolas gratuitas
das Ordens Regulares.
Sua Majestade Fidelissima pelo seu Alvará a favor
[132]
destas Escolas restableceo este importante cargo da
Republica ao seu antigo esplendor, installando-o nas
honras, com que as Leis Romanas o decoravaõ. Estou
persuadido que o Director dos Estudos do Reyno, para
satisfazer á piedade com que Sua Magestade favorece
os seos povos, empregará Mestres tão Capazes, que
sejaõ superfluas todas as consideraçoens tocante
o exercicio
de seos cargos: o meu dezejo fora que tomassem
mais a peito formar o animo dos seos discipulos do
que amontoar na sua memoria todos aquelles conhecimentos
que se ensinaõ nestas Escolas. Desejaraõ
todos os bons Portuguezes que tenhaõ por alvo as suas
fadigas e o seu disvello, formarem discipulos que sejaõ
capazes de obrar tais acçoens, que
mereçaõ ficar conservadas
na historia, ou terem de escreve-las com tal
energia, que fique a sua memoria vencedora do esquecimento:
que pensassem que o perfeito conhecimento
da Lingoa Latina e da Grega, da Historia Sagrada e
profana, e das Antiguidades d'estas Naçoens, etc.,
não
são o fim do seu emprego, que saõ somente os
meyos
para vir no conhecimento do que he util e decente, que
saõ somente meyos, para pensar e obrar com
justiça,
equidade e amor das suas familias, do seu Rey e da
sua Patria; que pensem frequentemente que o Estado
deve ser recompensado com serviços reais e importantes,
pelas grandes despezas, e cuidado que toma na sua
propria
conservaçaõ,
e
no seu ensino: que evitem naõ
cahirem na vangloria, vaidade, e sufficiencia, com que
sahiaõ infectados aquelles que estudavaõ nas
Escolas
felismente extinguidas.
No referido Alvará não se determina a
condiçaõ dos
[133]
referidos Mestres, se seraõ Seculares ou Ecclesiasticos.
Nessa consideraçaõ propuzéra que
haviaõ de ser cazados,
pelas mesmas razoens que indiquei asima, quando
fallei dos Mestres das Escolas de ler e escrever: além
disso, como Escolas do Latim, etc., devem ser erigidas
em forma de Collegio, como proporemos abayxo, crece
a necessidade de que estes Mestres sejaõ cazados, e
que jamais seja admitido algum no estado do celibato.
§.
Necessidade que tem o Reyno de Escolas
em modo de Seminarios
Tratarei primeiramente daquellas Escolas que haviaõ
de ser establecidas em forma de Seminarios, ou
Pensoens
como dizem em França: e para mostrar a necessidade
que temos dellas, e a sua utilidade geral, serei
algum tanto mais difuso do que permite este papel.
Dissemos acima que seria necessario, vendo a grande
necessidade que o Reyno tem de habitantes, que S. Magestade
ordenasse «Que naõ houvesse Escolas publicas
nem particulares, por dinheyro ou de graça, nas Aldeas
e nos Lugares que contassem somente de duzentos
fogos».
Nesta Supposiçaõ que se decretasse esta Ley,
supponhamos
que vivia em hũa Aldea de cincoenta vizinhos
hum Escudeyro, ou hum lavrador rico, e que quizessem
educar seos filhos a aprender a ler e a escrever: nesse
cazo estes Pays se veriaõ embarassados e afflictos:
naõ
seriaõ talvez taõ ricos para ter ao seu
serviço em casa
hum Mestre: na villa onde estivesse establecida a Escola
[134]
publica
não teriaõ parentes para viver seos
filhos
em sua caza: clamariaõ contra a dita Ley estes bons e
fieis Subditos, ou a defraudariaõ fundando
hũa Escola
na dita Aldea.
Em França, Inglaterra e Hollanda, e em toda a Alemanha,
ou Catholica ou Protestante, he costume haver
Mestres de ler e escrever, etc., tendo a sua custa
hũa
grande caza, ordinariamente nos arrabaldes das Villas
ou Cidades, onde sustentaõ muitos discipulos, com tudo
o necessario para viver e aprender, por hum tanto por
anno, que ordinariamente saõ preços mui
razoaveis.
Bem sei as difficuldades de introduzir hoje nas Provincias
estes seminarios (que daqui por diante chamaremos
Pensoens, para naõ confundilos com os dos
Bispos). Os Pays e as Maens Portuguezas amaõ tanto
seos filhos, que naõ os quereraõ mandar a
aprender
fora de caza. Alem disso os nossos Mestres Portuguezes
naõ quereriaõ, ou naõ
saberiaõ governar estes
meninos em communidade, ou sustentallos, como se
fossem seos filhos. Mas estas difficuldades se podem
vencer tomando as seguintes precauçoens: Que o Mestre
tivesse salario publico: que se lhe pagasse a caza
ou cazas, onde estaria a pensaõ: que o Delegado do
Director dos Estudos tivesse esta incumbencia de formar
estas pensoens primeiramente na Corte e nas Cidades
capitais; e tanto que hũa ou duas estivesse
establecida,
se deveriaõ imprimir instruçoens, para se
establecer
nas mais Villas e Cidades.
Deyxo a consideração de quem deseja ver
augmentado
o numero dos Subditos, por seu nacimento e estado
serem as maons e os pés da Republica, se entrará
[135]
na utilidade publica o establecimento d'estas pensoens:
todo o custo seria no establecimento das primeiras
quatro ou cinco; e em pouco tempo muitos Mestres,
sem serem obrigados, as fundariaõ com permissaõ e
approvaçaõ sempre do Delegado Director dos
Estudos
e Educaçaõ.
§.
Continûa a mesma Materia,
e das Pensoens das Escolas do Latim no Reyno,
por cauza da Educaçam da Mocidade
das Colonias e das Conquistas de Ultramar
As nossas Colonias estaõ fundadas pelas maximas da
Monarchia Gothica e Ecclesiastica, e por nenhũa da
Monarchia Civil: cada Colonia ou Conquista he hum
parto de Portugal: porque na India, por exemplo, se
instituio hũa Relaçaõ, como a
de Lisboa e com
a mesma
Jurisdiçaõ e modo de processar: os mesmos
Corregedores
e Juizes dos Orphaõs: hum Arcebispo, com seu
Cabido composto de muito Conego para cantar, em
hum porto ganhado com tanto sangue, para comerciar;
hum Tribunal do Santo Officio, emfim hum pequinino
Portugal.
Fundáraõ Conventos, Escolas de Latim, Theologia,
Philosophia: lá pode a Mocidade tomar as Ordens Sagradas;
lá mesmo tem os Vice-Reis e Governadores
auctoridade e Jurisdiçaõ para dar cargos, honras
e
preéminencias, e me parece que podem dar o gráo
de
Nobreza: e deste modo parece que Portugal, desde
[136]
el Rey Dom Manoel, naõ fez mais que parir outros
Reynos, e desfazer-se para crealos e conservalos.
Quem sabe de que modo os Romanos fundavaõ as
suas Colonias, e de que modo as conservavaõ,
achará
quasi tudo o contrario ao que fizemos nas nossas;
quem sabe o que fizeraõ os Castelhanos, os Francezes,
os Inglezes e as mais Naçoens dos nossos tempos que
tem Dominios na America, na Affrica e na Asia, o dano
ou o proveito que tiveraõ pelo governo que deraõ
a
estes Dominios de Ultramar, poderá julgar se as maximas
seguintes saõ necessarias ás nossas Colonias ou
Conquistas, ou se lhe saõ perniciozas.
1.º Que o unico objecto das Colonias e das Conquistas,
(falando como Cidadaõ) deve ser a agricultura
universal, e o commercio; mas com tal precauçaõ
que
a agricultura e commercio do Reyno naõ fique prejudicado.
2.º Somente os Lavradores, os Pescadores, os Officiais
Mechanicos, os Professores das artes liberais, os
Mercadores deviaõ ser os legitimos habitantes das Colonias,
os Senhores das terras, engenhos, moinhos,
fabricas, cazas e outros bens de raiz.
Deste modo naõ haveria Morgados, Bens ecclesiasticos,
Nobreza herdada nem establecida com terras:
porque hũa Colonia deve se considerar no Estado
politico,
como hũa Aldea a respeito da Capital. Nenhum
Governador, Magistrado, nem Ecclesiastico com Cargo,
ou Jurisdiçaõ, poderia ser Senhor de terras.
3.º Que seria prohibido ensinar a Lingoa Latina,
Grega e Philosophia a nenhum Secular, mesmo ainda
dentro dos Cabidos ou Conventos; que somente seriaõ
[137]
permitidas as Escolas de ler e de escrever, da arte de
ensinar os livros de conta e razaõ, e tudo o mais que
se ensinasse nas Escolas de ler e de escrever establecidas
no Reyno.
Naõ he deste lugar alongarme mais no que pertence
ás Colonias; bastame o referido, para mostrar a necessidade
que tem Portugal de fundaremse nelle Pensoens
ou Escolas collegiadas, onde possaõ vir aprender Latim
e Humanidades aquelles nacidos nas Ilhas, e nos Continentes
dos Dominios de Ultramar.
Prohibemse as Escolas do Latim, etc., nas Colonias,
para evitar o summo prejuizo que causa ao Reyno, que
nellas os Subditos nativos possão adquirir honras, e tal
estado que sayaõ da classe dos Lavradores, Mercadores,
e Officiaes. Porque todas as honras, cargos e empregos
deviaõ sair somente da auctoridade e da
Jurisdiçaõ
do Soberano, para ficar dependente a dita Colonia
da Capital: mas nenhum methodo mais effectivo
para este fim, do que criarse a Mocidade dos Dominios
de Ultramar no Reyno: e considerando o Estado a
summa utilidade deste intento, havia de establecer todos
os meyos em Lisboa, no Porto e em outros lugares a
roda, onde pudessem vir aprender tudo o necessario,
para entrar no Estado Ecclesiastico, e matricularemse
nas Universidades Reais.
Se nos referidos lugares se estabelecessem
Pensoens,
para aprender Latim, etc., naõ tinhaõ
razaõ de se queyxarem
os habitantes dos Dominios de Ultramar, que
ficavaõ excluidos seos filhos da
Educaçaõ ingenua,
porque lhes ficava a porta aberta para sobirem aos
cargos honrosos de todo o Reyno.
[138]
O Estado ganharia a circulaçaõ do dinheyro das
Colonias para a Capital, e taõbem a
circulaçaõ dos
Subditos; porque muitos nacidos em Ultramar educados
assim no Reyno se estableceriaõ nelle, mandariaõ
vir
as suas riquezas; e nestas mudanças ganharia sempre
a agricultura e o commercio: se voltassem para a sua
Colonia natal, sempre conservaria mayor amor para o
lugar onde foi criado; por esta circulação se
augmentaria
o amor dos povos para a sua patria, e principalmente
se outras instituiçoens, que não são
deste lugar,
se entroduzissem no Governo dos ditos Dominios,
incluindo nelles todas as Ilhas.
Temos visto o bem que resultaria ao Reyno, determinandose
hum certo numero de Escolas, para aprender
a ler e a escrever, como taõbem para aprender a Lingoa
Latina: temos visto que neste cazo saõ necessarias
estas Escolas com
Pensoens, para
serem sustentados e
educados aquelles discipulos que quizerem aprender a
sua custa. De que modo deviaõ ser governadas estas
Pensoens, quem havia de ter
incumbencia dentro dellas,
da economia, ensino, não he deste lugar.
§.
Das tres Classes de Discipulos das Escolas Latinas,
etc.
Todos aquelles que querem em Portugal aprender a
Lingoa Latina, a Philosophia, estudar os Canones, a
Jurispr
Todos aquelles que querem em Portugal aprender a
Lingoa Latina, a Philosophia, estudar os Canones, a
Jurisprudencia e a Medicina, o podem fazer sem o
menor obstaculo: todos estes Estudantes saõ tidos e
havidos por Subditos do Estado; e a Igreja naõ lhes
[139]
refuza os Santos Sacramentos. Mas esta liberdade he
cauza da destruição e
desolação de muitas familias
honradas; he causa da mais inintelligivel
contradição
entre a Igreja e entre o Estado: ponhamos dois Estudantes,
por exemplo, seculares, hum matriculado em
Leys, e outro em Medicina, e sigamolos nos seos estudos;
taõbem e depois que tomarem os seos gráos na
universidade.
O estudante Legista já formado chega a sua terra,
que supporemos será hũa villa com Juis
de fora, ou
cabeça de comarca, e pretende ser letrado da Camara:
ordinariamente tem por despacho, que tire primeyro as
suas Inquiriçoens de limpeza de
Sangue, e que será
deferido: se este Bacharel em Leys, ou Licenciado não
se determinou a advogar, e quis ler no Dezembargo do
Paço, para seguir as varas, he obrigado em primeiro
lugar tirar as suas
Inquiriçoens, e
presentalas juntamente
com o seu requerimento.
Mas se o mesmo Bacharel em Leys não quis seguir
o exercicio da sciencia que aprendeo, nem na Advocacia,
nem na Magistratura, e quis somente ser Cavalheyro
do habito de algũa Ordem Militar, ou pelos
serviços de
seus antepassados, ou pelo seu nacimento nobre, he
obrigado pela meza da consciencia presentar as suas
Inquiriçoens, juntamente
com o seu requirimento.
Sigamos agora o Estudante Medico: este no primeiro
ou no segundo anno dos seos Estudos, se quer opporse
a aquelles partidos que dá a Universidade aos Estudantes
benemeritos, he necessario que tire as suas inquiriçoens,
e que os prezente com o seu requirimento
á Universidade. Supponhamos este Estudante já
formado
[140]
em Medicina, que chega á sua terra, onde ha
partido da Camara, de que goza hum XN Medico:
neste caso o novo Medico se tirar as suas
inquirições
de limpeza de sangue, alcançará o partido que
pretende;
e o Medico que naõ pode tirar Inquiriçoens limpas
fica
rejeitado delle, ainda que servisse a dita Camara por
quarenta annos. Ja se vé que este Medico rejeitado
naõ pode ter cargo honroso; como ser Medico de hum
Hospital famoso; ser familiar do Santo Officio, nem
ser de nenhuma ordem Militar, nem mesmo ser Terceyro
do Habito de San Francisco.
Todo o referido he a constante pratica em Portugal;
este Legista e este Medico formados, até o tempo que
quizeraõ ter algum cargo honroso ou proveitozo,
eraõ
conhecidos pelo Estado, como bons e como fieis Subditos;
tiveraõ nelle toda a proteçaõ; e
estão condecorados
com as honras dos gráos da Universidade: por
todo o tempo dos seos Estudos e depois de formados,
a Igreja os conheceo, e teve por verdadeyros Christaõs,
a quem nunca refuzou os Sacramentos.
Porque cauza logo se refuzaraõ os cargos e honras
do Estado a estes dois
Licenciados
em Jurisprudencia
e Medicina? Que crime cometeraõ? Se o cometeraõ?
porque naõ foraõ castigados pela Igreja e pelo
Estado?
Neste modo de proceder andaõ incoherentes tanto o
Tribunal secular, como o Ecclesiastico. Se estes Estudantes
saõ indignos de honras, porque os decorou a
Universidade com os seos gráos? porque consente o
Estado, que os Letrados, sem terem Inquiriçoens de
Sangue, advoguem publicamente, defendendo e acuzando
a honra, os bens, e a vida dos Subditos? Porque consente
[141]que semelhantes
Medicos tenhaõ as vidas e a
honra dos seus Subditos no seu poder. Porque razaõ
a Igreja da fé ás suas attestaçoens
que os seos enfermos
podem comer carne na quaresma? e ao mesmo tempo
o Estado e a Igreja tem estes Cidadoens e Christaõs
por indignos de exercitar cargos honrosos, e entrar no
Estado Ecclesiastico.
Para evitar tantos absurdos seria indispensavel determinar
o Concelho da Educaçaõ da Mocidade,
«que todo
aquelle que quizesse aprender Latim, que fosse obrigado
trazer hũa certidaõ de
vita
&
moribus, com outra semelhante
de seos Pays firmada pelo Vereador mais
velho, ou juiz de Fora, taõbem pelo seu Parrocho, sem
as quais certidoens não seria permitido a ninguem de
se matricular n'estas Escolas Reais».
Acabados os Estados destes Estudantes, a cada hum
se daria hũa attestaçaõ
authentica do que
estudou e que
louvores mereceo nos estudos que fez, da qual ficaria
o original no Cartorio: sem esta attestaçaõ
nenhum estudante
poderia ser matriculado na Universidade nem
em nenhum dos Estudos que chamaõ mayores; e com
a mesma attestaçaõ poderiaõ pretender
a todos os
cargos, honras, e dignidades a que os conduzem os seos
estudos, tanto Seculares, como Ecclesiasticos, sem outro
acto algum com titulo de Inquiriçoens de Sangue, Limpeza
de Sangue, ou outra qualquer invençaõ
disturbadora
e destruidora do Estado.
E naõ creyo que haverá homem sensato que tema
por esta providencia que se introduza a
superstiçaõ
judaica (porque naõ ha outro Judaïsmo em Portugal)
ou o mahometismo: porque he evidentissimo que nenhum
[142]
Juiz ou
Magistrado, nenhum Parrocho, nem vigario
daraõ jamais a hum menino attestaçaõ
de
vita &
moribus, e de seos Pays, se estes forem tidos e
havidos
por
Christaõs novos, ou
algum delles tivesse estado na
Inquiziçaõ; e deste modo ficariaõ
excluidos de aprender
nestas Escolas todos os filhos dos Christaõs novos; e
estes se acabariaõ deste modo, e muita parte do Reyno
recobraria a honra de ser Christaõ Velho,
que
tinhaõ
perdidõ pelas Inquiriçoens, e invento diabolico
forjado
em Castella por João Martins Silicius, Arçobispo
de
Toledo
[68].
§.
Continûa a mesma Materia
Para que estas Escolas sejaõ permanentes, e que as
despezas que com ellas fizer o Estado sejaõ recompensadas
com utilidade publica e gloria da Monarchia,
devese considerar logo na sua fundaçaõ, se
habitariaõ
[143]
os Mestres com suas familias porque necessariamente
haviaõ de ser cazados) e hum certo numero de estudantes,
no numero de
quinze até
vinte, sustentados e
mantidos a Custa Real, como filhos adoptivos do Estado?
E bem se poderá considerar que para adquirir
hũa adopçaõ taõ
Illustre, que
deviaõ ser bem examinados
na capacidade, e no talento; e que se naõ aproveitassem,
o que se veria por cada exame annual, que
seria rejeitado, conforme as
Instruçoens, e o
Alvará de
Sua Majestade.
A destinaçaõ destes Estudantes internos seria
para
serem Mestres nas Escolas onde faltassem: seria para
passarem a estudar a Jurisprudencia, a Phisica, as Mathematicas,
e a Medicina: e ultimamente para viajarem
pela Europa, e informandose e aprendendo conforme as
instruçoens impressas, ás quais cada hum delles
devia
conformarse.
A necessidade que tem o Estado destes Estudantes
internos, educados do modo proposto, e destinados para
perpetuar as sciencias humanas na sua patria, he evidentissima
a todo aquelle que conhece a difficuldade de
adquirir estas sciencias á sua custa.
Não bastará o ensino de Portugal, ainda que
tenhaõ
os mais perfeitos Mestres, para ensinar e governar estas
Escolas. Seria necessario que viajassem por quatro ou
cinco ann
Não bastará o ensino de Portugal, ainda que
tenhaõ
os mais perfeitos Mestres, para ensinar e governar estas
Escolas. Seria necessario que viajassem por quatro ou
cinco annos, pelos Potentados onde se ensinaõ as
sciencias humanas. He certo que só em Hollanda,
Alemanha, Inglaterra e França existem hoje as humanidades,
o perfeito conhecimento das Lingoas doutas, a
Sciencia da Physica geral, as Mathematicas, a Jurisprudencia
universal, a Philosophia e a Medicina, e que
[144]
só nas suas Escolas e Universidades se tem achado o
melhor methodo de aprender e de ensinar estas sciencias.
Tanto que houvesse o numero de quatro ou cinco
Discipulos internos das mais capazes destas Escolas
Reais, o Director dos Estudos lhes daria a cada hum
sua instrucçaõ impressa para continuar os seos
Estudos
nas Universidades da Europa, principalmente nas seguintes:
Edimburgo em Escocia, Utrecht e Leyde em
Hollanda, Gottingue e Leypsic em Alemanha, e Strasburgo
e Paris em França: nas quais deviaõ notar de
que modo se governaõ, de que modo ensinaõ os
Professores,
de que modo aprendem os Discipulos, por
quantos annos estudaõ, e como fazem os seus actos.
Cada hum destes Estudantes havia de corresponder-se
com hum Mestre das Escolas Reais a quem mandaria
o jornal das suas observaçoens, e a conta dos seos Estudos;
deste modo pela practica, e pelo estudo, viriaõ
a ser homens consumados para ensinar e para governar
as Escolas; tanto que estes primeyros quatro ou cinco
Estudantes tivessem viajado por quatro ou cinco annos,
voltariaõ para Portugal, e outros seriaõ mandados
em
seu lugar, para que sempre e sem intermissaõ houvesse
fora no mesmo emprego quatro ou cinco destes discipulos.
Já fica evidente que deste modo naõ
poderiaõ
jamais ficarem dittas Escolas sem Mestres dignos de
taõ excellente instruçaõ.
O resto destes discipulos internos, acabados os seos
Estudos, deveriaõ passar a viver nos Collegios onde se
ensinaraõ as Sciencias, ou Estudos Mayores, que indicaremos
abaixo; nestes mesmos seriaõ educados e sustentados
á Custa Real, naõ só par
O resto destes discipulos internos, acabados os seos
Estudos, deveriaõ passar a viver nos Collegios onde se
ensinaraõ as Sciencias, ou Estudos Mayores, que indicaremos
abaixo; nestes mesmos seriaõ educados e sustentados
á Custa Real, naõ só para virem a ser
Mestres
[145]
dos mesmos Estudos, mas taõbem para servirem o
publico.
A
segunda sorte de Discipulos de que
se devia compor
esta Escola Real, seria
Pensionarios, ou Porcionistas.
Mostramos assima a necessidade que tem o Reyno
desta instituição das
Pensoens tanto nas Escolas de
escrever e ler, mas taõbem nas do Latim; necessidade
indispensavel, se se prohibirem as Escolas nas Aldeas,
e nos piquenos lugares ou villas, e taõbem aquellas da
Grammatica e do Latim em todos os Dominios de Ultramar.
Esta Educaçaõ dos Collegios he utilissima
á
Mocidade, e por consequencia a sua patria: ali perdem
aquelle mimo e regalo que tem ordinariamente na caza
de seos Pays; adquirem pelo trato e communicaçaõ
dos
condiscipulos mayores conhecimentos da vida civil; estando
sempre guardados e observados pelos seos Mestres
e Inspectores, naõ se estragaõ com vicios;
adquirem
hum animo de patriotismo, e se consideraõ pertencerem
ao Estado: o animo he mais elevado, o trato civil mais
livre e facil pelo costume de estarem sempre em grande
Sociedade. Por estas vantagens de que carece hoje a
Mocidade Portugueza, devia o Director dos Estudos
pôr todo o disvelo de introduzir no Reyno estas pensoens
cada qual a sua custa, que todos louvariaõ, principalmente,
se o Estado augmentasse mais Cargos Civis
do que hoje tem, para serem servidos por estes Pensionarios,
e como esta materia requer mayor evidencia,
della fallaremos em outro lugar aqui abayxo.
[146]
§.
Digressam sobre as
Pensoens e sobre a Lingoa Latina
tanto no Reyno, como nas Colonias
Para que todos conheçaõ a impossibilidade de
estabeleceremse
Pensoens de Escolas de ler e
escrever, e
aquellas propostas das Escolas do Latim, ouçamos
fallar na sua Aldea hum Lavrador honrado, sobre esta
ley que prohibio as Escolas nas povoaçoens limitadas.
Queyxarse hia este ao seu Cura do modo seguinte:
«Ora que farei eu com esses dois rapazes que tenho?
querem por força fazernos tontos, e que naõ
saibamos
fazer mais que hũa crus no fim do Testamento.
Deytáraõ
fora da nossa Aldea o Mestre que ensinava os
Meninos, e nos fazem saber por hum edital, que na
Villa daqui tres legoas poderemos lá mandar aprender
os rapazes a ler e a escrever, e outras muitas couzas
da moda; e viviraõ em pensaõ em casa do Mestre, a
condiçaõ que lhe paguem por cada Menino trinta
mil
réis por anno, e a metade adiantado. Mas quem me
dará tanto dinheyro, para fazer estes gastos? Recolhi
quinhentos sacos de trigo e centeyo,
e Deos sabe onde
elles vão; paguei ao Ferreyro pelo concerto das relhas
pedoas e roçadouras
quarenta
sacos; ao Barbeyro paguei
des; ao çapateiro paguei
vinte; ao Mayoral e aos
Mossos paguei
cincoenta; como me
morreraõ
dois bois
e a
minha egoa, foi necessario
gastar cem sacos de
trigo que dei por estes animaes; he necessario guardar
para semear, e sustentar a caza com aquelles que me
ficaõ, e naõ tenho nem para vender, nem dar a
esse
[147]
Senhor Mestre de ler que vive na Villa, porque diz que
naõ aceita mais que dinheyro, e naõ
está pelo acordo
do Mestre que tinhamos aqui a quem davamos por ensinar
cada rapas hum saco de centeyo.»
Quis assim dar a entender que os alimentos em Portugal
servem de dinheyro, e que naõ saõ mercancia:
quis mostrar que naõ poderá subsistir jamais o
Estado
Civil em quanto nelle naõ estiver em vigor aquella Ley,
que se fassa comercio com os alimentos, como se faz
com os panos, com as baetas, e outras mercancias;
porque as Leis das nossas Ordenaçoens, e o errado
das nossas Alfandegas, saõ a cauza d'estas desordens.
No livro quinto das Ordenaçoens, tit. 76 e 77 se leem
Leis contrarias ao augmento da Agricultura e á
circulaçaõ
que deve continuar no Estado Civil: ali se defende
que pessoa alguma compre trigo, farinha, centeyo, cevada,
nem milho para tornar a vender... Que ninguem
atravesse o pão que de fora do Reyno vier, e que
só
quem o trouxer o possa vender; que todos os que trouxerem
pão de Castella o possaõ vender livremente onde
quizerem; o mesmo se determina ali com o vinho e
azeite para revender. Pela practica constante, e contraria
totalmente a estas Leis, que tem hoje Inglaterra
e França, se vé que naõ
poderá jamais Portugal ter
agricultura em quanto se observarem; como taõbem
em quanto os Almotaceis
[69]
almotaçarem os frutos, as
sementes, o peyxe do Reyno, e as carnes: só hum bem
tem estas almotaçarias, que he almotaçarem o
bacalhao,
e o peyxe salgado dos estrangeyros: deste modo fazem
[148]
que nos naõ levem mais de dois milhoens por anno,
como se as costas dos nossos mares naõ tivessem peyxe.
De tudo o referido se ve que os Lavradores naõ tem,
nem podem ter dinheyro, nem os Ferreyros, Barbeyros,
Medicos das Provincias, Lettrados, Officios, e outros
Cargos: porque todos saõ pagos com os frutos, que
servem de dinheyro; havendo de servir em boa politica
de mercancia, com tanta liberdade de compralos e de
vendelos, como se faz com tudo o que he fabricado no
Reyno. Em quanto as rendas das terras se pagarem
em fructos, e naõ em dinheyro, o que havia de ser
posto por Ley; em quanto se permittir entrem trigos
de fora do Reyno por mar e terra sem pagar Direito
algum, ou sem fazer Selleyros destes graõs estrangeyros
para se venderem somente na falta do trigo nacional;
prohibindo a todo o Estrangeyro de vender o seu trigo
mais que ao Director do Selleyro daquelle porto, sempre
haverá miseria no lavrador, e naõ terá
dinheyro, nem
para educar seos filhos nem para augmentar a sua lavoura.
Esta introducçaõ de pagarem os Lavradores, os
Rendeyros
e os Senhores de terras as suas dividas com os
frutos, he antiquissima no Reyno; mas isso mesmo
prova que o povo era entaõ escravo do Senhor da terra:
prova que naõ havia agricultura, que para satisfazer a
necessidade; prova taõbem que naõ havia comercio;
daqui vieraõ aquelles perniciozos costumes da mayor
parte das terras dadas a foro, que se pagaõ em sementes,
em galinhas, em ovos, em porcos, em prezuntos
e em gado miudo e em vacum. Ainda muitos Commendadores
arrendaõ as suas commendas, com as clausulas
[149]
expressas de serem pagos em parte com alimentos
e com provisoens. Muitos Conventos, Hospitais pagaõ
com frutos e com porçoens alimenticias; o que tudo
devia ser reduzido a dinheyro e obrigar por este modo
ao Lavrador vender nas praças publicas os frutos
da sua agricultura. Naõ he necessaria
almotaçaria,
porque havendo muitos que vendem no mesmo lugar,
o concurso de tantos vendedores regra o preço do
que vendem: deste modo se promove a circulaçaõ;
o Lavrador sempre tem que vender; tem com que
sustente a sua familia e educala, com que compre
animais, para augmentar a sua lavoura; ou das terras
incultas, fazelas ferteis.
He natural a todo Pay de familias pensar a establecer
seos filhos naquelle estado que lhe sirva para passar a
vida com honra, com proveito e com descanzo. Hum
Pay em Portugal que tem tres filhos, homem ordinario,
mas cidadaõ, official por exemplo, ou que tem cem
mil reis de renda da sua vinha, olival e jardim, ve-se
na mayor preplexidade, se se achar nas circumstancias
seguintes: primeyramente se vive em alguma villa de
Provincia; 2.º Se naõ podem tirar seos filhos as
suas
Inquiriçoens limpas; 3.º Se saõ
taõ
estupidos ou extravagantes,
que jamais aprenderaõ Latim. Estes rapazes
seriaõ somente capazes de aprender hum officio mechanico;
mas o Pay vendo que naõ será bastante
para adquirir o seu sustento; vendo o estado abatido
e desprezado dos officiaes, a miseria em que vivem,
jamais se determina senaõ na ultima necessidade, a
fazer aprender seos filhos algum officio: porque naõ
havendo comercio interno algum em Portugal, nem com
[150]
os frutos, nem com as fabricas, os officios mechanicos
e todas as artes, ficaõ no mayor abatimento e miseria.
Mas se estes rapazes podessem tirar as suas Inquiriçoens,
que faria todo o pay naquellas circunstancias?
he natural que dissesse, que aprendaõ Latim; se
naõ
forem Clerigos, seraõ Frades; se aprenderem mal,
tenho amigos que se empenham para entrarem na
Ordem dos Capuchos; e se naõ aprenderem cousa alguma,
serão Frades Leygos, ou Donatos: teraõ que
comer, e ficará a minha caza honrada com estes Religiozos.
Deste modo todos vaõ aprender Latim, porque o
Latim he o passaporte para entrarem no Paraizo terrestre,
onde se come sem trabalhar, onde ha tantos establecimentos
em cada Villa e Aldeas, como saõ os
Conventos e Capellas, faltando ás vezes as Parrhochias.
Logo a cauza porque a mayor parte da Naçaõ
aprende
o Latim, provem porque no Reyno ha poucos establecimentos
para ganhar a vida; faltaõ muitos Cargos publicos
que puderamos ter, se tivessemos commercio interior,
e a agricultura como commercio, e como base
do commercio; provem que o Soldado, o General, o
Juis de Fora, e o Dezembargador naõ somente he pago
em sua vida, mas ainda depois de morto, o Estado recompensa
mais grandiozamente; os filhos destes Soldados
e Magistrados, e outros que serviraõ a patria,
requerem tenças, honras, commendas, officios de
escrivaõ
da Camara, dos Orfaõs, das Alfandegas a perpetuidade
(ás vezes) pelos serviços de seos Pays, como
se jamais fossem pagos, ou recompensados em quanto
[151]
serviraõ; o que he certo, que o Estado defere ás
pretençoens
e supplicas
destes filhos e
herdeyros.
Daqui vem o ocio, e o querer viver á Cavalheyra;
porque muitos destes premiados ficaõ Cavalheyros das
Ordens Militares. Daqui vem tanta gente inutil, que
se naõ foraõ aquellas recompensas,
serviriaõ como seos
Pais ou aprenderiaõ hum emprego, ou officio. Deste
modo o Reyno em lugar de ter na sua maõ aquella
clemencia de fazer trabalhar e agenciar os Subditos,
só tem para promover o torpe ocio, a vaidade e a
dissoluçaõ.
Isto he o que confirma o principio assima:
«Que das boas ou más Leis de um Reyno dependem
os bons ou maos costumes delle; e que todos os Sermoens,
Missoens, Novenas, Vias Sacras, Romarias,
Irmandades e Confrarias saõ inuteis para fazer bons
Christaõs e bons Cidadoens, em quanto existirem as
mesmas Leis Politicas e Civis no mesmo Reyno».
Como em Portugal ha tantos establecimentos no Estado
Ecclesiastico, onde residem a honra, e a subsistencia,
e que o Latim he a porta para entrar nelles, he
natural que todos queyraõ aprender esta Lingoa. Como
os premios se daõ a quem naõ servio o Estado, e
só
aos Herdeyros que naõ fizeraõ serviço
algum, daqui
vem o odio, e o desprezo para o trabalho, e para a
industria. Se o Estado naõ puzer por alvo a honra e
a conveniencia em outro lugar que no Ecclesiastico e
na Nobreza, todos os plebeos quereraõ ser Ecclesiasticos
ou Nobres. Dispenda o Estado a instituir Cargos
para promover a agricultura como commercio e a industria;
occupe os Soldados com dobre e triple paga
a fazer caminhos de carros; mande desentupir as fozes
[152]
dos rios que entraõ do mar, para se desalagarem os
campos convertidos em alagoas, atoleyros e paûles;
logo seraõ necessarios Architectos, Engenheyros,
Machinistas,
Contadores, Inspectores, Escrivaens e Secretarios,
e outro grande numero de gente empregada
nestas obras para haver Comercio interior e agricultura;
sem ellas naõ he possivel que haja industria, nem trabalho
no Reyno.
§.
Da terceyra Classe de Estudantes que aprenderia
nas Escolas Reais a Lingua Latina, Grega, etc.
Pois que em Portugal está introduzido que os Meninos
e rapazes sayaõ todos os dias da casa de seos
Pays ir aprender nas Escolas publicas ler, e escrever,
e o Latim, seria mui censurada a resolução de
prohibir
esta sorte de Discipulos e Estudantes. Admirome por
tanto do Santo zelo e fervor, que tantos bons e pios
Ecclesiasticos mostráraõ para promover a
Santidade
dos bons Costumes, que naõ reparassem atégora na
origem de tanto vicio e dissolução da Mocidade
Portugueza,
para dar-lhe o remedio mais efficas! He impossivel
que naõ estejaõ persuadidos que nas Escolas
publicas aprendem muita ruimdade e maldade: a sua
propria experiencia os convenceria. Disgraçadamente
quem poderá remedear este dano naõ foi educado
nas
Escolas publicas: porque a primeira Nobreza e a Fidalguia
todos daõ Mestres particulares a seos filhos,
que aprendem em caza dos Pays; e naõ podem jamais
vir no conhecimento da destruição dos bons
costumes,
[153]
que se adquire em quanto os Meninos e os Rapazes frequentaõ
as Escolas do modo referido.
Sahindo cada dia de caza duas vezes tem occazião
estes Estudantes de se communicarem, e de aprenderem
todos os maos costumes do povo, e queyra Deos
que naõ aprendaõ taõbem os vicios; o
certo é que
naquella liberdade em que vaõ á Escola, e
voltaõ para
suas cazas, adquirem desobediencia, perguiça,
rudéz e
obstinaçaõ que observaõ nelles os
Mestres, talves faltando
ás classes por sua culpa, talves desculpandose
com mil mentiras por semelhantes faltas.
Se fosse possivel que todos os Estudantes das Escolas
Reais vivessem em clauzura, seria o melhor methodo
de receber aquella tenra idade a melhor educaçaõ
possivel: as ventagens que tem esta educaçaõ em
commum
direi adiante, quando tratar da Escola Militar.
§.
Dos Estudos Mayores, ou Collegios
Reais
Dilateyme mais tempo nas observaçoens sobre as
Escolas Reais, por me parecer necessario dar a conhecer
os inconvenientes que impediriaõ a sua utilidade, e
algum methodo para evitalos. He certo que o fim ordinario
destas Escolas do Latim, tem ordinariamente
por objecto estudar as Sciencias e exercitalas para
utilizar o Estado: vejamos primeyramente que necessidade
tem dellas, e as que devem aprender aquelles
subditos destinados a servir a sua Patria.
Pareceme que todas as Sciencias de que necessita
[154]
hum Reyno christaõ nos nossos tempos se podiaõ
ensinar
em trez Escolas.
Na
primeyra. Toda a Historia da
Natureza Universal,
da Natureza humana; as produçoens que resultaõ
da combinaçaõ de varios Corpos; as suas
propriedades
e virtudes; e a applicaçaõ dellas para uzo e
utilidade
da vida humana, e vida civil.
Nesta Escola se ensinaria a Historia natural, a Botanica,
a Anatomia, a Chimica, a Metallurgia, e a Medecina
com todas as suas partes. Mas como sou obrigado
escrever do methodo de ensinar e aprender a
Medecina, então he que tratarei mais particularmente
desta Escola.
Na segunda Escola. Todos os
conhecimentos que
necessita o Estado Politico e Civil para governarse e
conservarse, e viverem os subditos naquella felicidade
a que pode conduzir a intelligencia humana.
Nesta se ensinaria a Historia Universal, Profana e
Sagrada; a Philosophia Moral, o Direito das Gentes, o
Direito Civil, as Leis Patrias: a economia civil, que se
reduz ao Governo interior de cada Estado.
Na terceyra Escola. Todas as couzas
que pertencem
á Sagrada Religiaõ e ao seu exercicio.
Mas como só os Ecclesiasticos devem ensinar, e
aprender estas Divinas Sciencias, não me pertence a
mim indicar o que nellas se devia aprender.
Na Universidade de Coimbra se ensina a Theologia,
o Direito Canonico, a Jurisprudencia e a Medecina,
que compoem as
quatro Faculdades; e
na verdade que
este ensino ainda que com
vinte e quatro
Lentes, e
muitos Conductarios, não he suffuciente para se educarem
[155]
os Subditos,
de que tem necessidade o Reyno;
porque nestas quatro Faculdades não entra a Sciencia
Natural, que indicamos assima na primeira Escola.
Porque a Faculdade de Medecina que existe em Coimbra
he insufficiente para aprender o que necessita o Naturalista,
o Physico, o Chimico, o Medico e o Anatomista.
A Jurisprudencia, e o Direito Canonico que se ensinaõ
actualmente na nossa Universidade, naõ saõ
bastantes
para formar Conselheyros de Estado, Secretarios
de Estado, Embayxadores, Generais, Almirantes, etc.
Necessita o Estado d'esta sorte de Cargos, servidos por
Subditos que aprendessem o que indiquei assima na
segunda Escola Mayor.
Com esta clareza o Director dos Estudos poderia representar
a S. Magestade, que como as sciencias que
se ensinavaõ na Universidade de Coimbra eraõ
insufficientes
para a Educaçaõ da Mocidade, destinada a
servir o Estado, que necessariamente devia ser reformada;
e que deyxava á disposiçaõ de S.
Magestade a
execuçaõ da proposta seguinte.
Que a Faculdade de Theologia, e o Direito Canonico,
sendo Sciencias Ecclesiasticas, e que somente os Ecclesiasticos
as seguiaõ e as ensinavaõ, deviaõ ser
separadas
das sciencias humanas, especificadas aqui assima na
primeyra e na segunda Escola Mayor; que só aos
Bispos pertencia governar estas Sciencias Sagradas, e
que a elles ficaria toda a incumbencia de conservar
estes Estudos.
Que S. Magestade lhes determinaria hũa Cidade do
Reyno, por exemplo Evora, Lisboa, Coimbra, ou Braga,
[156]
para establecerem ali a Universidade Ecclesiastica, restricta
somente a ensinar as duas Faculdades de Theologia,
e do Direito Canonico. Onde nenhũa
concluzaõ,
livro, nem escrito, ou decisão daquellas duas Faculdades,
sahiriaõ a publico, sem approvação de
dois Fiscais Seculares
auctorizados por S. Magestade a reverem, e a
approvarem tudo o que se imprimiria, ou se decretaria
naquella Universidade, para que nella se naõ ensinasse
maxima algũa contra as Leis do Estado; e que estes
dois Fiscais seriaõ os primeiros perante os quais fossem
prezentados os Escritos que se haviaõ de imprimir, e
que somente com sua approvaçaõ
poderiaõ passar a ser
revistos pelos Censores, Qualificadores, ou Vigarios
Gerais dos Bispos e da Inquizição. O Conservador,
ou Fiscal que S. Magestade tem em Coimbra para a
inspecçaõ que se não
imprimaõ concluzoens, ou outros
quaisquer actos contra as Leys do Reyno, vem inutil e
de nenhum exercicio. Por hum abuzo ininteligivel tudo
aquillo que se imprime em Coimbra o primeiro Tribunal,
onde se pede a licença para imprimir-se, he no do
Santo Officio, tanto que as concluzoens, por exemplo,
ou outro qualquer acto, ou livro saye com as licencias
deste Tribunal; vai entaõ diante do Conservador assima
ou Fiscal; este vendo as Licenças da
Inquiziçaõ firma
e consente que se imprima tudo. Este mesmo abuzo
se practica em Lisboa: quem tivesse que imprimir
algum escrito devia em primeiro lugar supplicar ao
Dezembargo do Paço, como ao primeiro Tribunal do
Reyno, que julgaria se contem algũa
proposição
contra
a authoridade Real; depois devia o Autor do livro
supplicar ao Ordinario, o qual julgaria se havia nelles
[157]
couza contra a Religiaõ e bons Costumes, que he a
quem toca de direito esta materia; e em ultimo lugar
(pois que assim o quizeraõ os Bispos) iria á
Inquisiçaõ,
a quem toca somente inquirir da heresia. Este he o
methodo natural e juridico; em lugar que hoje pela
confuzaõ das jurisdiçoens tudo he pelo contrario.
Que havendo tantos Cabidos e Collegiadas, e tantas
Abbadias das Ordens Monasticas dotadas com tantas
rendas que podiaõ parte destas servir a manter estas
duas Faculdades, com tanta mais razão, porque só
os
Sacerdotes Seculares e os Frades ensinariaõ e
estudariaõ
nesta Universidade.
Que S. Magestade a imitaçaõ de Frederico Segundo
Emperador e Rey de Napoles, e Francisco Primeyro,
Rey de França, poderia, sem
intervençaõ alguã da
Corte de Roma, fundar as duas Escolas Mayores, ou
Collegios Reais: a primeyra para se ensinar tudo o que
pertence á natureza universal e humana, e a segunda
para se ensinar tudo o que pertence ao Governo da
Monarchia.
Na consideraçaõ que as nossas
Ordenaçoens deviaõ
ser reformadas, he que insisto que a Theologia e o
Direito Canonico fique unicamente no poder dos Ecclesiasticos,
e que somente estes deviaõ aprender estas
duas Faculdades; mas no cazo que naõ se reformem,
naõ necessitaõ ainda os Seculares tomar
gráo algum na
Faculdade de Canones, porque os Seculares que estudarem
na Universidade Real proposta, as Leis Civis
e as Leis Patrias, por si mesmo se poderaõ instruir do
Direito Canonico, como dos Concilios, e da Historia
Ecclesiastica; e como nas Universidades actuais nenhum
[158]
Secular nem Ecclesiastico toma gráo na Historia
Ecclesiastica,
ou na dos Concilios, assim he couza superflua
que os Seculares conheçaõ tal Faculdade chamada
Canones,
no cazo que os Ecclesiasticos quizessem conservar
aquelles uzos actuais tomando gráos de Doutor em
Canones com capello verde, seriaõ os arbitros, com
tanto que fosse á custa das suas rendas.
Aquellas pessoas a quem S. Magestade cometteria
reformar as nossas Ordenaçoens, necessariamente
deviaõ
ter estado alguns annos em França, e principalmente
em Turim; para verem e aprenderem as Leis
destes Reynos, e que poder e auctoridade tem o Direito
Canonico nelles; porque naõ he possivel os nossos
Jurisconsultos,
ainda que doutissimos, sendo educados na
Universidade de Coimbra, possaõ julgar nesta materia.
Que estes dois Collegios ou Escolas ficariaõ establecidas
no lugar que parecesse o mais conveniente a sua
destinaçaõ; que naõ deviaõ
ficar na mesma cidade,
onde ficassse a Universidade de Theologia e Direito
Canonico, por evitar muitas contendas que se levantariaõ
indispensavelmente pelo concurso dos Estudos
Ecclesiasticos e Seculares, regrados taõ differentemente.
As rendas e os emolumentos da Universidade de
Coimbra saõ taõ consideraveis, que
ficaõ cada anno
em deposito muitos mil cruzados. Se forem administradas
com intelligencia e integridade, se a agricultura
se augmentar, e se se der a providencia que se sustente
o Reyno unicamente das suas produçoens, seraõ
muito
mais consideraveis, e seraõ bastantes não somente
as
duas Escolas Mayores, mas de conservalas com o mayor
lustre, e igual utilidade do Reyno.
[159]
Bem se poderaõ prever os obstaculos que opporaõ
os Ecclesiasticos com a Corte de Roma, que estes bens
da Universidade actual, sendo pela mayor parte Ecclesiasticos,
que naõ poderaõ ser applicados a fundar e
manter Collegios Seculares, onde os Lentes serão
forçosamente
cazados. Mas como ja os Papas permitiraõ
que a Faculdade de Medicina fosse sustentada com os
mesmos bens, naõ obstante ser toda secular, bem
poderaõ
as mais sciencias gozar da mesma approvaçaõ e
consentimento: alem que sendo os bens Ecclesiasticos
destinados para sustentar e manter a Igreja, e os pobres,
e para educar a Mocidade, com tanta justiça, como
para resgatar os Escravos; e por final razaõ que a
conservaçaõ
do Estado he a principal Ley; e nenhuã couza
poderá conservar mais efficasmente do que a boa
Educaçaõ
da Mocidade.
Nestas duas Escolas Mayores ou Collegios, que daqui
por diante chamaremos o da
Physica e da
Legislaçam,
deviao viver os Lentes com suas familias, porque todos
deviaõ ser cazados, juntamente com
quinze
até vinte
Discipulos internos, ou mayor numero, conforme se
achassem os rendimentos, todos sustentados e entretidos
a custa Real; e acabados os seos Estudos, alguns
daquelles mais capazes deviaõ viajar, e ir aprender nas
mais celebres Universidades da Europa, com instruçoens
e occupaçaõ semelhantes a aquelles que insinuei
assima
quando fallei das Escolas Latinas; de tal modo que de
cada Escola Mayor estivesse sempre viajando e aprendendo
quatro de seos Discipulos.
Quando tratar do methodo de ensinar e de aprender
a Medecina, então entrarei na
obrigaçaõ e no exercicio
[160]
dos Lentes e dos Estudantes tanto internos como externos,
como dos seos gráos, ou Licença Real, para
exercitarem as Sciencias que aprenderaõ; e nessa
consideraçaõ
he que agora supprimirei o que parecia aqui
necessario.
§.
Sobre o ensino que deve preceder as Escolas Mayores,
quer dizer, da Physica e da Legislaçam
Parece necessario que fiquem informados todos
aquelles, que tiverem a Educaçaõ da Mocidade a
seu
cargo, daquelles estudos intermedios que precedem as
sciencias das escolas mayores. Atégora se ensinaõ
em
certos Collegios, e vinhaõ a ser aquella Philosophia
Barbara das Escolas, com o nome de Logica, Physica,
Metaphysica, nas quais perdiaõ o tempo de tres ou
quatro annos. Agora mostraremos quais devem ser
estes estudos.
De cinco modos illustramos o nosso entendimento, o
primeyro he pela
Observaçam, que he
aquella percepção
ou conhecimento das couzas que occorrem na vida ordinaria,
ou estas couzas sejaõ intellectuais, ou sejaõ das
pessoas, ou das couzas materiais, ou de nos mesmos.
O segundo he pela
Liçam;
pela qual illustramos o
nosso entendimento com que os nossos Mayores aprenderaõ
e experimentáraõ, como se nos valessemos das
riquezas que ajuntáraõ nossos antepassados.
O terceyro, pelo
Ensino dos Mestres
de viva vóz, e
naõ por postilas, nem themas, explicando o que deve
inculcar no animo dos discipulos, perguntando, orando,
[161]
ás vezes, e arguindo, não por sillogismos, mas em
forma do dialogo.
O quarto pela
Conversaçam, na qual
aprendemos o
que outros sabem: promovemos as forças do nosso
entendimento,
imitando sem nos apercebermos o judiciozo,
que ouvimos e que admiramos; e com agrado e amor
da Sociedade transformamos o nosso entendimento,
naquelle com quem tratamos.
O quinto pela
Meditaçam,
lendo, escrevendo ou meditando:
Neste ultimo se encerraõ todos os quatro
modos assima: e este ultimo he a chave de todos os
referidos: sem reflexaõ, sem hũa
attençaõ madura do
que sabemos, nenhũa acção
seria regular,
nenhũa operaçaõ
da alma seria sem defeito.
Deviamos cultivar a memoria naquella edade, quando
he mais vigorosa, pela observação, lectura,
ensino e
conversação. A historia seria o primeiro ensino:
e
como resulta hum particular gosto saber quando succedeo
tal cousa, e em que
lugar, d'aqui
vem necessidade
de estudar a
Geographia e a
Chronologia.
Mas esta historia não se ha de incluir a quantos Reis
teve hũa Monarchia; quantas vezes foi conquistada,
e
quantos Reynos conquistou. Na historia se incluem o
conhecimento das couzas naturais, que contem aquella
obra de Plinio Segundo: entramos em hum Cabinete
de Couzas Naturais: ali notamos o globo terrestre e o
celeste: ali notamos os systemas planetarios onde se
veem o sitio onde existe o sol, os planetas e a terra, o
lugar das estrellas fixas e o zodiaco; ali vemos de que
modo se movem e em que lugar os vemos; deste modo
com a explicaçaõ de um intelligente Mestre
terá o Menino
[162]hũa
idea clara, o que he a
Geographia e a
Astronomia.
Neste Cabinete vemos as Aves, os Peyxes, os Animais,
os Insectos, as Arvores, e as Plantas da Affrica,
da Asia e da America; e pela mesma separação
vamos
notando os Minerais, as Pedras, os marmores, as
Pedras preciosas, os Sais, os Bitumes, os Balsamos, e
as differentes terras e barros; esta he a
Historia
Natural,
e como he taõ natural saber para que servem
estas produçoens da
Natureza, o Mestre lhes
dirá as
propriedades e seu uso na Medicina e nas artes mechanicas
e liberais.
Lá em hum lugar separado e espaciozo, vé
hũa
Pompa pneumatica, hum Telescopio, hum Microscopio,
hum prisma, hum modelo de hum moinho de vento,
hum Relogio: mostra o Mestre o uzo destes instrumentos,
e de outros mais ou menos complicados; ali
adquirirá o Discipulo as primeiras idéas das
propriedades
dos Elementos, da
Optica, das
Mechanicas e da
Statica: a curiozidade que he
taõ natural á puericia
dotada de boa indole, o incitará a perguntar a cauza
d'aquelles effeitos, que ve obrar por aquelles instrumentos,
e ficará informado a não ter por milagres o
que são effeitos da natureza; ficará informado
daquelles
primeiros conhecimentos, que lhe serviraõ por toda a
vida em qualquer estado que a fortuna o puzer na Sociedade
Civil.
Mas naõ basta para a vida civil ter a memoria enriquecida
destes conhecimentos da Historia Sagrada,
Profana, Fabuloza e Natural; necessitamos para ser
exactos
pezarmos,
midirmos e
contarmos tudo aquillo
[163]
que temos adquirido pela
observaçam,
lectura e
ensino,
&. A
Arithmetica,
Algebra,
Geometria,
Trigonometria
plana, saõ necessarias para medirmos as
alturas, os
comprimentos, as
distancias e as
profundidades. Alem
desta utilidade, tem estas Sciencias outro bem necessario
á Mocidade: ellas costumaõ a serem attentivos e
exactos no que fazem, a naõ crer de leve, a ficar convencido
pela sua razaõ; instigaõ a seguir e indagar o
que he evidente, ou pelo menos certo, e a descansar,
quando se achou a verdade.
Falta ainda a este ensino aquella arte de
dizer e
representar,
por palavras, e pela escriptura, o
que queremos
que outros saibam, e fiquem persuadidos, tanto
pela arte de excitar as payxoens da alma, como pela
perspicuidade, elegancia e urbanidade do discurso.
Esta arte de saber dizer ensina a
Rhetorica em
Prosa; e em verso a
Poesia.
Duvidáraõ alguns Mestres
da Educação se a Poesia devia entrar no seu
ensino:
as razoens seguintes saõ em seu favor. Todos os
homens se determinaõ a afrontar os mayores perigos e
os mayores trabalhos, pela esperança, que tem de
descançarem
e viverem felizes: alem disso sem repouzo,
naõ pode haver trabalho, nem fadiga por muito tempo;
evitariaõ os homens muitas desgraças se no tempo
do
descanso, do repouzo e da tranquilidade, pudessem
viver consigo. Quem foi bem instruido na Mocidade,
na historia e na lectura dos bons Poetas, tem esta vantagem
sobre os homens ordinarios, que podem estar
sós, e divertirem-se sem companhia; porque
augmentaõ
a sua felicidade com o que pensão, ou com a lectura
em que foraõ educados; divertese a fantasia; o juizo
[164]
aproveita, e fortificase a virtude: e deste modo evitaõ
mil disgostos, mil desordens, que succedem no curso
da vida por naõ poder estar só hum instante, como
vemos fazem aquelles que naõ tiveraõ huma
educaçaõ
ingenua, e que vivem pela vontade, e pelo parecer dos
outros: o que Horacio
[70]
pinta com tanta vivacidade
e elegancia. E por esta razão mostrei eu a necessidade
que tinhaõ as Escolas Portuguezas de adoptar o Poema
de Camoens, para educar a Mocidade, como se poderá
ver no Prefacio da ultima ediçaõ feita em Paris.
Entraõ
nestes estudos intermedios a Logica e a Metaphysica;
porque o seu objecto he de discorrer com methodo e
ordem; ter uma idea clara tanto das palavras e das
couzas, distinguindo e separando o que nellas ha de
commum com as outras, e de particular; estas duas
partes da Philosophia se reduzem a ter methodo e
ordem em tudo que se diz e escreve. Naõ se entende
aqui por Logica e Metaphysica, aquella das Escolas; ja se tem por
absurdo gastar tres annos em aprendellas.
A Logica e a Metaphysica hoje explicadas por hum
bom Mestre he estudo de quatro meses, se se explicarem
os Compendios que destas sciencias se tem escrito
em muitas partes da Europa.
A Physica exprimental entra na mesma classe; e
[165]
como ja temos na nossa Lingoa a obra intitulada,
Recreaçam
Philosophica, naõ necessito de
nomear o seu
objecto.
Estes saõ os conhecimentos preliminarios, para entrar
nas Escolas mayores; e ja estou ouvindo que tantas
sciencias confundiraõ o animo dos meninos e rapazes,
que ou ficaraõ estupidos, ou que tudo que
aprenderaõ
será taõ superficialmente, que toda esta
instruçaõ lhe
venha a ser inutil. Mas Quintiliano ja respondeo a
esta difficuldade, e o nosso Martinho de Mendonça, nos
seos
Appontamentos para a Educaçam de hum
Menino
Nobre, livro tantas vezes citado: a difficuldade
naõ
está na capacidade dos meninos; toda ella
residirá nos
Mestres; e se dissipára, se souberem ensinar com methodo
e com ordem; explicando de viva vós hum compendio
de cada sciencia que ensinarem; pondo diante
dos olhos, humas vezes em mappas, outras em taboas
chronologicas, outras em modelos e instrumentos, e
com a inspecçaõ das mesmas couzas que ensinarem;
deste modo pergunta(n)do, capacitando o auditorio, e
ficando elle mesmo inteirado que comprehendem, adiantará
o seu ensino.
Este modo de ensinar explicando de viva vós, e perguntando
pelo compendio ou compendios da sciencia
que aprendem os ouvintes, he o mais efficaz, para comprehenderem
huma materia inteira. Se estivessemos
dentro da salla de hum palacio, naõ veriamos mais
que os objectos, onde se terminava a vista: mas naõ
teriamos nenhuma ideia da sua grandeza, da sua
proporçaõ,
da sua elevaçaõ; mas se estivessemos fora,
postos a huma certa distancia, e em tal sitio que descubrissemos
[166]o frontispicio, a sua
elevaçaõ,
contemplando
as proporçoens entre o corpo do palacio e das
mais partes, então he que podiamos formar juizo da
sua grandeza, utilidade e magestade; naõ saberiamos
aquellas miudezas da distribuiçaõ dos aposentos,
da
claridade das gallarias, mas o juizo que formariamos
de todo elle, seria superior ao conhecimento acanhado
que teriamos, ficando dentro.
Assim para compreender á primeira vista huma sciencia,
he necessario ver somente as suas principaes partes:
explique o Mestre o que faltar naquella inspeção
que o
discipulo observa; e deste modo se evitará aquella
confusaõ
que se teme. Fallo com experiencia: hum Menino
pode por dia tomar quatro liçoens de materias
differentes com summa utilidade da sua educaçaõ.
§.
Em que lugar se haviam de ensinar
as sciencias referidas
Os Grammaticos Gregos e Romanos ensinavaõ na
mesma Escola as sciencias assima: he verdade que naõ
tinhaõ tanta difficuldade, como nos temos, para aprender
as Lingoas em que estaõ as sciencias escritas; porque
posto que os Romanos aprendessem a Grega, mais a
aprendiaõ pelo exercicio, havendo tantos Gregos misturados
com os Romanos, que por regras e Diccionarios.
Para evitar muita desordem, gastos, bulhas litterarias,
e para proveito da Educaçaõ da Mocidade, seria
mui
acertado que nas mesmas Escolas Reaes, onde se
aprendem a Lingoa Latina, Grega e a Rhetorica, se
[167]
aprendessem as sciencias referidas, que saõ como ja
disse a
Historia Profana e Sagrada,
a
Fabulosa, com
a
Natural, a
Geographia,
Chronologia,
Astronomia,
a
Arithmetica,
Algebra,
Trigonometria,
Logica,
Metaphysica,
e a
Physica Experimental.
Estas sciencias intermedias ou preparatorias, para se
matricularem os estudantes nas Escolas Mayores, ou
Universidade Real, podiaõ ensinarse nas tres Escolas
Reaes do Latim e do Grego, establecidas pelo Alvará
de sua Magestade, em Coimbra, Lisboa e Evora, para
ficarem no lugar daquellas onde se aprendia a Philosophia
Escolastica.
Nas mais Escolas do Reyno establecidas nas Cabeças
das Comarcas, bastaria o ensino alem das Lingoas
Latina e Grega, os Principios da Philosophia
Moral, a Rhetorica, a Historia e a Geographia.
Convem ao Estado que todo o Estudante que aprender
Latim e Grego, fique instruido das obrigaçoens de
Christaõ e de Cidadaõ, que fique instruido na
Historia
e na Geographia, que entenda a Poesia, e que saiba
escrever ou na Lingoa Latina, ou na sua, com elegancia
e propriedade: porque o Estado naõ somente tem necessidade
de Letrados, Jurisconsultos e Medicos, mas
taõbem de
Secretarios, de
Notarios publicos, de
Intendentes,
de
Conselheyros e
Assessores, nos Tribunaes ou
Collegios que devem governar a economia politica e
civil do Reyno. Tanto mais instruidos sahirem estes
Estudantes das Escolas referidas, tanto melhor exercitaraõ
os cargos em que seraõ empregados, e occuparaõ
o tempo do descanço com mayor utilidade e
satisfaçaõ.
Todo o ponto está que haja Mestres taõ capazes,
[168]que
saibaõ
plantar no animo dos Discipulos
destas Escolas as sementes destas sciencias. Elles
mesmos faraõ crecer estes principios pela sua
applicaçaõ,
levados do gosto que cauzaõ, quando se
comprehendéraõ
clara ou distinctamente.
Se eu naõ fosse obrigado, Illustrissimo Senhor, tratar
do Methodo de ensinar e aprender a Medicina em obra
separada, havia de tratar aqui das Escolas Mayores ou
da Universidade, onde se deve ensinar a Jurisprudencia
universal, e a Medicina, a sua forma, o lugar onde se
estableceria, o que nella se devia ensinar com especialidade,
e com que gráos Academicos seriaõ decorados
os que tinhaõ estudado com applauzo, etc. Mas como
tratarei da Medicina especialmente, entaõ he que tratarei
da forma dos Estudos da Jurisprudencia; e occuparei
agora aquelle espaço com materia, poderá ser,
igualmente util para o serviço da patria que he tratar
da Educaçaõ da Mocidade Nobre.
§.
Da Educaçam da Fidalguia e dos Fidalgos,
que tem Assentamento e Foro na Caza Real
Vimos assima que desde o anno de 1500 até o anno
de 1570, existio o mayor luxo que jamais vio Portugal.
El Rey Dom Manoel o introduzio na Corte, e foi o
primeiro que se vestio humas vezes á Franceza e outras
á Flamenga; como naõ teve guerra na Europa nem
seu Filho, nem seu Bisneto el Rey Dom Sebastiaõ,
com as riquezas do Oriente cahio a Fidalguia no
mayor luxo, e por consequencia naquelle total esquecimento
[169]
da boa educaçaõ, que tinha ou no
Paço dos
Reis antigos, ou em caza de seos Pays. No tempo
del Rey Dom Pedro o Justiceyro, tanto que se sabia
no Paço tinha nascido algum filho a algum Fidalgo,
mandava logo el Rey a sua caza a provisaõ da moradia
ou foro, que deyxava em poder da May ou da Ama
que criava o Menino; e nestes tempos se chamavaõ
os Reys Pays de seos Vassallos
[71].
Depois crescendo
o numero, se ordenou que somente se uzasse desta
graça, com o primogenito; e desta
resoluçaõ, veyo a
descahir aquelle amor da patria, porque faltou a boa
educaçaõ, que tinhaõ no
Paço todos os filhos dos
Fidalgos com moradia.
No tempo del Rey Dom Joaõ o Segundo, lhe
representáraõ
em Cortes, que ordenasse se criassem os Fidalgos
no Paço, como era costume antigamente: sinal
certo que se educava ali a primeira Mocidade do Reyno.
Ja dissemos assima que a educaçaõ da Nobreza toda
se reduzia a fazer o corpo robusto e fortissimo, o animo
ouzado e destemido; alem daquelle agrado que reynava
no galanteo e serviço das Senhoras, naõ
deyxavaõ de
instruir o animo com aquelles poucos conhecimentos
scientificos que se conheciaõ: somente na familia do
Infante Dom Henrique foi esta educação mais
consideravel,
porque sahiraõ muitos do Paço daquelle famozo
Principe, excellentemente instruidos nas Mathematicas
e boas letras, como foi o Grande Albuquerque
e Dom João de Castro.
[170]
«El Rey Dom Manoel, como refere Alvaro Ferreyra
de Vera
[72],
aperfeiçoou os estados dos Ricos Homens
e Infançoens, e deu a cada hum em sua Caza Real o
lugar que por sua qualidade merecia, fazendo tres sortes
de gente. No primeiro lugar pôz os Ricos Homens;
no segundo os Infançoens; no terceyro os Plebeos, com
esta distinçaõ na moradia: aos Filhos dos Ricos
Homens
tomou por
Moços Fidalgos com mil
reis de
Fôro
[73]
cada mes, e alqueyre e meyo de cevada por
dia; «e daqui os acrescentava a
Fidalgos
Cavalleyros,
sobindolhe a moradia té
quatro mil
reis, o que era
despois de serem armados Cavalleyros, por algum feito
[171]honrozo que
faziaõ na guerra. Aos Filhos dos
Infançoens
tomou por
Moços da
Camara, com
quatrocentos
e seis reis; e tres quartas de cevada por dia: e da
mesma maneira lhes acrescentava a moradia, que a
mayor subia té
mil e quinhentos
reis com o titulo de
Cavalleyro Fidalgo, a que hoje
muitos não querem
subir por ficar antes no foro de moços do
serviço, pelas
mays entradas que tem na casa e serviço do seu
Rey.»
«Os Plebeos taõbem admittio no seu
serviço, tomando-os
por moços da Estribeira; e daqui os acrescentava
a Escudeyros e Cavalleyros razos (que he Cavalleyros
sem Nobreza), e os que queria, que gozassem
de alguns Privilegios se chamavaõ Cavalleyros confirmados:
no que havia muita ordem».
Quem quizer saber o que he a Nobreza Natural e
Politica, como se adquire e como se perde, e outras
mais propriedades, que tem a origem dos titulos em
Portugal, poderá ler este excellente Autor, esquecido
nos nossos tempos, e que merecia ser conhecido de
todos os Nobres Portuguezes, para saberem as suas
obrigaçoens. Vejase taõbem
Noticias de Portugal de
Manoel Severim de Faria, Discurso III, e o
Prologo
ás
Memorias Historicas e Genealogicas dos Grandes de
Portugal por Antonio Caetano de Sousa. Lisboa 1742.
Do referido se collige que os Reys de Portugal sempre
tiveraõ especial cuidado da Educação
da Fidalguia, e
que dahi veyo chamaremse
creados de
caza Real, estendendose
este nome por corrupção aos que servem.
Em quanto houve guerras continuadas, em quanto tinhaõ
necessidade da Fidalguia, para guerrear e conquistar,
[172]
sempre houve a Educaçaõ no Paço:
acabouse aquella
urgente necessidade, e achou el Rey Dom Manoel a
proposito de desobrigarse da Educaçaõ, e de
pagarlhe
huma certa quantia, como vimos assima, para serem
educados em caza de seos Pays. Em quanto se
continuáraõ
as Conquistas da India, e a florecente navegaçaõ,
empregavaõ-se neste serviço os Fidalgos, e
naõ se
apercebia o Estado da falta da Educaçaõ no
Paço:
mas no tempo del Rey Dom Joaõ o Terceyro acabou a
Conquista da Affrica, e da India; ja naõ havia mais
guerra, que para conservar o conquistado: e como as
riquezas eraõ immensas, introduziose o luxo na Fidalguia,
e ja se apercebia o Estado da falta da sua
Educaçaõ,
porque foi o mayor que se conheceo na Europa.
A constituiçaõ Gothica do Reyno, determinava a
Fidalguia serem guerreyros forçozamente no tempo da
guerra; e acabada ella ficarem nas suas terras, e cuidarem
da agricultura; naõ tinhaõ outro intento no
tempo da paz que conservarse vivendo do producto das
suas terras; naõ cultivavaõ para vender nem
comerciar
com os fructos; e deste costume vieraõ as nossas Leis
das Ordenaçoens, que defendem fazer comercio com os
graõs, vinho e azeite.
Mas tanto que os Reys tiveraõ mays que dar que as
terras da Coroa; tanto que tiveraõ Commendas, Governos
e Cargos lucrativos, tanto nas Conquistas, como
no Reyno, logo os Fidalgos começaraõ a cercar os
Reys,
e ficarem na Corte; porque pela adulaçaõ, pelo
agrado,
e pelas artes dos Cortesoens sabiaõ ganhar as vontades
dos Reys, naõ tendo aquellas occasioens forçozas
de
obrarem acçoens illustres para serem premiados por
[173]
ellas. Isto vemos succedeo no tempo del Rey
D. Duarte, quando ordenou que todo o Fidalgo que naõ
tivesse Cargo na Corte, que fosse a viver nas suas
terras.
Logo que todos os Fidalgos fixaraõ a sua assistencia
na Corte no tempo da paz, logo que seos filhos eraõ
educados em suas cazas, ja ricas e poderosas pelas
dadivas dos Reys em Commendas, Pensoens, Governos
e Cargos, necessariamente se havia de seguir huma
educaçaõ estragada, a Meninice entregada na
maõ das
amas e de mulheres commuas, a puericia entre as maõs
dos Criados e dos Escravos; até o tempo del Rey
D. Sebastiaõ poucos sabiaõ mais que ler e
escrever;
porque ja a Escola do Infante Dom Henrique estava
acabada; e toda a educaçaõ se reduzia a saber os
Mysterios
da Fé, porque os seos Mestres sendo Ecclesiasticos
e ignorantes da obrigação de Subdito, de Filho e
de Marido, chegavaõ á idade da adolescencia com o
animo depravado, sem humanidade, porque naõ
conheciaõ
igual; sem subordinaçaõ, porque eraõ
educados
por escravas e escravos; ficava aquelle animo possuido
de soberba, vangloria, sem conhecimento da vida civil,
nem com a minima idea do bem commum: assim degenerou
aquella educaçaõ do Paço na qual pelo
menos
aprendiaõ a obedecer, na mais insolente tyrania de
todos aquelles com quem tratavaõ.
A questaõ agora he somente, se será do Real
agrado
de S. Magestade continuar nesta piedosa e utilissima
intençaõ, e no cazo que assim determinasse,
ficava a
saber que sorte de educaçaõ convinha á
Fidalguia existente?
em que lugar devia ser educada? e quais deviaõ
[174]
ser os Mestres? Discutirei estes tres pontos com a
clareza que me for possivel.
§.
Que sorte de Educaçam convem á
Fidalguia Portugueza,
que seja util a si
e á sua Patria?
Quem melhor conhecer a Constituição do Estado de
Portugal actual, resolveria melhor esta importante
questaõ. Tanto quanto eu pude alcansar, por
informaçaõ
e por lectura, acho que he Reyno pelo seu sitio,
entre tres Mares, nos quaes navega o comercio de todo
o mundo, totalmente maritimo; bordado, pela sua mayor
parte, do Mar Oceano com oito portos navigaveis, ainda
que alguns damnificados, e que com custo e trabalho
podiaõ ser restaurados; que tem Ilhas e Continentes
vastissimos e riquissimos nas tres partes do mundo
conhecidas. Que por Tratados e Allianças de Comercio
e boa amizade está ligado com muitas Potencias; humas
que o podem offender por mar, e huma só por terra.
Estes limitados conhecimentos determinaraõ logo a
quem pensar na conservaçaõ da nossa Monarchia,
que
necessita de Officiais de Mar e Terra; isto he, de hum
exercito, e de hũa frota. He certo que
só entre a
Nobreza se achaõ as pessoas mais aptas para exercitar
estes Cargos; e naõ necessito aqui de amontoar lugares
communs para provar o que todos sabem por experiencia.
Mas ao mesmo tempo todos assentaraõ que a
Educaçaõ que se deve dar á Nobreza e
á Fidalguia
[175]
Portugueza, deve proporcionar-se á necessidade e ao
estado actual da sua patria.
Antes que se usasse da polvora, e que se fortificassem
as Prazas pelas Leis da Geometria e Trigonometria,
naõ necessitava o General do exercicio das Mathematicas
e de alguãs partes da Physica: a força, o animo
ouzado e a valentia ja naõ saõ bastantes para
vencer,
como quando faziamos a guerra expulsando os Mouros
da patria. A Arte da guerra hoje he sciencia fundada
em principios que se aprendem e devem aprender, antes
que se veja o inimigo: necessita de estudo, de
applicaçaõ,
de attençaõ e reflexaõ; que o
Guerreyro tome a
penna e saiba taõbem calcular e escrever, como he
obrigado combater com a espada e com o espontaõ: o
verdadeyro Guerreyro he hoje hum misto de homem de
letras e de soldado. Deste modo adquirio nos nossos
tempos immortal fama o Marechal de Saxe, e por este
caminho vai com igual gloria el Rey da Prussia.
Mas hum Almirante, ou hum Capitaõ de Mar e
Guerra naõ somente deve ter toda a
instruçaõ de que
necessita hum General, mas ainda aquella de mandar
no mar: naõ somente necessita da
instruçaõ das Mathematicas,
Astronomia e Sciencia Nautica, mas de
muitos e muitos conhecimentos politicos para comprir
os seos importantes Cargos. Deste modo necessitaõ
os que haõ de governar hum Regimento, ou hum Exercito,
hum Navio de Guerra, ou huma armada, ter tal
educaçaõ, que sejaõ capazes de obrarem
acçoens illustres,
e de as escrever, como fez Xenophonte, Cesar, e
o Marechal de Saxe nos nossos tempos, e outros muitos
dignos destes importantes Cargos.
[176]
No tempo de Philippe Quarto presentáraõ ao Conde
Duque de Olivares hum retrato do Estado Politico de
Castella, e das Cauzas da sua decadencia
[74]:
e huma
das principais que allega, se reduz á seguinte
discussaõ;
que a Cauza da decadencia daquella Monarchia foi que
o valor e a força não fora conduzida nem ajudada
pela
sciencia, nem pela arte; que confiandosse na riqueza
da Monarchia, que desprezáraõ os Tratados de
Allianças:
e que nas Embayxadas empregavaõ os Senhores mais
authorizados e ricos, sem attenção alguma da sua
capacidade;
que tomavaõ por Secretarios aquelles homens
que estavaõ de antes ao seu serviço, ou debayxo
da
sua protecção, sem dependencia alguma da Corte, e
ignorantes dos negocios politicos; que deste modo, tudo
o que se tratou com as Potencias Estrangeyras, foi
com prejuizo do Reyno, como se experimenta nos Tratados
de paz, e de comercio, e nos regramentos dos
Correyos, e outras estipulaçoens publicas: que semelhantes
Secretarios deviaõ ser educados conforme pedia
o seu emprego; porque estes saõ aquelles que põem
em ordem os despachos, e tudo aquillo que o Embayxador
ou o Enviado considera ou nota ser necessario
sahir da Secretaria; e que do bem ordenado, ou bem
escrito, he que depende mui frequentemente o feliz
successo.
O Duque de Lorena, Generalissimo dos Exercitos do
[177]
Emperador Leopoldo
[75],
reprezentou a este Monarcha
que naõ podia subsistir aquelle Imperio por falta da
Educaçaõ da Nobreza, sendo incapaz de servir os
Cargos publicos, ou na guerra ou em tempo de paz; e
que para occorrer á total ruina do Estado, que propunha
huma Escola que se devia erigir a propozito para satisfazer
esta necessidade.
O Historiador Conestagio
[76]
relatando a desordem
e a pobreza em que estava o Reyno antes da infeliz
expedição del Rey Dom Sebastiaõ para
Affrica, diz que
nunca Portugal fora taõ feliz, que tivesse hum homem
dotado de tanta capacidade e intelligencia que soubesse
governar as rendas Reais: porque o Cargo de Veador
da fazenda se dava sempre por favor, e para gratificar
os Cortezaõs, sem attenderem a nenhum merecimento;
e por essa cauza, não havendo nem cuidado, nem conhecimento
daquelle emprego, que todos os rendimentos
se gastavaõ nos sallarios dos Ministros, nos dos
Magistrados,
e dos Governadores; que o Estado estava
taõ pobre que os Ecclesiasticos
pagáraõ entaõ cento e
cincoenta mil ducados; e os Christaõs novos duzentos
e vinte cinco mil, com promessa que se fossem prezos
pela Inquisiçaõ que não
seriaõ os seos bens confiscados.
Do referido se ve a necessidade que tem o Reyno da
[178]
Educaçaõ da Fidalguia, não
só nas letras humanas,
mas taõbem na Politica e nas Mathematicas, para servir
a sua patria, nos cargos da guerra, e nos da paz; e que
por faltar semelhante Educaçaõ,
chegaraõ tantas Monarchias
na Europa áquella decadencia desde o anno
de 1500, que parece impossivel relevarse, se não se
reformar esta omissaõ taõ consideravel.
§.
Continua a mesma Materia. Em que lugar
devia ser educada a Fidalguia
e Nobreza de Portugal
Todos reprovaraõ o ensino da Mocidade, que vive
em caza de seos Pays, e que vaõ duas vezes por dia a
aprender nas Escolas publicas. Ja vimos assima que
este modo de aprender he o mais prejudicial; e como
he notorio a cada hum, que aprendeo assim, este dano,
naõ necessito outra vez repetir o que mostrei assima.
Milhares de tratados se tem impresso da Educaçaõ
domestica, e o mais excellente, a meu ver, he o de
Martinho de Mendoça e Pina, que citei assima: esta
educaçaõ pode fazer hum rapaz hum pio
Christaõ;
poderá ser instruido naquelles conhecimentos que dependem
da simplez memoria, mas sempre lhe faltará a
emulaçaõ, que eleva o juizo, para se adiantar aos
seos
iguais; sempre lhe faltará a imitaçaõ,
pelo qual se
formaõ as ideas mais completas das acçoens e das
obras dos Mestres e Governadores publicos, que sempre
influem no animo muito mais, do que tudo o que disser
ou obrar o Mestre domestico; deste modo ficará sempre
[179]
o natural destes meninos acanhado e encolhido, faltando
lhe o trato e o conhecimento da vida civil; quando
acabaõ aquelles estudos domesticos, ou ficaõ
ignorantes,
ou nos costumes da vida civil meninos, ou com o animo
depravado: felicidade grande será que não fiquem
estragados
os costumes, pela companhia dos Criados e
dos Escravos: se os Pays foraõ taõ cautelozos que
evitáraõ
este ordinario precipicio, cayem em outro, taõ
contrario ao bem commum, como a perda dos bons
costumes, a sua consciencia e a sua conservaçaõ;
ficaõ
estupidos, cheyos de vaidade, naõ
conhecem
por superior
mais que seos Pays, porque não tem a minima
idea da subordinaçaõ que deve ter como Subdito e
como Christaõ.
D'esta origem provem que a Nobreza e Fidalguia he
hoje empregada nos cargos e nos governos, quando
chega áquella idade, onde começaõ a
descahir as forças,
e a constituiçaõ com achaques. Na idade de quinze
ou
vinte annos, como a sua educaçaõ foi domestica,
tem
da vida civil tanto conhecimento como hum menino:
entra, como dizem, no mundo; e á sua custa, e por
muitos annos adquirio algũa experiencia, e essa lhe
serve de toda a instruçaõ para servir a sua
patria: mas
não he conhecida a sua capacidade, que da idade de
quarenta annos; entaõ he que o Soberano o emprega
nos cargos publicos, e ás vezes de idade mais crescida;
mas nesta idade ou as forças começaõ a
enfraquecer
ou a constituiçaõ; daqui he que os Estados hoje
onde
a Criaçaõ he domestica se servem sempre de
pessoas
a quem falta aquelle vigor, altives, ambiçaõ, e
animo
da adolescencia e da idade viril.
[180]
Admiramonos hoje quando lemos que Pompeo e
Scipião Affricano commandavaõ exercitos de idade
de
vinte e hum annos; e que os Romanos dessem os
Cargos de Questor, de Pretor, de Proconsul á Mocidade
da Nobreza Romana; mas o que mais deviamos
admirar he que naquella primeira idade obravaõ
acçoens
taõ illustres, que se observaõ na historia: na
verdade
que de vinte e cinco annos, até trinta ou quarenta,
está
o corpo mais apto para obrar as mais elevadas acçoens;
e por isso me parece, quando comparo a Republica
Romana com os Reynos dos nossos tempos, que nestes,
aquelles que os servem, todos saõ velhos e decrepitos,
e que naquella Republica todos eraõ Varoens nas armas
e velhos no Concelho.
Mas se quizermos saber a cauza desta immensa
desigualdade, inquiramos a Educaçaõ da Nobreza
Romana,
e logo parará a nossa admiraçaõ. O seu
ensino,
no tempo da puericia, se reduzia a Philosophia Moral
e trato da vida, que lhes ensinavaõ os Philosophos;
mas esta instruçaõ era practica;
entravaõ no Senado
com seos Pays ou Tutores, como ouvintes; ali ouviaõ
practicar o que aprendiaõ em caza; de tal modo que
hum Menino da idade de desasete annos estava instruido
na eloquencia, na arte de saber escrever, porque sabia
fallar, nas Leis Patrias, no Sacerdocio, nas Leis Civis
e Politicas, que pela practica aprendiaõ; e vendo diante
de si aquelles Senadores, hum que tinha triumphado,
outro que tinha ganhado hum Reyno, outro que tinha
dec
Mas se quizermos saber a cauza desta immensa
desigualdade, inquiramos a Educaçaõ da Nobreza
Romana,
e logo parará a nossa admiraçaõ. O seu
ensino,
no tempo da puericia, se reduzia a Philosophia Moral
e trato da vida, que lhes ensinavaõ os Philosophos;
mas esta instruçaõ era practica;
entravaõ no Senado
com seos Pays ou Tutores, como ouvintes; ali ouviaõ
practicar o que aprendiaõ em caza; de tal modo que
hum Menino da idade de desasete annos estava instruido
na eloquencia, na arte de saber escrever, porque sabia
fallar, nas Leis Patrias, no Sacerdocio, nas Leis Civis
e Politicas, que pela practica aprendiaõ; e vendo diante
de si aquelles Senadores, hum que tinha triumphado,
outro que tinha ganhado hum Reyno, outro que tinha
decretado leis como Consul, enchiase o coraçaõ
daquelles
illustres objectos, para imitar aquellas acçoens ordenando,
mandando e obrando. Assim vemos que Cesar
[181]
de desasete annos orava com tanto applauso, que entrou
no cargo do Sacerdocio. Lemos a Educaçaõ de Marco
Aurelio Emperador, que elle mesmo relata logo no principio
das suas obras, que são os pensamentos da sua vida.
Nos nossos tempos el Rey de Danamarca ordenou
que em cada Tribunal assistisse hum certo numero de
Moços Nobres, somente para serem ouvintes, e para
aprenderem ali pella practica as Leis Patrias, e o que
he a vida Civil; os Magistrados tem poder de lhes fazerem
perguntas de tempo em tempo para obrigar esta
Mocidade a attenderem ao que ouvem. O mayor proveito
que retiraria o Estado desta Educaçaõ, seria que
pensasse e que reflectisse maduramente, e que naõ
passasse a vida naquella variedade, e encadeamento de
divertimentos, caças, jogos, dansas, bayles e outros
semelhantes.
Nenhũa couza poderia fixar a volatilidade
daquella idade, do que destinala, logo que estivesse
instruida, a assistir nos Tribunaes como ouvintes, e de
responderem por escrito ou de palavra, quando fossem
perguntados pellos Magistrados: alem de que lhes naõ
ficaria tanto tempo para empregar naquella vida aérea,
se costumariaõ a pensar e a reflectir, que he a mayor
difficuldade que se encontra naquella idade, e o mayor
bem que se pode alcançar na sua
educaçaõ.
Sem que eu o diga, todos veraõ que se se tomarem
taes meyos com esta mocidade, que poderá ser empregada
nos cargos e postos do Estado, de idade de vinte,
e de vinte e cinco annos, e que evitaria o Rey no ser
servido, ou por velhos, ou por achacados nos cargos
que necessitaõ vigiar, andar a Cavallo, navegar, inquirir,
ver, observar, e despachar.
[182]
Pareceme que vistos os notaveis inconvenientes da
Educaçaõ domestica, e das Escolas ordinarias, que
naõ
fica outro modo para educar a Nobreza e a Fidalguia,
do que aprender em Sociedade, ou em Collegios; e
como naõ he couza nova hoje em Europa esta sorte de
ensino, com o titulo de
Corpo de
Cadetes, ou Escola
Militar, ou Collegio dos Nobres, atrevome a propor á
minha Patria esta sorte de Collegios, naõ somente pella
summa utilidade que tirará desta
Educaçaõ a Nobreza,
mas sobre tudo, o Estado e todo o povo.
§.
O que sam as Escolas Militares
He huma Escola Militar hum Corpo de Guarda, onde
os Soldados saõ os meninos e moços Nobres ou
Fidalgos:
estes saõ os que fazem as sintinellas e as rondas
dentro da Escola: ali se exercitaõ na Arte Militar; e
toda ella he governada por esta disciplina; e aquelle
tempo que os Soldados nos Corpos de Guarda consomem
a jugar, a fumar tabaco, e a zombar, occupaõ
os moços Nobres destas Escolas nos estudos ingenuos,
que saõ aquelles que servem para servir e mandar na
sua Patria.
No anno 1731, o Feld-Marechal ou Capitaõ General
Conde de Munnich no serviço do Imperio da Russia,
sendo obrigado buscar Officiais Majores por toda a
Europa pella falta que delles havia em Russia, propôs
á Imperatriz Anna Juanowna hum Collegio Militar ou
Escola para se educarem nella
quatrocentos meninos ou
moços Nobres, destinados a servir nos exercitos e nos
[183]
Cargos civis. Esta Escola se abrio naquelle tempo, e
continua ainda hoje, e com tanta utilidade daquelle
Imperio que desde o anno 1740, rarissimo he o Official
Estrangeyro que se acha alistado no serviço daquelle
Imperio.
Foi facil a este Grande General achar estudantes para
entrarem naquella Escola; porque por huma ley de Pedro
Primeiro, Emperador daquelle Imperio no anno 1707,
todos os filhos dos Nobres chegados a idade de
treze
annos saõ obrigados virem assentar
praça na Vedoria
de Guerra, ou na Vedoria da Marinha, Ley que se
observa ainda inviolavelmente: e tanto que huma vez
está este menino matriculado naquellas vedorias
naõ
pode entrar em Convento algum de Frades, sem licença
especial do Soberano: (porque em Russia nenhum
Nobre entra no Estado de clerigo, por serem estes
tirados somente das familias do povo). Por Director
desta Escola ficou o mesmo Conde de Munnich, que
procurou todos os Officiais Militares das tropas de
Prussia e os Mestres para as Sciencias, e Lingoas, de
toda a Alemanha, e dos Cantoens Suissos.
No anno 1742 pouco mais ou menos, S. Majestade
Imperial a Rainha de Hungria, ou por lembrarse do
projecto do Duque de Lorena assima referido, ou pela
sua alta intelligencia, instituio em Viena de Austria o
Collegio Thereziano para o mesmo fim, mas mui poucos
aprovárão a Escola dos Jesuitas por Mestres, e
que se
admitissem nelle Pensionarios; e por esta cauza, ou
pela pouca disposiçaõ, naõ se tem
visto atégora daquelle
magnifico instituto aquella utilidade que se esperava.
No anno 1751 se estabeleceo em Paris a Escola Real
[184]
Militar: a sua instituiçaõ he para educarse nella
quinhentos
Gentis homens a custa Real; os Militares saõ
os Mestres para ensinar a arte da guerra, e os seculares
Homens de Lettras as artes e as sciencias: mas como
na
Encyclopedia impressa em Paris,
se acha hũa
exacta descripção desta famoza Escola no articulo
École
Militaire, tome cinquième, naõ
necessito entrar aqui em
mayor explicação; e só farei algumas
observaçoens
sobre o que se podia imitar de louvavel em Portugal
desta instituição.
Em Dinamarca, em Suecia e em Prussia, se
instituraõ
e conservaõ Escolas Militares Semelhantes, instituidas
depois de poucos annos; e não fallo da Escola Real de
Madrid, porque parece que a sua destinaçaõ
naõ he
para que os seos Estudantes sirvaõ o Estado.
Parece que Portugal está hoje quazi obrigado, naõ
só a fundar huma Escola Militar, mas de preferila a
todos os establecimentos litterarios, que sustenta com
taõ excessivos gastos. O que se ensina e tem ensinado
atégora nelles, he para chegar a ser Sacerdote e
Jurisconsulto;
e como já vimos assima, naõ tem a
Nobreza
ensino algum para servir a sua patria, em tempos
de paz nem da guerra. Proporei aqui o que achar
mais necessario, para establecer esta Escola; e no cazo
que seja acceite o meu trabalho e o dezejo da
execução,
supprirei as omissoens, que de proposito cometo por
naõ ser porlixo com a mayor exactidaõ, se me for
ordenado.
[185]
§.
Propoemse huma Escola Real Portugueza,
para ser nella educada a Nobreza e a Fidalguia
economia
interior
Quando se comprehender o intento com que se propoem
esta Escola, poderá ser que se louve a sorte da
economia interior que ha de servir para conseguilo.
He educar subditos amantes da Patria, obedientes ás
Leis, e ao seu Rey; intelligentes para mandar, e virtuozos
para serem uteis a si, e a todos com quem devem
tratar.
Será facil conceber a quem estiver inteyrado deste
intento, que esta Escola Real deve ficar affastada tanto
da Corte, que nem Estudantes nem os Mestres estejaõ
distrahidos pellas visitas dos parentes e amigos, e muito
menos pellos divertimentos de huma capital. Seria
facil acharse edificio já feito, ou dois ou tres edificios,
juntos, reparados, e concertados para se establecer esta
escola; deyxando para melhor occasiaõ fazer hum aproposito,
ou occupar algum que prezentar o acazo.
1.º Que naõ habitaria dentro d'este edificio
Governador,
Mestre, ou outro qualquer empregado no serviço
desta Escola, sem
ser cazado.
2.º Que naõ seria permitido a nenhum estudante ter
criado em particular.
3.º Que para o serviço d
3.º Que para o serviço dos mesmos Estudantes, quer
dizer, barrer os seos quartos, alimpallos, fazerlhe a
cama, e outros serviços domesticos, haveria huma molher
[186]de idade de cincoenta
annos para diante, destinada
a servir a cada cinco, de tal modo que nenhum destes
Educandos se considerasse que tinha criado ou criada
em particular
[77].
4.º Todos os quartos, salas, camaras, tanto do Governador,
Officiais, Mestres, como dos educandos, seriaõ
adornados da mesma sorte de alfayas sem distinção
de pessoa
[78],
e todas ellas deviaõ ser feitas no Reyno.
5.º Tudo o que servisse de alimento e de bebida
nesta Escola Real devia ser produçaõ do Reyno, e
dos
dominios de S. Magestade, como taõbem tudo aquillo
que vestissem, calçassem; ainda mesmo as espingardas,
espadas, bandoleyras, e tudo que servisse no manejo,
e na cozinha
[79].
[187]
6.º Como estes educandos haviaõ de estar alistados
em companhias cada huã de
vinte, ou vinte e
quatro,
governadas pella disciplina militar, ja se ve que devem
vestirse com uniformes; e do mesmo modo os Officiais,
e Inspectores, cada qual com distinçaõ do seu
gráo
[80].
7.º Todos estes educandos deviaõ comer em
communidade,
e não serlhe permitido nenhuma sorte de
alimento no seu quarto
[81].
8.º De sol nacido até sol posto, sempre
haverá
huma
companhia de educandos de Guarda: seraõ os que
estaraõ
de sintinella dentro do edificio nos lugares que o
Commandante achar aproposito. E como para a guarda
de todo o edificio deve haver huma companhia de Soldados
tirada do regimento da guarniçaõ mais chegada,
estes seraõ os que estaraõ de sintinella
ás portas de
entrada e sahida dia e noyte.
9.º A nenhum destes educandos seria permitido entrar
no quarto ou camara dos seos collegas; nem dos Officiais
de guerra, Mestres, ou Officiais de economia sub
pena de rigoroza prizão.
10.º Ao tenente del Rey, ou Commandante d'esta
Escola Real, Intendente Director dos Estudos, Officiais
de Guerra, e Mestres, e outros Officiais economicos
[188]
lhes seria dada a cada hum sua particular
instruçaõ
para exercitarem o seu cargo.
11.º Naõ seria permitido aos Mestres, nem aos
Officiais de Guerra castigar com castigo corporal: só
poderiaõ mandar prender; e dar por escrito a falta, ou
culpa do educando ao Conselho economico da Escola,
que se teria huma, ou duas vezes por semana, no qual
se determinaria o castigo. O Mayor que sente a Nobreza
hé a
deshonra: o ser
condenado a naõ frequentar
as classes: o estar de pé em parada sem espada, e sem
espingarda á vista dos Mestres e de seos iguais, serviria
da mais efficas correçaõ
[82]. Vejase a dita
Encyclopedia
tom. V, no lugar
citado assima.
§.
Em que idade deviam entrar os Educandos
na Escola Real Militar?
Se os educandos entrassem nesta Escola na unica
intençaõ de sahirem instruidos nas lingoas e nas
sciencias,
nenhum deveria entrar antes da idade de
doze, ou
quatorze annos. Mas o intento
principal he que seu
animo saya destas escolas taõbem informado na virtude,
no amor da Patria, e na obediencia ás Leis; que pella
imitação da boa companhia, e pella practica das
boas
[189]
acçoens, fiquem instruidos nestas taõ importantes
obrigaçoens:
pelo que bem poderaõ entrar os educandos
desde a idade de
oito ou
nove annos, e se fosse possivel
ainda mais cedo pellas razoens seguintes.
Tanto que as riquezas da Affrica e do Oriente entraraõ
em Portugal, logo começou a mostrarse o luxo
nos vestidos, comidas, e mais commodidades estrangeiras;
começou a esfriarse o amor das familias, e por
ultimo da Patria. El Rey Dom João o Terceyro, foi
o ultimo Rei que foi criado com ama Nobre; e ja seos
Filhos, nem seu Neto el Rey D. Sebastiaõ, tiveraõ
amas mais que da classe plebea: indicio certo que as
Senhoras naõ criavaõ ja seos filhos, como nos
tempos
anteriores. Introduziose este destruitivo costume da
raça humana, do amor filial e dos bons costumes; e a
pezar de tanto sermaõ, missoens, e practicas espirituais,
nenhuma Senhora quer sacrificar a sua formozura á
criaçaõ de seos filhos, que hão de ser
a cauza da felicidade,
ou dos infortunios do resto da sua vida. Seria
loucura persuadir o que ninguem quer abraçar
[83].
§.
Consequencias por nam criarem as Mays seos filhos
Tem para si estas Mays, que naõ criaõ, que
conservaraõ
por mais tempo a formozura, e que dilataraõ a
vida com mais vigor e forças, e que perderiaõ a
sua
[190]
boa constituiçaõ, criando por dezoito mezes ou
dois
annos. Mas he engano manifesto; e o contrario se
sabe pela experiencia, e pela boa Physica.
A molher que pario, e que naõ cria o seo parto, em
pouco tempo vem a conceber de novo: a prenhés de
nove mezes he huma enfermidade, que enfraquece mais
o corpo do que criar aos peitos por anno e meyo: e
como concebem antes que as partes da geraçaõ
adquirissem
pelo repouzo a sua natural consistencia, succede
que estas Senhoras abortaõ mais frequentemente: enfermidade
taõ consideravel, que muitas ou perdem a
vida, ou ficaõ achacadas, perdendo em poucos annos o
idolo da sua belleza, ficando frustradas do seu intento,
e expostas a viverem por toda a vida a mil desgostos
e pezares. A molher que cria o seu parto fortifica o
seu corpo; porque a natureza inclinandose a lançar para
os peitos muita parte dos alimentos, nesse mesmo
tempo as partes da geraçaõ se alimpaõ
dos humores
que estiveraõ detidos por nove mezes, e alimpandosse
cada dia adquirem o seu vigor natural; e deste modo a
molher que cria o seu parto, e que o sustenta só com
o seu leite por hum anno, naõ concebe, que difficilmente;
se concebem de antes, he por que naõ daõ leite
na quantidade necessaria, temendo estas Mays e Amas
enfraquecerse, o que he engano manifesto.
Este o mal que cauza ás Mays naõ criarem seos
filhos, vejamos agora os danos a que estaõ expostos os
partos viventes e ainda os mais vivazes. A molher
que concebeo dentro do anno em que pario, naõ deu
tempo para que as partes da geração adquirissem
aquelle vigor natural, que lhe he natural: a prole concebida
[191]naõ
terá tanto espaço para se
estender; ficará
mais fraco, porque o lugar onde vai crescendo está
relaxado, e fatigado pela prenhés, e parto antecedente:
daqui he que sahirá á luz com menos vigor e com
menos esforço para crescer. E será esta a causa
que
nos nossos seculos a especie humana he mais piquena
e mais fraca, que nos seculos anteriores? pelo menos
parece ser huma cauza desta pequenhés.
Atégora os danos que sofrem as Mais e os seos
partos no corpo; mas os mais consideraveis e lamentaveis
saõ aquelles que se imprimem no animo das
crianças criadas por amas. Se foramos nacidos para
viver nos desertos da Affrica, ou nos bosques da America,
pouco importava que as amas imprimissem no
nosso animo aquellas ideas de terror, de feitiços, de
feiticeyras, de duendes, de crueldade, e de vingança;
mas somos nacidos em sociedade civil, e christãa;
aquellas ideas que nos
daõ as amas saõ
destrutivas de
tudo o que devemos crer, e obrar: ficaõ aquellas
crianças expostas ao ensino de molheres ignorantes,
superstiziozas; saõ os primeyros Mestres da lingoa, dos
dezejos, dos apetites, e das payxoens depravadas. Chegou
o menino a fallar, ja esta cercado de duas ou tres
molheres, mais ignorantes, mais superstiziozas, do que
a ama; por que estas saõ mais velhas, e sabem mais
destruir aquella primeira intelligencia do menino; chega
a idade de caminhar, ja tem seu mocinho, ordinariamente
escravo, e como foraõ pelas Mays criados por
taes amas, e velhas, saõ os terceyros Mestres até
a
idade de seis ou sete annos: e se o máo exemplo do
Pay e da May póem o sello a esta
educaçaõ fica o
[192]
menino embebido nestes detestaveis principios, que
mui difficilmente os milhores Mestres podem arrancar
aquelles vicios pelo discurso da idade pueril.
Será impossivel introduzirse a boa
educaçaõ na Fidalguia
Portugueza em quanto naõ houver hum Collegio,
ou Recolhimento, quero diser huma Escola com clauzura
para se educarem ali as meninas Fidalgas desde
a mais tenra idade; porque por ultimo as Maens, e o
sexo femenino saõ os primeyros Mestres do nosso;
todas as primeyras ideas que temos, provem da
criaçaõ
que temos das mays, amas, e ayas; e se estas forem
bem educadas nos conhecimentos da verdadeyra Religiaõ,
da vida civil, e das nossas obrigaçoens, reduzindo
todo o ensino destas meninas Fidalgas á Geographia,
á Historia sagrada e profana, e ao trabalho de
maõs
senhoril, que se emprega no risco, bordar, pintar, e
estofar, naõ perderiaõ tanto tempo em ler
novellas
amorozas, versos, que nem todos saõ sagrados: e em
outros passatempos, onde o animo naõ só se
dissipa,
mas ás vezes se corrompe; mas o peyor desta vida assi
empregada he que se communica aos filhos, aos irmaõs,
e aos maridos. Daqui vem, que sendo na mesma
Naçaõ,
da mesma familia, e da mesma caza, estaõ introduzidas
duas sortes de lingoa, ou modos de fallar, a
conversaçaõ que se deve ter com as senhoras,
não ha
de ser sobre materia grave, séria; estas
conversaçoens
judiciosas ficaõ reservadas para algum velho, ou para
algum notado de extravagante: e assim succede que
ficaõ as Senhoras por toda a vida (ordinariamente)
meninas no modo de pensar; e com taõ miseraveis
principios vem ellas, as suas amas, as suas ayas, e
[193]
donas, a serem os Mestres daquelles destinados a servir
os Reis.
Naõ me acuze V. Illustrissima, que sahi fora do intento
que lhe prometi. Achei que tratar da educaçaõ
que devïaõ ter meninas Nobres e Fidalgas merecia a
mayor attençaõ porque por ultimo vem a ser os
primeyros
Mestres de seos filhos, irmaõns e maridos.
V. Illustrissima sabe muito melhor do que eu, aquelles
monumentos que temos na Historia Romana, e taõbem
na nossa, de tantas Mays que por criarem e ensinarem
seos filhos foraõ os que salvaraõ a Patria, e a
illustraraõ:
houve em Roma muitas Cornelias, como em
Portugal muitas Phelipas de Vilhena. Mas naquelle
tempo ainda o luxo ou a dissoluçaõ naõ
se tinha apoderado
do animo Portugues, porque as riquezas naõ
eraõ taõ apetecidas. A connexaõ que
tem a educaçaõ
da Mocidade Nobre que prometi a V. Illustrissima, me
obriga a ponderar, se não seria mais util para a
conservaçaõ
e augmento da Religiaõ Catholica, transformarse
tantos Conventos de Freyras e das Ordens, principalmente
Militares sem exercicio algum da sua destinaçaõ,
nestes establecimentos que proponho, tanto
para a Mocidade Nobre Masculina, como Femenina?
Com o exemplo das educandas, ou
Filles de Saint
Cyr,
fundaçaõ perto de Versailles, e com o da Escola
Real
Militar, se poderiaõ fundar no Reyno outros ainda mais
ventajozos, para a mesma Nobreza, e para
conservaçaõ
e augmento da Religiaõ e do Reyno. Mas espero ainda
ver nos meos dias establecimentos semelhantes em tudo,
ou em parte, que satisfaçaõ todo o meu dezejo.
[194]
§.
Dos Mestres da Escola Real Militar,
para a Arte da Guerra e das Sciencias
Ainda que na
Encyclopedia citada, no
articulo
Escola
Militar se contem o que devem aprender os Educandos
da Escola Militar, julguei aproposito aplicar o
que contem de util á Escola proposta em Portugal;
sendo essa a razão, que me move a notar o que se
deve seguir ou evitar, deyxando para os que a dirigirem
entrar nas particularidades do ensino, que só com a
experiencia e com o tempo se pode fixar hũa Ley
constante e universal; bem entendido que subsistaõ as
mesmas circunstancias.
O primeyro e quotidiano ensino desta Escola deve
ser a
Religião, para
comprirmos a õbrigaçaõ de
Christaõ:
esta Escola devia considerarse como hũa Parrochia
debayxo da Jurisdiçaõ immediata do Ordinario
que presentaria o Parrhoco e hum ou dois Vigarios,
naõ só para administrar os Sacramentos, mas para
instruir nos Domingos e dias de Festa na Religiaõ:
mas sem Novenas, Irmandades, Confrarias, e outras
Instituiçoens, que naõ saõ essenciais
á Religiaõ Catholica:
este mesmo Parrhoco e Vigarios, ja se sabe
que inculcaraõ naõ só o que
saõ obrigados a ensinar,
mas a serem os milhores Subditos, porque saõ os mais
bem premiados do Estado.
A segunda sorte de Mestres, seriaõ os Militares e
todos aquelles que ensinariaõ os exercicios corporais,
para fortificar o corpo, faze-lo agil e endurecido ao trabalho
[195]e á
fadiga que requer a guerra. He necessario
considerar-se em Portugal se acharaõ Officiais Militares,
que ensinem o manejo das
armas, as
Evoluçoens e a
Tactica: he necessario ponderar qual
sorte de Officiais
devem ser preferidos para ensinar nesta Escola, se os
Estrangeyros, se os Nacionais?
Parece que o fim e o principal objecto desta Escola
deve ser, «Que a Nobreza e a Fidalguia fique
taõbem
instruida, e taõbem morigeradas quo
obedeçaõ ás Leis
Patrias, á subordinaçaõ dos Mayores, e
que percaõ
aquella idea que devem ser premiados por descenderem
de tal ou tal caza: e que fiquem no habito de pensarem,
que só pelo seu merecimento chegaraõ aos postos e
ás
honras a que aspira a sua educaçaõ».
Se este for o intento de sua Magestade, ficará facil
decidir que devem ser preferidos os Officiais Militares
Estrangeyros aos Nacionais: o Official Portuguez, que
ensinar ou instruir na sua obrigaçaõ hum Menino
Fidalgo,
sempre lhe mostrará huma distinçaõ ou
sumissaõ,
e não se atreverá a executar com elle, o que pede
a
disciplina Militar: esta he e deve ser cega para mandar
a Nobreza, ainda da mayor esphera: e deste modo
parece que só os Officiais Militares Estrangeyros
podiaõ
cabalmente satisfazer esta taõ essencial parte do ensino
que se pretende.
Seis até oito Officiais Mayores, como, por exemplo,
hum Mayor, hum Vice-Mayor, tres ou quatro Capitaens,
e outros tantos Tenentes Estrangeyros seriaõ bastantes;
porque o Commandante, ou Tenente del Rey, a cujo
cargo estaria a dita Escola, sendo Official Geral devia
ser Nacional, e dos mesmos educandos podiaõ sahir
[196]
os Sargentos de numero, de supra, os Cabos de esquadra,
etc. e por muitas consideraçoens que naõ
pertencem
aqui, deviaõ ser estes Estrangeiros da
Naçaõ
Suissa, naõ sendo obstaculo para este effeito a
Religiaõ
Protestante que seguem aquelles Republicanos pela
mayor parte.
O dia da quinta feyra seria destinado enteyramente
para o exercicio militar, o
manejo da Espingarda, as
Evoluçoens Militares e a Tactica.
Assima fica proposto que cada companhia constaria
de
vinte ou vinte e quatro
Educandos, o que se deve
entender no principio deste establecimento; mas podia
estenderse este numero até cem em cada companhia, e
poderiaõse completar os Officiais de cada huma dellas,
como Alferes e Tenentes, com Officiais Educandos.
Seria util que o resto dos Mestres, para ensinar todos
os exercicios do corpo, como são
a dansa, a
esgrima,
montar a cavallo e nadar, fossem Portuguezes, com
aquellas qualidades necessarias para ensinar; estes
exercicios seriaõ quotidianos e distribuidos no tempo
que indicaremos abayxo, quando tratarmos da
instruçaõ
nas Lingoas e Sciencias.
Os Mestres para ensinar a
Lingoa Castelhana, Franceza
e Ingleza, necessariamente deviaõ ser
Estrangeiros;
e na Escola Militar de Paris os serventes saõ Alemaens
e Italianos, para que, pelo uzo, aprendaõ aquelles
Educandos estas Lingoas, alem do ensino, que tem dos
Mestres: methodo que se devia imitar.
Igualmente seria necessario haver mais Mestres Estrangeiros,
para ensinar as sciencias, ou na Lingoa
Franceza, ou na Latina, e mesmo de Religiaõ Protestante,
[197]o que
naõ sei, se
será bem aceita esta proposta.
Mas considerando que só entre os Alemaens e os
Suissos saõ bem conhecidas a Philosophia Moral,
Origem do Direito das Gentes e do Civil, a Historia
Antigua e a Politica dos nossos tempos, ninguem duvidará
escolher os Homens doutos destas Naçoens,
para este ensino.
Naõ he novo ensinarem os Protestantes nas Escolas
publicas Catholicas: a Universidade de Padua teve
Lentes de Mathematica Protestantes, como foi M. Herman
Suisse, Autor da
Phoronomia. Em
muitos Estados
Catholicos de Alemanha he a practica ordinaria,
porque cada Mestre ou Lente se contem a ensinar
unicamente a Sciencia que professa, e como os Educandos
seraõ instruidos cada dia pelos Ecclesiasticos da
mesma Escola, e pelos Mestres Portuguezes ao mesmo
tempo, naõ se poderá temer com razaõ,
que o ensino
dos Estrangeiros possa prejudicar a Educaçaõ no
que
toca á Religiaõ, nem á santidade dos
costumes.
As leis da economia interior desta Escola, e a sua
exacta observancia, as instruçoens que cada Mestre
havia de receber, quando entrasse no seu cargo, com
juramento de as observar, conforme á sua
Religiaõ,
seria o methodo effectivo da boa ordem e da utilidade
desta Escola. Porque como toda ella devia depender
immediatamente de S. Magestade, e ficar na dependencia
do Secretario do Estado, por o Governo interior
do Reyno, seria mui facil obviar a qualquer desordem,
e executar tudo o que estivesse decretado.
[198]
§.
Das Lingoas e Sciencias que se deviam ensinar
nesta Escola, e em que tempo?
Nos cinco dias, vem a saber, secunda feira, terça
feira, quarta feira, sexta feira, e sabado poderiaõ estes
Educandos occuparse em vinte liçoens.
Cinco liçoens de
Grammatica da sua propria lingoa;
escrevela e compôr nella com propriedade e elegancia;
a lingoa Latina, Castelhana, Franceza e Ingleza.
Tres liçoens de
Arithmetica, Geometria, Algebra,
Trigonometria, Secçoens conicas, etc.
Tres liçoens de
Geographia, Historia profana, sagrada,
e militar.
Duas ou
tres do Risco,
Fortificaçaõ, Architectura
militar, naval, civil, com os instrumentos e modelos
necessarios para aprender estas Sciencias.
Duas de Hydrographia, Nautica, com
os instrumentos.
Cinco dos exercicios corporaes:
dança, esgrimir,
manejo da espingarda, montar a cavallo, e nadar.
Ja se vê que ao passo que os educandos souberem a
sua lingoa, a Latina, e a Franceza, a Geographia, a
Chronologia, e os Elementos da Historia, que devem
passar a outras classes onde se ensinaraõ as sciencias
que dependem destes conhecimentos. Alem das referidas
necessariamente se deviaõ ensinar:
A Philosophia Moral por theoria e practíca:
O Direito das Gentes, os Principios do Direito Civil,
Politico e Patrio, que deviaõ ser as nossas
Ordenaçoens
reformadas, á imitaçaõ daquellas de
Turin publicadas
[199]
e decretadas por Victor Amadeo no anno de 1721
e 1724:
A Economia Politica do Estado, isto he o conhecimento
da Agricultura universal: a Navigaçaõ, e o
Commercio nos Mares conhecidos.
Pode se duvidar com razaõ se todos os educandos
devem aprender sem distinçaõ a Lingoa Latina, e
as
Sciencias mais elevadas. He certo que devia haver
excepçaõ nesta materia; e conformar o ensino ao
genio,
inclinaçaõ e engenho dos educandos; sem embargo
desta precauçaõ todos seriaõ obrigados
aprender sem
distinçaõ o seguinte:
Saber escrever a sua lingoa com propriedade, e com
a mesma fallar a Castelhana (de que injustamente fazemos
pouco cazo), a Franceza, e a Ingleza.
A Geographia, sem a qual naõ saberemos nem ainda
a nossa Historia que deviaõ todos saber, com a de
Castella, de França, Inglaterra, e o principal da
Ecclesiastica:
pelo menos aquelles
Discursos de l'Histoire
Ecclésiastique de
M.
l'Abbé de Fleury.
A Arte de Guerra e da Nautica; esta tambem por
practica, embarcandose em cada viagem de Navios de
Guerra para as nossas Colonias alguns destes educandos.
Todos os Estatutos Militares, e Nauticos; mas naõ
superficialmente, como he
máo
costume; mas com exactidão
e intelligencia.
Todos os exercicios do corpo referidos; e saber arte
de conhecer os cavallos, os seus petrechos, o seu sustento,
e tudo que toca ao Inspector General da Cavallaria;
necessaria precaução para ser official perfeito
nesta parte do exercito: do mesmo modo se devia
[200]
aprender tudo que pertence a hum navio de guerra: e
na Artilharia, e Architectura Militar.
O que se contem naquelle livrinho, que dissemos
assima se está compondo
tocante
ás Obrigaçoens, que
saõ os Principios da Philosophia moral practica.
No cazo que o juizo de algum educando fosse taõ
estupido que não seja capás de aprender o
referido,
pelas instruçoens Reais para as Escolas, devia ser rejeitado
desta Escola Real; e como lhe ficassem ainda
braços para manejar huma espingarda, ou para defender
o seu posto em hum navio de guerra, esta seria
sua distinaçaõ; servindo de utilissimo monumento
esta
piedoza resoluçaõ para o Estado e para esta
Escola
Real Militar; que assim sabia tratar os educandos
menos habeis.
§.
Ponderaçam sobre a Lingoa
Latina
Entender e saber a Lingoa Latina com algũa
perfeiçaõ
naõ se estima ordinariamente por qualidade necessaria:
mas he notado de má creaçaõ e he
reputado por ignorante,
quem a naõ entende; tantos Authores que
escreveraõ
era inutil a hum Militar, a hum Capitaõ de
Mar, e outros Cargos publicos, naõ tem outro fundamento
mais, do que mostrarem que tem na sua propria
Lingoa todas as Sciencias e Artes escriptas, e que sabendoa
com perfeiçaõ aproveitaõ o tempo em
aprendellas,
que perdiaõ certamente em quanto estudavaõ o
Latim: mas he engano manifesto. Quem assim escreve,
e assim declama, sabe Lingoa Latina, e naõ se
[201]
apercebe que se a naõ soubesse, teria milhares de
occasioens de dezejar sabéla. Notou M. de Voltaire
que Louis Quatorze, e M. Colbert seu Secretario de
Estado naõ sabiaõ Latim, e que elles
promoveraõ as
Sciencias mais que os Reis, e Ministros que foram
doutos; e que M. Colbert, sendo ja Ministro aprendia
esta Lingoa. Carlos Quinto, Henrique Terceyro de
França lamentáraõse muitas vezes que a
ignorarem:
todos aquelles de quem se pode esperar tiveraõ boa
creaçaõ, saõ reputados saberem latim:
porque todos os
Mysterios da nossa Religiaõ, todos os actos Religiosos
della saõ nesta Lingoa, e será couza lamentavel
que
hum Gentilhomem na Igreja intenda tanto como o Villaõ,
ou hũa criada. No trato do mundo occorrem mil
occazioens de saber Latim, hũa sentença
que se dis
nesta Lingoa em conversaçaõ; o titulo de hum
livro
latinizado, ou em latim; estando nos Cargos ou civis ou
politicos, ou nos da guerra ha milhares de occazioens
onde o Latim he necessario; de outro modo fica o Ministro,
ou o General envergonhado, e confuzo. Para
resolver se hum mosso Nobre, nesta Escola que se
propoem, devia aprender o Latim ou naõ, naõ devia
ser aquelle que o sabe. Pelo contrario devia ser hum
Gentilhomem, ou Fidalgo com conhecimentos da vida
civil e politica, que o naõ soubesse: estou certo que o
seu voto nesta materia seria pela affirmativa, porque
terá experimentado quanta confuzaõ, vergonha, e
mortificaçaõ
lhe cauzou ás vezes não entender o Evangelho,
os textos dos Prégadores; os Hymnos, as
Sentenças,
e palavras Latinas encadeadas na lectura da Lingoa
vulgar, e sobre tudo na conversaçaõ.
[202]
Alem do referido, que he a nossa Lingoa, acharemos
que a Castelhana, a Italiana, a Franceza, e muita parte
da Ingleza, naõ he mais que a Lingoa Latina, ou corrupta,
ou com terminaçoens differentes: como he possivel
que hum Portugues tenha hũa idea distincta,
clara e completa destas palavras:
Conceder,
sujeitar,
reservar,
resolver,
publicar,
exceder,
promover, etc.,
sem saber a Lingoa Latina? Ainda que aprenda a
Grammatica da nossa Lingoa, ainda que venhaõ Bluteaus
novos de Irlanda a fazernos Dicionarios
[84]
, jamais
a saberemos bem, sem ter primeiro aprendido o Latim,
e naõ creyo que jamais Portugues sem ella a
escreverá
rectamente, apezar das orthographias á Italiana que
começaõ a vogar nas pennas dos Noveleiros e de
quem
se preza saber antes a Lingoa Estrangeyra do que a
sua propria.
Por estas razoens, parece que he indispensavel que
esta Lingoa entre na educaçaõ da Mocidade Nobre:
todo o ponto está que quando a aprenderem lhes
naõ
ensinem Grammatica em lugar da Lingoa Latina; a
Grammatica ou se deve ensinar explicando a Lingoa
materna, ou depois de saber mediocremente a Latina;
e o primeiro dia que começariaõ a aprender esta,
nesse
mesmo começariaõ a traduzir ou algum Evangelho,
ou
os Proverbios de Salomaõ, por ser o Latim mais
commum, como saõ ordinariamente todas as versoens, ou
interpretaçoens.
[203]
§.
Empregos e Honras com que haviam de sahir
os Benemeritos desta Escola
Chegados os educandos áquelle tempo que podem
ter algum emprego fora da Escola Militar, deviaõ ser
empregados conforme o genio, a capacidade, as forças,
e os seos Estudos: o Director dos Estudos daria conta
ao Conselho desta Escola, onde presidiria hum Secretario
do Estado, naõ só do proveito que cada educando
adquirira nos seos Estudos, mas que tal e tal poderia
ser util nos Negocios Estrangeyros; outro nos Tribunais
economicos do interior do Reyno; outro no serviço
da frota, e outro no exercito. Antes de serem
decorados com Cargos publicos, seria conveniente, que
se exercitassem aquelles destinados a navegar nos Navios
de Guerra expedidos a combater os Corsarios, ou
a conduzir as frotas: outros assistirem em certos Tribunais,
e Conselhos, como ouvintes, outros fazendo
campanhas, ou ficando por alguns mezes nas Praças
fronteyras do Reyno; e taõbem algum numero delles
no serviço da Corte; mas sempre com
obrigaçaõ de
voltar a viver na Escola Militar, onde deviaõ conservar
o seu posto até sahirem empregados nos Cargos publicos,
e com tenças procedidas de alguma Ordem Militar,
ou ja establecida ou que devia establecerse para
este fim.
Os Educandos que sayem da Escola Militar de Russia
depois de rigurozo exame no que aprenderaõ, saõ
empregados
primeiramente no exercito no posto de Tenentes,
[204]
de Capitaens, de primeiro e de segundo Mayor:
outros saõ destinados a sirvirem no Collegio dos Negocios
Estrangeyros, outros nos Collegios de Justiça e
Rendas Reais. Como naquelle Imperio o Almirantado
tem huma Escola de Nautica, com Pensionarios ou
Guardas Marinhas, todos igualmente Nobres, nenhum
Educando da Escola Militar he empregado no Almirantado.
Os Educandos da Escola Militar de Paris, sayem
para ser empregados no exercito, e tem por premio do
seu aproveitamento nos Estudos, os postos de Tenentes,
Capitaens e segundos Mayores: alem disso sahem decorados
com huma Ordem Militar, e huma pensaõ por
toda a vida de 30.000 reis, até 48.000 reis, paga
ás
vezes pela mesma Escola, e outras á custa da Ordem
Militar que professaõ. Assim somos feitos: Se naõ
conservamos a esperança fundada na honra, no proveito
e na distinçaõ glorioza, he impossivel
forçar a nossa
natureza a trabalhar, nem a cultivar o entendimento,
sorte de trabalho mais penivel, e que requer mais
constancia, do que o corporal.
§.
Utilidades que resultariam tanto ao Reyno,
como ao Soberano do exacto exercicio
desta Escola Militar, que se propoem.
Tenho mostrado por todo este papel, Illustrissimo
Senhor, que o trato e os costumes de huma Naçaõ
provem originalmente daquelles que tem os Senhores
das terras, e os que exercitaõ os Cargos do Estado.
[205]
Que me concedaõ que os Generais, os Almirantes, os
Magistrados, e todos os Cargos da Corte sejaõ administrados
por homens educados em huma escola, como
a que acabo de propor, estou certo que será hum Reyno
bem governado, com tanto que o Soberano premée e
castigue á risca, conforme as leis decretadas. Isto he
facil de conceber: mas se pelo contrario os mesmos
Generais e Cargos da Corte forem administrados por
homens educados em caza de seos Pays (como he hoje
costume), onde os Mestres temem de advirtir e castigar
os seos discipulos; onde a Ama ou a Aya, o Criado e o
Page são os Companheyros dos Meninos, os seos Manos,
toda a sua companhia, os seos confidentes em todos os
seos dezejos e apetites, entaõ poderemos julgar que
este menino conservará em quanto viver aquelles pessimos
habitos, que adquirio com os seos inferiores:
naõ saberá repartir o tempo para exercitar o seu
emprego,
para descansar, nem para dormir: buscará em
quanto viver todos os meyos para divertirse, e jamais
considerará occuparse, e muito menos cumprir com a
sua obrigaçaõ.
Os louvaveis effeitos da boa educaçaõ nesta
Academia
será o primeiro de
saber regrar cada qual o
seu
tempo em todo o dia: costumados a levantarse cedo,
ficalhes tempo para applicarse e para se divertir honestamente.
Todas aquellas maravilhas que obrou
Pedro Primeiro, Emperador da Russia, acho que não
tiveraõ outra origem que saber regrar o seu tempo.
Este raro e grande Principe, era o primeiro homem
que se levantava no seu Imperio, e o primeiro que se
deitava a dormir. Levantavase de veraõ e de inverno
[206]
ás tres horas da manhãa, ou estivesse na Corte,
ou em
campanha, ou viajando; tanto que se levantava estava
presente o Secretario do Cabinete, com as petiçoens e
papeis, que necessitavaõ de despacho; punhase a
despachál-as
até as quatro ou cinco horas da manhãa:
sahia dali e partia sem ceremonia na carruagem de
veraõ ou de inverno, acompanhado somente de dois
Dragoens a cavallo: entrava no Almirantado, onde já
estavaõ lá os Almirantes e os cargos do Conselho
d'aquelle Tribunal; e aquelle que faltava era apontado
o sallario d'aquelle dia, pela primeira vés. Ali prezidia
despachando com huma taõ ordenada actividade que
admirava, mesmo áquelles os mais practicos naquelle
cargo. Ali ficava das seis até ás sete da
manhãa.
Sahia daquelle Tribunal e chegava ao Senado, que he
o Tribunal supremo que corresponde, me parece, ao
nosso Dezembargo do Paço: com a mesma ordenada
exactidão despachava, e as nove horas da manhãa
estava
já na sua Corte: onde achava o Gran Chanceller,
ou primeiro Secretario de Estado, com dois mais, que
lhe presentavaõ os Negocios Estrangeiros, que ouvia e
despachava: depois deste tempo dava audiencia aos
Ministros Estrangeiros, e a todos os mais que lha pediaõ.
Ás onze horas sem falta jantava ou na Corte ou
em caza de algum Grande ou de algum Ministro Estrangeyro:
recolhiase a meyo dia; e até ás tres da
tarde, tudo estava na Corte no mais recatado silencio,
porque sempre durmio a sesta. Sahia ás tres horas a
examinar o que se passava no Collegio de Guerra;
outras vezes hia ao Collegio do Commercio e das
Minas; outras, a ver as Fabricas que tinha erigido;
[207]
outras, a ver as obras publicas que tinha ordenado;
ceava entre as seis e as sete, e ás sete horas da noite
se deitava: apagavaõ-se as luzes na Corte; o silencio
era igual ao de hum Convento: e deste modo conheci
eu muitos Senhores Russos, e o Feld-Marechal Conde
de Munnich, que viviaõ do mesmo modo, educados no
serviço daquelle gran Monarcha.
Este foi todo o segredo daquelle Emperador, para
obrar em trinta e seys annos que reynou; que parece,
pelas incriveis couzas que fes, que viveo duzentos. Em
saber distribuir e aproveitarse do tempo, consistio todo
este artificio, que só com a educaçaõ
masculina se
aprende.
Se consultarmos os monumentos da Historia, acharemos
que a gloria e augmento dos Reynos naõ lhes
veyo dos numerozos exercitos, nem das riquezas; acharemos
que foraõ illustres pela Educaçaõ dos
seos Monarchas
e dos seos Subditos. Relata Diodoro de Sicilia
[85],
que o Pay de Sesostris, Rey do Egypto, vendo
que lhe nacera hum filho ordenou que todos os Meninos
que naceraõ no mesmo dia, fossem creados e educados
com tanto cuidado e doutrina, que viessem capazes de
serem Companheyros e Mestres por habito e companhia
do Principe; e que este viera taõ excellente e
taõ admiravel,
pelas virtudes daquelles Companheyros, que naõ
só na Mocidade conquistára as Arabias, mas em
idade
avançada, sendo ja Rey conquistára desde a India
até
o Mar Negro. Excellente modo de educar os Principes,
pela companhia dos iguais na idade, nas inclinaçoens,
[208]
e divertimentos, e seriaõ bem aventurados os nossos
tempos, se esta sorte de ensino resuscitasse nelles.
Á Educaçaõ que teve el Rey Dom Dinis
devemos
tanta gloria como alcançou o Reyno em ser povoado,
rico, potente e respeitado; el Rey D. Duarte taõ cheyo
de virtudes, como vexado por disgraças, sendo educado
por sua May a Raynha Dona Phelipa, mostrou quanto
as Mays podem contribuir para a felicidade dos filhos.
O poder a que chegou França no tempo de Luis Quatorze,
e gloria que conserva ainda, teve origem na boa
educaçaõ de Henrique o Quarto e do seu Ministro o
Duque de Sully; ambos nascidos de Pais Protestantes,
ambos educados austeramente, com Mestres excellentes
nas sciencias e nos costumes, formaraõ o animo deste
Rey e deste seu privado, que toda a sua vida foi hum
modelo da ordem nos negocios e na applicaçaõ. O
Duque de Sully sendo de huma familia taõ Nobre
naõ
era a pessoa para administrar as Rendas Reais, porque
estes cargos andáraõ sempre exercitados pelos
Rendeyros
da Fazenda Real: mas a necessidade em que se
achava Henrique Quarto pedia hum amigo para remediála,
e naõ achou outro que o duque de Sully, o qual
naõ reparando bayxarse para levantar o seu Rey, com
o Reyno, dezempenhou o Estado, ajuntou thezouros,
destruio os inimigos, resuscitou a agricultura do Reyno
que estava perdida, introduzio o comercio, e instituio a
cultura das sedas, e fabricas destas e das lans. Que
se leam as Memorias
[86]
deste grande Ministro, e então
ficaraõ todos persuadidos que o segredo de adquirir
[209]immortal fama nos
postos e nos cargos com utilidade
publica, consiste na distribuiçaõ do tempo, na
ordem
da vida e regra de viver; o que sómente se aprende na
primeira idade, como habito que fica por toda a vida.
Dizia Socrates, que era couza notavel que havendo
Mestres, e Escolas para aprender tudo o que era necessario
para ser rico, considerado, e auctorizado, que
só naõ conhecia huma onde os homens e os meninos
fossem a aprender a ser bons. Eu sem tantos conhecimentos,
e com menor virtude acho que em Portugal
terá a Nobreza e a Fidalguia Mestres a milhares que
lhes ensinem as lingoas, dançar, esgrimir, montar a
cavallo, e sobre tudo as Genealogias, mas naõ posso
considerar que haja hum, que lhes ensine que he
obrigado
a obedecer aos Magistrados, e a todos aquelles
empregados no serviço do Estado, como sejaõ seos
Mayores; naõ posso considerar que possa a Fidalguia
perder aquella soberba com que nace, e aquella independencia,
do que em huma Escola Militar, governada
pella
disciplina Militar, que
naõ conhece outra Genealogia,
nem Sangue Real, do que o cargo e o merecimento.
Se esta mocidade desde a idade de nove
ou dés annos estiver costumada ser mandada, e posta
em prizaõ por hum Tenente, ou Capitaõ nobre, ou
naõ
Nobre; se for castigada por ter insultado o seu Mestre,
ou hũa criada ou servente da dita Escola,
perderá
aquelle habito que contrahio em caza em companhia
das Ayas, e dos creados graves, e queyra Deos, que
não fosse contrahido com domesticos de esfera mais
inferior?
Esta disciplina Militar, esta ordem, e saber repartir
[210]
o seu tempo, se espalharia por todas as tropas, e por
toda a armada, porque ja dissemos que todos os subalternos
imitaõ os vicios, ou as virtudes, o trato, e o
modo de viver dos superiores. Que Escolas temos no
Reyno onde a Fidalguia na primeyra idade possa
aprender a
moderar as suas payxoens?
a ser constante
nas adversidades, e nos perigos? Felis seria a Corte
que constasse dos que forão assim educados! As Leis
teriaõ vigor, porque os Subditos as executariaõ;
e estando
autorizados, as observariaõ; conhecendo interiormente
terem superior, e que saõ nacidos Subditos. Em
que Escola se aprende hoje no Reyno amar a sua
Patria? naõ consiste este amor perder a vida por ella,
atacando hum Corsario, ou subindo por hũa brecha;
a gloria que redunda destas acçoens, recompensa bem
o perigo: este amor consiste em serlhe util, e em
augmentar por todos os meyos a sua conservaçaõ, e
a
sua grandeza: ama a sua Patria o Senhor de terras,
que as faz ferteis, que multiplica por cazamentos as
aldeas, contribuindo com o seu, e com as suas terras
a sustentar estes Subditos, e os que haõ de vir desta
uniaõ: ama a sua Patria aquelle que podendo comprar
hum vestido de pano de Inglaterra o manda fazer de
covilhãa; estes saõ os Patriotas, e aquelles que
conhecem
no que consiste a sua conservaçaõ, e a sua
ruina. Sómente na Escola proposta se poderaõ
adquirir
estes conhecimentos, e adquirir estes habitos virtuozos.
Admiramonos da temeridade del Rey Dom Sebastiaõ,
naõ só por expor-se cotidianamente aos perigos
mais
iminentes, mas de passar a Affrica como hum aventureyro;
accuzamos, ainda que com razaõ seos Mestres
[211]
os Jesuitas, e sobre todos Pedro Gonsalves da Camara,
e naõ accuzamos os costumes estragados, e a ignorancia
da Fidalguia daquelles tempos. E nenhum incentivo
mayor teraõ jamais os Nossos Reys para cuidarem da
severa educaçaõ da sua Fidalguia do que a
catastrophe
do referido Rey; porque he certo que se fosse como
pedia o seu nacimento, que naõ cahiria o Reyno naquelle
taõ lamentavel abatimento.
Os Reys que tiverem particular cuidado da
educaçaõ
dos Nobres e dos Fidalgos, he o mesmo que fortificar
praças, fazer frotas, e multiplicar a felicidade dos seos
dominios, fim de toda a Legislação de qualquer
Estado.
Relata
M. Ricaut[87]
que a grandeza e
a conservaçaõ
do Imperio de Turquia depende totalmente da
educaçaõ
que o Gran Senhor dá no
Seraillo á mocidade, que
elle adopta e cria á sua custa.
O referido Auctor no lugar citado dis assim
[88]
«O
Graõ Senhor naõ considera nos seos Ministros, nem
o
nacimento, nem as riquezas: elle tem por maxima empregar
aquelles que foraõ educados a sua custa; e como
elles naõ tem outro arrimo, nem outra esperança,
daqui
he que saõ obrigados á gratidaõ e a
servirem com a
mayor
fidelidade...........................................................................................
«Os meninos destinados a servir os mayores Cargos
daquelle Imperio, que os Turcos chamaõ
Ichoglans,
forçozamente hão de ser filhos de
Christaõs tomados
na guerra, e de terras distantes da
capital.......................................................................................
[212]........ Antes que estes
meninos entrem no lugar destinado
para se criarem os prezentaõ ao Graõ Senhor; e os
envia ou ao serrail de
Pera, ou ao
de
Adrianopoli, ou
ao de Constantinopla».
Ali saõ doutrinados naquelles tres Collegios, ou
pensoens com toda a severidade pelos Eunuchos; ali
aprendem todos os exercicios militares, escrever, e a
sua Religiaõ, e as Lingoas Persiana, e Arabiga: e nestes
filhos adoptivos se provem todos os Cargos do Imperio;
estes saõ aquelles que vem a ser Bachas, Vizires, etc.
He facil prever que sendo educados assim todos
aquelles que haõ de servir hum Estado, que seraõ
os
mais gratos, e os mais fieis ao seu Soberano, que
sempre consideraraõ como piissimo Pay. Se fossem
educados ingenuamente com os conhecimentos da Europa,
e com as maximas da Religiaõ Christã,
taõ excellentes
para conservar a paz, a humanidade, e cordialidade
entre os iguais e superiores, sentiria aquelle
Estado muito mayor utilidade daquella excellente
educaçaõ,
porque naõ he possivel considerar outro melhor
methodo para conservar huma monarchia, e para promover
a felicidade de hum Rey.
Tenho acabado o que prometi a V. Illustrissima, e
sem embargo que esteja persuadido que naõ satisfis a
tudo que pertence á materia que tratei, naõ
duvido será
de algũa utilidade, e será a mayor, a
meu ver, haver
mostrado a necessidade que tem o Reyno de huma
educaçaõ universal da Mocidade, governada por hum
novo Tribunal, dependente de hum Secretario de Estado.
Os defeitos, ou omissoens que V. Illustrissima
notar neste papel, ou cauzados pela auzencia de tantos
[213]
annos da Patria, ou pela ignorancia das circunstancias,
facilmente se remedearaõ, se V. Illustrissima for servido
notalos, porque entaõ me será mais facil acertar
com
a idea da perfeita educaçaõ da Mocidade
Portugueza.
Fico para obedecer a V. Illustrissima com o mayor
respeito.
Deos guarde a V. Illustrissima muitos annos
Paris, 19 Novembro 1759.
Antonio
Nunes Ribeiro Sanches.
TABOA DAS DIVISOENS
Das
Escolas, e dos Estudos dos Christaons
até o tempo
de Carlos Magno, no anno
800, |
Page
4 |
Reflexoens sobre
as Escolas
Ecclesiasticas, |
12 |
Continûa a mesma
Materia, |
17 |
Idêa das Obrigacoens da Vida Civil,
e do
Vinculo da
mesma
Sociedade, |
23 |
A Constituiçam Fundamental da
Sociedade
Christaâ, |
26 |
Continûa a mesma
Materia, |
27 & 37
|
Como os Ecclesiasticos introduziram governar
os
Estados
Catholicos, pelas Congregaçoens dos primeiros
Christaons, e pelas Regras dos
Conventos, |
42 |
Das
Universidades, |
59 |
Dos Estudos da Universidade de Coimbra,
depoís da
sua Renovaçam no anno
1553, |
65 |
Resumo do
Referido, |
69 |
Effeitos que cauzáram em Portugal
as
Escolas, e as
Universidades da Europa e do mesmo
Reyno, |
77 |
Continûa a mesma Materia. Effeitos
que
causaram nos
costumes as Leis
referidas, |
81 |
Continûa a mesma materia. E sobre a
Escravidam, e
sobre a Intolerancia
Civil, |
88 |
[216]
Que a nossa Monarchia se podia conservar com
a
Educaçam Ecclesiastica, que tinhamos: em quanto
conquistava: mas que nam he sufficiente depois de
acabadas as
Conquistas |
96 |
Objecto que devia ter a Educaçam
da
Mocidade Portugueza,
no tempo del Rey Dom Joam O Terceyro,
e parece que ainda
hoje, |
101 |
Da Natureza da Educaçam da
Mocidade, e do
Objecto
que deve ter no Estado onde he
nacida, |
108 |
Qualidades dos Mestres, para ensinar a ler e
a
escrever,
&, |
115 |
Do que haviam de aprender os Mininos alem de
ler,
escrever e contar,
&, |
118 |
Das Escolas da Lingoa Latina e da Grega,
Humanidades,
e da Lingoa
Materna, |
124 |
Dos Mestres e dos Discipulos das Escolas do
Latim
&, |
131 |
Necessidade que tem o Reyno de Escolas em
modo de
Seminarios, |
133 |
Continûa a mesma Materia, e das
Pensoens das
Escolas
do Latim no Reyno, por cauza da Educaçam
da Mocidade das Colonias e das Conquistas de
Ultramar, |
135 |
Das tres Classes de Discipulos das Escolas
Latinas,
&, |
138 |
Continûa a mesma
Materia, |
142 |
Digressam sobre as Pensoens e sobre a Lingoa
Latina
tanto no Reyno, como nas
Colonias, |
146 |
Da terceyra Classe de Estudantes que
aprenderia nas
Éscolas Reais a Lingua Latina, Grega,
&, |
152 |
Dos Estudos Maiores, ou Collegios
Reais, |
153 |
[217]
Sobre o ensino que deve preceder as Escolas
Mayores,
quer dizer, da Physica e da
Legislaçam, |
160 |
Em que lugar se haviam de ensinar as
Sciencias
referidas, |
166 |
Da Educaçam da Fidalguia e dos
Fidalgos,
que tem
Assentamento e Foro na Caza
Real, |
168 |
Que sorte de Educaçam convem
á
Fidalguia Portugueza,
que seja util a si e á sua
Pátria?, |
174 |
Continua a mesma Materia. Em que lugar devia
ser
educada a Fidalguia e Nobreza de
Portugal, |
178 |
O que sam as Escolas
Militares, |
182 |
Propoemse huma Escola Real Portuguesa, para
ser
nella educada a Nobreza e a Fidalguia. Economia
interior, |
185 |
Em que idade deviam entrar os Educandos na
Escola
Real
Militar?, |
188 |
Consequencias por nam criarem as Mays seos
filhos, |
189 |
Dos Mestres da Escola Real Militar, para a
Arte da
Guerra e das
Scíencias, |
194 |
Das Lingoas e Sciencias que se deviam ensinar
nêsta
Escola, e em que
tempo?, |
198 |
Ponderaçam sobre a Lingoa
Latina, |
200 |
Empregos e Honras com que haviam de sahir os
Benemeritos
desta
Escola, |
203 |
Utilidades que resultariam tanto ao Reyno,
como ao
Soberano do exacto exercido desta Escola Militar,
que se
propoem, |
204 |
fim
da taboa
Publicados:
CAVALEIRO DE OLIVEIRA.―Discours Pathétique au sujet
des calamités présentes, arrivées en
Portugal. Nova ed.
seguida duma notícia bibliográfica pelo Dr.
Joaquim de
Carvalho.
RIBEIRO SANCHES.―Cartas sobre a educação da
mocidade.
Ed. prefaciada e revista pelo Dr. Maximiano Lemos.
No
prélo:
CAVALEIRO DE OLIVEIRA.―Reflexoens de Felix Vieyra
Corvina de Arcos, Christam Velho Ulissyponense sobre a
Tentativa Theologica, composta pello Reverendo e douto
Padre Antonio Pereyra da Congregaçam do Oratorio de
Lisboa.
JOSÉ DA CUNHA BROCHADO.―Memorias particulares, ou
anedotas da Corte de França apontadas no tempo que
servio de Enviado naquella Corte.
Notas:
[1]
Maximiano Lemos―
Ribeiro
Sanches, doc. 23 e 24 a
pág. 345 e 346.
[2]
Ofício de Monsenhor Salema de 7 de janeiro de
1760.
[3] Discours
sur l'Histoire
Écclesiastique, Discours II. §
XIII.
Paris, 1750.
in-8.º
[4] Apud
Baronium, tom. IV. pag. 107 & 108. Ed. Romanae,
ex Epistol. 42 Julian. Apostat.
[5] Apud
Baronium, tom. IV pag. 172. «Si quis erudiendis
adolescentibus vita pariter & facundia idoneus erit, vel novum
instituat auditorium, vel repetat intermissum. Dat. III. Id. Januar.
Divo Jovian.
& Varroniano. Coss.»
[6] Tom. 3.
Editionis Romanae, per totum.
[7]
No Decreto de Graciano. Part. II. Causa XI. Cap. 2
& 3. 36
& 37. Vid. Fleury,
Histoire
Eccles. liv. 59. n.º 28. & les Discours VII
sur l'Histoire Ecclesiastique.
[8]
Apud Herm.
Conringium de antiquitatibus
Academicis, editionis
Heumanni, Dissert. VII.
Gotingae, 4.º ibi pag. 33. Dissert. prima.
O Emperador Justiniano viveo no anno 565.
[9] In
arcana Historia,
pag. 113.
[10] Tom. 3.
[11] Traité
des Ecoles Episcopales
& Ecclésiastiques, par Claude
Joly, Paris, 1678. ibi, pag. 92, & 112 & 113.
[12] Escrita
por este Patriarcha, no anno 530.
[13] Joly,
ibi, cap. XXI.
[14] Discours
sur l'Histoire
Ecclés. de M. l'abbé de Fleury.
Discours
III.
[15] Apud
Joly,
Traité des Ecoles
Episcopales, cap. 18.
[16]
Decretalium lib. V.
tit. 33. de Privilegiis Cap.
super
specula.
«Sane licet Sancta Ecclesia legum secularium non respuat
famulatum...
firmiter interdicimus & districtius inhibemus, ne Parisiis,
vel in civitatibus, seu aliis locis vicinis, quisquam docere vel audire
jus
civile
praesumat.» Gregor.
IX. Praefat.
lib.
I, Decretal.
«Volentes
igitur ut hac tantum compilatione
Universi utantur in
Judiciis &
in Scholis, districtius prohibemus, ne quis
praesumat aliam facere
absque autoritate Sedis Apostolicae
speciali».
E o Papa Joam XXII.
no anno 1316
no Prefacio ás Clementinas,
feitas para a Universidade de Bolonha, dis «Universitati
vestrae
per Apostolica Scripta mandantes, quatenus eas promptu affectu
suscipiatis, & studio alacri, eis, sic vobis, manifestatis,
& cognitis,
usuri de caetero in
Judictis, & in
Scholis.»
[17]
Concilio de Trento, Sess.
XXV. de Reformat.
Cap.
II.
[18]
Plataõ lib. V. de Republica.
[19]
Atque ipsa utilitas justi prope mater & aequi.
Horat.
I. Sermon.
3. V. 98.
[20] De
civitate Dei lib.
II. cap.
VI. «Alii
religionis
antistites per
quos sapere non aditur, apparet, nec illam esse veram sapientiam,
nec hanc veram Religionem».
Lactant. lib. v Divin. Institit.
cap. III.
n.º 1.
«Nihil
ibi definitur
quod proficiat ad mores excolendos, vitamque formandam; nec
habet inquisitionem aliquam veritatis, sed tantummodo
ritum colendi,
qui non officio mentis, sed ministerio corporis constat».
[21] Histor.
lib. I, cap.
I.
[22]
Math. 27,
V. 18. Data est mihi
omnis
potestas, in caelo & in
terra: Euntes ergo, docete omnes gentes, baptizantes in N. P. &
F.
& S. S. docentes eos servare omnia quaecumque mandavi
vobis.
[23]
Joann.
XVIII,
V. 36. e
Luc.
XII. 14.
[24]
Matth.
XVIII.
V. 18.
[25] Quando
os Reis de Portugal decretavaõ alguma
ley sem
conhecimento dos Bispos, estes se queyxavaõ aos Papas, e os
summos Pontifices defendiaõ as pretensoens daquelles. Daqui
aquella concordia de el Rey D. Affonso 3.º, onde promete:
«Quod
omnibus negotiis contingentibus statum bonum Regni, cum Consilio
Praelatorum, vel aliquorum eorum procedam, qui convenienter
vocari poterunt. secundum tempus & locum, bona fide».
Com
el Rey D. Joaõ o I, succederaõ
as mesmas queyxas, e el Rey por
huma concordia responde: «Que quando ha alguma couza grande,
que se cumpre a bom estado do Reyno, e a seu serviço, sempre
uza chamar os Prelados, &c.» Vejase Gabriel Pereira
de Castro
de
Manu Regia. Lugduni 1673. fol. pag. 320 e 395: e mais
concordias
dos Nossos Reis no mesmo lugar.
[26] Fleury,
Hist. Eccles.
liv. 34. n.º 56.
[27] Canendi
artificium ecclesiasticum hoc seculo (era o
oitavo)
obtinuisse, eumque pro insigni Philosopho, viroque eruditissimo
reputatum fuisse, qui optime omnium cantasset... In vita Caroli
M. narrat Monachus Engolis mensis. «Ecce orta est contentio
per
dies festos Paschae inter Cantores Romanorum &
Gallorum: Dicebant
Galli melius se cantare & pulchrius, quam Romani. Dicebant
se Romani doctissime Cantilenas Ecclesiasticas proferre...
quae contentio ante Dominum Regem Carolum pervenit».
Non
afferemus reliqua, quibus narrat, quomodo Gallorum cantum ad
normam Gregoriani cantus reformaverit Imperator. Videndus Launoius
de Scholis celebrioribus, cap. I.
Bruckerus,
Histor. Critica
Philosophiae, tom. III, p. 571 & 72,
Lipsiae, 1743, 4.º
[28]
Dixisse, «nihil esse difficilius quam bene
imperare». Colligunt
se quatuor vel quinque, atque unum consilium ad decipiendum
Imperatorem capiunt; dicunt quid probandum sit. Imperator qui
domi clausus est, vera non novit: cogitur hoc tantum scire, quod
illi loquuntur: facit judices quos fieri non oportet, amovet,
à Republica
quod debebat obtinere; quid multa? ut Diocletianus ipse
dicebat; «Bonus, cautus, optimus, venditur
Imperator». Haec Diocletiani
verba sunt.
Flavius Vopiscus in Aureliano pag. 330.
Historia
Augusta edit.
Causabon. Parisiis, 1603, 4.º
[29]
Pelo Concilio XIII, celebrado no tempo de Ervigio, no anno
681, se decretou que nenhuma Rainha viuva se podesse
cazar; quazi todos os seos canones constaõ de materias
temporais.
[30] No
Concilio XI de Toledo, anno 675, se decretou pela
primeira
vez que os Bispos tivessem o poder de mandar prender, e
de desterrar.
[31] Vide
Epistolaram
Decretalium Isidori
Mercatoris figmenta
a Blondel. Genevae 1635, 4.º
[32]
Fleury,
Hist. Eccles.,
lib. 44. n. 22, & Discours 7.
[33] Fleury,
Hist. Eccles.,
lib. 44. n. 22, & Discours 7.
[34] Ibid.
[35] Fleury,
Hist. Eccles.,
liv. 70. n. 28.
[36] Ibid.
[37]
Apostolorum Canon. 24. «Episcopus, aut
Presbyter, aut
Diaconus in fornicatione, aut perjurio, aut furto deprehensus,
deponitor;
non tamen a Communione excluditor. Dicit enim scriptura:
bis de eodem delicto vindictam non exiges».
[38] Liv. 2.
tit. IX.
[39] Ibi.
tit. VI.
[40] Pereyra
de Castro
de Manu
Regia: tras todas as concordias
feitas entre os Nossos Reis, e os Papas ali se podera ver de que
modo absorbiaõ os Ecclesiasticos o Poder Real. Vejase da
pag. 313,
ate 431, da ediçaõ de Leaõ de
França.
[41] O
Cardeal Baronius dis ao anno 1073, que no Concilio de
Worms convocado pelo Emperador Henrique IV, e pelo Arçobispo
de Colonia, e outros Prelados, vinhaõ acompanhados de
Theologos.
«Stipatus uterque magno grege
Philosophorum, immo
Sophistarum, quos ex diversis locis summo studio consciverant,
ut Canones sibi non pro rei veritate, sed pro Episcopi voluntate
interpretarentur.»
[42] Fleury,
Hist. Eccl.,
liv. 40, n. 29. Mariana,
Historia de
Espanha,
lib. 7, cap. 14.
[43] Discours
sur l'Histoire
Écclesiastique, vol. 2.º Paris,
in-8.º
[44]
Eraõ estas nos primeiros seculos da
Christandade privar
aos peccadores dos Sacramentos por quinze, e por vinte annos, e
algumas vezes por toda a vida; humas vezes ficavaõ debaixo
do
alpendre fora da Igreja; outras vezes dentro, mas deytados de
bruços: obrigavaõ
(
a) jejuar à
paõ e agoa, (
a) trazer
cilicios, cinzas
sobre a cabeza, deyxar crecer a barba, e o cabelo, ficar encerrado,
e renunciar ao comercio do mundo: existe ainda hoje hum Tribunal
adonde os culpados saõ forçados
(
a) sofrer estas penitencias:
apartandose do costume da Igreja primitiva que somente
as impunha aquem pedia espontaneamente perdaõ dos seus
peccados,
e os confessava.
[45] Ordenaçoens,
liv. 2, tit.
IX. «Para que cessem duvidas que
pódem haver sobre quaes saõ os Cazos, e delitos
Mixtifori, em
que os
Prelados, e seus Officiaes, podem conhecer
contra Leygos... os dittos cazos Mixtifori são
seguintes. Quando se procede
contra
publicos
adulterios, barregueiros,
concubinarios, alcoviteiros, e os
que consentem as molheres fazerem mal de sy em suas cazas, incestuozos,
feiticeyros, benzedeiros, sacrilegos, blasphemos, perjuros,
onzeneiros, simoniacos... tabolagens de jogo... posto que
neste cazo ouvesse duvida, se era mixtifori, ou naõ,
&c.»
[46]
Apud Fleury, Discours VII,
sur l'Histoire
Ecclésiastique,
pag. 320.
[47] Fleury,
Discours troisième de
l'Histoire Ecclésiastique, tom.
I,
pag. 233 & 234.
[48] Fleury,
Hist. Eccles.,
liv. 80, n. 51.
[49]
Ordenaçoens, liv. 2. tit.
VI. lib.
V. tit.
I.
[50]
Lib. X.
Epistol.
XCVII.
«Cognitionibus de
Cristianis interfui
nunquam... adfirmabant autem hanc fuisse summam, vel
culpae suae, vel erroris, quod essent soliti stato die
ante lucem convenire:
carmenque Christo, quasi Deo, dicere secum invicem: seque Sacramento
non in scelus aliquod obstringete, sed ne furta, ne latrocinia,
ne adulteria committerent, ne fidem fallerent, ne depositum
appellati abnegarent: quibus peractis morem sibi discedendi
fuisse,
rursusque coëundi ad capiendum cibum,
promiscuum tamen
& innoxium, quod ipsum facere desisse post
edictum meum, quo
secundum mandata tua
haeterias, (são
sociedades,
ajuntamentos ou
confrarias), esse
vetueram».
[51] Lib.
VI. Epist. 2. apud
Fleury,
Discours sur l'Histoire
Ecclesiastique,
tom. I. pag. 246. E
na Historia
deste Autor, liv. 62. n. 36.
[52] Jam
verò prudenter intueamur, quod scriptum
est,
fidelis
hominis totus mundus divitiarum est, infidelis autem nec
obolus (este
texto não se lê assim nos Proverbios de
Salamaõ), nonne omnes,
qui sibi videntur gaudere licite conquisitis, eisque uti nesciunt,
aliena possidere convincimus? Hoc enim certe alienum est quod
jure possidetur: hoc autem jure, quod juste, & hoc juste quod
bene: omne igitur quod male possidetur, alienum est... donec
fideles & pii quorum jure funt omnia. Epistol. 54.
vulgò tom.
II,
vel 153.
Et quamvis res quaeque terrena non recte à quoquam
possideri
non possit nisi vel jure divino, quod cuncta justorum sunt, vel jure
humano, quod in potestate Regum est terrae... Epist. 93.
(vulgo 48) & in Joannis Evang. tract.
VI . §. 25.
De todos estes
lugares se
aproveitou Gratiano Distinct.
VIII. Caus.
XXIII.
Quaest.
VII. para
seguir a doutrina que relatamos para confiscaremse os bens dos
hereges com justiça. Vejase nesta materia Barbeyrac,
Traité de
la Morale des Peres. Amst. 1728. 4.º pag. 292,
& seguintes.
[53] De
Manu Regia, p. 434.
edit. Lugdun.
[54] Ibi.
Part. segunda, pag. 159... «Regio Diplomate
Sebastiani
Regis emanato anno 1569, per quod Praelatis fid libera
facultas
capiendi, & puniendi Laicos, illis casibus, quibus a sacro
Concilio ad permissum & imperatum est».
Ali tras o Alvará; que certamente foi ordido pelos Padres
jesuitas
que entaõ governavaõ o animo do Cardeal Henrique,
que
naquelle tempo era Regente do Reyno: os mesmos jesuitas
governávaõ
entaõ Portugal como hum convento de Frades; porque
prohibiraõ todo o luxo, determinaraõ a quantidade
de Comida
nas mezas, e outras severidades Monachais. Vide Conestagio,
Historia de Portogallo.
Gabriel Pereyra de Castro diz, depois de copear o ditto
Alvará:
«An Rex per se solus sine publicis comitiis hoc potuisset
facere»
vid. etc.
[55]
Gregorius IX, in Praefatione I. Decretalium. Et
Joann. XXII.
ann. 1316, Praefatione ad Clementinas.
[56] Historia
Universitatis
Pariensis, A Caesare Hagasio
Bulsaeo
Parisiis 1665, fol. tom. II,
secul. IV, pag. 255,
ad annum
1150. Siguiremos
este Autor, e Coringio
de Antiquitatibus
Academicis,
Dissertationes VII,
cum
Supplementis, recognovir Christianus Aug.
Heummannus. Gottingae 1739, 4.º, e a
Historia Ecclesiastica de M.
l'Abbé de Fleury.
[57] Vide
Pancirollum variat. Lectionum lib.
I. cap. apud
Coringium
Dissertat. IV.
§.
VIII.
[58]
Sensus Sacrae Facultatis Theologiae
Conimbriensis circa
Constitutionem, quae incipit
Unigenitus Dei
Filius. Conimbricae
1717, 4.º Ibi pag. XVII.
«1. Romanum Pontificem, etiam extra Concilium, supra quod
est, de re dogmatica, sive de rebus, ad
Fidem
& mores pertinentibus
e Cathedra docentem Universae Ecclesiae Fideles
habere assistentiam
infallibilem Spiritûs Sancti, proindeque, nec decipi, nec
decipere
posse.
«2. Constituitiones Pontificias non indigere, ad suum robur
ac
vigorem obtinendam, fidelum populorum acceptationem, aut consensu,
nec proinde talem acceptationem, aut consensum aliquo
modo authoritativum».
«3. Sentire omnes ad valorem alicujus Bullae
Pontificiae & Dogmaticae, multo minus requiri acceptationem
aut
consensum alicujus
particularis Ecclesiae, sed sufficere solum locutionem
Pontificis
ex Cathedra universam Ecclesiam docentis».
«4. Omnes testati sunt se
non causa
acceptandi, praedictam
Constituitionem convenisse, quasi ipsa tali acceptatione indigeret
ad suum valorem, sed tantum ad eam
venerandam, ac
debitam eam
obedientiam praestandam. Quapropter censuerunt omnes
Sacrae
Theologicae; Facultatis Magistri & Doctores.
«5. Oportere ut omnes, non solum Sacrae
Theologicae Facultatis,
sed
aliorum etiam Doctorum,
& Magistri... se jurejurando
obstringerent ad praedictam Bullam, &c.
E toda a Universidade jurou estas proposiçoens assima, e a
Bulla igualmente.
[59]
Aristoteles Polit. Lib VIII, per totum.
[60]
Clemens & clementia, a
colere
mentem & à cultura mentis
proveniunt.
[61]
De Liberis educandis.
[62] Instit.
Orator. lib.
I. cap.
I. e
começa assim
«Igitur nato
Filio Pater.... Desde o berço começou a
Educaçaõ do Orador,
do Orador que ha de ser huns dos principaes Subditos do
Estado.
[63] De
Civilitate morum puerilium. Parisiis 1537. 8.º
e nas
suas
obras em 10 volumes
in fol. Edit.
Lugd. Batavorum.
Marco Antonio Muretto escreveo para
um sobrinho que tinha,
a sua Institutio Puerilis, que começa assim:
Dum tener es, Murette,
avidis haec auribus
hauri,
Nec memori modo conde animo, sed exprime factis:
Mentiri noli, &c.
[64] A
natureza nos deu esta propriedade do
coraçaõ maviozo e piedozo que se afflige
do mal que ve sofrer ao seu
semelhante,
porque é parte delle:
Juvenal, Satyre
XV,
V. 131.
................Molissima corda
Humano generi dare se naturu fatetur
Quae lacrymas dedit haec nostri pars optima sensus:
Plorare ergo jubet caussam dicentis amici,
Squallorem que rei................
Naturae imperio gemiamus, cum funus adultae
Virginis occurrit, vel terra clauditur infans.
Esta piedade e ternura do coraçaõ se mostra pelas
lagrimas,
que saõ taõ proprias ao homem: só elle
chora, e he tudo o que
pode fazer quando nace: Ja que naõ posso pintar este estado
como Plinio, valerme-ei das suas palavras: «Hominem tantum
nudum, & in nuda humo natali die abjicit ad vagitus statim
&
ploratum... Itaque feliciter natus jacet manibus, pedibusque devinctis,
flens animal ceteris imperaturum». (Praef. lib. 7,
Hist.
Mundi). Mas este principio pela má
educaçaõ ordinariamente
fica sepultado em nós.
[65]
Sei que se está compondo este compendio para
satisfazer
este intento, e estou persuadido que se executará com summa
utilidade
conforme o dezejo de cada bom patriota.
[66]
Recopilacion de las Leyes destos
Reynos, por Philipe Quinto.
Madrid 1723, fol. I,
tit. 7, Ley
XXXIV.
[67] Hum
ducado
Castellano
de onze réales eraõ naquelles tempos
do valor de 650 reis, que multiplicados por 300 ducados,
faziaõ
195.000 reis: e como o valor da prata augmentou do anno 1623 a
quasi a metade, vem a ser estes 300 ducados nos nossos tempos
quasi 400.000 reis. He defeito de se darem os salarios pelo valor
numerario; seria mais estavel que fossem determinados por marcos
de prata: essa he a cauza porque as cadeyras das Universidades
valem hoje tão pouco. No tempo del Rey Dom João o
Terceyro
estava o marco a 2.600 reis, e hoje 60.000 reis: assim a cadeyra
que tinha de renda então 200.000 reis, valeria hoje pouco
mais ou
menos 450.000 reis: e por essa razão seria mais justo quando
se
fundão tais cadeyras de
determinar-lhe
o
salario em marcos de
prata, por ser o pezo inalteravel.
[68] Mestre
de Phelipe segundo ordenou «Ne quis e
Stirpe gentis
Hebraeae opimis Ecclesiae Toletanae Sacerdotiis potiretur: quamobrem
& invidiam sed constanti animo sustinuit, Judaeorumque
apologiam Lutetiae editam, calumniam elusit.»
Bibliotheca Hispanica
Andreae Schotti, tom.
III, pag. 571.
Em outro lugar mostrei que o costume de tirar Inquiriçoens
de
Sangue naõ he ley das Ordenaçoens, nem da Igreja
universal; e
que este abuso he contrario ao Concilio de Bazilea: que foi invento
Castelhano, que abraçamos quando o Reyno foi uzurpado
por Phelipe Segundo; que servio para multiplicar a
superstição
Judaica, a deshonra das familias nobres, para destruir a harmonia
e a paz entre os Subditos do mesmo Estado, e que deve reynar
nos Coraçoens Christaõs.
[69] Ibid.
Liv. I. tit. 68. § 10, 11 & 12.
[70]
.......................Adde
quod idem
Non horam tecum esse potes,
non otia recte
Ponere, teque ipsum vitas fugitivus, & erro;
Jam vino quaerens, jam somno faltere curam.
Frustra; nam comes atra premit, sequiturque fugacem..
II. Sertn. 7, vers. III.
[71] Manoel
de Sousa Faria,
Europa
Portugueza, Tom.
III, Part.
IV,
cap. I, Pag. 215.
[72]
Origem da Nobreza
politica. Lisboa 1631, 4.º, cap. 2, pag. 3.
[73] O marco
de prata valia, no tempo del Rey Dom Manoel,
2340 reis e como os Fidalgos Cavalleyros tinhaõ da sua
moradia
4.000 reis por mes, e por anno 48.000 reis, e que o marco de prata
amoedado vale hoje 6.000 reis, os 48.000 reis daquelle tempo valem
hoje 91.920 reis, e como taõbem recebiaõ alqueyre
e meyo de cevada
por dia, contando somente a 120 reis por alqueyre, valiaõ no
tempo presente 63.240 reis, que juntos com os 91.920 reis assima,
fazia toda a soma 155.160 reis. E como taõbem os Cavalleyros
Fidalgos tinhaõ moradia que chegava a 1.500 reis por mes, e
por
anno 18.000 reis, com tres quartas de cevada, regulada por anno
taõbem a 120 reis por alqueyre, valiaõ pelo
preço de hoje 32.400;
e como os 18.000 naquelle tempo, estando o marco de prata a
2.340 reis, e hoje a 6.000 reis, valem hoje a soma de 61.920 reis,
que juntos aos 32.400 de cevada, faziaõ 94.320 reis.
Ajuntando agora estas duas moradias de Fidalgo Cavalleyro e
de Cavalleyro Fidalgo em huma soma e repartindoas, acharseha
que cada huma destas moradias vale hoje a soma de 124.740 reis,
soma sufficiente para sustentar e educar em huma Escola Militar
hum Moço Fidalgo.
[74]
Indisposizione generalle della Monarchia di Spagna, sue
cause e remedi. Esta representaçaõ se le no fim
da
Historia della
Desunione del Regno di Portogallo dalla Corona di
Castiglia, dal
Dottore Gio. Bapt. Birago. Amsterdam, 1647, 8.º
[75]
Testament Politique, da
Ediçaõ de Leipsic, e naõ daquella
de Paris 175... (sic).
[76]
Hieron. Conestagii (alguns dizem que Joaõ da
Silva Conde
de Portalegre fora o A. verdadeyro desta Historia) de Portugalliae
& Castellae Conjunctione, Tom
II,
Hispan.
Illustrat. Traduçaõ da
Lingoa Italiana na Latina, page 1066 & 1070.
[77] Bem se
pode considerar a necessidade da observancia destas
disposiçoens. Evitar os crimes que saõ contra a
Religiaõ, e que
pelas nossas Ordenaçoens saõ castigados, he da
obrigaçaõ do Legislador:
mas neste cazo, sendo el Rey o Pay desta Educaçaõ
da
Nobreza, deve haver entaõ mais effectiva providencia; todos
entendem
esta materia e os males que resultaõ da
dissoluçaõ da
Mocidade; permitte a Disciplina Ecclesiastica aos Parrhocos terem
amas de cincoenta annos em suas cazas; e podia a Escola Militar
imitar esta instituição: no livro
I, tit. 94 das Orden.
Sam obrigados
os que tem officio de julgar e de escrever serem
cazados: e
quanto mais seraõ obrigados os que haõ de
governar e ensinar a
Mocidade?
[78] No
intento que aprendaõ os Educandos a viver
com o necessario,
e naõ haver distinçaõ nesta materia
naquella Escola, e
taõbem para que aprendaõ amar a sua patria, e
naõ ficarem desde
meninisse imbebidos que tudo que naõ he estrangeyro, he mao
e
mal feito.
[79]
Era huma Ley dos antigos Reis da Persia e do Egypto.
Só deste modo mostra hum patriota que ama a sua patria, e
que faz estimaçaõ della; quem assim
naõ for educado nem saberá o
que he o bem commum, nem as obrigaçoens com que naceo.
Estes dois articulos se observaõ á risca na
Escola Militar de Paris.
[80] No
collegio Thereziano de Vienna cada educando se veste
como quer: a distinçaõ entre os mesmos Socios,
todos filhos
adoptivos do Estudo faz perder o objecto da
instituiçaõ.
[81] He para
exercitar a ley deste Instituto, «Que
ninguem ha de
viver por sua vontade, mas conforme á Ley».
[82] O
castigo que daõ os quatro Collegios Mayores
de Salamanca
aos Noviços, (que todos são Nobres), he
ordenarlhes que
fiquem de pé arrimados aos lados das portas dos Claustros, e
ás
vezes por hum dia enteyro, a vista de todos os que entraõ e
sayem;
e por experiencia se sabe que tem produzido este castigo admiraveis
mudanças nos costumes.
[83] .........Desperat tractata nitescere posse, relinquit et
quae.
Horat. de Art. Poet.
V. 150.
[84]
O Dictionario de
Bluteau, em tantos volumes em folio, merecia
correçaõ de muitos lugares, por algum douto
Portuguez
para ser verdadeyramente util.
[85]
Lib. I.
Historiarum, p. 49. Ed. Francof.
[86] Mémoires
du Duc de
Sully. M. de Rosny. 4 Vol. 4.º Paris.
[87] Histoire
de l'Etat présent de
l'Empire Ottoman. Lib. I.
Cap. V. Paris, 1670, 8.º
[88] Pag. 83.
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