Nota de editor:
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quantidade de erros tipográficos existentes neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Maio 2008)
Theóphilo Braga
E
A LENDA DO CRISFAL
Obras de Delfim Guimarães
PROSA: |
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Alma dorida, com prefácio
de Teixeira Bastos, 1 vol
broch. |
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500 |
réis |
A Viagem
por terra do snr. João
Penha, (crítica literária) 1
folh. |
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100 |
» |
O Rosquedo (Scenas da vida de
província) |
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Esgot.o |
Ares do Minho (Contos) 1 vol.
broch. |
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200 |
» |
Bernardim
Ribeiro: O poeta Crisfal
(Subsídios para a Historia da literatura
portuguêsa) 1 vol.
broch. |
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800 |
» |
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EM PREPARAÇÃO: |
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Luis de Camões.―Diogo
Bernardes. |
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VERSO: |
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Lisboa Negra, 1
fol. |
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200 |
» |
Confidencias, 1 vol.
broch. |
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400 |
» |
Evangelho, 1
vol. |
|
400 |
» |
Não! Mil vezes
não! 1
fol. |
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200 |
» |
Sim! Mil vezes sim! 1
fol. |
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100 |
» |
Sonho
Garretteano |
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Esgot.o |
A Virgem do Castelo, (2.ª
edição) 1
fol. |
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100 |
reis |
Outonaes, 1 vol.
broch. |
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500 |
» |
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NO PRELO: |
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Flores
do mal
(interpretação em versos portuguêses de
poesias de Carlos Baudelaire) |
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TEATRO: |
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Aldeia na
Côrte, drama em
3 actos, de colaboração com D. João da
Camara, representado no D. Amelia, 1 vol.
broch. |
|
500 |
réis |
Juramento
Sagrado, comedia n'um acto
em verso, representada no D. Maria II, 1
fol. |
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200 |
» |
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A PUBLICAR: |
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Domingo de Páscoa,
peça de costumes minhotos |
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OUTROS TRABALHOS: |
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A Dama das
Camelias, de Dumas, filho
(tradução), 1 vol.
broch. |
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200 |
réis |
Saudades,
(História de
Menina e moça), de Bernardim Ribeiro,
edição revista (vol. 29 da
Colecção Horas de
Leitura) |
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200 |
» |
Trovas de Crisfal, de Bernardim
Ribeiro,
edição
revista |
|
300 |
» |
Versos portuguêses, de Sá
de Miranda,
edição
revista |
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500 |
» |
DELFIM GUIMARÃES
Theóphilo Braga
E
A Lenda do Crisfal
|
1909
Livraria Editora
GUIMARÃES & C.a
68, Rua de S. Roque, 70
Lisboa |
THEÓPHILO BRAGA
E A LENDA DO CRISFAL
I
Razão de ser d'este livro
Quando em maio de 1908 tornamos pública a
conclusão a que haviamos chegado de ser
Crisfal
um pseudónimo do
autor da
Menina e moça, como
procurámos
demonstrar no volume recentemente dado á estampa:
Bernardim
Ribeiro (
O Poeta Crisfal), tinhamos o
convencimento pleno de que uma tal nova, divulgada pela imprensa, seria
bem acolhida por quantos se interessam pelo estudo da nossa
História
literária, com excepção apenas do snr.
dr.
Theóphilo Braga. O laureado professor do Curso Superior de
Letras não perdoa a quem quer que seja que ouse discordar de
suas sentenças, nem vê com bons olhos que outros,
que não s. ex.
a, encarem problemas
que se prendam com a História da literatura
portuguêsa.
E n'este caso do
Poeta Crisfal, mais
do que em nenhum outro, o snr. dr. Theóphilo Braga
não desejava que ninguem bulisse, pelo motivo que teremos
ocasião de apontar no decurso d'este livro.
Não contavamos com o acolhimento benévolo
[6]
do infatigavel escritor. Para
fundamentar o nosso juizo, bastava-nos invocar os precedentes sabidos,
tristemente lembrados, e, muito em especial, o desforço
pouco generoso do snr. dr. Theóphilo Braga para com a
memória d'esse desventurado que se chamou Antero,―porque o
poeta incomparavel dos
Sonetos
ousara flagelar o dogmatismo scientífico do antigo camarada
universitário; o fel que o plumitivo da
Historia da Litteratura deixa transparecer nas
apreciações com que, baldadamente, procura
amesquinhar a figura gigantesca de Herculano,―porque o insigne
historiador nacional jàmais se associou aos
turibulários do filósofo comtista (sem
calemburgo);―o desdem com que o professor de literatura apoda,
soberanamente, de
gramático, o distinto romanista, snr.
Epiphánio Dias,―por este haver despedaçado, com
a autoridade do seu nome, aquela invenção alegre
dos
cantos de ledino, em
que o snr. dr. Theóphilo continua a persistir, apesar de
tudo, com manifesta falta de sinceridade.
Mas não ignorando taes precedentes, e conhecendo que o
estudo que iamos apresentar ao público não
deixaria de nos acarretar a
má vontade do autor da
História da
Litteratura
Portugueza, nem por um momento hesitamos em levar a bom
termo o nosso trabalho, tendo em atenção tam
sòmente que se tratava de
desfazer uma lenda, estúpida como tantas outras lendas, que
privava de parte da glória a que tinha jus o nome aureolado
de um dos maiores poetas portuguêses, o delicado e inditoso
Bernardim Ribeiro, o nosso querido Bernardim.
Derruíamos a coluna em que se firmava um espantalho, mas
erguiamos a um pedestal mais
[7]
grandioso
e altívolo a figura amoravel do grande bucolista.
A literatura portuguêsa só ganhava com a
descoberta. Que, se alguma cousa perdesse, era sobeja
compensação o que se conquistava para a verdade
histórica...
Mas a proclamação de uma tal verdade ia
prejudicar um livro, ou livros, do snr. dr. Theóphilo
Braga... Não havia dúvida. Que importava isso?
Para reivindicar para Bernardim Ribeiro a autoria da Carta e da
Écloga de
Crisfal, não valeria a pena sacrificar
uma das muitas produções do operoso escritor?
Bernardim Ribeiro é um dos astros fulgurantes da
rútila constelação que brilha,
intensa e perduravelmente, no ceu de Portugal. Já conta
alguns séculos, e ainda hoje nos deslumbra o seu fulgor...
Após a local produzida pelo snr. dr. Alfredo da Cunha no seu
Diario de Noticias,
dando conta dos nossos trabalhos de investigação,
que punham termo á lenda de
Crisfal, tivemos a ventura de ver que o snr.
José Pereira Sampaio (
Bruno) havia
chegado a
conclusão idêntica á nossa, como foi
registado n'um brilhante artigo de João Grave no
Diario
da
Tarde, do Porto, confirmado inteiramente por uma carta de
Bruno,
reproduzida no jornal
citado, em que o prestigioso publicista, com a reconhecida autoridade
do seu nome, que nada deve ao reclamo, afirmava de maneira absoluta que
estavamos com a verdade; que o
trovador
Cristovam Falcão era simples produto de uma lenda, que o
criptónimo
Crisfal
pertencia a Bernardim Ribeiro.
Do artigo do nosso camarada João Grave, e
[8]
da carta do ilustre escritor snr.
José Sampaio, não faremos
citações n'esta altura.
Ambos os preciosos documentos se encontram integralmente exarados no
nosso livro
Bernardim
Ribeiro. Não os desconhecem, por certo, aqueles
que nos dão a honra da leitura d'este trabalho.
Como recebeu o snr. dr. Theóphilo Braga essas
comunicações do
Diario de
Noticias, de Lisboa, e do
Diario da Tarde,
do
Porto?
―Passando a José Pereira Sampaio
(
Bruno), e a nós outros, um diploma de
ignorantes!
Em 29 de maio, um amigo salientou-nos no jornal
A Epoca
a
secção que o escritor snr. Silva Pinto tinha a
seu cargo, e que n'essa data estampava, reproduzida do
Diario
da
Tarde do Porto, a seguinte carta do snr. dr.
Theóphilo Braga:
«
Meu caro
João
Grave:―Encantou-me o favor da sua carta, communicando-me o
problema litterario que preoccupa o nosso velho amigo e luminoso
critico José Sampaio sobre a apochryficidade do auctor do
«Crisfal», e que annuncia o primoroso litterato
Delfim Guimarães. É sempre boa a
vindicação d'uma
verdade em qualquer campo: no campo litterario e artistico, isso tem o
relevo d'uma conquista, d'um triumpho.
Ninguem mais desejaria que fossem possiveis, isto é
realidade demonstrada, as descobertas de Sampaio (Bruno) ou de Delfim
Guimarães, sobre a identidade de Christovam
Falcão em Bernardim Ribeiro.
Isso,
porém, não passa d'uma miragem, por falta de
conhecimento dos existentes recursos historicos[1].
Diogo do Couto falla em
Christovam Falcão como celebrado
auctor do «Crisfal», quando narra factos
praticados por seu irmão Damião de Sousa. Ora,
Diogo do Couto, contemporaneo d'este na India, inventava-lhe um
irmão? E tendo sido impresso o
«Crisfal» sem nome
d'auctor, (no
pliego-suelto
da
Bibliotheca Nacional de Lisboa) dava-o como auctor d'essa celebrada
écloga a capricho seu? O Padre Antonio Cordeiro, na
«Historia Insulana», (resumo das
«Saudades da
terra», do dr. Gaspar Fructuoso, amigo de Camões)
tambem faz as mesmas referencias ao
poeta
Christovam
Falcão. E a edição de Ferrara, de
1554, e a de Colonia, de 1559, inscrevendo o seu nome? E Frei Bernardo
de Brito, fazendo a «Silva de Lisardo», ou segunda
parte do
«Crisfal», falla nas serras de Lor-vam, onde esteve
D. Maria Brandão, a namorada d'este poeta do
«Crisfal».
[9]
Nada d'isto leva a admittir a
hypothese. No emtanto, que tragam a lume
os seus resultados. A vantagem é de nós todos.
Com um abraço do seu, etc.
Theophilo
Braga.»
Para o professor do Curso Superior de Letras, a conclusão a
que, tanto
Bruno como nós, haviamos chegado,
não passava
d'uma
miragem, por falta de conhecimento dos existentes recursos historicos,
e esta sentença
autoritária vinha a público quando o snr. dr.
Theóphilo Braga ignorava em absoluto quaes os argumentos com
que nós e o insigne publicista nosso conterráneo
procurariamos fazer vingar nossas teses.
Magoou-nos a impertinência, confessamos, e não
resistimos a manifestar publicamente a
impressão em nós produzida pela prosa do snr. dr.
Theóphilo Braga, dirigindo n'esse mesmo dia a seguinte carta
a João Grave, que este distinto jornalista fez inserir no
numero de 1 de junho do
Diario da Tarde:
«Meu prezado
camarada João
Grave:―Acabo de ler, reproduzida por Silva Pinto na
«Epoca», a carta que
o snr. dr. Theóphilo Braga dirigiu ao meu caro
João
Grave a propósito do trabalho que preparo, em que me
proponho demonstrar que «Crisfal» foi simplesmente
um anagrama cabalístico de Bernardim Ribeiro, pertencendo
por conseguinte a este
lírico as poesias que uma lenda fez atribuir a Cristovam
Falcão.
[10]
O nosso bom amigo e erudito escritor
José Pereira Sampaio―
Bruno―,
como se viu da
interessante carta que estampou no «Diario da
Tarde», como complemento
ao artigo que o meu caro João Grave publicou sobre o
assunto, chegara a conclusões eguaes, e para mim foi
extremamente grato que o nome prestigioso de Bruno viesse valorizar a
minha descoberta com a grande autoridade do seu concurso.
Ao ilustre professor, snr. dr. Theóphilo Braga, afigura-se
isto uma «
miragem, por falta de conhecimento
dos existentes recursos historicos», que cita,
desde Diogo do Couto a frei Bernardo de Brito.
Peço-lhe, pois, meu caro João Grave, a fineza de
dizer no seu jornal que conheço perfeitamente os
recursos históricos a que alude o
incansavel
historiador da
Litteratura Portugueza, como
não podia deixar de conhecer pela leitura das
edições do «Bernardim
Ribeiro e o Bucolismo» do snr. dr. T. Braga.
Que Bruno não ignora nenhum d'esses
recursos, estou convicto, que, de resto, nem o
distinto escritor snr. dr. Theóphilo Braga póde
ter dúvidas a tal
respeito, porque isso seria fazer ofensa ao justificado nome
literário de José Sampaio.
Para fechar, devo ainda dizer-lhe, meu bom amigo, que de modo nenhum eu
vou sustentar que não existiram vários
cavalheiros
com o
nome de Cristovam Falcão. Se estes não tivessem
existido não tomaria vulto até aos nossos dias a
lenda do
«Crisfal»!
Não o enfado mais.
Creia-me, com verdadeira estima,
seu amigo, adm.dor
e obg.do
S/C. Lisboa, 29-maio/90.
Delfim
Guimarães.»
A
Bruno tambem não passou
despercebido o
amavel diploma do professor do
Curso
Superior de Letras, e que o ilustre escritor se sentiu melindrado
prova-o suficientemente a carta que dirigiu a João Grave, e
que, confiados na benevolência do sr. José Pereira
Sampaio, vamos
[11]
trasladar
das colunas do jornal
A
Epoca, que a reproduziu do
Diario da Tarde:
«
Meu caro
João
Grave:―Novamente o venho importunar, pois entendo que,
perante a carta, aliás tão
bondosa e honrosa para mim, do dr. Theophilo Braga, hontem inserta no
seu jornal, me cumpre consignar em publico, ainda uma vez, que
após o apparecimento do livro de Delfim
Guimarães, defendendo a
propozição de que Christovam Falcão
não é mais do
que Bernardim Ribeiro, eu publicarei o meu, já por V. na sua
folha duas vezes amavelmente annunciado, e onde, entre outros,
sustentarei egualmente o mesmo ponto, pensando que refutarei ahi
cabalmente as asserções, na sua
carta de hontem no «Diario da Tarde», pelo nosso
doutissimo confrade e illustre publicista produzidas, mostrando
então, com todo o respeito devido a tão indefesso
e insigne trabalhador, que a minha hypothese (e de Delfim
Guimarães) não é tal uma miragem e
que, pelo contrario, o ensino corrente no assumpto é que
é
inteiramente phantastico e chimerico.
A V., prezado collega, reitero os protestos do meu agradecimento.
Todo seu
Porto, 27 de Maio de 1908.
José
Pereira Sampaio
(Bruno).»
O snr. dr. Theóphilo Braga achou que era prudente
não voltar á estacada, e assim deixou passar em
julgado a nossa carta e aquela em que o snr. José Sampaio,
por uma fórma
categórica, visando directamente as
lições ministradas pelo professor de literatura,
declarava que o ensino corrente sobre Cristovam Falcão era
inteiramente
phantastico e
chimerico.
Na elaboração do livro:
Bernardim Ribeiro (
O Poeta Crisfal)
obedecemos ao
propósito de não converter o nosso trabalho n'uma
diatribe, e procuramos suavizar quanto possivel a
situação em que eramos forçados a
colocar o snr.
[12]
dr. Theóphilo Braga, em obediência
á verdade, e não porque nos animasse qualquer
desejo de ser desagradaveis ao infatigavel vulgarizador. E, procedendo
assim, entendiamos cumprir um dever, que tinha sobeja
justificação nos cabelos brancos do professor do
Curso Superior de Letras, cuja primeira edição do
seu
Bernardim Ribeiro coincidiu com o ano do nosso
nascimento. Não esquecemos nunca que fomos educados no
respeito devido á velhice.
No trabalho da revisão das provas do nosso estudo, em que
fomos
auxiliados pela prestante
amizade de Henrique
Marques, mais de uma vez modificámos referências
feitas ao professor que contraditavamos, e sempre da melhor vontade
substituiamos um adjectivo, suavizavamos a saliência de um
erro do Mestre, desde que o nosso amigo Henrique Marques, com o seu
apreciavel critério, nos fazia notar que uma palavra, uma
frase nossa, poderia ser tomada como um desprimor para com o snr. dr.
Theóphilo Braga.
Queriamos fazer vingar uma obra de justiça; não
era nosso intento agravar quem quer que fosse.
E que não fomos descortêses, nem violentos, nem
injustos, para com o professor que contraditavamos, prova-o o
testemunho insuspeito do eminente publicista snr. José
Caldas, que nos honrou com uma carta penhorantíssima, de que
reproduziremos neste lugar algumas linhas:
«A delicadeza das
suas referencias, com
relação aos auctôres cujas
conclusões não
acceita ou impugna, é verdadeiramente
modelar.»
Se houvessemos sido menos cortêses para
[13]
com o snr. dr. Theóphilo Braga,
s. ex.
a
não se julgaria, com certeza, no dever de agradecer-nos a
oferta do exemplar do nosso trabalho que entendemos enviar lhe. E o
professor do Curso Superior de Letras
escreveu-nos a agradecer o livro, embora na sua carta
transpareça o despeito que lhe produziu o nosso estudo sobre
Bernardim Ribeiro, em que desvendamos vários erros contidos
em volumes da
Historia da Litteratura Portugueza.
Registâmos aqui essa carta do snr. dr. Theóphilo
Braga, que não deixa de constituir um documento interessante
para aqueles que seguirem com atenção a marcha
dos acontecimentos provocados pela pendência
literária em que estamos envolvidos.
É, textualmente, como segue:
«Lisboa, 25 de Novembro de
1908
...sr. Delfim Guimarães
e meu presadissimo
amigo
[14]
Muito me penhora a honrosa offerta do
seu recente trabalho, em que
apresenta o seu processo para a
identificação do poeta Bernardim Ribeiro com o
Crisfal ou Christovam Falcão. A ninguem interessaria tanto o
conhecimento d'este problema, como a mim, que esbocei uma biographia de
Christovam Falcão com elementos historicos (documentos
authenticos) comprovando dados genealogicos. Tive de ler immediatamente
o seu livro, para vêr que materiaes traria para o
aperfeiçoamento do meu trabalho. Mesmo no prologo fez-me V.
a justiça de que eu aproveitaria tudo quanto se prestasse a
futuras emendas. Desde as noticias genealogicas trazidas por Braancamp
Freire sobre D. Maria Brandão, que Christovam
Falcão amou, sendo ambos muito creanças, via-me
forçado a tomar o
nascimento d'elle no fim do primeiro quartel do seculo XVI. Isto me
impossibilitava de continuar a admittir as
relações pessoaes de Christovam Falcão
com Bernardim Ribeiro
já velho e dementado em confidencias de amor com um rapaz no
viço da mocidade; e por tanto as Eclogas em que elle
figurava interpretativamente tinham de ser lidas a outra luz. V.,
acabando de fazer a destrinça entre o Poeta e seu primo mais
antigo, deu-me elementos para uma melhor
interpretação das Eclogas de Bernardim,
(eliminadas as relações com Christovam
Falcão), e mostrando como realmente as poesias d'aquelle,
como mestre, influiram no mais moço, que como novel chega a
fazer centões e
intercalações de versos de Bernardim Ribeiro. Ha
uma affirmativa historica, de Diogo do Couto, na sua Decada
VIII, que, fallando de Damião de Sousa
Falcão, accrescenta
como reforço historico: «irmão de
Christovam Falcão, aquelle que fez
aquellas cantigas nomeadas do Crisfal...» E tambem no seculo
XVI Fructuoso (resumido pelo P.e Antonio
Cordeiro na Historia insulana)
diz de Christovam Falcão: «parente do
Barão
velho e do famoso poeta Christovam Falcão, que fez a celebre
Ecloga Crisfal das primeiras syllabas do seu nome...» Tambem
nas edições de Ferrara e Colonia, feitas por
curiosos sem criterio litterario se repete a
attribuição «que dizem ser
de
Christovam Falcam, ho que parece alludir o nome da mesma
Ecloga». Não se podem
refutar por negativa estes testemunhos de homens de letras do seculo
XVI, e que se reflectiram nos genealogistas. A Ecloga do Crisfal
não podia ser publicada pelo seu auctor, nem pelo seu
consentimento porque era uma inconfidencia de
antigas
relações amorosas com uma senhora que estava
casada. A edição sem data, de
Lisboa, só podia ser feita por 1542, quando Christovam
Falcão estava em Roma; e quando Camões foi para
Ceuta em 1547 na carta que d'ali escreveu emprega muitos versos do Crisfal,
que
então, andava no gosto. Na edição de
Lisboa vem duas estrophes supprimidas
no texto de Ferrara e Colonia, por que continham uma
inconfidencia. Isto leva a explicar como
Christovam Falcão tentaria apagar a paternidade da Ecloga
fundamentando-se-lhe a imputação com o anagramma
das primeiras syllabas do nome. Os logares communs a Bernardim Ribeiro
e Christovam Falcão provam mais a favor da
imitação de um discipulo, do que
á fusão dos dois poetas, repetindo-se o mestre na
decadencia. Emfim ha dois schemas de paixão amorosa que se
não
confundem: o de Joanna e Fauno, Aonia e Bimnarder, e o de Maria e
Crisfal. São duas
almas, sentindo em
situações differentes. Através de todo
o hypercriticismo o livro sobre Bernardim Ribeiro revela um trabalhador
fervoroso, que me veio revelar a existencia de um exemplar da
edição de Ferrara, no Porto, e que aqui
descobriu o texto precioso da Ecloga Alexo
assignada por Sá de Miranda. Felicitando-o pelo seu
importante estudo, sou
[15]
admirador obr.mo
e amigo
Theophilo
Braga»
Começa a carta do snr. dr. Theóphilo Braga por um
rebuçado de ovos:
o tratamento de «prezadissimo amigo», que
não tinha qualquer
justificação... Isto é, tinha uma
justificação
única, qual era a de nos adoçar a bôca,
para engulirmos sem relutância aquela amargosa
pílula com que fecha a epístola de s. ex.
a,
quando, com generosa magnanimidade, confessa que o nosso livro
revelou
um trabalhador
fervoroso, que ao professor do Curso Superior de Letras foi
revelar
a existencia de um exemplar da edição de Ferrara,
no Porto, e que em Lisboa
descobriu o texto precioso da ecloga
Alexo assignada por
Sá de Miranda.
E, graças a estas
revelações-revelativas,
a que não ligavamos importância de maior, o
historiador da
Litteratura Portugueza
felicitava-nos pelo nosso
importante estudo, que,
volvidas algumas semanas, havia de classificar de fruto de
processos
á
tôa!
Na devida altura, comentaremos largamente a carta substanciosa do snr.
dr. Theóphilo Braga.
Por agora, continuemos na catalogação das
peças d'este processo, para que os leitores julguem da
justiça que nos cabe, e avaliem da sinceridade, da
correcção, e dos processos do professor
intangivel.
[16]
No jornal
O Mundo, de 3 de dezembro
de 1908, na local consagrada á sessão da Academia
das Sciencias de Portugal realizada no dia 2, vimos que o snr. dr.
Theóphilo Braga fizera uma
comunicação, que outra cousa não
era senão um desmentido formal e gratuito ás
conclusões do nosso livro,―mas sem a mais leve
citação ao nosso obscuro nome, sem a menor
referência ao nosso desluzido trabalho, embora
aproveitando-lhe os subsídios. Comprehende-se: o ilustre
académico não desejava contribuir de modo nenhum
para o reclamo que a imprensa estava dispensando ao volume sobre o
Poeta
Crisfal.
Transcrevemos do
Mundo o periodo
referente a tal comunicação...
scientífica:
«...finalmente, trata de
Bernardim Ribeiro e Christovam
Falcão, mostrando como a vida amorosa d'este oscilla entre
1525 e 1526, sendo n'aquella data moço
fidalgo, tendo pelo menos 12 annos, ao passo que aquelle era
já edoso; evidencia como na Ecloga transparecem diversas
situações da vida de Christovam
Falcão, e termina por invocar as opiniões de
Diogo Couto, Gaspar Fructuoso e outros que comprovam a existencia das
duas individualidades que apesar de similhantes n'algumas
situações da vida, não podem
jàmais confundir-se».
Ante este procedimento do nosso
prezadissimo amigo,
não pudemos ficar silenciosos, e,
como um desforço legítimo, inadiavel, apelamos
para o snr. dr. Brito Camacho, pedindo-lhe se dignasse publicar nas
colunas da
Lucta a
seguinte carta, que o ilustre jornalista fez inserir no numero de 4 de
dezembro do seu diário:
«Ex.mo
Snr. Dr. Brito
Camacho,
meu prezado amigo:
[17]
Pelos extratos, publicados em alguns
jornaes de hoje, do que se passou
na sessão de hontem da Academia de Sciencias de Portugal, vi
que o
snr. dr. Theóphilo Braga disse o que quer que fosse,
procurando refutar o meu recente trabalho sobre Bernardim Ribeiro, e
insistindo na lenda do
poeta
Cristovam Falcão de Sousa.
Não me admira que o original autor da «Historia da
Litteratura Portugueza» persista n'um erro crasso,
só para não se confessar vencido, porque
já o caso
engraçadíssimo dos
cantos de ledino
era precedente
bastante para se ajuizar que o afamado professor do Curso Superior de
Letras prefere manter um absurdo a ter de reconhecer publicamente que
errou. Está no seu direito, e ninguem lh'o contesta.
Parecia-me, porem, que, publicado o meu estudo sobre Bernardim Ribeiro,
em que não torci a meu bel-*prazer a verdade, nem
falsifiquei documentos, o snr. dr. Theóphilo Braga tinha o
dever moral de, pela imprensa ou em livro, dizer da sua
justiça, antes de ir para o seio de uma
agremiação, a que eu
não pertenço, impor um desmentido formal e
dogmatico, ao mesmo tempo que gratuito, ao meu trabalho.
E tanto mais estranhavel se me afigura o procedimento do snr. dr.
Braga, contestando á porta fechada a minha tese, quanto
é certo que s. ex.
a
não
desconhece que o insigne publicista snr. José Pereira
Sampaio (Bruno) prepara um livro sobre o mesmo assunto do meu.
Se o afamado professor do Curso Superior de Letras está de
boa fé, quem lhe assegura que os
argumentos de Bruno não conseguirão
convencê-lo,
já que os meus, conforme de resto eu esperava, tal
não conseguiram?
É tempo de pôr de parte o
magister dixit, porque, felizmente, os processos
crìticos dos Farias e Bernardos de Brito são
coisas que passaram á
historia, e que não se ressuscitam
já facilmente.
Muito especialmente me obsequeia o meu bom amigo dando publicidade na
nossa
Lucta a
esta minha carta, que representa o legítimo desabafo de um
trabalhador que se preza de ser honesto, e que como tal tem jus a ser
considerado.
Mais uma vez agradecido o que se confessa, por estima e dever,
De V. Ex.a
amigo, admirador e
obrigado
S/C, Lisboa, 3-12-908.
Delfim
Guimarães.»
[18]
Com o espírito de rectidão que todos, amigos e
adversários, são concordes em reconhecer ao snr.
dr. Brito Camacho, o brilhante jornalista deu acolhimento
benévolo á nossa carta, acrescentando-lhe as
seguintes linhas de saudação
ao professor do Curso Superior de Letras:
«O nosso ilustre
correligionario dr. Theóphilo
Braga tem as columnas d'este jornal ás suas ordens para
dizer da sua justiça, como quizer. Trata-se d'uma
questão de facto em historia literária, e
não d'uma birra
entre dois homens. Muito prazer teremos em que seja o nosso jornal o
campo em que se dirima o pleito.»
Não correspondeu o snr. dr. Theophilo Braga á
gentileza do director da
Lucta; e até para comnosco estamos
persuadidos de que, desde o momento em que s. ex.
a
viu a nossa carta irreverente no jornal de que Brito Camacho
é a alma, o pontífice da
Litteratura
Portugueza excomungou o intemerato jornalista. Que o dr.
Camacho nos perdôe a excomunhão que,
involuntariamente, lhe acarretamos!
Guardou silêncio o snr. dr. Theóphilo Braga
durante semanas, mas não esteve inactivo, ao
contrário do que muitos poderiam supor. Com todo o engenho e
arte, s. ex.
a consagrou-se ao fabrico de uma
peça, que não podemos classificar de
literária, porque é a
negação de todos os processos
literários dignos de este nome, mas a que poderá
caber a designação de
produto de arte... culinária. Como
pastelão, faria honra a um cozinheiro,
mas cremos bem que o snr. dr. Theóphilo Braga deseja passar
á
posteridade como um discípulo fervoroso de Augusto Comte, e
não como aprendiz ilustre da
sciência
de Vatel.
[19]
A redacção do jornal
O
Dia, seguindo a praxe dos anos anteriores, honrou o snr. dr.
Theóphilo Braga pedindo lhe um
artigo sobre o movimento literário português em
1908, para o numero de 31 de dezembro d'esse ano. Como nunca, recebeu o
snr. dr. Theóphilo Braga jubilosamente o amavel convite.
Tinha ensejo para impingir... o
pastelão. Era o momento oportuno para
respostar á nossa carta publicada na
Lucta,
sem nos dar a honra de
deixar sair dos bicos da pena aprimorada a confissão de que
havia lido o nosso protesto. Podiamos, porventura, esperar outro
procedimento por parte do snr. dr. Theóphilo Braga?
Não,
evidentemente. Pois não haviamos
nós,―cúmulo das audácias!―ousado
protestar contra a
comunicação do presidente da Academia de
Sciencias de Portugal?!
Reproduzimos do
Dia de 31 de
dezembro do ano findo a parte do artigo do snr. Theóphilo
Braga que diz respeito á questão
literária suscitada pelo nosso livro:
«...No recente fasciculo (do
Archivo
historico
português) ficou publicada uma interessantissima monographia
sobre a antiga Feitoria de Flandres, um dos mais necessarios capitulos
da nossa historia financeira e administrativa; o sr. Braancamp Freire
intitula-o Maria Brandoa a do Crisfal, por que
o pae d'esta dama, que inspirou o amor e a Ecloga de
Christovão
Falcão, foi o pae d'ella, João Brandão
Sanches, segundo
encontrara no nobiliario de Diogo Gomes de Figueiredo.
[20]
Em dois nobiliarios da bibliotheca da
Ajuda tambem se acha esta mesma
inscrição:
Maria Brandoa a do Crisfal; e nos
livros dos linhagistas
Manso de Lima e Rangel de Macedo, da Bibliotheca Nacional, vem o mesmo
schema genealogico, vendo-se toda a parentella da inspiradora de
Crisfal no titulo dos Brandões Sanches, confundidos por
vezes com os Brandões do Porto, com os de Coimbra e com os
de Elvas. O sr. Anselmo Braancamp Freire, escreve em uma nota:
«Sei que se trata de
provar, que a Ecloga de Crisfal não foi escripta por
Christovam Falcão, mas por Bernardim Ribeiro, e que por
tanto a heroina não é Maria
Brandão, mas sim a mesma do romance
Menina e
Moça d'aquelle auctor.» E accrescenta
que o sr. Delfim Guimarães empenhado na interessante
averiguação o consultara,
communicando-lhe as bases em que fundava a sua
argumentação, as quaes não conseguiram
demovel-o da rotina.
Quasi ao mesmo tempo, o sr. Delfim Guimarães publicava o seu
livro
Bernardim Ribeiro―
o Poeta
Crisfal, em que resume o já sabido da biographia
do auctor da
Menina e Moça,
forçando interpretações de versos a
significarem os factos que imagina. Como lhe nasceu no espirito a ideia
de fazer esta descoberta? Pela impressão que lhe
causára a leitura dos versos de Bernardim Ribeiro e os de
Christovam Falcão,―«dois poetas
de temperamento semelhante, com eguaes influencias e
educações litterarias, com eguaes episodios nos
seus infortunados amores, e havendo entre ambos versos absolutamente
eguaes.» D'aqui o identificar os dois poetas em um unico;
como conseguil-o? Considerou a individualidade poetica de
Christovão Falcão como
uma lenda estupida formada pelos genealogistas, e formou o nome de
Crisfal
indo buscar
á tôa as palavras
Crisma falsa,
tirando-lhes as
syllabas iniciaes para designarem a seu talante Bernardim Ribeiro.
«Fez-se então uma grande luz no nosso espirito.
Não se tratava de dois poetas muito parecidos, de um creador
e de um imitador. Bernardim Ribeiro e Crisfal eram um e mesmo poeta. O
trovador Christovam Falcão era o producto de uma lenda
nascida da interpretação dada pelo vulgo (!
[2])
ao anagrama
Crisfal.» (Op. cit., p.
10). «Alcançada a convicção
de que
Crisfal era um anagramma de Bernardim Ribeiro, e
norteados pelo conhecimento de que nas suas
producções o poeta mudava
constantemente os seus nomes pastoris, com pequeno trabalho de
raciocinio não nos foi difficil deduzir a
constituição do cryptogramma, que era formado
pelas primeiras syllabas das palavras
Crisma e
Falso.»
[21]
E depois d'este processo que, na
opinião do sr.
Gonçalves Vianna―honra a
erudição
portugueza,―ataca as fontes genealogicas d'onde Diogo do Couto e
Gaspar Fructuoso acceitaram «como ouro de lei o peschesbeque
de uma lenda estupida tecida pelo vulgo ignorante, e posta a correr
mundo graças á inepcia dos
editores dos escriptos legados por esse grande e infortunado poeta que
foi Bernardim Ribeiro!» (Ib. p. 11.) E mais adiante, volta a
repetir: «A uma lenda estupida deveu esse rebento inglorio de
John Falconet a celebridade que durante seculos usufruiu, em prejuizo
do renome litterario do verdadeiro Crisfal, o
doce, o inimitavel e inegualado Bernardim Ribeiro, etc.» (p.
185.) Mas, como se póde chamar estupida a lenda genealogica
se os nomes contidos na Ecloga de Crisfal
condizem com os seus parentes taes como o de
Pantaleão Dias de Landim seu
avô, e a Joanna, que lhe denuncia o casamento clandestino,
uma prima, como o notou o sr. Jordão de Freitas?
Os manuscriptos conhecidos de Bernardim Ribeiro andavam ligados com os
de Christovam Falcão, como se vê pela
descripção do n.º
180 da
Livraria do Conde de Vimieiro: Obras em prosa e verso de Sá
de Miranda, Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão; tambem o
Arcediago do Barreiro, dr. Jeronymo José Rodrigues, examinou
no Porto um manuscripto analogo ao das edições de
1559, em que vinham a
Menina e Moça, duas eclogas de
Bernardim Ribeiro―«e até se acham no fim algumas
poesias de Christovão Falcão, do que
se faz menção no mesmo logar de
Nicoláo
Antonio.» (Innocencio, Dic. Bibliog.)
Para que chamar ineptos aos editores de Ferrara de 1554 e de Colonia de
1559, por terem reproduzido esses textos manuscriptos como os
encontraram? Quando o sr. Delfim Guimarães trabalhava para
destruir uma miragem de seculos, foi communicar ao sr. dr. Alfredo da
Cunha «a descoberta que tinha feito e que, sem falsa
modestia, reputava de alta importancia para a historia das lettras
portuguezas.» Era uma Noticia litteraria
de sensação, o dr. Alfredo da Cunha deu alentos
á grande descoberta de que a figura do poeta Christovam
Falcão «pertence exclusivamente ao dominio da
lenda, por isso que tal poeta só existiu na
imaginação d'aquelles que viram n'um anagrama
cabalistico de Bernardim Ribeiro a encarnação de
outra
individualidade.»
[22]
No noticiario de outro jornal sairam
affirmações
absolutas, proclamando a
sensacional descoberta, com uma sinceridade inconsciente que affasta de
todo a ideia de ironia. A verdadeira descoberta pertence ao sr.
Braancamp Freire determinando a epoca em que esteve em Flandres
João Brandão Sanches, e quando elle morreu, dando
nos assim a data em que existiram os amores de sua filha unica D. Maria
Brandão, a do Crisfal, que plausivelmente se fixam em 1530.
O documento de 1527 referindo-se a Christovam Falcão, com a
tença de môço fidalgo, leva a deduzir
que nascera em
1512. Ha portanto a eliminar todas as relações
pessoaes
entre Christovam Falcão e Bernardim Ribeiro, como julgamos
nos nossos estudos, corrigindo a interpretação da
Ecloga I e III de Bernardim. Os logares communs a Christovam
Falcão e Bernardim Ribeiro provam a distancia da edade que
levou o mais novo a imitar aquelle que já era admirado,
cujos versos, Camões, na sua
Carta de Africa, intercalava na sua prosa.»
Esta produção peregrina do snr. Dr.
Theóphilo Braga veio publicada no jornal
O Dia
com a assinatura do professor do Curso Superior de Letras em
fac-simile,
e ainda
bem, para que não se pudesse ajuizar tratar-se de uma
brincadeira de mau gosto de quem quer que fosse.
Quando lemos um tal documento, a primeira impressão que se
apoderou de nós foi a de
revolta; mas logo um outro sentimento veio substituir esta―um
sentimento muito fundo de tristeza, de sincera mágoa...
E, sem prazer, pudemos constatar que a impressão que o snr.
Dr. Theóphilo Braga deixára nos leitores
inteligentes do seu tendencioso
Movimento Litterario
era egual
á nossa,―uma sincera mágoa.
Mas no artigo do eminente professor eramos tam directamente alvejados,
e o nosso trabalho depreciado com tal rancor e má
fé, que não podiamos ficar silenciosos.
[23]
No jornal a
Lucta, do dia 3 de
Janeiro d'este ano, como protesto, publicamos o artigo que vamos
reproduzir:
Os processos...
scientíficos
do snr. dr.
Theóphilo Braga
Não se dignou o sr. dr. Theóphilo Braga aceitar o
oferecimento que o distinto jornalista que dirige
A
Lucta lhe fez em 4 de dezembro ultimo: pondo á
disposição de s. ex.
a as
colunas deste diário,
para que o professor do Curso Superior de Letras dissesse da sua
justiça em face da carta que tive ensejo de dirigir ao meu
bom amigo snr. dr. Brito Camacho, estampada n'este jornal, motivada
pelo procedimento estranhavel seguido para comigo pelo snr. dr.
Theóphilo Braga.
Passaram-se dias, passaram-se semanas, e, quando todos julgavam que o
professor do Curso Superior de Letras adoptara de Conrado o prudente
silêncio, eis que o sr. dr. Theóphilo Braga, a
pretexto de pôr
os leitores do
Dia ao corrente do
movimento literário no ano findo, com ares
dogmáticos e desdenhosos, enche perto d'uma coluna d'aquele
jornal com um aranzel cheio de lugares comuns, procurando refutar as
conclusões do meu recente estudo sobre Bernardim Ribeiro.
Não me surpreendeu o rancor que transparece no artigo do
snr. dr. Theóphilo Braga. Imagino quanto deve ser doloroso
para o professor do Curso Superior de Letras o ter de refundir mais uma
vez dois dos volumes da sua chamada edição
integral da
Historia da Litteratura Portugueza:
«Sá de
Miranda» e «Bernardim Ribeiro». Isto,
junto ao conhecimento que possuo da maneira de ser do snr. dr.
Theóphilo Braga, é para mim
explicação bastante do seu ressentimento, que a
prosa do infatigavel «carreador de materiaes»
não consegue disfarçar.
[24]
A todos os pontos tocados no aranzel do
snr. dr. Theóphilo Braga, darei resposta
em livro, e d'essa tarefa procurarei desempenhar-me em curto praso, com
a largueza e documentação que o assunto requer, o
que não é compativel com o espaço que
a
trabalhos d'esta espécie pode dispensar um jornal da
índole da
Lucta.
Por hoje, e certo da amabilidade com que me distingue o meu prezado
amigo snr. dr. Brito Camacho, desejo apenas salientar, muito ao de
leve, algumas inexactidões flagrantes do artigo Movimento
litterario, do snr. dr. Theóphilo Braga, que bem
demonstram a
correcção dos processos...
scientíficos do professor do Curso Superior de Letras.
Referindo-se ao ultimo tomo do Archivo
Historico, a revista dirigida pela superior
competência do snr. Braamcamp Freire, em que este escritor
encetou a
publicação da sua monografia sobre Maria
Brandão, diz o snr. dr. Th. Braga que a monografia
«ficou
publicada», procurando assim dar a entender que o estudo do
snr. Braamcamp Freire está ultimado, quando é
facto
que ainda lhe falta o capítulo em especial referente a Maria
Brandão, destinado por certo a ser o mais curioso, pela luz
que ha de fazer jorrar sobre a figura da suposta amada do poeta Crisfal.
Mas ao snr. dr. Theóphilo Braga conveio torcer a verdade,
para que com maior presteza os leitores ingénuos
acreditassem nos seguintes períodos ardilosamente
engendrados:
«O sr. Anselmo Braancamp Freire escreve em nota:
«Sei que se trata de provar que a Ecloga de Crisfal
não foi escripta por Christovam Falcão, mas por
Bernardim Ribeiro, e que por tanto a heroina não
é Maria Brandão, mas sim a
mesma do romance Menina e Moça
d'aquelle auctor». E accrescenta, que o sr. Delfim
Guimarães, empenhado na interessante
averiguação, o consultara, communicando lhe as
bases em que fundava a sua argumentação, as quaes
não
conseguiram demovel-o da rotina.»
[25]
Ao contrário da
afirmação do snr. dr.
Theóphilo, o snr. Braamcamp Freire não declara
tal que eu o consultara sobre a averiguação que
fiz, como não
escreveu na nota citada pelo snr. dr. Theóphilo Braga aquilo
que s. ex.a gratuitamente lhe atribue.
Reproduzo textualmente o período que o snr. dr.
Theóphilo Braga interpretou a seu bel-prazer, para melhor
juizo dos que me lêem:
«O sr. Delfim de Brito Guimarães, que anda
empenhado na interessante averiguação, teve a
bondade de me comunicar as principaes bases que servirão de
alicerce á sua
argumentação: entretanto, emquanto não
apparecerem os considerandos e a sentença sobre a prova
nelles feita não transitar sem
apelação em julgado,
não me compete intervir no pleito e continuarei com a
rotina.»
Como se vê, o snr. Braamcamp Freire não escreveu
que eu lhe comunicara as bases em
que fundava a minha argumentação, mas sim
unicamente
as principaes bases, e o consciencioso
investigador não
declarava que taes bases não conseguiram
demovê-lo da rotina, mas sim que «em
quanto não aparecessem os considerandos e
a sentença sobre a prova nelles feita não
transitasse sem apelação em julgado,
não lhe competia intervir no pleito e continuava
com a rotina».
Para que torceu, a seu talante o snr. dr. Theóphilo Braga a
nota cheia de correcção do ilustre
escritor?―Para se servir, como de um escudo protector e
cómodo, do nome prestigioso de Braamcamp Freire, procurando,
com tal engenho e arte, fazer acreditar aos papalvos desprevenidos que
tinha a apoiar o seu desmentido formal ás
conclusões do meu trabalho a
individualidade, a todos os títulos eminente, do ilustre
director do Archivo Historico.
[26]
Ora a nota invocada pelo snr. dr.
Theóphilo Braga encontra-se logo na
2.ª pagina do estudo do snr. Braamcamp, e foi produzida quando
o erudito escritor traçou os primeiros períodos
do seu trabalho, conhecendo apenas as «bases
principaes» com que elaborei o meu
livro Bernardim Ribeiro (O Poeta
Crisfal).
Depois da leitura do meu modesto estudo, o snr. Braamcamp Freire teve a
gentileza de me comunicar que os meus argumentos haviam logrado
convencê-lo. E por tal fórma o convenceram que o
ilustre escritor logo abandonou a rotina, não carecendo para
isso que a sentença sobre a prova feita transitasse em
julgado―muito
embora isto pese ao snr. dr. Theóphilo Braga, que
até viu com desgosto que o abalisado professor snr.
Gonçalves Viana, achasse que o meu livro
Bernardim Ribeiro fazia honra á
erudição portuguêsa.
Mais, o snr. Braamcamp Freire não só me felicitou
calorosamente pelo éxito do meu trabalho, que representava a
justa reparação devida a um dos maiores poetas da
nossa terra, como teve a bondade de enviar-me a prova
tipográfica de uma passagem do seu estudo, então
no prélo, em que o conceituado escritor
confessava publicamente que Maria Brandoa, a lendária amada
do Crisfal, passara á historia...
Foi fazer companhia aos cantos de
ledino...
Tal passagem se encontra a pag. 402 do ultimo tomo do
«Archivo Historico», mas o snr. dr.
Theóphilo Braga seguindo os processos...
scientíficos que o enaltecem, ocultou-a propositadamente,
intencionalmente, aos leitores do seu artigo estampado no Dia.
É como segue:
«...do catalogo porém limitar-me-ei agora a
extrair os nomes dos oficiaes da feitoria, reservando-me para
aproveitar d'elle, n'outro capitulo, um dado importante para a
biographia de Maria Brandôa, já,
coitadita!
quando este estudo aparecer a publico, apiada de heroina da ecloga
Crisfal.»
[27]
Ás
afirmações, em apoio da minha tese,
feitas em maio de 1908 no Diario da Tarde, do
Porto, pelo insigne publicista snr. José Pereira Sampaio
(Bruno), refere-se tambem o snr. dr.
Theóphilo Braga da seguinte maneira:
«No noticiario de
outro jornal sairam
afirmações absolutas, proclamando a sensacional
descoberta, com uma sinceridade inconsciente que afasta de todo a
idéa de ironia».
O snr dr. Theóphilo Braga,
referindo-se, com desdem,
á sinceridade
inconsciente de Bruno, não nos
magôa sómente a nós, que votamos uma
grande estima ao ilustre escritor portuense: ofende as Letras
Portuguêsas, que teem no snr. José Sampaio uma das
suas mais legítimas glórias.
Tristes processos está seguindo o snr. dr.
Theóphilo Braga!
Delfim
Guimarães
O snr. dr. Brito Camacho, dando hospitalidade nas colunas da
Lucta
ao nosso
artigo, nòvamente pôs o seu jornal á
disposição do snr. dr. Theóphilo
Braga, para que s. ex.
a,
querendo, dissesse de sua justiça. O professor do Curso
Superior de Letras não aceitou o oferecimento que pela
segunda vez lhe era feito.
E, em verdade, que havia o autor do artigo
Movimento
Litterário de
dizer em contestação do libelo documentado que
tinhamos produzido? Nenhuma justiça lhe assistia, e por
consequência não ousou reclamar. Recolheu-se ao
silêncio,―áquele prudentíssimo
silêncio que se seguiu á
publicação do notavel
trabalho do Dr. Sílvio Romero sobre a
Patria
Portuguêsa.
No artigo que publicamos na
Lucta,
de 3 de janeiro do ano em curso, tomámos o compromisso
[28]
de tratar em livro todos
os pontos tocados pelo snr. dr. Theóphilo Braga no seu
aranzel do
Dia, com a largueza e
documentação que o assunto exige, em homenagem
á memória de Bernardim Ribeiro; pelo dever moral
que nos impusemos de contribuir, quanto em nossas mingoadas
forças caiba, para que justiça seja feita, embora
tardia, a um dos mais belos temperamentos poéticos da nossa
terra.
Uma lenda é fácil de forjar, e com facilidade
toma corpo e lança raizes, obcecando muitas vezes os mais
esclarecidos espíritos.
A nossa Historia Literária está cheia de lendas e
embustes, graças aos Farias e Sousa e Bernardos de Brito.
Mas a Verdade, superior a todas as lendas, e a todas as
reputações de historiadores burlões e
de críticos trapaceiros, acaba sempre por triunfar, embora
isso leve anos, embora decorram séculos.
Na defeza da causa que prosseguimos, que é nobre e justa,
não nos animam quaesquer intuitos de
evidenciação, não nos move qualquer
mesquinho sentimento de despeito; lutamos pela verdade, procuramos
contribuir com o nosso esforço de modestos obreiros das
letras para desfazer um erro que a ignorância engendrou, que
a rotina não-te-ralesca impôs como um dogma, e que
a vaidade irritada e irritante do snr. dr. Theóphilo Braga
persiste em sustentar, a torto, que não a direito,
impondo-o
autocraticamente a quantos vêem no professor do Curso
Superior de Letras o pontífice máximo, ditador
inviolavel e sagrado da Republica... das letras portuguêsas.
II
O snr. dr. Theóphilo Braga,
descobrindo a verdade, e
procurando
enterrá-la
Ao preparar os materiaes para a refundição de seu
livro sobre Bernardim Ribeiro, o snr. dr. Theóphilo Braga
teve ensejo de reconhecer que a figura do
trovador
Cristovam
Falcão era mero produto de uma lenda, mas não
teve a coragem precisa para vir a público declarar que tinha
errado ao dar á estampa o seu primeiro volume sobre os
poetas bucolistas, em que, seguindo a rotina, dera existência
real ao suposto poeta, que já havia classificado de
ultimo eco do alaúde provençal,
modificado pelo gosto hespanhol de Padron
e Stuniga.
[3]
E não querendo confessar que errara, como se semelhante
facto constituisse desdoiro ou apoucasse de qualquer fórma
seus méritos, o autor do livro
Bernardim Ribeiro
e o
Bucolismo procurou, por um processo que não nos
atrevemos a chamar genial, enterrar a verdade, sepultando-a sob um
pedregulho enorme, para que ali dormisse um sono de séculos,
tantos séculos pelo menos como a lenda contava, para que,
assim, ninguem pudesse aludir ao erro em
[30]
que se deixara enredar o professor do Curso
Superior de Letras.
Como o snr. dr. Theóphilo Braga procedeu, vão os
leitores conhecer, e depois ficarão
habilitados a julgar da sinceridade com que o infatigavel escritor
impugna o nosso livro sobre o poeta
Crisfal.
A pag. 356/7 do seu livro
Bernardim Ribeiro e o Bucolismo,
na parte respeitante a Cristovam Falcão, escreveu o snr. dr.
Theóphilo Braga:
«O primeiro
documento historico que encontramos acerca do
poeta, de um modo irrefragavel, é datado de 1517;
é uma graça
régia motivada talvez pela sympathia que suscitava a sua
desgraçada paixão, ou apparentemente pelos
serviços de seu pae. Em um alvará ao Almoxarife
de Coimbra foi passada ordem para que dê o rendimento d'este
anno de 1517 a Christovam Falcão: 97:000 réis.
Recebeu-os
o seu procurador Mestre Jorge.»
Como se vê da transcrição feita, o
autor declarava que o documento invocado referia-se ao suposto poeta
de
um modo
irrefragavel, isto é: «
irrecusavelmente,
incontestavelmente.» Esse documento dizia respeito,
segundo inculcava o snr. dr. Theóphilo Braga, a
uma
graça régia, mercê de
97$000
réis, concedida ao suposto bardo
talvez
pela sympathia que suscitava a sua desgraçada
paixão, ou apparentemente pelos
serviços de seu pae.
Ora fazendo taes afirmativas, autoritária e
catedraticamente, o snr. dr. Theóphilo Braga abusava da boa
fé dos seus leitores, por isso que s. ex.
a
muito bem conhecia que estava
deturpando a verdade, a seu bel-prazer, que nada d'aquilo que
apregoava como autêntico era verdadeiro.
[31]
Nem o alvará de 1517 dizia respeito ao suposto poeta, nem
semelhante alvará mencionava a verba de 97$000
réis.
Tratava-se de uma tença de 97$734 reis (resultante de dois
padrões) que pertencia a Cristovam Falcão, senhor
da vila de Pereira, e não ao suposto poeta Cristovam
Falcão de Sousa.
Ignorava, porventura, o snr. dr. Theóphilo Braga a
existência dos dois padrões constituitivos
da referida tença?―Não ignorava. E a prova de
que os não desconhecia está nas
citações que s. ex.
a faz a
paginas 331/2 do seu
mencionado livro, atribuindo-os a quem eles diziam respeito, isto
é a Cristovam Falcão, senhor da vila de Pereira,
que nada tinha que ver com o suposto poeta, como o snr. dr.
Theóphilo Braga, de resto, muito bem estabelecia.
Mas a existência de uma tença de 97$000 reis,
pelas alturas de 1517, a favor de Cristovão
Falcão de Sousa, comprovaria de certo modo a data em que o
snr. dr. Theóphilo Braga fixou habilidosamente o nascimento
do
ultimo eco do alaúde, e permitia ao
fantasioso
escritor justificar tam rasgada mercê régia
atribuindo-a á
sympathia que suscitava a sua
desgraçada paixão.
D'esta maneira, servindo-se de um alvará que não
dizia respeito ao suposto poeta, e alterando-lhe caprichosamente a
quantia mencionada, o snr. dr. T. Braga creava um
recurso
histórico graças ao qual os
discípulos do professor do Curso Superior de Letras podiam
aceitar que pelas alturas do ano da graça de 1517
já existia um afamado poeta com o nome de
Cristovão Falcão, tam desventurado em seus amores
que el-rei, compadecido, lhe fizera mercê da
[32]
tença, verdadeiramente principesca, de
97$000 réis! E sucedendo um
caso
d'estes em nossos dias, ainda ha quem ache estranho que Faria e Sousa e
frei Bernardo de Brito improvisassem (é este o termo
próprio?) documentos...
históricos!
Ao publicarmos o nosso trabalho sobre Bernardim Ribeiro, não
salientamos devidamente estes pouco recomendaveis processos do snr. dr.
Theóphilo Braga, poupando, com generosidade, o nome do
encanecido trabalhador, em respeito aos seus cabelos brancos.
E á nossa manifesta generosidade correspondeu o aclamado
professor apodando os nossos processos críticos
de:―processos... á
tôa!
Que nome conceder a esses processos do snr. dr. Theóphilo
Braga?
Mas não ficaram por aqui as habilidades de que se serviu o
autor da
Historia da Litteratura Portugueza. E
chamamos-lhes
habilidades, por não encontrarmos
á mão um termo mais
anodino, mais suave, mais doce, para definir o feito, e não
por qualquer propósito agressivo.
Existem na Torre do Tombo cartas autógrafas do suposto autor
do
Crisfal. A
simples publicação d'essas cartas constituiria um
golpe decisivo na lenda que atribuia produções de
Bernardim Ribeiro a Cristovão Falcão de Sousa,
por isso que taes documentos revelam que este, alem de iletrado,
não escrevia meia dúzia de linhas sem uma enfiada
de
asneiras...―«
uma acumulação
de
tolices», no dizer insuspeito de uma ilustre
escritora.
Que fez o snr. dr. Theóphilo Braga?
Publicou essas cartas, alterando-lhe,
paternalmente,
a ortografia e a
gramática, e deixando
[33]
assim transparecer que o autor de taes escritos poderia muito bem ter
produzido as poesias bucólicas que lhe atribuiam.
Para que se não ajuízasse que faziamos uma
afirmação gratuita ao dizer que o snr. dr. Th.
Braga publicara
emendada a obra...
em prosa de Cristovam Falcão, démos no volume
Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal) uma
reprodução foto-zincográfica de uma
das cartas do suposto poeta, e, não desejando colocar n'uma
situação pouco invejavel o professor do Curso
Superior de Letras, escrevemos, procurando desculpar o seu
procedimento:
«........o copista, a quem o
distinto professor
encarregou de reproduzir o documento existente na Torre do Tombo,
forneceu-lhe uma reprodução
com summa deligencia emendada, que o snr. dr.
Theóphilo, com a
melhor boa fé, estampou no seu livro, e que muito se afasta
do original.»
[4]
Nem na sua comunicação á Academia das
Sciências de Portugal, nem no seu artigo do jornal
«O Dia», nem na carta que nos dirigiu, se referiu,
embora ao de leve, o snr. dr. T. Braga á carta de Cristovam
Falcão de Sousa... Compreende-se. O documento é
tam esmagador, que o infatigavel polígrafo foge d'ele como
dizem que o diabo foge da cruz.
Mas, embora isso não agrade a s. ex.
a,
vamos dar aqui a reprodução
paleográfica de
outra carta de Cristovam Falcão de Sousa, devendo elucidar
os leitores que o snr. dr. Theóphilo Braga já deu
publicidade a tal documento a pag. 368/70 do seu
Bernardim
Ribeiro
(edição
[34]
refundida). Mas deu-lhe publicidade:
emendando-o...
Como não temos a peito celebrizar o alto engenho e mais
partes que concorriam na pessoa do suposto poeta, reproduzimos a carta
fielmente, e, para desfazer algum erro de leitura ou qualquer
gralha
que passe
á revisão, juntamos em foto-gravura o seu
fac-simile.
Eis a carta:
[Figura:
Reproducção
foto-zincográfica da carta de Cristovam Falcão de
Sousa]
«Sñor. mjnha jrmã dona bracajda
faleceo
da ujda presemte a dez dias deste mes pasado estando eu nesa corte ẽ
serujço de v. a. onde me foy a noua pera [~q] viese prover ẽ
algũas cousas da su alma por me ela dejxar por seu
testamẽtejro cõ seu marido ejtor de figuejredo.
fiquou-lhe hũ só filho e doutro marido [~q] deste
não
ouve nenhũ e tão Riquo [~q] me dizẽ que foy posta a
fazẽda de seu pay quãdo faleceo (que eu não
era no Rejno) ẽ doze contos. fez meu pay antes [~q] eu de la partise
petição a uosa a. [~q] lhe mãdase
ẽtregar seu neto e tirar de poder de seu padrasto. sayo lhe na
petição [~q] Requerese ao Juiz dos
orfãos da uila donde ho moço
está que he borba donde seu padrasto he natural e alquajde
mor pelo duque de bragança e que ele prouerja e que
não no fazẽdo proverja ẽtão vosa a. a qual
deligẽcia eu tenho fejto que Requery ao Juiz [~q] lho tjrase de
poder e que fose loguo por [~q] eu tjnha sabjdo [~q] eitor de
figueiredo detremjnaua quasar ho moço cõ sua f.
a
no fim deste mes ẽ que lhe
diziã que ho
moço
[35]
faz quatorze anos pera ho matrimonjo ser
valioso. mãdou ho Juiz dar ujsta de meu Requerim.
to
a eitor de figueiredo e njsto e ẽ ele Responder pasaram ojto dias e
nestes me fizerão mujtos agrauos alomgãdo me ho
tempo e me fizerão perdediça hũa
petjção dagrauo na qual agrauaua pera v. a.
apresemtandoa eu ẽ audiencja onde foy lida e jsto tudo por ele ser
alquajde mor e ser toda a ujla de seus paremtes e criados e por [~q] da
li não pasão os agrauos se não pera ho
ouujdor do duque onde tão bẽ me deterjão pera
ho moço
chegar ao termo dos quatorze anos detremjney dejxar a cousa neste termo
e fazelo saber a v. a. pera [~q] proueja njsto como lhe parecer
serujço de deos e seu que mjlhor proueja [~q] pois tẽ tal
fazẽda que v. a. ho quase cõ quẽ ouuer por seu
serujço
[~q] não [~q] ho orfão seia asy Roubado. no que
v. a. deue loguo prouer como pay dos orfãos [~q] he quanto
mais [~q] quarega jsto sobre cõcjẽcja de v. a. por hũ
alu.
rá que vosa a. pasou a ejtor de
figueiredo ao tẽpo
[~q] quasou cõ mjnha Jrmã
pelo qual tjrou a titorja a meu pay de seu neto por lha dar a ele. ao
qual agora ajnda se pega, como se não fose cerada a cousa
por morte de mjnha Jrmã. e o [~q] me parece [~q] se deue
fazer he pasar v. a. logo alu.
rá por
esta quarta [~q]
pode serujr de petjção, [~q] polo qual
mãde
a hũ dos quoReiadores destremoz elvas ou por talegre [~q] qualquer
deles va a borba e tjre ho moço de
[36]
poder de seu padrasto e
ẽtregue sua p.
a a meu pay seu auô ou a
meu
jrmão barnabé de
sousa [~q] tẽ fazẽda p.
a ho mjlhor
mãter [~q] biue ẽ
portalegre onde ho moço tẽ parte de sua fazẽda e lhe
he já dado por tutor desta fazemda e despois do
moço tjrado prouer v. a. ẽ quẽ seia seu tutor e seja
ouujdo ejtor de figuejredo das Rezomis [~q] diz ter pera [~q] ho
moço quase cõ
sua f.
a mas jsto deuela ser amte v. a. [~q] qua
não sey quãto se gardara Justiça e ho
aluará pode v. a. mãdar dar a demjão
de sousa meu
irmão [~q] la amda [~q] ele ho fará vir
cõ mujta
deligẽcia [~q] eu fiquo qua esperamdo p.
a ho
Requerer e apresemtar.
e lẽbro mais a uosa a. [~q] mãde ao mesmo coReiador que
ẽtẽda nas partjlhas e jmbẽtajro [~q] doutra manejra
será Roubado ho orfão e asi [~q] o tẽpo aquaba
p.
a fim deste mes e eu s.
or
neste trabalho
nõ pretendo
mais [~q] fazer ho [~q] deuo e tenho dejxado os Requerjm.
tos
que
trago cõ v. a. ẽ mão de fernão
daluarez peço a
v. a. que nõ perqua por ausente de ser despachado. a quẽ
deos a ujda e Real estado acrecẽte. de portalegre sete de novembro.
as Reajs mãos de v. a. bejjo. xpouão
falcão de sousa.»
[5]
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! |
Ao leitor deixamos a faculdade de comentar a carta
primorosa
do
sarrafaçal engenho que durante alguns séculos
gosou da fama de poeta insigne, em prejuizo do nome aureolado de
Bernardim Ribeiro.
III
Anotações á carta que nos dirigiu
o
snr. dr. Theóphilo Braga
1
«A ninguem interessaria
tanto
o conhecimento d'este
problema, como a mim, que esbocei uma biographia de Christovam
Falcão com elementos historicos (documentos authenticos)
comprovando dados genealogicos.»
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
Não ha a menor dúvida quanto á
primeira parte d'esta afirmação.
Com efeito, o snr. dr. Theóphilo Braga esboçou
uma biografia de Cristovam Falcão, e ninguem
ousará contestar-lhe o mérito de haver sido o
Plutarco do suposto trovador.
Esboçando-lhe a biografia, o abalisado professor de
literatura serviu-se de documentos autênticos... mas
utilizando alguns que não diziam respeito ao pseudo-poeta, e
sim a um outro Cristovam; e interpretando, modificando e adulterando
outros documentos ao sabor do seu paladar, ao capricho da sua fantasia.
No capitulo XIX do nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro
destrinçamos os documentos históricos que o snr.
dr. Theóphilo Braga propositadamente
[38]
confundiu, e restabelecemos o
texto de uma das cartas de Cristovam Falcão de Sousa que o
habil professor
emendara, com o zelo de Plutarco cioso do bom nome
do seu heroe... lendário.
No
segundo capítulo
d'este livro, ficou tambem fielmente
reproduzida outra carta de Cristovam Falcão, que o
infatigavel historiador havia
corrigido, como se
se tratasse de um
tema de algum discípulo seu. Mesmo quando se entrega a
trabalhos de reconstituição
histórica, o snr. dr. Theóphilo Braga
não se esquece de que é professor de literatura
portuguêsa!
Depois de isto, como ousa o snr. dr. Theóphilo Braga invocar
os documentos autênticos de que tam mau uso fez?
2
«Tive de ler immediatamente o seu livro, para ver que
materiaes traria para o aperfeiçoamento do meu
trabalho.»
Carta do snr.
dr. Th.
Braga.
Tem graça, e não ofende!
Se leu imediatamente o nosso livro, não foi para ver que
novos subsídios forneciamos para o estudo da
história da literatura portuguêsa, mas sim para
conhecer quaes os materiaes que lhe facultariamos para o
aperfeiçoamento do seu trabalho...
Cabe n'esta altura, a talho de foice, deixar consignada certa passagem
de uma palestra que o snr. dr. Theóphilo Braga teve com um
dos seus mais inteligentes discípulos a propósito
da
[39]
publicação do nosso livro sobre Bernardim
Ribeiro:
«V. compreende... Eu sou como um mestre de obras... na
construção de um edificio. Ha vários
pedreiros... Vão-me chegando ás
mãos diversas pedras... Aproveito aquelas que se me afiguram
de feição, geitosas, convenientes para a minha
obra, e as outras ponho as de parte, deito-as
fóra.»
E a um distinto confrade nas letras, ainda por motivo da
publicação do nosso livro, o professor do Curso
Superior de Letras teve ensejo de referir-se á nossa obscura
pessoa, fazendo o favor de nos reconhecer talento, mas...
que
os estudos de investigação
histórica eram umas teclas muito dificeis, muito
complicadas...
O apreciado
mestre de obras (segundo
a frase de s. ex.
a) escusava de ter lido o nosso
trabalho. O sub-título do livro,
O Poeta
Crisfal, demonstrava suficientemente ao snr. dr.
Theóphilo Braga que nenhuma pedra de
feição poderiamos proporcionar-lhe para o
aperfeiçoamento da sua obra, porque o
nosso livro lhe atirava a terra com os alicerces em que se firmava o
edificio... ou monumento erguido ao falso
Crisfal.
Foi um castelo de cartas que um sopro deitou ao chão...
Oh! os estudos de investigação
histórica são realmente... umas teclas muito
complicadas!
3
«Mesmo no prologo fez-me V.
a justiça de que eu
aproveitaria tudo quanto se prestasse a futuras emendas.»
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
[40]
Não escrevemos tal no prólogo do nosso livro que
o snr. dr. Theóphilo Braga aproveitaria d'ele
tudo
quanto se prestasse a futuras
emendas.
O que nós escrevemos a pag. 24 do nosso estudo sobre
Bernardim é o período que segue:
«Embora, em resultado da nossa descoberta, o snr. dr.
Theóphilo Braga tenha de refundir mais uma vez os seus
trabalhos sobre Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda, estamos
plenamente convencidos de que ninguem estimará mais do que o
incansavel professor do Curso Superior de Letras a luz derramada sobre
a figura do grande poeta bucolista, amigo de Francisco de
Sá.»
Nas linhas transcritas, o que havia da nossa parte era um cumprimento
de cortesia,―uma gentileza, uma amabilidade, própria de
quem, não tendo qualquer agravo do snr. dr.
Theóphilo Braga, procurava colocar s. ex.
a
em bom terreno, oferecendo lhe, por assim
dizer, uma ponte, uma táboa de
salvação, pela
qual, sem quebra de linha, o escritor consagrado pudesse atravessar,
reconhecendo, ou fingindo reconhecer, o mau terreno que estava pisando,
e abraçando honestamente a verdade evidenciada.
Era um cumprimento, repetimos; não um acto de
justiça, que a ele não tinha jus o
infátigo escritor. E da mesma natureza, no decurso do nosso
trabalho, outras demonstrações de cortesia
ficaram assinaladas, prestando homenagem á vida laboriosa do
escritor encanecido cujos erros combatiamos.
Mas como as amabilidades se agradecem, e os actos de justiça
não são credores
de qualquer agradecimento, aprouve ao snr. dr. Th. Braga ver nas nossas
palavras um acto de justiça.
[41]
Não lhe queremos mal por isso, pode crer o venerado
professor.
Cada qual segue os impulsos do seu temperamento.
4
«Desde as noticias
genealogicas trazidas por Braancamp
Freire sobre D. Maria Brandão, que Cristovam
Falcão amou, sendo ambos muito crianças, via-me
forçado a tomar o nascimento d'elle no fim do primeiro
quartel do seculo XVI.»
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
Quando chegámos a esta altura da preciosa carta do snr. dr.
Theóphilo Braga ficamos verdadeiramente surpreendidos, para
não dizer boquiabertos!
Lemos e tornamos a ler o período transcrito, pesamos detida
e pacientemente cada uma das palavras que o constituem, e, ao cabo,
alcançamos o convencimento de que uma tal
afirmação constituia uma habilidade, um processo,
uma engenhoca,―deixem chamar-lhe assim, embora o termo
destôe, por menos académico,―a que o professor de
literatura recorria para não confessar ter sido o nosso
trabalho que o obrigava a aceitar o nascimento do suposto poeta no fim
do primeiro quartel do seculo XVI.
Fôra pelas noticias genealogicas trazidas pelo snr. Braamcamp
Freire sobre D. Maria Brandão que o snr. dr.
Theóphilo Braga, conforme nos escrevia, se vira
forçado a não insistir no nascimento do pseudo
Crisfal no ano de 1497, se não antes!
Mas como podia isto ser, se o trabalho do
[42]
ilustre escritor invocado pelo snr. dr.
Theóphilo ainda não fôra dado
á estampa?
Teria o professor do Curso Superior de Letras recebido qualquer
comunicação sobre o assunto por parte do snr.
Anselmo Braamcamp Freire?―Não, não tinha
recebido, como o
demonstram eloquentemente os seguintes períodos de uma carta
que em 5 de dezembro de 1908 nos dirigiu, em resposta a uma nossa, o
primoroso director do
Archivo
Historico:
«Vamos agora á sua
pergunta de hoje originada
pela
carta do dr. Teofilo Braga. Elle não conhece nada do meu
trabalho sobre a Maria Brandoa, e faça-me a
justiça de crer que, não lho tendo mostrado a si,
não o mostraria a mais ninguem. Não lho mostrei a
si, porque nas 150 paginas já impressas, de que em breve lhe
mandarei um exemplar, nada digo a respeito de Maria Brandoa: trato dos
Brandões do
Cancioneiro e da Feitoria de Flandres.»
Depois da transcrição d'estas linhas, eloquentes
e insuspeitas, do snr. Braamcamp Freire, tornam-se
desnecessários de nossa parte quaesquer
comentários á afirmação sem
base do snr. dr. Theóphilo Braga.
Passemos adeante sobre este caso triste!
5
«Isto nos impossibilitava de continuar a admittir as
relações pessoaes de Cristovam
Falcão com Bernardim Ribeiro já velho e dementado
em confidencias de amor com um rapaz no viço da mocidade; e
por tanto as Eclogas em que elle figurava interpretativamente tinham de
ser lidas a outra luz. V.
acabando de fazer a destrinça entre o Poeta e seu primo mais
antigo, deu-me elementos para uma melhor
interpretação das Eclogas de Bernardim,
(eliminadas as relações com Cristovam
Falcão), e mostrando como realmente as poesias d'aquelle,
como mestre, influiram no mais moço, que como novel chega a
fazer centões e intercalações de
versos de Bernardim
Ribeiro.»
[43]
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
Pelo exposto, entende o snr. dr. Theóphilo Braga que
nós lhe demos elementos para uma melhor
interpretação das éclogas de
Bernardim, o que importa implicitamente a
afirmação de que não soubemos
interpretá-las, ou que erramos a exegese com que julgavamos
ter corrigido as lições ministradas pelo ilustre
professor.
Aguardemos, pacientemente, que o snr. dr. Theóphilo Braga
refunda mais uma vez o seu livro sobre Bernardim Ribeiro, para
então apreciarmos as novas
interpretações que o imaginoso historiador se
propõe apresentar das éclogas de Bernardim, e
ficarmos tambem conhecendo quaes os
centões e
intercalações de versos de Ribeiro que
o novel Falcão introduziu nas suas
produções... em prosa, únicas que
obrou. Obrou, no sentido de: produziu, claro está.
6
[44]
«Ha uma affirmativa
histórica, de Diogo do
Couto, na sua Decada VIII, que
fallando de Damião de Sousa Falcão, accrescenta
como reforço historico: «irmão de Cristovam
Falcão, aquelle que fez aquellas cantigas nomeadas
de Crisfal...» E
tambem no seculo XVI Fructuoso (resumido pelo P.e
Antonio Cordeiro na Historia insulana) diz de Cristovam
Falcão: «parente do
Barão velho e do famoso poeta Cristovam Falcão,
que fez a celebre Ecloga Crisfal das primeiras syllabas do seu
nome...» Tambem nas edições de
Ferrara e Colonia, feitas por curiosos sem criterio litterario, se
repete a attribuição
«que dizem ser de Cristovam
Falcão, ho que parece alludir o nome da mesma
Ecloga». Não se podem refutar por
negativa estes testemunhos de homens de letras do seculo XVI, e que se
reflectiram nos genealogistas.»
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
A habilidade, ou antes o processo habilidoso, ou, melhor, a tendenciosa
redacção d'estes
períodos não consegue iludir ninguem... Julgou
talvez o snr. dr. Theóphilo Braga que nos desnortearia com
esta subtileza de processos... críticos. Tal não
conseguiu, como terá
de reconhecer no foro íntimo da sua consciência.
Vamos por partes:
Foram os editores de Ferrara e Colónia que propagaram pela
imprensa a lenda de que a paternidade da carta e ecloga de Crisfal era
atribuida a Cristovam Falcão, e, fazendo-o, limitaram-se,
com honestidade, a escrever: «que dizem ser... ao que parece
aludir o nome da mesma ecloga». Ao contrário do
que o snr. dr.
Theóphilo Braga procura fazer incutir, tendenciosamente, os
editores citados não repetiram uma
atribuição de homens de letras do seculo XVI...
Os homens de letras do seculo XVI é que repetiram, fazendo-a
certa, a atribuição feita com reservas pelos
editores das obras de Bernardim Ribeiro em 1554 e 1559. Aceitaram
[45]
por boa, sem se darem ao
trabalho de a verificar, uma simples atoarda.
Quem eram os editores de 1554 e 1559 das obras de Bernardim Ribeiro?
Di-lo, judiciosamente, o snr. dr. Theóphilo Braga na carta
que vamos analisando:
Eram «
curiosos sem critério
literário».
Será a estes obscuros obreiros do século XVI que
o laureado professor quer guindar á categoria de homens de
letras com foros de autoridades?
Não, os editores de 1554 e 1559 foram realmente creaturas
sem o menor critério literário, e por isso deram
alentos á lenda forjada pelo vulgo; mas não resta
a menor dúvida de que eram pessoas de bem, porque
consignaram uma
tradição vaga,
sem se atreverem a registá-la como um facto positivo,
indiscutivel, incontroverso. A cobrir a sua responsabilidade de
editores conscienciosos, lá estamparam: «que dizem
ser... ao que parece aludir.» Outros fossem eles, que
asseverassem que as duas produções, carta e
écloga, pertenciam a Cristovam Falcão
incontestavelmente, irrefragavelmente!
Ignorava, porventura, o snr. dr. Theóphilo Braga que os
editores da obra de Bernardim Ribeiro, ao produzirem as
rúbricas respeitantes ao suposto autor do Crisfal,
mencionavam apenas uma atoarda, uma vaga
tradição?
Não; o venerado professor não ignorava isso.
Testemunha-o o que s. ex.
a escreveu a paginas 21
da sua chamada edição crítica das
obras de... Cristovam Falcão:
«As rubricas do editor de Colonia, encerram
[46]
as
tradições vagas, que, passados nove annos, ainda
corriam ácerca d'aquelle infeliz namorado.»
Para que veio pois o snr. dr. Theóphilo Braga asseverar que
tambem
nas
edições de Ferrara e de Colonia se repete a
atribuição?
Mais diz o apreciavel escritor que «não se podem
refutar por negativa» as
atribuições que Diogo do Couto e Frutuoso
fizeram, repetindo
como certo o que os editores
das
obras de Bernardim registaram
sob reservas.
Não se podem refutar por negativa, não; mas podem
refutar-se cabalmente, pondo em confronto da obra poética
atribuida a Cristovam Falcão a obra em prosa que ninguem
ousará disputar ao suposto trovador.
E a admitir alguem, de reconhecida inteligência e
critério, que o autor das cartas em prosa podia ser o poeta
da Carta e da Ecloga de
Crisfal, o mesmo
equivaleria a
aceitar como razoavel que Rosalino Candido pudesse firmar as obras do
snr. dr. Theóphilo Braga, e que, consequentemente, o
laureado professor de literatura fosse capaz de produzir a obra
gigantesca de Victor Hugo.
É realmente desolador, para a fabula consagrada, que a Torre
do Tombo conserve os autógrafos de Cristovam
Falcão de Sousa!
7
«A ecloga de Crisfal
não podia ser publicada
pelo seu autor, nem pelo seu consentimento porque era uma inconfidencia
de antigas
relações amorosas com uma senhora que estava
casada.»
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
[47]
Esta bizarra revelação do snr. dr.
Theóphilo Braga constitue, naturalmente, uma desenfastiada
brincadeira de s. ex.
a.
Pois qual é a obra
lírica onde se
não encontrem
inconfidências
semelhantes
ás da ecloga de Crisfal?
O snr. dr. Theóphilo Braga, que aos catorze anos
já se entregava a devaneios poéticos,
não deixou certamente de dar publicidade a versos em que foi
decantada alguma dama unida pelos laços matrimoniaes... E
estamos convencidos de que ninguem chamou
inconfidências aos suspiros poeticos do
trovador açoreano. As
inconfidências não servem de tema ás
locubrações dos vates; onde existe arte, no bom
sentido da palavra, não ha inconfidências, embora
n'este ponto estejamos em absoluta discordância com a
doutrina exposta pelo professor do Curso Superior de Letras.
Em toda a obra, prosa ou verso, de Bernardim Ribeiro, vive, palpita, a
história ingénua da sua vida, o trama dos seus
mal-aventurados amores por uma dama que trocou a
afeição do poeta pela de um outro zagal. Foi um
inconfidente o magoado Bernardim?―Não, foi um artista, foi
um poeta apaixonado, alma de eleição que da sua
dor fez um poema, como diria Goethe. E que adoravel e sentido poema nos
legou o grande poeta bucolista!
Mas não vale a pena insistir mais n'este ponto. A afirmativa
do snr. dr. Theóphilo Braga constitue, naturalmente, um
gracejo inofensivo de s. ex.
a.
8
[48]
«A
edição sem data, de Lisboa,
só podia ser feita por 1542, quando Cristovam
Falcão estava em Roma; e
quando Camões foi para Ceuta em 1547 na Carta que d'ali
escreveu emprega muitos versos do Crisfal, que
então andava no gosto.»
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
Reproduzamos aqui o que o autor da
Historia da Litteratura
Portugueza escreveu a paginas 394/5 do seu volume
Bernardim
Ribeiro (edição refundida):
«N'esta folha volante
não vem a
Carta, nem as
Cantigas e Esparsas
incluidas na
edição de Colonia. Parece mais uma
vulgarisação popular, talvez uma das
muitas que tornaram a Ecloga muy nomeada, e
de que a reprodução de 1571, feita em Lisboa
(existiu na Livraria de Joaquim Pereira da Costa) seria o typo que
serviu para a reprodução de 1619, em que
apparecem elementos
só conhecidos pela edição de 1559.
«A folha volante sem data
diverge do texto de Colonia profundamente; basta observar as variantes
entre as lições das estrophes 51 e 52.
Attribuimos a
impressão das Trovas de Crisfal, a
1536,
quando appareceram tambem em folha volante as Trovas de Dois
Pastores (Ecloga III) de Bernardim Ribeiro.
«A vinheta do Pastor com capuz e cajado no
Crisfal é a mesma que serve nas Trovas
de dois
Pastores; o typo gothico corpo 12 do titulo do folheto de
1536 é o empregado no texto do Crisfal.
Tambem a
vinheta da Dama, que vem no titulo, appareceu empregada em outra folha
volante de 1536, intitulada Tragedia de los
amores de Eneas y de la reina Dido.»
Procedemos ao mesmo exame a que o snr. dr. Theóphilo Braga
sujeitou o
pliego-suelto, e chegamos a egual
conclusão. Algumas vezes nos haviamos de encontrar em
concordância de vistas com s. ex.
a. E
porque o nosso pensar
sobre o assunto egualava o do ilustre professor, escrevemos a pag. 119
do livro
Bernardim
Ribeiro (O Poeta Crisfal), aludindo ao folheto sem
[49]
indicação de data nem
de lugar de
impressão:
«...mas reconhecendo-se, pelo confronto com outros folhetos,
ser de 1536).
«Como muito bem observou o snr. dr. Theóphilo
Braga, etc.»
Seguiu-se a transcrição do parágrafo
do snr. dr. Th. Braga que atrás reproduzimos.
Mudou o abalisado professor de opinião quanto á
data do
pliego-suelto, querendo agora fixar-lhe o ano de
1542, como poderia fixar-lhe o de 1552 ou 1562, arbitrariamente.
Se ao menos s. ex.
a tivesse a
condescendência de indicar-nos quando seguiu os
processos
inductivos da crítica moderna! Ao fixar a
data de 1536 ou quando arbitrou a de 1542?
Em folha apensa, damos uma reprodução
foto-zincográfica das primeiras páginas dos tres
folhetos que levaram o snr. dr. Theóphilo Braga a fixar a
data da primeira edição conhecida das
Trovas
de Crisfal em 1536.
Se nos perguntarem se estamos dispostos a quebrar lanças
para sustentar a antiga opinião do historiador da
Litteratura
Portugueza, responderemos, com toda a franqueza,
negativamente. O que não podemos admitir é que se
procure agora determinar-lhe
com
precisão a data de 1542, com o simples fundamento
de que n'esse ano estava em Roma o seu suposto autor...
Alude o snr. dr. Theóphilo Braga ao facto de
Camões empregar versos do
Crisfal.
A explicação, a nosso ver, é muito
simples:
Em Faria e Sousa, o insigne fabulista, autor muito da
predilecção do snr. dr.
Theóphilo, encontra-se uma afirmativa, que constitue em
nosso juizo uma das raras que merecem algum crédito,
não obstante a impureza da
fonte.
[50]
Referindo-se a Bernardim Ribeiro, escreveu Faria e Sousa:
«poeta bien conocido y a quien llamava su Enio el divino
Camões.»
Não desconhece isto o professor do Curso Superior de Letras,
porque a pag. 131 da primeira edição do seu
Bernardim
Ribeiro reproduziu da
Fuente de Aganipe
o dizer de
Faria.
Como demonstrámos no volume sobre o
Poeta Crisfal,
Camões glosou o magoado solau da
Menina e
moça, de
Bernardim Ribeiro.
Em uma das cartas atribuidas ao cantor dos
Lusiadas,
encontra-se uma
alusão directa ao autor das
Saudades,
indicando-lhe o
nome:
Bernardim Ribeiro.
Se Bernardim era o seu
Enio,
naturalíssimo é que Camões se deixasse
influenciar pelo Mestre,
imitando alguns dos seus versos.
A não ser que o snr dr. Theóphilo Braga queira
concluir que, sendo Bernardim o
Enio de Camões, Cristovam
Falcão era o
Enio numero 2 do mesmo poeta,―assim a modos de um
Enio barato, para trazer por
casa.
Prossigamos...
9
«Na
edição de Lisboa vem duas
estrophes
supprimidas no texto de Ferrara e Colonia, por que continham uma inconfidencia.
Isto
leva a explicar como Cristovam Falcão tentaria apagar a
paternidade da Ecloga fundamentando-se-lhe a
imputação com o anagramma das primeiras syllabas
do nome.»
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
Salvo erro, o snr. dr. Theóphilo Braga quer
[51]
referir-se apenas a uma, e não a
duas estrofes.
E á estrofe que reza:
Muitos pastores buscaram
mas um pastor por ser-te amigo,
e outro por
ser-te enemigo,
um e outro se escusaram.
E dão-lhe logo
comigo
gados que farão mil queijos;
mas como se despediam
é já mostrar que temiam
que o sabor dos teus
beijos
na minha boca achariam!
Falava-se em
beijos... Era uma
inconfidência, e gravíssima,
e por isso a estrofe foi suprimida nas edições de
Ferrara e de Colónia!
Está claro, e tam claro que, no dizer do snr. dr. Th. Braga,
«
isto leva a explicar como Cristovam
Falcão tentaria apagar a paternidade da Ecloga...»
Ora admitindo por um momento que Cristovam Falcão houvesse
sido poeta, e tivesse a lembrança de escrever uma
écloga abundante em
inconfidências,
pespegava-lhe, sem mais nem menos, com um anagrama deduzido das
primeiras sílabas do seu nome, para que toda a gente logo o
apontasse a dedo como
inconfidente?
De mais a mais, como quer o snr. dr. Th. Braga na sua exegese, se o
suposto poeta empregasse os nomes verdadeiros de todas as personagens
que a écloga alvejava, isso constituiria um
apagamento
de paternidade muito
pouco apagado...
Todo o mistério, o discreto veu da fantasia, a cobrir a
realidade dos episódios que a écloga do
Crisfal
menciona, equivaleria
á ingenuidade infantil d'aquela antiga adivinha:
«Branco é, galinha o põe»!
[52]
Ponha se o snr. dr. Th. Braga no lugar do pseudo-trovador,
imagíne que resolvia arquitectar uma écloga cheia
de
inconfidências, e
diga-nos, com franqueza, se, desejando apagar a paternidade de um tal
feito, assinaria a sua produção com o anagrama
Theobra?
Logo os seus discípulos concluiriam, triunfalmente:
«Cá temos mais um poema do Mestre!» E
fosse lá s. ex.
a
convencê-los de que
não era tal o autor da
inconfidência!
10
«Os logares communs a
Bernardim Ribeiro e Cristovam
Falcão provam mais a favor da
imitação de um discipulo, do que á
fusão dos dois poetas, repetindo-se o mestre na
decadencia.»
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
Com o respeito devido ao professor de literatura, de modo nenhum
podemos aceitar a sentença de s. ex.
a
A
subtileza do snr. dr.
Theóphilo Braga, proclamando que os lugares comuns a
Bernardim Ribeiro e Cristovam Falcão provam mais a favor da
imitação de um discípulo do que
á fusão dos dois poetas, é da natureza
do conhecido
artifício pelo qual se póde sustentar que cinco
vintens não são um tostão, ou
vice-versa!
Admitindo que Cristovam Falcão tivesse sido um imitador de
Bernardim, como quer o abalisado professor, explica-se porventura que
levasse tam longe a sua improbidade literária, que roubasse
por inteiro versos e cantigas ao seu mestre, com a maior
desfaçatez?
[53]
Pois o autor
da
Carta e da
Eclóga de
Crisfal, a ser um imitador, não teria o bom senso
suficiente para reconhecer que, roubando versos de Bernardim,
não alcançaria renome de poeta, mas o apodo de
salteador literário?
Um imitador, por mais inexperiente e tacanho, não se
aproveita dos textos que imita de maneira a que lhe possam apontar os
versos
palmados. Ou não
será isto o que a lógica permite conjecturar?
Como ignoramos
os processos inductivos da critica moderna,
é possivel que estejamos em erro, e que da mesma
ignorância resulte não
alcançarmos o sentido das palavras do snr. dr.
Theóphilo Braga quando afirma que o mestre (Bernardim
Ribeiro) se repetiu na decadência.
Que repetições? e que decadência?
11
«Emfim ha dois schemas
de
paixão amorosa que se
não confundem: o de Joana e Fauno, Aonia e Bimnarder, e o de
Maria e Crisfal. São duas almas, sentindo em
situações
differentes.»
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
Ha dois schemas de paixão amorosa que se não
confundem, diz o snr. dr. Theóphilo Braga na carta que,
pacientemente, estamos anotando.
É verdadeira esta afirmativa?
―Não, não é verdadeira, e o professor
do Curso Superior de Letras sabe muito bem que o não
é.
Em 1897, ao publicar a sua edição refundida do
livro
Bernardim Ribeiro,
confrontando versos
[54]
de
Bernardim com os atribuidos a Cristovam Falcão, escreveu o
professor de literatura.
«Vê-se que á medida que
a situação dos amores de Bernardim
Ribeiro seguia o mesmo desfecho dos amores de Cristovam
Falcão, os dois poetas communicavam entre si os
seus versos, sendo por este modo que se salvaram as poesias do auctor
do
Crisfal.»
[6]
Ha dois schemas de paixão amorosa que se não
confundem, diz s. ex.
a,
procurando agarrar-se a uma boia salvadora...
Mas tanto a paixão é uma só que o snr.
dr. Theóphilo Braga, na écloga em que Bernardim
se personifica sob o nome bucólico de
Persio, viu n'essa personagem
Cristovam
Falcão! E estamos em crer que o ilustre professor
não irá agora sentencear que a écloga
primeira de Bernardim tambem foi elaborada pelo suposto trovador...
Pois se o snr. dr. Theóphilo Braga até concluiu
que tanto Bernardim como Cristovão Falcão
sofreram as agruras do
carcere
privado!
Como póde suceder que o distinto escritor já se
não recorde do que escreveu a pag. 76/78 da sua
edição refundida do livro
«Bernardim Ribeiro», arquivemos aqui algumas das
suas passagens:
«...Não
ignorava
Bernardim que o namorado de
Maria tambem estivera em carcere privado:
Vi-me já
preso;
contente
A meu mal
queria bem.
[55]
«Na Carta, que
escreveu estando
preso, e mandou áquella com quem estava casado a
furto, diz Christovam Falcão:
Mal cuja dor se não
crê
de
prisão
e de ausencia!
Bem se enxerga nos meus danos
que estou preso ha cinco annos,
afóra os que heide estar...
«Retratando o cuidado de Persio, diz Bernardim Ribeiro:
Logo então
começou
Seu gado a
emagrecer,
Nunca mais d'elle curou,
Foi-se-lhe todo a perder
Com o cuidado que cobrou.
«Em Christovam
Falcão lê-se:
Crisfal não era entam
dos bens do mundo abastado,
tanto
como de cuidado,
que por curar da paixão
não
curava do seu gado.
«E continuando o
parallelismo, por onde se vê que
os dois poetas eram mutuos confidentes, e se influenciaram, temos mais
estes traços com que Bernardim Ribeiro retrata o
Crisfal:
Sentava-me em um penedo
Que no meio d'agua estava;
Então
alli só e quedo
A minha frauta tocava.
[56]
«E no Crisfal,
quasi pela
mesma maneira:
Alli sobre uma ribeira
de mui alta penedia,
d'onde a agua d'alto caía,
dizendo d'esta maneira
estava a
noite e o dia...
«Bastam estas
comparações para se
reconhecer a communhão artistica entre os dois namorados
poetas.»
Depois de haver escrito o que acaba de ler-se, como se compreende que o
snr. dr. Theóphilo Braga venha proclamar, com a maior
sem-cerimónia, que ha
dois schemas de
paixão amorosa que se não confundem!
Quanto a
Fauno, nome pastoril que,
em uma das éclogas, Bernardim dá ao seu amigo,
confidente e colega Francisco de Sá de Miranda, quer o snr.
dr. Theóphilo Braga que seja a
personificação do próprio B.
Ribeiro,―talvez para não confessar que nós
acertamos na
interpretação apresentada no
Poeta
Crisfal.
Temos certa curiosidade em saber se na futura
refundição do livro sobre os poetas bucolistas o
seu autor transferirá para Sá de Miranda o crisma
de
Persio, na
impossibilidade de continuar a ver na mesma figura os traços
de Cristovam Falcão...
De uns versos de Francisco de Sá, imitando uma
canção de Petrarca, já o ilustre
professor concluiu que o amigo de Bernardim sofrera a
prisão, por motivo de amores... É meio caminho
andado para que, na fantasia de s. ex.
a, o
[57]
douto Sá de Miranda
vá tomar o pouso do derreado Falcão.
A ver vamos... como dizia o cego, e cada vez via menos!
12
«Através de
todo o hypercriticismo, o livro
sobre Bernardim revela um trabalhador fervoroso, etc.»
Carta do snr. dr. Th.
Braga.
Duas palavras apenas:
A nosso juizo, aquele
através está a
substituir, amavelmente, o advérbio
apesar... É o que julgamos depreender
da sequência da frase.
No nosso modesto e desvalioso estudo, o snr. dr. Theóphilo
Braga apenas viu
hipercriticismo, o que de modo nenhum
póde agradar ao historiador da
Litteratura
Portugueza, que
só emprega os modernos processos da crítica
scientífica,―graças aos quaes... se vê
obrigado a refundir amiude os seus trabalhos!
Continuaremos, impenitentes, a cultivar o
hipercriticismo, deixando ao snr. dr.
Theóphilo Braga o uso exclusivo dos seus processos, que
não nos seduzem, com toda a franqueza o dizemos.
IV
A comunicação do presidente
da Academia das
Sciencias
de Portugal
No seio da sociedade scientífica e litéraria, de
que é ilustre presidente,
proclamou o snr. dr. Theóphilo Braga, á porta
fechada, isto
é, em reunião privativa dos sócios
d'aquela
Academia, que a vida amorosa de Cristovam Falcão «
oscila
entre 1525 e 1526, sendo n'aquella
data moço fidalgo, tendo pelo menos 12
annos».
Cristovam Falcão de Sousa era moço fidalgo em
1527, como se demonstra indubitavelmente pelo registo exarado n'um
livro que existe no arquivo da Torre do Tombo, registo que reproduzimos
com fidelidade a paginas 168/9 do nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro.
Na sua erudita comunicação á Academia
das Sciencias de Portugal, afirmou o snr. dr. Theóphilo
Braga que o suposto autor do
Crisfal
tinha
pelo menos 12 anos á data de
1525...
Não indicou o douto académico o documento ou
recurso
histórico, em
que se estribava para sentencear, sem admitir réplica, que o
pseudo-trovador tinha
pelo menos 12 anos á data
de
1525, mas é possivel que s. ex.
a
esteja
munido de
[60]
concludentes provas para
demonstrar a justeza da sua afirmativa, se alguem se lembrar de
contestar-lhe tam peremptória opinião.
Se o ilustre professor não possue a tal respeito documentos
bastantes, póde dar-se o caso de alguem vir
àmanhan, quando mais não seja para fazer
pirraça a s. ex.
a,
declarar que Cristovam Falcão de Sousa, á data de
1525, não era ainda nascido, ou, quando muito, teria doze
mêses, e não 12 anos...
Mas é possivel que o snr. dr. Theóphilo Braga
tenha conseguido descobrir qualquer documento em que apoie a sua
sentença. É até muito possivel!
O importante, por agora, é verificar que o laureado
académico fixou o ano do nascimento do pseudo-poeta em 1513,
poucos mêses mais, poucos mêses menos, se a
lógica não
é uma cantata para adormecer meninos.
Ora, sendo assim, vê-se que alguma cousa se ganhou com a
publicação do nosso livro sobre o
Poeta
Crisfal, onde a paginas 176
escrevemos:
«
Quanto a Cristovam Falcão de
Sousa, moço fidalgo em 1527, por muito que se queira afastar
a data do seu nascimento, não poderá esta ser
fixada em ano anterior a 1510. Fixando-se o seu nascimento entre os
anos de 1510 a 1515, é natural que se fique muito
próximo da
verdade.»
O snr. dr. Theóphilo Braga, em face do nosso estudo,
escolheu o ano de 1513, cifra que se encontra compreendida
entre
1510 a
1515, salvo erro.
Nós, porém, com inteira franqueza o dizemos,
temos ainda suas dúvidas, e após recentes
pesquizas, em que vamos prosseguindo, inclinamo-nos
[61]
a ajuizar que o pseudo-
ultimo
eco
do alaúde ainda não era nascido no
ano de 1516...
Mas, para aclarar este ponto de capital importância,
aguardemos a nova versão que o snr. dr. Theóphilo
Braga tem na forja sobre os poetas bucolistas.
Além de ter modificado a sua antiga doutrina sobre a epoca
em que floresceu o falso
Crisfal, na sua
comunicação ao grémio
literário a cujos destinos preside, o snr. dr.
Theóphilo determinou que a vida amorosa do homenzinho
oscilara
entre 1525 e 1526,―isto
é no período ingénuo e
viçoso dos doze para os treze anos, quando a suposta mulher
amada pelo Xpouão contaria, na melhor das
hipóteses, as suas fagueiras e menineiras dez primaveras...
Mas, decorrido menos de um mês sobre a
comunicação... scientífica, o
egrégio conferente emendou este seu parecer, como se
verá quando analisarmos o artigo epigrafado
Movimento
litterario.
Segundo o extrato publicado no jornal «O Mundo»,
que condizia com os de outras gazetas, o snr. dr. Theóphilo
Braga
«
evidenciou que na ecloga
«Crisfal» transpareciam diversas
situações da vida de Cristovam Falcão.»
Infelizmente, os jornaes não nos forneceram qualquer
pormenor elucidativo sobre a referida
evidenciação,
pelo que ficamos, com verdadeiro pesar, privados de reconhecer a
maneira engenhosa pela qual o distincto professor de literatura
conseguiu demonstrar,
urbi et orbi,
que na magoada écloga de Bernardim Ribeiro transpareciam
diversas
situações da vida de
Cristovam Falcão.
É possivel, porém, que na próxima
futura
[62]
refundição do seu livro sobre os bucolistas, o
snr. dr. Theóphilo Braga inclua um largo capítulo
em que trate o assunto com o devido desenvolvimento, completando o
extrato que os jornaes fizeram da sua apreciavel
comunicação, com o que preencherá uma
sensivel lacuna. Oxalá assim suceda.
Terminou o conferente a sua palestra por invocar, mais uma vez, Diogo
do Couto e Gaspar Frutuoso; e mais uma vez afirmou que as duas
individualidades (Bernardim Ribeiro e Cristovam Falcão de
Sousa)
não
podem jàmais confundir-se.
Perfeitamente de acordo, n'esta parte, com o venerado professor!
Cristovam Falcão, o iletrado autor das
Quartas, não póde
jàmais confundir-se com
Bernardim Ribeiro, o mavioso autor da
Carta e
da
Ecloga de Crisfal...
Pelo que, implicitamente, fica demonstrado que nós
não temos dúvida em adoptar
uma ou outra das conclusões do presidente da Academia das
Sciencias de Portugal, apesar de todo o nosso hipercriticismo, como
está vendo o nosso
prezadíssimo amigo!
V
O artigo «Movimento litterário»
Como os leitores viram, pela reprodução que
fizemos no primeiro capítulo d'este trabalho, no artigo que
publicamos nas colunas do diário «A
Lucta», sob a epigrafe:
«
Os processos... scientificos do snr. dr.
Theóphilo
Braga», salientámos várias
inexactidões contidas no capcioso desarrazoado que o
professor do Curso Superior de Letras estampou no jornal «O
Dia», a pretexto de dar notícia do movimento
literário português no ano de 1908.
Não insistiremos sobre os pontos já visados,
embora prestassem o flanco a mais largas
considerações, mas nem o tempo nos é
sobejo nem tam pouco desejamos abusar da benevolência dos que
nos lêem, prolongando demasiadamente este
comentário desenfastiado e despretencioso ás
refutações embrogliadoras e falhas
de sinceridade do snr. dr. Theóphilo Braga.
Sem a publicação do artigo
Movimento litterário, aguardariamos
pacientemente a futura refundição do livro
consagrado ao estudo dos poetas bucolistas pelo egrégio
professor, e só em face das novas exegeses fantasiadas pelo
snr.
[64]
dr. Theóphilo Braga
viriamos a público dizer o que se nos oferecesse,
defendendo, o melhor que soubessemos e pudessemos, as
conclusões que apresentámos no nosso trabalho
sobre o
Poeta Crisfal.
Não o quis assim o distinto escritor açoreano.
Seja feita a sua vontade!
1
«...o snr. Delfim
Guimarães publicava o seu
livro Bernardim Ribeiro―O Poeta
Crisfal, em que resume o já sabido da biographia
do auctor da Menina e Moça, forçando
interpretações de versos a significarem os factos
que imagina.»
Do artigo
«Movimento
Litterario.»
Na opinião soberana do consagrado professor, no nosso livro
sobre Bernardim Ribeiro resumimos o
já sabido
da
biografia do autor da
Menina e moça, e
forçámos interpretações de
versos a significar os factos que imaginámos!
Tem carradas de razão o implacavel crítico quando
proclama, desdenhoso, que nós resumimos o que já
era sabido da biografia do grande poeta bucolista.
Resumimos quanto pudemos, exageradamente talvez, o que
já
era
sabido da biografia de Bernardim Ribeiro, mas muito de
propósito assim procedemos, para que ninguem, em face do
nosso trabalho, pudesse dizer com justiça que fôra
nosso intento fazer substituir no mercado o livro do snr. dr.
Theóphilo Braga pelo nosso.
É certo que nos poderiamos ter conduzido pela mesma
fórma adoptada pelo consciencioso escritor ao
resumir
no seu
Garrett o trabalho
[65]
desenvolvido de Gomes de Amorim, mas
não quisemos seguir semelhante conduta, muito embora
pudessemos invocar, como modêlo, o exemplo que nos fornecia o
historiador da
Litteratura Portugueza.
Não quisemos enveredar por esse caminho, e não
estamos arrependidos, apesar do remoque com que fomos alvejados. Cada
qual segue os processos que muito bem entende, mais em harmonia com o
seu temperamento ou educação.
Resumimos o já sabido da biografia de Bernardim,
é um facto; mas tivemos o cuidado de não
aproveitar aquela descoberta mais que problemática que
localizou a
Quinta dos
Lobos na
Quinta da Piedade, em Sintra,
e
nem por um momento nos passou pela cabeça perfilhar as
palavras do snr. dr. Theóphilo Braga quando vê
«
a persistencia do elemento
mauresco, na paixão exaltada do poeta e no calor
surprehendente da sua linguagem».
[7]
Não seguimos tam pouco na esteira do eminente exegeta quando
s. ex.
a pinta, ao sabor da sua fantasia
rocamboliana, Bernardim Ribeiro: «
moreno, fino e
enchuto de carnes, com a
perdição no olhar e a fatalidade invencivel no
amor.»
[8]
Resumimos o já sabido da biografia de Bernardim, alto e bom
som o declaramos; mas alguns erros tivemos ocasião de
apontar ao biógrafo ilustre do autor da
Menina e
moça, para que os corrija, querendo, nas futuras
edições, pelo que nenhum agradecimento nos deve,
seja dito.
[66]
Que teria perdido o renome universal do Mestre em se mostrar,
não diremos mais benevolente, mas mais justo? Oh! o
positivismo!...
Mas assevera o snr. dr. Theóphilo Braga que nós
forçamos
interpretações de versos a significarem os factos
que imaginamos!
Onde viu s. ex.
a essas
interpretações
forçadas?
Tendo-as visto, por que motivo não veio
indicá-las em público, para
exautoração do nosso
hipercriticismo,
para maior
glória do seu laureado nome, para mais intenso fulgor da
nossa História literária?
Forçâmos interpretações de
versos!
Se o professor de literatura estivesse de boa fé, e
entendesse realmente que nós haviamos errado a
interpretação de versos de Bernardim, que lhe
competia fazer, que lhe cumpria fazer?
―Indicar-nos onde haviamos errado, fazendo-nos ver que estavamos em
erro; e quando s. ex.
a nos convencesse da
razão das
suas corrigendas, ou reprimendas, acredite o snr. dr.
Theóphilo Braga que havia de ver-nos confessar, com
honestidade, sem o menor rebuço, que tinhamos errado, e
não fugiriamos a apregoar que o ilustre censor nos aplicara
umas palmatoadas merecidas.
Mas quando mesmo (o que não está demonstrado)
tivessemos incorrido em erros ao interpretar versos de Bernardim,
tinha, porventura, o snr. dr. Theóphilo Braga a precisa
autoridade para os apontar por aquela fórma agressiva, com
semelhante crueza?
―Não tinha. S. ex.
a não
póde arguir
quem quer que seja de
forçar
interpretações, porque
[67]
ninguem como o professor do Curso Superior de
Letras é useiro em amoldar
interpretações de versos ao sabor da sua
imaginação.
Para que ninguem nos incrimine de injustos para com o snr. dr.
Theóphilo Braga, vamos demonstrar com exemplos colhidos em
obras do Mestre algumas
interpretações
bizarras, que oferecemos ao critério dos que nos
lêem:
N'uma das éclogas de Bernardim Ribeiro, o poeta bucolista,
referindo-se a uma visita que lhe fez o seu amigo Sá de
Miranda, escreveu a narrar o facto:
e neste mêo chegou
um pastor seu
conhecido,
e que dormia cuidou.
Franco de Sandovir era
o seu nome, e buscava
ũa frauta que perdera,
que elle mais que a si amava.
Este era aquelle pastor
a quem Celia
muito amou,
ninfa do maior primor
que em Mondego se banhou,
e que
cantava melhor.
Veja-se como o snr. dr. Theóphilo Braga anotou estes versos:
«Deve entender-se
que foi o pastor, que se banhou
no Mondego, e não Celia, como pode inferir-se.»
Sá de Miranda
e a Eschola Italiana, p.
49
[68]
Na écloga em que Bernardim adoptou o criptónimo
Crisfal,
descreve o poeta a
aparição da mulher amada, que vê em
sonho
vestida de arenoso,
ou seja de amarelo, a côr simbólica do pesar ou
desespero, o que qualquer bronco namorado de aldeia sertaneja
não ignora.
Pois o snr. dr. Theóphilo, querendo fazer da mulher amada
por
Crisfal uma
freira cisterciense, interpretou a passagem aludida pela seguinte
maneira:
«Crisfal viu a sua Maria vestida de
côr de arenoso, ou do habito amarellado da Ordem
cisterciense...»
Obras de Christovam
Falcão, p.
11
Ora o hábito da Ordem de Cister não era
amarelado, mas branco!
Não obstante, seguindo o mesmo critério, o
distinto professor tambem quis reivindicar para o suposto poeta
Falcão a paternidade de uma poesia de Bernardim Ribeiro
consagrada a
uma senhora que se vestiu de amarelo...
Té aqui me pude enganar,
mas agora que podeis
trazer a côr
do pesar
pera mim só a trazeis...
que o snr. dr. Theóphilo Braga comentou pelo seguinte
processo
inductivo:
[69]
«Ora o amarello
só
podia ser côr de pezar no caso de representar a
cúgula cisterciense; e em vista dos factos sabidos,
só estava no caso de escrever esta cantiga Christovam
Falcão, e não Bernardim Ribeiro pelo que se sabe
da sua vida.»
Obras de Christovam
Falcão, p.
12
Mas, felizmente para a memória do poeta bucolista, a poesia
em questão foi uma das que o benemérito Garcia de
Rèsende reproduziu no Cancioneiro Geral, publicado em 1516,
quando Cristovam Falcão de Sousa... ainda andava de coeiros,
se é que já pertencia ao numero dos vivos...
Ora que distinção concederia o ilustre professor
áquele dos seus discípulos que, interrogado sobre
a
côr branca do
cavalo de Napoleão 1.º, lhe respondesse que o
sobredito imperial cavalo
branco... era
amarelo?
Em uma das suas éclogas, o poeta-filósofo
Sá de Miranda, aludindo ao Amor, causa da desventura do seu
camarada Bernardim Ribeiro, expressa-se por esta fórma:
Amor burlando vá, muerto
me deja;
Tiene de que por
cierto; a su merced
Como de señor vine; armó la
red,
Puso me en prision dura, ende me aqueja;
Cada ora mas se aleja
De
mi, mucho cruel. Quien me desmiente?
Ah que lo saben todos! quien
ganó
El precio de la lucha, ese perdió!
Enemigo
señor que tal consiente!
[70]
Pois no Amor, no travesso, inconstante e cruel Cupido, o snr. dr.
Theóphilo viu nada menos que a
personificação do favorito d'el-rei D.
João III, D. António de Ataíde,
conde da Castanheira!
Para que os leitores não julguem que fomos nós
que interpretamos mal quaesquer palavras do arguto exegeta,
reproduzimos a sua anotação:
«...aquelle retrato
do inimigo senhor que tal
consente, bem se parece com o omnipotente valido o conde da Castanheira.»
Sá de Miranda
e a Eschola Italiana, p.
206
Por um recente trabalho do nosso estimado camarada Hemetério
Arantes sobre Frei Agostinho da Cruz, já os leitores
não ignoram que o professor do curso Superior de Letras fez
de
um gato bravo... uma cavalgadura, e
do
Monte do Lobo... um lobo carniceiro que devorou,
chamando-lhe um figo, a sobredita cuja cavalgadura!
Para fechar esta exposição, referiremos ainda
mais um interessante episódio exegético da obra
do Mestre:
Em uma das poesias líricas de Luis de Camões,
alude o grande poeta á desventura que desde a
infância o perseguia, como se vê dos seguintes
magoados versos:
Foi minha ama uma fera; que o destino
Não quis que mulher
fosse a que tivesse
Tal nome para mi, nem haveria.
Assi criado fui
porque bebesse
O veneno amoroso de menino...
[71]de que tambem se
conhece a seguinte variante:
Por ama tive ũa fera, que o destino
Não quis que
melhor fosse a que tivesse
Para o que elle de mi fazer queria...
Em face da segunda versão, concluiu o snr. dr.
Theóphilo Braga, arguciosa e sibilinamente:
«Esta
versão tira todo o sentido
figurado á antecedente, e d'aqui se conclue, que
Camões fora amamentado por uma alimaria, etc.»
Historia de
Camões, Parte II, Livro II, p.
564
Esta ideia verdadeiramente original de interpretar os versos de
Camões, dando-lhe por ama uma
alimária,
ou seja uma
cavalgadura ou uma besta, corre parelhas com a
interpretação dada á
gineta
de Frei
Agostinho da Cruz.
Não se póde dizer que o eminente professor
faça de um argueiro um cavaleiro, mas não ha a
menor dúvida de que s. ex.
a
transforma um gato bravo e uma brava ama de leite... em cavalgaduras!
Pelo que respeita á ama de Camões, o que vale ao
snr. dr. Theóphilo Braga é o facto do nosso
grande épico não poder, com facilidade,
escapulir-se do túmulo em que repousa no Panteão
dos Jerónimos,
si vera est
fama! De contrário, o
Trincafortes
era capaz de fazer
uma das suas.
Parece-nos que fica suficientemente demonstrado quem é que
fórça
interpretações de versos alheios a significarem
aquilo que imagina...
[72]
2
«Como lhe nasceu no
espirito a ideia de fazer esta
descoberta? Pela impressão que lhe causára a
leitura dos versos de Bernardim Ribeiro e os de Christovam
Falcão―«dois poetas de temperamento
semelhante, com eguaes influencias e educações
litterarias, com eguaes episodios nos seus infortunados amores, e
havendo entre ambos versos absolutamente eguaes.»
Do artigo
«Movimento
litterário»
Pela transcrição que o snr. dr.
Theóphilo Braga indica, póde alguem acreditar que
foram realmente aquelas as palavras por nós empregadas no
nosso estudo. Não foram. O ilustre professor modificou a seu
bel-prazer o que nós escrevemos, que se lê a
paginas 6 do nosso livro sobre Bernardim:
«Muito embora o temperamento dos dois poetas fosse
semelhante, mesmo muito semelhante, e eguaes as influências e
educações
literárias que houvessem recebido; embora fossem eguaes os
episódios dos seus infortunados amores, é
estranho que por fórma tam
absolutamente semelhante traduzissem o seu sentir, revelassem o seu
temperamento artístico, chegando a empregar versos
absolutamente eguaes! etc.».
Porque não reproduziu,
fielmente, o snr. dr. Theóphilo Braga
aquilo que escrevemos? Estranha maneira de exercer a
crítica... moderna!
[73]
3
«D'aqui o identificar os dois poetas em um unico; como
conseguil-o? Considerou a individualidade poetica de Cristovam
Falcão como uma lenda estupida formada pelos genealogistas,
e formou o nome de Crisfal indo buscar
á tôa ás palavras Crisma
falsa, tirando-lhes
as syllabas iniciaes para designarem a seu talante Bernardim
Ribeiro.»
Do artigo
«Movimento
litterário»
Afirma o snr. dr. Theóphilo Braga que consideramos a
individualidade poética de Cristovam Falcão como
uma lenda estúpida formada pelos genealogistas... Onde
encontrou s. ex.
a a base em que firma a sua
menos
verdadeira afirmativa?
Vamos reproduzir o que escrevemos a paginas 9/10 do nosso livro, para
desfazer a arbitrária interpretação do
venerado professor.
«Cotejámos
então as
referências de Bernardim a Francisco de Sá com a
alusão que na écloga de Crisfal
haviamos interpretado como visando esse poeta, e qual não
foi a nossa alegria, a nossa viva
satisfação ao reconhecer que os versos de Crisfal
que alvejavam Miranda
condiziam perfeitamente com as referências das
éclogas de Bernardim ao seu grande amigo e confidente!
Não condiziam apenas: completavam, aclaravam, a nosso ver,
essas alusões.
[74]
«Fez-se então uma
grande luz no nosso
espírito.
Não se tratava de dois poetas muito parecidos, de um creador
e de um imitador. Bernardim Ribeiro e
Crisfal eram um ùnico poeta. O trovador
Cristovam Falcão era o produto de uma lenda nascida da
interpretação dada pelo vulgo ao anagrama Crisfal.
«E, para que o nosso convencimento mais se robustecesse,
lá estavam os dizeres alusivos á ecloga de
Crisfal da
edição de Colónia, revelada pelo snr.
dr. Th. Braga, e estudada pelo snr. Epiphánio Dias:
«que dizem ser de
Cristovam Falcão, ao que parece
aludir o nome da mesma écloga.»
«Que dizem ser...
ao que parece aludir...
«Isto, a nossos olhos, era decisivo. «Os editores
de 1559 das obras de Bernardim Ribeiro, e antes de eles os de 1554,
como depois viemos a apurar, tinham registado com
relação á
écloga uma fábula que devia datar da primeira
edição das Trovas de Crisfal,
etc.»
O que nós dissemos, pois, e isso sustentâmos,
é que a individualidade poética de Cristovam
Falcão nascera da errada interpretação
prestada pelo vulgo ao anagrama
Crisfal,―fábula que os editores de
1554 e 1559 das obras de Bernardim Ribeiro tinham registado,
sob
reservas.
Como haviamos nós de propalar terem sido os genealogistas
que formaram a lenda, se os genealogistas, depois de 1554 e 1559,
é que foram buscar as
tradições
vagas recolhidas pelos editores de Bernardim?
Onde estão os genealogistas anteriores ás
[75]
edições de
Ferrara e de Colónia que se
fizessem éco da fábula do
Crisfal?
Ah! malfadados
processos inductivos da
crítica moderna!
Diz o snr. dr. Theóphilo Braga que nós fomos
buscar
á tôa as
primeiras sílabas das palavras
Crisma
e
falso para a nosso alvedrio
designarem Bernardim Ribeiro!
Não foi
á
tôa, como inculca o nosso acerbo censor, que
conseguimos apurar a constituição do
criptónimo
Crisfal; e
que não foi á tôa sabe-o muito bem o
implacavel critico, que não deixou de ler, e que
até a reproduziu, a
explicação que sobre tal facto demos:
«Alcançada a
convicção de
que Crisfal era um anagrama de Bernardim Ribeiro,
e norteados pelo conhecimento de que nas suas
produções o poeta mudava constantemente os seus
nomes pastoris, com um pequeno trabalho de raciocínio
não nos foi dificil deduzir a
constituição do
criptograma, que era formado pelas primeiras sílabas das
palavras
Crisma e
Falso.»
E corroborando estes dizeres do prólogo do nosso livro (p.
10), escrevemos mais adeante (p. 82/83) ao tratar da
interpretação da
écloga atribuida ao suposto
Crisfal,
Cristovam:
«Bernardim deduziu o
anagrama com que se denomina n'esta
écloga das palavras Crisma e
Falso, de que aproveitou as primeiras
sílabas, formando assim a palavra Crisfal.
[76]
«Os nomes pastoris que
figuram n'esta écloga,
obedecendo á ideia que fundamentou a
composição, são todos êles
crismas falsos, sendo dificil profundar quaes as
personagens reaes que o poeta pôs em scena, o que deu lugar a
erradíssimas
interpretações, contribuindo para que tomasse
vulto a lenda, que resultou do próprio anagrama Crisfal,
que foi tomado como deduzido dos nomes de Cristovam
Falcão.»
Não foi á tôa mas seguindo uma
orientação criteriosa, que
alcançámos a verdade, que nenhuma
subtileza conseguirá destruir já agora.
Outro-tanto não se póde dizer da maneira pela
qual o snr. dr. Theóphilo Braga conseguiu, por exemplo:
decretar os
cantos de ledino, estampar como documento do
século XVI um apócrifo contendo versos do
século XVIII, e fazer Camões bacharel formado...
em latim pela Universidade de Coimbra!
Se nós, invocando esses precedentes, ousassemos retorquir
que
á
tôa costumava proceder o escritor que
contraditâmos, caía-nos em cima o Carmo e a
Trindade!
Á tôa!...
É realmente forte, e não deixa de ofender.
4
«Mas, como se
póde chamar estupida a lenda
genealogica se os nomes contidos na écloga de Crisfal
condizem com os seus
parentes taes como o de Pantaleão Dias
de
Landim, seu avô, e a Joanna, que lhe denuncia o casamento
clandestino, uma prima, como o notou o snr. Jordão de
Freitas?»
Do artigo
«Movimento
litterário».
[77]
Lenda genealógica, chama
o snr. dr. Theóphilo Braga á lenda do
Crisfal,
como se fossem os genealogistas que a inventassem, quando s. ex.
a
muito bem sabe que estes não
tiveram tal primasia... O caso está sobejamente debatido, e
por isso não vale a pena perder mais tempo com tam ruim
defunto.
Tratemos do
Pantaleão...
Na eclóga de
Crisfal, refere se Bernardim ao
Val de
Pantaleão...
O snr. dr. Theóphilo Braga, interpretando erradamente uma
passagem da
Pedatura
do genealogista Alão de Moraes, em que se mencionava o
casamento de uma parenta remota de Maria Brandôa com um
João
Patalim, escreveu a pag. 344 do seu livro
Bernardim
Ribeiro e o Bucolismo:
«Pelo Manuscripto
já citado de Alão
de Moraes acha-se noticia do aqui chamado Val de
Pantaleão: D.
Joanna, tia avó de D. Maria Brandão, casara a
primeira vez com João
Pantalião;
etc.»
No nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro, desfizemos esse erro,
escrevendo a pag. 159:
«O ilustre professor equivocou-se na leitura do texto.
Não se trata de nenhum João
Pantalião, como
erradamente leu, mas sim de um João
Patalim, que é o que se lê no
manuscrito de Alão de Moraes, como verificámos
por nossos próprios olhos.»
Desfeita essa interpretação, não se
dá o snr.
[78]
dr.
Theóphilo Braga por vencido, e vae agarrar-se a um avoengo
de Maria Brandôa para justificar a referência ao
Val
de
Pantaleão...
Quanto á
Joana, o caso
não é menos interessante...
Vejamos o que, no seu
Bernardim Ribeiro e o Bucolismo
(pag. 342), escreveu o snr. dr.
Theóphilo Braga em 1897:
«Esta Joanna, que denunciou
os amores de Crisfal e Maria,
era D. Joanna Pereira, sua irmã mais velha; Maria era a mais
nova, de cinco filhos que tinha o Contador João
Brandão.»
Foi esta mais uma
gaffe em que o
snr. dr. Theóphilo incorreu, por haver confiado
demasiadamente nos créditos do genealogista Alão
de Moraes.
A pag. 162 do nosso livro sobre o
Poeta Crisfal,
desfizemos esse erro, escrevendo:
«Maria Brandão, a
lendária amada do Crisfal,
não teve nenhuma
irman! era filha única!»
Em face da corrigenda, o distinto escritor não se sentiu com
coragem para sentencear que Joana era irman natural de Maria
Brandôa, mas procurou arranjar (iamos a escrever
á
tôa, mas não tivemos coragem) outra
Joana, e, á primeira que encontrou á
mão, chamou-a em seu auxílio.
Dera-se o caso de o snr. Jordão de Freitas, distinto
funcionário da biblioteca da Ajuda, no louvavel empenho de
auxiliar aqueles que
[79]
quisessem
discutir a questão literária suscitada pelo nosso
livro, publicar no «Diario de Noticias» o resultado
das suas pesquizas nos arquivos, reproduzindo quanto julgou
interessante para o estudo do problema.
Fez s. ex.
a menção de uma
parenta de Maria Brandôa com o nome de Joana...
Como um naufrago, que se agarra á primeira táboa
que lobriga ao alcance da mão, o snr. dr.
Theóphilo agarrou-se (no bom sentido da palavra, bem
entendido!) á sobre-dita Joana, e, radiante de
contentamento, exclamou:―«Estou salvo!»
E, julgando-se, realmente, salvo da rascada, escreveu ufano:
«...a Joanna, que lhe denuncia o casamento clandestino,
uma prima, como o notou o sr. Jordão de Freitas.»
A esse engano de alma, ledo e cego, foi arrancá-lo o snr.
Jordão, desapiedadamente na carta que, a
propósito, dirigiu ao
«Dia», e de que reproduziremos a parte essencial:
«O sr. dr.
Theóphilo Braga equivocou-se na sua
referencia a Joanna e ao que diz ter sido notado por mim.
...tive unicamente em vista assentar que Joanna Brandão
não era tia avó de Maria Brandão, como
erroneamente escrevera o sr. dr. Theophilo Braga, mas sim sua prima
remota.
[80]
«Tão remota,
direi agora, que era neta de um
irmão (Diogo Lopes Brandão) do 4.º
avô
(Gonçalo Brandão) de
Maria Brandão (Bibliotheca Real da Ajuda, 49-XII-28, pag.
259).
«Sendo assim, nem é presumivel que aquella
chegasse a viver no tempo de Maria Brandoa, quanto mais que andasse a
pastorear com ella, etc.»
[9]
Veremos, depois de este insucésso, que nova Joana nos
apresentará na primeira oportunidade o distinto escritor...
Quem sabe se a Joana do
Crisfal
não teria sido aquela encantadora Joaninha dos olhos verdes,
que tanto enfeitiçou Garrett... Mas não; em caso
contrário o autor das
Viagens não deixaria de mencionar essa
circunstância!
Na estrofe de Bernardim Ribeiro, na écloga
Crisfal,
em que a amada do poeta se
refere a ter passado para o
casal da Figueira
do
Val de Pantaleão,
designações que a nosso ver disfarçam,
sob
falsos crismas, os nomes
verdadeiros da casa e localidade para onde se transferiu, talvez
após o casamento, a decantada
Aonia, encontra-se, nítida, a
alusão á ultima
entrevista dos namorados:
«Quando contigo falei
aquela ultima vez,
o choro que
então chorei,
[81]
que o teu chorar me fez,
nunca o
esquecerei.
Foi esta a vez derradeira,
mas começo de
paixão,
passando-me eu então
era o casal da
Figueira
do Val de Pantalião.»
Achamos interessante reproduzir, n'esta altura, do capítulo
XXVIII da
Menina e
moça, os periodos referentes á ultima
entrevista de
Bimnarder e Aonia para que os leitores, com maior
facilidade, possam orientar o seu juizo, verificando a absoluta
identidade entre as duas produções de Bernardim
Ribeiro:
«...Buscando achaque de querer lá ir pera
detraz das casas, levando Enis consigo, ouve tempo pera Aonia entrar
onde elle (Bimnarder) estava então deitado, escontra a outra
parte da parede, chorando, porque não vira Aonia ao passar,
que bem se podera elle erguer. E como isto perdera, cuidava tambem que
avia de perder a tornada; porque um mal nunca lhe viera sem outro; pelo
que estava no maior pranto do mundo, antre si.
«Entrada Aonia, deteve-se um pouco, e sentiu que elle
chorava, e suspirava baixo, de maneira que como, naquello, se
forçava a si mesmo.
«Ella, para ver se poderia saber o porquê, que tudo
desejava saber d'elle, deteve-se ainda mais; mas elle, com pensamentos
muitos, que sobrevinham ao choro, mais o acrescentava do que o
diminuia.
«Assentando-se então Aonia na borda d'aquella sua
pobre cama, lhe pôs a mão, e quisera-lhe
[82]
dizer alguma cousa, mas
não pôde, que lhe faleceu o espirito.
«Virando-se Bimnarder, e vendo a, tambem
lhe faleceu o seu.
«Estiveram assi ambos um grande pedaço sem se
dizerem nada um ao outro: e elle, com os olhos postos em Aonia, e Aonia
postos os seus no chão, que, em se virando Birmnarder, tomou
vergonha. Levando-os assi á terra, cobriu-se-lhe o seu
fermoso rosto de uma tamalavez de côr, alem da natural; e
soía dizer meu pae (que parte d'esta historia em seu tempo
se soubera) que não parecia se não que viera
aquella côr como por ajudar ainda Aonia escontra Bimnarder,
tam formosa a ella, formosa, fizera.
«Mas, estando assi nisto elles ambos, e não
estando elles ambos ali, chegou Enis muito rijo á porta,
dizendo que se queriam já ir, e que a mandavam chamar.
«Assi, foi forçado levantar-se Aonia, e
ir se, e Bimnarder ver tudo, e ficar.
«Mas Aonia, que bem via os olhos de Bimnarder como ficavam,
tomou uma manga de sua camisa, e, rompendo-a, pera remedio de suas
lagrimas lh'a deu, significando, na maneira só de como lha
deu, o pera que lh'a dava; que parece que a dor grande que sentia
não lh'o deixou dizer por palavras; mas, em lh'a dando,
pôs os olhos nos seus, dizendo-lhe só assi:
―«Pesa-me, pois a minha ventura ou desaventura,
não quis que eu vos deixasse de magoar com o que eu
não quisera.»―
«E estas palavras lhe disse já fora da porta.
«E com ellas, e com o que sentiu ao dizer
[83]
d'ellas, duas e duas, lhe
começaram as lagrimas a correr dos seus fermosos olhos, e,
pelas suas faces fermosas abaixo, lhe iam fazendo carreiras por onde
iam, que Bimnarder a tanto pranto convidou quanta era a
rezão d'elle, pois perdia a vista.
«Foi tanto o choro, que não lhe abastavam os seus
olhos ás suas lagrimas...»
5
«Os manuscriptos
conhecidos de Bernardim Ribeiro andavam
ligados com os de Christovam Falcão, como se vê
pela
descripção do n.º 180 da Livraria do
Conde de Vimieiro: Obras em prosa e verso de Sá de Miranda,
Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão;»
Do artigo
«Movimento
litterário».
É com verdadeiro pesar que vemos o encanecido trabalhador
recorrer a processos como o que ressalta da
afirmação que deixamos
transcrita, só pela caturrice de não querer
confessar que errou...
O leitor desprevenido ficou julgando, certamente, por honra da firma
que subscrevia o artigo
Movimento litterario, que
na
livraria do Conde de Vimieiro tinham existido
os manuscritos
conhecidos de Bernardim Ribeiro, que
andavam ligados com os de Christovam Falcão...
Pois, se tal ficou julgando, enganou-se redondamente.
O snr. dr. Theóphilo Braga adulterou a verdade dos factos,
procurando talvez iludir-se a si proprio, pois não podemos
admitir que s.
[84]
ex.
a
imaginasse, por tal processo, mistificar
alguem. É até possivel, muitissimo provavel
mesmo, que o ilustre escritor não pesasse devidamente as
palavras de que se serviu, e que assim incorresse, na melhor boa
fé, n'uma indesculpavel inexactidão.
Vejamos onde o snr. dr. Theóphilo Braga foi fazer a
descoberta preciosa dos
manuscritos conhecidos de Bernardim
Ribeiro...
Ao n.º 180 do catalogo da Livraria do Conde de Vimieiro, como
consta do tomo V da
Colleçam dos documentos, e memorias da Academia
Real da Historia Portugueza.
O distinto professor não indicou a
fonte, certamente por lapso, mas nós
conseguimos descobri-la sem carecer do auxílio de
dunguinha.
Ouçamos agora a conferência do Conde da Ericeira,
D. Francisco Xavier de Menezes, em relação ao
codice N.º 180:
«Tem o volume que examinei
287 folhas, as quaes nos
primeiros numeros eram 330, porem as que lhe faltão, parecem
mudadas para outras Collecções, e sendo a letra,
e papel de duzentos annos de antiguidade, pois a folhas 122 se
acabão as noticias com a morte del Rei D. Manoel, que foi a
13 de Dezembro de 1521; se conserva este manuscripto inteiro, e em bom
estado
(Traz a divisão do livro em 5 partes e segue:
[85]
«A segunda
divisão deste livro consiste em algumas
Memorias de successos raros de Europa, como são uma carta
del Rei Ludovico de Hungria para o Emperador na ultima batalha que deu
ao Turco, uma
Relação dos infelizes principios de Luthero, e
outros. Seguem-se cartas de homens celebres d'aquelle tempo pelo seu
engenho, e graça, que entre as alusões jocoserias
descobrem memorias particulares: deste genero são sete de
Antonio Ribeiro Chiado, duas de Lourenço de Caceres, e
outros. As obras em prosa, e verso de Francisco de Sá de
Miranda, as de Bernardim Ribeiro, Christovão
Falcão, André Soares, Francisco de Moraes, Gil
Vicente, Duarte de Oliveira, o Barão D. Diogo Lobo, e outros
Poetas antigos, servem de verificar as varias
lições das impressas, e de restituir as
manuscriptas.»
[10]
Como se vê, por uma fórma irrefragavel,
não se tratava dos manuscritos conhecidos de Bernardim
Ribeiro,
como não se
tratava egualmente de
manuscritos de Cristovam Falcão...
Tratava-se de uma miscelánea manuscrita, em prosa e verso,
que continha produções de vários
poetas, e, entre essas, as que se atribuiam ao suposto
Crisfal.
A simples
citação do nome de Cr. Falcão logo
após o de Bernardim não bastará para
se ajuizar que no manuscrito havia cópia das poesias que nas
obras de B. Ribeiro vinham atribuidas, sob reservas, ao suposto
trovador?
Se nós, para documentarmos o nosso livro
[86]
Bernardim
Ribeiro, tivessemos
recorrido a expedientes semelhantes, como não seriamos
julgados pelo snr. dr. Theóphilo!
6
«tambem o Arcediago do
Barreiro, dr. Jeronymo
José Rodrigues examinou no Porto um manuscripto analogo ao
das edições de 1559, em que vinham a Menina
e Moça, duas
eclogas de Bernardim Ribeiro―«e até se acham no
fim algumas poesias de Christovam Falcão, do que se faz
menção no mesmo logar de Nicoláo
Antonio.» (Innocencio, Dicc. Bibliog.)»
Do artigo
«Movimento
litterario».
O arcediago do Barreiro, invocado pelo snr. dr. Theóphilo
Braga, era o arcediago do Barroso, cujos apontamentos manuscritos foram
explorados por Innocencio.
Vejamos o que o benemérito bibliófilo escreveu a
pag. 379 do seu
Diccionario Bibliographico portuguez:
«Nos apontamentos
manuscriptos do arcediago de Barroso
Jeronymo José Rodrigues, de que já outras vezes
me aproveitei n'este volume, encontro ácerca do auctor da Menina
e moça o
trecho que se segue:
[87]
«As obras de Bernaldim
Ribeiro (que assim se acha escripto
o seu nome no manuscripto que lemos, e assim diz Nicolau Antonio na Bibl.
Hispanica, que vulgarmente era chamado) por sua muita
raridade são difficeis de encontrar, e duvidamos que
se hajam impresso todas. A Bibl.
Lus. faz só menção da
Menina e
moça, ou Saudades de Bernardim Ribeiro.
Além das impressões que alli cita, que
são tres, faz Nicolau Antonio menção
de uma, impressa em Lisboa em 1559, em 8.º, que em tudo tem
muita semilhança com o manuscripto, que tivemos alguns
tempos em nossa mão, e que vamos aqui extractar. O titulo em
nada desmente do que traz a Bibl. Hisp., e
até se acham no fim algumas poesias de Christovam
Falcão, de que se faz menção n'este
mesmo logar de Nicolau Antonio.―O titulo que se lê no
manuscripto é: Historia da Menina e
moça, por Bernaldim Ribeiro. Principia:
«Menina
e moça me levaram de
casa de minha may para muito longe», e acaba:
«Com demasiada ira disse contra a Donzela que ho
aly trouxera estas
palavras». Consta de historia em prosa, e inclue
em alguns lugares poesias de gosto são e pura linguagem,
etc. E além da historia, acham-se no manuscripto duas
eclogas de que o abbade Barbosa talvez não teve noticia. Na
primeira são interlocutores Persio e Fauno; principia:
«Nas selvas junto do mar», e
consta de trinta e quatro estancias de dez versos cada uma.―Na segunda
são interlocutores Jano e Franco, principia:
«Dizem que havia um pastor», e acaba:
«Tambem tempo é tormento.»
[88]
«De tudo o que diz aqui o
arcediago de Barroso concluo, que
não só elle ignorou a existencia da moderna
edição da Menina e moça,
feita em
Lisboa no anno de 1785, mas tambem só conheceu de nome as
edições anteriores sem que lograsse ter presente
algumas d'ellas, pois que a tel-as visto, nenhuma novidade encontraria
nas duas éclogas que cita do tal manuscripto, onde pelo que
se mostra faltavam todas as outras já então
impressas.»
Não conheceu Innocencio a edição das
obras de Bernardim Ribeiro publicada em Ferrara em 1554, porque se a
houvesse conhecido logo concluiria que o manuscrito examinado pelo
arcediago de Barroso outra cousa não era mais do que uma
cópia incompleta d'essa
edição.
Ignora o, porventura, o snr. dr.
Theóphilo Braga?
Se o não ignora, para que veio a público com a
citação incompleta da passagem do
Diccionário de Innocêncio?
Bom serviço prestou o arcediago de Barroso trasladando o
período inicial na novela na
edição de 1554, conforme o manuscrito que teve
entre mãos: «Menina e moça me levaram
de casa de minha may...»
7
«Para que chamar
ineptos aos editores de Ferrara de 1554 e
de Colonia de 1559, por terem reproduzido esses textos manuscriptos
como os encontraram?»
Do artigo
«Movimento
litterario».
[89]
Chamámos ineptos aos editores das obras de Bernardim
Ribeiro, e que não erramos em nossa
apreciação demonstra-o evidentemente o
próprio snr. dr. Theóphilo Braga, quando na carta
que nos escreveu, referindo-se ás
edições
de Ferrara e de Colónia, diz terem sido feitas
por
curiosos sem critério litterário.
Se esses curiosos não fossem ineptos, podia porventura o
ilustre professor negar-lhes
critério?
As rúbricas da edição de
Colónia, em 1559, são
reprodução das de 1554, como o
snr. dr. Theóphilo Braga não desconhece.
Pertencem as rúbricas da edição de
1554 ao seu editor ou este não fez mais do que reproduzi-las
da primeira edição?
Sem que seja conhecida a edição principe das
obras de Bernardim Ribeiro, não é possivel
aclarar este ponto, mas o que ninguem póde dizer com
autoridade é que taes
rúbricas: «que dizem ser... ao que parece
aludir...» pertencessem aos manuscritos do infortunado
Bernardim.
«Por terem reproduzido
esses
textos manuscriptos como os encontraram», escreveu
o snr. dr. Theóphilo Braga, procurando incutir que taes
edições foram feitas sobre os manuscritos
pertencentes ao Conde de Vimieiro e sobre o outro examinado pelo
arcediago do Barroso!
A primeira edição das obras do poeta bucolista
resultou dos manuscritos de Bernardim Ribeiro, recolhidos
após a morte do apaixonado cantor de Joana, ou no ultimo
período da sua desventurada existência, e dados
á estampa por qualquer curioso sem critério
literário...
E proclamando isto, que representa a expressão
[90]
do nosso sentir pessoal,
estamos convencidos de que está com a nossa
opinião o snr. dr. Theóphilo Braga, que sempre
tem sustentado que as edições das obras de
Bernardim se fizeram sobre os manuscritos encontrados no seu
espólio....
Mudará s. ex.
a de
orientação?
Até prova em contrário, não
acreditamos.
8
«...o dr. Alfredo da
Cunha deu alentos á grande
descoberta...»
Do artigo
«Movimento
litterário»
«
Grande
descoberta», é como o snr. dr.
Theóphilo Braga chama, ironicamente, ao resultado dos nossos
trabalhos... Pequena ou grande descoberta, o facto é que
està de pé,
não conseguindo o abalisado professor destrui-la.
Compreendemos bem que isso seja pouco agradavel a s. ex.
a,
que tanto se havia
empenhado em pôr um
pedregulho sobre o caso do
poeta
Crisfal, mas nós,
só pelo prazer de ser agradaveis ao ilustre escritor,
é que não vamos ressuscitar o trovador Cristovam
Falcão. Deixá-lo dormir em paz, serenamente.
Quanto a descobertas grandes, lembra-nos citar uma que
in
illo tempore fez o
snr. dr. Theóphilo Braga...
Dirigia o distinto poeta snr. Joaquim de Araujo uma
publicação camoneana, cujo
título nos não ocorre.
Vae se não quando recebe uma
comunicação do snr. dr. Theóphilo
Braga... Uma descoberta
[91]
importante... Nada menos que um parente ignorado do grande
épico Luis de Camões.
Chamava-se o homem
Pero
Camões, segundo o ilustre professor lera,
radiante, em determinado texto...
Pois, senhores, na volta do correio, Joaquim de Araujo prevenia
generosamente o Mestre de que este errara a leitura do texto... O
Pero
Camões do snr. dr. Theóphilo
Braga era um simples e inofensivo
pero
camoês!
9
«No noticiario de
outro jornal sairam
affirmações absolutas, proclamando a sensacional
descoberta, com uma sinceridade inconsciente que affasta de todo a
ideia de ironia.»
Do artigo
«Movimento
litterário»
Por esta fórma pouco...
generosa se referiu o snr. dr.
Theóphilo Braga ás palavras de
caloroso elogio com que o ilustre escritor snr. José Pereira
Sampaio, em carta publicada no «Diario da Tarde»,
do Porto, valorizou com o prestígio do seu nome o fruto do
nosso trabalho.
Contra a injusta apreciação do professor do Curso
Superior de Letras, já lavrámos o nosso protesto,
de amigos e admiradores de
Bruno, no artigo que publicámos na
«Lucta» e
que vae transcrito no primeiro capítulo d'este livro.
Quando mesmo, o que não sucede, o ilustre escritor portuense
estivesse em erro, era digna de todo o respeito a sua
opinião, e não seria
[92]
nunca o snr. dr. Theóphilo Braga,
com a sua consciente falta de sinceridade, quem teria direito para o
arguir pela maneira insólita por que o fez.
Será, porventura, o
positivismo inimigo inconciliavel da
Justiça?
10
«A verdadeira
descoberta pertence ao snr. Braancamp Freire
determinando a epoca em que esteve em Flandres João
Brandão Sanches, e quando elle morreu, dando nos assim a
data em que existiram os amores de sua filha unica D. Maria
Brandão, a do Crisfal, que plausivelmente se fixam em 1530.
O documento de 1527 refere se a Christovam Falcão, com a
tença de moço
fidalgo leva a deduzir que nascera em 1512.»
Do artigo
«Movimento
litterário»
Fixa o snr. dr. Theóphilo em 1530 os amores do suposto poeta
com a sua suposta amada Maria Brandôa.
Muito bem.
Admitindo que assim fosse, só depois de 1530 Cristovam
Falcão poderia ter produzido a
Carta e
a
Écloga que lhe foram
atribuidas...
Ora como podia isto ser, em face dos
processos inductivos da
critica moderna, tam preconizados pelo snr. dr.
Theóphilo Braga?
Ouçamos a lição autorizada do ilustre
professor, que se lê a pag. 4 da sua chamada
edição das obras de Cristovam Falcão:
«
Se Christovam Falcão escrevesse
depois de 1527, quando Sá de Miranda propagou as
[93]
fórmas
da poetica italiana, teria
então adoptado o verso endecasyllabo, a fórma da
OUTAVA e do TERCETO, o SONETO, e teria perdido o conceito
provençalesco dos poetas que seguiam o INFERNO DO AMOR;
Falcão desconheceu esta nova poetica.»
Pela mesma maneira se exprimiu o snr. dr. Theóphilo Braga na
sua edição de
Bernardim Ribeiro e os Bucolistas.
Repudia s. ex.
a o que com tanta clareza e
precisão deixou estampado?
Seria caso para invocar o
era, não era,
andava lavrando...
Para o nascimento do pseudo-trovador, escolhe o snr. dr.
Theóphilo Braga, em ultima análise, a data de
1512, sem se lembrar talvez de que por essa fórma
caía em
contradição consigo proprio...
Vejamos:
Na carta que nos dirigiu, escreveu o distincto escritor:
«...D. Maria Brandão, que Cristovam
Falcão amou,
sendo ambos muito
crianças...»
Ora tendo Cristovam nascido em 1512, como afirma o snr. dr.
Theóphilo Braga, e fixando-se as suas
relações amorosas em 1530, como quer s. ex.
a,
tinha o mancebo quando
começou a namoriscar os seus dezoito anos seguros...
A um rapazola de 18 anos ninguem com propriedade poderá
classificar de
muito
creança, a não ser por
troça,―salvo melhor
opinião.
11
«Ha portanto a
eliminar todas as
relações pessoaes entre Cristovão
Falcão e Bernardim Ribeiro, como julgamos nos nossos
estudos,
corrigindo a interpretação da Ecloga I e III de
Bernardim.»
[94]
Do artigo
«Movimento
litterário»
Não só corrigimos a
interpretação das eclogas I e III de Bernardim
Ribeiro
como todas as outras do
desventurado poeta... Mas o
snr. dr. Theóphilo Braga entende em seu alto
critério que só ha a corrigir as duas que citou,
e essa correcção reserva-se s. ex.
fazê-la,
certamente. Aguardemos a futura refundição do
livro sobre os bucolistas, para ajuizarmos da fertilidade inventiva do
ilustre professor,―
de fantasia fertil em
combinações, no dizer
autorizado da senhora D. Carolina Michaëlis.
12
«Os logares comuns a
Cristovam Falcão e
Bernardim Ribeiro provam a distancia da edade que levou o mais novo a
imitar aquelle que já era admirado, cujos versos,
Camões, na sua carta de Africa intercalava na sua
prosa.»
Do artigo
«Movimento
litterário»
Como comentário único, permitir nos-emos
endereçar algumas perguntas ao
snr. dr. Theóphilo
Braga:
Estando Bernardim Ribeiro louco no ano de 1532, como o
próprio snr. dr. Theóphilo tem sustentado, como
explica o ilustre professor que no espólio do poeta
bucolista fossem encontradas as composições
atribuidas ao falso Crisfal?
Na edição refundida do seu livro sobre os
bucolistas,
[95]
em 1897, o snr. dr.
Theóphilo Braga explicou o facto da seguinte maneira:
«...
os dois poetas communicavam entre si os seus
versos, sendo por este modo que se salvaram as poesias do auctor do
Crisfal.»
Ora não podendo o abalisado professor continuar persistindo
em que Bernardim Ribeiro teve por amigo e confidente Cristovam
Falcão de Sousa, como poderá s. ex.
a
explicar
que entre os manuscritos legados por Bernardim se encontrassem as
composições do...
último eco do alaúde?
Para prevenir qualquer subtiliza de argumentação,
é conveniente não esquecer s. ex.
a
que na écloga
Crisfal se
encontram lugares comuns a todas as éclogas de Bernardim
Ribeiro e á
própria novela
Menina e moça.
E não esquecer egualmente que, após a
publicação do nosso estudo sobre o
Poeta
Crisfal, já o snr. dr. Theóphilo Braga
foi obrigado a reconhecer que: não podia continuar a
admittir
as relações pessoaes de
Cristovam Falcão com Bernardim Ribeiro já velho e
dementado em confidencias de amor com um rapaz no viço da
mocidade.
Bernardim nasceu em
1482,
é bom não olvidar tambem.
Cristovam Falcão de Sousa nasceu em...
1512,
conforme a ultima
versão apresentada pelo articulista do
Movimento
litterário.
Os amores de
Falcão e
Maria Brandôa foram fixados
pelo snr. dr. Theóphilo Braga, em ultima análise,
no ano de
1530.
Ora na
Carta de Crisfal, fala o
poeta na prisão de amor que está sofrendo
ha
cinco
anos... Logo, ou não ha lógica, uma
das
composições
[96]
do suposto trovador foi elaborada pelo ano da graça de
1535,
quando
Bernardim havia já três anos que fôra
ferido pela desgraça
que o levou ao hospital de Todos os Santos, onde veio a acabar seus
desventurados dias em
1552.
Consignado o que fica exposto, aguardemos a resposta ás
perguntas atrás formuladas, e, para fechar o
capítulo, façamos nossos os
seguintes versos de Bernardim:
Baste o que tenho dito
pera aver, por galardão,
tres
regras de vossa mão,
pera resposta das quaes
......... fique
o mais
que aqui escrever devera,
se o escrever podera.
VI
Uma patranha genealógica
Seguindo a lição de vários
genealogistas, démos curso, no nosso estudo sobre Bernardim
Ribeiro, á atoarda que fazia Cristovam Falcão de
Sousa descendente de certo John Falconet, cavalheiro inglês
que viera para o nosso país na comitiva da desposada
d'el-rei D. João I,
Filipa de Lencastre. Antes de nós, os snrs.
Epiphánio Dias e dr. Theóphilo Braga haviam
incorrido no mesmo erro.
Publicado o nosso trabalho, honrou-nos o erudito escritor sr. Anselmo
Braamcamp Freire com o seguinte esclarecimento, que registamos com
prazer:
«...Julgo-me obrigado a
advertil-o que publiquei um
documento no Archivo
histórico, suficiente para destruir a petarola
inventada pelos genealogistas dos Falcões descenderem do tal
Falconet. Catorze anos antes deste chegar a Portugal já
existiam Falcões, proprietarios em Evora, e vassalos de D.
Fernando
(Arch. hist.
III, 407.) É uma
minucia que não influe em nada no seu têma; mas,
repito, entendo dever meu avisál-o».
[98]
Não será este, certamente, o único
erro em que teremos incorrido no nosso trabalho, e de que nos
penitenciâmos sem a menor relutância.
Errar é próprio dos homens, como afirma o
conhecido aforismo latino; o que é condenavel é
persistir no erro.
Não temos a estulta vaidade de haver produzido um trabalho
sem defeitos, e de bom grado aceitaremos as
correcções que nos
ministrarem, e com que o nosso critério se conforme. Somos
incapazes de persistir n'um erro por simples capricho de
amor-próprio, indesculpavel em assuntos de natureza
histórica.
Bem presentes conservâmos as palavras
sensatíssimas do professor bracarense Pereira Caldas:
«Em
história,
ha sempre que discutir, sempre que examinar, sempre que emendar, sempre
que aditar.»
VII
O criptónimo «Fileno»
No numero do jornal
O Dia, de 15 de
dezembro de 1908, consagrou-nos o conceituado filólogo, snr.
A. R. Gonçalves Viana, uma das suas interessantes
Palestras
filológicas.
É aquela que vamos registar, e que em seguida comentaremos:
«Delfim
Guimarães, no seu livro recentemente
publicado, e que faz honra á erudição
portuguesa, com o titulo Bernardim Ribeiro, e o sub
titulo O poeta
Crisfal, aventa a idea de que o criptónimo
Fileno seja o disfarce do adjectivo felino,
latim felinus, procedente do substantivo
felis, «gato», por
alusão ao apelido
Gato, do marido de Joana Tavares, sua apaixonada.
[100]
«Não se pode
aceitar esta origem do dito nome,
porque tal adjectivo não existia em português ao
tempo do poeta. É êle modernissimo na lingua, pois
nem Bluteau o incluiu no seu Vocabulario
portuguez
e latino, nem mesmo no
próprio Diccionario portuguez de Morais
e
Silva figura tal adjectivo atè á 3.ª
edição, feita no anno de 1823,
«correcta e acrescentada.» Vê-se pois que
a introdução do vocabulo
felino é não
só posterior, e muito, ao século XV, mas
até aos começos do XIX, e que o poeta o
desconhecia portanto.
«Assim, pois, o nome Fileno, masculino, foi talvez fabricado
conforme o femenino Filene, que os gregos usaram, e cujo radical
será o de
Filipe, por exemplo.»
Em primeiro lugar agradecemos ao snr. Gonçalves Viana o
cumprimento amabilissimo com que nos penhorou, que muito bem sabemos
representar uma gentileza, que não um acto de
justiça. A benevolência usada para comnosco por s.
ex.
a motivou um remoque do snr. dr.
Theóphilo Braga, do que resulta tornar
se ainda maior a nossa dívida de reconhecimento para com o
sábio poliglota, o que temos a peito deixar registado nas
páginas d'este trabalho.
Consignado isto, digamos o que se nos oferece sobre a
palestra
motivada pelo nosso
livro:
Coube ao snr. visconde de Sanches de Baena a
interpretação do nome
Fileno como criptónimo de
Felino,
em alusão a
Pero Gato, que o referido titular apresenta como
marido de Joana
(
Aonia).
Nós não acreditamos na existência do
Pero Gato do snr. Sanches de Baena, como com inteira franqueza deixamos
exarado nas páginas do nosso trabalho; mas não
nos repugnou admitir que o criptónimo invocado alvejasse a
alusão
[101]
a um animal
felino. E assim escrevemos a pag. 87 do nosso estudo sobre Bernardim:
«O anagrama
Fileno oculta,
provavelmente, um individuo que tinha por nome, apelido ou alcunha o
nome de um animal
felino.
Seria Pantaleão? Seria Gato? Estamos em crer que o assunto
ainda poderá ser resolvido, como outros muitos pontos por
aclarar respeitantes á vida de Bernardim.»
E na mesma página, a propósito do nome de
Lor,
ou
Lor-Vão, referido
nalgumas edições da écloga de
Crisfal,
escrevemos nós:
«Desde que se apure,
com
segurança, quem fosse o marido de Joana
etc.»
O não se ter ainda apurado quem fosse o feliz rival de
Bernardim, não se nos afigura motivo para pôr de
parte, por em quanto, a
interpretação enunciada pelo snr. visconde de
Sanches de Baena quanto a Fileno, aceite pelo snr. dr.
Theóphilo Braga, e a que nós tambem demos curso,
embora sob reservas.
O facto dos antigos dicionários não fazerem
menção do vocábulo
felino não constitue
razão para que se abandone essa hipótese, que
póde não ser exacta, mas que é sem
dúvida
racional. Como o snr. Gonçalves Viana muito bem sabe, desde
que no latim existiam os vocabulos
felis,
felinus, com o
significado de
gato, ou
respeitante a gato, nada mais natural do que um
escritor ter introduzido, lógicamente, o termo
português
felino. E ninguem
poderá
contestar que Bernardim Ribeiro tivesse envergadura sobeja para crear
essa palavra. Bacharel formado em direito, e poeta bucolista
não ignorava certamente o vocábulo latino.
A ser exacta a maneira de ver do snr. Gonçalves
[102]
Viana sobre semelhante
assunto, como poderiam justificar-se tambem os numerosos neologismos
com que Luis de Camões enriqueceu a lingoa
portuguêsa?
Hoje mesmo, após recentes trabalhos de dicionaristas
distintos, quantos vocábulos
portuguêses
não falta ainda
registar?!
A hipótese, porém, que o ilustre
filólogo apresenta merece ser ponderada devidamente, sendo
até possivel que s. ex.
a tenha
resolvido o problema quanto ao nome do marido de Joana Tavares, que
poderia muito bem ter sido
Filipe.
N'um
pliego-suelto castelhano do
século XVI, de que existe um exemplar na
secção dos
Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa, ha um
dialogo em verso entre as personagens:
Alethio e
Fileno.―Aleixo e
Filipe? Talvez!
Em fim, parafraseando o que já escrevemos: Quando se apure
com
segurança quem foi o marido da mulher amada por
Bernardim Ribeiro, estarà implicitamente resolvido este
problema.
VIII
In terminis
Não estamos sós no combate que tivemos a
satisfação de iniciar em prol da obra de
Bernardim Ribeiro.
Ao nosso lado contamos a individualidade cheia de prestígio
do snr. José Pereira Sampaio, que em breve
defenderá em livro tese idêntica á
nossa, demonstrando que o Poeta Crisfal é o
bucólico Bernardim.
Se de estímulo carecessemos para prosseguir confiadamente na
tarefa que nos impusemos, seria incentivo bastante o contarmos
já entre aqueles que se confessam convencidos pelo nosso
trabalho, alem de muitos outros espìritos esclarecidos, os
nomes preeminentes dos srs. Anselmo Braamcamp Freire, José
Caldas e dr. Sylvio Romero.
Não conseguiremos nós fazer vingar em nossos
dias, por uma fórma absoluta, a obra de justiça a
que metemos hombros? Não será dada essa
satisfação ao ilustre escritor snr.
José Sampaio?
―Que importa? As sementes estão lançadas,
[104]
o solo não é
ingrato... As sementes
hão de vingar; a verdade triunfará, alastrando,
impondo-se...
Por fim, só nos resta endereçar, muito
comovidamente, um aperto de mão, agradecido e sincero, a
quantos―bons amigos, camaradas e simples conhecidos―nos teem bafejado
com palavras de elogio e incitamento por motivo da
publicação do livro que deu origem a este novo
trabalho.
Amadora, 16 de
março de
1909.
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
ao livro
"Bernardim Ribeiro
(O POETA CRISFAL)"
«Bernardim
Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)
Delfim Guimarães é um poeta e um contista que
há muitos annos firmou brilhantemente o seu nome. Alma
delicada de poeta, é, ao mesmo tempo, um prosador elegante e
correcto que conhece a sua lingua e sabe maneja-la. Afastado de todas
as egreginhas literarias, isento de todos os snobismos, sem perder
tempo nos cenaculos dos cafés, Delfim Guimarães
tem-se destacado e destaca se entre os da sua
geração, sem dever nada ao reclamo.
Admirador entusiastico, apaixonado, de Bernardim Ribeiro, Delfim
Guimarães apurou um facto da mais alta importancia para a
historia literaria do seu paiz:―que Christovão
Falcão e Bernardim Ribeiro são uma mesma
entidade.
É essa demonstração, consciente,
documentada, que o nosso amigo vem de fazer neste livro―
Bernardim
Ribeiro (o Poeta
Crisfal)―que é digno de ser lido por quantos
querem conhecer a historia das letras patrias.
A Delfim Guimarães, os nossos parabens pelo seu valioso
trabalho.
(Do jornal O Mundo,
de 16 de
Novembro de 1909)
«Bernardim
Ribeiro»
por Delfim Guimarães
É um livro de incontestavel valor, este que o sr. Delfim
Guimarães acaba de publicar, editado pela Livraria
Guimarães & C.
a,
da rua de S. Roque. Fructo de um aturado e consciencioso estudo, n'elle
se demonstra que Bernardim Ribeiro e
Crisfal
representam um
unico poeta, e que
Crisfal é
apenas um criptogramma formado pelas primeiras syllabas das palavras
Crisma
e
Falso, não passando,
portanto, de uma lenda a existencia do poeta
Christovão
Falcão. Como se vê, o assumpto d'este
livro do laborioso e intelligente escriptor é de molde a
interessar vivamente todos quantos se dedicam ao estudo da nossa
litteratura patria.
(Do jornal O Seculo,
de 16 de
N, de 16 de
Novembro de 1909).
«Bernardim
Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)
Subsidios para a
história da literatura
portuguesa, por Delfim Guimarães.―Lisboa, 1908.
Livraria Editora Guimarães & C.a,
274 pág. 800
réis.
É o livro sensacional da semana que hoje finda. É
o desabar de uma lenda secular. A ineptidão de uns editores
quinhentistas insinuara a crença de que as trovas de
Crisfal eram de
Cristovam
Falcão, cujo
nome era representado pelo anagrama, formado da primeira silaba do nome
e a primeira do apelido.
A lenda criou raizes; e, não obstante as
hesitações e dúvidas de alguns
criticos, ninguém, até hoje, contestara
abertamente em publico a personalidade poética de Cristovam
Falcão.
Mas Delfim Guimarães, estudando Bernardim Ribeiro,
editorando-lhe as
Saudades,
e confrontando os trabalhos dos bucolistas do século XVI,
chegou á convicção de que, tendo
havido algumas personalidades com o nome de Cristovam
Falcão, este nome não pertencia a nenhum
poéta, e as trovas de Crisfal eram obra de Bernardim
Ribeiro.
Documentando e justificando a sua convicção,
acaba êle de dar á estampa o substancioso volume
que hoje noticiamos.
No prefácio da obra, expõi o autor, com a devida
lealdade, as circunstâncias e o processo
[112]
que o levaram á absoluta
rejeição da
referida lenda, e congratula-se justamente por ter agora a noticia de
que o ponderado publicista Pereira de Sampaio (Bruno), tinha
já adquirido
convicção análoga, que esperava
justificar em livro.
Metodizando as provas e a documentação de que o
poeta
Crisfal não
é outro, senão Bernardim Ribeiro, Delfim
Guimarães faz minuciosamente a biografia crítica
do poeta, estuda e analisa a primeira edição das
obras de Bernardim,
dá nos a história e a genealogia do suposto poeta
Falcão; e, depois, de nos dar a exegese de numerosos factos
e documentos, cerra o seu volume com a
reproducção da
Carta e da
Écloga
de
Crisfal, e de
três poesias mais de Bernardim Ribeiro,
até agora ignoradas.
Claro é que, de um livro de tal significado e alcance, mal
se podem formular juizos e sentenças em meia
dúzia de linhas do nosso registo bibliográfico; e
temos de nos restringir a dar da obra ideia sumária,
chamando para ela a atenção, e naturalmente o
apreço, de
quantos se interessam pelos mais momentosos problemas da nossa
história literária.
Mas remorder-nos-ia a consciência, se cerrássemos
já a presente noticia, sem significar a Delfim
Guimarães a satisfação que nos
deu o seu melindroso e arrojado trabalho, e o encanto com que
repassamos os olhos pelo ingénuo e delicioso bucolismo dos
avoengos da poesía nacional.
Formoso livro e serviço memorável.
Dr.
Candido de Figueiredo
(Do Diario de Noticias, de Lisboa,
de 28 de novembro de 1908).
O
poeta Chrisfal
Delfim
Guimarães:
Bernardim Ribeiro (o Poeta Crisfal)―Subsidios para a historia da
literatura portuguêsa―1908―Livraria Editora
Guimarães & C.a―68, R. de S.
Roque, 70―Lisboa.
Ha uns espiritos fortes, solidos―e que tanto abundam n'esta nossa
bôa terra de Portugal―que hão de sentir-se
escandalisados com a arrogancia d'alguem que, contra a
opinião dogmatica e ensinamento incontestado dos grandes
Sacerdotes, se abalança a demonstrar que os bucolistas
Bernardim Ribeiro e Chrisfal (pretenso anagramma de Christovam
Falcão) são uma e mesma pessoa; isto
é: que o glorioso auctor da 1.ª parte da novella
pastoral «Menina e Moça» é
igualmente auctor da celebre
peça poetica conhecida pelo nome da «Egloga de
Chrisfal»―n'uma palavra, que o poeta Christovam
Falcão nunca existiu e que a maioria das
composições poeticas que andam com o seu nome
pertencem de juro e herdade ao principe do bucolismo entre
nós, a esse surprehendente Bernardim Ribeiro, que
é, em toda a nossa litteratura, o vaso
d'eleição d'onde mais trasborda o sentimento
augusto da alma portugueza.
[114]
Mas outra raça d'espiritos não menos solidos
sorrirá piedosamente (e, n'este caso, o sorriso é
uma outra fórma de nos sentirmos
escandalisados) perante a utilidade proxima ou longinqua que
póde adquirir-se d'uma descoberta d'esta ordem.
Que importa ao bem do individuo ou da collectividade de hoje, que uns
versos repassados d'uma verdade sentimental, á
força de sentida quasi incomprehensivel,―versos, demais a
mais vasados n'uma trama ingenua, bucolica, pastoril, sejam obra d'um
ou d'outro recuado quinhentista ou, mesmo, tenham sido levados
á conta d'um lendario personagem que, como poeta, nunca
tivesse existido, a não ser na phantasia d'uns novelleiros
de profissão que, com o rodar do tempo, conseguiram guindar
a sua improbidade litteraria aos pinaculos d'uma certeza irrefutavel?!
Pois essa arrojada impiedade e esse improductivo bysantinismo―esse
magno escandalo―acaba de perpetral-os o meu velho amigo Delfim
Guimarães, poeta de verdade, infatigavel estudioso, paciente
investigador, acurado cultista em materia litteraria, com a
publicação do seu recente estudo «
Bernardim
Ribeiro (
o poeta Chrisfal)»,
cujo apparecimento estas
ligeiras notas intentam celebrar.
O mesmo é dizer que me não sinto com
forças para, pormenorisadamente, passo a passo, ir vincando
as passagens exegeticas d'este trabalho masculo e delicado que revela,
no seu auctor, uma erudição e um methodo que eu
entendo precisos n'aquelles que se propuzerem critical-o.
Não é, pois, um artigo critico o que vou fazer;
[115]
mas se uma
affirmação sincera e sentida, de valor
nimiamente critico, me é permittido
accentuar desde já, eu direi: Delfim Guimarães
está na verdade. Christovam Falcão, poeta, nunca
existiu. Chrisfal é um pseudonymo de Bernardim Ribeiro.
E isto porquê?!
Porque todos os que se occupam de Falcão o dizem pessoa de
qualidade―pertencia á primeira fidalguia portugueza, diz o
sr. dr. Th. Braga―e, quanto ao valor do seu estro, tanto era que
mereceu ser confundido com Bernardim Ribeiro seu amigo e confidente,
quando não seu predecessor. Como se explica, pois, que um
tão illustre personagem não figure no
Cancioneiro de Resende, onde aliás se encontram, com
tão assombrosa profusão, nomes que, nem pela
clareza da estirpe nem pelo fulgor do engenho, se impunham á
consideração dos
posteros?!
É crivel que o erudito, o dedicadissimo collector que se
chamou Garcia de Resende―o homem, do seu tempo, que mais larga e
intensamente privou na corte dos nossos reis―não tivesse
noticia d'uma individualidade tão fortemente accentuada e
tão parecida com o então e já
apreciadissimo Bernardim?! Não me parece.
Seria qualquer despeito, qualquer d'estas pequeninas miserias que se
transmudavam em acerbos espinhos d'odio (e ao tempo e antes e depois e
sempre tão vulgares!) que levariam mesquinhamente o celebre
collector do Cancioneiro a relegar, da convivencia dos seus 351 poetas,
esse illustre Chrisfal e ao mesmo tempo (s
Seria qualquer despeito, qualquer d'estas pequeninas miserias que se
transmudavam em acerbos espinhos d'odio (e ao tempo e antes e depois e
sempre tão vulgares!) que levariam mesquinhamente o celebre
collector do Cancioneiro a relegar, da convivencia dos seus 351 poetas,
esse illustre Chrisfal e ao mesmo tempo (segundo o ensinamento do sr.
dr. Theophilo
[116]
Braga) a recolher,
como de Bernardim Ribeiro, versos de Falcão?!
Não me parece. Gil Vicente, como é sabido,
apodára cruelmente Resende, e nem por isso deixou de figurar
no Cancioneiro.
Estes simples e, quero crel-o, contestaveis argumentos levavam-me de ha
muito, a duvidar da existencia poetica de Christovam Falcão,
só muito mais tarde posta em fóco, entre outros,
por Faria e Sousa, cujos
escrupulos de caracter são por demais
conhecidos.
Mas a simples argumentação sobre cancioneiros nem
sempre é de colher, como um facto recente me leva a
constatar.
Ha dois annos (outomno de 1906) appareceu nas livrarias a seguinte
publicação:
Odysséa dos Tysicos―Album de Musicas para piano e
canto, original de Raul Pereira, sobre versos de poetas portugueses?
É obra musical do sr. Raul
Pereira que, á falta d'outra
indicação,
entendo dever tambem consideral-o como collector das varias poesias que
o album encerra.
A primeira d'estas poesias, posta em musica apparece sob um retrato com
esta epigraphe:
Guilherme Braga (1845-1874), e
tem
este titulo «
A Jesus
Crucificado», e é como segue:
A Vós, correndo vou,
braços sagrados
N'essa
cruz sacrosanta descobertos
Que para receber-me estaes abertos
E, por
não castigar-me, estaes cravados.
A Vós, olhos divinos eclypsados
De tanto sangue e lagrimas
cobertos:
Que para perdoar-me estaes despertos
E por não
devassar-me estaes fechados.
[117]A Vós,
pregados pés, por não
fugir-me;
A Vós, cabeça baixa, por chamar-me;
A
Vós, sangue vertido para ungir-me;
A Vós, lado patente, quero unir-me,
A Vós, cravos
preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.
Devo confessar que ao ler este soneto nasceram-me duvidas―muito vagas,
é certo―sobre a sua authenticidade quanto ao nome que o
firmava. E como não o encontrasse entre as poesias
colligidas nas
Heras e
Violetas, assentei, á falta de melhor
solução, que se
tratava de uma poesia solta, religiosamente recolhida por pessoa intima
ou admiradora convicta do insigne e mallogrado poeta portuense.
N'isto estava, quando o acaso d'uma busca litteraria me levou a
folhear, na Bibliotheca Publica,
O Ramalhete,
«jornal de Instrucção e
Recreio» (2.ª série, n.º 165,
4.º anno) e a
encontrar, a paginas 112 do vol. IV, o mesmissimo soneto, sem
descrepancia d'uma unica palavra, sob esta assás curiosa
rubrica:
«
No momento derradeiro da vida humana, qual o
estado de moribundo, nada excita amor e conforto como a doce
inspiração de abraçar um
crucifixo, unico remedio d'alma. Por este motivo fez o dr. Manuel da
Nobrega o seguinte soneto: «A Jesus Crucificado»».
Portanto, teremos nós: os vindouros, que não
leram o
Ramalhete, a
attribuir a Guilherme Braga (que, segundo o sr. Raul Pereira, nasceu em
1845, embora Innocencio nos diga 1843)
[118]
uns versos do dr. Manuel da Nobrega, que
vieram á estampa em 1841.
Veiu isto a proposito da confiança absoluta a depositar nos
cancioneiros. Verdade seja que entre Garcia de Resende e o sr. Raul
Pereira (que eu não tenho a honra de conhecer), o unico elo
que os prende deve ser, se não laboro em erro, o
laço musical...
Outras razões, porém, antes do trabalho de Delfim
Guimarães, me levavam a pender para o arrocho da
não existencia poetica de Christovam Falcão.
É certo que a Renascença
produzira uma eclosão genial em todos os ramos da vida
sentimental, artistica e scientifica do occidente europeu, e que
nós tivemos largo
quinhão nas benemerencias d'esse glorioso Sol―e
tão grande que ainda hoje d'elle vivemos. Mas é
igualmente certo que, por grande que fosse, e foi, a prodigalidade do
estro que nos coube, não era natural que dois vultos
geniaes, a um tempo, surgissem tão parecidos, tão
irmãos na concepção sentimental, na
realisação artistica e até―suprema
coincidencia―nos azares da vida amorosa! Delfim Guimarães
embrenha-se em trabalhos de genealogia e de exegese litteraria,
pacientemente cuidados, para nos infiltrar o convencimento que eu, sem
razões de peso e sem auctoridade para as formular, de ha
muito
sentia da existencia d'um
só poeta na obra de Bernardim e na obra de Chrisfal.
É, pois, para mim um livro de
consolação. Por um lado, simplifica, no meu
espirito, um caso que se achava enredado nas malhas autoritarias,
embora convencionaes, de nomes respeitados; por outro, entorna, no meu
coração, o intimo, o ineffavel jubilo de ver
alguem da
[119]
minha estima e do meu
tempo elevar-se tanto, pelo trabalho intelligente e probo, n'uma
manifestação eloquente de força moral
e espirito combativo de que tanto carecemos.
E esta probidade litteraria não é coisa de pouca
monta ou que alguem possa dispensar-se de a encarar com o mais profundo
respeito, porque me hei de lembrar d'aquelle supremo prefacio do
Disciple
de Paul
Bourget, quando elle se dirige á mocidade da sua terra:
Dentro de vinte annos tereis em vossas mãos a
fortuna d'esta velha patria, nossa mãe commum.
Vós sereis
a propria patria. Que tereis recolhido nas nossas obras? Pensando
n'isto, não ha homem de lettras, por mais modesto que seja,
que não deva tremer de responsabilidade...
Hemeterio
Arantes.
(Do Diario Illustrado, de 2 de
dezembro de 1908).
«Bernardim
Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)
Subsidios para a
historia da litteratura portugueza,
por Delfim Guimarães. 1 vol. de 278 pag. Livraria editora
Guimarães & C.a 1908 Lisboa,
typ. Libanio da Silva.
A velha sentença portugueza―
o seu a seu dono
viria muito a propósito, noticiando o
apparecimento d'este livro, com que se pretende, e consegue a nosso
ver, reivindicar para o nome do grande poeta quinhentista a autoria e a
glória de differentes producções que
inconscientemente andavam attribuidas a outros. E se não
fosse a bella coragem do sr. Delfim Guimarães, nosso antigo
e presado amigo, que sendo poeta muito primoroso é tambem
investigador ordenado e pacientissimo, o deploravel engano
continuar-se-ia por muito tempo, ou, peor ainda, não se
desvaneceria jámais talvez.
Entre outras, a lenda de que existira um Christovam Falcão,
pretenso poeta de tão alto valor como Bernardim Ribeiro, e,
assim, auctor tambem de maviosos versos, principiara a correr mundo em
1554, dois annos depois de fallecido
[122]
este, e teria origem, parece, em certa nota posta n'uma
edição pouco criteriosa feita n'aquelle anno, de
differentes poesias, esparsas umas, outras logo colligidas
após a morte de Bernardim, edição onde
veem de mistura com a
Historia de Menina e
Moça, diversos motes, cantigas e
églogas e entre estas, (diz a tal nota) «
hũa
muy nomeada e agradavel... chamada
Crisfal, que dizem ser de Christovão Falcam, ho que parece
alludir o nome da mesma egloga...»
D'isto, e de outras investigações pacientemente
realizadas pelo sr. Guimarães resulta a
presumpção de provir a dita lenda principalmente
d'aquellas vagas referencias e a allusão que o editor julgou
encontrar em o nome de Crisfal do facto de serem as duas syllabas de
que elle se compõe eguaes ás primeiras dos dois
nomes
Cristóvam e
Falcão. Mas isto, que não
constitue prova e não passa de mera
hypothese, teria de cahir redondamente, quando se verificasse que esse
Falcão era homem de poucas lettras e, portanto, incapaz de
produzir trabalho de tanta valia como é a
Égloga
de Crisfal.
E assim succederia talvez se o sr. dr. Theophilo Braga não
houvesse, em má hora, pretendido transformar a hypothese em
lei, apresentando como definitivamente adquirida para Falcão
a paternidade d'aquella e de outras poesias de altissimo valor
litterario.
Não seguiremos o sr. Delfim Guimarães na critica
acerba, se bem que correctissima, com que se refere a este erro do sr.
dr. Theophilo Braga e ainda a muitos outros. Este operoso escriptor
dirá de certo da sua justiça,
não deixando, d'esta vez, mal parada a sua fama de erudito.
E, sendo como é, sempre consciencioso
[123]
nos seus trabalhos de historiador litterario,
virá certamente á estacada, para explicar a
razão do seu engano.
Muitos outros descobrimentos são indicados n'esta valorosa
reivindicação, não se
mostrando possiveis mais duvidas a respeito da não
existencia de Christovam Falcão, poeta, e parecendo ao
contrario definitivamente provado que o nome de Crisfal fôra
um dos muitos pseudónymos e anagrammas adoptados por
Bernardim Ribeiro nas suas obras. Tambem graças ao indefesso
trabalho do sr. Delfim Guimarães ficará
pertencendo irrevogavelmente ao poeta de
Menina e
moça não sómente a
celebre égloga, mas ainda outras poesias attribuidas a
diversos e que veem apontadas ou reproduzidas n'este volume.
Em compensação, porém, algumas
até agora emprestadas ao bucólico poeta, lidima
gloria das lettras portuguezas, terão de passar para outros,
com o que, seja dito de passagem, a exceptuarmos o solau
[11]―
Pensando-vos
estou
filha, que o sr. dr. Theophilo Braga deu, tambem
levianamente, como de Bernardim, sendo aliás de
Camões, nada virá a perder o nome de Bernardim
Ribeiro―antes pelo contrario!
N'este trabalho notavel do sr. Guimarães, obra de paciente
investigação e bem disciplinado criterio, faz-se
referencia a muitos outros factos interessantes, que nos
abstêmos de contar, porque do livro apenas pretendemos dar
rapida noticia; mas todos os elogios serão poucos a quem com
coragem estréme veio inteirar
[124]
a gloria de
Bernardim Ribeiro que, desventuroso poeta, de uma parte d'ella havia
sido espoliado.
Muito agradecemos a captivante offerta de um exemplar de
Bernardim
Ribeiro,
com que fomos brindados pelo auctor.
(Da Mala da Europa,
de L, de Lisboa, n.º
669, de 6 de dezembro de 1908).
Ainda
Chrisfal
Longe estava de ver tão depressa e amplamente confirmada a
minha asserção de que o trabalho de Delfim
Guimarães
«
Bernardim Ribeiro (o Poeta Crisfal)»
era, para mim,
um «livro de consolação»,
quando
o
Diario de Noticias de 3 do corrente, sob a
epigraphe «
Academia de Sciencias de Portugal»
me trouxe esse verdadeiro manjar (para lhe não chamar
capitoso petisco...) espiritual á minha insaciavel fome de
aprender.
É como segue a passagem, que me interessa da local
jornalistica em questão:
«
Em seguida (o sr. dr.
Theophilo Braga)
realisa uma
communicação sobre Bernardim Ribeiro e Christovam
Falcão mostrando como a vida amorosa d'este oscilla entre
1525 e 1565, senão n'aquella data moço fidalgo, e
tendo pelo menos 12 annos, ao passo que aquelle era já
idoso; evidencia como na Égloga transparecem diversas
situações da vida de Christovam
Falcão, e termina por invocar as opiniões de
Diogo Couto, Gaspar Fructuoso e outros que comprovam a existencia das
duas individualidades que apesar de similhantes
[126]
n'algumas
situações da vida,
não podem jámais confundir-se».
Eu imagino estar vendo estas palavras cahir do labio venerando, sobre a
douta assembleia, como outras tantas perolas que, depois de serem ali
devidamente apreciadas, resvalaram cá p'ra fóra,
para o monturo anonymo, offerecidas em repasto magnifico aos cerdos
iconoclastas.
Bacorejemos, pois, as preciosas gemmas...
Diz o Mestre que a
vida amorosa de
Christovam Falcão oscilla entre 1525 e 1565, sem ficarmos
sabendo se a sua
vida poetica tambem oscilla
dentro do mesmo periodo, isto é: se a actividade
amorosa
e a actividade
poetica de Chrisfal se confundem, caminham a
par-e-passo ou se, pelo contrario, é o amoroso que precede o
vate, se este antecede o namorado.
Eu, por mim, se alguma coisa entendo n'esta complicada psycologia,
estou em dizer que, em geral, as duas actividades se confundem,
são isochronas, e, segundo este criterio, Falcão
só poetou com exito desde 1525.
Não póde elle, pois, ter figurado no Cancioneiro
de Resende, que tem a data de 1516, como o sr. dr. Theophilo Braga
pretendia até ha uma duzia d'annos atraz―opinião
que depois modificou no seu trabalho, sobre Bernardim Ribeiro, que veio
á estampa em 1897.
Mas o Mestre, em 1897, deixou de lhe dar entrada no Cancioneiro pela
subtil razão de que Chrisfal não
poetára nos Serões da
côrte por pertencer ao
ramo pobre dos
Falcões. Lembrança exegetica que nos leva a
concluir que todos os poetas do Cancioneiro poetaram nos ditos
serões
[127]
e demais a mais com a
escarcella bem provida d'aureos recursos―embora muitas e muitas
poesias d'aquella grandiosa collecção resvalem da
casuistica amorosa, que é a caracteristica da poetica
palaciana, para a lucta dos interesses em que se revela a necessidade
do vil metal.
Mas agora que o insigne Professor colloca a vida amorosa de
Falcão entre 1525 e 1565, pergunto eu: permanece este
argumento para a sua exclusão do Cancioneiro ou teremos de
assentar que Chrisfal n'elle não figurou pela simples
razão de, em 1516, andar ainda com coeiros?
Naturalmente teremos de optar por esta ultima versão e,
portanto, pôr de banda a sua amisade e apregoadas
confidencias com o auctor das
Saudades.
Fica de vez assente, pois, que Christovam Falcão
não foi poeta do Seculo XV.
Proponho-me agora provar,
currente
calamo (como não pode deixar de ser tratando-se
d'alguem que se não familiarisou com
os processos
inductivos da critica moderna... ) que Christovam
Falcão tambem não foi poeta do Seculo XVI, como
agora pretende o sr. dr. Theophilo Braga.
E isto porquê?!
Porque eu posso duvidar (ainda que me apodem de irreverente pedantismo)
das, por vezes, arrojadas conclusões chronologicas do
insigne Professor. Mais anno menos anno, mais seculo menos seculo
são, para os grandes Generalisadores, coisas d'uma
importancia mediocre. Outro tanto me não succede, quando a
generalisação visa um assumpto basilar na
essencia, no modo de ser do facto scientifico.
[128]
E é este o caso. Cristovam Falcão foi poeta entre
1525 e 1565?!
Ouçamos o sr. dr. Theophilo Braga:
«Se Cristovam Falcão escrevesse depois de 1527,
quando Sá de Miranda propagou as formas da poetica italiana,
teria então adoptado o verso endecasyllabo, e a
fórma da
outava, do
terceto, e
trocaria pelo
soneto o conceite provençalesco dos que
ainda seguiam o typo do
Inferno de Amor (
Bern. Rib. e os
Bucolistas, pag. 141)».
Na edição refundida do seu Bernardim Ribeiro,
publicada em 1897, esta affirmação cathegorica
permanece igual ou identica, como, aliás, não
podia deixar de ser.
Demos de barato que se possa ter opinião diversa da do
insigne lente do Curso Superior de Lettras, o que ninguem
póde é contrariar a
realidade historica,
porque, como
é sabido, contra factos não ha argumentos.
E esta
realidade diz-nos que, depois
de Sá de Miranda, não houve um
uníco
poeta que não tivesse experimentado as formas petrarchinas e
o verso heroico.
Houve um dr. Antonio Ferreira que nunca em sua vida fez um verso de
medida
velha; houve muitos, e entre elles o proprio iniciador da
poetica italiana, que não desdenharam a redondilha e os
velhos agrupamentos metricos. De quem poetasse
exclusivamente
pelos antigos processos... não consta.
Logo, a não ser que rasguemos a
logica do Mestre e a
verdade
da Historia,
Christovam Falcão não encontra cadeira onde se
sente, nem na
[129]
vasta saleta da poesia
palaciana, nem no refulgente salão do Seculo de Quinhentos!
Uma passagem do meu ultimo artigo teve o condão d'excitar
duas
communicaçôes que amavelmente me
foram endereçadas.
A primeira, d'um amigo, que me escreve: «Sobre o soneto
attribuido a Guilherme Braga, devo dizer-lhe que o auctor do mesmo
não é o dr. Manuel da Nobrega, mas sim outro
poeta.»
Claramente, corri logo a casa d'este amigo que me aconselhou uma
intervista com o insigne bibliophilo e bibliographo sr. Annibal
Fernandes Thomaz, o que, para mim, foi d'um prazer espiritual, como, de
ha muito, me não era dado gosar.
Annibal Fernandes Thomaz é pessoa familiar a todos que
n'este paiz se occupam de livros e―coisa rara!―a todos sorri, a todos
mette no coração e em todos tem um admirador dos
seus vastissimos conhecimentos e, o que é mais, um amigo
devotado das suas grandes qualidades.
Disse-lhe ao que ia; mas, como da nossa conferencia resulta uma
resposta á segunda
communicação que recebi, é bem que
n'este momento aqui fique exarada essa
communicação.
Trata-se d'um bilhete-postal anonymo, e, se quebro a minha velha praxe
e o bom-conselho de todos de lançar para os papeis inuteis
esta ordem de documentos, é porque se trata d'um assumpto
litterario e o meu correspondente, por qualquer razão se
não querer fazer
conhecido, o que muito me contraria. Diz assim:
[130]
«O soneto que v. reproduziu no
Diario
Illustrado tem mais de dois seculos. Bastava o estylo para o
denunciar seiscentista; mas a prova positiva está em a Nova
Floresta, terceiro tomo, tit. V, apopht. LIV. Permitta-se a um obscuro
padre dizer mais. Com essa ancianidade de taes versos toma nova
força o contra argumento de v. sobre o silencio dos
cancioneiros a respeito de Crisfal. Na margem do soneto pag. 207, da
edição da
Nova Floresta de 1759 (4.ª
impressão que tenho á
vista) lê se o nome do autor assim:
Do Doutor Manuel da Nobrega. Quem fez um tal
soneto, tão seriamente engenhoso, apesar do gongorismo, e
tão bem metrificado, havia de ter mais poesias: e sendo
doutor,
não era
um desconhecido. Que temos d'elle na
Fenix Renascida?
Quem o conhece? Alguns annos ha, o soneto reproduzido
anónimo em muitos livros devotos, foi publicado em o
Novo
Mensageiro do
Coração de Jesus (revista piedosa mas
de muita litteratura) com a indicação, que a
minha memoria aproveitou agora, da
Nova Floresta,
e com uma nota que dizia ser o nome do Dr. M. Nobrega desconhecido dos
bibliographos.»
Vamos agora, rapidamente, ao resultado das pesquizas com Fernandes
Thomaz.
O soneto
A vós, correndo vou,
braços sagrados encontra-se a fechar uma
dedicatoria a «Jesus Christo Senhor Nosso
Crucificado» d'um curiosissimo livro de 1734 intitulado
«
Anacephaleosis medico theologica, moral e politica,
etc.,
etc.», obra d'um tal Bernardo Pereyra, medico do partido da
villa do Sardoal.
O meu primeiro correspondente, que conhecia o livro, attribuiu
facilmente a Pereira a autoria
[131]
do soneto, por não reparar nas palavras que precedem
a sua reproducção, e que dizem:
«...e finalmente como se consegue a gloria que é
a melhor conclusão que se tira depois de sahir da
Universidade do mundo para as Escollas do Céo; mas
será bem, meu amoroso Jesus,
que antes de tudo
diga com hum
devoto que hoje para renacer do estado da culpa ao da
graça, que de vós espero, para seguir o caminho
por onde não vá precipitado, mas antes com a
vossa direcção fortalecido!
«
A vós correndo vou,
braços sagrados, etc., etc.»
Mas (e vae isto em resposta ao anonymo correspondente) tanto Barbosa,
na sua
Bibliotheca, como Innocencio, no
Diccionario,
citam Manuel da Nobrega, como auctor do
Epicedio
inconsolavel á morte do Ser. Principe de Portugal D.
Theodosio que falleceu em 15 de maio de 1653 e como
collaborador nas
Memorias funebres de D. Maria de Athayde
fallecida em 22 de agosto de 1649.
É livro muito interessante estas
«
Memorias funebres sentidas pelos engenhos
portugueses na morte da Senhora D. Maria de Athayde».
N'ellas se encontram poesias em portuguez, francez, hespanhol,
italiano, latim, assignadas pelos nomes dos poetas mais illustres do
tempo e, para não citar outros, bastará lembrar
os de Soror Violante do Céo e D. Francisco Manuel de Mello.
Ao que parece tratava-se d'uma extremada formosura
doublée
(como
hoje se diz) d'uma alma de eleição.
O
Doutor Manuel de
Nobrega concorre a este florilegio poetico com um soneto e
uma egloga. O soneto:
Aquelle bello Sol, que amanhecia,
não desmerece, antes tem grandes ares de familia com o
[132]
que tem sido causa d'esta
palestra... algo pesada.
Não quero, porém, terminal-a sem exarar o meu
parecer de que o Soneto, embora
culterano, tem tão pouco de
gongorico que Guilherme Braga, ou qualquer outro
grande poeta de hoje, não desdenharia assignal-o, se essa
fosse
a
sua corda.
Hemeterio
Arantes.
(Do Diario Illustrado, de Lisboa, de
9 de dezembro de 1908).
«Bernardim
Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)
Subsidios para a Historia da
literatura portuguesa, por Delfim
Guimarães. 1908―Liv. ed. Guimarães & C.a
Lisboa―8.º, 274 pag.
Delfim Guimarães, Bibliographia: Prosa: Alma
Dorida, com prefacio de Teixeira Bastos, O
Rosquedo (scenas
do Minho), Ares do Minho
(contos).―Critica litteraria: A viagem por terra do sr.
João Penha.―Verso:
Lisboa negra, Confidencias,
Evangelho,
Não! mil vezes não!, Sim!
mil vezes
sim!, Sonho
Garretteano, A Virgem do Castello e
Outonaes.―Theatro:―Aldeia
na Côrte, de
collaboração com D. João da Camara. (3
actos―Th. D. Amelia), Juramento
sagrado (1 acto, verso.―Th. D. Maria). Traduziu a Dama
das Camelias, de
Dumas, filho; reviu e publicou as Saudades de
Bernardim Ribeiro e as Trovas de Crisfal, do
mesmo auctor. Fundou e dirige a Bibliotheca Classica Popular.
Collaborou longo tempo na Mala da Europa, Provincia,
O Lima,
Chronica, etc. Varias obras
de Delfim
Guimarães teem já 2.ª
edição, estando
algumas outras exgotadas.
[134]
Desde longos tempos até este anno 1908 da era de
Xpõ, como escreviam os nossos velhotes, tudo era suppor que,
ahi por alturas de mil quinhentos e tal da mesma era do Senhor, viveu,
floresceu, e ninguem mais soube d'elle, certo
Crisfal,
poeta e
namorado, que toda a gente indicava como sendo Christovão
Falcão, um Christovão Falcão que se
sabe agora escrever como um carreiro e ter mais erros de orthographia
do que cabellos tinha na cabeça... se a Historia
não provar que elle era careca. Indicava se
Christovão Falcão tacteando. Para manter a
suspeição havia só o
corresponder o pseudonymo
Cris fal ás
primeiras sylabas do nome do supposto poeta. Longo tempo a mentira
prevaleceu e longo tempo os doutos acceitaram de boamente a patranha,
uns supplementando-a com fabulações
á
priori, outros asseverando que tal era porque era e
«por ser verdade passavam a presente que
assignavam».
Caminhava tudo em doce paz quando Delfim Guimarães,
publicando o livro de que nos occupamos, desfez a lenda, tombou os
castellos e pôz a cousa nos devidos termos. Mas vamos ao que
importa.
«De como e porquê Delfim Guimarães achou
que
Crisfal não passou de
um pseudonymo de Bernardim Ribeiro e de cousas varias que ao deante se
verão», é um capitulo que,
n'esta critica, deve interessar o leitor, agora que já sabe
que tal
Crisfal nunca existiu.
Delfim Guimarães é um estudioso e um devotado.
Manuseia os classicos com a mesma curiosidade com que aguarda o ultimo
livro de Anatole France ou o novo romance de Octave Mirbeau.
[135]
Ha tempo, dirigindo uma collecção, publicou as
Saudades
do nosso Bernardim,
auctor que, por sua natural tristura e dulçorosidade, desde
menino e moço mais o prendia e captivava. Tudo estaria bem
até aqui se, mente cogitativa e emprehendedora,
não scismasse em publicar uma Bibliotheca de Classicos
animado pelo exito das
Saudades. Uma Bibliotheca
de vulgarisação, destinada a mostrar á
alma do vulgo o escrinio das melhores joias dos nossos antepassados.
Anteriormente uma natural curiosidade o levara a estudar os poetas que
se apontavam como maiores amigos de Bernardim: Sá de Miranda
e
Crisfal, o celebrado Christovam
Falcão que hoje deve ás musas a celebreira que
por seculos desfructou,―elephante que conseguiu passar por canario, o
animal.
A extraordinaria semelhança de
Crisfal a Bernardim, os mesmos lamentos, a mesma
situação amorosa, os mesmos queixumes; a ausencia
absoluta de noticias e referencias na obra de Sá de Miranda
e Bernardim ao poeta coevo e imitador, tudo isto deu a Delfim
Guimarães a certeza de que
Crisfal e
Bernardim era o mesmo, só, e altissimo poeta.
Além d'isto nenhum documento da epocha autorisava a
pôr a carapuça
Crisfal em
cabeça de Christovam Falcão. O mesmo editor de
Bernardim,
edição de 1554, onde se acha incorporada a
«Egloga chamada Crisfal» escreve, referindo-se-lhe:
«
que dizem ser de Christovam Falcam, ho
que parece alludir ho nome da mesma Egloga».
Estudado o contemporaneo Christovão Falcão,
vê-se que elle era pouco menos de bronco e não
poderia ser nunca o auctor da
Egloga.
[136]
Adquirida a certeza, que era
Crisfal? E logo, deductivo, Delfim
Guimarães achou a chave. É
crisma falso,
pois que
na Egloga se move a mesma passionalidade de Bernardim com supositicios
nomes―falsos crismas.
O livro do escriptor é ilustrado com um fac-simile de uma
carta do pretenso Christovam Falcão e acompanhado de uma
arvore genealogica dos Falcões. De uma logica cerrada e
inteligente, preciosamente documentado, é um trabalho
collosal que dará echoantissimo nome ao seu auctor. E
enquanto se não perder na memoria das
gerações o nome do bardo amoroso, o triste
Bernardim, o nome de Delfim Guimarães não se
desacorrentará da
gloria de ter focado com intensa luz um tão curioso e
deturpado caso da litteratura portugueza.
Lá fóra esta obra faria não
só a gloria mas o nome de um trabalhador. As Academias
levar-lhe-hiam o seu
fauteuil estofado, e os
editores disputariam a honra de lhe pagar.
Cá dá desgostos, nada mais.
O illustre publicista José Sampaio (Bruno)
chegára ás mesmas conclusões. Anselmo
Braamcamp Freire vae publicar um trabalho curiosissimo sobre Maria
Brandão; José Caldas é da
opinião de que se achou a verdade. Quem resta? Carolina
Michaelis, cuja opinião importa saber, e Theophilo Braga,
que discorda.
As impugnações que Delfim Guimarães
fez aos livros de Theophilo estão em aberto. E Delfim veio
com este seu trabalho não só
elliminar um Christovam da litteratura e uma Maria das muitas Marias
enamoradas, mas fazer luz sobre uma poesia de Camões
falsamente attribuida a Bernardim Ribeiro, e documentar
[137]
que
sómente
Sá
de Miranda foi o introductor da Escola Italiana em Portugal. Bernardim
Ribeiro foi o introductor mas das novas eglogas vergilianas.
Raro talento, muito estudo, aturada analyse,
observação profunda e um grande
serviço prestado á litteratura, eis como julgamos
o livro
Bernardim Ribeiro. Com ares
impugnativos veio o sr. Jordão A. de Freitas no
Diario
de
Noticias carretar materiaes para o rude e
esforçado prelio a travar-se. Não
crêmos que o haja. Theophilo Braga, porém, que tem
estado silencioso, dirá de sua justiça. O
trabalho de Delfim
Guimarães é probo e consciencioso. Merece o
applauso incondicional de todos, e que rejubile a litteratura que ainda
tem artistas que, fructo de seu labor, lhe dão
tão bellas obras.
Albino
Forjaz de Sampayo.
(Do jornal A Lucta, de Lisboa, de 16
de dezembro de 1908).
«Bernardim
Ribeiro»
por Delfim Guimarães
A obra que Delfim Guimarães acaba de publicar é o
producto d'um lucido criterio aliado a uma habil quanto meticulosa
investigação. Sem ser um erudito nem rebuscador
d'archivos, Delfim Guimarães, antes de encetar quaesquer
pesquizas, teve a maravilhosa intuição―ou elle
não fosse um poeta―de que os admiraveis versos do
Crisfal,
desirmanados no
decorrer do tempo da obra litteraria de Bernardim, constituiam com o
poetico romance de
Menina e Moça,
reflexos
d'um mesmo espirito, vibrações d'um unico
coração.
É que o illustre critico interpretára com
verdadeiro sentimento o genio do infortunado poeta, levando a tal ponto
a sua predilecção por elle, que com as
Saudades
abrira
essa galeria de publicações classicas portuguezas
em
edições populares vulgarisadas, cujo inicio no
nosso meio litterario a Delfim Guimarães se deve.
Toda aquella paixão do enternecido bucolista das
Saudades,
a fluidez incomparavel
d'essa linguagem que é na sua simplicidade uma mimica d'alma
e tem a harmonia d'um fio d'agua gorgolejante,
[140]
tudo isso,―o sentimento, que
é a vida na obra d'arte, Delfim Guimarães foi
encontrar nas composições erradamente attribuidas
a Cristovam Falcão.
Obtida a prova subjectiva de que o poeta das
Saudades
era o trovador do
Crisfal―na realidade um criptogramma formado
pelas primeiras syllabas das palavras
crisma e
falso―o distincto escriptor encetou a
investigação historica do que para elle
fôra um presentimento e pelo estudo feito sobre os documentos
da epoca, seu confronto e interpretação,
conseguiu destruir n'uma argumentação irrefutavel
e cheia de brilho,
a lenda feita tradição e cimentada pelo mais
auctorisado critico da nossa litteratura, que o trovador do
Crisfal
nunca
poderia ter sido Cristovam Falcão.
A carta d'este moço fidalgo a D. João III, que
Delfim Guimarães transcreve na integra e que na
edição de Theophilo Braga apparecera deturpada,
é inquestionavelmente a prova mais evidente―e outras
não houvesse com
relação a datas―de que nunca o espirito trivial
que alinhavou aquelles periodos―se é que ali os
ha―idealisaria a enternecida ecloga do
Crisfal, que é ainda, a alguns seculos
de distancia, n'esta epocha em que a arte possue riquissimos processos
de technica e a linguagem tanto ganhou em expressão
emocional,―uma soberba joia litteraria.
Nesta obra, tão cheia de revelações,
começa o auctor por fixar em bases positivas as
étapes da infortunada vida de
Bernardim, desde o seu nascimento no Alemtejo em 1482 até
á sua morte no Hospital de Todos os Santos, de Lisboa, em
1552, submerso nas trevas horriveis
[141]
da loucura. Depois com o esboço dos seus amores da
adolescencia e paixão tragica que votou a Joanna Tavares,
que foi a mais intensa affeição de Bernardim e a
inspiradora do seu triste trovar, entra-se nos capitulos da exegese,
sendo todo o livro uma refutação completa das
idéas correntes sobre a problematica personagem do trovador
do
Crisfal.
Nêle se visionam muitos pontos de vista até
então desconhecidos e se estabelecem novas pistas para
norteamento dos estudiosos, as quaes, certamente, muito
contribuirão para que todo o interessante enigma literario
se desvele em absoluto.
Nas suas curiosas investigações, fez Delfim
Guimarães preciosos achados que denotam uma grande subtileza
nas suas faculdades de critico, como a da poesia de Camões,
erradamente atribuida a Bernardim, que se acha no cancioneiro de Luis
Franco, existente na Biblioteca Nacional de Lisboa, tão
interessantemente descoberta, e o das tres poesias constantes d'um
pliego-suelto
de 1656, da mesma
Biblioteca, que o distincto escriptor filia com boas razões
no estro de Bernardim.
Mercê da linguagem castiça, tão
saborosamente portugueza, de que o auctor se serve, assim identificada
com o thema historico versado, a obra é por si
só, e independente da maneira de vêr do auctor, o
trabalho honesto de um escritôr que é ao mesmo
tempo um artista, n'essa evocação, d'um
tão forte
relevo, das saudosas edades em que os poetas amavam mais sinceramente e
eram menos complicados, a arte não sendo como hoje um
métier lucrativo, mas a
manifestação espontanea d'um espirito no
vôo errante da inspiração.
[142]
Fecha o livro um curioso estudo sobre a vida de Cristovam
Falcão e sua genealogia, certamente o mais completo
até agora.
Felicitamos Delfim Guimarães pelo seu valioso trabalho que
vem deslocar cómodos preconceitos arreigados e abrir novos
horizontes aos que se interessam―que são todos os
portuguezes―pelo estudo da litteratura portugueza no periodo aureo
d'esta nacionalidade.
(Do jornal O Dia,
de Lisboa, de 9 de
janeiro de 1909.)
«Bernardim
Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)
É esta obra que perpetuará o nome do seu auctor,
se bem que Delfim Guimarães em precedentes trabalhos
litterarios tenha já adduzido sobejas provas para que lhe
possâmos reconhecer um elevado grau de intelligencia.
Com a publicação do volume cujo titulo encima
esta noticia, o serviço prestado por Delfim
Guimarães á historia da litteratura patria
está sendo louvado tão extraordinariamente a
ponto do sr. Albino Forjaz de Sampaio, primoroso chronista da
Lucta,
não
ter duvida em afirmar que no Estrangeiro tal
publicação
franquearia ao seu auctor as portas d'uma Academia.
O livro apresentado é o producto d'uma ardua tarefa em que
pacientes faculdades de
investigação, alliadas a uma singular vivacidade,
removem com cauteloso tino os escabrosos obstaculos que tão
ingrato estudo frequentemente depára. Por isso é
que, sem receio de
contradicta, nos afoutamos a asseverar que em Portugal ninguem melhor
do que Delfim Guimarães conhece o periodo da historia
litteraria a que o
[144]
mesmo assumpto
directamente respeita. E nem isso pode causar surpreza ao leitor
illustrado, uma vez que a arrojada affirmativa do illustre publicista,
que é por signal a
negação da
existencia de Christovam Falcão, como trovador quinhentista,
demandava um minucioso exame analytico a todos os documentos
litterarios de então; e nisso só a mais
escrupulosa cautella conjugada com uma aguda perspicacia, como
já deixamos dito, poderia lograr o exito desejado.
Os materiaes que Delfim Guimarães colligiu para invalidar a
personalidade litteraria de Christovam Falcão, deixa-os elle
dispersos nos varios capitulos do seu livro, os quaes sobrepostos uns
aos outros, á medida que se vai avançando na
leitura, introduzem em qualquer espirito a certeza da these que o
auctor se propoz comprovar.
De envolta com os persuasivos esclarecimentos allegados em prol do seu
proposito, o auctor rectifica raciocinios errados e
affirmações insustentaveis de Theophilo Braga, se
bem que o sabor acre d'essas frequentes
correcções seja attenuado ou neutralisado quasi
pelas assucaradas referencias ao passado de tão
incançavel trabalhador.
Pelo volume a que estamos alludindo vê-se que a obra de
Bernardim Ribeiro chegou para fazer a reputação
de dous homens, vindo o nome de Christovam Falcão usurpar em
seu proveito algumas das produções d'aquelle
mavioso lyrico, e sendo, portanto, a sua memoria um nefasto saprophyta
que do merito alheio foi vivendo durante um longo periodo de tempo. A
duplicidade desapparece agora com as aturadas
[145]
canceiras de Delfim Guimarães
que assim reivindica para o grande corypheu do bucolismo em Portugal
todos os fructos do seu prodigioso talento, corrigindo um erro em que
os bibliophilos laboraram durante seculos. D'aqui resalta―e
é esse um dos evidentes intuitos do auctor do livro em
questão―o desenho da verdadeira figura de Bernardim
Ribeiro, com as proporções proprias da sua
gigantesca estatura litteraria, em cima do seu elevado pedestal de
gloria, pedestal a que algumas pedras foram subtrahidas para sobre
ellas figurar o ficticio vulto trovadoresco de Christovam
Falcão.
Em Portugal abundam os devotados enthusiastas de Camões e
Camillo, apparecendo agora um ardente propugnador d'outro nome tambem
illustre, a legitima-lo como uma das maiores glorias litterarias de que
se pode ufanar um povo. Esse nome é Bernardim Ribeiro e
entrelaçado
n'elle apparecerá d'oravante o de Delfim
Guimarães, que acaba de restituir a obra do immortal
bucolista á sua primitiva integridade.
Antonio
Ferreira
(Do Commercio do Lima, de Ponte do
Lima, de 9 de Janeiro de 1909).
«Bernardim
Ribeiro»
Com este titulo e o sub-titulo de
O Poeta Crisfal,
tambem o distincto escriptor a cujo nome, já tão
merecidamente aureolado, fica feita referencia na rubrica anterior,
publicou recentemente um interessante volume, apodado por esse proprio
auctor de
subsidios para a historia da litteratura portugueza,
e que não
é nem mais nem menos do que a
demonstração a nosso
vêr evidentissima, digam os
mestres
pilhados em deturpação o que quizerem, de que
Bernardim Ribeiro e
Crisfal são uma
e a mesma pessoa, não sendo
Crisfal
pseudonimo de Christovão Falcão, mas sim um
composto das primeiras sylabas das palavras
Crisma falso,
de que Bernardim Ribeiro fez uso. Percorrendo se, com olhos de
ver, e com vontade de acertar com a demonstração
explanada por Delfim
Guimarães, todas as 200 e tantas paginas do volume em
questão, adquire-se o convencimento de que ficaram por
terra, uma a uma, «as pedras basilares com que o nome
consagrado do sr. dr. Theóphilo Braga ergueu o monumento,
aparentemente solido, que offertou ás lettras patrias,
fazendo quase real, palpavel, uma miragem secular»―que
[148]
dava
Crisfal
como sendo
Christovão Falcão, quando este não
pertence senão ao dominio da lenda, sendo uma perfeita
mystificação a sua pretendida existencia de
litterato.
O trabalho de verdadeiro erudito, que representa o livro de Delfim
Guimarães, assignala de um modo inconfundivel o seu alto
valor de estudioso, de investigador benemerito e de operoso trabalhador
das nossas lettras. Felicitando-o cordealmente por esta nova prova das
suas excepcionaes qualidades, cumprimos apenas um dever.
A. B.
(Do Jornal das Colonias, de Lisboa,
de 13 janeiro de 1909).
«Bernardim
Ribeiro»
Temos retardado a noticia do apparecimento d'este livro notavel do
illustre poeta e prosador, sr. Delfim Guimarães, porque
quizemos consagrar á sua leitura algumas horas socegadas,
afim de poder estudar convenientemente o problema litterario que em
suas paginas se debate.
Esta obra é o resultado de longas e aturadas
investigações e de um estudo conscienciosissimo,
não só da obra de Bernardim Ribeiro, mas ainda da
obra de todos os poetas, apontados como seus amigos e companheiros.
Cotejando os versos do iniciador do lirismo portuguez com os que se
attribuem a Cristovão Falcão, o sr. Delfim
Guimarães facilmente
reconheceu que, embora pudésse admittir-se que a
educação litteraria dos dois poetas tivesse sido
a mesma, não era possivel que as suas tendencias esteticas
fossem por tal maneira similhantes, que os seus versos chegassem a
confundir-se. Um d'elles teria sido seguramente o imitador do outro.
Continuando nas suas indagações, e apreciando
demoradamente a obra supposta contemporanea
[150]
de Cristovão Falcão, notou ainda o
sr. Delfim Guimarães que era frequente Sá de
Miranda referir-se a Bernardim Ribeiro nas suas obras poeticas, havendo
tambem allusões repetidas, nos versos d'este poeta, ao seu
amigo e confidente. Ao auctor do
Crisfal
não notou a mais leve referencia.
N'aquelle bello poema havia allusões que alvejavam
claramente Sá de Miranda, e foi do estudo attento d'essas
allusões, que perfeitamente condiziam com as referencias das
éclogas de Bernardim Ribeiro ao seu amigo, que resultou
chegar aquelle illustre escriptor a conclusões inteiramente
satisfatorias.
A analise de varios documentos de caracter historico e juridico
produziu no espirito do sr. Delfim Guimarães a
convicção de que a
personalidade litteraria de Cristovão Falcão
não existiu, sendo a obra que se lhe attribue toda do autor
das
Saudades.
Houve, é certo, um Cristovão Falcão de
Sousa, que foi moço fidalgo em 1527 e capitão da
fortaleza de Arguim em 1545, mas este personagem, na opinião
de Delfim Guimarães, era incapaz de escrever a mais
insignificante das quadras de Bernardim Ribeiro.
Como se vê, é realmente muito notavel este livro,
que os eruditos e todos os que se interessam pelo movimento litterario
portuguez, certamente deverão apreciar pela intensa luz que
projecta sobre um dos principaes capitulos da historia da poesia
nacional.
(Do jornal O Primeiro de
Janeiro, do
Porto, de 20 de janeiro de 1909).
«Bernardim
Ribeiro»
por Delfim Guimarães
Não pode um povo viver sem ideal e esse ideal ha de ser como
a flôr que firma as raizes no terreno proprio das suas
tradições. O futuro ha de ser explicado pelo
passado em que potencialmente está contido.
Assim, comprehende-se quanta importancia tem para a vida intellectual e
artistica d'um povo o conhecimento de tudo quanto se refere
á evolução litteraria dos generos e
ás condições mesologicas em que os
seus grandes prosadores e poetas produziram monumentos de dura.
É por isso que lá fóra se
não considera trabalho inutil todo aquelle que consiste em
escavar no passado, com paciencia e com intelligencia, para d'elle
desenterrar uma ideia, uma verdade, a correcção
d'uma data, a
explicação de um texto obscuro.
É sobre este trabalho á primeira vista inglorio
que philosophos e historiadores edificam as largas syntheses, cuja
necessidade é redundancia encarecer para a
comprehensão da psychologia d'um povo.
Entre nós, modernamente, nada ou quasi
[152]
nada se tem feito n'esse sentido. Os nossos manuaes
de litteratura repetem cegamente o que estava dito e feito, antes da
descoberta dos modernos processos de critica e
interpretação do passado.
Apenas o sr. Theophilo Braga com louvavel tenacidade se tem consagrado
á especialidade, nem sempre sendo feliz, não
só pela sua tendencia
a tudo systhematisar, forçando os factos para os encaixar
nas suas concepções
aprioristicas, mas tambem pela vastidão do assumpto que
é impossivel ser abrangido pelo trabalho de um homem
só, principalmente quando não teve quem lhe
preparasse o terreno.
Estas considerações accodem-nos a proposito do
livro de Delfim Guimarães―BERNARDIM RIBEIRO―que representa
incontestavelmente o acontecimento mais importante em historia
litteraria do nosso tempo.
O facto, que é já do dominio publico,
é este: Christovão Falcão, que passava
por auctor da ecloga «Crisfal», uma das joias da
nossa
litteratura, foi na realidade um mediocre fidalgo, incapaz de produzir
aquella obra prima. O auctor d'esta foi, effectivamente, Bernardim
Ribeiro, o meigo poeta das «Saudades» que serviu de
modelo e estimulo a Luiz de Camões.
O livro de Delfim Guimarães, que é um modelo de
investigação paciente e de critica leal
não deixa duvidas a tal respeito. Seria descabido aqui
repetir os argumentos que por ora ninguem desfez em que o auctor
fundamenta a sua sensacional descoberta.
Limitamo-nos simplesmente a consignar que se Delfim
Guimarães revelou uma extraordinaria sagacidade
estabelecendo «a priori» a identidade
[153]
de Bernardim Ribeiro e do auctor de
«Crisfal», a fórma cheia de probidade
por que procurou «a posteriori» justificar a sua
opinião honra não sómente as suas
faculdades de
investigador, mas tambem o seu caracter.
Quer nos parecer que, depois d'este precioso livro, a ninguem
é licito alimentar duvidas a tal respeito. E se se perde
para o quadro dos nossos poetas um nome, fica enriquecido e aureolado
com gloria nova, mas que lhe pertencia o doce e encantador namorado da
«Menina e Moça».
A Delfim Guimarães os nossos parabens e, com elles, os
nossos agradecimentos.
(Do Jornal de Noticias,
do Porto, de
8 de fevereiro de 1909).
Divagações
I
Só agora,―ainda que me não creiam―,
só agora acaba de morrer, neste anno da graça de
1909, um dos grandes bucolicos da época de ouro dos
escriptores quinhentistas!
Esse macrobio das letras, Mathusalem portuguez, de nome e de
nação, era, sem mais nem menos, Chistovam
Falcão de Sousa, que, embora quatro vezes secular, me
parece, indefinidamente vivo continuaria se não o tivessem
acaso assassinado...
Companheiro, amigo e confidente de Bernardim Ribeiro, houvera entre os
dois, segundo Theophilo Braga, a infeliz conformidade de uma sorte
infeliz; pois, ao passo que aquelle se desperdiçava por
amores, tambem este por amores se perdia...
As celebradas «Trovas de Chrisfal» collocavam a
figura de Maria Brandão, «com a casta graciosidade
de uma virgem de Cimabue, dentro de paisagens que pareciam ter os
traços do pincel de Giotto»; e toda a
tradição
popular, já assignalada pelo chronista Diogo do Couto,
[156]
era unanime em considerar esse
nome de «Chrisfal» como formado das duas primeiras
syllabas do prenome e appellido de Christovam Falcão. De
outra parte, o poema das
«Saudades», ou a «Menina e
moça», de Bernardim
Ribeiro, lembrava a desventurada paixão do poeta pelo typo
feminil de Joanna Tavares, que elle disfarçava com o
pseudonymo pastoril de
«Aonia».
Tão notavel se afigurava a individualidade literaria de
«Chrisfal» que, para a illustre
romanista D. Carolina Michaëlis, elle teria sido o creador do
genero bucolico em Portugal, e Bernardim apenas o seu immediato
imitador; mas, tambem, a semelhança entre elles era tal que,
conforme a judiciosa observação do professor
Simões Dias, «as obras de um podiam passar como
feitas pelo outro.»
E assim se devia entender e ensinar nas escolas, até que um
novo escriptor lusitano, o sr. Delfim Guimarães, nos
apparecesse com um trabalho recente e valioso, onde a toda luz
demonstra, com grande escandalo dos mestres, que Christovam
Falcão é, sem menos nem mais, o mesmo Bernardim
Ribeiro, que adoptara nas
«Trovas» o
chris (ma) fal
(so) de Chrisfal». E a
«Maria» de taes versos tambem constituia, a seu
turno, mais um cryptonymo de amor...
Por certo que existiu Christovam Falcão, e existiu naquelles
mesmos annos, mas o sr. Delfim Guimarães prova que
semelhante personagem era um ignorantaço de marca.
―Arranque-se-lhe, por conseguinte, e para sempre, o rutilante diadema
de poeta com que lhe cingiram a cabeça romantica...
Puramente emprestada era a luz que o sobredourava na
[157]
historia,―luz que lhe não
provinha do merito, senão antes da phantasia dos criticos.
Em todo o caso, e emquanto houver a memoria dos homens,
viverá o seu «renome»,
attribuido apenas á felicidade do
«nome»...
Se elle, como escriptor, morreu, ha de ser, comtudo, evocado nas obras
de erudição, ao menos,
quiçá, como testemunho de quanto podem os enganos
e a tardia justiça dos homens.
O trabalho consciencioso do sr. Delfim Guimarães honra a sua
fina argucia, e nos leva a confiar no indefectivel juizo da historia
cuja precaria relatividade é razão sobeja para
nos empenharmos contra os «tortos» iniquos de que
nos faça réos a
precipitação ou a desidia. A
averiguação do que pertence a cada um
não transcende as raias da judicatura terrestre; e, para os
que esperam na vida futura, parece que, perante o seu tribunal supremo,
com jurisdicção apenas sobre o bem e o mal,
não se levarão os problemas de preeminencia
literaria, nem scientifica...
Á posteridade é que compete extremar as glorias
de cada autor; sendo que, muitas vezes, a injustiça ou a
ignorancia dos coevos, não impedem que as gralhas sejam
finalmente despojadas do atavio das pennas do pavão.
Recordando o padre Manuel Bernardes o costume romano de ser punido, com
o venablo e a nota de infamia, o legionario fanfarrão que
enchia a boca de mentirosas façanhas, accrescenta que, se
houvera de andar semelhante correição pelos
ostentadores de engenho, muitos funccionarios exigiria a devida e cabal
applicação da pena, que, na velha
organisação militar, era privativa dos
«tribunos». Verifica-se, porém,
[158]
que, com o correr dos
tempos, nunca faltam «tribunos» da milicia
literaria, para o castigo dos soldados, «que blasonam falsas
valentias», ou para que se desmascarem os miseraveis
impostores da sciencia. Se até os reis, desde Homero, e,
como dizia Camões,
«Dão os premios,
de Ajace merecídos,
Á lingua vã de Ulysses fraudulenta»
vêm mais tarde os divinos aedos, que, no tribunal dos
pósteros, pleiteiam e ganham a causa dos que foram
injustamente aggravados.
Não permitte, afinal, o criterio dos competentes, que um
simples erudito, como Ptolomeu, usurpe, inappellavelmente, a fama
devida ao saber mathematico de Hipparcho.
Este não é precisamente o caso de Christovam
Falcão de Sousa, que não póde
responder pelo erro dos que lhe enfiaram na modesta fronte uma
corôa gloriosa de poeta. Elle, se vivo fôra,
repugnaria acceitar o que a outrem pertencia de direito; pois, se os
elogios que não merecemos, nos deprimem, em vez de
exaltar-nos, o protesto da nossa consciencia não deve tardar
quando aquillo que nos dão representa o resultado de uma
espoliação alheia.
Reproduzindo a carta que ainda se encontra na Torre do Tombo, o sr.
Delfim Guimarães apurou, e deixou de manifesto, que o
suposto trovador tinha apenas a instrucção
rudimentar dos moços fidalgos do seu tempo.
Se «idiotas», na accepção
archaica de―«sem letras», eram, como sabemos, os
barões da edade media, que até disso mesmo se
ufanavam, a ponto de―«o condestavel Duguesclin nunca
[159]
ter querido sujeitar-se
á doutrinação
de um mestre», nem ainda na aurora da Renascença
pareceu melhor a cultura de certos homens, apesar de illustres.
Francisco Pizarro, logar-tenente de Sua Alteza, cavalleiro da ordem de
Santiago e conquistador do Perú, ouviu ler, deante do Grande
Concelho dos nobres de Hespanha, a minuta do decreto que o fazia senhor
de todas terras descobertas e por descobrir;―e, como, na
expressão de Heredia, não pudesse assignar o
protocollo,
«Fit sa croix,
déclarant ne savoir pas
écrire,
Mais d'un ton si autain que nul ne put en
rire.»
Á vista de tal exemplo, não ha extranhar, no
gentil-homem Christavam Falcão, nem as faltas de grammatica,
nem as de orthographia, patentes em sua carta a el-rei, conforme o
documento que ainda se conserva na Torre do Tombo... Mas essas faltas e
a rudeza geral do estilo são bastantes para que
não mais o tenhamos
na conta de um emulo do suave e melancholico Bernardim Ribeiro, autor
incontestavel das «Trovas de Chrisfal», depois de
tantos
argumentos sagazmente colhidos de uma profunda analyse psychologica e
linguistica.
Um dos mais fortes indicios (aliás não
aproveitado pelo sr. Delfim Guimarães) consiste na estrophe
77, das «Trovas», com o começo,
em prosa, do poema das «Saudades»:
Por ti me vi desterrada
em estas estranhas terras
de donde eu fui
criada,
e, por ti, antre estas serras,
[160]
em vida, são sepullada:
onde, a se
me perderem
a frol dos annos se vão;
ora julga se
é rezão
das minhas lagrimas serem
menos daquestas
que são!
Ha aqui uma clara allusão ao mesmo facto referido no trecho:
«Menina e moça me levaram de casa de meu pae
para longes terras; qual fosse então a causa daquella minha
levada, era pequena, não na soube.»
O sr. Delfim Guimarães deixa agora envolta em trevas a
personalidade de Christovam Falcão; mas o raio de luz que
deste se afasta, só serve de augmentar a gloria de Bernardim
Bibeiro, cujo peregrino talento até hoje scintillava
repartido pela auréola de dois nomes de poeta...
Silvio
de Almeida.
(Do jornal O Estado de S. Paulo, de
S. Paulo, Brasil, de 29 de março de 1909).
Divagações
II
Que extranha e mal debuxada figura não era a desse
Christovam Falcão, a quem, de principio, a gente ignara,
depois editores sem critica, e, por fim, os mesmos autorisados mestres,
attribuiram a paternidade das «Trovas de Crisfal»,
sem outro algum motivo que só este, aliás,
deveras pueril: conjugarem-se na palavra «Crisfal»
as duas primeiras syllabas de «Christovam» e de
«Falcão»!
Unicamente, pois, a sorte de seu «nome» lhe
grangeára o dilatado «renome» de quatro
seculos, cheios de uma admiração que tanto
(segundo o costume) tinha de enthusiastica, quanto mais era infundada e
gratuita.
Aos phantasistas nada, certo, importava que jamais fosse o ideal
trovador, nem uma vez, referido no volumoso in-folio do
«Cancioneiro» de «Rezende», em
cujo indice se
catalógam até as mediocridades pulhas daquelle
tempo. Nem cuidaram tampouco que a sua unica pretendida obra lyrica
(não sem causa deparada entre os papéis, que
foram, de Bernardim Ribeiro)―versava Aos phantasistas nada, certo,
importava que jamais fosse o ideal
trovador, nem uma vez, referido no volumoso in-folio do
«Cancioneiro» de «Rezende», em
cujo indice se
catalógam até as mediocridades pulhas daquelle
tempo. Nem cuidaram tampouco que a sua unica pretendida obra lyrica
(não sem causa deparada entre os papéis, que
foram, de Bernardim Ribeiro)―versava o mesmo assumpto predilecto deste
ultimo,
[162]
reflectia o mesmo gosto da
paisagem, era fundida nos moldes do mesmo estilo, vinha molhada pelas
lagrimas da mesma dorida commoção!
A todos que tenham olhos de ver, demonstra agora o sr. Delfim
Guimarães, com miudezas de analyse, que certos passos das
«Trovas», ou reproduzem heptasyllabos das pastoraes
ribeirescas, ou correspondem a phrases similares do romancete das
«Saudades».
Deixando, porém, de lado dezenas de significativas
coincidencias esparsas, como entre o verso da egloga 4.ª:
«Coitado,
não sei que diga,
e o da estrophe 21 de «Crisfal»:
«Mas, triste,
não sei que digo»;
eu apenas aqui darei o que não expoz o novél
escriptor portuguez, ou aquillo que elle só levemente
adduziu.
Já na carta prefacial das «Trovas», cujo
tom dagua chorosa nos suggere o «memento» do
«Cancioneiro», os versos:
«Cuidai quanto nos quisemos,
e não vos possa
mudar
dizer que vos podem dar
outrem que tenha mais que eu»,
perfeitamente combinam com a 1.ª egloga:
«Veio ahi outro pastor ter:
com o que prometteu ou deu
se
deixou delle vencer»,
e com a «Menina e moça»:
[163] ―«...succedeu, no castello, um filho de um cavalleiro muito
valído e rico nesta terra, que por meio de vizinhos desejou
Aonia por mulher»;
―«...bem lhe pareceu que se não descontentaria
Aonia do esposo, porque era bem aposto cavalleiro e dos bens do mundo
abastado».
Note-se, mais, que a locução―«dos bens
do mundo abastado», tambem inserta na 2.ª bucolica,
reapparece na 5.ª estrophe de «Crisfal»,
cujo introito (conforme com as eglogas 1.ª, 2.ª e
5.ª) faz das «selvas junto do mar» o
delicioso theatro dos amores dos dois zagaes.
A descripção desse local (de Sintra e de seu Val
de Lobos), apenas esboçada no começo das
«Trovas», melhor se delineia da estrophe 55 em
deante:
«Vão alli grandes
montanhas
de alguns valles
abertas,
todas de soutos cubertas,
aos naturaes extranhas,
mas
á saudade certas.
Cuberta era a
fonte
de tam fresco arvoredo,
que não sei como o conte,
muito quieto e mui quedo,
por ser antre monte e monte.
Ao pé de um castanheiro
me
pus, triste, assentado,
ouvindo o tom de um ribeiro.
Meus olhos e eu
passámos
alli a noite em amores.
Naqueste tempo corrompe
a ave que chamam
leal
o silencio do seu mal,
que é quando a alva rompe
e ao
dia faz signal».
[164]
Depois disso, abram o livro da «Menina e
moça», e façam-me o favor de ler:
«Neste «monte mais alto de todos» (que eu
vim buscar pela suavidade de outros que nelle achei) passava eu a minha
vida como podia; ora em me ir «pelos fundos valles que os
cingem dearredor», ora em me pôr do mais alto
delles olhar a terra como ia acabar ao mar; e depois o mar como se
estendia logo após ella, pera acabar onde ninguem o
visse».
―«E ainda bem não foi alto dia, quando eu (parece
que acinte) determinei ir-me pera o pé deste monte,
«que d'arvoredos grandes e verdes ervas e deleitosas
sombras» é cheio,
«por onde corre um pequeno ribeiro» de agua de todo
o anno, que nas noites caladas, o rogido delle faz no mais alto deste
monte um «saudoso tom, que muitas vezes me tolhe o
sono».
―«Não tardou muito que, estando eu assim
cuidando, sobre um verde ramo que por cima da agua se estendia,
«veio pousar um rouxinol».
Para completar a symetria e a belleza idyllica da pintura, nem faltou a
esse quadro o vultinho animado da mesma «ave leal»
de que nos. falavam as «Trovas».
Quanto ao par apaixonado, a referencia da 2.ª estrophe de
«Crisfal»:
«Sendo de pouca edade,
não se ver tanto sentiam
que o dia que se não viam,
se via na saudade
o que se ambos
queriam».
ligada á da 77:
«a frol dos annos se
vão»,
[165]e á da
84:
«Quando vos dei a vontade,
inda vós
ereis menina,
e eu de pouca edade»,
em nada discrepa da do capitulo 18 das «Saudades»
de Bernardim:
―«...a senhora Aonia, que ainda então era
donzella d'antre treze ou quatorze annos...»;
―«...a barba um pouco espessa e um pouco crescida, que a
elle traz, parece que é aquella a primeira
ainda...»
Em relação ao poeta, a 2.ª egloga
positivamente declara que contava os seus vinte e um de edade quando se
fez «servidor» de Aonia.
Mas dos parentes desta a interesseira má vontade, que
«Crisfal» vehemente assignala, assentou de lhe
curar o coração doente de mulher pelo processo
sedativo de um apartamento para «longes terras»
(expressão egual da
estrophe 7.ª e do 1.º capitulo da «Menina e
Moça»).
Ainda na 2.ª egloga, Bernardim, que com os italianos aprendera
o reavidado uso das allegorias de Vergilio, se manifesta como um pastor
nascido «antre Tejo e Odiana»; e muito é
para notar que nas «Trovas» tambem exista o mesmo
verso (6.º da 30.ª estrophe).
Attingido o pegureiro (na 2.ª bucolica) do encantamento de
amor,
«logo então
começou
seu gado a
emagrecer:
nunca mais delle curou.»
[166]
E «Crisfal», outrosim
(como réza a
5.ª
estrophe),
«...por curar da
paixão,
não curava
do seu gado».
O mesmo pensamento se exprimiu, pois, aqui, sómente com tal
ou qual superioridade artistica, que não é a
injusta superioridade de Christovam Falcão sobre Bernardim
Ribeiro, senão antes a deste sobre si proprio, no
progressivo burilamento da fórma impeccavel.―Mas o artista,
como que apostado em exceder-se cada vez mais, só achou a
sua melhor expressão
esthetica quando depois insistiu, na estrophe 22:
«descuido matou meu gado,
cuidado matou a mim».
A antithese (que tira de duas idéas oppostas a
scintillação do choque de duas pedras)
constitue quasi sempre o ultimo resultado de uma longa
elaboração mental.
Ha, na melancholia das «Saudades», um topico onde o
seu autor diz que, já de affeito ás dores,
parecia viver nellas. E tal conceito assume, na 10.ª estrophe
das «Trovas», uma
formulação mais abstracta e geral:
«O longo uso dos danos
se converte em natureza».
A hypothese de «Crisfal» ser Christovam
Falcão exigiria, portanto, que delle fosse, tambem, um
simples reflector o nosso, aliás original, Bernardim
Ribeiro; ou isso, ou, então, plagiario o outro...
[167]
Gemeos intellectuaes, e ainda irmãos no infortunio de seus
affectos, nunca se houvera visto, sequer em dois relogios, uma
tão completa concordancia!
Mas, dentre o suffocante accumulo de provas contrarias, uma, sobretudo,
victoriosamente resalta da egloga «Alejo» de
Sá de Miranda, o «philosopho» amigo e
confidente do
«ternissimo» Bernardim Ribeiro.
Alli diz o Miranda, disfarçado sob o cryptonymo de
«Antonio»:
«Vine por Ribero ver,
como otras vezes solia.»
Pois bem: Esse mesmo «Antonio» apparece na estrophe
32 de «Crisfal», que delle assevera:
«Aqueste é o
pastor
que aqui vêo
buscar-me.»
De semelhante parallelismo não ha concluir senão
que «Ribero» e
«Crisfal» representam um só e mesmo
«pastor», o que vale dizer
«poeta», na linguagem allegorica do bucolismo.
Demais:
Os versos que se acham em «Alejo»:
«Io sonava que me via
entre unas cerradas
breñas;
de una parte i de otra peñas,
do nunca el
sol descobria»,
traduzem no castelhano os da estrophe 7.ª das
«Trovas»:
«esconderam-me antre serras,
onde o sol nunca era
visto,»
[168]
Ora, se (a paginas 188 de sua obra refundida sobre Sá de
Miranda) reconhece Theophilo Braga, como todos, em
«Alejo», uma segunda figura de Bernardim,
deverá reconhecer ainda que «Crisfal»,
sendo «Alejo»,
é Bernardim tambem.
A gloria do sr. Delfim Guimarães foi de haver apanhado a
verdade, que tão fóra andava da corrente unanime
do parecer dos mestres.
Mas, já das muitas adhesões que elle conquistou,
licito me seja destacar o voto preponderante da senhora dona Carolina
Michaëlis de Vasconcellos,
[12]
como primeira autoridade―que
ella o é―da moderna philologia portugueza.
Tambem, no Brasil, Sylvio Romero entende que estão
reivindicados, de uma vez, os direitos de Bernardim Ribeiro
«a essa bella parte da sua obra que a lenda lhe andava a
tirar estupidamente»...
Silvio
de Almeida.
(Do jornal O Estado de S. Paulo, de
S. Paulo, Brasil de 5 de Abril de 1909).
Indice
Theóphilo Braga e a lenda do Crisfal
|
|
|
Pag. |
I. |
Razão de
ser d'este
livro |
|
5 |
II. |
O snr. dr.
Theóphilo Braga descobrindo a verdade, e
procurando
enterrá-la |
|
29 |
III. |
Anotações
á carta que nos dirigiu
o snr. dr. Theóphilo
Braga |
|
37 |
IV. |
A
comunicação do presidente da Academia das
Sciencias de
Portugal |
|
59 |
V. |
O artigo
«Movimento
litterário» |
|
63 |
VI. |
Uma patranha
genealógica |
|
97 |
VII. |
O criptónimo
«Fileno» |
|
99 |
VIII. |
In terminis |
|
103 |
Apreciações
da imprensa ao
livro:
«Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal)»
Do jornal |
«O
Mundo», de Lisboa |
|
107 |
» |
» |
«O
Seculo», »
» |
|
109 |
» |
» |
«Diario
de
Noticias», de Lisboa,―artigo do snr. dr.
Candido
de
Figueiredo |
|
111 |
[174]
» |
» |
«Diario
Illustrado», de Lisboa,―artigos do snr.
Hemetério
Arantes |
113 e 125 |
» |
» |
«A
Mala da
Europa», de
Lisboa |
|
121 |
» |
» |
«A
Lucta,»
de Lisboa,―artigo do snr. Albino Forjaz de
Sampayo |
|
133 |
» |
» |
«O
Dia», de
Lisboa |
|
139 |
» |
» |
«O
Commercio de
Lima», de Ponte do Lima―artigo do snr. dr.
Antonio Ferreira |
|
143 |
» |
«Jornal
das
Colonias», de Lisboa,―artigo de A.
B. |
|
147 |
» |
jornal «O
Primeiro de
Janeiro», do
Porto» |
|
149 |
» |
«Jornal
de
Noticias», do
Porto |
|
151 |
» |
jornal «O
Estado de S.
Paulo», de S. Paulo, Brasil,―artigos do snr.
Sílvio de
Almeida |
|
155 |
Notas:
[1] O
normando
é
nosso.
[2] Este
ponto
de
admiração pertence
exclusivamente ao snr. dr. Theóphilo Braga.
[3] T.
Braga.―
Obras de Christovam
Falcão, Porto, 1871―pag. 4.
[4] Bernardim
Ribeiro (O Poeta
Crisfal), pag. 180.
[5] Torre
do Tombo―Gaveta 20―maço 5―n.º
10.
[6] Bernardim
Ribeiro e o Bucolismo, pag. 63-64.
[7] Bernardim
Ribeiro e o
Bucolismo, pag. 19.
[8] Bernardim
Ribeiro e o
Bucolismo, pag. 19.
[9] Carta
do snr. Jordão de Freitas no jornal
«O Dia» em 2 de janeiro de 1909.
[10]
Conferencia
de 8 de Junho de 1725 pelo Conde da Ericeira, na Colleçam
dos documentos e memorias da Academia Real da Historia Portugueza.
[11]
Aliás,
as glosas ao solau.
Nota de D.
G.
[12]
Reproduzindo integralmente o artigo do nosso
ilustre
confrade brasileiro, cabe-nos o dever de declarar que a insigne
romanista, senhora D. Carolina Michaëlis, que nós
saibamos, ainda não manifestou a sua opinião.
Nota de D. G.
Lista de erros corrigidos
Aqui
encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
*
correcções feitas com base na errata do
próprio livro.
As figuras da
página 34
e da
página 49
estão ilegíveis, motivo pelo qual não
foram adicionadas. Fica no entanto a sua
indicação.