The Project Gutenberg EBook of Portugal e Brazil: emigração e colonisação, by Domingos Antonio Gomes Pércheiro This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Portugal e Brazil: emigração e colonisação Author: Domingos Antonio Gomes Pércheiro Release Date: February 2, 2009 [EBook #27964] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK PORTUGAL E BRAZIL *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by Cornell University Digital Collections)
PORTUGAL E BRAZIL
OBRAS DO MESMO AUCTOR | |
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QUESTÕES DO PARÁ, 1 vol: | 500 |
COISAS BRAZILEIRAS, opusculo | 200 |
COMMENDADOR E BARÃO, 1 vol: | 600 |
Elementos de Economia POLITICA(cartas a um estudante) traducção | 160 |
EM VIA DE PUBLICAÇÃO | |
OS AVENTUREIROS, drama fundado em epysodios da emigração. |
PORTUGAL E BRAZIL
EMIGRAÇÃO E COLONISAÇÃO
(CRITICA)
POR
D. A. GOMES PÉRCHEIRO
1878
TYP. LUSO-HESPANHOLA
35—Travessa do Cabral—35
LISBOA
Aos meus illudidos compatriotas que vêem no Brazil uma nova terra da promissão.
(Questões do Pará.)
[5]AO
Ill.mo e Ex.mo Sr.
JOSÉ MARIA DOS SANTOS
O PRINCIPAL COLONISADOR
DO
ALEMTEJO[6]
[7]Aos distinctos compatriotas
Dr. José Rodrigues de Mattos, Manuel Alves Ferreira, José Guilherme Koopk Correia Pinto, Manuel Gaspar de Carvalho, J. Teixeira Basto, Bernardo Antonio d'Oliveira Braga e Manuel Joaquim Pereira de Sá.[9]
A questão da emigração dos portuguezes para o Brazil, tem sido um labyrintho em que muitas intelligencias se têem perdido, sem que, infelizmente para Portugal, se tenha adiantado muito na descoberta do verdadeiro antidoto, que deve pôr termo ao mal, que parece querer definhar a patria; e com tudo suppõe-se que a ultima palavra já foi dita, e que desapparecerá por consequencia o nó gordio que prendia o fio d'esta questão transcendentissima; e a final as cousas estão no mesmo pé em que estavam.
Sem querermos por fórma alguma accusar de inhabeis os grandes talentos, que tem sido chamados a este campo vastissimo, por demasiado complexo, não podemos ainda assim deixar de sentir, que o assumpto tenha sido apenas tratado no campo da theoria, onde a habil dialectica de sapientes escriptores caduca á vista[10] dos mais pequeninos argumentos produzidos pela prática.
Mas a nossa questão, escrevendo sobre assumpto tão momentoso, não se cifra em demonstrar que os estudos baseados na theoria, em que vemos geralmente aconselhar aos governos o respeito pela liberdade do cidadão, mas á sombra da qual se commettem muitos abusos, são perniciosos ao paiz. Não que o nosso fim é outro. É, sem tentar romper o envoltorio do nosso espirito assaz humilde, e sem desejar ferir susceptibilidades, seguir caminho menos trilhado e menos escabroso, com o fim de achar a causa do mal e apontal-a aos verdadeiros medicos da nação, para que lhe appliquem um remedio energico e salutar.
Estudemos, pois, a questão debaixo do ponto de vista da pratica, e começemos por fazer as seguintes proposições:
—Quaes são as razões que induzem o portuguez a emigrar para o Brazil?
—Será a necessidade de obter os meios de subsistencia?
—E caso assim seja, não haverá em Portugal trabalho sufficiente para que o portuguez necessitado obtenha esses meios?
—Ou será a ambição que o leva a dar esse passo?
Quem responder ao primeiro quesito com a affirmativa do ultimo, parece-nos que terá respondido ao 2.º e ao 3.º; porque a quem tem precisão de trabalhar, não faltam em Portugal os meios necessarios á subsistencia; e esse trabalho é aqui mais bem remunerado do que no Brazil.
Passemos a demonstrar esta asserção.
Na actualidade o portuguez trabalhador ganha, em geral, nunca menos de 500 réis diarios. Em qualquer parte do paiz se sustenta com 250. Resta-lhe, por tanto, 250 réis. Calculemos os lucros obtidos em 10 annos, a[11] 300 dias uteis por cada um, e teremos em 3:000 dias, 750$000 réis.
O portuguez em eguaes condições, ganha no Brazil 2$000 réis fracos. Para sustentar-se precisa despender 1$500 réis. Resta-lhe a quarta parte do salario; isto é 500 réis diarios. Contrahiu, antes de sahir do paiz, para poder expatriar-se, uma divida de 200$000 réis. Chegado a terras brazileiras, não pôde logo encontrar trabalho; alem d'isso o clima inutilisára-o por algum tempo, se n'este comenos não vem a febre amarella, que sympathisa muito com os estrangeiros...
Para estas demoras precisa contrahir mais um emprestimo de 100$000 réis. Esta divida de 300$000 réis, moeda fraca, hade amortisal-a em 2 annos, que representam justamente 600 dias uteis de trabalho. Calculados estes a 500 réis, se souber economisar aquelle lucro, prefazem os 300$000 réis em questão. Restam-lhe por consequencia 8 annos, ou 2:400 dias uteis, que a 500 réis importam em 1:200$000 réis, ou 600$000 réis, moeda portugueza.
Differença contra o trabalhador do Brazil:—150$000 réis fortes!
Aos que nos queiram observar, dizendo que estipulamos um salario extraordinario—o de 500 réis—ao trabalhador de cá, diremos que á maior parte dos trabalhadores, contractados aqui para as roças do Brazil, se estipula um salario muitissimo inferior ao mencionado acima—o de 2$000 réis fracos,—se não falham as informações consulares, que temos á vista; salario que costumam dar no Brazil ao trabalhador livre, áquelle que vai ao acaso, e que não se deixa illudir pelos aliciadores. E mais adiante provaremos tambem, que ha contractos feitos em Portugal pelos trabalhadores engajados, nos quaes se estipula, como recompensa ao trabalho no Brazil, a magra importancia de 80, 100 e 120 réis fracos, diarios!...[12]
Mas fallemos agora do artista, sem tratarmos das suas despezas, que para esta classe de operarios, é sempre muito superior, e o mesmo acontece entre nós.
O artista, em geral, ganha no Brazil, de 3$000 a 5$000 réis, moeda fraca. Em Portugal variam entre 800, 1$000, 1$200, 1$500 e 2$000 réis, moeda forte!
Quem quizer que se dê agora ao incommodo de orçar as despezas de sustentação, e diga-nos depois se ha compensação possivel.
Diz um portuguez, que, como nós, examinou de perto o assumpto, que não conhecia no Brazil qualquer logar onde um homem, com pequena familia possa despender menos de um conto de réis por anno, tendo mesmo um viver de proletario: a razão é, accrescenta o nosso compatriota, que sendo o dinheiro barato, tudo o mais é caro, excepto os productos do paiz, como assucar, café, farinha de mandioca e carne, nos lugares de producção. Um par de botinas que em Portugal custa 2$000 réis, vende-se no Brazil por 14$000 réis; o feitio de umas calças, que em Portugal regula por 400 réis, no Brazil não se obtem por menos de 4$000 réis; uma duzia de ovos vende-se aqui por 160 réis, e lá custa 1$000 réis; uma visita do medico custa 4$000 réis, e diz elle que viu pagar por uma operação e curativo de oito dias 1:600$000 réis, sendo esta quantia exigida pelo cirurgião![1]
Se o preço dos salarios no Brazil e o custo da vida não compensa o sacrificio que o portuguez vae fazer, emigrando, o clima insupportavel dos tropicos deve desvanecer-lhe completamente as tentações ambiciosas de[13] ser rico n'um paiz onde o sol e a humidade inutilisa a saude do europeu.
Soccorramo-nos de opiniões mais authorisadas do que a nossa, e encaremos a questão do clima brazileiro pelos dois pontos de vista, o da pratica e o da theoria, para assim satisfazermos aos espiritos mais exigentes.
O pratico, aquelle que vio as cousas de perto, diz o seguinte:
Demorei-me bastante tempo no sul do imperio e tive occasião de fazer as seguintes exactas observações: o thermometro centigrado não sóbe no estio a mais de 35 graus, assim como não desce no inverno a menos de 5, acima de zero. Mas o que ha de notavel é a variedade da temperatura na mesma estação. De um momento para o outro o thermometro marca a differença de 6 graus. Na quadra mais fria eu observei dias de 25 e na mais quente a de 16 graus.
Para quem não possue uma natureza previligiada, estas grandes e rapidas variações são muito sensiveis, principalmente emquanto se não está aclimado. Eu usei sempre na mesma quadra roupa de duas estações, que alternava segundo as alterações que se davam na atmosphera; e quem não tiver esta prevenção ha de forçosamente soffrer.[2]
Não nos parece que o trabalhador possa ter d'estas prevenções, que custariam dez vezes mais o salario porque elle contracta o serviço que vae prestar no Brazil, admittindo ainda que ao trabalhador seja permittido usar de resguardos na lavoura.
O homem de sciencia, que não é extranho ao viver dos tropicos, porque reside no Brazil, e d'ali nos alumia com a vastissima luz da sua profunda intelligencia, diz o seguinte a respeito do clima brasileiro:
Bucener, Lind, Hunter, Zimmermam, etc, pelos resultados[14] das suas experiencias e observações, opinam quasi unanimes em que nos paizes situados entre os tropicos, ou seja na America, Africa, Asia, com poucas excepções, as raças que habitam a Europa, quando passam a viver entre os tropicos, declinam physica e moralmente na razão da maior latitude das suas naturalidades, para a menor latitude da localidade tropical. A calorificação do animal europeu perde quatro graus na temperatura do sangue; a respiração é mais frequente, as pulsações do coração mais rapidas, 15 systoles a 20 por minuto em todas as idades; o sangue, e as secreções e excreções alteram-se nas qualidades e propriedades, bem como a fibra alimentar, o figado e o apparelho gastico funccionam mal; a pelle fica laxa, excitada; permanentemente depauperam-se as forças organicas pela excessiva transpiração, que conduz ao estado de enfraquecimento geral de funcções animaes; effeitos causativos da fraqueza organica.
Os diversos estados de accumulações electricas na atmosphera, as mudanças sensiveis da temperatura em um mesmo dia, a variedade dos ventos, as tempestades e chuvas, precedidas ou succedidas a um grau de calor ou vento fresco, occasionam e produzem as diversidades de molestias de pulmão, das vias gasticas, da pelle, das mucosas, das febres intermittentes e typhoides, das molestias ephemeras e de systema nervoso: sempre ameaçando a vida nos diversos estados mais ou menos agudos, mais ou menos chronicos. Os europeus que conseguem acostumar-se a estas alternativas estranhas á sua economia, nem por isso conseguem readquirir a mesma natureza organica e vital, como no paiz d'onde procederam; e transmittem ás suas gerações um germem enfraquecido, d'onde resulta a progressiva degeneração dos paes a filhos, que bem depressa conduzirá até á extincção da especie.[3]
[15]N'esta meia duzia de linhas do distincto escriptor, firmadas nos estudos dos naturalistas citados e na sua propria observação vemos nós um grande antidoto contra a febre da emigração para o Brazil, se nós e o nosso compatriota Torres, ao trascrevel-as, tivessemos a felicidade de as ver lidas por aquelles a quem as destinamos.
Esperemos comtudo pelo futuro.
Comparemos agora os effeitos terriveis do clima, a mortalidade dos dois paizes Portugal e Brazil.
A mortalidade em Portugal é pouco mais ou menos de 2,59 por cento[4]; em quanto que no imperio americano, com respeito aos emigrados portuguezes, é actualmente impossivel dizer se está de 90 a 99 por cento, se tomarmos na devida consideração a estatistica do primeiro semestre de 1876, que só no Rio de Janeiro nos mostra que o numero de obitos subiu a 2:600, sendo o numero de fallecidos da febre amarella, de 1877![5]
Ha quem diga que se se podesse fazer igual estatistica com respeito aos colonos residentes no sertão, reconhecer-se-ia que 90 por cento dos portuguezes que emigram para aquellas regiões não chegariam para satisfazer a contribuição exegida pelo terrivel flagello!
Mas comparemos a entrada dos portuguezes em todo o anno de 1876, com o numero dos fallecidos.
Diz o consul no relatorio indicado, que o numero de portuguezes entrados no porto do Rio de Janeiro foi, n'aquelle anno, de 8:523. A media é, por tanto, de 4:311,5.
[16]Assim, pois, se o numero dos fallecidos, em um semestre, é de 2:600, veremos que restam apenas 1:711 colonos, ou 3:422, por cada anno.
É horrivel!
E note-se que este resultado apparece logo immediatamente á chegada dos emigrados; e os que morrem depois, ou os que ficam inutilisados?!...
O nosso illustre compatriota doutor José Rodrigues de Mattos, medico pela universidade de Coimbra, residente na cidade do Rio de Janeiro, respondendo á carta do sr. Alexandre Herculano, dirigida em dezembro de 1873 á Sociedade real da agricultura em Lisboa, observa o seguinte, em sua nota n.º 5, a respeito do assumpto importantissimo da mortalidade no Rio de Janeiro:
«Pois que fallei de miserias e o sr. Alexandre Herculano só encara a emigração pelo prisma das grandezas, apresentarei outros factos, que não se encontram nos livros sobre colonisação portugueza. A população da capital do Rio de Janeiro, pela estatistica official de 1873, conta 228:743 habitantes incluidos 78:583 estrangeiros, dos quaes 53:213 são portuguezes. Na hypothese menos favoravel ao meu calculo, todos estes estrangeiros chegaram ao Rio de Janeiro entre as edades de 10 annos até aos 78 annos. Pela tabua da mortalidade de Duparcieux, desde o nascimento até á idade de 10 annos, e desde os 78 até aos 94, morre um numero de individuos igual ao numero dos obitos comprehendidos desde a edade dos 10 até aos 78. A grande maioria da emigração compõe-se de individuos chegados na edade de 16 a 30 annos; em que o termo medio de vida provavel é o maior. A mortalidade da população pelas estatisticas dos 3 ultimos annos revelava uma media superior a 10:000 obitos. A população de Lisboa pelo menos é igual, se não maior de 228:743: a media da mortalidade em Lisboa é de 5:400 obitos por anno. Comparadas as populações das duas cidades, as[17] suas mortalidades, as respectivas populações dos subditos naturaes dos dois paizes e a dos estrangeiros habitadores desde os 10 annos por diante, o resultado é o seguinte na cidade de Lisboa, sobre 53:213 portuguezes desde a idade dos 10 até aos 78 annos, morrem cada anno 1:255 individuos: sobre igual numero de portuguezes entre as mesmas idades, morrem na cidade do Rio de Janeiro 3:125; ou melhor: a mortalidade dos portuguezes no Rio de Janeiro é maior de 149 por cento da mortalidade de Lisboa. Estes calculos podem ficar subordinados em relação ao numero dos habitantes da capital de Lisboa, que se diz maior de 228:743 habitantes; bem como ao desconto dos estrangeiros domiciliados; numero que está estimado em diminutisima parcella. Não pode julgar-se estranha a maior mortalidade, quando em Lisboa se conta apenas 129 medicos e cirurgiões e 82 pharmacias; em quanto que no Rio de Janeiro existem 418 medicos e 344 pharmaceuticos domiciliados. No bienio de 1872 a 1873 trataram-se 5:000 doentes no hospital da sociedade Portugueza de Beneficencia; a Caixa de seccorros de D. Pedro V tratou de molestias e deu esmolas a 18:530 portuguezes; e nos hospitaes, das ordens Terceiras e da Misericordia ha 400 leitos occupados constantemente por enfermos portuguezes; calcula-se que aproximadamente regula por 16:000 infilizes que annualmente povoam os hospitaes de caridade na população riquissima de pouco mais de 50:000 emigrados. O hospital de S. José em Lisboa recebe apenas 12:000 de uma população calculada em 300:000 almas.»
Mas continuemos a examinar outros dados que temos á vista.
A mortalidade de Lisboa, segundo a estatistica publicada no Diario do Governo n.º 285, de 1872, é de 30,4 individuos para cada 1:000, um pouco mais do que a da cidade de Londres, que desce a 27, e um[18] pouco menos do que a de Roma, que sóbe a 35. No Cabo da Boa Esperança e na Serra Leoa, a mortalidade é de 200 individuos para cada 1:000, e a da população portugueza residente no Rio de Janeiro, segundo o relatorio do ministro do commercio, agricultura e obras publicas foi, em 1870, de 270 para 1:000!!![6]
O ponto de Portugal onde a mortalidade é maior, chegando a dar ao cemiterio uma precentagem de 40,4 individuos para cada 1:000, é o districto de Beja; mas o termo medio é o que já deixamos mencionado, isto é, 2,59 para 100.[7]
No desenvolvimento da critica que mais adiante fazemos a um livro publicado ha pouco[8], verão os leitores que não está dita ainda a ultima palavra sobre a mortalidade de portuguezes no Rio de Janeiro. Alli demonstraremos com as estatisticas das sociedades portuguezas beneficentes, que não foi arrojada a nossa proposição quando dissemos que a mortalidade na colonia poderia elevar-se até aos 90 casos para cada 100 individuos.
O portuguez que emigra não vê isto; só pensa que ao fim de alguns annos hade vir rico do Brazil, e isso lhe basta; porque não ha quem lhe diga que, de cada milhar, vem de lá um remediado, verdade seja que vergando ao peso das molestias adequeridas em tão insalubre paiz.
Este mal é já velho, e não vemos que os remedios vulgares o possam debellar; por que para nós, é ponto de fé que a ambição só poderia ter o curativo que entre nós nunca pensaram em applicar aos ambiciosos, a escolla.[19]
A ambição, inerente a todos os homens, o nosso genio naturalmente aventureiro, amante do desconhecido, que ainda assim não faz em nós esquecer o santo amor do trabalho, nos cega a tal ponto, e esta triste verdade vem já de seculos, que não nos deixa ver os desastres dos nossos antepassados, que igual motivo acarretára para longe da patria e da familia, onde, n'um momento, a terra preferida se transformava em abysmo para os tragar.
E deixavam os que lhe sobreviviam, em tão remotas epocas, de cair no mesmo erro? Não, porque lá estavam os mesmos interessados (sempre houve engajadores) a apontar aos ambiciosos as minas inesgotaveis do Brazil!
Pois qual seria o portuguez capaz de ficar indiciso, á vista da descripção dos brilhantes da mais fina agua, do oiro em pó, dos aljofares, dos coraes, das perolas, das esmeraldas e das amethystas, que os apologistas diziam andar aos pontapés n'este paiz de fadas? Quem seria capaz de resistir ao aroma das poeticas flores, da poesia das frondosas arvores, por entre as quaes se interlaçam os mais exquisitos cipós, aroma que aos incautos, parecia atravessar esse immenso lago de milhares de legoas, para chegar até elles? Quem não ficaria enthusiasmado com a descripção, não menos patetica, das nuvens de milhares de passarinhos com suas pennas de mil côres, que segundo os poetas adejam por cima d'esse bosque immenso que esconde os pantanos venenosos, a cascavel e a sucuriuba? Quem não escutaria de bom grado as descripções fantasticas d'esses rios gigantes e dos igarapés, das immensas cordilheiras e dos valles, das grutas mysteriosas e das cidades encantadas d'este paraizo terreal?[20]
Quem mostrava aos nossos antepassados o reverso da medalha? a poesia das flores, das mattas virgens, das esmeraldas e dos rubis transformada na poesia do tumulo, que algumas vezes era o oceano e outras o estomago do antropophago?!
Dizem antigos escriptores, que os indios brazileiros eram mais difficeis de domar que os dos outros pontos da America meridional, sujeitos aos castelhanos; e que, primeiro que fundassemos ali povoações, perdemos muitas vidas e muito sangue. As viagens eram muito difficeis. Muitos galeões naufragavam antes de chegarem ao seu termo.
Mas que importavam estas difficuldades escondidas a quem sonhava com o El-Dourado?
Ora, a nossa questão é que as phantasias de hoje são as phantasias d'outr'ora; e que, para desfazel-as no espirito dos nossos illudidos compatriotas, não bastam os estudos theoricos de qualquer commissão de emigração. Faça-se mais. Combata-se o mal da ambição, pela escola, offerecendo aos ambiciosos as riquezas, ainda por explorar, dos nossos vastos dominios do continente. Nós que somos inimigo dos emprestimos para a consolidação da nossa divida publica, porque não vemos que ella se consolide, aprovariamos um emprestimo que tivesse por fim comprar os terrenos quasi virgens do Alemtejo, e que, depois de divididos em courellas, deveriam ser aforados aos trabalhadores, a exemplo do que está constantemente praticando o primeiro lavrador d'este paiz, o sr. José Maria dos Santos, na margem sul do Tejo, e em outros pontos d'aquela uberrima provincia; não esquecendo a vastissima herdade da Capella, no concelho do Redondo, dividida em courellas por aquele lavrador aos habitantes d'esta villa, herdade que hoje está completamente transformada em riquissimas e ao mesmo tempo pitorescas vinhaterias.
Apregoam-se os males da febre amarella, e especialmente[21] os maus tratos que os indigenas do Brazil infligem aos emigrados portuguezes; e que resultado se tira do pregão?
Aqui ha tempo, quando a imprensa portugueza se levantava indignada contra os morticinios do Pará, navios continuavam a ir cheios de emigrados para aquellas paragens! Esses mesmos navios conduziam para a Europa ou para a Africa os repatriados, que não podiam supportar os disturbios dos paraenses!!!
Os portuguezes que em 1835 e 1848, poderam, a muito custo, escapar ao punhal dos cabanos, regressavam, pouco tempo depois, ás provincias do Pará e Pernambuco, theatros onde se representaram tão horriveis dramas!!!
E que haviam elles de fazer? Quem os incitava aqui ao trabalho que traz a independencia?
Os terrenos incultos estavam, ao tempo, na mão dos morgados. Extinctos estes, a missão dos governos não estava finda: era preciso que esses governos lançassem mão dos terrenos, reunil-os aos baldios e offerecel-os aos ambiciosos. Assim protegeria a agricultura, a nosso ver, a unica fonte de onde jorra a prosperidade dos paizes predestinados pela natureza a grandes emporios agricolas.
Os portuguezes emigravam então, como emigram hoje, porque não tem havido ninguem que os attraia seriamente para as riquezas do nosso solo.
Mas ainda é tempo. Que os males passados sirvam de exemplo para evitar os males futuros, e emquanto se não providenceia como é de urgente necessidade, prohiba-se a emigração para o Brazil, quando alli haja a febre amarella.
Dizemos isto sem medo que nos alcunhem de anti-liberaes; e áquelles que nos replicarem que atacamos os direitos do cidadão, responderemos, que para a maior parte dos cidadãos que emigram comprehenderem bem[22] os seus deveres, precisam de ir para a escolla. Queremos dizer com isto que em Portugal se descura muito da escolla, o melhor antidoto contra a febre da emigração.
Se a instrucção do povo é o remedio infallivel que preferimos applicar ao mal da emigração, não é menos certo que esse remedio só pode curar com lentidão, o que desejariamos fosse curado rapidamente.
Attrahir o trabalhador a novas fontes de riqueza no próprio paiz, era já um cauterio cujos effeitos não são tão lentos como os da escolla. Referimo-n'os ás colonias agricolas no sul de Portugal, Alemtejo e Algarve. Quem fundará essas colonias? O capital, desde que o capital encontre garantia no governo, garantia que se traduza em isenção de contribuições para as colonias que se estabeleçam com caracter de protecção ao trabalhador, que é ao mesmo tempo garantia para a agricultura do paiz e, por consequencia, para o proprio capital empatado.
É assumpto vastissimo, o da fundação das colonias no Alemtejo, e as luzes de que dispomos não são sufficientes para dizermos o que baste para o desenlace d'uma questão demasiado complexa. Com tudo, parece-nos que aquelles que nestes ultimos tempos tem querido dar impulso á agricultura na provincia mais vasta e mais rica que possuimos, desconhecem um pouco a materia.
Nós quizeramos vêr retrogradar os nossos habilissimos estadistas de hoje, até aos tempos primitivos da monarchia, em que se fundaram essas povoações que para ahi vemos medrar, cujos alicerces foram devidos unica e exclusivamente ao trabalho agricola de colonos nacionaes e estrangeiros—estes da região do norte; porque[23] nos tempos retrogrados, não se tinha em menos conta o cruzamento das vigorosissimas raças do norte da Europa com as semi-indulentes do meio dia: prova de que á testa dos negocios publicos não estavam uns certos miopes da actualidade, que entendem beneficiar o paiz colonisando o Alemtejo com familias italianas.
Mas que se fazia então?
Fazia-se o que se não faz hoje. Então como na actualidade, os governos do estado precisavam de dinheiro. Então julgavam, e julgavam bem, que a riqueza brotava do solo; e o solo era explorado para produzir essa riqueza que nós vimos empregar nas emprezas arrojadissimas, que fizeram grande este paiz que nascera pequenissimo.
Hoje que a terra é a mesma—ainda immensamente rica;—pede-se ao visinho uma esmola, outra e outra (até fechar-nos a porta, desenlace que sempre deve esperar quem muito pede e muito gasta), para fazer face ás despezas do estado; em logar de nos prepararmos previamente para essas despezas, descobrindo com a enchada, no centro da provida terra como os nossos antepassados, as minas que alli deixa intactas a nossa imprevidencia.
É que é mais facil pedir emprestado!
Os que pedem emprestado podem saber muito de economia politica; porem não sabem ser bons lavradores—dos que semeam para colher, dos que amanhando a terra, dão que fazer a muitos braços, tornando-os independentes do visinho, que é avaro com os taes emprestimos.
Mas se o nosso economista, estuda, estuda no gabinete; depois chega-lhe á porta uma alluvião de amigos, que o elevára á proeminencia... de estar encerrado no tal gabinete; acorda-o do lethargo que podia salvar-nos; mostra-lhe o estomago vasio; e o economista, que póde muito bem ser um touro, não tem mais remedio[24] senão ceder... porque a alluvião de amigos representa a giboia collosal da nossa politica!
Que fazer?
Pedir emprestado ao visinho; senão sujeita-se a ser engulido!
E não digam que os nossos economistas não são mais previdentes do que o inexperiente viajante que, de mãos vasias, no meio da floresta, não pôde, para salvar-se, atirar com a posta ao reptil!...
Haverá alguem que possa fazer de Hercules; que empunhe a massa e esmague a cabeça da serpente que para ahi se arrasta em volta do manso bezerro—o povo?
Se ha, que venha e... faça um emprestimo, mas um emprestimo colossal. Com o dinheiro emprestado fundará colonias no Alemtejo e no Algarve; porém colonias perfeitamente montadas, convidando-se para as compor, não só as familias d'aquellas regiões, mas as das provincias do norte de Portugal, que costumam sair para o Brazil; e se lhe apparecerem pelo gabinete os taes senhores giboias de estomago elastico, metta-lhes uma enchada na mão, e ensine-lhes o caminho do campo em desbravamento, onde se converterão, de simples bichos, em optimos trabalhadores e uteis cidadãos.
Não haverá para ahi quem se convença, que isto de estar continuadamente a pedir dinheiro emprestado para pagar emprestimos é um erro economico?
Contraia-se, pois, um emprestimo para o fim indicado, que os lucros hão de chegar, não só para satisfazer essa divida, como as já contrahidas e que jámais poderão ser pagas pelo systema rotineiro; e até mesmo cremos que d'esses lucros sobejará para supprir algumas faltas dos golotões reptis... se por desventura nossa ainda os houver.
Terminaremos estas observações dizendo, que conhecemos alguns cavalheiros, lavradores no Alemtejo, que,[25] tendo comprado algumas herdades lhes offereciam hoje, tres ou quatro annos depois do amanho, 200 e 300 por cento de lucro!
Nós estamos convencidos que a isto se deve chamar lucro, se, como acontece a muitos pontos da lei social, não está tambem invertido este principio, sobre que assenta a lei economica.
Venha um governo, que, proseguindo no caminho aberto pelo rei Diniz, se não envergonhe do cognome de—lavrador—com que a historia glorificára aquelle grande portuguez, mais amigo do seu paiz, na epocha do obscurantismo, do que o são todos os economistas presentes, que empunham o facho, d'onde dizem que brota a luz, mas que infelizmente nos encaminha para o abysmo da destruição.
E haverá governo que queira achincalhar-se com o cognome de—lavrador?!
Não será mais bonito appelidar-se antes banqueiro, accionista, director de qualquer cousa, jornalista, litterato, e até mesmo... pastelleiro?!
Escolham, escolham... mas vejam que da escolha depende o futuro da patria.
As colonias não podiam prosperar, no nosso humilde entender, quando estivessem montadas, se o governo não lançasse mão de um meio energico—e liberal humanitario ao mesmo tempo, contra a emigração clandestina, meio que se nos afigura ser o mais prompto e decisivo para a cura do mal que definha as forças vitaes do paiz—a falta de braços: referimo-nos á inspeção da emigração, que pode, em parte, substituir a escolla, e auxiliar, desde já, e muito poderosamente, a pequena agricultura que luta com a falta de braços que se escoam para o Brazil.[26]
A inspecção da emigração não é cousa nova. Está estabelecida nos paizes mais adiantados e se o Brazil a não estabeleceu, como já fez a America do norte, é porque n'aquelle paiz como em Portugal não se estuda a serio estes assumptos economicos.
Á America do norte não comvem o engajamento forçado, isto é, a illusão. Á America do norte comvem que a introducção dos colonos seja feita com a maxima liberdade, por que nos processos liberaes do engajamento está a riqueza dos grandes nucleos da emigração e por consequencia do paiz que acolhe os emigrantes.
O projecto de lei apresentado na camara dos representantes dos Estados Unidos por mr. Conger, estabelece alem de outras medidas favoraveis aos emigrantes que procuram as terras do norte da America, que nos portos de partida os consules americanos deverão passar uma especie de inspecção aos emigrantes; que ao desembarque d'estes as queixas serão julgadas summariamente pelos commissarios dos Estados Unidos; estes commissarios serão nomeados pelo presidente dos Estados Unidos, de accordo com o senado, por um periodo de quatro annos; serão encarregados, debaixo da direcção do secretario do thesouro, da execução de todas as leis relativas á emigração, e authorisados a estabelecer regulamentos; o secretario do thesouro nomeará, um escrivão bem como addidos inspectores e outros agentes necessarios; os proprietarios, agentes ou capitães de navios que conduzem emigrantes aos Estados Unidos pagarão no momento do desembarque, um dollar por pessoa adulta, applicavel aos soccorros em caso de doença, ao aluguer ou construcção de embarcadouros, sempre em beneficio dos emigrantes; nos portos de Liverpool, Hamburgo, Breme e outros, onde annualmente se embarca mais de 40:000 emigrantes, será estabelecido um agente com commissão especial de inspeccionar os navios antes de partirem, examinar se a lei é executada, de dar[27] as necesarias informações aos emigrantes, etc; nos outros portos onde a emigração não exceda annualmente aquelle numero o consul substituirá o agente da emigração mediante um supplemento de 1:000 dollars por anno; quatro inspectores, fallando allemão, francez e sueco e outras linguas serão addidos ao porto de New-York, e um em cada um dos portos onde chegam os emigrantes em quantidade consideravel; a estes agentes cumpre acompanhar os empregados das alfandegas á chegada de cada navio commerciante, examinal-os, receber as queixas dos emigrantes, e quando as houver fazer um relatorio ao collector da alfandega e ao chefe do departamento da emigração; o superintendente intentará um processo por perdas e damnos em favor dos emigrantes; os commissarios nos Estados Unidos julgarão summariamente todos os casos de mau tratamento a bordo, insufficiencia ou má qualidade de alimentos, perjuizos na bagagem, roubos, fraudes, seja nos hoteis, no cambio da moeda, atraso nos caminhos de ferro, etc, etc; poderão condemnar o culpado a 100 dollars de multa por cada uma das culpas e tambem poderão reclamar a sua prisão até que o caso seja julgado; os deveres dos superintendentes, debaixo da direcção dos commissarios, serão prover a que os emigrantes sejam bem recebidos ao desembarque, de alugar para elles os necessarios terrenos, e mandar fazer as construcções indispensaveis, de cuidar nas suas bagagens, de tomar os seus nomes, idade, occupação e destino, de os proteger contra as fraudes, procurando-lhes occupação, quando a desejem, de prover ás mais urgentes necessidades dos recemchegados, de lhes prestar todas as informações relativas ao meio mais prompto e mais economico de se transportarem aos seus destinos, de lhes fazer obter das companhias de transporte as mais vantajosas condições, e emfim de prevenir tudo para a commodidade e segurança dos colonos, etc., etc.; os[28] contractos passados no estrangeiro para o transporte dos emigrantes a um ponto qualquer dos Estados Unidos serão illegaes e nullos, não tendo sido previamente approvados pelo superintendente da emigração.
Mas se os paizes que recebem colonos precisam de inspectores que fiscalizem a emigração, aquelles de onde ella se escoa não precisa menos d'esses utilissimos agentes do governo. Assim o intendeu o conde de Thomar em 1860, quando representava Portugal no Brazil, nomeando um commissario, o dr. Antonio José Coelho Louzada, para formular um projecto de regulamento para a emigração; projecto que, uma vez convertido em lei do estado, devia ser de grande utilidade para o nosso paiz.
Referindo-se á creação dos logares de inspector, diz elle:
Que a nomeação dos inspectores especiaes da colonisação não é cousa nova. Na França e na Belgica, por onde se escoa uma grande massa de emigrantes europeus, ha os inspectores especiaes e sem elles eu não julgo que o governo portuguez possa ter nenhum conhecimento exacto da população que emigra, nem a certeza de que a sahida dos emigrantes se faz sem o emprego da seducção e do engano a que é tão frequentemente sujeita. As authoridades administrativas da localidade respectiva, ás quaes o art. 5.º, n.º 1 (da lei de 20 de julho de 1855), commetteu a fiscalisação d'este assumpto, não podia no meio de tão complicados encargos, como os que já tem pela legislação vigente, occupar-se detidamente de um negocio que para ser bem fiscalisado deverá começar de muito antes do emigrante embarcar, e somente acabar no acto da sua saida pela barra fóra. Como porem não seja para esperar que a deserção dos patrios lares vá, como até agora tem succedido, em grande progressão, e antes ao contrario d'isso eu tenha por infallivel que ella diminuirá com as providencias[29] que indico, entendi que os inspectores especiaes de colonisação não deveriam fazer parte de uma nova creação de empregados publicos, e que n'esse intuito procurando-se algum que estivesse menos sobrecarregado de trabalho ou inteiramente dispensado d'elle, possa á rigidez de caracter unir uma boa vontade para empregar-se em um serviço publico de tamanha importancia, como se reputa ser aquelle, que deverá ter por empreza não sómente desviar a seducção feita aos emigrantes, que precorrem paizes que não são possessões nossas, como o de ir explorando os meios mais efficazes a empregar, com o fim de fazer encaminhar uma semilhante tendencia para os dominios portuguezes d'alem-mar. Sem um similhante funccionario applicado a este ramo de serviço publico, nem a fiscalisação irá até aos ultimos momentos da partida do navio, nem as estatisticas do movimento emigratorio poderá obter fóros, se não de real, pelo menos de mui aproximado, por isso que todos os quadjuvantes que lhe são dados não podem occupar-se se não dos assumptos concernentes á sua especialidade, como são os capitães do porto, o delegado ou sub-delegado de saude e o empregado da alfandega, todos os quaes carecem de um centro de reunião para que possam marchar de accordo nas medidas a empregar.[9]
O projecto do regulamento, que era um complemento á doutrina do art. 12.º da lei do 20 de julho de 1855, e a que se refere a nota que acima reproduzimos, estabelece oito inspecções nos portos, de Lisboa, Porto, Vianna do Castello, Madeira, Ponta Delgada, Horta e Terceira com o encargo de superientender a emigração tanto dos portuguezes como dos estrangeiros que houverem de sair pelos portos acima indicados; estabelece[30] que o embarque de emigrantes em qualquer outro porto seja vedado; que os inspectores tomarão o logar das authoridades administrativas locaes no desempenho das obrigações consignadas na lei de 20 de julho de 1855; que os inspectores fiscalisem os passaportes dos emigrantes, etc. etc.
Mas foi prégar no deserto. Já são passados 17 annos de somnolencia incomprehensivel; e desde então para cá, que de milhares de braços tem perdido a nossa agricultura!
A commissão parlamentar nomeada ha annos para prover de remedio a tão grande mal, calculava que em 20 annos se perdiam 75 por cento dos portuguezes que emigram para o Brazil!
Reduzindo a metal o que este trabalho representa, diz a commissão, e dando 120$000 réis ao trabalho produzido por cada emigrado, annualmente, 34:000 emigrados, representando 2:400$000 réis cada um, em 20 annos fazem 81.600:000$000 réis.[10]
Foram igualmente baldados os estudos da commissão dos srs. deputados!
E tudo isto: estes milhares de contos, e, o que é mais, os milhares de vidas preciosas que vão perder-se no Brazil, seriam aproveitadas em beneficio do paiz que tanto d'elles carece.
Quando haverá um governo que trate seriamente de debellar o mal que nos prostra?
Ah! mas a liberdade! Deixemos aos proletarios a vontade livre, a liberdade de emigrar, que é uma garantia do cidadão!
Mas a esses que apregoam essa liberdade absurda respondem os grandes economistas, que não desrespeitam a liberdade, tal qual ella deve ser comprehendida pelos que dirigem os destinos das nações:
«O[31] livre arbitrio, diz o nosso doutissimo compatriota, o sr. Rodrigues de Mattos, só pode ser admissivel no homem sabio e no caso extremo, em que por violencia extranha tem de actuar e lhe faltam conceitos por melhores, do que a reprovação conscenciosamente justificada; mas ainda assim o homem sabio condemna sempre o livre arbitrio e prefere dizer: ignoro; obedeço; não imponho.—O radicalismo que se apregoa nas doutrinas da liberdade sem limites e da sciencia sem privilegio traduz-se no charlatanismo dos mais ardilosos; na traição dos hypocritas insuflados de odios; na corrupção dos poderes do estado; no amalgama dos erros com as verdades; nas superfetações do pedantismo encyclopedico. Concordando nas doutrinas do sr. Alexandre Herculano e na intelligencia do principio liberal e razoavel applicado na inspecção dos processos de emigração, lembro tambem á Sociedade Real de Agricultura o seguinte expediente. Todo o portuguez que pretenda emigrar e esteja no caso de ser reputado na classe ou ordem—Emigração socialmente legitima e economicamente boa, procederá a um exame, em que pelo menos mostre saber ler, escrever e contar, sommando e diminuindo; que saiba conscenciosamente a posição de Portugal e da America no mappa geographico, as suas historias pelo menos as mais modernas, e alguma cousa de climas, raças humanas, producções, industrias e seus valores comparativos e utilisaveis; se tem algumas noções dos deveres de pai, de marido, de filho, de irmão, do que significam as palavras «sou portuguez da Europa e não portuguez da America». Se a Sociedade Real de Agricultura poder conseguir a pratica d'esta doutrina de legitimidade de acção e de utilidade economica não só Portugal se enriquecerá, porque o numero de emigrados ficará reduzido de 12:000 a uns 200 até 300 emigrados, que honrarão no Brazil as tradições gloriosas dos seus antigos progenitores nos cinco continentes[32] da terra, como tambem fomentarão o commercio e as industrias das duas nações na Europa e na America. Homens, coisas, na America, serão talvez um elemento material destructivel por quem melhor o souber consumir para reproduzir-se em proveito total; menos os taes 3:000 contos de interesse por commissão e despezas de capitaes nos valores 108.000.000:000$000; commissão que nem ao menos chega para comprar opio e fazer dormir por 24 horas um paiz que desde dois seculos não passa do termo medio das 3.500:000 almas, quando poderia contar 10.000:000, só na peninsula, e ter aproveitado as suas melhores colonias, disputadas hoje por quantos aventureiros apparecem, como lobos contra cordeiros. Turbulentam mihi aquam fecisti.»
Discordamos um pouco da opinião do illustre escriptor, com respeito ás considerações que elle fez a respeito da instrucção, que no seu intender devia ser exigida pela Sociedade de Agricultura aos emigrantes. Nós contentavamo-nos com muito menos; isto é, que lhes fosse exigida a certidão de que sabiam ler correntemente.
Portugal é um paiz pobre, dizem os que advogam a emigração para o Brazil; tem braços a mais, razão natural da procura de novos territorios, acrescentam ainda.
Mas isto é um sophisma. Quem diz isto, quer esconder a verdade, a princípal causa da emigração portugueza para o Brazil e que nunca nos cansaremos de repetir—a ambição inconsciente dos emigrantes.
Portugal é pobre? A Portugal sobejam braços?
Comparemos Portugal á Belgica e á Hollanda, e vejamos se fallam verdade os alliciadores do imperio americano.[33]
Dizem os geographos, que em geral não são muito favoraveis nas appreciações que fazem ao nosso paiz:
«Belgica.......................
O solo, esteril nas provincias de Liege e de Limbourg; é muito fertil nas
Flandres e no Hainaut e bem cultivadas.»
Nada mais com respeito ao solo.
«Hollanda.......................
A Hollanda abunda sobre tudo em pastagens; cultiva-se com successo o trigo, o
linho, a ruiva, o tabaco, fructas; a agricultura e a horticultura attingiram
alli um alto grau de perfeição. O clima é brusco e humido; os habitantes das
proximidades das lagoas (Polders) e das ilhas, estão expostos ás febres
endemicas; entretanto o frio dos invernos e os ventos de éste, modificam a
insalubridade do ar.»[11]
Vemos de notavel, apenas, que a agricultura e a horticultura attingiram alli o alto grau de perfeição, que não póde desfazer as nebrinas tristonhas do seu clima, nem tão pouco arredar para longe as febres que assolam grande parte dos habitantes da Hollanda.
Para comparar veja-se o que diz o mesmo auctor com respeito a Portugal:
«A temperatura é d'um calor importuno, mais elevado que em Hespanha; o solo é muito fertil (très-fertil), mas geralmente mal cultivado. Produz os famosos vinhos do Porto, Setubal, Carcavellos, etc.; azeitonas, figos, laranjas e outros fructos exquisitos; mel, cera, kermes. Aqui se encontra tambem as minas de ouro, prata, ferro, chumbo, estanho, antimonio, sal (marinho), carvão de pedra, turquezas e outras pedras preciosas, aguas mineraes e thermaes. Gado grosso, pouco; mas bastantes carneiros e excellentes muares.»
Abramos um parenthesis:[34]
Assim como deixamos passar a appreciação justissima de que o nosso solo está mal cultivado, não deixaremos passar a affirmativa do illustre geographo, quando diz que a temperatura do nosso clima é mais elevada do que o da Hespanha. Esta não é a verdade. Se o calor que entre nós se supporta no estio é importuno—accablant—, na Hespanha não o é menos, se não superior. A experiencia de todos os dias ahi está corroborando esta asserção.
Fechemos o parenthesis, e prosigamos.
A culpa de estar o nosso solo—très-fertil—mal cultivado, não é de quem emigra, mas de quem, possuindo todos os meios de evitar o mal, não tem tomado a iniciativa de o cultivar:—é dos maus governos que tem tido a nação.
Vejamos agora, comparando ainda Portugal ás tres nações citadas, se lhe sobejam braços.
Portugal mede uma superficie de 576 kilometros, do sul ao norte, sobre 168 de oeste a leste, ou 96.768 kilometros quadrados, que, divididos por 4 milhões de habitantes, dá para cada um—24,192 metros quadrados.
A Hollanda mede 240 kilometros sobre 230, ou 55.200 kilometros quadrados. A sua população é de 3 e meio milhões; dando por consequencia, 15,771 metros quadrados para cada habitante.
A Belgica mede 270 por 200, ou 54.000 kilometros quadrados, que divididos por 4 e meio milhões de habitantes, dá para cada um 12 metros quadrados.
Por estes simples calculos se conclue, que, para Portugal estar a par da Hollanda devia ter uma população de mais de 6 milhões de habitantes, e mais de 8 para estar a par da Belgica!
Se os governos d'este paiz, que, nos seus excessos de patriotismo, tentam explorar a mina dos nossos certões envios d'Africa, olhassem para as minas que possuimos[35] no continente, a emigração seria annulada em pouco tempo.
O governo que estabelecesse 20 colonias de 500 trabalhadores cada uma, entreteria na faina do trabalho agricola uns 10:000 trabalhadores, numero igual á população que emigrou para o Brazil em 1876.
Por este systema contribuiria igualmente para a divisão proporcional da população portugueza, medida extremamente importante, cuja densidade em algumas provincias é de 164 habitantes para cada kilometro quadrado, em quanto que em outras partes do reino não passa de 12!
A commissão geodesica, encarregada por decreto de 21 de setembro de 1867, de proceder ao reconhecimento, determinação e estudo dos terrenos, cuja arborisação é necessaria e util, achou o seguinte assombroso resultado, na averiguação do arduo e substancioso trabalho que lhe incumbiram e que ella executou com admiravel proficiencia; o que não quer dizer que os taes estudos servissem para mais alguma cousa do que para mostrar ao mundo inteiro a nossa incuria:
SUPERFICIE DE CUMIADAS INCULTAS E DE CHARNECAS | ||
---|---|---|
PROVINCIA DO ALGARVE | ||
HECTARES | ||
Zona do litoral | 15.000 | |
Zona interior | 294.000 | |
———— | 309.000 | |
PROVINCIA DO ALEMTEJO E A PARTE DA EXTREMADURA AO SUL DO TEJO | ||
Parte meridional | 718.000 | |
[36]Parte central | 516.000 | |
Parte septentrional | 413.000 | |
———— | 1.647.000 | |
PROVINCIA DA BEIRA E A PARTE DA EXTREMADURA AO NORTE DO TEJO | ||
Região sul-occidental | 240.000 | |
Região central | 780.000 | |
Região septentrional | 328.000 | |
———— | 1.348.000 | |
PROVINCIA DE TRAZ-OS-MONTES | ||
Tracto oriental | 195.000 | |
Tracto central | 240.000 | |
Tracto occidental | 279.000 | |
———— | 714.000 | |
PROVINCIA DO MINHO | ||
Tracto meridional | 89.000 | |
Tracto septentrional | 135.000 | |
———— | 224.000 | |
Areiaes incultos e médões da costa maritima | 72.000 | |
4.314.000 | ||
Calcula a referida commissão que a superficie de terreno do continente é de | 8.962.531 | |
menos 714 hectares do que o calculo feito por alguns geographos, pelos quaes nos regulámos mais atraz. | ||
Temos pois, terrenos cultivados | 4.648.531 |
[37]Accrescenta a commissão geodesica, no seu bem elaborado relatorio, que poderá subir a 5 milhões (!!!) o numero de hectares de terrenos incultos, porque muitos milhares de hectares estão permanentemente de matto, ou não recebem cultura senão com muito grandes intervallos; e tambem refere que ha uma immensa area sujeita «ao tradicional systema de alqueives.» Repartindo esta superficie por 3.829.618 habitantes, acha que corresponde a cada individuo 1 hectare, 30 ares e 56 centiares de solo inculto.
A respeito da densidade da população portugueza no continente, publica a commissão os seguintes dados estatisticos, segundo o censo referido ao 1.º de janeiro de 1864:
HABITANTES POR KIL. QUADRADO |
|||
Districto | do | Porto | 164 |
» | de | Braga | 114 |
» | » | Vianna do Castello | 85 |
» | » | Aveiro | 76 |
» | » | Vizeu | 75 |
» | » | Coimbra | 74 |
» | » | Lisboa | 59 |
» | » | Villa Real | 49 |
» | » | Leiria | 46 |
» | » | Guarda | 36 |
» | » | Faro | 33 |
» | » | Santarem | 30 |
» | » | Bragança | 26 |
» | » | Castello Branco | 23 |
» | » | Portalegre | 15 |
» | » | Evora | 13 |
» | » | Beja | 12 |
Se o districto do Porto accolhe 164 habitantes, e o[38] de Braga 114, por cada kilometro quadrado, porque não procura a população do norte os districtos desertos do sul?
A razão já ficou expendida mais atraz.
Depois d'isto não se diga agora que a população portugueza sobeja, e por isso emigra para fóra do paiz.[39]
O Brazil, jornal que advoga os interesses dos nossos compatriotas residentes no imperio, publicou um artigo que nos surprehendeu, por vir elle sustentar idéas tantas vezes combatidas no mesmo jornal. E a nossa surpreza ainda foi maior, porque esse artigo, que tem por epigraphe A colonisação para o Brazil e a Companhia Transantlantica, mais parece que fôra escripto com o fim de tratar de interesses particulares de um ou outro engajador de colonos portuguezes. O que muito folgamos, não obstante o referido artigo vir publicado no logar de honra, foi não ser elle assignado pelos seus illustres redactores effectivos, a quem temos visto atacar as idéas no mesmo contidas.
Empenhados na lucta travada a respeito da emigração de portuguezes para o imperio brazileiro, não devemos ficar silenciosos á vista de certas proposições alli enunciadas.
Entremos pois na questão e deixemos de parte a circumstancia[40] do articulista achar razoavel o facto dos colonos portuguezes preferirem o Brazil, pela «communidade de origem e a facilidade que encontram no exercicio das suas industrias, por ser a lingua commum a ambos os povos», etc., e entender por isso dever auxiliar a corrente da emigração, por via da companhia Transantlantica, por quem parece morrer de amores, já porque está regularmente montada, já porque á testa d'ella vê nomes que lhe merecem garantia de seriedade e de moralidade. Deixemos, portanto, este procedimento do articulista, que parece não mudará, emquanto o nosso governo não encaminhar os colonos para os terrenos incultos do Alemtejo, (o que já é muito!) ou para as nossas possessões ultramarinas (cuja communidade de origem etc., é igual á do imperio), reservando-se para mais tarde emittir o seu parecer, quando appareça decidido o assumpto emigração, sujeito a uma commissão de deputados, o que equivale a dizer-nos que será sempre a favor da emigração, com tanto que os engajadores sejam sempre os agentes da tal companhia; porque para nós é ponto de fé, que as nossas commissões nada farão, embora as tenhamos no melhor conceito, e o nosso governo já mais tratará de desviar a emigração da America meridional, encaminhando-a para o Alemtejo ou para as nossas possessões ultramarinas.
Deixemos tambem de parte a circumstancia de que o articulista leva em mira atacar a pessoa de um novo pretendente ao logar de engajador official de escravos brancos para as roças insalubres do Brazil, e a não sabemos que pequenas miserias de commendas, porque o tal pretendente parece querer ferir os interesses da poderosa e protectora companhia!
Deixemos, finalmente, que o illustrado articulista se incommode sériamente com os ataques dirigidos pelo novo proponente aos caracteres honrados e dignos, representados nas pessoas do ministro das obras publicas[41] do imperio, do conselheiro da companhia protectora de escravos brancos e do distincto escriptor Augusto de Carvalho, que, em prejuizo da nossa patria, pretende illudir, com seus escriptos de phantasia, os nossos infelizes compatriotas; porque, caso o articulista venha a ser accusado de defensor da companhia Transantlantica, do seu conselheiro, dos estadistas brazileiros e do escriptor assalariado, ser-lhe-ha muito facil defender-se com o juizo dos jornalistas e dos particulares, que conhecem os actos publicos e politicos das pessoas aggredidas pelo endiabrado pretendente; podendo até escudar-se em abono d'este ultimo—do sr. Carvalho,—nas provas de consideração ultimamente apresentadas, em nome da colonia do Rio de Janeiro, pelo visconde de S. Salvador de Mathosinhos, o que bastaria para demonstrar não só a abnegação do articulista, como a de tão distinctos cavalheiros pelo bem da nossa patria![12]
Mas deixemos isto tudo de parte, visto que ao articulista pouco importam as doutrinas de hontem e as manifestas contradicções das doutrinas de hoje, sustentadas no mesmo jornal, onde o governo brazileiro tem sido accusado de menos fiel no cumprimento dos seus deveres para com os colonos portuguezes, e onde não vimos ainda a razão que dê aso a tantos elogios.
Deixemos ainda que o articulista do Brazil viva em completa illusão a respeito da protecção que diz dispensa aos colonos portuguezes a companhia Transantlantica, que, a nosso ver, não é peor nem melhor do que a que costumam dispensar outros engajadores, ou ainda mesmo da que poderia dispensar o proponente Mattos,[13] caso a sua proposta fosse acceita pelo governo do imperio como a mais lucrativa.[42]
Deixemos de parte estas questões pessoaes, que o nosso fim é outro.
Nós, como acontece ao articulista do Brazil, não temos procuração de ninguem para defender este ou aquelle engajador, pelo simples motivo que a todos achamos maus. Não somos a favor das companhias poderosas nem tão pouco dos agricultores riquissimos do Brazil, quer sejam nossos compatriotas ou não, os quaes, diga-se aqui de passagem, só precisam de escravos, pretos ou brancos (é questão de nome) para lhes desbravar as terras, emquanto taes senhores se balouçam nas suas redes de pennas, sem se importarem se os colonos caem fulminados pelas febres ou pela intensidade do calor. Tambem não somos mais favoraveis aos engajadores clandestinos, que ainda assim, não merecem tanto a nossa particular attenção.
Ha tudo a temer dos engajadores officiaes, d'esses por quem o articulista do Brazil parece querer quebrar lanças; d'esses, que, com o fim de chamar a si o maior numero de proselytos, têem a força sufficiente de illudir as leis do nosso paiz; d'esses, cuja influencia é sufficiente tambem para fazer demittir as nossas auctoridades subalternas, que oppõe a sua dignidade ás promessas e ás ameaças dos engajadores;[14] d'esses, finalmente, que obtêem com facilidade dos nossos governos a approvação de tarifas especiaes dos caminhos de ferro, a preços reduzidos, para a conducção de colonos que, uma vez chegados a Lisboa, deverão immediatamente embarcar nos paquetes que se destinam aos portos do Brazil.
[43]Mas comquanto reconheçamos as difficuldades que ha em evitar a emigração para uma região tão insalubre, porque de um lado temos os propagandistas que apregoam phantasias e do outro as companhias e os capitalistas a protegel-os, servindo-lhes de não pequeno auxilio a deficiencia das nossas leis, senão a propria connivencia das authoridades, ainda assim havemos de ser sempre leaes e acerrimos combatentes contra essa emigração, por ser a mais prejudicial aos portuguezes.
A circunstancia de se haver illudido o articulista do Brazil, com respeito ao trabalho, que lhe parece ser mais bem remunerado no imperio do que em nossas terras, é assumpto para mais largo debate.
Diz-nos o illustrado articulista assim com uns modos sentimentaes, em que bem mostra o seu desejo de proteger a Companhia Transantlantica, e por consequencia a emigração, visto que não descobrira ainda o remedio que lhe deva por termo:—«Que não é para admirar que os nossos compatriotas não encontrando trabalho bem remunerado na sua patria, por isso que a offerta é muito maior do que a procura, busquem longe do seu torrão natal onde empregar a sua actividade e receber em troco uma remuneração proporcional aos seus esforços e á sua iniciativa, mais ou menos intelligente e que dêem a preferencia ao Brazil,» etc.
Em vista d'isto vê-se claramente, que o articulista vive das taes phantasias, alimentadas pelos estudos theoricos, que cegam ás vezes as mais robustas intelligencias. O abalisado escriptor é dos taes que vêem um ataque á liberdade quando se escreve contra a emigração ainda quando nos termos em que nós escrevemos; é dos taes que offerecem contra esses ataques as milhares[44] de libras sterlinas com que contribue o Brazil para a prosperidade do Portugal.
O articulista não sabe ou não quer discutir no campo da pratica, não só porque desconhece o grande prejuizo que está causando ao nosso paiz a falta de braços, como porque desconhece tambem a remuneração que se costuma dar ao trabalhador de Portugal e ao do Brazil. A remuneração que elle acha proporcional aos esforços do trabalhador de lá, é julgada apenas pelo principio natural de que os campos virgens da America são mais ferteis. Porém, contra esta verdade esquece outras, que inutilisam completamente os esforços do trabalhador europeu, no Brazil.
A remuneração offerecida ao trabalhador, ao contrario do que avança o articulista, é mais proporcional entre nós do que no imperio, como já tivemos ensejo de demonstrar em outro logar; porque alem da impossibilidade de poder trabalhar debaixo d'um sol ardentissimo, se o colono portuguez tem a felicidade de resistir ás epidemias do Brazil, que costumam atacar o europeu recem-chegado, falta-lhe com tudo os meios de poder estabelecer-se na lavoura, meios indispensaveis, como são os instrumentos agricolas e um pequeno capital para a compra de terrenos. Alem d'isso, a protecção que o Brazil offerece aos colonos é ficticia, porque as leis sobre a agricultura são essencialmente vexatorias. O colono n'esta parte da America, ao contrario do colono estabelecido nos estados do norte, trabalha apenas por supprir as excessivas exigencias do governo. O producto devido á trabalhosa exploração do colono, e que custa maior numero de sacrificios que em qualquer outro paiz, fica ainda assim sujeito a um sem numero de taxas, quando precisa exportal-o.
Essas leis que tinham a sua razão de ser no tempo da escravatura, porque então o trabalho era excessivamente mais barato, como mais adiante demonstraremos,[45] não podem mais existir para o trabalho lívre, que ha de necessariamente subir de valor, e assim reunido aos direitos de exportação, tornarão o genero tão caro, que jámais poderá competir com outros iguaes nos mercados consumidores.
Já dissemos em outro logar, que o governo brazileiro pede pelas madeiras 14 p. c. de exportação;[15] e este é, sem duvida, o maior obstaculo que o colono encontra nas terras brazileiras. Por outro lado o governo devia auxiliar o explorador, abrindo-lhe estradas por o sertão, e sendo possivel desimpedir os rios, as melhores vias de communicação para o interior.
Mas os homens d'estado do Brazil nada mais enxergam a não ser a necessidade de dinheiro; e para obtel-o auxiliam os engajadores, na persuasão de que a muita quantidade de colonos europeus lh'o levará. Porém o engano é manifesto, porque o colono dos nossos paizes logo que chega ao Brazil, onde vê desenrolar-se o panorama de desgraças que os engajadores lhe esconderam, se a febre amarella lhe dá tempo para isso, só trata (e então o numero dos que escapam ao flagello é limitadissimo) de procurar o trabalho á sombra, despresando o que costumava ser desempenhado pelos filhos de Africa, trabalho que ainda assim não daria as riquezas que ahi vemos chegar quasi todos os dias do Brazil.
Não querem ouvir estas verdades os utopistas de lá não obstante terem visto crescer fortunas fabulosas á sombra da escravatura. São tão ignorantes como os utopistas de cá, que vêem em cada ricasso vindo do Brazil, qualquer cavador ou ceifador da canna de assucar.
Diz o articulista que a offerta do trabalho entre nós é maior do que a procura. Engano manifesto. Em qualquer[46] ponto de Portugal acontece justamente o inverso do que avança o protector da emigração. E no Alemtejo especialmente a procura é permanente.
A viticultura, que n'esta vastissima provincia cresce de dia para dia, a cultivação de cereaes e de olivedo, entretem não só os alemtejanos, mas ainda muitas centenas de braços dos filhos das nossas provincias do norte. Não obstante, esta concorrencia é ainda muito diminuta, e por isso muito bacello ficou por plantar em 1876, em que os preços das cavas chegaram em muitos logares a 500 réis.
As ceifas foram morosas n'este mesmo anno, como quasi sempre, pela falta de braços, empregando-se, como tivemos occasião de vêr, muitas mulheres em tão arduo serviço. Em alguns pontos d'esta provincia os jornaes subiram a 500, 550 e 600 réis diarios e de comer!
Toda a gente sabe, que no norte a propriedade está mais dividida, e que o trabalhador destina alguns dias para o amanho d'um bocado de terreno que possue e lhe costuma dar um pouco de milho, legumes, vinho e carne, productos estes, que, juntos á pequena recompensa pelo trabalho que executára fóra de casa, lhe fazem augmentar a féria que é sempre mais proporcional que no Brazil. Os filhos das provincias do norte, que não possuem estas courellas, são geralmente aquelles que no verão procuram o trabalho nas provincias da Extremadura e Alemtejo, onde os lavradores lhes pagam bem para passar o resto do anno, como já fica demonstrado.
Por isso não vêmos qual é a desproporção apontada pelo articulista do Brazil.
O colono trabalhador que antes de partir para a[47] America se occupava na cultura dos nossos fertilissimos campos, vae occupar no Brazil o logar de aguadeiro, carroceiro, catraeiro, ou na immensa deversidade de serviços que entre nós costumam fazer os filhos da Galliza. Estes colonos, cujo numero é limitadissimo, porque, como já dissemos, e nunca nos cansaremos de repetir, de 70 a 80 por cento não pódem resistir ao clíma pestilento d'aquella parte da America, ganham apenas para comer e vestir. E sendo economicos, isto é, mettendo na algibeira o que devem dar á barriga, podem juntar algumas dezenas de mil réis no fim de muitos annos. O dinheiro assim grangeado não se converte em letras de cambio, nem tão pouco faz subir os nossos fundos. Esses poucos haveres acompanham o expatriado quasi sempre exhausto de vida.
Ha outro colono—o artista,—que reune mais algumas economias, porque os lucros são outros. Ainda assim o seu salario não só não compensa os sacrificios que soffre no Brazil, mas essa compensação é menos proporcional do que na Europa, especialmente na actualidade.
Dir-nos-hão:—Mas o artista traz dinheiro.
É isso verdade, porque o portuguez que volta á patria envergonha-se de vir com as algibeiras vazias. Porém, por quantas privações passou elle com o fim de sustentar esse capricho?! Ainda assim o facto do artista trazer dinheiro por similhante systema, não é razão para dizermos que o Brazil remunera mais esta especie de trabalho. Se no animo do artista que prefere a patria tivessem actuado as mesmas circumstancias, nós viriamos que as suas economias seriam, quando não superiores, pelo menos iguaes, acrescendo ainda a vantagem que não é para despresar, de viver mais descançado e no goso de mais perfeita saude.
Este e aquelle outro colono, não são propriamente dito, os que induzem, quando voltam á patria, os nossos[48] ambiciosos compatriotas a procurar as riquezas ephemeras do Brazil. Aquella pobre gente raras vezes apparece na povoação que os vira nascer, e quando apparecem é de visita, e por tal fórma ataviados que mais incitam os novos aventureiros.
É preciso notar que o trabalhador e o artista que vêem desilludidos do Brazil, procuram, longe do seu povoado, onde possam exercer a sua industria, sendo certo que o maior numero procura esconder o seu crime nas nossas possessões ultramarinas; porque é crime apparecer pobre na terra em que nascera!...
Ha ainda outro colono, além do trabalhador e do artista—o commerciante—que sae da sua aldeia com a ideia de ser caixeiro no Brazil. É justamente d'estes que não veem lá com bons olhos, porque os naturaes querem o commercio para si. Outros colonos ha, sahidos do commercio, que se fizeram senhores de engenho ou agricultores, a quem a escravatura em poucos annos fez centuplicar os haveres.
As fortunas trazidas para Portugal por estes colonos, tem sido em todas as epochas a varinha magica que tenta os trabalhadores. Esta pobre gente nunca pensou na diversidade de posição d'aquelles, posição que por circumstancias muito superiores ao entendimento do colono trabalhador, lhe traz os taes lucros fabulosos, que se não acham a cozer um sapato, a talhar uma calça, a construir um muro, a estucar uma sala, a carregar uma carroça ou a conduzir um passageiro a bordo d'um navio, ou mesmo a desbravar as terras brazileiras, caso o colono europeu podesse, como já dissemos, trabalhar debaixo do sol ardentissimo dos tropicos.
Porém, d'essas riquezas é que será difficil arranjar de futuro, porque a agricultura no Brazil, a alma do seu prodigioso commercio, tende a definhar-se de anno para anno em vista da falta de braços escravos, os[49] unicos capazes de arrotear aquelles vastissimos campos.
Mas é preciso demonstrarmos essa difficuldade, para que se desilludam os portuguezes, que procuram no Brazil este meio de vida.
Eis o que vamos tentar em breves considerações.
O negro foi em todos os tempos o unico ente capaz de resistir á humidade venenosa que sae das terras brazileiras e ao calor excessivo que ao mesmo tempo sobre ellas assenta. Os primeiros colonos que se estabeleceram no Brazil, viram logo a dificuldade de empregar o europeu no desbravamento d'aquelles terrenos insalubres; por isso chamaram a si, como os mais capazes de resistir ao clima, os habitantes de Angola, Benguella, Cabinda, Moçambique e Congo. Pouco tempo depois começou o commercio da escravatura.
Os homens empregados n'este trafico, levavam os seus navios carregados de bijouterias, d'um valor puramente ficticio, com que na Africa illudiam os regulos. Estes davam em troca os seus subditos, que eram immediatamente mettidos nos porões dos navios. Das costas d'Africa seguiam para America, e não obstante morrerem 20 p. c. no transito! segundo a opinião de Ferdinand Diniz, ainda assim o escravo ficava por um preço excessivamente barato.
Na primitiva o senhor d'engenho comprava o escravo a 150 e a 200 patacas (48$000 e 72$000 réis fracos), ficando-lhe muitas vezes mais barato, se entre elle e o negreiro se estabelecia a permuta de productos agricolas em troca do preto. Nos ultimos tempos em que a escravatura era permittida, chegaram a duplicar e ás vezes a triplicar de preço. Não obstante, o trabalho em que era empregado o negro ficava excessivamente barato. Os productos agricolas devidos a esse trabalho, davam o sufficiente para enriquecer os governos e os senhores da agricultura.[50]
Póde-se calcular, que o preto trabalha 20 anos para seu senhor. Custára-lhe 192$000 réis, quando muito. Junte-se-lhe as despezas que com elle fizera n'esse periodo de tempo—alimentação e vestuario;—aquella composta em geral de farinha de mandioca, carne secca e bacalhau, algumas aboboras e bananas para variar estes alimentos, não esquecendo a carne de baleia, a rapadura do açucar, feita em pão, etc; e este (o vestuario) de pano americano, e alguns riscados de algodão azul e branco, devidos á manufactura ingleza; despesas que podemos orçar em 20 vezes mais do que o custo do negro; isto é 3:840$000 réis, que reunidos áquela soma, prefaz 4:032$000 réis fracos. Estabelecidos assim os calculos, podemos ver quais eram os principais meios da riqueza passada, e quais são aquelles com que se póde contar para a riqueza futura.
Mas para illucidar mais o leitor, comparemos o trabalho do escravo com o do homem livre.
O homem livre não trabalha por menos de 2$000 réis fracos como já tivemos ocasião de dizer. Vinte anos de trabalho a 2$000 réis, representam 14.000$ réis; isto é, mais 9.568$000 réis, por cada trabalhador, contra o proprietario das roças do Brazil!
Havia roceiro que tinha 150 e 200 escravos e que vê em cada um que se liberta, e que vai substituindo pelo braço livre, o prejuizo d'aquela fabulosa soma e seus juros!
A agricultura, por consequencia, ha-de cair infallivelmente, e o commercio e a industria, que vivem exclusivamente d'ella, já vão começando a sentir-lhe os effeitos. Eis a razão da affluencia de capitaes no nosso paiz; capitaes que já não encontram no Brazil conveniente emprego; eis a razão porque o governo brazileiro subsidia, mais do que nunca, as companhias engajadoras; eis a razão porque a maior parte do nosso inexperiente commercio de Portugal e Brazil, que[51] ainda não previu o seu futuro, auxilia tambem os engajadores; eis a razão, finalmente, porque combatemos a emigração para aquelle paiz, quer os colonos se dediquem ao trabalho braçal, ao commercio ou á industria.
Iamos terminar este artigo, quando por acaso deparámos com o seguinte telegramma expedido do Rio de Janeiro pela agencia Havas:
«As sessões das camaras serão prorogadas por mais 15 dias, a fim de se terminar a discussão do orçamento e da reforma da lei eleitoral, e sendo possivel, a da lei de soccorros á agricultura, que se resente da falta de braços e capitaes, e creação de engenhos a vapor centraes agricolas.»
Este documento veiu a tempo de fortificar a nossa humilde opinião a respeito da falta de braços e da saida de capitaes d'aquelle paiz.
O governo promette desde ha muito remediar o mal; mas nós é que não confiamos no seu auxilio, nem vemos que seja facil substituir o negro, ha pouco libertado pelo Brazil.
No nosso paiz ha jornaes que defendem hoje o que atacavam hontem, o que não deixa de ser razoavel... até certo ponto; isto é quando da contradicção apparente d'hoje nasça a rectificação sincera aos erros commettidos hontem. Mas faz-se mais... queremos dizer:—faz-se menos; por que hoje se defende uma causa julgada má, que hontem fora classificada de optima e vice-versa, isto successivamente, conforme as conveniencias dos jornalistas que fazem do sublime invento de Guttemberg o ariete com que costumam atacar o reducto da moralidade. Outros ha, que, tendo começado a percorrer o bom caminho, recuam, ao mais pequenino assomo de desagrado dos optimistas.[52]
No primeiro caso está o jornalismo representado no jornal cujos escriptos sobre emigração acabamos de criticar; e no segundo está, por exemplo o Diario de Noticias, uma das folhas mais populares d'este paiz, e por isso mesmo aquella que ensina menos; porque, como diz o ditado, todos os dedos lhe parecem hospedes: porque de tudo tem medo.
Dizia ha pouco um distincto litterato, que costuma encobrir o seu laureado nome com o pseudonymo de Fernão Vaz, a proposito de uma critica feita a um trabalho que destinamos ao theatro,[16] que o referido Diario, por ter extractado dos relatorios dos consules o que alli ha de mais horroroso sobre a emigração para o Brazil, foi alcunhado de impertinente; dando a entender que a referida redacção suspendera a transcripção alludida—o mais assignalado serviço que ella poderia prestar ao paiz—para se livrar do anathema, que jámais iria ferir um collosso material creado e sustentado pelo publico a quem essa publicação deve defender, para pagar um diminuitissimo agio dos favores que lhe ha dispensado.
Não fazemos accusações sem base, nem é nosso intuito offender ninguem; mas se á tal suspensão presidio o medo, como se deprehende das palavras do escriptor citado, e nós acreditamos—porque o director do referido jornal prohibiu a que a sua redacção fosse representada na leitura do nosso drama Os Aventureiros, fundado em epysodios da emigração—; o medo, repetimos, ou a conivencia, em assumpto de tanta magnitude, é um crime de lesa-imprensa que não póde deixar de ser fulminado com a maxima severidade.
Nem a diplomacia do senso real das cousas, nem a diplomacia hypocrita, como diz algures o escriptor Fernão Vaz, a propósito das impertinencias (?) que elle viu,[53] póde ser adoptada como linha de conducta no decorrer da nossa humilde critica, porque aspiramos apenas a encomios firmados em justissimas apreciações aos nossos exforços e, sobretudo, a estar bem com a nossa consciencia. Eis porque não tememos o epiteto de impertinente.
Nenhuma das diplomacias citadas, segundo os exforços que fizemos para as perceber—pode desculpar uns certos erros publicos, que por estarem ao alcance da imprensa digna e por que são essencialmente prejudiciaes ao paíz, devem ser combatidos sem tregoas e tão severamente quanto é a altura d'onde esses erros partem, quando não seja para corregil-os—porque ha infatuados que nunca se corrigem—ao menos para prevenir os incautos do precipicio para onde os podem encaminhar os apostolos do mal.
Temos que continuar a nossa critica severa, mas digna, a um trabalho sobre emigração, publicado ha pouco sob os auspicios do governo do Brazil e escripto por um litterato brazileiro, e para que não vão accusar-nos de systhematico na propaganda contra a emigração e a tudo que é brazileiro, entendemos dever começar pelos de casa.
O livro a que nos queremos referir teve primeiro o seguinte titulo—Estudo sobre a colonisação e emigração para o Brazil—e o actual apparece com o de—Brazil—simplesmente. Não se lhe mudou apenas a capa; fez-se mais: antepôz-se ao texto—que é o mesmo—os elogios da imprensa portugueza, para que no imperio fosse mais facil a extracção do livro!
Este systema de recommendações tem grande valor no Brazil; e o author do Estudo vio-lhe o alcance, o que[54] não quer dizer que os nossos recommendadores o vissem tambem: até cremos que usaram de boa fé; mas não póde isso obstar a nossa critica.
O tal livro advoga a emigração dos portuguezes para o Brazil, e além d'isso offende os nossos brios, o que demonstraremos nos seguintes capitulos.
O auctor das Farpas, tendo estudado profundamente o assumpto em dezembro de 1872, e tendo dado provas de que o estudára, mimoseando o publico com 37 brilhantissimas paginas no referido folheto, em que bem se revella o combatente convicto contra a emigração, recommenda pouco depois ao publico, o seu antagonista, no seguinte documento:
«.....O sr. Augusto de Carvalho é auctor de um livro importante ácerca da emigração e da colonisação do Brazil, assumpto utilissimo para os interesses portuguezes, do qual não póde deixar de occupar-se a imprensa que respeita a sua missão. Creio bem que v. estimará egualmente cultivar as relações d'este espirito conciliador»[17] etc. etc.
Este espirito conciliador respondendo á asserção da commissão de emigração de que «em Portugal não ha miseria nem falta de trabalho que a incite», diz o seguinte:
«Permitta-nos a illustrada commissão que lhe façamos sentir que os factos prottestam contra similhante conclusão. Na ultima leva de degredados (portuguezes) em numero de 92, d'estes foram 52 condemnados por furtos, roubos e falsificações. E ainda no mez de novembro ultimo (1873), de 40 que deram entrada no[55] Limoeiro para seguirem o mesmo destino, 31 foram-n'o por crimes da mesma natureza.»
Este desenlace conciliatorio do tal recommendado ás conclusões da commissão alludida, mostram mais alguma cousa do que a conciliação, mostram a falta de bom senso; porque nos paizes onde a riqueza anda a pontapés—para os que trabalham—tambem ha condemnados pelos crimes de furto, roubos e falsificação, porque os ratoneiros, ladrões e falsarios de todas as nações preferem tudo ao trabalho honrado. E havemos de provar esta asserção com respeito ao proprio Brazil—a nova terra da promissão.
Mas não antecipemos a critica ao livro recommendado.
Querendo naturalmente defender os assassinos dos nossos compatriotas residentes na sua patria, diz o auctor do Estudo, em tom conciliatorio, já se sabe:
«Acaso, por se haver morto com um tiro em certo logar do Minho, um infeliz que subtrahia um cacho de uvas, segue-se que todo o povo d'aquella provincia seja deshumano?»
Será isto em desforço dos assassinatos de Jurupary e tantos outros?!
O auctor das Farpas que responda.
Defendendo os magistrados que prevaricam no imperio, commemora a seguinte futilidade, que não tem nada de conciliatoria:
«Acaso, por haver sido, no Fundão, condemnado um pobre Antonio Gomes, a um mez de prisão, multa correspondente e despezas do processo, pelo crime de sorrir-se e piscar os olhos para o delegado Duarte de Vasconcellos, segue-se que a justiça é nulla em Portugal?»
Estes crimes sociaes commettidos no nosso paiz não[56] podem equiparar-se com os crimes sociaes commettidos no Brazil pelos naturaes contra a colonia portugueza. E não póde porque... «A roça no imperio do Brazil, segundo diz o author das Farpas, é como em Portugal o banco. É ella que faz a lei, a justiça e o direito. Com uma pequena differença nos resultados d'esta influencia do capital e da propriedade no Brazil e em Portugal: é que em Portugal é contrastada pelas beneficas rezistencias de alguns milhares de cidadãos que mantem a liberdade por meio da independencia facultada pelo trabalho; no Brazil não, porque no Brazil quem trabalha é o escravo, e a quantidade chamada povo não existe.»[18]
O Brazil, aos olhos do tal recommendado, é o paraiso terreal, a terra promettida, onde podem reunir-se os individuos de todas as nacionalidades, que alli queiram ter patria commum; e aos olhos do auctor das Farpas, no Brazil tudo é hostil ao emigrado; no Brazil não respeitam a fé dos contractos com os miseraveis trabalhadores portuguezes; e accrescenta:
«O colono portuguez no Brazil nem tem os direitos dos nacionaes, nem os previlegios dos estrangeiros. Em uma nota do barão de Cotégipe, ministro brazileiro, a mr. George Bukley, ministro inglez, ácerca da deserção de marinheiros estrangeiros para a marinha brazileira, encontra-se consignada nos seguintes termos a condição dos individuos que compõem a tripulação dos navios do estado—escravos, portuguezes, nacionaes e estrangeiros.»
Como teremos occasião de mostrar, o auctor do Estudo recommenda a conveniencia da colonisação portugueza; e o auctor das Farpas criticando habilmente o assumpto escreve estas terriveis verdades:[57]
«A primeira tentativa de colonisação com trabalhadores livres, data de 1819, dois annos antes da independencia. Mil e setecentos aldeãos suissos do cantão de Fribourg estabelecem-se no Val de Parahiba do sul e fundam a Nova Friburgo no extremo limite meridional da zona torrida, perto de uma grande cidade. Dez annos depois a colonia suissa estava em dois terços do que primitivamente fôra. Actualmente a Nova Friburgo é uma cidade inteiramente brazileira, onde raras familias friburguezas se encontram ainda.
«Em 1845, uma nova tentativa feita sob os auspicios do governo brazileiro, levou alguns milhares de trabalhadores de Baden e de bavaros do Palatinado ao Rio de Janeiro. Estabeleceram-se em Petropolis, perto do palacio imperial. Em 1859—quatorze annos depois—de tres mil e dezeseis colonos que ainda habitavam Petropolis, rarissimos tinham passado de simples cavadores de enxada. Esta colonia tem-se concentrado cada vez mais em torno da residencia imperial, e vive quasi exclusivamente da actividade que o soberano e a côrte espalham necessariamente em torno de si.
«O celebre naturalista suisso Tschudi, mandado pelo seu governo ao Brazil, como plenipotenciario, a fim de estudar a historia dos emigrados, fez uma viagem de muitos mezes atravez de differentes feitorias, e em um relatorio de 9 de outubro de 1860, no qual consignou as suas impressões e as suas idéas, deixou um monumento historico pavoroso e indiscutivel contra a colonisação do Brazil.
«A suissa prohibiu a emigração dos seus filhos para aquelle ponto do globo.
«Avé-Lallemant, encarregado officialmente de visitar as colonias allemãs no imperio brazileiro, dá pormenores aterradores da sorte dos obreiros que encontrou nos estabelecimentos do Mucury, na provincia de Porto Seguro.[58]
«Dolorosamente penetrado da desgraça que presenceou, Avé-Lallemant, dirigiu-se pessoalmente ao imperador, expoz-lhe as condicções em que estavam vivendo os seus compatriotas no Mucury, e conseguiu de sua magestade que um navio fosse mandado áquella colonia, afim de trazer para os hospitaes do Rio de Janeiro os infelizes, os doentes e os desesperados. Desesperados, palavra que sobre a colonisação do Brazil se empregou então officialmente pela vez primeira e talvez unica no mundo!
«A primeira leva dos emigrados recolhidos do Mucury ao Rio de Janeiro a bordo do alludido vapor do estado, foi composta sómente dos enfermos, e constou de oitenta e sete individuos.
«A praça do Rio de Janeiro deve de recordar-se ainda do dia memoravel na historia da emigração em que se viu chegar esse tragico e funebre comboio.
«Os possantes e valerosos mancebos allemães; que o Rio vira passar poucos mezes antes corajosos, esperançados e alegres para os trabalhos do Mucury, eram desembarcados em macas nos caes ruidosos da capital de um dos mais ricos paizes do mundo.
«Vinham devorados pelas febres paludosas exhaladas de um rio podre, cobertos de lepra e de vermine, immundos de chagas e escalavrados de contusões.
«Um tinha morrido no trajecto, a bordo. Outro expirou justamente no momento em que o collocavam em terra.
«Poucos dias depois chegava do Mucury uma segunda leva de emigrados, com cerca de outros tantos enfermos e outros dois cadaveres.
«A opinião no Rio de Janeiro tinha-se mostrado tão profundamente commovida com este espectaculo de uma barbaridade suprema e de uma miseria unica, os poderes publicos estavam tão evidentemente instruidos do que era a colonia do Mucury, que Avé-Lallemant,[59] tendo depositado nas mãos do governo o relatorio que fizera, entendeu que podia deixar o Rio de Janeiro e proseguir para o norte a viagem de exploração de que se incumbira, sem receio de que jámais se podessem repetir as calamidades que presenceara.
«Apenas o viajante allemão deixou o Rio de Janeiro o director da colonia do Mucury publicou uma nota justificativa do seu procedimento. Um delegado imperial enviado ao Mucury para liquidar a verdade, expirou ao regressar ao Rio. De sorte que tudo ficou no estado em que se achava antes do relatorio de Lallemant. Com uma unica differença. Immediatamente depois do que acabava de se passar, o senado brazileiro votava á companhia do Mucury um credito de cerca de 500 contos com a garantia de um juro de 7 por cento! Era o applauso do governo e a gratidão nacional sanccionando um dos maiores vexames que teem sido impostos á civilisação e á humanidade.
«Ha mais ainda: Os eleitores de Minas Geraes propozeram por duas vezes o nome do director da colonia do Mucury no primeiro logar da lista senatorial.
«Dois unicos homens, honrados e benemeritos, protestaram nobremente contra este oprobrio da justiça—o imperador, que riscou da lista dos senadores o nome do eleito por Minas Geraes como inapto para representar os interesses de um povo, e o sr. Silva Ferraz, ministro da fazenda, o qual aboliu o credito votado á colonia que tal cidadão dirigia.[19]»
Isto é a verdade.
A carta antithesis ao que fica transcripto, devia ser classificada de—diplomacia do senso real das cousas, pelo meu amigo Fernão Vaz![60]
Mas não ficaram ainda aqui os encomios ao Estudo sobre a colonisação e emigração para o Brazil.
O nosso presadissimo amigo e distincto litterato, o sr. Theophilo Braga tambem diz que o livro Estudo, é uma necessidade!
O Jornal do Commercio de Lisboa, diz que, nós, os portuguezes nos devemos regosijar com o tal livro.
O «Jornal do Porto», folga de ver que o distincto escriptor não faz côro com alguns espiritos estreitos, que d'alem mar olham superciliosa e desdenhosamente para as nossas coisas, etc.
O Jornal da Manhã diz que o citado auctor prodigalisa elogios a Portugal.
O sr. Mendes Leal diz que é um excellente trabalho sobre a emigração.
O sr. Camillo Castello Branco tambem elogia a obra, o Commercio do Porto faz outro tanto.
A praça do Commercio do Porto, digna correligionaria da de Liverpool até aos annos de 1808, offerece uma penna de ouro ao escriptor que calca aos pés as nossas glorias e que induz o trabalhador inexperiente, convertido em escravo, a ir povoar os insalubres sertões de Brazil!
O auctor do Estudo dedica-lhe o livro e a Praça responde-lhe com o seguinte documento honroso:
«Nós abaixo assignados deliberamos, em nome dos commerciantes da Praça do Porto, offerecer ao sr. Augusto de Carvalho uma penna de ouro, como testemunho de sympathia pelo muito com que se nos recommenda o seu talento e exforços, tendentes a bem servir a causa da civilisação, em que cremos reservada para nós grande parte.
«Não só pelo individuo, pelo caracter, senão tambem[61] pelos serviços que ha já prestado e continuará a prestar aos dous paizes irmãos—Portugal e Brazil—julgamos de nosso dever contribuir o mais possivel para que o sr. Augusto de Carvalho não affrouxe um instante na missão que se propôz—estreitar cada vez mais os laços que prendem portuguezes e brazileiros. E como o Brazil é quasi que exclusivamente commercial, para que ahi conste como costumamos, nós, interpretes do commercio do Porto, receber e affagar qualquer brazileiro que aqui aporte, e nos mereça a maxima consideração, já pelo seu caracter, já pelo seu talento, que não hostilise mas civilise, suppomos satisfazer d'este modo o velho sentimento de hospitalidade como portuguezes, e o dever em que nos constituiu o auctor do Estudo sobre a colonisação e emigração para o Brazil, de o animarmos a proseguir na santa idéa, no santo principio da maxima conciliação entre os dois povos.»
Outros escriptores e outros jornaes mostram opinião adversa ao livro; e de uns e outros ficamos fazendo a seguinte opinião:—os que elogiaram não leram o livro os que o atacaram, leram-o; porque não podemos admittir que os bons economistas e os bons patriotas possam elogiar o Estudo sobre colonisação e emigração para o Brazil.
Vamos demonstrar que fizemos o mesmo do que aquelles que condenaram o livro, dando provas de que o lemos, criticando-o.[62]
Publicou-se ha pouco um livro intitulado o Brazil. Advogar a causa da colonisação e da emigração para o imperio americanno, eis o seu principal assumpto. Foi impresso no Porto em 1875, e é offerecido á praça do commercio d'aquella cidade. Seu auctor é o sr. Augusto de Carvalho, escriptor brazileiro, a quem a fama tem elevado ao apogeo de litterato distincto.
Pode dizer-se, sem medo de errar, que a nova publicação, em substancia, pouco mais differe de uma outra, do mesmo auctor, publicada um anno antes, sob o titulo—Estudo sobre a colonisação e a emigração para o Brazil. Não é reimpressão por se ter esgotado a obra; mas o auctor, pelo que colligimos, esquecera-se de chamar historia á edição de 1874, e veio agora supprir essa falta.[63]
Eis ahi está um escrupulo bem entendido, que toda a gente levará a bem no sr. Augusto de Carvalho.
Empenhado na luta em que o auctor do Brazil se mostra acerrimo, mas não habil combatente, porque mais de uma vez offerece ás balas do inimigo o peito descoberto, não devemos ensarilhar as nossas armas, visto que o reducto é de facil accesso.
Veio um homem do Brazil para as nossas terras, com o fim de animar as consciencias aváras pelas riquezas do imperio. Esse homem encostado á diplomacia, mas litterato pouco consciencioso, embora as cornetas da fama o collocassem nas alturas, soube estudar a fraqueza d'aquelles a quem se dirige: d'ahi a supposta victoria! Os seus escriptos, adequados ás intelligencias fracas, que só pensam no oiro e no bem particular e que despresam o bem geral, que é a prosperidade d'este paiz; resumem-se nas doutrinas erroneas, tantas vezes repetidas, mostrando sempre o caminho phantastico, que já mais poderá conduzir o viajante incauto ao sonhado El-Dorado. Esses escriptos, alem de mentirem á historia, como havemos de provar, formam, por assim dizer, um compendio de instrucções pueris, que parte do nosso commercio abraça e premeia, sem lhe estudar a causa, que é a decadencia do imperio; e n'esta ignorancia, ou egoismo, serve de porta-voz ás illusões que taes escriptos encerram, para que os nossos infelizes trabalhadores abandonem a patria e a familia, e que, melhor aconselhados, deveriam com seus robustos braços, concorrer para o engrandecimento da nossa agricultura, que ha de vir a ser a riqueza de todos que para ella collaborarem.
O livro de que vimos fallando defende e aconselha a emigração de portuguezes para o Brazil. A razão é forte:—o imperio precisa de braços, como o esfomeado precisa de alimentos, e o novel historiador, como bom filho, não quer ver morrer a sua patria.[64]
Honra lhe seja.
Não condemnamos a emigração expontanea. Ella, até certo ponto, é necessaria, especialmente a que se encaminha para possessões nossas, onde o trabalho fica sendo riqueza da patria, quer os lucros permaneçam nas nossas colonias, quer se desviem para á metropole. Não a condemnariamos mesmo para o imperio, se se não dessem as circunstancias apontadas já e outras que faltam apontar ainda. Mas como filho d'este abençoado paiz, condemnaremos com todas as veras do coração as falsas doutrinas de que se servem os alliciadores, para arredarem de Portugal e seus dominios os nossos trabalhadores incautos.
Nada de enganos. Pintem o Brazil tal qual elle é, e se depois de exhibirem o seu fiel retrato, apparecerem adoradores, la se avenham os descrentes do retratista.
Não aconselhariamos ao auctor do livro que analysamos a que dissesse mal do seu paiz. O que não desejamos para nós não aconselhamos aos outros. Mas se a causa é má, cumpria dar-lhe de mão. O bom advogado, pelo menos, não tomaria conta d'ella.
O auctor do Brazil não só se fez o advogado de uma causa má, mas, o que é mais, o seu escripto recente-se da falta de seriedade, depois que foi transformado em historia.
O historiador é quasi profeta: elle deve estudar muito o passado e o presente para evitar os males futuros.
Um habil operador corta a parte gangrenosa, para evitar a perca total do corpo. E o auctor do Brazil, não metteu o bisturi na chaga:—o mau systema da colonisação, as leis barbaras que a matam.
O historiador não deve ser injusto.
Thiers, antes da guerra assolar a França, previu os males da sua patria. Deixou por isso de ser o primeiro entre os francezes?
O auctor do livro o Brazil, alem de tentar deslustrar-nos[65] não viu o mal que definha a sua patria, para applicar-lhe o curativo. Parece que só escrevera para exaltar os malevolos e, depremindo-nos, illudir os pobres d'espirito. Mas ainda mesmo que os incautos, seduzidos pelas phantasias deixem passar as excrecencias que o livro encerra, julgará o governo brazileiro, por conta de quem foi escripta a obra em questão, que alguns milhares de colonos do nosso paiz, poderão supprir a falta de alguns milhões de braços de que se resente a lavoura do imperio?
Portugal possue uns quatro milhões de habitantes e pouco mais comporta o seu territorio. O Brazil deve possuir uns dez milhões, mas comporta duzentos! É impossivel que o nosso paiz possa supprir o imperio de tão grande falta; assim como não é razoavel que uma pequena fonte possa abastecer de agua uns poucos de mil hectares de terras sequiosas.
Vejamos quaes são os paizes que mais podiam concorrer para a prosperidade do Brazil. Naturalmente a Inglaterra, a Allemanha, a França e a Italia; mas os governos d'estas tres ultimas potencias prohibem a emigração para o imperio, quando alli se manifesta a febre amarella, que produz os seus maleficos effeitos nos primeiros seis mezes de cada anno. E quando não existisse tal prohibição, seria facil aos estadistas do Brazil desviar a corrente da emigração d'aquelles povos para a America do Norte?
Não, de certo: a isso se oppõem os costumes e as leis do povo brazileiro.
«O Brazil, essa nova terra da promissão, onde de dia para dia se vae realisando a promessa de Christo de—cento por um—depois de attestar a sua virilidade em tantos combates illustres, pelejados nos campos do[66] Paraguay, despe, conscio da sua missão civilisadora e humanitaria, a farda do soldado da liberdade, e vestindo novamente a blusa do trabalhador, e empunhando alegre a rabiça do arado, volve, como o cidadão romano dos tempos da verdadeira grandeza de Roma, a retemperar-se de forças e virtudes nos abençoados labores da sua agricultura.»[20]
Sim, senhor. Estylo de poeta, saido do parnaso das mattas frondosas, deitado em maqueira de pennas de araras, embriagado pelo aroma das flôres pendentes dos cipós que do cimo das arvores seculares, vem interlaçar-se na cabeça escandecente do poeta: comendo aráçá e bebendo a saborosa agua de côco, transformada no maná do céo; adormecendo ao som mavioso do sabiá, que chilrea no cimo da palmeira; rodeado de beija-flôres e de tapuyas, os anjos d'aquelle paraizo deslumbrante, e ao mesmo tempo venenoso!
Sim, senhor; sonhos de poeta transformados em historia!
O Brazil, berço da indolencia, e tumulo da maior parte d'aquelles que têem querido sondar os seus intrincados labyrinthos, convertido, com uma pennada, em—nova terra da promissão—e... em paiz de romanos!
O Brazil, morto emquanto se davam os combates illustres, revivendo depois para empunhar a rabiça do arado! como se fôra possivel admittir, sem replica, que os trabalhos agricolas paralisassem no tempo da guerra do Paraguay; como se fôra certo que o soldado viera do campo da batalha substituir a farda pela blusa do cidadão romano!
Cento por um! e no Brazil ha tanta miseria como em qualquer outro paiz da Europa![67]
Dos que procuram aquellas inhospitas plagas, convertidas n'um momento de lyrismo, na terra promettida, escapa ou pode ser feliz um por cento.
Nunca nos cançaremos de repetir esta verdade, por que sabemos por experiencia o que é o Brazil.
É bom escudar com documentos de mui recente data as nossas palavras.
Diz um que temos á vista:
«Dos emigrantes, aquelles a quem cabe mais desgraçada e commovente sorte, são os que vem para fugir ao recrutamento; não os clandestinos, mas os menores de 14 annos, e infelizmente é avultado o numero d'estes; porque, como só depois dos 14 annos é que são obrigados a prestar fiança, os paes para os não verem soldados preferem arremessal-os para o Brazil, muitas vezes sem a mais leve recommendação, entregues completamente á sua inexperiencia, se não acham a quem os vender!
«É ignobil, mas é verdade.
«Estes infelizes assim vendidos, vão para o interior do paiz ser barbaramente explorados pelos compradores, que os obrigam a todo o genero de serviços, muitas vezes superiores ás suas forças, tratando-os peor que aos seus escravos, porque estes representam um capital consideravel e aquelles sómente a importancia da passagem.
«A acção dos funccionarios consulares fica inutilisada para os proteger na sua chegada a esta côrte, e a das auctoridades territoriaes é nulla no interior contra os fazendeiros» etc.[21]
E accrescenta:
«Todas estas coisas, que deixo expostas influem mais ou menos na emigração, mas realmente o que se póde dizer[68] que abertamente influe n'ella são os engajadores e a febre do ouro.
«Os primeiros seduzindo essa pobre gente e abonando-lhes a importancia da passagem e mais arranjos, fazem recrudescer a febre que domina as populações e o delirio os impelle a entrar n'esse fatal azar em que jogam familia, patria, saude e a propria vida contra uma fortuna que raros attingem.»
A divisa—cento por um—está bem patente n'este documento official.
O consul do Maranhão é mais esplicito. Vejamos como elle distingue a nova terra da promissão:
«Quem estudar as causas da grande torrente de emigração que todos os annos se estende para o Brazil, ha de confessar que ella assenta muito principalmente nas falsas insinuações de alliciadores assalariados que, sem consciencia e dominados sómente pelo seu proprio interesse, arrastam essa parte da nossa sociedade menos esclarecida para a ruina.»[22] etc.
E mais adiante:
«De todas as emprezas fundadas, não póde haver seguramente nenhuma mais vil e ignominiosa do que seja esta (a dos engajadores), que tem por fim seduzir uma innumeravel multidão de portuguezes ignorantes, e por isso facilmente se deixam dominar pelas ficticias narrações das abundantes minas de oiro, que se encontram por toda a parte, pelas excellencias e fertilidade d'este solo!
«Os miseros que ali trabalhavam (na colonia Arapapahy) debaixo d'um sol ardente e enterrados em lodo, acabaram pela maior parte no hospital; outros ainda doentes foram mandados por este consulado para a sua terra natal, posto que com algum sacrificio, e os restantes amarellos e inchados, vagueavam por essas ruas esmollando a caridade publica!»[69]
Que paraizo!...
O consul de Pernambuco tambem não acredita no maná descoberto no Brazil pelo auctor do Estudo historico.
Eis como elle se expressa:
«Os emigrantes portuguezes estabelecem-se geralmente nas capitaes das provincias, ou em uma cidade ou villa do litoral, ou do interior, onde haja algum commercio de certa importancia, sendo mui raros os que se aventuram a internar-se no paiz, por não terem nem protecção de patricios, parentes ou de amigos, e por estarem menos garantidos na sua segurança pessoal e de propriedade!
«Poucos são os que se empregam na agricultura, tanto pela razão acima declarada, de pouca propensão que tem a internarem-se no paiz, como pelo rigor do clima dos tropicos» etc.[23]
É a terra promettida... e um calor, que deixaria os colonos feitos em torresmos, se caissem na patetisse de se exporem ao sol!
E encarando a cousa pelo ponto de vista social, accrescenta:
«As relações em que vive a colonia portugueza com a população do paiz não são caracterisadas pelas attenções, obsequio e amisade cordeal que seria para desejar existisse entre os emigrantes portuguezes e os naturaes do paiz, sendo uns e outros da mesma origem, fallando o mesmo idioma e tendo a mesma religião.
«Póde dizer-se em geral que os emigrantes portuguezes, que residem n'este districto consular, não são bemquistos da população nacional, que, além de tratal-os de modo grosseiro e offensivo, soffrem muitas vezes epithetos affrontosos, e são victimas do odio latente que os nacionaes nutrem contra elles!»[70]
É este o reverso da medalha.
A promessa do author do novo livro—não profanaremos Christo—de cento por um, com respeito ao Brazil, é o calor tropical e o lado pestifero; são as riquezas ephemeras, os horrores da miseria, a falta de protecção das authoridades e os maus tratos do gentio!
Não é pouco!...
O que citamos do livro Brazil não é sufficiente para dar maiores proporções á nossa humilde critica. O seu auctor não levou a palma da victoria a outros apologistas do imperio americano. Nós já lemos cousas mais attrahentes ou seductoras, e, por isso mesmo, mais romanticas, que é o que convem para illudir os emigrados.
As palavras que vamos transcrever deviam necessariamente surtir melhor effeito.
Eil-as:
«Do Novo Mundo, tantos seculos escondido, e de tantos sabios calumniado (sic), onde não chegaram Hannon com as suas navegações, Hercules Lybico com as suas columnas, nem Hercules Thebano com as suas emprezas, é a melhor porção o Brazil; vastissima região, fertilissimo terreno, em cuja superficie tudo são fructos, em cujo centro tudo são thesouros, em cujas montanhas e costas tudo são aromas; tributando os seus campos o seu mais util alimento, as suas minas o mais fino ouro, os seus troncos os mais suaves balsamos, e os seus mares o ambar mais selecto: admiravel paiz a todas as luzes rico, onde prodigamente profusa a natureza, se desentranha nas ferteis producções, que em opulencia da monarchia, e beneficio do mundo apura a arte, brotando as suas cannas espremido nectar, e dando as suas fructas sazonada ambrozia, de que foram[71] mentida sombra o licôr, e vianda, que aos seus falsos deuses attribuiu a culta gentilidade.
«Em nenhuma outra região se mostra o ceu mais sereno, nem madruga mais bella a aurora: o sol em nenhum outro hemispherio tem os raios tão dourados (nem é tão quente!) nem os reflexos nocturnos tão brilhantes; as estrellas são as mais benignas, e se mostram sempre alegres: os horisontes, ou nasça o sol, ou se sepulte, estão sempre claros: as aguas ou se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das povoações nos aqueductos, são as mais puras: é emfim o Brazil terreal paraiso descuberto, onde tem nascimento e curso os maiores rios; domina salutifero clima (sic); influem benignos astros, e respiram auras suavissimas, que o fazem fertil e povoado de innumeraveis habitantes, posto que por ficar debaixo da Torrida Zona, o desacreditassem, e dessem por inhabitavel Aristoteles, Plinio, e Cicero, e com gentios os padres da igreja santo Agostinho, e Beda, que a terem experiencia d'este feliz orbe, seria famoso assumpto das suas elevadas pennas, aonde a minha receia voar, posto que o amor da patria me dê azas, e a sua grandeza me dilate a esfera.»[24]
Aconselhamos aos alliciadores a conveniencia de mandarem acrescentar as palavras que ahi deixamos transcriptas nos cartazes que costumam affixar nos troncos dos carvalhos dispersos pela natureza nas proximidades das vivendas dos nossos proletarios do norte. Os capitães dos barcos conseguirão assim mais facilmente o lastro desejado!...
Condemnamos o estylo empregado nos trechos citados de um e outro escriptor, ambos com pretenções a historiadores, porque esse estylo, segundo Lamartine, «é a magica de que o homem se serve, muitas vezes[72] com feliz successo, para fazer admittir paradoxos como verdades e sophismas como excellentes raciocinios.»
A imparcialidade da historia, dizia o referido escriptor, não é como a do espelho que reflecte os objectos; é a do juiz que vê, escuta e julga. Para que ella mereça este nome, é-lhe mister uma consciencia. A narração vivificada pela imaginação, reflectida e julgada pela sabedoria, eis a historia.
Quem não sabe escrever a historia assim, deve quebrar a penna antes de profanal-a.
Mas aos agentes do Brazil, convem desvirtuar tudo, convencidos como estão, de que podem chegar mais facilmente a seus fins—o interesse particular.
Que lhes importa a elles a historia?...
É moda hoje erigirem-se estatuas aos pygmeos da actualidade! E que importa que a posteridade, que costuma erigil-as aos verdadeiros heroes, venha derrubal-as para cima dos tumulos da ignominia? que se afundam as estatuas na lama em que vegetavam os miseros animalucos, transformados, n'um momento de delirio, de hypocritas em Catões?
Podereis acaso, mumias lodosas, fazer fallar o pó a que infallivelmente estarão reduzidos os vossos pergaminhos e as vossas lucubrações?
Não, que a verdadeira historia, quando se demora um pouco para dar realce a qualquer vulto digno, se alguma vez lança mão d'esses pygmeus, é para os esmagar!
O governo do Brazil deu o passo errado de libertar os escravos antes de criar as leis, que regulassem o trabalho no imperio.
Devia, como já o dissemos em outro logar, ter educado os naturaes a desempenhar o papel, que outr'ora representava o trabalhador africano. Ninguem melhor do que o indigena podia substituir o escravo; mas a lei que libertára este mostrou ao mundo a inutilidade[73] d'aquelle. É o que hoje estamos vendo. A agricultura definha de dia para dia, á maneira que o antigo trabalhador se liberta; e o Brazil abre os braços suplices aos europeus, para que o livrem do abysmo em que pouco a pouco se vae precipitando. Por isso os seus homens d'estado lançam mão de qualquer meio, sem previamente lhe conhecer a utilidade. Similhante ao naufrago, em pleno oceano, a vaga que ha de matal-o, se lhe afigura a taboa da salvação. Não se contenta com a fama das riquezas ephemeras, fama que em todas as épocas assombrou o mundo. Destaca agentes para Portugal, onde as vozes descompassadas dos engajadores não pódem formar écho além das nossas fronteiras. Gasta fabulosas sommas, com esses engajadores que em troco, fazem transportar para o Brazil algumas centenas de braços, que, afinal, não compensam as despezas feitas; porque, além do numero de colonos ser limitadissimo; o europeu, uma vez chegado ás margens d'esse paiz de fadas, convertido no que realmente é—cemiterio do proletario—vê-se na impossibidade de empregar as suas já quebrantadas forças, por effeito do clima, no serviço arduo de arrotear aquellas terras, que por todos espalha o desanimo e a morte. E os homens do Brazil dormem á sombra dos combates illustres da guerra do Paraguay, esperando, sem duvida, que do ceu lhe cáia o orvalho vivificador, promettido pelo auctor do livro que analysamos!
«A emancipação do escravo, caminho resvaladio para a extincção definitiva d'esse abominavel cancro, que tanto tem afeiado os codigos das nações mais civilisadas, e as ultimas disposições da lei, tendentes a facilitar a naturalisação dos estrangeiros, ao passo que revelam[74] o cuidado, que põe o governo brazileiro em dar certo cunho de homogeneidade á legislação civil do imperio, acabam igualmente por convencer que o seu pensamento predominante é o de reunir, sob o céo esplendido do Cruzeiro, os individuos de todas as naturalidades, que alli quizerem ter por patria commum—o trabalho.»[25]
Analysemos a emancipação do escravo, quanto baste para demonstrar, que aos homens que collaboraram na lei do imperio, n.º 2040, não presidiam só as leis da humanidade, que, ainda assim, não devemos negar a outras nações mais cultas; mas tambem a ideia de se imporem ás outras nações, como quem tinha estudado, bem de perto, e com melhor exito, uma questão tão complexa; parecendo querer corrigil-as da sua morosidade, na destruição do cancro, e quiçá da creação d'elle, cancro que talvez o Brazil não creára se fosse dirigido pelos homens que em 1871 estavam á testa dos negocios do imperio!
Não negamos as vantagens moraes da abolição da escravatura, mas negamos a apregoada phylantropia d'aquelles que ensinámos a ser humanos.
Um conjuncto de circumstancias, que seria fastidioso enumerar, e que não comporta este trabalho concorreram para o commercio da escravatura no Brazil, levando a melhor parte n'esta deshumana ideia os jezuitas que, desde a primitiva, dominaram na America meridional. Fosse que elles reconhecessem a inutilidade de empregarem os naturaes—por demasiadamente indolentes—na exploração de tão feracissimo solo, fosse por sua demasiada ambição, o que é certo é que os governos de Portugal se insurgiram sempre contra tão abominavel commercio, dando provas as mais honrosas da sua humanidade pelas victimas.[75]
Foi Portugal uma das primeiras nações que deu o passo para a liberdade dos escravos; mas quando julgou dever dar esse passo, fel-o mais por humanidade do que por jactancia.
Estudou a questão por todos os lados, e quando se convenceu que a destruição d'um mal lhe não accarretaria outro, deu o golpe com as cautellas aconselhadas pela prudencia dos verdadeiros homens d'estado.
E o que fez o Brazil? Estudou a questão em toda a sua plenitude? Destruindo o mal da escravatura preta não crearia outro mal a escravatura branca?
Era preciso estudar bem um assumpto tão milindroso, para que, com o bem moral, que infallivelmente havia de succeder a essa liberdade, não começassem a sentir-se os effeitos materiaes e horrorosos do prostramento da agricultura do imperio, pela falta de braços, e terem os homens de estado, para salval-a, que lançar mão d'um mal peior do que aquelle que haviam fulminado—a escravatura branca.
Estudaram elles esta questão? Não.
Na época em que a lei apontava aos escravos a sua liberdade, existiam quatro milhões d'aquelles infelizes; e os legisladores brazileiros calculavam, que, d'ahi a vinte annos, quando os escravos estivessem completamente forros, existiriam mais de 20 milhões de braços livres. A fecundidade do africano é superior á de outra qualquer raça, e d'ahi a extraordinaria multiplicidade de braços; mas o africano, geralmente fallando, uma vez livre, é tão inutil como qualquer indigena dos tropicos.
O Brazil, com a sua apregoada falta de braços e com o definhamento da sua agricultura, corrobora a nossa asserção.
Effectivamente, se no tempo da escravatura, se não precisava do braço europeu para o desbravamento das terras, como é que hoje que o Brazil deve abrigar em[76] seu seio maior numero de braços de origem africana, em quem tanto confiava, vem á Europa mendigal-os para a sua decadente agricultura?
Sobre a situação do imperio com respeito ao elemento servil disiamos ha pouco:
«D'aqui a dez ou quinze annos, quando estiver extincta a escravatura no Brazil, sem que o governo tenha remediado este grande mal e os lavradores, faltos de recursos materiaes liquidarem as suas fortunas e procurarem, como é natural, melhor emprego para o seu capital, chegará então o grande imperio americano ao ultimo grau da sua decadencia; porque, uma vez livre o elemento escravo, que no Brazil é e ha de ser sempre a alma da lavoura, ninguem mais poderá faser trabalhar o preto que com o salario de um dia, se julga habilitado para comer 15 ou 20.»[26]
Não eramos só nós que assim pensavamos. Ao tempo em que isto escreviamos, já estava tambem escripto, mas não publicado, o seguinte:
«A moderna lei do elemento servil, que posto não minorasse os instrumentos do trabalho tende á sua progressiva diminuição, compelle o Brazil a empregar todos os exforços para adquirir braços que lhe substituam os que aquella lei inutilisou com a liberdade, pois que o escravo entendo que esta só consiste em não trabalhar.»[27]
Aniquilando o imperio, podem chamar-se humanos os seus aniquiladores?
Consentindo o governo do Brazil na escravatura branca, que outra cousa não são os engajamantos que ora se fazem, não é ser tambem deshumano?
Que nos respondam os homens conscienciosos.[77]
Vejamos agora quaes são as vantagens que as leis brazileiras offerecem ao estrangeiro.
Para qualquer se naturalizar cidadão brazileiro, terá que residir dois annos no imperio, declarando a intenção de continuar a residir alli ou a servil-o depois de naturalisado (absurdo); as cartas de naturalisação, serão isentas de qualquer imposto, excepto o de 25$000 réis de selo! Na occasião do individuo prestar juramento de fidelidade declarará seus principios religiosos (não sabemos para que.)
O estrangeiro não poderá viajar dentro do imperio, (lei de 10 de janeiro de 1855) sem passaporte, que será visado pelas authoridades da provincia por onde passar!
O regulamento de 30 de junho de 1855, garante aos colonisadores na provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul, as despezas da viagem e alimento desde a cidade do Rio Grande até ao logar do seu destino, e bem assim as despezas de accommodação até ter casa propria, não excedendo o praso de 60 dias! Garante egualmente aos mais necessitados o subsidio de 3 mezes na razão de 200 réis por dia aos solteiros, e de 160 réis a cada pessoa de familia de mais de 2 annos.
Agora o reverso da medalha:
«O preço minimo de cada braça quadrada de terras, diz o regulamento citado, é de 3 réis, sendo augmentado segundo for sua qualidade e situação.»
O nosso distincto compatriota dr. H. Roberto Rodrigues, diz o seguinte a este respeito:
«Se as terras pertencerem ás provincias ou municipios como suas dotações, não chegam ao emigrante senão atravez de um primeiro possuidor, que as não cultivou mas que lhes elevou o preço e com o encargo de[78] praso phanteuzim de laudemio de quarentena e fôro annual de 500 réis por braça linear da maior frente, alem das alcavalas tambem herdadas, da sisa da venda de 6 por cento, sello proporcional em millessimo por cento do preço e escriptura. As terras particulares não se podem obter se não por preços exorbitantes. Por meio de locação são peiores as condições em geral para o locatario. Os contractos mais favoraveis de que tenho tido conhecimento ainda assim nada deixam ao locatario. Darei um exemplo do mais favoravel.
«O dono do terreno concede-o gratuitamente por tres annos (terreno de 1:000 braças quadradas em matto), e n'esse periodo deve o locatario cercal-o (custo do cerco 1:320$000 réis), fazer casa de moradia (custo da mais barata 500$000), arrotear o terreno (custo minimo 60$000), e cultival-o (custo minimo 100$000 réis). Total 1:980$000 réis, ou 1$980 réis por cada braça quadrada. Concede mais um anno a 240$000 réis de aluguer, e o seguinte a 480$000 réis. N'este periodo de cinco annos, o locatario apenas tira o producto liquido de 580$000, medio annual, que lhe deixou além da sua alimentação, apenas o lucro de 200$000 réis em cinco annos!
«Estes preços e condições são os das visinhanças das cidades (distancia de 6 a 10 milhas). A distancias de 30 ou 40 leguas (com um ou dois dias de viagem a vapor), os preços e condições descem um decimo, mas os fretes dos productos quasi prefazem a differença com o preço mais alto dos objectos de importação.»[28]
Admitamos que esse preço não augmenta; e estabeleçamos 125 mil braças quadradas para cada colono (seguindo as instrucções de 23 de novembro 1861), que importam em 375$000 réis, e que o governo brazileiro embolsará no praso de 5 annos.[79]
Que capital empregará elle para lucrar aquella somma por cada colono?
Vejamos:
Subsidio de 200 réis dispensado a cada colono necessitado, por espaço de 90 dias | 18$000 |
Despezas do transporte e alimento, d'esde o Rio Grande até ao local da colonia, calculemos | 18$000 |
Accommodação por 60 dias | 4$000 |
40$000 |
Ora emprestar 40$000 réis para lucrar 375$000, no fim de 5 annos, não é máu negocio. E os que não necessitam do emprestimo?
E chama-se a isto proteger a emigração e a agricultura!
Mas não fica aqui ainda o tal auxilio. O colono que nos prazos marcados não satisfizer os taes 3 réis por cada braça de terreno, e bem assím todas as despezas será obrigado a pagar um premio de 12 p. c. por cada anno!
O Brazil que conta perto de 9 milhões de kilometros quadrados de supreficie, e que pode ter desbravado pouco mais da centessima parte, leva a sua avidez ao ponto de exigir por terrenos que nada lhe rendem a fabolosa importancia de 3 réis por cada braça, se a esses terrenos não for arbitrado maior preço! Mas não se julgue que é este só o lucro que o Brazil aufere com a sua apregoada protecção aos colonos. As madeiras extrahidas dos seus frondosos arvoredos, o maior obstaculo da agricultura, pagarão 14 p. c. da exportação. O algodão, o café e outros productos agriculas, não são isentos de taxas eguaes, se não superiores!...
Os lucros seriam incalculaveis, se houvesse bastantes idiotas a auxiliar d'estes e quejandos disparates administrativos dos economistas brazileiros.[80]
Mas as instrucções de 23 de novembro de 1861 são mais simples, isto é, estende-se aos territorios das vastissimas provincias do Espirito Santo, Minas Geraes, St.ª Catharina e Paraná.
Estabelece-se alli que os colonos serão recolhidos, na sua chegada ao Rio, á hospedaria da ilha do Bom Jesus, e alli gratuitamente sustentados e tractados em suas enfermidades, até partirem para o seu destino. O preço do terreno é que não baixou de tres réis por cada braça quadrada. Os auxilios, taes como ferramentas, sementes, e meios de subsistencia, aos necessitados, são superiores; por isso maior será a divida que ha de infallivelmente amortisar, não no prazo de cinco annos, como está estipulado nas instrucções de 10 de janeiro de 1855, mas no de seis, o que não deixa de ser logico!
Com tudo, as novas e ultimas instrucções dispensadas em favor da colonisação, não obstante estarem seis annos no cadinho dos alchimistas escolhidos pelo Brazil para achar o elixir que ha de aformosear a decadente agricultura, não remedeiam o grande mal, e são um novo titulo votado á inepcia do governo que o sancionára.
Vejamos agora o que faz um paiz lemitrophe do imperio americano a respeito da colonisação.
A republica de Buenos Ayres, por decreto de 21 de outubro de 1855, authorisa a concessão, em propriedade perpetua, de cem leguas quadradas de terreno, em Bahia Blanca e Patagones, aos individuos, ou familias nacionaes ou estrangeiras que pertenderem povoal-as.
A lei de 7 de junho de 1856, declára porto franco para os navios mercantes de todas as bandeiras, o da Bahia Blanca, sobre o occeano Atlantico; isentando de[81] todo o direito de porto, os navios do alto mar ou cabotagem, que alli concorrem de qualquer procedencia, o que nunca fez o Brazil, nem mesmo com respeito ao rio Amazonas, que, não obstante ter sido decretada a abertura, permanece fechado para os navios estrangeiros; mas, o que é mais importante, a referida lei da republica do Prata, declara em seu artigo 3.º, o seguinte:
«São igualmente livres de todo o direito d'alfandega, por espaço de cinco annos, as importações e exportações de toda a classe que por aquelle porto se verificarem; bem entendido que esta franquia é limitada ao consumo exclusivo e producção propria d'aquelle districto.»
Mirem-se n'este espelho os legisladores brazileiros.
O Mexico, esse paiz riquissimo de solo, e de revoluções, tratava ha pouco de discutir uma lei importantissima sobre o assumpto que analysamos. A verba que destinava á imigração, era de 500:000 pesos.
Eis como um jornal brazileiro[29] dá conta d'essa lei:
«Os emigrados deverão ser transportados á custa do governo, desde o paiz de sua residencia até ao ponto do seu destino: durante a viagem lhes serão ministradas as necessarias provisões, e no primeiro anno receberão um auxilo de 90 pesos, e se ao expirar o segundo anno, desejarem voltar ao paiz de sua procedencia, o governo por sua conta lhes dará transporte.
«Apenas uma colonia chegue a conter cincoenta familias, poderá constituir uma corporação municipal, eleger os seus empregados, e fazer os regulamentos que os seus interesses exigem, com tanto que não se opponham ás leis federaes e locaes.
«Por espaço de cinco annos, não pesarão outras contribuições e impostos sobre as terras dos colonos, que não sejam os municipaes.[82]
«Os generos alimenticios, ferramentas e materiaes de construcção para os colonos, serão importados livres de direitos.
«Qualquer navio que importar mais de dez emigrantes ficará isento de pagar os direitos de tonelagem, pharoes, ancoragem e pilotagem.
«Todo o emigrante desde o momento da sua chegada será declarado cidadão e gosará desde logo dos direitos civis e politicos como se fosse cidadão nato.
«Das terras publicas destinar-se-ha uma parte para emigrantes.
«Os colonos que se destinarem á cultura do solo receberão uma quantidade de terras que não seja inferior a 110 geiras nem exceda a 1:100, podendo cultival-as por espaço de 10 annos gratuitamente; no fim d'este termo ficará á sua opção, ou pagar a dinheiro o seu valor integral, ou pagar annualmente uma decima parte do mesmo valor, até saldar a somma total em 10 annos.
«Nas terras, que se medirem para fundar cidades, dar-se-ha um lote a cada emigrante.»
É assim que se protege a emigração!
Dissemos que Portugal, não é o paiz que mais colonos deve fornecer ao Brazil.
Dissemos tambem que os filhos das outras nações da Europa, preferem os estados da America do norte; e que os governos da Allemanha, França e Italia, prohibem a emigração de seus subditos para o imperio brazileiro.
Qual a causa d'esta preferencia e d'esta prohibição?
A falta de leis protectoras para o emigrante, responde á preferencia dos estados do norte pelos do sul; e a[83] insalubridade do Brazil, e quiçá a falta do cumprimento das leis pouco liberaes que ali existem, responderá facilmente á medida adoptada por aquelles governos—a prohibição.
Já vimos que as disposições brazileiras, tendentes a facilitar a naturalisação dos estrangeiros no Brazil, não são sufficientes, para que, debaixo do ceu do Cruzeiro, possam todos os individuos, com independencia, chamar-lhe a terra do trabalho.
O sr. Augusto de Carvalho mostra alguns conhecimentos da vida dos povos subordinados aos estados do norte, e por isso mesmo devia apontar ao governo brazileiro as disposições liberaes das leis americanas, que fazem dos Estados-Unidos um paiz livre, dirigido por cidadãos e não por jesuitas.
E não vá persuadir-se que é pequena cousa para o engrandecimento d'um povo o assumpto—religião.
O artigo 5.º da carta constitucional do imperio, que faz da religião catholica apostolica romana, a religião do estado, é o maior obstaculo contra a emigração dos europeus.
Os inglezes e especialmente os allemães, os unicos que podiam formar um grande nucleo de emigração, são protestantes; e os filhos dos outros paizes catholicos, ao deixarem a patria, suppõem que hão de ir encontrar, n'um paiz novo, uma sociedade nova, cujos principios liberaes sejam, quando não superiores, ao menos iguaes aos que se professam no paiz d'onde emigram. Mas o europeu, completamente illudido, vai encontrar o grande imperio dominado pelos jesuitas, impondo ao emigrante os seus principios reaccionarios, sob pena de serem apontados á população, como inimigos do imperio, servindo-se para isso dos pulpitos e dos jornaes, transformados em pasquins, que o governo tolera, desculpando-se em não querer tolher a liberdade do pensamento, mas espezinhando essa liberdade quando as manifestações[84] contra o jesuitismo, como justa represalia, partem dos estrangeiros!
Despresando os sãos principios seguidos na America do norte, e por consequencia—o pensamento de reunir sob o mesmo ceu todas as nacionalidades—só falta ao governo admittir as justas exigencias do seu clero, que pede a forca e os horrores da inquisição, para os adeptos das outras seitas religiosas toleradas no Brazil! E ai dos homens de estado que não attenderem as reclamações da fradaria! Que o diga o gabinete 7 de março, presidido pelo visconde de Rio-Branco, fulminado pelo ex-informate conscientia dos bispos que, para amedrontal-o, haviam creado em todas as provincias o chamado—partido catholico—! a nação em peso a pedir cilicios e fogueiras contra meia duzia de herejes!...
Eis-aqui está um paiz colonisador, entretido na pratica do trabalho... fazendo politica para reunir, sob o ceu explendido do Cruzeiro... os jesuitas de todas as nacionalidades!
De que serviu ao sr. Augusto de Carvalho, a extemporanea defeza que fizera do seu Brazil, ha dois annos liberal, convertido n'um momento, pela simples vontade d'uma mulher em convento de frades?!
É preciso que assignale na sua historia, quando fizer a terceira edicção, esta phrase do seu clero dominador em fins do seculo XIX.
É provavel que com a forca e a inquisição venha o restabelecimento da escravatura. Isto feito, o governo, que presidir aos destinos do imperio, será pelo auctor do Brazil elevado ás honras de patriota!
E poderá o sr. Augusto de Carvalho, como empregado-historiador do Brazil, negar as virtudes do celeberrimo gabinete que substituiu o do visconde Rio Branco?[85]
Na primeira parte do seu livro, mostra-nos o snr. Augusto de Carvalho alguns conhecimentos sobre os principaes fundamentos das colonias, nos estados do norte da America, que vieram, passados dois seculos, pela bocca do seu primeiro cidadão, Washington, declarar livres os treze estados, que haviam de constituir uma das nações mais importantes do mundo.
Concorreram muito para esse engrandecimento razões valiosissimas. Uma d'ellas foi, sem duvida, o desinteresse dos europeus emigrantes pelas dissensões politicas e religiosas dos seus paizes, nos XVI e XVII seculos. A superstição não lhes era peculiar. A politica, no seu entender, não devia adaptar-se á religião, nem esta áquella. Uma e outra deviam ser independentes; mas essa independencia fallecia nos paizes cansados. Os emigrantes, homens novos e liberaes, protestavam contra todas as seitas officiaes, como offensivas do direito natural; e porque os seus protestos não podiam ser ouvidos por quem se entretinha mais com a politica do que com o engrandecimento da patria, preferiram antes procurar novas terras, onde livremente podessem entregar-se de corpo e alma ao trabalho, que é a vida dos povos.
As leis mais adequadas ás colonias foram estabelecidas entre si, chegados á America. A sua religião e a sua politica resumia-se apenas no engrandecimento da patria adoptiva. Esse amor, pela sua independencia, fôra-lhes sempre combatido, até que em 4 de julho de 1776, entenderam os colonos dever sacudir o jugo que os opprimia.
Porém esses caracteres summamente independentes, que abalaram o mundo com o seu amor á liberdade, reconheceram a necessidade da escravatura; e não sabemos[86] se como nós accusamos os jesuitas, elles tambem accusariam os seus priests calvinistas, lutheranos, quakers, rhinoburguezes, conventicularios e arminianos, de introduzirem na America do norte o deshumano trafico.
O que é facto é que—e diga-se isto, ao menos, para desculpa dos dominadores da America do sul—os differentes estados do norte, possuem ainda hoje, para cima, de tres milhões de escravos!
É verdade que a sua população é superior a 30 milhões de habitantes, e que os 4 milhões de escravos, que possue o Brazil, estabelece uma grande desproporção, relativamente superior aos seus dez milhões de habitantes. Mas os Estados Unidos foi um dos primeiros povos que acceitou a divisa—igualdade e fraternidade—; e não só por esta circumstancia, como tambem porque a corrente da emigração europêa era e é fabulosa para o norte, já mais deveria, depois da proclamação da republica, consentir o horroroso commercio. E embora elle tivesse existido antes da independencia, não devia, passado quasi um seculo, apresentar-nos as suas estatisticas, em que figura, como gente escrava, a decima parte da sua população!
Porque não baniu a escravatura dos seus dominios?
Não faltava aos seus homens d'estado a razão que presidiu ao gabinete de 7 de março, do imperio americano, e, antes d'este, á maior parte dos gabinetes europeus, em cujo numero figura Portugal. Porém, os americanos do norte, além da divisa—igualdade e fraternidade—que a todo o mundo apontam, tem outra, que a todos occultam—a conveniencia de salvaguardar os interesses da sua agricultura, que é o engrandecimento da republica.
O que é um facto inquestionavel, é que a tolerancia religiosa dos inspirados pela côrte romana, intolerancia que ainda hoje domina os principaes estados do sul da[87] America, é que collocaram o governo do Brazil na coalisão de adoptar medidas urgentissimas, a fim de remediar o grande mal da falta de braços, que de dia para dia vai definhando a agricultura.
O governo brazileiro não devêra ter libertado os escravos, sem primeiro ter creado as leis proficuas que regulam o trabalho. A abolição immediata do imposto de exportação, devia desde ha muito, ser lei do estado. Mas o que de fórma alguma deve existir é o artigo 5.º da sua constituição politica.
Não foi com similhantes empecilhos que progrediram os Estados Unidos da America do norte.
A segunda parte do livro do snr. Augusto de Carvalho, leva-nos a demorar um pouco mais a nossa analyse sobre a escravatura.
É incontestavel que este horroroso commercio, exercido mais largamente depois do descobrimento da America, tinha, até certo ponto, a sua razão de ser.
Não desculparemos por fórma alguma o systema de alguns jesuitas, usado na catechese dos indigenas da America do sul, systema que no entender de alguns historiadores, escravisava os indios em logar de os chamar a luz da civilisação.
Porém, se accusam a companhia de demasiadamente interessada no seu engrandecimento moral e material, como é crivel admittir que os seus filiados não usasem de todos os meios para aproveitar as povoações errantes da America, confiadas ao seu criterio religioso? Não lhes seria mais util esse aproveitamento, do que terem de lançar mão dos filhos de Africa, que, com mais razões do que os indios, aborreceriam os seus senhores, jesuitas ou não?[88]
Uma forte razão vem em favor da companhia: os indios das duas Americas, geralmente fallando, são indomaveis; inimigos da civilisação, a sua vida ha de ser sempre a dos povos errantes, até extinguirem-se. Não obstante, a catechese dos indigenas da America do sul, trouxe maior numero de seus filhos ao gremio da civilisação, do que os systemas usados no norte, onde os dominadores, convencidos da inutilidade de seus esforços, lhes dão caça, como se os indios fossem bichos de matto!
O commercio da escravatura apparece no meado do seculo XVI. A sua existencia não póde deixar de attribuir-se ao mau systema dos governos, que dominavam a America meridional, em quererem catholisar os europeus, que por ventura entendessem dever procurar novas terras. Os jesuitas eram os fiscaes do catholicismo nos novos dominios de Portugal e Hespanha.
Se não fosse a companhia era provavel que a corrente da emigração europêa se encaminhasse, em parte, para o sul. Se os jesuitas não dominassem as duas côrtes, era provavel que os governos de Portugal e Hespanha levantassem a redoma com que encobriam aos olhos dos profanos as suas joias preciosas. Mas os padres experientes comprehenderam que mais facil seria dominar uma nação de escravos do que uma nação de homens livres, porque a America do sul devia ser por mais alguns seculos, o sustentaculo de Roma; por isso é que, devido á sua influencia, os portos d'esta parte do novo mundo estiveram fechados aos estranhos, emquanto que se abriam aos africanos, mais faceis de sujeitar-se aos caprichos jesuiticos; por isso é que n'um estado novo, que nasceu talhado para moralisar os povos decadentes, se formaram umas poucas de nações rachiticas, que até hoje ainda não poderam levantar o jugo ferreo da indomavel companhia.
Se o jesuita Anchieta dizia que os indios, mais por[89] medo do que por amor, se haviam de remir, quem nos prova o contrario d'esta asserção?
O que é facto é que os colonos faziam e os indigenas desfaziam.
Houve mais tarde desregramentos n'essas entradas ou bandeiras de que falla o sr. Carvalho, com o pretexto de salvar os captivos dos proprios indigenas. «Os governadores, segundo refere Mendes Leal, nos Bandeirantes, muitas vezes e por muitos modos quizeram pôr cobro n'estes desregramentos. Mas como vigiar, acrescenta o illustre escriptor, e colher em tão vastos e despovoados territorios os criminosos, que todos iam feitos, que mais de uma vez se entendiam com os mesmos capitães-móres, e não raras com os proprios habitantes?»
Estas palavras respondem ás do sr. Augusto de Carvalho, quando quer tornar responsavel o governo da metropole de taes desregramentos.
Entendemos dever fazer algumas observações a respeito das bandeiras, a que se refere o sr. Augusto de Carvalho, no seguinte trecho do seu livro:
«A exemplo dos padres, os colonos, já de si inclinados a este abuso (escravisar os indios), e por que estranhavam os rigores d'um clima tropical que os extenuava nos rudes trabalhos da lavoura (a estas palavras que assignalamos responderemos em especial), abriram largas ensanchas ás suas bandeiras, especie de caçadas de indios que lhes forneciam escravos, a quem commettiam as mais penosas funcções da vida agricola.»
O sr. Augusto de Carvalho, com o fim de metter os portuguezes no torniquete, começára pela adulação.[90] Nós protestamos contra o estratagema porque não queremos elogios nem vituperios. Nós queremos a verdade, sem a qual se não póde escrever a historia.
No entender do sr. Carvalho as bandeiras tinham por fim, unica e exclusivamente, escravisar os indigenas.
Ayres do Cazal, um dos escriptores antigos mais conscienciosos, diz o seguinte a tal respeito:
«Da-se no Brazil este nome—bandeira—a um numero indeterminado de muitos homens, que providos d'armas, munições e mantimentos, necessarios para a sua subsistencia e defeza, entram nas terras possuidas pelos indigenas com algum intuito, v. g. de descobrir minas, reconhecer o paiz, ou castigar as hostilidades dos barbaros.»
Os escriptores mais abalisados são de opinião, que devido ás excursões dos bandeirantes, é que se tornou conhecido o immenso territorio brazileiro.
Vejamos o que diz Ferdinand Diniz a tal respeito:
«Intentámos, no começo d'esta noticia, escrever rapidamente a historia das expedições prodigiosas, devidas aos paulistas, durante o decimo setimo e o decimo oitavo seculo; fizemos ver que todas as grandes explorações que deram a conhecer o interior do Brazil, são resultado da sua perseverança (dos bandeirantes).»[30]
Os padres da companhia, com respeito ás entradas, são assim defendidos pelo citado historiador:
«Grande injustiça haveria em julgar os jesuitas do decimo sexto seculo, e seus trabalhos, segundo as idéas, que póde inspirar o systema das missões. Ali possivel é vêr projectos ambiciosos conciliar-se com boas intenções: nos primeiros trabalhos executados pelos padres da companhia no Brazil, tudo foi desinteressado;[91] e, se necessario fosse, a relação de suas fadigas e padecimentos poderia proval-o. Nobrega mereceu o titulo de—apostolo do Brazil—que nos conferem todas as narrações; Anchieta, que trabalhou sem descanço por espaço de quarenta annos na conversão dos indigenas, e que não temia ficar só como refem entre as mãos dos Tamoyos para salvar a colonia, offerece ainda um caracter mais sublime; o padre João d'Aspicuelta, o padre Antonio Perez, o padre Leonardo Nunes, e tantos outros, os auxiliaram com um zelo, que só póde apreciar quem tem vivido nas florestas, ou repousado n'uma choupana india. Muito falta para que elles obtivessem os resultados, que no Paraguay se manifestaram» etc.
Lacordaire, auctoridade insuspeita na questão vertente, accrescenta, com respeito ás expedições dos bandeirantes, que «se o padre era severo antes de absolver os bandeirantes, informava-se cuidadosamente do objecto da empreza, e só dava a absolvição quando se tratava de descobrir minas; porém o maior numero nada indagava a este respeito, e recommendava sómente, em termos geraes, que tratassem com affabilidade os indios, que no caminho encontrassem, para attrahil-os ao gremio da egreja.» etc.
A bandeira punha-se a campo. «Então começava com toda a sua energia a lucta do homem com a natureza terrivel do deserto. Indispensavel era muitas vezes com o machado abrir caminho na espessura dos bosques, acampar por espaço de semanas inteiras em terras alagadas e pestiferas, desprezar os rios trasbordados, as cachoeiras, a frecha do indio emboscado, o ardor d'um sol vertical durante a estação calmosa, as chuvas abundantes da quadra opposta, a fome e as doenças; era, n'uma palavra, d'absoluta necessidade arrostar todos os perigos, que a imaginação póde conceber. Em todo o logar em que a terra[92] era vermelha e offerecia certos indicios, que o chefe da expedição conhecia, este mandava examinar o solo; se encontravam algum ouro, as passadas fadigas esqueciam, e trabalhos d'exploração sem demora começavam: em caso contrario iam ávante.»
Houve bandeirantes (chefes das expedições do interior), que escravisavam os indios; mas de similhantes actos não póde ser accusada a maioria dos bandeirantes, os colonos e o governo da metropole, nem tão pouco os jesuitas do XVI seculo. Estes foram expulsos de S. Paulo, segundo affirma o historiador que viemos de referir, porque, obtendo um breve do papa, excommungavam os possuidores de indios!
Até ali, como convinha a quem desejava chamar á obediencia de Roma novos proselytos, em substituição dos que tinham abraçado os principios d'uma philosophia mais racional, os padres da companhia, só levavam em mira um novo intento. Depois, quando viram que os seus esforços iam tendo bom exito, não tanto como desejavam, é que arrancaram a mascara da hypocrisia, que fez da America meridional um convento de frades fanaticos, que os governos do senhor D. Pedro II tem consentido no Brazil.
Se Nobrega e Anchieta, depois de haverem esgotado a sua paciencia evangelica, entendiam, já no descanço, «que os colonos, como refere Rebello da Silva, só por meio da guerra poderiam alcançar do gentio o respeito, o socego e a segurança de suas propriedades», quem melhor estaria no caso de conhecer e remediar o mal?
Não eram os colonos atacados em suas propriedades? Quando algumas bandeiras penetravam no sertão,[93] com o fim de reconhecer o paiz, não eram ellas rechaçadas pelos indios?
«Em 1733, segundo o testemunho de Casal, uma frota de 50 canôas, que representava pelo menos 400 homens, fôra inteiramente destruida pelos gentios. De uma bandeira composta de 300 pessoas, que em 1725 saía de S. Paulo, bem provida de tudo, só haviam escapado dois brancos e tres negros. De outras expedições numerosas não houve uma só que voltasse.»
São demasiadamente caricatas as desculpas de alguns escriptores a favor dos indios da America.
Concordamos que não sejam muito evangelicas aquellas phrases de Nobrega e Anchieta; porém devemos notar que similhantes idéas nunca foram seguidas pelos primeiros missionarios. Depois de tantas fadigas era justo que fizessem as suas queixas contra o indomavel gentio. Taes queixas tinha de mau uma cousa só: o aproveitarem-se d'ellas os maus padres, que no futuro haviam de auctorisar os abusos que alguns escriptores lamentam.
E nos principios do seculo XVII, que os jesuitas, com razão, podem ser accusados de escravisarem os indios.
No meado do seculo XVIII eram elles, por assim dizer, os principaes senhores das vastissimas regiões brazileiras. O governo da metropole tinha sido até então impotente contra a força dos sectarios de Loyola.
A provisão de 12 de setembro de 1663, que retirava aos jesuitas a jurisdicção temporal, que, como diz o sr. Mendes Leal, fôra illudida pela poderosa influencia do padre Vieira, mostra até certo ponto a boa vontade do governo da metropole em concorrer para a prosperidade do Brazil. A creação de companhias colonisadoras mostra tambem os seus louvaveis esforços.
Essas companhias foram guerreadas pelos santos varões (seculo XVII).
Vejamos como é que a respeito dos novos actos do[94] governo procediam os descendentes de Nobrega e Anchieta:
«Uma das manifestações em que mais significativamente se patenteou o espirito e intuitos da companhia de Jesus, diz o sr. Mendes Leal, foi a guerra que do pulpito moveu contra as companhias commerciaes, que o ministro por este tempo fundava e protegia a fim de desenvolver a natural riqueza do paiz. Um jesuita, o padre Ballester, para affastar os povos de concorrerem a estas uteis associações e emprezas, vociferava:—que todos os que entrassem n'essas companhias não estariam com a de Christo.»
Que remedio havia de dar o governo a este grande mal, que entorpecia a marcha progressiva do Brazil? Expulsar os jesuitas. E seria facil expulsal-os d'um estado que mais parecia dominio da companhia do que de Portugal?
Era preciso preparar as cousas para d'ahi a quasi um seculo se realisar essa medida salutar.
«... As consequencias d'essa expulsão, refere ainda o referido escriptor portuguez, foram iminentemente favoraveis e proveitosas aos povos.»
E effectivamente, póde-se dizer, sem medo de errar, que desde então para cá (1759), é que começou a florescer o Brazil.
As idéas liberaes proclamadas pela França, foram pouco a pouco fazendo echo nos differentes povos da Europa; e Portugal, um dos paizes mais livres, sendo um dos primeiros a tomar-lhe o exemplo, teria feito hoje dos seus antigos dominios brazileiros uma nação essencialmente liberal.
Não o quiz assim o povo que se dizia escravisado; e Portugal, que em 1820 tinha contribuido para tornar brilhante uma das paginas da sua historia, entendeu pouco tempo depois que não devia tolher a vontade d'esse[95] povo, quando se lhe apresentava em procura da carta de alforria.
O que tem feito o Brazil desde então para cá?
Promulgou leis protectoras á emigração?
Baniu os jesuitas, que o marquez de Pombal, por inimigos do progresso da patria, expulsára de todos os dominios de Portugal?
Não: que o diga o movimento quebra-kilos de Pernambuco, em 1874.
N'um dos artigos antecedentes assignalámos, com respeito á vida dos colonos, as seguintes palavras do sr. Augusto de Carvalho:
«... E porque estranhavam os rigores dum clima tropical que os extenuava nos rudes trabalhos da lavoura» etc.
O illustre litterato refere-se ao Brazil; o que nos leva a perguntar, se um paiz, cujos rigores d'um clima tropical, onde os colonos ficam extenuados pelos rudes trabalhos da lavoura, póde ou deve agradar aos trabalhadores europeus? e se esta deverá ser a terra da promissão, onde, para esses trabalhadores, se possa realisar a promessa de Christo de—cento por um—?
Mais adiante provaremos com documentos irrefutaveis, se não se acha já sufficientemente demonstrado, que semelhante paiz não enriquece os trabalhadores europeus, talvez que pela circumstancia apontada pelo sr. Carvalho, dos rigores climatericos.
Convém entretanto tornar bem patentes as seguintes palavras do sr. Mendes Leal, que não deve ser suspeito ao sr. Augusto de Carvalho, visto que se escuda a uma carta do illustre escriptor, como se escuda a outras de muitos portuguezes, que em seus escriptos têem combatido a emigração para o Brazil.[96]
O auctor dos Bandeirantes refere-se á magestade do vasto imperio, e quiçá ao seu mortifero clima. São estas as palavras que elle collocou na bôcca de um dos heroes da chronica a que alludimos:
«... Solemne é este silencio, magestosa a solidão, certamente. Acres perfumes rescendem nos ares, o ermo convida á meditação, ha n'este conjuncto harmonia e grandeza, concedo. Mas se tudo examinamos de perto, o que achamos? No fundo limoso d'essas aguas espelhentas esconde-se talvez a sucuriuba, espreitando o inexperiente que se aproxima sem cautela, para o ennovellar de subito nas roscas monstruosas! Essas moutas esmaltadas são ninhos de reptis mortiferos! Esses aromas inebriantes vêem carregados de emanações pestilentas! D'essa limpida superficie exhalam-se as febres implacaveis!... Não, o homem que realmente quer avantajar-se e avassallar o vulgo... o homem que nasceu para dominar homens!... nunca se ha de captivar da primeira impressão. Se é tão raro que nos não transvie o coração, e não nos enganem os sentidos!»
Os aromas inebriantes dos seus jasmins e as pennas multicôres das suas aráras, pódem, de longe, convidar o poeta a fazer estrophes: porém, lá dentro, no sertão, ou mesmo no litoral, só em boas chácaras, e, ainda assim... havendo grande necessidade de fazer versos!
Um pouco mais adiante, a paginas 45 do livro que o sr. Augusto de Carvalho tão inconscientemente transformára em historia, lêmos as seguintes palavras, dignas dos mais severos reparos:
«No choque entre o Brazil e a Hollanda vemos ao mesmo tempo, a par de muitos rasgos de heroismo portuguez,[97] o valor brazileiro recebendo nas insignes batalhas das Tabocas e dos Guarápes, o baptismo de fogo, a sagração da gloria. Os feitos guerreiros que exordiaram os fastos militares do imperio, se não deslumbram, egualam os mais illustres que exalçam a historia da mãe patria. Vidal de Negreiros, Philippe Camarão e Henrique Dias exemplos são, e bem claros, de que, em peitos brazileiros, o patriotismo e a honra pódem operar tambem prodigios de civismo e heroicidade.»
A paginas 56:
«A seu lado (ao lado do padre Vieira, que nem sempre fôra isempto de interesse) depara-se-nos egualmente, entrando portas a dentro da historia, com a fronte pejada de louros, e a consciencia illuminada de virtude e de santo desinteresse (sic), o insigne brazileiro André Vidal de Negreiros, por ventura o mais strenuo mantenedor da liberdade da raça americana.»
A paginas 57:
«Vidal tambem não escapou á vingança d'aquelles scelerados (dos jesuitas!) Tantas intrigas lhe urdiram no reino, que não tardou em ser demittido do cargo de governador.»
Desculpe-nos o leitor estas transcripções; mas assim é preciso, para fazer triumphar a verdade, e apontar as contradicções do sr. Augusto de Carvalho, quando diz, que confessava-se Vieira obrigado a Vidal pelo auxilio que lhe déra nas suas missões, etc.
Abramos o livro da verdadeira historia, justamente no logar onde historiadores conscienciosos nos apresentam as memoraveis batalhas das Tabocas e dos Guararápes.
A paz ajustada entre o governo de D. João IV e a republica da Hollanda, depois da independencia de Portugal, levaram os patriotas portuguezes, residentes em[98] Pernambuco, a começar as hostilidades contra os hollandezes, em 1643.
Foi n'esta época que o insigne portuguez, João Fernandes Vieira, tendo preparado o movimento com o seu genio e recursos, intendeu dever começar a guerra contra os inimigos da sua patria. Para isso precisava elle de braços amigos, que o ajudassem na sua gloriosa empreza. E não lhe faltavam elles, porque a população de Pernambuco estava cançada dos vexames do novo governo, que tinha substituido a paternal administração do principe Nassau.
Fernandes Vieira participa esta resolução ao governador geral do Brazil, Antonio Telles da Silva, que incontinente lhe manda André Vidal de Negreiros, com ordem de cessar as hostilidades contra os hollandezes.
Mas a influencia de Fernandes Vieira e o seu tacto politico destroem a frouxidão do governador e do seu interprete Negreiros.
Este volta á Bahia a informar ao governador do occorrido. Então Vieira, sem mais ajuda do que os seus amigos de Pernambuco, offerece combate aos hollandezes no monte das Tabocas.
Á primeira victoria, por elle alcançada em 1644, não assistem Camarão, Henrique Dias e Negreiros.
Retratemos aqui, a leves traços, estes trez vultos:
D. Antonio Filippe Camarão, indio convertido e fanatisado pelos jesuitas. Este homem era o terror dos indigenas; não póde, portanto, ser o symbolo da liberdade americana. Trabalhava a favor dos dominadores, e os indios que o seguiam, tão fanaticos como seu chefe, morriam a favor de qualquer causa, com os olhos nos bentinhos que lhes pendiam do pescoço.
Henrique Dias, chefe dos pretos, e como elles, representante da raça africana. Trabalhava a favor dos portuguezes, seus dominadores. Não era tambem o motor da liberdade americana.[99]
André Vidal de Negreiros, natural da Parahyba, não póde ser biographado n'este logar, para não interrompermos as façanhas contra os hollandezes, nos montes denominados Guararápes.
Fazem parte d'esta gloriosa batalha o portuguez João Fernandes Vieira, verdadeiro heroe da empreza, na opinião dos mais abalisados escriptores; e como auxiliares, Francisco Barreto de Menezes, portuguez; André Vidal de Negreiros, Filippe Camarão, Henrique Dias, e outros.
Henrique Dias foi ferido n'esta batalha, de que morreu. Este como seu companheiro Camarão foram arrastados á guerra, sem o mais pequeno interesse politico.
Eram felizes; porque sendo valentes, lhes fallecia a ambição que tanto assignalou Negreiros.
Demoremo-nos um pouco perante este personagem.
Depois do Fernandes Vieira ter realisado o seu belo sonho, apoz uma guerra de nove annos, parece que devia ambicionar qualquer recompensa; mas tal não succedeu. Vieira só tinha em mente a liberdade da sua querida patria e dos territorios conquistados por portuguezes. Nascera na ilha da Madeira, ao tempo em que eramos dominados pelos castelhanos. No berço aprendera elle a pronunciar a sublime phrase de—morte ou liberdade—; e refugiara-se mais tarde no Brazil, onde não se fazia sentir tanto o abominavel dominio de Castella. Foi em Pernambuco, que a sua nobre alma se engrandeceu, á vista dos novos dominadores enviados da Hollanda. Não podia elle perceber, como é que devia desobedecer á sua consciencia de portuguez, para, ao mesmo tempo, dar gasalho ás ordens de Hespanha e Hollanda: por que essas ordens confundiam-se, e em logar de auxiliarem aquella parte da America estancavam-lhe a prosperidade. Por isso poz termo ás contradicções politicas, salvando Pernambuco.[100]
O seu culto era a liberdade; por ella faria tudo, e por ella despresaria as recompensas mundanas, depois da gloria.
Recusára vir a Lisboa dar a nova das victorias para que elle tanto contribuira. É que receava as offertas do governo da metropole, offertas que, sem resultado, o foram tentar no seu retiro.
Não comprehendia Fernandes Vieira que fosse facil alliar o interesse mundano, que seduz muitos generaes, á independencia do seu caracter desinteressado. A sua maior satisfação era expulsar os hollandezes. Conseguiu-o, nada mais desejava.
Vidal de Negreiros não tinha d'estes escrupulos; por isso se encarregou de vir a Lisboa, onde, com a influencia dos jesuitas, obteve mais tarde o governo de Pernambuco.
É alli que o vamos encontrar, desobedecendo ás ordens do governador geral, commettendo violencias contra os seus administrados, negando justiça a uns, desterrando e prendendo a outros.
Chamado por isso á Bahia, onde temia ser condemnado, confessa-se arrependido da desobediencia e dos vexames que havia imposto aos povos, que ajudára a libertar do jugo dos hollandezes.
A desobediencia e a desordem continuaram; eis a causa da sua demissão.
Se André Vidal de Negreiros trabalhava pela liberdade americana, como diz o sr. Augusto de Carvalho, para que combatia elle os indigenas, colligados com os hollandezes, nas differentes batalhas dadas em Pernambuco?
Se elle foi um dos primeiros apostollos d'essa liberdade, para que acceita cargos publicos das mãos do governo portuguez.
Os jesuitas são accusados pelo sr. Carvalho, de escravisarem e de exterminarem os indios, no que estamos[101] completamente de accôrdo, até ao seculo XVII; pois bem, como é que sendo Vidal de Negreiros um auxiliar das missões jesuiticas, como attesta o padre Antonio Vieira, nos vem dizer, que esse mesmo Negreiros fôra o mais strenuo mantenedor da liberdade da raça americana?!
Eis aqui uma contradicção digna de ser recompensada com uma penna de ouro!
Finalmente, se Negreiros era o mantenedor d'essa liberdade, para que acceitou o cargo de governador de Angola? Não seria mais vantajoso, para o bom exito da sua causa, retirar-se á vida privada, e preparar no sertão, como fizera Fernandes Vieira, com respeito aos hollandezes, uma conjuração tendente a libertar a America do jugo estrangeiro?
Não fez isto, porque Negreiros era ambicioso, e aos ambiciosos não é permittido entrar portas a dentro da historia com a fronte pejada de louros.[102]
Mereceram-nos especial attenção alguns pontos contradictorios insertos na parte quarta do livro o Brazil, e que julgámos não dever deixar passar sem reparo.
Pretendendo o seu auctor apresentar-se como inimigo da emigração clandestina, não poucas vezes guerreia aquelles que a combatem.
Está n'estes casos o reparo feito á pastoral do bispo de Braga.
Esse documento precioso, em que bem se patenteiam os vastos conhecimentos do seu auctor sobre o resultado da emigração de portugueses para o Brazil, devêra ter passado desapercebido ao sr. A. Carvalho, não só para interesse do imperio, mas porque a analyse ridicula que lhe faz, dá mais valor, se é possivel, ás asserções no mesmo contidas.
No documento referido diz-se a verdade, que o sr. Carvalho esconde, sobre a situação do trabalhador portuguez[103] no Brazil; e não vemos contradicção no seguinte trecho:
«Seduzidos estes mancebos pelas fallazes esperanças, que arteiros e assalariados engajadores lhes sabem incutir, pintando-lhes aleivosamente sua independencia e colossal fortuna, que em pouco tempo pódem conseguir, empregando seus braços em trabalhos agricolas» etc.
N'este, tampouco:
«... pois que sempre houve engajadores, e ambição de melhoramento de fortuna, que, com quanto imaginaria e fallivel, não desvia os emigrantes dos gravissimos perigos» etc.
Ainda n'este:
«Se alguns d'estes (emigrantes) têem a fortuna de não encontrar sua sepultura n'aquellas mortiferas paragens, e pódem voltar ao seu paiz, de ordinario vêem mais pobres do que foram, e com suas saudes perdidas, perpetuamente inuteis e pesados á patria!»
Nem mesmo combinado com o seguinte, aonde parece ter visto a contradicção:
«E com quanto hajam alguns conseguido alguma pequena fortuna, não equivale nem compensa a perda de sua saude, nem o sacrificio, e improbo trabalho, que os proprios indigenas não podem supportar constantemente».
Referia-se ao trabalhador, quando o illustre prelado fallava assim.
Mas se lhe juntarmos o seguinte:
«E com quanto muitos portuguezes, bafejados pela fortuna, hajam elevado seus cabedaes a maior ou menor escalla» etc.; não acharemos ainda contradicção, se completarmos a transcripção do periodo, que é do theor seguinte: «... não é pelo emprego physico de seus braços em trabalhos agricolas» etc., que o auctor do Brazil cavilosamente escondeu.[104]
O prelado bracarense não combate a emigração de portuguezes que se destinam a outros misteres, no que, até certo ponto, estamos de accordo; porque esses emigrados estão mais ou menos no caso de conhecer as vantagens que lhes offerecem os paizes novos e faltos de gente habilitada para exercer o commercio, as artes e até mesmo a litteratura, sendo esta ultima asserção do bispo a que mais cahiu no goto ao sr. Augusto de Carvalho, como se se podesse pôr em duvida a sua veracidade.
Pretender chamar emigração expontanea a essa dos trabalhadores, que todos os dias saem das nossas terras, com destino ao Brazil, é negar a verdade que todo o historiador deve respeitar. E por isso mesmo que ella não é expontanea, nem mesmo quando exercida por portuguezes de maior edade, mas sem as luzes necessarias para conhecer as falsas illusões dos engajadores, é que nós a guerreamos, importando-se-nos pouco que este nosso procedimento tambem possa ser tachado de contradictorio.
O auctor do livro o Brazil, ignora ou finge ignorar, que a maior parte dos portuguezes saidos de nossos portos, com destino ás terras de Santa Cruz, são alliciados com mentidas promessas e falsas illusões, incutidas por grande numero de especuladores, dos quaes, talvez sem o desejar parecer, o sr. Augusto de Carvalho seja o chefe.
Já que chegámos a este ponto, permitta-nos que sejamos francos, dizendo-lhe que ha quem nos chame um pouco complacente por formularmos apenas uma hypothese sobre a melindrosa posição do sr. Carvalho.
E, effectivamente, se o auctor da moderna historia[105] do Brazil, não especula com a emigração, como se explica o seu procedimento de asseverar que o Brazil é manancial de riquezas para o trabalhador, quando documentos de maior valia nos dizem completamente o contrario?
Vamos lançar mão da carta, escripta pelo presidente da Caixa de Soccorros D. Pedro V, dirigida ao consul geral de Portugal, no Rio de Janeiro, em 21 de julho de 1872.
Este importantissimo documento, que o sr. Augusto de Carvalho auctorisa a paginas 283 do seu livro, e do qual se serviu transcrever alguns trechos, esquecendo os que não lhe faziam conta, não por os julgar menos auctorisados, porque então far-lhe-hia a necessaria critica, como fizera á pastoral, mas porque assim convinha á sua propaganda, diz mais o seguinte, que muito convém ser lido pelos admiradores do historiador brazileiro:
«Descripto como fica o destino d'esta população (de emigrantes portuguezes), passemos sem mais detença á observação dos resultados colhidos pelos emigrantes, vejamos como se tornaram em realidades os sonhos dourados d'aquella possante juventude, que em demanda de tão cubiçada riqueza abandonou a patria e a familia.
«Cessam aqui os conceitos geraes pela observação e modo de ver de cada um; logar aos factos que se levantam com toda a magestado de principios que não podem discutir-se.
«V. ex.ª, que é portuguez, disponha o seu animo para contemplar desgraças e miserias taes e tamanhas, que a imaginação espavorida mal comprehende como ainda tão severa illusão não bastou para pôr barreira a esta corrente de suicidios.
«Nos sete annos decorridos, desde 1864 a 1871, a Caixa de Soccorros de D. Pedro V, pagou a passagem para voltarem á patria, a 2:304 portuguezes, e o numero[106] dos que tem soccorrido eleva-se a 9:000 inscriptos até hoje.»
Convém dizer antes de proseguirmos na transcripção de tão preciosa carta e baseando-nos em documentos officiaes, que o numero de portuguezes entrados no Rio de Janeiro desde 1861 até
1872, é de | 49:610 | |
Deduzindo: | ||
Portuguezes que voltaram á patria, soccorridos pela Caixa de Soccorros D. Pedro V | 2:304 | |
Ditos soccorridos em casa pela mesma | 9:000 | |
Ditos soccorridos pela Sociedade Beneficente Portugueza, nos dez annos findos em 31 de dezembro de 1871 |
18:405 | |
Ditos soccorridos pela Sociedade Beneficente Portugueza para voltarem á patria |
284 | |
Viuvas socorridas, idem | 146 | |
Enterros pagos, idem | 502 | 30:641 |
———— | 18:969 |
Devemos notar que a estatistica fornecida pela direcção da Caixa de Soccorros de D. Pedro V, só se refere ao periodo de tempo decorrido desde 1864 a 1871, faltando-nos portanto, esclarecimentos sobre os soccorros que pela mesma poderiam ser prestados nos tres annos de 1861 a 1863 inclusive, cuja média não podia ser inferior a 4:844, que deduzidos ainda dos 18:969, faz baixar a 14:124 o numero dos mais felizes!
«Estes algarismos, ex.mo sr., continúa o presidente da associação, representam homens inteiramente abandonados,[107] sem mais recursos alguns e que morreriam ao desamparo se esta associação não fôra» etc., etc.
«Nos hospitaes das irmandades, refere a este mesmo respeito o consul geral, numerosas n'esta côrte, são recebidos individuos de todas as nacionalidades, sendo irmãos. Sobresahe o grande e explendido hospital da Santa Casa da Misericordia que acolhe indistinctamente os indigentes nacionaes ou estrangeiros,» etc.
«Não acontece porém o mesmo nas povoações do interior, e muito menos nas fazendas onde o colono está entregue ás eventualidades do tratamento do locatario, nas quaes, não raro, acontecem factos como o que descreve o nosso intelligente compatriota dr. Domingos de Almeida», etc.
Ora é claro que os emigrados portuguezes, entrados no porto do Rio de Janeiro, não permanecem na côrte; parte d'elles vão para o interior. Assim é que, se podessemos obter uma estatistica exacta dos portuguezes soccorridos pelas irmandades e pelo hospital da misericordia de que nos falla o consul, bem como dos miseraveis abandonados no interior pelos senhores de engenho, aquelle numero de 14:124 portuguezes, que reputamos felizes, abaixaria ainda consideravelmente!
«Não é, senhores, sem perigos e riscos mui dignos de attenção, que os emigrantes livres conseguem as fortunas, que o Brazil encerra e guarda com avarento sobresalto.»
A estas palavras da commissão de emigração, responde o auctor do Brazil:
«Mas de que natureza são esses perigos?» etc.
E prosegue:
«Affirma o relatorio (da commissão de emigração) que[108] a fortuna teima em se mostrar adversa aos emigrantes livres que não têem no Brazil parentes, amigos ou protecção (o grifo é do escriptor citado). Isto é quasi desconhecer o sentimento acrisolado de patriotismo, que distingue e honra sobremaneira a colonia portugueza no Brazil.»
De maneira que, os trabalhadores portuguezes, fiados nas palavras do auctor d'estas linhas, e no acrisolado patriotismo dos portuguezes, residentes no imperio, devem seguir o conselho, tão salutar, de deixar a patria em troca de um paiz que os colloca na contigencia de ir pedir esmolla ás sociedades de soccorros, instituidas por alguns portuguezes mais afortunados!
Bem lembrado!
«Entre os emigrantes que formam este grupo, falla a commissão de emigração, ha uma parte que, não tendo no Brazil parentes, amigos ou protecção, confiam ao acaso o seu destino. A estes, principalmente, a fortuna teima em se mostrar adversa. Não tendo uns robustez physica para trabalhos severos, sendo outros inhabeis para os misteres a que se dedicam, esses pagam em soffrimentos e miseria a ventura dos mais felizes.»
O sr. Carvalho, que a tudo mostra ter que dizer, faz ao trecho citado as seguintes reflexões, que nada adiantam:
«Sentimos que a illustrada commissão não investigasse bem a causa de taes infortunios (!)......»
E com uma logica de menino de escola continúa:
«... Ninguem por certo os poderá negar. Concorre para isso, umas vezes, a rapida mudança de clima, sem cuidado pela differença de estação de um para outro paiz;...»
Que cuidados deve ter o colono trabalhador para evitar os males que podem advir-lhe por causa da rapida mudança do clima?[109]
«... outras, os excessos (?) dos recem-chegados, muitos dos quaes são, por via de regra, pouco respeitadores de certas prescripções hygienicas;...»
Vejamos o que é preciso fazer o europeu recem-chegado ao Brazil, para respeitar certas prescripções hygienicas:
Não deve expôr-se aos raios do sol; deve procurar boa alimentação, despresando nos primeiros tempos os fructos indigenas, e procurar ter boa habitação.
Perguntamos agora, qual é o europeu, nas condições do colono contratado em Portugal, para trabalhar em terras brazileiras, que póde satisfazer ás taes prescripções hygienicas?
Vamos provar que nenhum trabalhador que se destina á agricultura póde deixar de viver miseravelmente em terras brazileiras.
Primeiro que tudo, o trabalhador não póde deixar de expôr-se aos raios solares; do contrario morrerá de fome, se não tiver contratado o seu serviço, como acontece a quasi todos os portuguezes; e n'este ultimo caso, será preso, e em conformidade da lei brazileira de 1837, obrigado a expôr-se ao sol para satisfazer aos compromissos que se impozera em seu contracto.
O colono portuguez contractado para trabalhar no Brazil, a razão de 2$000 réis fracos, diarios, o maximo, e dizemos o maximo porque já demonstramos que em Portugal nunca se fizeram contratos de locação de serviço tão favoraveis ao colono; não póde, com tão modica quantia obter boa alimentação, ainda que o colono não tivesse que satisfazer a outras obrigações, como são o pagamento da passagem e mais despezas indispensaveis[31] a quem tem de fazer uma longa viagem e estar auzente da patria por illimitado tempo.[110]
Ora, quem não tem meios para alimentar-se regularmente, não póde deixar de ter má habitação; não póde deixar de comer algumas fructas, no começo, nocivas á saude dos colonos; não póde, além d'isso, deixar de vestir mal; e, finalmente, de despresar certas prescripções hygienicas, que nunca foram desprezadas, em tempo, por quem escreve estas linhas, e que, não obstante, foi atacado da terrivel epidemia a febre amarella.
E continúa o auctor do livro o Brazil, nos seus considerandos:
«...... outras, em fim, a cega ambição de alguns infelizes, que sacrificam todos os commodos (já está demonstrado que não póde ter commodos o trabalhador do Brazil), saude, e não raro as proprias vidas (por falta de recursos), para mais depressa accumularem um peculiosinho, que, quando repatriados, (dolorosa desillusão!) não chega muitas vezes para occorrer ás despezas, feitas então com o fim de recuperarem a saude, que perderam fatalmente em trabalhos superiores ás suas forças!»
Completamente de accordo com respeito a este ultimo trecho, que, satisfeitos, registramos; porque é mais uma contradicção do sr. Augusto de Carvalho.
Do documento citado por este sr., vamos transcrever mais alguns trechos em abono das nossas palavras; e preferimos este documento a qualquer outro, por lhe ter prestado a sua authoridade.
Só sentimos, ainda uma vez o dizemos, que tivesse deixado de o transcrever na integra, na tal historia:
«As causas a que mais directamente pódem attribuir-se estes desastrosos effeitos, continua o presidente da Caixa de Soccorros D. Pedro V, são, em relação aos homens que se empregam em trabalhos rudes, a pessima alimentação, aggravada pelas exigencias do clima, sob o qual o europeu carece, para sustentar a sua força, de superior e muito cuidado alimento.[111]
«A humidade do solo, origem de sua fecundidade assombrosa, os rigores tropicaes exercem sobre o europeu influencia tal, que todos os cuidados hygienicos são poucos para precaver-se contra similhantes males.»
Esta é que é a verdade, que o auctor do livro que analisamos escondeu, por não se achar com forças de repelir accusações tão bem fundamentadas.
Não é só o distincto presidente da Caixa de Soccorros de D. Pedro V, que se revolta contra a emigração de portuguezes trabalhadores.
Eis o que a respeito d'estes communica o consul geral, residente na capital do Brazil, em seu relatorio de 30 de julho de 1872:
«É raro o caso de adquirirem, mesmo durante largos annos, meios pecuniarios, com que possam pagar as despezas do regresso á sua patria... Todos esses individuos começam por estar desde logo onerados com a divida do transporte para este paiz, a qual com as addicções de despezas contadas a arbitrio dos engajadores eleva-se á somma de 120$000 a 150$000 réis. No tempo do cumprimento do contracto, os colonos, em vez de amortisarem essa divida, augmentam-a, em geral, e findo o referido tempo, que ordinariamente é de dois ou tres annos, devem 400$000 a 600$000 réis, conta ainda feita a arbitrio exclusivo dos proprietarios. Para a solução de semilhante onus, vêem-se forçados a renovar os contractos, até que perdida toda a esperança de resgate, fogem, não obstante o risco que correm de serem presos e condemnados a trabalhos publicos, na fórma da legislação que rege a materia (a lei de 1837)»
Um outro portuguez, o dr. Domingos José Bernardino[112] de Almeida, advogado do consulado geral de Portugal, no Rio de Janeiro, cavalheiro muito proficiente na materia, diz na sua consulta, de 29 de julho de 1872:
«Os portuguezes que aportam ao Brazil e não ficam nas grandes cidades, são engajados a bordo e contractados para as fazendas do interior. Vem a proposito citar a respeito dos engajados, a opinião do ex.mo sr. conselheiro Mendes Leal, no jornal America: A emigração assalariada presta-se facilmente a abusos revoltantes, e pela sua propria natureza é menos productiva. Só impreterivel necessidade a explica e desculpa. (S. ex.ª é favorável á emigração).»
«Chama ao engajamento:—«Escravidão simulada ou hypocrisia de liberdade». Ora realmente é o unico systema de colonisação de portuguezes praticado até hoje, esse que difine o ex.mo conselheiro.
«Como disse, em vez de realisarem o que almejam todos os que emigram para o paiz, isto é, serem proprietarios, ao contrario os nossos compatriotas emigrantes vem substituir os escravos nas fazendas!
«Os contratos de locação de serviços são pela maior parte longos, nunca por menos de tres annos.
«Ahi vivem como viviam os escravos, com elles trabalham, etc.
«Ora nenhum europeu supporta o clima dos tropicos no serviço em que até hoje tem sido empregados os escravos, e no imperio é esse o unico para que são engajados os nossos compatriotas.
«Citarei um exemplo que presenciei, e que é, pouco mais ou menos, o que em geral se passa.
«Para uma fazenda (em que fui medico um anno, onde apezar de toda a minha hygiene, contrahi infecção paludosa, que só me abandonou no fim de dez annos, com a residencia em Buenos Ayres durante cinco mezes) em 1856, foram engajados 5 compatriotas nossos,[113] 4 homens e uma mulher, recem-chegados, todos maiores de 30 annos, de organisação forte e sadios.
«Comiam, dormiam e trabalhavam, como os escravos, quero dizer, tinham a sua tamina (ração) de carne secca, feijão e farinha, que eram obrigados a coser para comer na hora do almoço e do jantar (uma hora para cada refeição!)
«Senzalas (casas de residencia dos pretos) eram as habitações que constavam de um pequeno quarto não soalhado, com porta e janella, tendo por cama uma esteira, e por mobilia uma pedra para se sentarem. Trabalhavam a par dos escravos, commandados pelo feitor, tambem escravo e armado do competente relho (vergalho do castigo!) trabalho que principiava ao romper d'alva e terminava ás nove horas da noite, apenas com a interrupção das refeições (!) De dia cavavam na terra, de noite lançavam ou tiravam tijolo do forno. Apesar da sua robustez, como fossem transportados bruscamente para logar insalubre, antes de aclimados na estação calmosa, sujeitos a trabalho insano e longo (mais de quinze horas por dia!) com a alimentação má e peior casa para dormir, ficaram em dois mezes e meio reduzidos a pelle e ossos, verdadeiras mumias, e morreriam se não fugissem!
«Este quadro fiel é com pequenas modificações o que se passa no interior do paiz.»
Áquellas verdades e a estas da commissão de emigração, fundadas em documentos insuspeitos:—«Deprehende-se, pois, sob o aspecto da emigração, que não ha miseria nem falta de trabalho que a incite»—responde o sr. A. de Carvalho, com a sua peculiar ingenuidade:
«Permitta-nos a illustrada commissão, que lhe façamos sentir que os factos protestam contra similhante conclusão. Na ultima leva dos degredados, cremos nós, em numero de 92, d'estes foram 52 condemnados por[114] furtos, roubos e falsificações. E ainda, no mez de novembro ultimo (1873), de 40 que deram entrada no Limoeiro para seguirem o mesmo destino, 31 foram-n'o por crimes da mesma natureza.»
E accrescenta:
«Dar-se-ha que taes vicios estejam na indole do povo portuguez? Quem tal o asseverasse commetteria uma infamia.
«De que procedem então esses delictos?
«Procedem da miseria, procedem da falta de remuneração proporcional, convençam-se d'isto.»
Agradecemos, em nome do povo portuguez, as boas intenções do auctor das linhas que deixamos transcriptas, com quanto nos vejamos obrigados a discordar das suas conclusões e a censurar o desproposito da antithese.
Nem o povo portuguez póde ser accusado de indole preversa, nem se póde attribuir só á miseria e falta de trabalho os crimes commettidos, pelos 52 condemnados, referidos acima.
E é tão admissivel este principio, que os 40 condemnados excedentes, não só não provam a miseria do povo portuguez, como ainda a sua indole.
A que attribuirá então o sr. Carvalho os crimes d'aquelles 40 condemnados?
Em toda a parte se commettem crimes de falsificações, furtos, e roubos, e, da averiguação a que se procede, vê-se que não fôra só a necessidade o principal motor do crime. Até podiamos, n'este sentido, apresentar uma estatistica, em que provariamos não ficar o Brazil atraz de qualquer outra nação. Com tudo, se attendessemos ao principio estabelecido pelo sr. Carvalho—de que a miseria é a principal causa que move os humanos aos crimes mencionados—o Brazil, aonde a riqueza anda aos pontapés, devia estar isento d'esta pecha.[115]
Mas não pára ainda aqui a philosophia estrambotica do advogado da emigração.
Contra a voz unanime dos nossos consules e dos mais respeitaveis entendedores, exclama o sr. Augusto de Carvalho:
«Acaso, por se haver morto com um tiro, em certo logar do Minho, um infeliz que subtrahia um cacho de uvas, segue-se que todo o povo d'aquella provincia seja deshumano?»
Não percebemos a que proposito veio esta parabola, nem tampouco est'outra:
«Acaso, por haver sido, no Fundão, condemnado um pobre Antonio Gomes a um mez de prisão, multa correspondente e despezas do processo, pelo crime de sorrir-se e piscar os olhos para o delegado Duarte de Vasconcellos, segue-se que a justiça é nulla em Portugal?»
Ou o sr. Carvalho anda de má fé no assumpto, e n'este caso seria bom que não tocasse na ferida, aberta por assassinos brazileiros, d'onde ainda não deixou de correr sangue portuguez, ou então não percebeu as palavras e o sentido de quem as dictou.
O sr. Augusto de Carvalho devia ter notado que a commissão de emigração, ao fazer-se echo de tantas verdades enunciadas em documentos de muita valia, para informar sobre o assumpto da emigração, que tantos males ha produzido a Portugal, não fallou nas injustas decisões dos tribunaes brazileiros, quando julgam colonos portuguezes; e mesmo que fallasse, não podia o sr. Carvalho, para ser coherente, usar d'aquelle desforço, que, ainda assim, seria injusto, se attendesse ás circumstancias de que um portuguez tinha assassinado outro portuguez, e um tribunal, tambem portuguez, condemnado um filho de Portugal.
Era futil a razão do assassinato? Completamente de accordo. Mas quem sabe se outra razão mais forte existiria entre os dois personagens d'aquelle drama? Por[116] causa de 20 réis, já ouvimos dizer que um homem tinha assassinado outro: comtudo, o motivo principal não fôra esse. Porém, nós não admittimos o assassinato mesmo por outros motivos mais poderosos, com o que não parece estar de accordo o sr. Carvalho, por isso que só o horrorisou o facto do minhoto!
Em Portugal, as faltas de respeito para com as auctoridades são castigadas com um mez de prisão. É futil a razão. Antes isso do que assimilharem-se os nossos tribunaes aos do Brazil, aonde as mais das vezes a corrupção toma o logar da justiça, para condemnarem os desgraçados portuguezes.
Felizes as nacionalidades que dão os exemplos de moralidade da primeira, e desgraçadas aquellas que, como a segunda, se transformam em alvo, aonde as settas do motejo vão cravar-se.
Sentimos que o historiador se desviasse para este campo, mas visto que a elle nos chamou, ha de acceitar-nos a replica leal, baseada em factos e não em hypotheses.
Para provar que não é só nos paizes cansados que se commettem crimes que o sr. Augusto de Carvalho leva á conta de falta do trabalho e da miseria; e para que se não diga que baseamos em factos isolados as nossas considerações, vamos transcrever o seguinte importantissimo artigo do Diario do Rio de Janeiro, publicado em julho de 1877:
«Parece que o desenvolvimento das nossas vias rapidas de communicação tem sido fatal, debaixo d'um ponto de vista, para as principaes povoações que o vapor vae collocando em convivencia quasi diaria com a nossa cidade.[117]
«A consequencia immediata do movimento produzido pela rapidez das communicações que vão esclarecendo as novas linhas ferreas, naturalmente ha de tornar mais intima a nossa convivencia com os habitantes das localidades que se vão approximando da metropole, proporcionando-lhes ensejo de coparticipar de todos os melhoramentos da civilisação, que até aqui só se concentravam na capital.
«Infelizmente o caminho de ferro, embora movido por um dos grandes motores do progresso, não exclue dos seus beneficios, as industrias pouco civilisadoras, e na sua rapida carreira tudo transporta e a todos favorece. Mas as cidades que vão ficando em rapida communicação com a capital, teem de tornar-se um vasto campo de operações para o exercicio das numerosas industrias, para as quaes, o theatro de uma só cidade começava a ser pequeno e a impertinente vigilancia das auctoridades a tornar-se incommoda.
«O que é para sentir é que sejam estes os primeiros elementos de civilisação, que tratam de aproveitar-se dos beneficios das vias ferreas, para irem levar o terror e o desassocego ás pacificas povoações até agora livres da sua malefica influencia.
«Com effeito, as cidades da provincia de S. Paulo, e particularmente a sua capital, já estão n'este momento a braços com um dos perniciosos elementos para ali transmittidos pela via ferrea.
«Os jornaes d'aquella procedencia já veem cheios de narrações, pintando as façanhas que ali teem praticado os membros da corporação dos meliantes, que, como dissemos, para ali enviára, por occasião das festas, uma respeitavel guarda de honra.
«Devemos acreditar que n'ella foram incorporados socios de todas as profissões, desde o simples gatuno até ao mais ousado salteador e assassino, porque as suas façanhas em S. Paulo não se teem limitado a pequenas[118] escamoteações; teem assaltado a propriedade e os viajantes e até levado o seu arrojo ao ponto de arrombarem casas habitadas e intentarem lucta com os moradores para os espoliarem.
«Para nós, que temos aqui sido testemunhas e victimas do arrojo d'estes malvados, apesar de toda a vigilancia da policia e dos recursos de defeza que a população de uma grande cidade póde oppôr, é facil de julgar qual não será a perigosa situação em que se acham os habitantes das localidades da provincia de S. Paulo, que elles teem procurado para campo das suas criminosas operações.
«O que, porém, é de crer, é que o caso venha a assumir um aspecto sério, se não forem tomadas as mais promptas e energicas providencias, a fim de impedir que os bandidos procedam socegadamente na sua campanha exploradora.
«Poderá bem acontecer que os habitantes se resolvam a fazer justiça por suas mãos, como tem succedido nos Estados-Unidos, e em tal caso, embora fosse isso talvez um castigo bem merecido para os criminosos, veriam estabelecida no imperio uma pratica repulsiva, cujas consequencias ninguem póde prevêr.
Convém, pois, applicar remedio para evitar estes meios extremos.»
Ainda sobre o mesmo assumpto diz o Diario de S. Paulo:
«Os industriosos avantajam-se no modo de tirar o alheio.
«Um individuo chegou-se á estação telegraphica da estrada de ferro ingleza, na Luz, e passou para Santos o seguinte telegramma:
«De Antonio Pereira Arruda a Albino Medon.
«Mande-me ámanhã (7 do corrente) sem falta, cinco saccos de assucar crú e duas barricas do refinado.
«Pague o frete, e remetta para a estação da Luz, que eu estou esperando».[119]
«O pobre negociante, amigo do sr. Arruda, satisfez completamente o pedido e remetteu os generos, que foram entregues na estação ao tal Arruda, que não podia ser o amigo e correspondente.
«Mais tarde, remettendo pelo correio ao seu amigo a nota dos generos e seus preços, teve em resposta que não lhe passára telegramma algum e nada lhe pedira, e que até residindo em Jundiahy não viera á capital, e que tinha sido victima de algum ladrão, sabedor de suas relações.
«Ora eis ahi um meio facil de nos provermos do necessario.
«Acautele-se, pois, o commercio contra as artimanhas e recursos dos finos larapios.
«O sr. Albino levou tudo ao conhecimento da policia, mas o homem que se abasteceu de assucar crú e refinado, usa de capa preta, e será difficil ser conhecido. Esta gente escapa sempre da acção da auctoridade, mesmo por ser grande o seu numero».
Note-se que a companhia de ratoneiros, estabelecera para theatro de suas façanhas a riquissima provincia de S. Paulo, onde o clima é mais supportavel, e onde com mais facilidade os taes sugeitos poderiam encontrar trabalho, se fosse o trabalho que elles procurassem.
E não se diga que a miseria no Brazil é já a consequencia das nossas previsões—a decadencia do imperio. Não, porque em 1860, o nosso embaixador, o sr. conde de Thomar, assim pintava a terra promettida:
«Apresentam-se diariamente á porta da legação de sua magestade um grande numero de portuguezes infelizes, pedindo uns esmola, outros passagem para Portugal e alguns mesmo para Angola. Pertence a maxima parte d'estes infelizes a essa classe de illudidos com as fallazes promessas de grandes fortunas, apenas chegados a este imperio.[120]
«É sabido que os europeus em geral soffrem nos primeiros mezes depois do seu desembarque n'estas paragens, e não soffre a cobiça dos esploradores d'aquellas victimas, que estejam em curativo e descanso durante as suas molestias, antes geralmente se exige, que elles prestem em qualquer estado de saude os serviços a que se obrigaram.
«Resulta d'este facto, como é natural, o aggravamento das molestias e confesso que por mais de uma vez se me tem coberto o coração de luto, vendo o estado desgraçado de alguns dos meus compatriotas.
«Soccorro a alguns com a esmola, que comportam as minhas pequenas forças financeiras, mas declaro a v. ex.ª, que este estado é demasiado violento para um representante de sua magestade, porque ou ha de já por humanidade, já pelo cargo que occupa, dar esmola a estes infelizes, e terá por isso uma grande diminuição nos seus vencimentos, a qual não comportam as despezas diarias a que é obrigado, ou ha de recusal-a, e será infallivel resultado: primeiro, a maior desgraça e mesmo a fome d'esses desgraçados subditos de sua magestade; segundo: o descredito e desconsideração do seu representante.
«No meio de muitos desgostos, de soffrimentos e difficuldades, a que se vê exposto o ministro de Portugal n'esta côrte, devo confessar a v. ex.ª, que nada produz em mim uma sensação tão forte, como o espectaculo que se representa diariamente e sem a menor interrupção á porta da legação de sua magestade.
«São bem ardentes os desejos que me animam para valer a tantos infelizes, mas é superior a difficuldade em que me acho de remediar tão grande desgraça.
«Não me atrevo a propor meio nenhum ao governo de sua magestade, mas reclamo uma providencia para fazer desapparecer dos olhos do publico este estado lamentoso, principalmente em um paiz que por ter sido[121] nossa colonia, não deve presenciar tão grandes miserias e desgraças,» etc.
Mas não localisemos os crimes e miseria. Olhemos para outras provincias brazileiras.
Um importantissimo jornal do imperio, o Cearense, trata em seu artigo de fundo, de 19 de agosto de 1875, do assumpto importantissimo Segurança publica.
As suas palavras e a estatistica dos crimes, que no mesmo logar nos apresenta, horrorisam-nos.
Para que nos não acusem de exaggerados, vamos copiar alguns trechos do alludido artigo da illustrada folha do Ceará.
Oxalá aproveite a lição aos nossos compatriotas, que veem no imperio um manancial de riquezas e de felicidades futuras, e ao philosopho sr. A. Carvalho para não assentar proposições temerarias e inconsequentes.
Falla o Cearense:
«Não é licito duvidar mais do estado de anarchia moral, que substituiu ao regimen pacifico da legalidade por toda a estação do imperio, maxime nas provincias do norte, destinguindo-se ainda d'estas a do Ceará.
«Contrista lançar-se os olhos sobre a estatistica criminal d'esta provincia, e possuir-se a certeza de que os costumes, em vez de seguirem o curso regular e bemfazejo da civilisação, vão-se encaminhando para o passado sombrio e desolador dos tempos barbaros da colonia (?).
«Esse contraste entre o material, que progride, e a moral que recua, tem dado que pensar aos que se interessam pela prosperidade e melhoramento da patria com tal pertinacia, que ultimamente chegou a despertar a attenção distraida e indolente do poder governativo.
«Na impotencia de prestar melhor e mais efficaz serviço á causa publica, tem a opposição se limitado a apontar os males e seus motivos, denunciando os criminosos[122] á acção da justiça, e a negligencia policial á acção da opinião do paiz.
«Isto, que seria tomado por outros governos como serviço e dedicação ao interesse geral, tem valido apenas ao partido proscripto a pecha de antipatriotico, porque denuncia o crime com suas côres vivas e os despeitos e odios dos potentados da situação.
«Felizmente parece que a verdade, a evidencia dos factos, o poder dos acontecimentos começam a pesar dolorosamente sobre a consciencia do governo, obrigando-o a volver os olhos sobre o estado desolador de quasi todas as provincias em materia de segurança publica e individual.» etc.
Depois de mais algumas reflexões.
«E para avaliar-se o incremento, que tem tido n'esses ultimos tempos a estatistica criminal no Ceará, transcrevemos para estas columnas uma pagina de sangue de nossos annaes.
«Desde o dia 13 de dezembro de 1874 até hoje... a imprensa registrou os seguintes attentados perpetrados na provincia:
Assassinatos | 77 |
Tentativas | 23 |
Infantecidios | 3 |
Ferimentos | 148 |
Offensas physicas | 26 |
Aborto | 1 |
Estupro | 1 |
Polygamia | 1 |
Furtos | 18 |
Fugas de presos | 19 |
317 |
«Por esse quadro vê-se que durante 252 dias commetteram-se[123] 317 crimes, o que dá mais de um attentado para cada dia!» etc.
Effectivamente, é assombroso. Mas antes de proseguirmos no assumpto, cumpre dizer duas palavras ao illustrado articulista, em resposta á sua proposição:—de que os costumes vão-se encaminhando para o passado sombrio e desolador dos tempos barbaros da colonia. Acreditamos sinceramente que este trecho do seu artigo não leva em mira offender o regimen adiministrativo do governo portuguez, quando o Brazil era nossa colonia, regimen mau, de que nem todos os povos estavam isentos n'aquella época; mas que, ainda assim, já mais dará logar a ser julgado com justiça, como acabam de ser julgados os actos do governo brazileiro, por um jornal liberal, n'uma época tão adiantada do seculo XIX. Não será facil ao distincto jornalista apresentar-nos uma estatistica tão monstruosa de crimes praticados no Ceará, ou em outra qualquer cidade do imperio no longo periodo de 325 annos, que alli dominaram os portuguezes. A Cesar o que é de Cesar.
A referida folha diz ainda o seguinte:
«Não reputamos sómente um triumpho para a imprensa liberal as ultimas circulares do ministro da justiça sobre este assumpto; pensamos que ha ahí alguma coisa mais que o desejo de dar uma satisfação ás reclamações dos proscriptos, por que ha a tardia consciencia d'esses cataclismos moraes, que assolam a sociedade brazileira tão desapiedada e cruelmente.»
Julgamos do nosso dever transcrever na integra uma das circulares a que se refere o articulista, porque esse documento comprova a verdade das suas allegações a respeito da criminalidade no Brazil, e corrobora as nossas affirmações contra a sua civilisação.
«O augmento dos crimes, diz o ministro da justiça, especialmente contra a segurança individual, vae assumindo proporções elevadas. É urgente providenciar sobre[124] este estado de coisas, cujo melhoramento depende em grande parte da nomeação das auctoridades policiaes, promotores publicos e supplentes dos juizes municipaes. Para taes cargos convém que v. ex.ª escolha as pessoas mais capazes, por seu merecimento e prestigio de captarem a confiança publica e manterem o respeito á lei. Na prevenção e repressão dos crimes deve haver a maior diligencia, dando v. ex.ª ás auctoridades a força necessaria, e não tolerando qualquer abuso ou excesso que commetterem.»
Este documento encontrámol-o no Jornal do Pará, do dia 6 de agosto de 1875, a proposito do qual faz as seguintes considerações uma folha d'esta provincia:[32]
«Em nenhuma provincia do imperio talvez se tenha esquecido tanto que a escolha das auctoridades policiaes deve recair nas pessoas mais capazes por seu merecimento e prestigio, do que na do Pará.
«Todos os dias nos vemos obrigados a registrar a nomeação de individuos analphabetos, turbulentos, mal intencionados e até réus de policia para os cargos policiaes.
«Aqui mesmo na capital tem-se lançado mão de homens estupidos, de jogadores, de verdadeiros valdevinos para occupar os logares da policia, como se assim quizessem escarnecer dos bons costumes e da moralidade publica.
«Pelo interior isso então é um Deus nos acuda.
«Logares ha, onde occupam as subdelegacias os individuos mais ruins e despreziveis.
«Não ha muito tempo um supplente de subdelegado acompanhou por muitas noites a um assassino na embuscada que fazia á sua victima, que mais tarde caiu traspassada por uma bala!
«Os assassinos dos dois infelizes negociantes das ilhas[125] de Breves, (Jurupary) tiveram por cumplice um subdelegado de policia!
«Ahi está a imprensa todos os dias a clamar contra os desaforos do primeiro supplente da sub-delegacia de Mapuá, que entretanto acha-se no exercicio do cargo a vexar e perseguir aos seus infelizes condistrictanos!
«Oxalá que a recommendação do sr. ministro da justiça não fique sómente na sua publicação e que possa ser util a esta desditosa provincia.»
No meio de todas estas coisas, o que é um facto inegavel é que as auctoridades superiores vêem-se em difficuldades para substituir os maus agentes.
Contra a auctoridade de Mapuá, de que nos falla aquelle jornalista, appareceu o seguinte protesto na imprensa do Pará:
«Nunca os mapuenses se persuadiram que o ill.mo sr. capitão Diocleciano Antero Pinheiro Lobato, muito digno subdelegado d'este districto, passasse a administração da subdelegacia ás mãos do 1.º supplente da mesma, Antonio Joaquim de Barros e Silva.
«Bem sabemos que o motivo d'isso foi o mau estado de saude do sr. capitão Diocleciano; porém nós, nacionaes e estrangeiros, residentes n'este districto, que já soffremos as arbitrariedades do sr. Barros, na occasião em que esteve de posse da administração; sentimos bastante o sr. capitão Diocleciano entregar a administração ao sr. Barros, sabendo s. s. que este sr. é um dos adeptos da Tribuna, que ufana-se em espalhar ao povo ignorante as infames e degradantes doutrinas d'esse nojento pasquim.
«Quantas vezes pedimos (e algumas d'ellas pelo amor de Deus) ao sr. Diocleciano que não passasse a administração d'esta subdelegacia ao sr. Barros e Silva citando a s. s. os actos que o sr. Barros e Silva praticou, quando esteve exercendo o cargo da subdelegacia[126] o anno passado, já afugentando os habitantes, outras vezes ameaçando-os com prisões.
«Este sr. Barros e Silva tem por costume insinuar aos devedores da maior parte dos commerciantes d'este districto para que não paguem, e com especialidade quando os credores são portuguezes, por que este sr. jurou d'esde 1835 odio aos «gallegos» phrase do sr. Barros, quando quer dizer portuguez.
«Á vista d'isto, sr. capitão Diocleciano, pedimos-lhes que, logo que o seu estado de saude permitta, assuma a administração de subdelegacia, a fim de evitar que o seu 1.º supplente ponha em execução os seus actos de verdadeiro despotismo, como é de costume».
Esta queixa foi em parte attendida pelo governo da provincia. Eis como se expressa o Liberal do Pará de 8 de agosto:
«Vimos no expediente do governo de 24 do passado um officio do sr. Benevides ao chefe de policia, exigindo informação sobre as accusações feitas em artigo d'este jornal contra o primeiro supplente da subdelegacia de Mapuá, actualmente em exercicio, Antonio Joaquim de Barros e Silva.
«Como era de suppôr, o castigo d'essa auctoridade ficou no tal officio; pois consta-nos que, achando-se Barros na capital n'essa occasião, desfez tudo, continuando por tanto a gozar de inteira confiança da administração.
«Veio-nos á idéa esta occorrencia ao recebermos uma carta d'aquelle districto, em que se nos diz o seguinte do dito 1.º supplente:
«O nosso heroe, para destruir as accusações que pesam sobre si, apenas chegou, anda de porto em porto, revestido do caracter de auctoridade, exigindo dos moradores attestados para provar que é um santo homem, e que morre d'amores pelos portuguezes.[127]
«Aos que repugnam attestar o que elle dita, responde: Conte commigo!
«Em 30 de dezembro publicou o Liberal um artigo d'aqui, acompanhado de attestados de brazileiros e portuguezes do districto, provando que essa auctoridade tem ameaçado aos subditos de Portugal, e esses attestados jámais foram contestados.
«Em julho do passado foi o honrado commerciante portuguez José G. de Lemos victima das ameaças do mesmo sr., de que foram testemunhas os srs. capitão Diocleciano Lobato e João A. Lobato e outros brazileiros; assim como os portuguezes José Antonio Lopes e Theotonio Antão da Cruz.
«Os brazileiros que contestarem que Barros é tribuno, fal o-hão com medo de sua vingança.
«Tambem não duvidamos que encontre elle portuguezes que lhe passem attestados n'esse sentido, porque esses devem ter ainda mais a temer do seu odio do que os nacionaes!»
Os portuguezes residentes no interior, com medo do odio das auctoridades brazileiras, passam attestados beneficos n'um dia a favor d'aquelles de quem receberam maus tratos em outro. A triste verdade é esta.
O que é inegavel é que as auctoridades superiores do Brazil, ou se voltem para a direita ou para a esquerda, só encontrarão maus agentes de policia; ou, o que é peior, agentes que precisam ser policiados, segundo a phrase do Liberal do Pará.
E a quem devemos nós attribuir tão grande mal?
O Cearence responde assim:
«Os habitos e costumes d'um povo, suas virtudes e vicios, são feituras de suas instituições politicas ou civis, d'um governo liberal ou despotico.»
Concordamos: porém se o mal que assola a sociedade brazileira, é derivado do dominio despotico do tempo, em que era colonia Portugal, parece que 50[128] annos d'uma administração de casa deveria ter salvo o imperio do abysmo, para onde o vemos precipitar-se.
Nós, como acontecia ao povo brazileiro, tambem arcámos com o jugo de ferro do despotismo. Comtudo, atirámos com esse jugo para bem longe; e podemos dizer, sem jactancia, que Portugal é na actualidade um dos povos que goza de mais liberdade.
Mas estas considerações feitas ao Cearence, a proposito dos crimes commettidos no Brazil, affastaram-nos um pouco de respondermos mais de perto ás affirmativas do auctor do livro o Brazil. Reatemos, pois, o fio da resposta; mas para isso assignalemos aquella phrase do ministro da justiça do imperio:
«O augmento dos crimes, especialmente contra a segurança individual, vae assumindo proporções elevadas.» etc.
Ora, queremos nós dizer, que, se deve attribuir-se á miseria e falta de trabalho os crimes commettidos em Portugal, no Brazil, onde não parece haver miseria e aonde não parece faltar trabalho, os crimes que viemos de descrevêr, devem ser levados á conta da má indole do povo.
Mais claro:
Os crimes commettidos em Jurupary, na riquissima provincia do Pará, em que portuguezes foram victimas, e assassinos e ladrões alguns subditos brazileiros, não podem ser levados á conta da miseria do povo brazileiro; porque o Brazil é apresentado aos portuguezes necessitados como o seu salvaterio contra os crimes de furto e roubo!
A que devemos então attribuir aquelles crimes?
Antonio Ferreira Gomes, brazileiro, accusado de[129] roubar 150 contos de réis, a seus patrões, em casa de quem occupava um dos primeiros logares, fôra incitado pela miseria a commetter tão grande crime?
E fallamos de proposito n'este facto, para dizermos mais, que aquelle réu fôra absolvido pelos tribunaes do Rio de Janeiro, emquanto que um portuguez de menor edade, accusado de roubar 10$000 talvez que para matar a fome, fôra condemnado um dia antes, pelo mesmo tribunal, a dois annos de prisão com trabalhos![33]
No Brazil praticam-se d'estas e não inferiores façanhas; os tribunaes em Portugal condemnam os Antonios Gomes, quando piscam os olhos ás authoridades!
Eis aqui está um phenomeno que a alta capacidade do auctor do Estudo não poderá explicar facilmente.
Outro phenomeno, não menos digno da attenção do illustre historiador, será aquelle, d'um brazileiro remediado e um portuguez adolescente, necessitado, commetter o mesmo crime—roubo—na terra da promissão!
Que faria esta gente, se estivesse em Portugal?
Quem sabe?... talvez fossem dois homens de bem!...
A Inglaterra um dos paizes mais ricos, e que tem sempre á testa da administração do estado os politicos mais eminentes, conserva, premanentemente, nas ruas de Londres uma grande parte da sua população miserabilissima.
Ora se a pobresa é o principal incentivo do crime, que seria dos habitantes abastados da grande cidade? O numero de portuguezes soccorridos, só no Rio de Janeiro, no periodo de 10 annos, desde de 1862 a 1871, foi de 47:116! Ora, se se podesse estabelecer o tal principio, estes 47:116 necessitados deviam pôr em serios embaraços a população do Rio![130]
O auctor do livro o Brazil, além de outros argumentos obtusos, apresenta-nos, para os fazer vingar, a seguinte conclusão:
«Quem está bem no seu paiz não emigra; esta é que é a verdade das verdades: ninguem o contestará.»
Se a emigração, tomada n'um sentido muito restricto, se estabelece pela mudança dos animaes d'um logar que julgam mau, para outro que suppozeram bom, qual o motivo porque aquelles 47:116 portuguezes necessitados, não regressaram á patria, aonde já sabem que nunca poderão passar peior que no Brazil?
É porque estavam n'uma posição muito mais miseravel do que quando emigraram: não têem os meios para repatriar-se, além de alguns acharem-se completamente impossibilitados.
O facto de emigrarem muitos portuguezes para o Brazil, não é razão sufficiente para que digamos, que a emigração para esta região é conveniente para elles; nem tampouco prova que a necessidade impreterivel os obriga a dar tão errado passo.
É isso que temos sustentado e sustentaremos, em quanto tivermos do nosso lado a razão.
É provavel que n'um futuro, que não póde vir muito proximo, modifiquemos as nossas idéas; porque, emfim, le monde marche, e nós mui crentes no grande principio do philosopho, acreditamos que o Brazil se transformará, assim como acreditamos na transformação de outros povos semi-barbaros.
Já o dissemos e nunca nos cansaremos de repetir:—emquanto o Brazil não reformar completamente as suas leis, por fórma que os povos emigrantes não vão esbarrar no imperio com o temeroso dilemma da controversia politica e religiosa, que tem n'estes ultimos tempos tomado demasiadas proporções no Brazil, a emigração europêa será uma ficção.
Porque é preciso assentar bem n'esta verdade:—o[131] povo portuguez não é aquelle, que, por si só, póde supprir o Brazil de braços laboriosos para a cultivação das suas terras immensas. Nunca o pôde fazer, quando esta parte da America pertenceu a Portugal.
É preciso lançar as vistas para outros povos europeus, cuja tendencia para a emigração não seja inferior á nossa.
Ha difficuldade em alliciar hespanhoes ou italianos, porque estes preferem as republicas hespanholas, assim como nós preferimos o Brazil. Os francezes e os inglezes, povos essencialmente industriaes, teem as suas colonias ou os Estados-Unidos para receber a população que lhes sobeja. A Allemanha, esse grande paiz que n'estes ultimos annos tem fornecido á America do norte o seu maior nucleo de emigração, não poderia ser tentada pelos escriptos do sr. Augusto de Carvalho e outros?
Não podia. E dizemos, não podia, não porque falte ao distincto historiador, applicando-se um pouco mais ao estudo, a intelligencia para poder vir a ser um optimo engajador; mas porque os allemães estudam o assumpto da emigração com toda a proficiencia e não precisam lá de quem lhes indique o paiz que devem preferir. No mesmo caso está a Inglaterra.
Outra razão: Se os emigrados portuguezes, residentes no imperio, se sujeitam ao regimen brazileiro, em cujo paiz encontram as demasias do odio de raça e não poucas vezes a excessiva intolerancia religiosa; os allemães, além de não concordarem com as leis civis do imperio, descrêem completamente das leis que estabelecem a tolerancia religiosa, que ha de ser sempre uma ficção, emquanto a governação do Brazil estiver nas mãos do seu clero reaccionario; leis que esse clero poderia reformar, se não fôra o receio de descontentar os estrangeiros, na maioria conservadores, que, unidos aos brazileiros descontentes, e de idéas[132] mais avançadas, fariam grande resistencia a uma refórma tão retrógrada.
«Os portuguezes que de futuro emigrarem para o Brazil, com o fim de se dedicarem ao commercio, perderão infallivelmente o seu tempo; porque sendo a lavoura o seu unico sustentaculo, esta, como já demonstrei no capitulo precedente, ha de definhar-se á proporção que lhe forem faltando os braços escravos.»
Escrevemos estas palavras em um livro que ahi corre impresso;[34] e se as repetimos n'este logar, é para reforçal-as mais, respondendo ao mesmo tempo ás seguintes phrases de contentamento do auctor do Brazil:
«Nem só á commissão (de emigração) devemos esta prova de lealdade e franqueza. Felizmente ainda ha n'esta terra de gloriosas tradições caracteres honrados e amigos da verdade.»
Agora é preciso saber a razão d'este enthusiasmo e... d'este enigma, porque aquelle trecho respondia a este da commissão de emigração:
«Não é de menor interesse para o commercio do reino (a emigração livre), ao qual, de preferencia, pedem todos os artigos a que estão habituados; e, desde os vinhos até ás cebolas nacionaes, a circumstancia de estar o Brazil povoado pelos portuguezes abre-nos extensissimo mercado, offerecendo igualmente Portugal numerosos consumidores aos productos brazileiros. Se ainda quizermos olhar com attenção para a agricultura nacional, encontraremos que os emigrantes repatriados teem dado em todo o reino, principalmente na provincia do Minho, auxilio importante, pelos capitaes que[133] teem importado, á industria agricola. Se lançamos a vista sobre as cidades, villas e aldeias, alli encontraremos palacios sumptuosos, casas elegantes, casaes commodos, tudo edificado com o dinheiro que os emigrados de hontem trouxeram da emigração.»
Todas estas conveniencias apontadas pela commissão e que tanto alvoraçaram o auctor do livro o Brazil, são trazidas a Portugal por alguns de seus filhos, que, a tudo se dedicavam, menos aos trabalhos rudes do campo.
Os generos alimenticios, que em grande escalla exportamos para o Brazil, toda a gente sabe que é para gasto de gente abastada. O portuguez trabalhador, dando-se-lhe ainda que ganhasse 2$000 réis fracos por cada dia, já mais poderia alimentar-se d'aquelles generos excessivamente caros alli; alem de que, como diz o sr. Carvalho, o colono é ambicioso, e quem padece de tal molestia despreza as despezas superfluas.
Está provado, que o consumo dos taes generos, quer haja a emigração de trabalhadores, quer não, ha de existir em quanto o Brazil puder sustentar a sua prosperidade.
E d'ahi não os esportamos nós tambem para os outros paizes da Europa? Pertender-se-ha affirmar que os emigrados portuguezes são só os seus consumidores?
Vamos agora emittir a nossa humilde opinião a respeito de outras conveniencias.
É certo que a affluencia de capitaes a este paiz, procedentes do Brazil, tem sido assombrosa n'estes ultimos tempos; pena é que elle em geral se empregue na agiotagem e desprese a agricultura e a industria, razão porque acreditamos muito pouco na prosperidade que para ahi dizem nos veio trazer o dinheiro vindo do Brazil.
Mas se o portuguez é ambicioso, mal de que soffrem quasi todos os capitalistas de todas as nações do mundo,[134] excluindo talvez os brazileiros, razão por que as fortunas portuguezas são relativamente muito superiores no proprio imperio, por que é que affluem actualmente os capitaes a este paiz?
A resposta é simples e muito logica:—é por que esses capitaes já não encontram no Brazil tão facil e lucrativo emprego.
«D'aqui a 10 ou 15 annos, quando estiver extincta a escravatura no Brazil, sem que o governo tenha remediado este grande mal; e os lavradores, faltos de recursos materiaes, liquidarem as suas fortunas, e procurarem, como é natural, melhor emprego para o seu capital, chegará então o grande imperio americano ao ultimo gráu da sua decadencia; porque uma vez livre o elemento escravo, que no Brazil é e ha de ser sempre a alma da lavoura, ninguem mais poderá fazer trabalhar o preto que, (em geral), com o salario de um dia, se julga habilitado para comer 15 ou 20.»
Estas palavras que em outro logar deixamos escriptas,[35] e que procuraremos auctorisar com a opinião de entendedores mais respeitaveis, provam até á evidencia que o commercio do Brazil vive da lavoura, e que decahindo esta, não mais poderá aquella aspirar á gloria alcançada por muitos portuguezes em épocas passadas. A prova da nossa asserção está em que os capitalistas residentes no Brazil, tratam n'este momento de procurar melhor emprego a seus capitaes.
Mas julga o auctor do Brazil que o melhor meio de tentar os nossos compatriotas, é mostrar-lhe o resultado adquirido por outros portuguezes que foram mais felizes, por terem encontrado tempos melhores, e alem de tudo isto, porque se dedicavam a outros misteres, como nunca nos cançaremos de repetir?...
Ás seguintes reflexões da commissão de emigração:[135]
«Temos por tanto 3 de cada 10 emigrantes perdidos no total da emigração. Em vinte annos 75 por cento d'este formoso capital terá desapparecido. Reduzindo a metal o que este trabalho representa, e dando 120$000 réis ao trabalho produzido por cada emigrado annualmente, 34:000 emigrados representando 4:080$000 réis cada um, em 20 annos fazem 81:600$000 réis. É egual a esta somma de trabalho perdido a somma de capital entrado pelos que voltam ricos? A commissão não póde investigar tão fundo».
A isto, como diziamos, responde o illustre historiador, com uma simplicidade incrivel:
«Nem era preciso, entendemos nós.»
E depois transcreve da Correspondencia de Portugal um artigo que, se por um lado elogia o Brazil, por outro mostra até certo ponto a sua decadencia.
«Do abençoado Brazil, diz o jornal citado, tem-nos vindo ultimamente cabedal e alguns homens activos e emprehendedores» etc.
Para que desamparam o Brazil, este cabedal e os homens activos e emprehendedores?!
Não é alli a fonte da riqueza, aonde a actividade humana póde mais facilmente encontrar o premio do seu trabalho?![136]
Não nos sobeja espaço para fazermos uma analyse detida ao livro o Brazil, nem o encargo que nos impozemos mira a esse fim. Descrever os horrores da emigração, em linguagem que o povo entenda e ao qual especialmente destinamos este trabalho, eis o nosso principal intuito. Assim, pois, continuemos a examinar o que ha de mais proveitoso nos relatorios dos consules, reservando-nos para em capitulo especial fazermos algumas considerações a respeito dos tumultos do Pará, em 1874, a cujo assumpto igualmente se refere o auctor do livro em questão.
Phrases ha que se deviam repetir todos os dias e a todas as horas; e por isso mesmo desejariamos que os nossos homens de estado déssem a maior publicidade[137] possivel aos documentos que, a respeito da emigração portugueza para o Brazil, todos os dias nos offerecem os consules alli residentes. Difficil será achar quem melhor possa informar sobre a verdadeira situação dos colonos no Brazil, quem livre de qualquer pressão, e perfeitamente independente, melhor possa sondar os horrores da emigração, effeito dos contractos ruinosos que os nossos compatriotas fazem com os engajadores, os maus tratos que os trabalhadores portuguezes quotidianamente recebem dos senhores de engenho, a ficticia protecção das auctoridades brazileiras, quando, para dominar abusos, os infelizes a ellas recorrem.
Nos referidos relatorios trazidos a publico para auxiliar a commissão d'inquerito parlamentar, nomeada com o fim de pôr termo ao mal da emigração, apontam os consules o efficaz auxilio, que póde offerecer a imprensa, publicando os documentos que elles mandam para o governo.
«É de urgente necessidade, diz o consul no Maranhão, instruir aos incautos, victimas da seducção, por meio da imprensa, pela tribuna, e impôr tambem este dever ás auctoridades, as quaes deverão esclarecer profundamente ao emigrante, as difficuldades que lhe offerece a lavoura, a incompatibilidade que existe entre o trabalho livre e servil, e de que inteiramente é impossivel dar-se uma fusão. Ao mesmo tempo scientifical-os, de que se os proprios nacionaes encontram todas as difficuldades na lavoura, e não podem alimentar-se por ella, por certo se tornarão mais embaraçosas para com os estrangeiros, por não se poderem estabelecer nem encontrarem recursos á sua disposição. Fazer-lhes ver que não existem regulamentos de trabalho, e d'este modo são forçados a trabalhar todo o dia debaixo do mais ardente sol.»[36][138]
Não disse a verdade o consul do Maranhão quando affirmou que não existiam regulamentos de trabalho. Ha regulamentos; e se não veja o que diz a tal respeito o seu illustrado collega do Rio de Janeiro:
«Queria dar aqui a integra d'essa lei (de 11 de outubro de 1837), mas isso tornaria este trabalho mui extenso e fastidioso, além de que é facil encontral-a nas collecções; mas como estas collecções não chegam ás mãos do povo, parece-me que seria muito conveniente que o governo de sua magestade as mandasse publicar em todos os jornaes e mesmo em avulsos, que fossem affixados em todos os locaes onde costumam ser os annuncios da partida dos navios; parece-me ainda que ao mesmo governo assiste o incontestavel direito de prohibir emquanto no Brazil existir tal lei, a celebração de todo e qualquer contracto de locação de serviços, que aqui tenham de ser prestados, e fazer constar por todos os meios que os individuos que taes contractos assignarem, como locadores, não terão direito á protecção do governo nem dos seus representantes, mesmo porque estes quasi que absolutamente lh'a não pódem dar.»[37]
Examinemos essa barbaridade, que nem a diplomacia portugueza, nem alguns legisladores mais notaveis do Brazil tem podido derrogar, para beneficio dos colonos e da propria agricultura; mas para isso convem transcrever alguns trechos mais importantes.
Diz a tal lei:
«O locatario de serviços que, sem justa causa, despedir o locador antes de findar o tempo porque o tomou, pagar-lhe-ha todas as soldadas, que devêra ganhar, se o não despedira. Será justa causa para a despedida (note-se bem isto):
«1.º—Doença do locador, por fórma que fique impossibilitado[139] de continuar a prestar os serviços para que foi ajustado;
«2.º—Condemnação do locador á pena de prisão, ou qualquer outra que o impeça de prestar serviço;
«3.º—Embriaguez habitual do mesmo;
«4.º—Injuria feita pelo locador á dignidade, honra ou fazenda do locatario, sua mulher, filhos ou pessoa de sua familia;
«5.º—Se o locador, tendo-se ajustado para o serviço determinado, se mostrar imperito no desempenho do mesmo serviço.
«Nos casos do n.º 1.º e 2.º do artigo antecedente, o locador despedido, logo que cesse de prestar o serviço, será obrigado a indemnisar o locatario da quantia que lhe dever. Em todos os outros pagar-lhe-ha tudo quanto dever, e se não pagar logo, será immediatamente preso e condemnado a trabalhar nas obras publicas por todo o tempo que fôr necessario, até satisfazer com o producto liquido de seus jornaes tudo quanto dever ao locatario, comprehendidas as custas a que tiver dado causa. Não havendo obras publicas, em que possa ser admittido a trabalhar por jornal, será condemnado a prisão com trabalho, por todo o tempo que faltar para completar o do seu contracto: não podendo todavia a condemnação exceder a dois annos.»
Perguntamos nós, porque razão deverá ser condemnado o colono, não havendo obras publicas, á prisão com trabalho?
Quem tem a culpa de não haver obras publicas no Brazil? Os seus homens de estado; mas nunca os colonos.
Poderá o colono, dado ao uso das bebidas alcoolicas satisfazer por meio do trabalho nas obras publicas, os seus encargos? E caso não possa, por causa da sua habitual embriaguez, não será demasiada a pena de dois annos de prisão com trabalho?[140]
E que justiça é essa, que iguala a falta de pericia do colono, na execução de qualquer trabalho, com a falta de honra e dignidade, para as quaes estabelece as mesmas penalidades?
E se o locatario fôr accusado de injuria feita á dignidade e honra do locador, sua mulher, filhos ou pessoa de sua familia, por que este póde estar nos mesmos casos d'aquelle, e não é dado aos legisladores brazileiros acentar, que o homem rico é mais susceptivel de córar na frente do seu injuriador do que o homem pobre, qual o castigo a que o sujeita?
O colono doente, a que se refere o n.º 1.º, e o colono condemnado á pena de prisão, por qualquer falta commettida, de que falla o n.º 2.º, são equiparados no castigo, e por isso obrigados a indemnisar o locatario da quantia em divida!
Á parte a desigualdade da pena, por que não pode equiparar-se o delicto de um colono cahir doente, com a falta que levára outro colono a ser julgado e condemnado a prisão, perguntamos nós, como poderá qualquer d'elles exonerar-se dos seus encargos, quando lhes faltem absolutamente os meios?
O escravo era muito mais feliz. Pelo menos tinha a comida certa, quando impossibilitado de trabalhar. O senhor era o primeiro interessado na liberdade do escravo, quando este era preso por ter commettido algum delicto.
«O locador, continua a celeberrima lei, que, sem justa causa, se despedir, ou ausentar antes de completar o tempo do contracto, será preso onde quer que fôr achado e não será solto emquanto não pagar em dobro (sic) tudo quanto dever ao locatario, com abatimento das soldadas vencidas: se não tiver com que pagar, servirá ao locatario de graça todo o tempo que faltar para o complemento do contracto. Se tornar a ausentar-se será preso e condemnado na conformidade do[141] artigo antecedente (prisão com trabalho por dois annos)»!
Admire-se a logica d'este bocadinho de ouro:
«O locatario, findo o tempo do contracto, ou antes rescindindo-se este por justa causa, é obrigado a dar ao locador um attestado de que está quite do seu serviço; se recusar passal-o, será compellido a fazel-o pelo juiz de paz do districto. A falta d'este titulo será razão sufficiente para presumir-se de que o locador se ausentou indevidamente.» (!!!)
Toda a gente sabe qual é a influencia de que dispõe para com as auctoridades, os roceiros do Brazil. Veja-se pois, como será difficil a um pobre colono obter tão precioso documento das mãos do locatario quando este, por qualquer circumstancia, lh'o não queira dar. Imagine-se por exemplo, que ao locador não convem mais servir o locatario, e que a este, pelo contrario, convem que aquelle lhe preste serviço. Como poderá o colono, sem incorrer na pena de prisão com trabalhos, livrar-se do seu perseguidor?
Ainda mais:
«Toda a pessoa que admittir, ou consentir em sua casa, fazendas ou estabelecimentos, algum estrangeiro, obrigado a outrem por contracto de locação de serviços, pagará ao locatario o dobro do que o locador lhe dever, e não será admittido a allegar qualquer defeza em juizo (sic), sem depositar a quantia a que fica obrigado, competindo-lhe o direito de havel-a do locador.»
O locador é quem paga tudo.
Ha só uma unica excepção á regra: o que alliciar o colono obrigado a outrem por contracto de locação de serviços, pagará ao locatario o dobro das dividas do colono, bem como as despezas e custas a que tiver dado causa. Caso não tenha dinheiro para pagar, ha de trabalhar nas obras publicas, se as houver, já se sabe, e se não a cadeia espera o delinquente! Verdade seja[142] que a pena de prisão é mais favoravel para o alliciador, a qual póde ser de dois mezes a um anno. Pois se elle não é colono!
Eis os nomes dos illustres estadistas que subscreveram tão grande monstruosidade:—Pedro de Araujo Lima e Bernardo Pereira de Vasconcellos.[38]
Que a historia lhes reserve logar condigno em suas folhas indestrutiveis, não só para pagar-lhes o premio merecido, mas para desiludir uns certos optimistas, que costumam ver o argueiro nos olhos de estranhos, em quanto que nos proprios conservam enormes traves.
Mas note-se que esta lei ainda não foi derrogada.
Eis aqui está como o governo imperial revela cuidado em reunir sob o ceu explendido do cruzeiro os individuos de todas as nacionalidades!
Mas não fica ainda aqui a tão apregoada protecção.
O consul no Rio de Janeiro assim descreve os effeitos praticos da tal monstruosidade:
«Debalde a lei de 20 julho de 1855 e varios regulamentos posteriores tomaram providencias sobre taes abusos; por que todas essas prescripções são letra morta no imperio.
«Os magistrados não conhecem essas providencias legislativas, nem mesmo tomam d'ellas conhecimento, sendo-lhes apontadas.
«Estes contractos são aqui regulados pela lei do imperio de 11 de outubro de 1837, que os seus collaboradores não quizeram para regular a locação de serviços de seus compatriotas, e só a destinaram a regular a locação de serviços dos estrangeiros.(!)[143]
«Em 1867, continúa o consul, percorri algumas cidades e villas da provincia de S. Paulo, onde são frequentes taes contractos.
«Visitei varios cartorios de escrivães dos juizes de paz, que são os competentes para taes processos, examinei muitos d'elles, e em nenhum encontrei sentenças a favor do locador.(!!!)
«Recentemente ainda se deu um facto aqui na provincia do Rio de Janeiro. Joaquim de Sequeira Pinto veiu com sua mulher, do Porto, justo para trabalhar na fabrica de Santo Aleixo, situada em Magé, pouco distante d'esta côrte.
«O seu contracto era o seguinte:
«Digo eu abaixo assignado que me acho justo e contractado com os srs. Bernardo José Machado & C.ª a ir de passagem junto com minha mulher, Josepha de Jesus no vapor Julio Diniz, para trabalhar na fabrica de fiação, em S. Aleixo, imperio do Brazil, da qual são administradores os srs. Guerreiro Simas & C.ª, a quem vamos dirigidos, e a estes nos obrigamos com os nossos serviços na mesma fabrica a pagar a quantia de cento e trinta e oito mil e nove centos réis, que nos foram abonados para as nossas passagens e mais arranjos, a cujo cumprimento nos obrigamos por nossas pessoas e bens—Porto 22 de outubro de 1873.—Joaquim Sequeira Pinto, por minha mulher Josepha de Jesus. Como testemunhas, Francisco Gomes Paes, Gaspar José Corrêa do Nascimento.»
«Veio pois Sequeira, e chegado aqui com sua mulher foram para a tal fabrica que estava em construcção. Como não tinha ainda que fazer pelo seu officio empregaram-no em servente de pedreiro e a mulher a cosinhar. Como não quizessem sujeitar-se a estes serviços pediram licença ao administrador da fabrica para vir para a côrte trabalhar pelo seu officio, a vêr se arranjavam dinheiro para pagar o que deviam. Foi-lhe concedida[144] licença e vieram. A mulher adoeceu, obrigando o marido a despezas consideraveis.
«Passaram-se dois ou tres mezes, portanto, sem que podessem ter arranjado dinheiro para pagar a divida. Começava o marido a trabalhar pelo officio, quando foi preso com a mulher, em virtude d'uma precatoria vinda do juiz de paz de Magé, e lá seguiram os dois infelizes com um filhinho, de cadeia em cadeia até á de Magé, para alli serem processados por quebra de contracto de locação de serviços.
«Sabendo isto por um primo d'elles, tratei de vêr se melhorava a sorte d'estes infelizes, e fui procurar um advogado para fazer uma petição de recurso de habeas corpus. Fêl-a com effeito, ponderando a illegalidade da prisão, visto que sendo todo o procedimento, segundo aquella lei, baseado n'um contracto escripto, o documento apresentado não era realmente um contracto, por lhe faltarem clausulas essenciaes, taes como estipulação de salario, acquiescencia da mulher, por quem o marido se não podia obrigar, e ausencia de procuração dos representantes do locatario. Que mesmo como contracto seria nullo em face da legislação do paiz onde foi celebrado (lei de 20 de julho de 1855), por não conter expressa a clausula de não poderem os serviços ser cedidos.
«E, finalmente, que era nullo á vista do artigo 208.º do decreto imperial do 11 de junho de 1847, que diz:—«Todo o documento a ser produzido em juizo, ou exhibido por qualquer fim legal, deve ser necessariamente assignado pelo consul e sellado com o sello do consulado, sem o que não fará fé.» etc.
«Fiz outras allegações mais, como: novação de contracto pela licença dada e confessada pelo locatario ao locador para vir á côrte arranjar meios de lhe pagar, etc.[145]
«Tudo foi inutil, por que o habeas corpus foi negado pelo juiz de direito.»[39]
O consul conclue que o juiz de paz condemnára os infelizes a uma multa exorbitante; e que mandando appellar da sentença para o juiz de direito, este confirmára a condemnação.
É mais uma prova de que o governo do Brazil protege os colonos!
E ainda ha jornaes que teem medo de publicar isto!
E ainda ha quem diga que o ouro dá a dignidade e a independencia!...
Fallemos sobre os contractos lesivos, feitos entre os colonos e os engajadores, ha alguns annos a esta parte; e façamos igualmente mensão da protecção dispensada aos colonos pelos senhores de engenho.
O consul do Maranhão examinou em dezembro de 1855 um contracto de locação, feito entre o engajador Izidoro Marques Rodrigues e 168 colonos das nossas provincias do norte. Não obstante estar já publicada a lei de 20 de julho de 1855, a mesma auctoridade examinára que as clausulas expressas na referida lei não tinham sido attendidas, o que deu logar a alguns abusos quando a comitiva chegou ao porto do Maranhão.
Os colonos mettidos no arsenal da Marinha «foram cedidos a differentes proprietarios, e como em seus primitivos contractos havia uma condição, que os colonos pagariam 10$000 réis, alem da passagem e mais abonos feitos pelo engajador, uma vez que não quizessem seguir para a colonia (Companhia de Colonisação do Codó); assim satisfariam os novos locatarios, ficando os infelizes colonos, subditos portuguezes, sobrecarregados[146] com este augmento de divida para pagar com seu trabalho.»
Em 14 do dezembro de 1855, participava o consul no Rio, os inconvenientes de um contracto «summamente oneroso», celebrado entre vinte portuguezes e Augusto Cesar Pereira Soares, para uma colonia em Cantagalo; «summamente oneroso para similhante gente, que tendo mudado do seu paiz para o Brazil, sem onus algum, não podia comtudo trabalhar em terra estranha, por tres annos, por tão diminuto preço:—1.º anno 4$000 réis, 2.º 6$000 e 3.º 8$000, mensaes, moeda fraca! Com quanto o locador fosse obrigado a dar comedorias e remedios, como seria possivel, accrescenta o consul, trabalhar por tão diminuto preço?»
A média do salario dado a estes desgraçados, como será facil de examinar, era de 100 réis fortes, de comer... e remedios!
Meio dia de trabalho em Portugal excederá aquella somma.
Oh, que abençoada terra da promissão!
Para mais alguns fazendeiros de Cantagallo, chegára do Porto em 12 de janeiro de 1856, uma leva de 50 escravos brancos, contractados a 60$000 réis pelo primeiro anno, a 72$000 no segundo e a 96$000 no terceiro, moeda fraca!
Os colonos pagaram á sua custa a passagem e mais despezas, na importancia de 120$000 réis, ficando por consequencia liquidos em todo este tempo 108$000 réis fracos, menor jornal do que 100 réis fracos por dia!
«Estes engajadores, accrescenta o documento official que temos á vista, abusando da ignorancia d'esta gente, praticando o que fica referido, faziam ao mesmo tempo grande guerra á fiscalisação que se dava no consulado, para se oppôr a que os engajadores escravizassem seus patricios com contractos tão leoninos.»[147]
Em 18 de janeiro de 1856, informa o vice-consul em Ubatúba, districto do Rio de Janeiro, que indo examinar os tumultos occorridos na colonia creada em Taubaté, composta de 378 portuguezes, engajados no Minho, reconhecera, que os colonos haviam sido completamente illudidos e lesados em seus interesses, porque, sabendo-se que as passagens do Porto para o Rio de Janeiro eram de 28$800 réis fortes e as d'aqui para Ubatúba, de 6$000 réis fracos, vinha a passagem de cada colono a importar até ali em 31$800 réis fortes; no entanto que pelos contractos assignados no Porto, os sujeitaram ao pagamento de 100$000 réis fracos, ganhando por consequencia os engajadores 36$000 fortes por cada um!
Aqui o engajador, só d'um jacto, lucrou, como é facil de conferir, 13:608$000 réis.
E devemos notar, que os colonos, assim ludibriados, estavam sujeitos a uma multa de 50$000 réis, se, sem o consentimento do roceiro, se retirassem da colonia! Reconhecera o consul que, se tal fizessem, teriam de sujeitar-se a quatro annos de captiveiro, em qualquer outra colonia, onde os não receberiam (os senhores de engenho entendem-se perfeitamente!) sem a promessa de satisfazer aos compromissos que se haviam imposto!
A falta de braços começava a sentir-se no imperio, por causa da repressão do commercio da escravatura.
De 1822 a 1828, refere Ferdinand Diniz, os resultados do trafico da escravatura, só no Rio de Janeiro, era de 43:800 almas, e nos ultimos annos podia elevar-se a 90:000 em todo o imperio![40][148]
A necessidade de supprir tão grande falta, levou o governo do imperio a fechar os olhos aos escandalos que todos os dias se praticavam com a acquisição dos colonos portuguezes...
Continuemos, pois, na tarefa de esmerilhar os contractos ruinosos, e a humanidade do governo imperial em face de tantos abusos.
Em 18 de junho de 1856 partíra do porto de Pernambuco a galera portugueza Flôr do Porto, com ordem de conduzir da ilha de S. Miguel uns trinta colonos, contractados a 10$000 réis por mez, pelo tempo de tres annos, sob pena de multas pelo não cumprimento do contracto. Isto é, o salario não devia ser superior a 120 réis fortes, a secco... fóra as multas!
O consul respectivo declarava que o salario n'esta provincia regulava, para qualquer homem de trabalho, de 16$000 a 20$000 réis mensaes, independentes da matença, casa e curativo das molestias adquiridas em serviço!
Em 19 de dezembro de 1856 apparecera no consulado do Rio de Janeiro um contracto firmado no Porto, estipulando ordenados mensaes de 6$000, 7$000 e 10$000 réis fracos, pagando os colonos 120$000 réis, por passagens, e os salarios eram assim estipulados pelo referido consul:—de 16$000 a 20$000 réis mensaes, cama e mesa, para os trabalhadores; de 1$600, 1$800, 2$000 e 2$500 réis, diarios, para os pedreiros, calceteiros, carpinteiros, marceneiros, serradores, ferreiros e sapateiros, e sendo mais habeis em qualquer dos officios, de 3$000 a 4$000 réis diarios, a secco, preços que ainda regulam na actualidade.
O vice-consul da cidade de Santos, tambem diz que os engajadores extorquiram a 90 passageiros, idos do Porto, 2:524$000 réis fracos, «porque tendo pago ao navio 2:808$000 réis moeda forte, a razão de 6 moedas e meia por cada um dos 90 passageiros, e carregando-se-lhes[149] 4:070$400 réis, resultado de 88 passagens a 45$000 réis e duas a 110$400 réis, segue-se ser a lesão de 1:262$400 réis, fortes»!
«Com estes escandalosos factos, refere a authoridade consular no Rio ao nosso governo, se explica a razão porque os especuladores, não lhes convindo nenhuma fiscalisação nos respectivos consulados, procuram por todos os meios evitar o contacto d'elles com os colonos portuguezes, não se tendo por isso registado nenhum d'estes individuos n'aquelles dois vice-consulados, o que sem duvida será muito prejudicial para o futuro, porque jámais se poderá saber o destino que tiveram.»
Em janeiro do referido anno, chegava ao Rio o patacho Liberdade (!) com mais 50 escravos brancos da ilha de S. Miguel, a quem o proprietario do navio obrigára a pagar as passagens ao preço de 100 patacões (200$000 réis), o dobro do preço que era costume pagar qualquer passageiro!
Estes infelizes foram contractados por 10 e 12 mezes de serviço, recebendo 2$000 réis mensaes para suas despezas! Mas sendo obrigados a pagar tão grande divida, não poderam encontrar patrões para servir por menos de 24 mezes!
N'esta época o governo, tendo em vista as reclamações do nosso consul no Rio, sobre «os vexames que soffriam os colonos portuguezes no Brazil, em consequencia dos contractos lesivos que faziam em Portugal os agentes brazileiros», pedia ao governo do imperio providencias adequadas, a fim de evitar tão grande mal, providencias que, segundo a phrase do nosso representante na côrte do Rio de Janeiro, se não prestaria a dar o referido governo, visto que elle «o mais interessado na emigração para o imperio, desejava facilital-a por todos os meios»!
E accrescentava, que os que não queriam contractar[150] no consulado o seu serviço por um tempo razoavel, iam ter com os juizes de paz «que não tinham empenho em olhar pelos interesses do locador e sim pelos dos locatarios, que procuravam vexar aquella pobre gente que queriam tomar ao seu serviço.»
Se olharmos com attenção para tão exorbitante differença de salarios, os que eram offerecidos aqui pelos engajadores e os que eram estipulados no Brazil aos colonos, encontraremos a razão de existirem para ahi verdadeiros parasitas disfrutando fortunas colossaes.
O commercio da escravatura tambem tinha d'estes phenomenos! Um negociante tomava conta de um carregamento de africanos, emquanto o navio ia em procura de nova remessa. A consignação era posta em almoeda, e o consignatario, em tres ou quatro dias, ganhava a bagatella de 40 ou 50 por cento!
Na verdade, não havia commercio mais licito e mais lucrativo!
Quaes seriam os lucros dos negociantes, que por sua propria conta e em navios seus importavam escravos das costas de Africa?!
Nem é bom pensar n'isso.
Os lucros provenientes do commercio de escravos brancos, importados das costas de Portugal, com o titulo protector de colonos, não são inferiores, convençam-se d'isso!
Os portuguezes, como começamos a ver e não nos cansaremos de examinar são aqui contractados pelos engajadores, por um certo praso de tempo, o sufficiente para que os colonos paguem a passagem e mais despezas. Findo esse tempo, póde-se dizer que o portuguez exhausto não deve nada ao engajador, locatario, roceiro, negociante ou capitão do navio que o transportára para as plagas brazileiras; mas em compensação, é levado para o hospital beneficente portuguez; e d'alli, se melhora, é conduzido a Portugal, talvez que pelo[151] mesmo navio que outr'ora o conduzira; porém, d'esta vez, o capitão já não fia a passagem: o producto de uma subscripção publica satisfaz as suas exigencias de traficante!
Falla o consul de Pernanbuco:
«Ha nos contractos que aqui se me têem apresentado, não só falta de clareza, mas condições inexequiveis e até illegalidades.
«Os ultimos contractos que aqui me appareceram foram os de uns sessenta colonos, vindos do Porto no brigue portuguez Trovador. Estes contractos vem em publica fórma e sem reconhecimento do respectivo consul. Não sei portanto se são falsos ou verdadeiros.
«N'estes contractos vem incluidos alguns menores sem o consentimento de seus paes ou tutores. O escrivão commetteu um delicto por que deve responder.
«São arduas algumas das condições, e que se não podem cumprir sem pôr em perigo a saude e vida dos colonos, e outras pouco explicitas e nada claras. Pela segunda condição, por exemplo, são os colonos obrigados a trabalhar nove horas por dia, sendo em descampado, e dez e meia sendo em logar abrigado. Aqui o dia tem regularmente doze horas, e não é possivel que um europeu ature n'este clima, exposto aos ardores do sol, o trabalho de nove horas no espaço de doze, sem que a saude se lhe deteriore, maximé com comidas a que não estão habituados. Expostos ao sol e chuva, não póde exceder o trabalho de sete a oito horas.
«Tambem é excessivo o trabalho de dez horas e meia em logar abrigado, porque hora e meia não é tempo sufficiente para refeição e descanso. De oito a nove é o mais que se póde trabalhar. Se não melhorarem estas condições dos contractos, nunca irá por diante a colonisação e as victimas serão innumeras.[152]
«Pela sexta condição se estabelece que antes de terminado o praso poderá cada colono rescindir o contracto, pagando 120$000 réis, moeda fraca, como multa, custo da passagem e dinheiro despendido com o passaporte e preparativos para a viagem. Isto é muito vago, e póde ser muito injusto.
«Uma passagem na prôa, do Porto para esta cidade, regula por 24$000 réis e o muito 28$800 réis; o passaporte não chega a 3$000 réis, o que reduzido a moeda fraca, não póde chegar a 61$000 réis. Como é pois que em preparativos, que bem mesquinhos são, e multa se inclue quasi outro tanto? De quanto é a multa? Seria bom que se declarasse a importancia de cada objecto; mesmo que seja levado em conta o tempo dos serviços prestados.
«Um contracto contra que estou reclamando por maus tractos, celebrado pelo consul do Rio de Janeiro, entre um menor e um desembargador, estabelece que o locador se obriga a prestar os seus serviços por espaço de dezoito mezes, para satisfação do importe de sua passagem de S. Miguel para o Rio, ganhando 2$000 rs. por mez! E o locatario se obriga a dar-lhe educação, bom sustento, lavar e vestir. Como é que o locador ha de exigir o cumprimento d'estas condições? Que se entende por educação? Que se entende por vestir?» etc.
Esta educação, bom sustento, lavar e vestir, era naturalmente o tratamento que os senhores de escravos costumam dar aos seus moleques:—chicote e umas calças de ganga: da cintura para cima, a pelle branca tomava em poucos dias as côres atapuyadas!
Este outro importantissimo documento é do nosso consul no Maranhão:
«O objecto principal d'este meu officio é particularmente fazer conhecer a v. ex.ª o estado de colonisação n'esta provincia, afim de que o governo de sua[153] magestade fidellissima tome as providencias que julgar acertadas.
«No geral todos os individuos que vem para colonias não sabem ler nem escrever, e isto faz que elles não possam adquirir outro modo de vida menos perigoso do que o trabalho nas terras, que ao norte d'este imperio está visto ser só proprio para os africanos, unicos que podem supportar o calor abrazador d'este clima e a humidade doa terrenos. Os mesmos salarios por que os colonos são engajados na Europa, onde lhes parece que dentro em pouco devem fazer aqui alguma fortuna, raras vezes é sufficiente para o seu alimento, visto que os generos de primeira necessidade são aqui excessivamente caros, e portanto não lhes chega para um alimento igual ao que têem na Europa, que seria o unico meio de poderem melhor affrontar a intemperie de um clima improprio dos filhos da Europa para o trabalho nos campos.
«Por quanto acabo de dizer pode deprehender-se que os colonos andam aqui mal vestidos, e raras vezes tem recursos para attender á sua existencia, que dentro em pouco fica em perigo, como o attesta o limitado numero que existe, comparativamente com o que tem entrado. Diariamente se vêem d'estes nossos compatriotas desgraçados, andarem cheios de mollestias e privações, promovendo subscripções, de porta em porta, devendo porém n'esta parte esclarecer a v. ex.ª d'onde muitas vezes provém tal miseria. Alguns, com a ambição de em breve tempo juntar algum peculio, entregam-se emquanto teem saude a um excessivo trabalho, d'onde lhes resultam molestias, que mais se aggravam pelo desprezo em que as consideram, e sobretudo por fugirem aos gastos de um tratamento regular, que se só resolvem fazer quando estão proximos a entrar para a sepultura.
«Se eu attendesse a quantas exigencias se me fazem,[154] poucos seriam os que por aqui ficariam, porque todos lamentam o engano em que cairam, e suspiram pela volta aos lares patrios. A expensas minhas, envio no patacho Trovador uma familia composta de quatro pessoas, que sem fallar no desvio de alguns de seus membros que por cá ficam, depois de dois annos de estada aqui, voltam naturalmente em peiores circumstancias do que vieram!»
No excesso da cegueira poderá haver quem diga, que é uma ficção o commercio da escravatura branca. Se os documentos em que nos temos baseado não confirmam o dito, o que vamos extractar desilludirá os descrentes. É ainda do nosso consul em Pernambuco o seguinte trecho:
«É revoltante que por uma passagem de prôa, com o tratamento de bacalhau, sardinha salgada e biscoito de milho, se esteja levando a estes degraçados, do Porto para aqui, 60$000 réis fortes ou 120$000 réis fracos, quando não ha navio que alli não tome um passageiro de prôa por 24$000 ou 28$800 réis. Muito bom seria que, tanto no Porto como nas ilhas açorianas, se podessem tomar algumas medidas que pozessem cobro a esta escandalosa agiotagem com a desgraça.
«Acaba de chegar de S. Miguel o brigue portuguez Oliveira, com 56 passageiros, e o governador da ilha (não satisfeito com me remetter todos os seus passaportes em regra, obrigações e recibos da passagem de cada um), depois de não ter consentido que ali se celebrassem contractos de locação de serviços, obrigou o capitão do navio a assignar um termo que me remette, no qual o capitão se responsabilisa a não deixar desembarcar os passageiros, sem que no consulado celebrem o contrato do modo do pagamento de suas passagens. N'estas passagens ha a mesma agiotagem que nas do Porto, pois todas vem a 60 patacões ou 120$000 réis, dinheiro do Brazil.[155]
«Similhantes passagens importam uma lesão enormissima, a não serem consideradas como negocio de risco, e, considerando-as eu como taes, estou resolvido a não deixar passar nos novos contractos a obrigação do seu pagamento para os locatarios, mas sim conserval-a aos locadores; porque d'esta fórma pódem estes fazer mais vantajosos contractos, visto que o locatario não corre o risco de perder o importe da passagem que adianta, com a prematura morte do locador; e me parece mesmo mais justo e razoavel que lhe corra o risco o agiota, que foi levado a isso pelo excessivo lucro.
«Os passageiros se obrigam em seus titulos a satisfazer a passagem dentro de oito dias depois da sua chegada a Pernambuco, ao que hypothecam suas pessoas e bens. As pessoas não podem ser retidas por dividas, e os bens são uma caixa vazia. Se portanto o dono ou consignatario do navio não quizer continuar a correr o risco, que obrigue o devedor pelos tribunaes, e ficará pago com suas caixas, que é quanto podem dar á penhora.
«Eram estas obrigações das passagens satisfeitas dentro em oito dias depois da sua chegada, que tornavam os contractos aqui uma especie de venda de suas pessoas; porque, considerando-se obrigados a satisfazer uma somma que não tinham nem podiam ganhar em tão curto praso, se entregavam por uma bagatela a quem suppunham que os vinha resgatar.
«Parece-me que da maneira que levo dito poderei indirectamente levar as cousas a que de futuro se contentem os agiotas com lucros menos excessivos, porque, sendo as passagens regulares, não faltará quem, com vantagem dos passageiros, lh'as satisfaça logo á sua chegada» etc.
Nada conseguiu o consul, como mais tarde demonstraremos.[156]
Antigamente quando os pretos escravisados desembarcavam no litoral do Brazil, os senhores de engenho, antes de entrarem em ajuste com os traficantes, procediam a uma rigorosa escolha dos negros que mais poderiam convir ao serviço da lavoura, assim como qualquer alquilador escolhe as bestas para o serviço dos alugueis.
Pois bem, o que antigamente acontecia aos pretos, succede hoje com os brancos, nossos compatriotas.
Em principios de 1857, foram regeitados 174 colonos, idos da cidade do Porto, na barca Santa Clara, para a colonia de Campos Junior & Irmão, na cidade de Campinas, no Brazil.
Mais alguns casos se haviam dado, e para evitar o escandalo, o governo portuguez, a pedido do consul geral na côrte do imperio, deu algumas providencias tendentes a estabelecer um accôrdo com o governo brazileiro.
Vamos apresentar aos leitores alguns documentos que esclarecem a questão, bem como qual fôra o resultado das negociações entaboladas a este respeito entre os dois governos.
É do nosso ministro acreditado na côrte do imperio, e alli residente em 1858:
«Respondendo ao despacho de v. ex.ª datado de 12 de março ultimo, direi com a devida submissão quanto ao seu conteúdo e ao da cópia do officio do ministerio do reino que o acompanha, sobre a conveniencia d'um accordo com este governo, tendente a prevenir a repetição da regeição de colonos mandados angariar no continente de Portugal e ilhas adjacentes por parte de qualquer individuo ou companhia no Brazil (como o que se deu ha pouco tempo em Santos), que pela circular[157] do mesmo ministerio do reino aos respectivos governadores civis, citada na dita cópia, foi sabiamente tomada a unica medida decisiva possivel na minha humilde opinião contra a má fé e abusos de tal ordem.
«No entretanto disponho-me, como devo, estudar o modo de fazer a proposta do accordo por v. ex.ª determinado, comquanto me pareça á primeira vista não ter probabilidades de felicidade, por isso que no assumpto de que se trata, nós temos sómente a pedir, não temos que offerecer. Poderemos talvez chegar ao resultado justamente pretendido, ampliando e completando com certo apparato a medida acertadissima encetada já pelo ministerio do reino,» etc.
Um mez depois escrevia o mesmo diplomata o seguinte:
«Terminei o meu officio de 10 do mez proximo findo, quanto á conveniencia d'um accordo com o governo d'este imperio, tendente a evitar a rejeição de colonos mandados assalariar d'aqui n'esse reino e ilhas adjacentes, aventurando com o devido respeito o meu juizo sobre a pouca probabilidade de conseguir ajuste de tal ordem, e acrescentei que, para obedecer a v. ex.ª, estudaria comtudo o modo de fazer a respectiva proposta, comquanto me parecesse poder chegar-se ao resultado pretendido por meios de mais facil adopção por parte do Brazil.
«No proprio interesse da sua colonisação reside a necessidade forçosa de moralisar todo e qualquer contracto de locação de serviços, cujo fim seja chamar ao imperio braços livres e gente branca, do que não póde prescindir sem comprometter a sua existencia, arriscadissima já pela incuria imperdoavel dos que com perfeito conhecimento de causa se não tem occupado como deviam e podiam de promover uma emigração util.
«Assim o disse eu ha poucos dias ao sr. visconde de[158] Maranguape, ministro dos negocios estrangeiros, o qual procurei expressamente a fim de chamar a sua attenção para o facto verificado em Santos com os colonos portuguezes para ali conduzidos na barca Santa Clara, mandados ajustar no Porto, e rejeitados depois á sua chegada. E continuando disse que referia o occorrido a s. ex.ª, para pedir-lhe, como effectivamente lhe pedia, em nome do governo de sua magestade, providencias que evitassem repetições de similhante natureza, certo de que, se não fosse bastante, o que eu não punha em duvida, encarar o caso pelo lado da humanidade para dar-se-me razão inteira, viriam em apoio da minha representação as considerações moraes, as de conveniencia e de interesse, que bem sabia s. ex.ª não serem de modo algum indifferentes para a prosperidade actual e futura sorte do Brazil, dependente da maior ou menor affluencia de emigrantes.
«Assim pois, conclui eu, «será v. ex.ª o primeiro a conhecer a necessidade de algum compromisso por parte do governo imperial, para tranquilisar o governo que represento, a respeito dos nossos compatriotas, os quaes fiados na fé dos contractos, deixam a patria, muito embora com vistas exclusivas de vantagem propria, e vem tão efficazmente, tão visivelmente concorrer para o engrandecimento do imperio».
«Para estas considerações, aliás de primeira intuição, não ha resposta, e por conseguinte não fez o mesmo ministro outra cousa senão abundar nas minhas idéas, com expressões que me pareceram sinceras, e em perfeito accordo com os nossos desejos. E como eu lho havia declarado a clausula mandada inserir por circular do ministerio do reino nos contractos de locação de serviços para o Brazil, que de futuro hajam de fazer-se entre nós, disse-me s. ex.ª que em harmonia com aquella disposição, mas sem allusão a ella, proporia aos seus collegas uma disposição com todo o caracter de[159] espontanea, por meio da qual ficaria satisfeito o governo de sua magestade, e acautelados os verdadeiros interesses do Brazil. O que comtudo não poderia ter logar desde já e emquanto não estivesse em andamento a actual sessão legislativa depois de apresentados os relatorios dos diversos ministerios, com os quaes elle e seus collegas se achavam muito occupados,» etc.
Na serie de documentos que temos presente, não podemos encontrar as disposições espontaneas, que o governo brazileiro pretendia preparar, quando estivesse em andamento a tal sessão legislativa!
Queremos dizer com isto, que as reclamações do governo de Portugal foram desattendidas, naturalmente, porque ao governo humanitario do Brazil, convinha, primeiro do que tudo, consultar os roceiros a respeito das nossas pretenções, que necessariamente haviam de offender os seus interesses!
O governo brazileiro a tudo promettia providencias; mas não lhe fazia conta maltratar os fazendeiros.
Vamos apresentar mais uma prova d'esta nossa asserção.
«Em virtude de certa denuncia, communica o nosso ministro na côrte do imperio ao governo portuguez, representou-me o vice-consul encarregado do consulado geral de Portugal, contra o procedimento havido com alguns colonos, subditos de sua magestade, em uma fazenda do municipio de Iguassú, não mui distante d'esta capital.
«Não perdi tempo em solicitar do governo imperial pela nota da cópia junta as averiguações e providencias indespensaveis para remediar o mal verificado. E aproveitei a occasião para instar pela quarta ou quinta[160] vez, pela solução de uma representação identica em favor de outros colonos, tambem portuguezes, para ser dirigida a este governo em meado do anno preterito!!!» (1858)
Este outro documento que vamos transcrever, é a nota a que se refere o nosso ministro na corte do imperio:
«Não posso dispensar-me de levar ao conhecimento de v. exª, na cópia inclusa, o officio que ora me foi entregue por parte do consulado geral de Portugal, n'esta côrte. Da mesma cópia v. ex.ª verá o comportamento attribuido ao rendatario de certa fazenda no municipio de Iguassú, Francisco José de Freitas, para com os colonos portuguezes ao seu serviço, bem como a immoralidade com que, segundo alli se affirma, tem procedido o referido Freitas a respeito da filha de um dos ditos colonos, menor de 13 annos.
«Não escaparão por certo a v. ex.ª as circunstancias, constantes do citado officio, de haver sido denunciado no dito consulado o facto acima exposto, por pessoas inteiramente desinteressadas, e do misero estado em que da dita fazenda se evadiram dois d'aquelles colonos, os quaes por isso mesmo tiveram de ser transportados em rede para o hospital.
«Quanto a mim abstenho-me de qualquer reflexão sobre taes occorrencias, bem certo de que não podem ser senão sobremodo desagradaveis as que affluirão no animo de v. ex.ª, com a simples leitura do já referido documento junto.
«Limito-me pois a pedir a v. ex.ª com a maior instancia, sem perda de tempo, as providencias promptas e energicas que o caso exige, permitta-me v. ex.ª que o diga, no proprio interesse do Brazil, comprovada a verdade da já alludida denúncia.
«Contra factos identicos, não menos escandalosos, verificados em Taubaté, o anno proximo passado, tive[161] a honra de reclamar medidas de severidade por parte do governo imperial, e com quanto seja de 28 de julho preterito aquella minha representação, sobre a qual tomo a liberdade de chamar a séria attenção de v. ex.ª, não recebi resposta d'ella até hoje, decorridos perto de sete mezes. Lisonjeando-me de que serei mais feliz n'esta occasião, aproveito-a para renovar os protestos,» etc.
A resposta do governo imperial é a que segue:
«Tive a honra de receber a nota... pela qual o sr. José de Vasconcellos e Sousa, remetteu-me copia do officio que lhe dirigiu o consul geral de Portugal n'esta côrte, expondo-lhe os reprehensiveis actos attribuidos ao arrendamento de uma fazenda do municipio de Iguassú, Francisco José de Freitas, para com certos colonos portuguezes, que tem a seu serviço, e á filha menor de um d'elles.
«Sciente das observações que a este respeito fez o sr. Vasconcellos e Sousa na sua citada nota, e convencido da urgente necessidade de verificar o fundamento de semelhantes accusações, cumpre-me prevenil-o de que pelo ministerio do imperio, ao qual n'esta data dirijo-me, se procederá aos precisos exames e se tomarão as medidas correccionaes e preventivas que o caso exigir, sendo prudente não comdemnar desde já a parte accusada (se elle é roceiro!)»
«Quanto ao trecho da mesma nota, em que o sr. Vasconcellos se queixa da falta de resposta por parte d'esta secretaria d'estado á sua reclamação de 28 de julho do anno proximo passado, em favor dos colonos de Taubaté, peço licença para observar-lhe que, dependendo essa resposta de informações que teem de ser enviadas por authoridades das provincias de S. Paulo é inevitavel a demora que nota o sr. de Vasconcellos, attendendo-se ás distancias e outras circumstancias bem conhecidas, proprias de um paiz tão extenso e pouco[162] povoado como o Brazil. Entretanto tornarei a chamar a attenção do sr. ministro do imperio sobre este objecto,» etc.
Mas as providencias nunca se deram; pelo menos a esta crença nos induz o silencio usado pelo governo imperial a respeito da questão.
A razão apresentada pelo ministro brazileiro da extensão do paiz, se não podia insentar o governo do imperio de culpabilidade, com respeito ao negocio de Taubaté, por quanto em dois ou tres mezes devia ter dado as explicações pedidas pelo representante de Portugal; menos poderia desculpal-o com relação ao conflicto de Iguassú, que, como vimos, fazia parte do districto do Rio de Janeiro.
O documento que passamos a transcrever não é menos interessante. É elle assignado pelo conde de Thomar, e tem a data de 27 de outubro de 1859:
«Em 15 do corrente apresentou-se n'esta legação um rapaz de doze para treze annos, por nome José Fernandes, o qual disse ter vindo da ilha Terceira, acompanhado de um individuo, que se disse seu tio, chorando e mostrando alguns ferimentos nas pernas, os quaes o mesmo rapaz asseverou terem sido feitos com chicote mandado applicar por sua ama, pelo motivo de elle não poder fazer todo o serviço, que lhe era exigido, e que elle reputava seguramente superior ás suas forças. Vendo o estado em que se achava aquella creança, ordenei que se conservasse na legação, até que eu, colhendo as devidas informações, resolvesse o que fosse mais conveniente.
«Mandei que o consul com a maior urgencia indagasse sobre aquelle facto, e me informasse devidamente. Convenci-me por tudo o que me foi presente, que o rapaz poderia ter commettido algum descuido no desempenho das suas obrigações, mas esse descuido nunca poderia auctorisar o emprego do chicote contra uma[163] creança d'aquella idade, castigo cruel reservado para os negros mais desmoralisados. Resolvi portanto fazer annullar o contracto da venda de serviços por dezoito mezes, feito pelo mencionado menor. Desembolsei para isso 100$000 réis fracos, e tenho aquella creança em minha casa até que lhe possa dar outro destino.
«Aproveitei este acontecimento para entrar melhor no exame de todas as circumstancias, que acompanham o embarque de muitos portuguezes de todas as idades e differentes sexos para este imperio; e bem assim do modo por que são elaborados os contractos da locação de serviços dos subditos de sua magestade.
«Ordenei portanto ao consul geral, que enviasse a esta legação o passaporte original d'aquelle rapaz, e copia do contracto de locação dos seus serviços, informando ao mesmo tempo de tudo que soubesse a tal respeito.
«Verifiquei, pois, pelo dito passaporte original, passado no governo civil de Angra, que o dito menor é da ilha Terceira, e que veiu aggregado a seu cunhado Alexandre Gonçalves e sua mulher; no dito passaporte se declara que o dito rapaz é menor de 13 annos.
«Sendo assim menor de 13 annos, e tendo pae como elle proprio declarou, podia dar-se um tal passaporte sem a declaração do expresso consentimento do pai?
«Estando sujeito ao recrutamento, tomaram-se acaso as devidas precauções para que não deixasse de pagar o tributo de sangue, sendo em occasião opportuna chamado pela sorte?
«Chegando aquelle menor a este imperio figura em um contrato de locação de serviços por desoito mezes, mediante a somma de 100$000 réis fracos, assignado pelo locador, o conselheiro João José de Carvalho, e pelo consul em nome e por parte do menor locatario. A referida quantia de 100$000 réis é a somma exigida pelo capitão da Nova Rival, que o conduziu, como importe[164] da passagem e comedorias! É assim que os capitães dos navios vendem temporariamente os subditos de sua magestade!» etc.
Quando os nossos compatriotas não podem aturar os castigos corporaes que seus senhores lhes mandam infligir pelos negros, vem a miseria, a fome, n'este paiz onde o ouro anda aos pontapés, n'esse paiz onde jámais se realisará a promessa do sr. Augusto de Carvalho, de—cento por um.
Não descurava o conde de Thomar tambem do horroroso flagello da febre amarella, que já em 1860 produzio os seus maleficos estragos; mas foi bradar no deserto.
O remedio apontado, que é prohibir a emigração para os portos infeccionados, ainda não foi adoptado, naturalmente pela difficuldade que offerece a creação de qualquer taxa, a exemplo do que se pratica no Lazareto com os passageiros vindos dos portos infeccionados d'aquella terrivel molestia.
É que os nossos legisladores deixariam de ser verdadeiros patriotas, se alguma vez cahissem na patetisse de fazer uma lei que não esbulhasse o pobre povo do que tanto lhe custa a ganhar.
A lei que pozesse termo á emigração para o Brazil, especialmente na quadra de janeiro a junho, era uma lei humanitaria, que jámais poderia ser atacada pelos verdadeiros liberaes.
A obrigação dos governos é desviar os administrados do precipicio, que os seus fracos conhecimentos do mundo lhes não deixam vêr.
São insignificantes os resultados tirados da publicação das relações do obituario, que os nossos consules nos enviam do imperio. E a razão é simples: é que a nossa[165] população d'onde sahem os emigrados não sabe lêr; ou se sabe não está ao alcance de lêr os jornaes mais importantes, onde apparecem publicadas essas listas, que muito poderiam influir no animo dos que em tão horrorosa quadra entendem dever deixar a patria.
A imprensa que mais se entranha no coração do povo, essa, com rarissimas excepções, pouco ou nenhum caso faz d'isto, por causa do medo...
Comtudo publica em seu logar as noticias importantes do baile do sr. commendador Fulano, ou do feliz parto da esposa do sr. Sicrano!
Esta medida de publicar as relações nominaes dos subditos portuguezes, fallecidos no Brazil, com a declaração da molestia de que tinham succumbido, fôra lembrada pelo conde de Thomar, em 1860, com o fim de evitar a emigração.
Mas parece que tão bom alvitre não tivera a recepção que era para esperar. Mais uma razão da falta de vontade do nosso governo em querer auxiliar o conde em tão util propaganda.
O seguinte trecho, que vamos extrahir do seu officio de 7 de maio de 1860, resente-se d'esta falta:
«Sinto que o governo não julgasse aproveitavel a idéa que suggeri na minha correspondencia, fazendo publicar diariamente na folha official e nos jornaes sobre que podesse exercer alguma influencia, a relação dos portuguezes mortos n'este imperio, declarando-se sempre a molestia de que são victimas, e a sua edade.
«É isto muito facil, pelo menos quanto ao Rio de Janeiro, porque nada mais haveria a fazer senão transcrevêr o obituario, que diariamente publicam os jornaes brazileiros, que mando para a secretaria a cargo de v. ex.ª.
«Affigura-se-me que este systema seria preferivel ao de publicar em um só diario de Lisboa, uma longa lista de nomes. A circumstancia que se notaria, de que a[166] maior parte morrem de febre amarella, e quasi todos na melhor e mais apropriada edade para fazer fortuna e para trabalhar, seria, no meu entender, a cruzada mais poderosa que se poderia promover contra a emigração. Daria isto ainda logar a occupar-se frequentemente a imprensa portugueza de tão importante objecto, porque tinham sempre thema para discorrer; estou quasi certo de que algum bom resultado se havia de tirar d'este meio.
«Aqui mesmo faz muita impressão a leitura diaria d'aquelle artigo (obituario) sendo talvez o primeiro que chama a attenção dos leitores.
«Consta-me que muitos dos infelizes ultimamente chegados foram logo victimas da febre amarella; nem póde deixar de assim acontecer, porque, sendo a bahia do Rio de Janeiro o logar mais mortifero, é tambem aquelle aonde menos promptamente se póde acudir com os soccorros.
«Parece incrivel que o governo d'este paiz, tão interessado na introducção de colonos, se não tenha lembrado de adoptar alguma medida para fazer com que os navios em que são transportados os colonos, cheguem aqui em estação mais propria, ou que ao menos se demorem os colonos pouco tempo na dita bahia, etc.
«Reconheço que existe algum obstaculo, porque os capitães especuladores, altamente interessados na venda dos serviços dos ditos colonos, encontrarão maiores difficuldades para a verificarem, etc.
«Mas a vida perdida de tantos homens na flôr da sua edade, não valerá a pena de pensar n'este importante objecto? É minha intenção chamar a attenção do governo imperial sobre este ponto, na occasião em que se discutir a respectiva convenção.»
Nada se chegou a conseguir, porque o illustre diplomata pouco tempo depois retirava-se para Portugal.
Sobre o mesmo assumpto já o referido ministro tinha[167] chamado a attenção do nosso governo, em seu officio de 30 de março de 1860, nos seguintes termos:
«Por esta occasião chamarei de novo a attenção de v. ex.ª sobre os que morrem de febre amarella. São na maior parte portuguezes ultimamente chegados das ilhas e do reino.
«Não é possivel conceber como se procura tão perigosa e doentia estação para desembarcar no Brazil gente transportada da Europa. É negocio que demanda uma providencia, pois exige a humanidade, que se não deixem assim correr ao matadouro moços pela maior parte de 15 a 25 annos.»
Que providencias se têem tomado? Uma unica, a nosso ver, pouco proficua:—a de se publicar na folha official a lista dos subditos portuguezes fallecidos no Brazil. Mas perguntamos: Quem é que lê a folha official? A resposta é facil. Os empregados publicos, por obrigação, e os ricassos, que tendo requerido certas honrarias, assignam o Diario, que n'um momento os ha de transformar de pygmeus em ridiculos barões!
Se os que podiam remediar o mal, curassem menos de futilidades, lembravamos-lhe o seguinte expediente:
Mandar publicar diariamente por conta do governo, em todos os jornaes do paiz, um mappa circunstanciado da mortalidade dos subditos portuguezes fallecidos no imperio.
Estamos certos que nenhum jornal deixaria de publicar gratuitamente tão importante documento, se directamente lhe fosse enviado pelo governo; porque é preciso dizer que, a maioria dos jornaes portuguezes guerreia a emigração, e se não lança mão d'este grande meio de combate, é porque nem todos possuem o Diario do Governo, especialmente os das provincias.
Para essa minoria de jornalistas, que fazem da imprensa o ariete com que costumam remover as suas difficuldades financeiras; para esses que não vêem na imprensa[168] um meio de moralisar e ensinar os povos, mas um meio de especulação; para esses que substituem por annuncios de namorados, a 20 réis a linha, as noticias de factos importantissimos: para esses, a paga do espaço occupado pelos mappas de que vimos fallando.
A despeza material não é muita, se attendermos á importancia moral da receita.
E quando mesmo se pagasse a toda a imprensa este trabalho, que importancia tem estas despezas comparadas com as que os governos fazem na compra da opinião dos especuladores, que, tão inconscientemente, apregoam na tuba da fama, as glorias ficticias de seus patronos?!
O governo inglez não prohibe nem aconselha a emigração; mas offerece gratuitamente aos editores os relatorios de exames a que manda proceder nos paizes indigitados pelos aliciadores aos filhos da Inglaterra.
Estes relatorios que custam milhares de libras ao governo, e que, por terem sido elaborados por homens competentissimos, contam as verdades sobre a inconveniencia da emigração para certos e determinados territorios, são immediatamente impressos e distribuidos nos grandes centros da população ingleza, que assim fica inteirada das artimanhas dos aliciadores.
Os roceiros do Brazil, a quem faltam os mais comesinhos principios da humanidade, desde que no imperio, leis proficuas á humanidade, porém ruinosas para a sua prosperidade material, aboliram o commercio da escravatura, destacaram ignobeis agentes para a Europa, com o fim de encetarem o commercio da escravatura branca, se não mais horrivel, igual ao de negros que a lei recentemente libertára.[169]
Por seu turno o negociante tambem coadjuva os roceiros: animando a emigração, auxilia os engajadores; e se não representa o seu proprio papel, os porões de navios de que são proprietarios, vem lembrar o ominoso tempo da escravatura preta.
Mas lancemos mão do bistori e descarnemos o corpo cangrenoso, para que nossos leitores, observando-lhe as pustulas venenosas, affastem de si o puz mortifero.
Engajador é peor que negreiro; porque este, nas costas da barbarie, em troco de um ente quasi inerte, de fórmas humanas, entregava ao regulo, seu senhor, qualquer bugiaria. Os parentes, se os tinha, riam-se da traficancia com um riso selvagem, collocavam em pedestal o objecto offertado, dançavam e cantavam em de redor d'este idolo, emquanto outros selvagens acorrentavam seus proprios irmãos. Tudo isto era estupido e ao mesmo tempo tragico; da parte do negociador civilisado manifestava-se um cynismo que nem a todos os civilisados residentes no Brazil causaria asco; o negocio era simples, não levava muito tempo a fazer:—dá cá, toma lá—; eis as phrases trocadas entre o selvagem europeu e o selvagem africano. Não havia lucta de consciencia da parte do que vendia, nem tão pouco da parte dos que eram vendidos. O negreiro, o que comprava, amoldava os sentimentos, se é que os tinha, conforme as occasiões; comtudo, este não era peior que o roceiro a quem eram destinados os negros. Mas o engajador, que em nosso tempo veiu substituir o negreiro, é mais cynico. Assim como acontecia ao negreiro, o engajador leva em mira o mesmo fim—o interesse; mas emquanto que o negreiro supportava as fadigas das longas viagens e os rigores de um clima pestifero, o engajador, em nossas terras, é recebido nas salas, é protegido das influencias monetarias, chama-se-lhe cidadão prestante, offertam-se-lhe brindes valiosos, conferem-se-lhe commendas, etc. etc.[170]
O engajador não se afadiga muito. Um dia por semana, se tanto, lhe basta para o seu negocio. Esse dia que Deus déra para descanso, segundo as tradições biblicas, emprega-o elle em seduzir seus irmãos, por occasião da missa conventual, junto da ermida do aldeão do norte. É alli, junto do altar de Deus, ao pé do symbolo sacrosanto do martyr do Golgotha, sentinella silenciosa postada no adro transformado em mercado de gente humana, que o engajador encarece as riquezas ephemeras do Brazil, para em troca receber maior numero de adhesões. A lucta de consciencia estabelece-se então com todos os horrores. É aqui que o engajador se torna peior que o negreiro que vende gente a civilisados, na persuasão de que os negros são bichos; é aqui que o engajador faz ao mesmo tempo o papel de ladrão e assassino, porque os contractos de locação de serviços, que com os portuguezes estabelece, são extraordinariamente lesivos para estes; e do assassino, porque os portuguezes, seduzidos para trabalhar no Brazil, irão morrer lá infallivelmente.
«São homens preversos (os engajadores), verdadeiros parasitas, refere o consul no Maranhão em seu relatorio de 7 de dezembro de 1874, que se entretêem em illudir com os mais gratos sorrisos de uma felicidade que é toda ephemera aos seus incautos irmãos, e não trepidam em commetter todos os desmandos, uma vez que aufiram o lucro estipulado; identificando-se assim com os proprietarios dos navios que hoje fazem commercio com a emigração e procuram tambem nutrir-se com a boa fé dos infelizes, avidos de serem ricos. Achando echo no remanso das familias o embuste, a mentira e os falsos testemunhos d'esses homens que lhe asseguram o mais facil e prompto alcance da sua cobiça, tem elles sabido prejudicar a fortuna domestica e a do seu proprio paiz.
«De todas as emprezas fundadas não póde haver seguramente[171] nenhuma mais vil e ignominiosa do que seja esta, que tem por fim seduzir uma innumeravel multidão de portuguezes ignorantes, e por isso facilmente se deixam dominar pelas ficticias narrações das abundantes minas de oiro, que se encontram por toda a parte, pelas excellencias e fertilidades d'este solo!»
O consul do Rio de Janeiro é de opinião que os armadores de navios, para conseguirem lastro, «dão-se tambem a tão barbara propaganda de arrancar á patria e á familia esses infelizes, enganados por vãs promessas, os quaes, ignorantes do alto preço dos objectos aqui, se deixam fascinar pela grandeza relativa dos salarios porque alli contractam seus serviços.»
Em 1856 dizia a mesma auctoridade que «tendo-se construido muitos navios, tanto na cidade do Porto, como nos estaleiros ao norte do Douro, uma parte d'esses navios fôra destinada ao porto do Rio de Janeiro. Os negociantes proprietarios d'esses navios, buscaram todos os meios de lhes proporcionar bons fretes, e como um dos principaes, talvez o mais lucrativo, é a importancia do que pagam os passageiros, resolveram fiar a maior parte das passagens, para serem pagas no Rio de Janeiro, pelo meio ha muito em pratica da locação de serviços.»
O carregamento d'estes navios, foi, em dois mezes, de 22 de setembro a 23 de novembro do referido anno, de 3:114 colonos!
O commerciante comprava navios. O dinheiro que havia de empregar nas emprezas lucrativas e honradas, era destinado a escravisar os seus proprios irmãos e compatriotas.
Esses negociantes a quem podemos chamar negreiros de nova especie, bem sabem que o braço europeu não pode substituir nos tropicos o africano. Mas que lhes importa a elles isso?!
O negociante de escravos brancos não deve atterrar[172] os infelizes, porque n'isso vae o seu interesse. Vinte mil portuguezes entrados, pouco mais ou menos, em cada anno, nos differentes portos do Brazil, representam a valiosissima somma de mil contos de réis, só de passagens, que os proprietarios de navios e os engajadores dividem entre si!
A somma não é para rejeitar, e os senhores d'engenho, que vêem no futuro os seus lucros, garantem a uns e outros aquelle rendimento, por isso que o producto do trabalho dos colonos serve, em primeiro logar, para pagamento das passagens e mais despezas!
Que importa aos traficantes que os pobres colonos subscrevam contractos lesivos? Chegam os lucros obtidos nos primeiros tempos de trabalho para pagar aos engajadores e aos donos dos navios? Nada mais é preciso!
Que importa os maus tratos inflingidos pelos senhores aos nossos compatriotas? que a miseria prostre os que não podem sugeitar-se ao trabalho e a esses tratos?
Lá estão as casas de benificencia, instituidas por portuguezes benemeritos, que, afinal, estão sempre promptas para receber em seu seio os desafortunados, e a reenviar á patria, com o auxilio dos seus rendimentos, os que sobrevivam a tanta miseria. E a fallar a verdade merece a pena ir ao Brazil, só fiado em taes auxilios: estes estabelecimentos não servem para outra cousa, segundo o modo de ver dos optimistas!
E com quanto contribuem os negreiros para esses estabelecimentos (elles contribuem porque é preciso aparentar caridade!)? Com algumas cedulas de mil réis: uma migalha dos juros do dinheiro extorquido aos incredulos das miserias no Brazil!
Tratámos dos lucros materiaes do traficante da escravatura branca, e agora apresentaremos a leves traços[173] os lucros moraes que elles auferem do seu commercio.
Um traficante de carne humana, em nossos tempos, tem mais influencia de que um principe, nas epocas passadas do chamado obscurantismo. E na verdade se de obscurantismo chamavam ás epocas em que se vendiam os negros, que chamarão á epoca presente em que livremente se exerce o trafico infame da venda de nossos compatriotas?...
E não se diga que não; isto é, que o traficante não dispõe de influencia junto dos nossos governantes para que a empresa da escravatura branca produza os effeitos ambicionados.
A proposito da emigração publicámos ha tempos uma serie de cartas no Jornal da Noite,[41] em que alem de outras proposições avançamos a seguinte:
«Affiançou-se-me mais: affiançaram-me que das repartições superiores, d'onde dizem que todos os dias baixam providencias contra a emigração clandestina, se ordenára á policia que evitasse, quanto podesse, ir a bordo na occasião da sahida dos paquetes para o Brazil!»
Depois d'isto escripto foram-nos mostrados os documentos que provam a asserção: as taes influencias é que obrigaram os altos poderes do estado a obstar que as leis fossem cumpridas!...
A portaria circular de 10 de agosto de 1870,[42] passada a favor de José Maria Gavião Peixoto, colonisador no imperio do Brazil, faz crer que interesses menos licitos lhe deram origem, porque Gavião Peixoto, tendo abusado da credulidade de alguns trabalhadores do Alemtejo, com os quaes contractára serviços para serem prestados no Brazil a razão de 150 réis, foram-lhe[174] relevadas as faltas commettidas no alliciamento da pobre gente!
Um negociante de carne humana no Brazil telegrapha para o negociante de carne humana em Portugal, e previne-o que é de absoluta necessidade, para que haja bom exito na empresa de escravisar nossos irmãos, que o consul Sicrano ou Beltrano seja removido d'este ou d'aquelle ponto, pelo facto de repugnar á sua consciencia de homem de bem o horroroso trafico dos seus desventurados e illudidos compatriotas!
Se o traficante não consegue a remoção pedida, consegue que os serviços do empregado digno sejam esquecidos, se não desconsiderados.
Ha exemplo de remoções; ha desprezo dos poderes publicos aos serviços prestados a Portugal por empregados dignos; ha finalmente, recompensas dadas a quem devia ser castigado como indigno!
Exemplos:
Portugal fôra nobremente representado por um portuguez illustre e honrado, em Manáus, na provincia do Amazonas. O presidente respectivo despresava sempre as reclamações do vice-consul; desconsiderava Portugal, por palavras e acções, chegando os seus excessos até ao ponto de mandar espadeirar alguns portuguezes alli residentes; e por que o empregado digno protestasse contra as offensas praticadas a Portugal e seus filhos, teve em paga a demissão! Nomeou-se outro vice-consul, a contento do insultador! Mais tarde esse novo empregado attesta uns serviços ficticios prestados a Portugal, pelo tal presidente, falsidades reconhecidas hoje, e os poderes do estado dão-lhe um titulo nobliarchico, em paga dos insultos e das espadeiradas! Viemos á imprensa protestar contra o escandalo; quezemos isentar o governo, julgando-o illudido pelo vice-consul; mostramos-lhe a falsidade dos documentos passados por este empregado, aos quaes o governo se escudára[175] para dar ao indigno magistrado brazileiro immerecida honraria; levamos as nossas queixas ao parlamento;[43] mas nada se fez em favor da moralidade offendida!
A nós que presamos a honra d'esta nação, chamaram-nos impertinente; aos portuguezes que prottestaram comnosco, mandou-se-lhes naturalmente dizer que mandassem para cá mais algum dinheiro, producto das subscrições alli permanentemente abertas, já para os monumentos, já para os asylos, já para os inundados, já para o armamento geral do paiz, por que os portuguezes residentes no Brazil são verdadeiros patriotas; mas em compensação conservou-se no logar de representante de Portugal aquelle que não fizera mais do que espesinhar-lhe as suas passadas glorias!
É que o homem tinha cá das taes influencias, e nós chegámos a uma época, que se diz de progresso, em que valem mais as influencias deshonrosas do que a dignidade da nação e aquelles que por ella pugnam!
Os traficantes tambem ameaçam os empregados dignos, que lá no imperio guerream a emigração.
Aqui está um documento curioso que prova isso mesmo. Omitimos os nomes dos presonagens principaes, para que não soffra alguma tyrannia o seu honrado auctor. Estamos em tempo de liberdade de consciencia... mas toda a cautella é pouca!
É este o documento:
«Não obstante constar do referido relatorio, para o qual tomo a liberdade de chamar a attenção de v. ex.ª, todos os factos que deram logar ao delicto, communicava[176] um consul de Portugal residente no Brazil, a proposito das veniagas d'uma influencia de lá; ainda assim julgo do meu dever revestil-os das considerações que se lhe adherem e pelos quaes verá v. ex.ª quão arduo e espinhoso, se torna aqui o exercicio de funcções consulares, quando se quer ser um verdadeiro interprete da lei.»
E começando por apontar os taes figurões, que tornavam arduo e espinhoso o cargo de consul no Brazil, continua:
«Não é esta a primeira vez que este meu gratuito, inimigo procura maguar-me indirectamente. Apesar da sua impotencia e da nenhuma sympathia que gosa na classe a que pertence tem tentado, colligado a mais tres ou quatro desafectos que aqui tenho, alienar o bom conceito que felizmente goso, e com prazer declaro a v. ex.ª, que a semelhante respeito nunca me senti tãobem, pois as suas invectivas, não merecendo a consideração de pessoas sensatas, passam como se não existissem, e elles, em vista d'isso, lemitam-se a dizer, como supremo desforço, que iam pedir a minha demissão, que para isso tem muita influencia n'essa côrte, etc.
«Já que fallei em desafectos seja-me licito dizer algumas palavras que se me offerecem se v. ex.ª m'o permittir.»
«Começarei pelo mais poderoso ............ Este homem, portuguez, naturalisou-se brazileiro ............... negociante antigo e rico d'esta cidade, foi um dos que mais me obsequiou logo que aqui cheguei, e por alguns annos.
«Constituiu-se meu inimigo, por que tendo um sobrinho, rico fazendeiro a quem se metteu em cabeça estabelecer uma colonia de nova especie, por se lhe ter malogrado a outra ha alguns annos, começou de mandar[177] vir d'esse reino pobres e desprotigidas creanças de dez a quinze annos de edade para a colonia, as quaes de certo estariam hoje todas na eternidade se não fosse a opposição inergica que fiz aos seus deshumanos instinctos, arrancando-lh'as e empregando-as no commercio,» etc.
O traficante ameaçava. Elle lá tinha as suas razões; assim como o consul tambem lá tinha as suas para prevenir o ministro; mas da doutrina da prevenção deprehende-se facilmente que o empregado zelloso temia que os desforços dos seus inimigos fossem attendidos. E se não fosse esse temor, para que era baixar a tantas minuciosidades?
Podiamos sobre este mesmo ponto dizer mais alguma cousa, mas tememos affectar interesses de terceiros.
Ponhamos, pois, ponto aqui, affirmando de novo a extraordinaria influencia dos traficantes da chamada escravatura branca, perante as auctoridades superiores do paiz.
A lei portugueza de 20 de julho de 1855, tende a proteger por alguma fórma os nossos desafortunados compatriotas que, no engodo de melhor sorte, deixam a patria em troca de um paiz onde vão soffrer as mais horrorosas privações.
Effectivamente, ha alli medidas, que, até certo periodo de tempo, deviam fazer conter em respeito os engajadores, se não fôra a protecção que as auctoridades brazileiras em todo o tempo lhes dispensou.
Os contractos de locação de serviços entre os engajadores e os colonos deviam ser feitos perante as auctoridades do nosso paiz. Além d'outras providencias secundarias, estabelecia-se a medida rigorosa de auctorisar os consules a fiscalisar os navios chegados a qualquer[178] porto do Brazil, a fim de evitar o desembarque de qualquer colono portuguez, que não tivesse attendido áquella providencia do governo.
Os capitães dos navios portuguezes são obrigados a apresentar perante as auctoridades uma relação dos colonos que conduzam a bordo, sob pena de infracção, e pagamento de multas exorbitantes.
Porém esta lei repressiva, não evitando a emigração, deu aso a abusos inauditos. É de 1857 que os seus effeitos começam a sentir-se.
Até alli alguem confundia o carregamento de colonos portuguezes com os que outr'ora se faziam dos colonos africanos. A lei de que vimos fallando, que o governo brazileiro não quiz reconhecer, veio estabelecer, em toda a sua plenitude, o commercio clandestino da escravatura branca.
Os dados estatisticos, fornecidos pelos consules residentes no imperio, sobre o numero dos emigrantes portuguezes desembarcados nas costas do Brazil, falham muito desde a publicação da lei de 1855 em diante.
Comtudo a corrente da emigração continuava por uma fórma assustadora.
Alguns commandantes de navios sujeitavam-se a pagar as multas, e esses eram em pequeno numero; outros valiam-se de suas influencias para faltarem aos compromissos marcados por lei.
Houve armadores de navios portuguezes que substituiam a nossa bandeira pela brazileira, para evitar a fiscalisação das nossas auctoridades consulares!
Os colonos eram mettidos no porão dos navios como escravos; das praias do litoral eram conduzidos para as roças dos senhores de engenho: d'estes infelizes nem todos os consules davam noticia, porque a sua acção não podia chegar até lá!
Vamos demonstrar que não elaboramos em erro:[179]
Em 29 de dezembro de 1856, foram presentes ao consul do Rio de Janeiro, pelo capitão do vapor D. Pedro, as cópias das relações de 297 passageiros; mas não apresentava os passaportes, porque a visita da policia do porto lh'os tomára, segundo as ordens do governo imperial!
Em 2 de março de 1857, dizia o referido consul ao ministro do reino, «que nos navios brazileiros havia mais ou menos irregularidades, porque os capitães contavam com a impunidade, visto que os consules não tinham a menor ingerencia n'estas embarcações.»
Em principios do anno referido sahiram do Rio os seguintes navios brazileiros:—Palmyra, Rufina, Indiana, Açoriana e Helena, com destino ás ilhas dos Açores e Madeira, para d'este ponto transportarem colonos para o Brazil.
O consul, prevenia por esta occasião o governo de S. M., a fim de que se déssem as ordens necessarias para serem obrigados os capitães a executar as determinações da lei de 20 do julho de 1855, em terras de Portugal, «visto que os consules pouca ingerencia tem a bordo dos navios portuguezes, depois de entrados nos portos do imperio, e absolutamente nenhuma a bordo dos navios brazileiros.»
Mais tarde, em dezembro do referido anno, accrescentava sobre o mesmo assumpto:
«Já tenho ponderado a v. ex.ª por vezes que esperando-se que os passageiros das ilhas que tiverem de embarcar venham agora em navios brazileiros, será sempre difficil que nos portos do Brazil os consules de S. M. possam bem fiscalisar o que diz respeito á exactidão do numero que conduziram, e bem assim sobre a realisação dos contractos, conforme as ordens do governo de S. M., e isto porque os consules estrangeiros não pódem exercer jurisdicção a seu bordo, por ser isso[180] contrario ás leis do paiz e regulamentos em vigor (do imperio).»
O sr. José Henriques Ferreira, consul em Pernambuco, assim se expressava em seu officio de 6 de junho de 1857, com respeito a colonos transportados para o interior sem sua sciencia:
«A maior parte dos colonos que abordam a esta provincia procede da cidade do Porto e ilhas açorianas. Os capitães dos navios, chegados aqui, embarcam geralmente os colonos, mesmo de bordo, para os engenhos do interior, sem lhes permittirem que pisem em terra.
«Uma das primeiras cousas pois que cumpre prevenir são os engajamentos feitos em Portugal para o interior do Brazil, porque alli não ha para os colonos garantia possivel, ainda que o governo do paiz tenha os melhores desejos. Collocados os engenhos a grandes distancias, e em terras pouco povoadas, não chega alli a acção do governo. As auctoridades locaes estão concentradas, ou n'um individuo ou n'uma familia, que de tudo dispõem a bel-prazer, sem que o governo tenha meios de poder obstar á sua vontade e prepotencia, porque todas as avenidas estão occupadas pela sua clientella, e assim põem e dispõem da fazenda e vida de suas victimas, sem receio. Obstar portanto a que semelhantes contractos se celebrem em Portugal é, como tenho a honra de dizer a v. ex.ª, uma das primeiras medidas a tomar.»
O brigue Trovador, sahido do Porto, com destino a Pernambuco, além de conduzir maior numero de passageiros do que os manifestados, foram egualmente conduzidos de bordo para os engenhos, sem que a tão grande irregularidade podesse obstar o consul.
O bergantim portuguez Alegre entrado em dezembro de 1857 no porto do rio de Janeiro, conduzia tambem colonos a mais do que os manifestados.[181]
Em março d'aquelle anno, entrava no porto do Rio do Janeiro, procedente de Vianna do Castello, o patacho Constante, com um carregamento de 233 colonos. D'este numero só 46 levavam passaporte!
Dos navios brazileiros, a que já nos referimos, chamados Palmyra, Rufina, Indiana, Açoriana e Helena, sahidos da bahia do Rio de Janeiro, em 1857, com o fim de conduzirem colonos das nossas ilhas para o imperio, só consta officialmente ter regressado um—o Helena—: e, ainda assim, pela impossibilidade que havia em esconder os colonos a bordo de qualquer navio fundeado no porto, onde grassava com intensidade a febre amarella.
Este navio conduzia 94 passageiros; mas o capitão só mencionára na relação fornecida ao consulado, 33 individuos com passaporte. Os outros colonos tinham sido apanhados a gancho!
Eis como a respeito dos engajamentos clandestinos se expressa o nosso consul residente em Pernambuco, em 21 de janeiro de 1858:
«Tenho a honra de remetter a v. ex.ª o auto de investigação, a que procedi n'este consulado contra o capitão do brigue Trovador, Antonio Theodoro da Silva, aqui chegado em 28 de novembro com uma carregação de passageiros engajados. Por esta occasião cumpre-me dizer a v. ex.ª, que o mesmo capitão já em sua penultima viagem não satisfez as obrigações que lhe são impostas, porque desembarcou seus passageiros de bordo para os engenhos sem que os apresentasse n'este consulado. Que da mesma investigação e mais documentos que a acompanham se vê a irregularidade dos passaportes, maxime os passados no governo civil do Porto e illegalidade dos contractos. Que o escrivão Megre Restier, reconheceu signaes e assignaturas de contractos feitos contra as disposições da lei de 20 de julho de 1855. Que o navio conduziu maior numero de passageiros[182] do que comportava a sua tonelagem. Que a relação dos passageiros dada pelo capitão á sua chegada a este porto, não confere com a que foi remettida a este consulado pela intendencia da marinha do porto. Que o capitão tendo conduzido 95 passageiros, apenas apresentou n'este consulado 81, e que além do mau passadio exerceu sobre elles violencias, e os trazia pessimamente accommodados, em razão do grande numero e do grande carregamento de varias mercadorias.»
A galera brazileira Josephina, entrada no porto do Rio de Janeiro, em dezembro do mesmo anno, conduzira das ilhas 130 passageiros sem passaporte; e se nos fiarmos no que dizem os jornaes d'esse tempo, o seu numero seria elevado a 500!
O patacho portuguez Sousa & Companhia, fundeou no porto do Rio de Janeiro, em 6 de novembro do mesmo anno, com 259 colonos procedentes da ilha de S. Miguel. De tão excessivo numero só 73 apresentaram passaporte!
Em 24 de fevereiro de 1859, communicava o encarregado dos negocios consulares no Rio, ao representante do governo portuguez:
«Apresso-me em fazer sciente a v. ex.ª de que tendo o governo civil do Porto officiado a este consulado geral, em data do 10 de janeiro do corrente anno, que por denuncia alli recebida, participava que nas barcas portuguezas Duarte 4.º e Monteiro 2.º, vinham alguns colonos que se declaravam passageiros livres, talvez insinuados pelos caixas e capitães de navios, para não serem compellidos a prestarem a fiança exigida pela carta de lei de 20 de julho de 1855, pedindo por consequencia toda a fiscalisação na chegada d'estas embarcações, procedendo ao respectivo auto, caso fosse verdade, para lhe ser enviado e os culpados á acção da justiça.
«Em consequencia do que, e para melhor poder averiguar[183] este facto, afim de dar o devido cumprimento á communicação que aquelle governo fez, officiei logo ao chefe de policia, pedindo-lhe de dar as suas ordens aos encarregados das visitas do porto, para que no acto da entrada intimassem aos capitães d'aquellas duas embarcações, que não desembarcassem os passageiros sem que eu me apresentasse a seu bordo.
«Emquanto ao Duarte 4.º, este navio entrou a barra quando ainda os referidos encarregados das visitas não haviam recebido do chefe de policia as ordens a respeito, e por consequencia os passageiros desembarcaram a seu salvo, e não foi possivel poder entrar nas precisas indagações.
«Emquanto porém ao Monteiro 2.º, apresentei-me hontem a seu bordo e de 110 passageiros que esta barca conduziu 36 são colonos, e segundo o interrogatorio a que procedi, estes declararam que haviam sido clandestinamente engajados, como v. ex.ª verá do auto de inquerito que junto tenho a honra de enviar-lhe.
«Á vista d'este depoimento intimei o capitão que nenhum d'estes colonos desembarcasse até segunda ordem. Estes colonos foram arranjados no Porto para o barão de Friburgo, e comquanto contra este barão nenhuma queixa aqui ainda apparecesse de mau trato que porventura elle tenha dado aos que tem ao seu serviço, todavia são obrigados a servirem nas suas fazendas por tres annos! É muito tempo por insignificantes vantagens—30$000 réis no primeiro anno! Devo dizer a v. ex.ª que poucos são os navios que deixam de trazer colonos para o barão de Friburgo, tal qual estes vem, mas estava-me reservado o entrar n'estas investigações para merecer talvez as iras do mesmo barão, que todavia saberei desprezar, quando tenha a consciencia de ter cumprido com o meu dever.»
Pouco tempo depois, communicava ainda o mesmo consul, que o brigue portuguez Esperança, de que era[184] capitão José Pereira Rezende, manifestára apenas 49 passageiros, quando a bordo conduzira 283 colonos!
O patacho Panoma, capitão Manuel Pereira Dias, manifestára 68 em logar de 372!
«D'estas duas embarcações, humanamente fallando, diz o consul, os interessados n'esta especulação assás lucrativa, excederam dos limites.»
E accrescentava:
«A bordo d'estes navios, além da inpossibilidade do arrolamento dos passageiros, é difficil fazer-se um registro exacto d'elles, isto é, nomes, naturalidades, filiação, idade, freguezias, etc.; por que juntam-se logo os visitadores e engajadores, que agglomerados no navio difficultam um rigoroso registo, o qual só na chancellaria d'este consulado é possivel fazer-se, como effectivamente se faz, d'aquelles passageiros que não são desviados de n'elle se apresentarem.»
Com os navios do Porto militam iguaes circumstancias e acontece o mesmo que com os das ilhas, porque todos trazem mais ou menos passageiros sem passaporte e alguns clandestinamente engajados, como succedeu com a barca Monteiro 2.º» etc.
«D'estes engajamentos clandestinos feitos no Porto, os capitães muitas vezes ignoram, porque dizem elles, os donos dos navios mettem-lhe a bordo os engajados como passageiros que pagaram lá ou veem pagar cá as suas passagens, combinando com o engajador para escrever com antecedencia á pessoa que n'esta côrte deve recebel-os, a fim de que, logo que chegar o navio se apresente a bordo, obtendo para isso previamente licença da alfandega para o prompto desembarque dos referidos colonos, como effectivamente acontece.»!
Se as clausulas expressas na lei de 20 de julho de 1855, não foram desde logo despresadas, é certo que a fiscalisação rigorosa que ella mandava exercer, veio dar grande curso á emigração clandestina.[185]
Acontecera o mesmo com relação ao trafico da escravatura. A lei que prohibira tal commercio, fôra por muitos annos despresada; e se a rigorosa fiscalisação por parte do governo imperial, veio por fim a banir completamente o horroroso trafico, não confiamos na boa vontade d'esse governo com relação á repressão da emigração clandestina; porque o empenho dos homens de estado do Brazil era banir de seus codigos o trafico da escravatura, para demonstrar ás outras nações uma virilidade ficticia, e apoiar clandestinamente outro commercio mais horroroso—o da escravatura branca—; na persuasão de que sendo este exercido em toda a sua plenitude, viria a preencher a lacuna aberta pela abolição do commercio da—escravatura preta.
Dissemos que a lei de 20 de julho de 1855, viera, por um lado, proteger os emigrados portuguezes; porque, além de outras providencias salutares, estabelecia a clausula de não serem válidos os contractos de locação de serviços, que não fossem feitos perante as nossas auctoridades. Demonstrámos tambem, que essa lei viera dar maior curso á emigração clandestina, porque aos engajadores ou roceiros do Brazil não convinha que os colonos tivessem como protectores os agentes do nosso governo, que são, para assim dizermos, os procuradores de tão infeliz gente. E que o governo imperial protegia os engajadores e os roceiros, que, mancommunados com os capitães e proprietarios de navios, pretendiam illudir a vigilancia dos consules, ao fazerem o desembarque dos colonos.
As providencias pedidas pelo governo ás auctoridades administrativas do continente e ilhas, exaradas na portaria de 27 de julho de 1857, com o fim de evitar a emigração clandestina, não podiam sortir o effeito desejado, especialmente nas ilhas, como se póde vêr pelo seguinte documento:
«Representando o governador civil do districto da[186] Horta, segundo me foi communicado pelo ministerio do reino, que, apesar das providencias adoptadas pelas auctoridades administrativas do archipelago dos Açores, e de se haver dado conhecimento ao poder judicial, sempre que ha motivo, de alguma infracção da lei de 20 de julho de 1855, ou dos regulamentos de policia em vigor, assim mesmo é frequente ali a emigração clandestina para o Brazil, não só por causa da tendencia dos habitantes para a dita emigração, mas tambem por ser impossivel guardar o immenso litoral de todas as ilhas para obstar á fuga, recommendo a vossa mercê que, dando cumprimento ás diversas circulares que sobre este assumpto teem sido dirigidas a esse consulado, haja de empregar a mais assidua vigilancia á chegada dos navios com colonos aos portos do districto consular a seu cargo, averiguando os que vão sem passaporte, o modo porque se evadiram, quem lhes deu coadjuvação para a fuga ou quem os seduziu, tomando nota dos seus nomes, naturalidades, residencia, filiação e empregados, e bem assim instaurar o competente inquerito e processo consular, que deverá ser logo remettido ao governo civil a cujo districto pertencer o porto de procedencia do navio, dando finalmente parte a esta secretaria d'estado de tudo que houver praticado a similhante respeito.»
Os proprios commandantes de navios portuguezes, fiados na protecção do governo brazileiro, reagiam contra as nossas leis e os agentes da auctoridade que se esforçavam para fazel-as cumprir.
O documento que vamos transcrever, mostra até que ponto chegára o abuso da emigração clandestina.
Tem a data de 8 de novembro de 1859, e é firmado[187] pelo conde de Thomar, nosso ministro, então residente na côrte do Rio de Janeiro:
«Acabo de chegar de bordo da barca Nova Lima, acompanhado do consul geral e de um empregado do consulado. Para grande mal grande remedio. Assumi uma grave responsabilidade: sujeito-me ás suas consequencias se o meu procedimento não merecer a approvação de sua magestade.
«Depois de interrogar um grande numero dos subditos de sua magestade a bordo do dito navio, sem passaporte, embarcados clandestinamente em differentes pontos da costa, e principalmente para o lado da villa do nordeste da ilha de S. Miguel, convenci-me da culpabilidade do capitão e do dono do navio, e julguei que não devendo lucupletar-se com prejuizo de terceiro, e contra as determinações expressas da lei, ordenei que o consul intimasse á minha ordem, como representante de sua magestade, para não deixar desembarcar de bordo do seu navio, portuguez algum que não estivesse munido do passaporte, e em nome de El-Rei declarei a todos que haviam sido seduzidos, que estavam livres, e que nada deviam ao capitão.
«Não faz v. ex.ª ideia da satisfação que mostraram os risonhos semblantes d'estes infelizes, até ali abatidos e tristes.
«Para não deixar esta pobre gente em desgraça, passei á secretaria da marinha e requisitei um navio de guerra desarmado para os accommodar emquanto não tomar o serviço que mais lhes agradar, debaixo da tutela do consul geral.
«Ha de fazer-se alguma despeza com o sustento de estes infelizes, durante alguns dias, mas creio que se adoptou a unica medida, que será efficaz para reprimir este trafico de escravatura branca.
«Nenhum capitão, de futuro, ha de embarcar a bordo do seu navio colonos sem passaporte, porque não ha[188] de querer correr o risco da perda da importancia da passagem e comedorias. Livramo-nos sobre tudo do nojento espectaculo de ver os que foram nossos colonos a comprar temporariamente os subditos de sua magestade em leilão, no navio, como se tem feito.
«Espero as resoluções de sua magestade sobre este importantissimo assumpto. Não dará este acontecimento logar a pensar se será conveniente ter n'este paiz um navio de guerra nacional? Se aqui existisse um tal navio teria dado logo á minha disposição meios de obrar com energia contra os que tão escandalosamente transgridem as leis do paiz e as beneficas e humanitarias ordens do governo de sua magestade, para reprimir tão infame trafico, etc.
«Lancei em rosto ao capitão e mais empregados da barca a hediondez do seu procedimento; em resposta só me disseram, que elles eram punidos pelo que a outros tinha sido tolerado, tirando d'ahi grandes lucros.
«No embarque de tanta gente houve seguramente ou connivencia, ou pelo menos grande omissão das auctoridades administrativas de S. Miguel. É minha opinião que o governo deve dar um grande exemplo; sem elle é muito de receiar que continue o trafico para outras provincias, porque eu não posso estar em toda a parte, e os consules por certo não terão força, nem quererão assumir uma grande responsabilidade.»
O que effectivamente acontecia, e o que não podia deixar de acontecer mesmo com relação ao porto do Rio de Janeiro, onde a nobre energia do illustre diplomata seria improficua, desde que os navios não fossem portuguezes, o que elle proprio confessa ao governo de sua magestade, alguns dias depois, no seguinte trecho de um documento que temos á vista:
«Se os actos de energia se repetirem, como pretendo repetir com outros navios que se esperam dos nossos mares insulanos, eu tenho algum receio de que não só[189] se venham a suscitar algumas reclamações por parte do governo do Brazil, como de que a navegação que ora é feita das ilhas dos Açores para o Brazil em navios portuguezes, venha a ser feita em navios d'outras nações, contra os commandantes dos quaes toda a minha energia e boa vontade para fazer executar a lei portugueza será inefficaz.»
É preciso que se diga, para honra do nobre representante de sua magestade, que a importancia das passagens dos colonos transportados na barca Nova Lima, fôra garantida ao dono do navio, como se vê em seu officio dirigido pouco depois ao nosso governo.
O governo brazileiro, atemorisado, ao que parece, com o acto de energia praticado pelo nosso representante na côrte do Rio de Janeiro, tentou dar todas as satisfações; mas não fez mais do que illudir-nos ainda uma vez.
Assim é que devendo dar um exemplo de moralidade, contra a emigração clandestina, condemnando o commandante ou proprietario da barca Nova Lima, seguindo as disposições do regulamento brazileiro, de 1 de maio de 1858, que no seu artigo 7.º estipula que «o capitão ou mestre que trouxer até 20 passageiros mais do que determinam os artigos 1.º, 3.º e 4.º, soffrerá por cada um a multa igual ao importe da passagem, se transportar mais de 20, a multa será do dobro do importe da mesma passagem», devendo por consequencia o capitão da Nova Lima pagar 56:858$ réis, moeda brazileira, só pagou 7:478$000 réis!
Mas não ficou ainda aqui a questão. Deu-se pouco depois um grave conflicto diplomatico, entre o nosso[190] ministro e o governo brazileiro, por causa do acto energico que já mencionámos.
«Este meu procedimento, dizia pouco depois o conde de Thomar, com relação aos colonos da Nova Lima, tão altamente elogiado pelos nossos compatriotas, e que já mereceu a plena approvação de sua magestade, não podia agradar, nem ao governo imperial, nem aos brazileiros interessados na importação dos colonos.»
Era, portanto, necessario, custasse o que custasse, evitar que as nossas auctoridades residentes no imperio, communicassem com os navios, immediatamente á sua chegada a qualquer porto brazileiro.
D'isso se encarregou o governo imperial, como vamos demonstrar, com o fim de provar ainda mais uma vez, que as auctoridades brazileiras, auxiliam escandalosamente o horroroso trafico da escravatura branca:
«Cumpre-me chamar a mais séria attenção de v. ex.ª sobre o objecto das notas juntas, communicava o conde de Thomar ao governo, que mostram a discussão que fui obrigado a sustentar, e ainda continuo sobre um objecto da maior gravidade, pelas consequencias que no futuro póde ter.
«Permitta-me v. ex.ª chamar á sua memoria tudo o que se passou a respeito da barca Nova Lima. Como v. ex.ª verá das referidas notas, foi mister, para conhecer bem o pensamento do governo imperial, levantar uma questão de direito internacional e sobre elle exigir cathegoricas explicações.
«Pódem afinal julgar-se satisfactorias quanto ao representante de S. M., mas uma certa reserva quanto aos consules, e a limitação quanto aos commandantes dos navios de guerra de Portugal induziram-me a augmentar as minhas suspeitas. A pretenção que teve o governo em querer fazer applicar aos navios carregados com colonos os regulamentos da alfandega, para assim[191] impedir a entrada dos consules, antes das visitas de saude e policia, e da alfandega, tende a dar logar que, na fórma do § 2.º do artigo 145.º, do regulamento de 22 de junho de 1836, transcripto na minha nota de 31 de janeiro, os colonos portuguezes possam desembarcar depois da visita de saude, sem que os consules portuguezes possam constatar o numero de passageiros e a legalidade do passaporte e titulo que os auctorisou a sahir de Portugal, e ao mesmo tempo a legalidade ou illegalidade do procedimento dos capitães dos navios portuguezes.»
Dera aso ás reclamações do conde de Thomar e ás quaes se refere no documento que deixamos transcripto, as seguintes informações do ministerio da fazenda do imperio:
«Ao ministerio dos negocios estrangeiros, declarando á vista do parecer da directoria geral das rendas, que não é permittido ao ministro de S. M. F., nem aos consules portuguezes, ou aos commandantes de navios da marinha de guerra de Portugal, não estando embarcados em escaler da marinha de guerra do imperio, o ingresso sem licença da alfandega nos navios do commercio portuguez, surtos nos portos do Brazil, mesmo quando o julgarem urgente e necessario para fiscalisar as leis do seu paiz ou ordens do seu governo (sic); mas a licença será sempre facilitada a esses funccionarios da nação portugueza independente de minuciosas formalidades, e logo que aquelle ministro o exija por si, por qualquer terceiro ou empregado verbalmente, ou por escripto, ao inspector da alfandega ou quem suas vezes fizer; ficando assim respondido o aviso do mencionado ministerio, de 28 de novembro ultimo.»
Uma das notas a que o nosso ministro se refere, e que passamos a transcrever, illucidará mais a questão, do que as palavras que por ventura escrevessemos.
É esta a nota:[192]
«O abaixo assignado, enviado extraordinario e ministro plenipotenciario de sua magestade fidelissima, dirigiu a s. ex.ª o sr. João Lino Vieira Cansansão de Sinimbú, ministro dos negocios estrangeiros de sua magestade o imperador, a sua nota de 25 de novembro ultimo, rogando ser informado pelo governo imperial dos casos em que a elle ministro, aos consules de Portugal e commandantes de navios de guerra da sua nação, não embarcados em escaler da marinha imperial, era vedado o ingresso nos navios do commercio portuguez, surtos nos portos do Brazil, quando assim o julgassem urgente e necessario para fiscalisar a execução das leis do seu paiz e as ordens do seu governo.
«Não respondeu, nem mesmo accusou até hoje a recepção da mencionada nota s. ex.ª o sr. ministro dos negocios estrangeiros, mas assegurou em conferencia verbal ter dado conhecimento do conteúdo da dita nota ao ministro da fazenda, para ser habilitado a responder, o que faria logo que taes esclarecimentos lhe fossem presentes.
«Em taes circumstancias não pôde deixar de causar grande surpreza ao abaixo assignado vêr devolvido pelo ministerio da fazenda, com a data de 27 do dezembro ultimo, o objecto da supracitada sua nota, sendo uma tal resolução publicada no Jornal de Commercio, parte official do ministerio da fazenda de 13 do corrente, sem que na conformidade dos estylos, usos e conveniencias diplomaticas, e sobretudo em virtude das intimas relações de amisade que existem entre os dois governos, e das que tão cordealmente teem sido mantidas entre o abaixo assignado e s. ex.ª o sr. Sinimbú, se désse á legação de sua magestade fidelissima a menor noticia de tal resolução. Quer o abaixo assignado lisongear-se de que nos extractos publicados pelo Jornal do Commercio haja algum equivoco ou omissão, porque não póde acreditar-se que as pretenções[193] do governo imperial subam ao ponto de querer que o direito internacional e das gentes, a que se soccorrem os representantes do Brazil na Europa para sustentar as suas reclamações, tenha de receber modificações ou alterações quando se trata da sua applicação no imperio do Brazil. É tanto mais fundamentada esta esperança do abaixo assignado, quanto nota uma grande differença entre a acto official, que respeita ao ministro de sua magestade fidellissima, os consules de Portugal e commandantes de navios de guerra da mesma nação, e o que respeita aos ministros de outras nações alliadas.
«Para obter pois a certeza a tal respeito, roga o abaixo assignado a s. ex.ª o sr. ministro dos negocios estrangeiros, que tenha a bondade de responder em termos cathegoricos á sua nota de 25 de novembro ultimo, e bem assim que se digne mandar o texto da lei, decreto, aviso, de qualquer acto emfim, em virtude do qual nem o ministro de sua magestade fidelissima, nem os consules de Portugal e os commandantes dos navios de guerra da mesma nação (não embarcados em escaler da marinha imperial) pódem ter ingresso nas embarcações de commercio portuguezas, sem licença das alfandegas do imperio.
«Por fim pede o abaixo assignado a s. ex.ª o sr. ministro dos negocios estrangeiros haja de mandar-lhe copia do officio dirigido á alfandega da côrte em data de 27 do mez proximo passado sobre este grave e importante assumpto» etc.
O ministro dos negocios estrangeiros do imperio, respondendo ao representante de Portugal, dizia que tendo dado o conteúdo da nota de 25 de novembro ao seu collega da fazenda, a fim de sobre o assumpto, obter informações indispensaveis, resultára que este ministro, segundo a pratica adoptada de publicar todos os seus actos, incluira na parte official do dia 13 as referidas[194] informações, que suprehenderam o conde de Thomar. E declarava mais, com uma ingenuidade impropria de um ministro de estado, que lhe parecia, que as informações do ministerio da fazenda, sobre assumptos diplomaticos, publicadas na parte official do Jornal do Commercio, não deviam importar aos olhos da legação de s. m. pelo simples facto de serem informações!
Dizia mais que não é permittido a pessoa alguma o ingresso em navio mercante dentro do porto antes das visitas de saude e policia.
«Essa prohibição continúa até verificar-se a visita da descarga, que é quando se concede aos navios livre pratica.
«Que verificada a visita de saude póde o ingresso a bordo ter logar, mas sómente com licença da alfandega. Sem licença, só é elle permittido nos casos de agua aberta repentina, etc: aos officiaes que, na conformidade dos regulamentos de marinha, forem nos escaleres dos navios de guerra nacionaes que estiverem de registo no porto; aos officiaes das estações estrangeiras; e que nos referidos regulamentos não consagram a hypothese de virem os agentes diplomaticos a bordo dos navios mercantes das suas respectivas nações.»
D'esta maneira procedia o humanitario governo do Brazil, com o fim de evitar que o representante de Portugal oppozesse de futuro a sua energia contra os traficantes da escravatura branca!
Mas é preciso dizermos, que o nosso illustrado representante replicára nobremente, derrubando com inexcedivel habilidade o castello de cartas tão inconscientemente architectado pelo ministro brazileiro.
Sentimos não poder dar na integra tão precioso documento, por ser muito extenso. Comtudo, copiaremos alguns dos principaes trechos que mais illucidam a questão:
«Recebidas na secretaria dos negocios estrangeiros[195] em 27 de dezembro do anno findo as mencionadas informações, replica o conde de Thomar, não se dirigiu o sr. ministro dos negocios estrangeiros ao abaixo assignado por julgar s. ex.ª conveniente proceder a mais algumas averiguações, em ordem a dar uma explicação tão completa como era para desejar.
«Obtidos os esclarecimentos procedentes das novas investigações, julgou-se habilitado s. ex.ª o sr. ministro a dar as explicações pedidas, e depois de passar em revista a legislação do imperio sobre o ponto em questão, conclue s. ex.ª que os respectivos regulamentos são omissos quanto aos agentes diplomaticos, mas querendo mostrar quanto no imperio se attende aos privilegios e prerogativas d'aquelles altos funccionarios, explica s. ex.ª a verdadeira permissão que elles precisam ter da alfandega, para ir a bordo dos navios do commercio das suas respectivas nações.
«Antes de passar ávante, julga o abaixo assignado chamar á memoria de s. ex.ª o pedido feito na sua nota de 25 de novembro; dizia o abaixo assignado o seguinte: «Sendo, como é, a missão do abaixo assignado, manter e estreitar cada vez mais as relações de amizade, que felizmente existem entre as duas corôas e os dois povos, deseja e roga o abaixo assignado a s. ex.ª o sr. ministro, que haja de dar-lhe a verdadeira significação do periodo da sua nota supra transcripta, designando claramente quaes os casos em que o governo imperial entende que o representante de sua magestade fidelissima e os consules portuguezes, não estando embarcados em escaler da marinha de guerra do imperio, ou no do commandante do navio da marinha de guerra de Portugal, que possa estacionar nas aguas do imperio, são impedidos de ir a bordo dos navios do commercio portuguezes, surtos nos portos do Brazil, sempre que assim o julgarem[196] urgente e necessario para fiscalisar as leis do seu paiz ou as ordens do governo de S. M. F.»
«Parece ao abaixo assignado, que nenhuma prova maior podia dar da sua lealdade e do desejo que tem de evitar questões entre os dois governos, do que a de rogar fossem designados pelo governo imperial os casos de impedimento para o ingresso das auctoridades portuguezas, nos navios do commercio da sua nação, surtos nos portos do Brazil.
«Tambem parece ao abaixo assignado que não havia a menor necessidade da publicação dos actos do ministerio da fazenda de 27 de dezembro ultimo, sobre negocio diplomatico pendente, sendo que veio uma tal publicação de alguma fórma confirmar suspeitas e receios de que as informações do conhecimento do abaixo assignado não deixavam de ter fundamento.
«Em opposição ás francas e leaes declarações de s. ex.ª o sr. ministro, cujas rectas intenções o abaixo assignado se compraz de ter reconhecido em todas as occasiões, constava ao abaixo assignado, que os empregados da fiscalisação, prottestaram que não se repetiriam procedimentos eguaes aos que tiveram logar contra a barca «Nova Lima», porque tinham nas suas attribuições meios de impedir que as auctoridades portuguezas fossem a bordo verificar o numero e qualidade dos passageiros, conduzidos em navios do commercio portuguezes.»
Restava ás auctoridades portuguezas residentes no imperio, o poderem fiscalisar os navios portuguezes chegados a qualquer porto brazileiro; mas o governo do imperio calcava aos pés os tractados, e não tinha duvida em criar uma situação anomala entre as duas nações, para que se não repetissem casos identicos ao da Nova Lima. Assim podia muito bem exercer-se o commercio da escravatura branca, que o governo do Brazil, sómente para guardar apparencias, dizia combater[197]. Não lhe valeu de nada a esperteza, devido isso á nobre energia do conde de Thomar.
Mas não fica ainda aqui a questão. O illustre diplomata estranhou que a publicação dos actos officiaes, feita pelo ministerio da fazenda, occupando-se singularmente das auctoridades portuguezas, não podia deixar de ser aproveitada para rogar ao ministro dos negocios estrangeiros uma resposta cathegorica sobre o ponto alludido; por quanto devia ter reconhecido quanto era melindroso em assumptos internacionaes faltar áquellas conveniencias que era mister guardar entre as nações e os governos alliados, em modo a não praticar actos que podessem ser traduzidos em menor consideração e como importando a não concessão de direitos ou prerogativas que a outros se concediam.
Cumpria-lhe mais dizer, que acceitava as explicações dadas com o fim de justificar-se o ministro brazileiro da demora da resposta á nota de 25 de novembro.
«Pede comtudo o abaixo assignado licença a s. ex.ª para observar que a segunda sua nota, com data de 14 do corrente, não teve por fim mostrar surpresa pela falta de resposta á mencionada primeira sua nota de 25 de novembro ultimo, mas sim mostrar surpreza, e muito grande de que achando-se pendente uma reclamação diplomatica sobre um assumpto de direito internacional, fossem publicados por outro ministerio, que não o dos negocios estrangeiros, actos officiaes resolvendo esse assumpto internacional, sem que ao menos pelo ministerio competente tal resolução fosse transmittida á legação de S. M. F., d'onde partira a reclamação, como aliás exigem os estylos, usos e conveniencias diplomaticas.»
E accrescentava:
«......... E se acontece que essa publicação é feita a cargo do presidente do conselho, que representa o pensamento do gabinete, não deixará s. ex.ª o sr. ministro[198] dos negocios estrangeiros de convir que esta circumstancia ganha e dá grande força para justificar a sorpreza que causou ao abaixo assignado ver a alludida publicação antes de ser a resolução devidamente participada á legação de S. M. F. pelo ministerio dos negocios estrangeiros, conforme os usos, estylos e conveniencias diplomaticas invocadas por s. ex.ª o sr. ministro.
«Pareceu ao abaixo assignado que, feita tal publicação pelo ministerio a cargo do presidente do conselho, o qual sobre o parecer da dictoria geral das rendas declarava, que nem ao ministro de S. M. F., nem aos consules de Portugal, nem aos commandantes de navios de guerra da mesma nação, não estando embarcados em escaler da marinha de guerra do imperio, era permittido o ingresso, sem licença da alfandega, nos navios de commercio portuguezes surtos nos portos do Brazil, mesmo quando o julgarem urgente e neccessario para fiscalisar as leis do seu paiz ou as ordens do seu governo; vendo além d'isto que, para tornar effectiva aquella resolução, se expediram ordens á alfandega, recommendando a bem das relações que existem entre o governo do Brazil e os das diversas nações alliadas, que facilite aos ministros estrangeiros n'esta côrte, sempre que a requisitarem, entrada nos navios de commercio das suas nações, que tiverem chegado a este porto, independente de minuciosas formalidades; pareceu, repete o abaixo assignado, que uma tal publicação continha uma resolução definitiva; muito embora ficasse desde logo convencido de que a proposição absoluta e nos termos em que estava concebida era insustentavel e mesmo contraria aos regulamentos do imperio. Pareceu outro tanto n'esta ultima parte s. ex.ª o sr. ministro dos negocios estrangeiros, e por isso não se dando por satisfeito com a doutrina expendida nos actos officiaes publicados pelo ministerio da fazenda,[199] julgou não os dever aproveitar nos rigorosos termos em que estavam concebidos, para responder á nota da legação de sua magestade fidelissima de 25 de novembro do anno proximo passado, tendo a bem proceder a outras investigações que o habilitassem a dar a explicação pedida, tão completa como era para desejar; mas pareceu ao mesmo tempo a s. ex.ª que os mencionados actos officiaes só deviam ser considerados como informações, e traduzindo agora na sua nota o resultado das novas investigações, como resolução difinitiva, dignou-se transmittil-a á legação de sua magestade fidellissima.
«Effectivamente em resultado das novas investigações a que se procedeu, começa o sr. ministro dos negocios estrangeiros a dar as explicações pedidas, e referindo a legislação do imperio, entende que, segundo as suas disposições, não é só o ministro de sua magestade fidelissima, nem os consules portuguezes, ou os commandantes de navios de guerra de Portugal, não embarcados em escaler da marinha de guerra imperial, mas que todos os ministros, todos os consules das nações alliadas e os commandantes dos navios de guerra das mesmas nações, todo e qualquer individuo emfim, são vedados de entrar nos navios mercantes surtos nos portos do Brazil antes da visita de saude e da policia. Accrescenta o sr. ministro dos negocios estrangeiros que essa prohibição de ingresso, antes da visita de saude, continúa até verificar-se a visita de descarga, que é quando se concede aos navios a livre pratica.
«Antes do continuar no desenvolvimento do objecto principal em questão, permitia v. ex.ª que o abaixo assignado chame a sua attenção sobre o que dispõe o artigo 145.º § 2.º do regulamento de 22 de junho de 1836. Diz assim:
«Os passageiros porém poderão desembarcar logo que se conclua a visita da saude, dirigindo-se em direitura[200] á barca de vigia do ancoradouro, havendo-a, ou ao ponto para isto destinado pelo inspector para serem examinados, ficando n'elles retidos, quando tragam algum objecto sujeito a direitos.»
«Affigura-se ao abaixo assignado, que a continuação da prohibição do ingresso até á visita da descarga, depois da qual sómente se concede aos navios a livre pratica, sómente é applicavel ao navio cujo carregamento esteja sujeito a pagamento de direitos, e que possa dar objectos para contrabando.
«Não espera o abaixo assignado que os emigrantes portuguezes conduzidos a bordo de um navio portuguez possam ser excluidos do favor concedido pelo citado artigo aos passageiros em geral, e que em logar de serem considerados como pessoas, sejam considerados como cousas ou mercadorias. Em tal caso podendo, como não podem os emigrantes portuguezes deixar de ser considerados como passageiros, tem o abaixo assignado fundados receios de que a exigencia do governo imperial tenda a estabelecer um impedimento indirecto ao exercicio da soberania da corôa de Portugal a bordo de um navio portuguez.
«Segundo os regulamentos portuguezes nenhum capitão de navio portuguez póde conduzir mais passageiros ou differentes d'aquelles que constarem da relação que sob o sello real é remettida pelas respectivas auctoridades aos consules de Portugal, e com ella deve necessariamente conferir outra relação feita pelo capitão do navio, e o effectivo dos passageiros a bordo.
«Se o consul de Portugal fôr impedido de ir a bordo (porque a licença é facultativa) antes da visita da saude e da policia, e antes da descarga, os passageiros, em virtude do § 2.º do artigo 145.º citado, verificada apenas a visita de saude, podem desembarcar, ficando assim o consul de Portugal impedido pelas resoluções do governo imperial de executar a lei de Portugal a bordo[201] de um navio portuguez, o qual não póde deixar de ser considerado territorio de Portugal, porque, não obstante estar surto nos portos do imperio, sómente fica sujeito á jurisdicção local no que respeita ás relações internas.
«Não póde o abaixo assignado, em vista da boa intelligencia e intima amizade que existe, e convem estreitar cada vez mais entre os dois governos e entre os dois povos, presumir que se queira procurar um meio indirecto de promover a emigração de Portugal clandestinamente, impedindo-se por tal forma as auctoridades portuguezas de em tempo devido constatar a legalidade do procedimento dos capitães de navio.
«Não póde o abaixo assignado convencer-se de que um tal rigor tenha por fim salvar das penas comminadas pelas leis do reino aos capitães subditos de sua magestade fidelissima, que porventura as tenham infringido.
«É tal a confiança que o abaixo assignado tem nas rectas intenções do governo imperial, que está plenamente convencido que nenhum obstaculo apparecerá da parte do mesmo governo e das auctoridades do imperio, que possa justificar os receios do abaixo assignado.
«Voltando á questão principal, reconhece tambem o sr. ministro dos negocios estrangeiros na sua nota, que os regulamentos do imperio estabelecem excepções para ter logar o ingresso nos navios mercantes sem licença da alfandega, sendo muito singular que entre essas excepções se encontre a dos commandantes dos navios de guerra, muito embora limitada a uma vez sómente.
«Appella o abaixo assignado para resolver, se, em vista do exposto na sua nota, é sustentavel a generalidade em que se acha concebido o acto official do ministerio da fazenda, com relação ás auctoridades portuguezas[202] alli mencionadas. Para mostrar ainda as grandes omissões que no sobredito acto se conteem, e que s. ex.ª o sr. ministro dos negocios estrangeiros se propoz supprimir na sua nota, bastaria attender ás seguintes palavras: «não é permittido... o ingresso sem licença da alfandega nos navios de commercio portuguez, surtos nos portos do Brazil.» Estas phrases dispensam toda a demonstração.
«Em objectos de tanta gravidade e que involvem assumptos de direito internacional, parece ao abaixo assignado não deverem publicar-se por extracto os actos officiaes. Quer o abaixo assignado persuadir-se que no original a que se referem os mencionados extractos se encontrará o que não podia por certo escapar á fina penetração do sr. presidente do conselho, sentindo o abaixo assignado que s. ex.ª o sr. ministro dos negocios estrangeiros não quizesse ter a bondade de mandar copias das instrucções ou aviso expedido á alfandega, porque haveria assim occasião de verificar com muita satisfação o fundamento ou persuasão e crença do abaixo assignado.
«Reconhece o sr. ministro dos negocios estrangeiros que os regulamentos citados por s. ex.ª são omissos quanto aos agentes diplomaticos. Não deseja o abaixo assignado discutir com s. ex.ª sobre os motivos porque os mencionados regulamentos foram omissos a tal respeito: não póde com tudo dispensar-se de dizer que aos motivos excogitados por s. ex.ª se poderia oppor o de julgar-se inadmissivel vedar o ingresso ao representante da nação a que pertence o navio depois da visita de saude e da policia, não podendo ser-lhes applicaveis, por summamente injuriosas e offensivas ao caracter d'esses mesmos representantes junto de S. M. o imperador e do seu governo, as precauções e medidas rigorosas, que os regulamentos estabelecem para segurar os direitos do fisco e evitar os contrabandos.[203]
«Foi tudo isto reconhecido e a tudo isto quiz attender o governo imperial, quando, resolvendo comprehender os agentes diplomaticos na prohibição da ida a bordo sem licença da alfandega, apesar da reconhecida omissão dos regulamentos, suavisou a sua resolução declarando que a permissão da alfandega quanto aos agentes diplomaticos não importa quebra de privilegio, nem desattenção ás prerogativas de que gozam aquelles altos empregados, sendo que uma similhante permissão, segundo entende o governo imperial, não é outra cousa mais que a annunciação da intenção do agente diplomatico ir a bordo.
«Se o abaixo assignado comprehende bem o pensamento da resolução do governo imperial, o agente diplomatico tem de prevenir o inspector da alfandega, sempre que quizer transportar-se a bordo de um navio impedido da sua nação, pela demonstrada necessidade que tem o dito inspector de remover ou fazer remover todos os embaraços que os agentes diplomaticos poderiam encontrar da parte dos guardas da fiscalisação e das rondas do mar, e de lhes serem prestadas todas as devidas attenções, em conformidade dos privilegios e altas prerogativas de que gosam os agentes diplomaticos.
«Se a exigencia do governo imperial tem este fim, felicita-se o abaixo assignado de estar de accordo com a resolução agora annunciada, porque está convencido de que o abaixo assignado nem agente algum diplomatico terão jámais em vista concorrer para que os empregados do imperio deixem de cumprir os seus deveres» etc.
Como pódem observar os leitores, a lição dada n'este ponto pelo representante de Portugal ao governo brazileiro, era habil e ao mesmo tempo severa. Não merecia outra resposta a evasiva do inhabil diplomata brazileiro.[204]
O conde de Thomar terminava a sua nota reclamando, que a resolução imperial communicada á legação de S. M. F., fosse publicada na parte official do ministerio dos negocios estrangeiros, ou como o governo imperial julgasse mais conveniente, em termos geraes e comprehendendo os representantes e mais auctoridades de todas as nações, a fim de supprir as ommissões, que existiam na denominada informação do ministerio da fazenda, a má impressão que causara tal publicação, attenta a singularidade da applicação, etc; não annuindo o governo brazileiro a que fosse publicada na parte official, por isso que tal annuencia importava o desdouro do ministerio dos negocios estrangeiros do imperio: prestar em publico as mãos á palmatória do nosso esclarecido ministro; mas consentiu que o conde de Thomar mandasse fazer a seguinte publicação pela legação portugueza, em qualquer jornal, o que elle fez:
«Pela legação de S. M. se faz saber a todas as auctoridades portuguezas, residentes no imperio do Brazil, que, em vista das reclamações e discussão entre a mesma legação e o governo imperial, se accordou que os actos officiaes publicados pelo ministerio da fazenda com data de 27 de dezembro do anno findo (1859) sobre a ida do ministro de S. M. F., dos consules de Portugal e commandantes de navios de guerra da mesma nação, a bordo dos navios de commercio portuguezes, surtos nos portos do Brazil, sómente devem ser considerados, como informações do ministerio dos negocios da fazenda ao ministerio dos negocios estrangeiros, e não como resoluções difinitivas; devendo unicamente considerar-se como taes as que pelo referido ministerio dos negocios estrangeiros foram communicadas á legação de S. M. F.; as quaes serão publicadas[205] pelo governo imperial na fórma do estylo seguido pelo ministerio dos negocios estrangeiros do imperio, e de que se dará opportunamente conhecimento em circular.» etc.
O aviso que devia ser publicado pelo governo brazileiro, na parte official, aviso obrigado pela energica conducta do conde de Thomar, bem como as resoluções definitivas, que só podiam ser publicadas pelo governo imperial, segundo confessa o respectivo ministro dos negocios estrangeiros, depois de apresentada textualmente tal pendencia ao corpo legislativo, dois mezes depois, cuja publicação solemne e official lhe parecia não só sufficiente, como a mais apropriada para preencher as vistas do conde de Thomar, são estas:
«Á alfandega recommendando, a bem das boas relações (sic) que existem entre o governo do Brazil e os das diversas nações alliadas, que facilite aos ministros das mesmas nações residentes n'esta côrte, sempre que o requisitarem por si ou por qualquer terceiro ou empregado, a entrada nos navios de commercio de suas nações que tiverem chegado a este porto, independente de minuciosas formalidades.»
É facil de comprehender que a informação, que atraz deixamos transcripta, é uma resolução definitiva. E se o não era, que segnificação dariamos então ao aviso que ahi fica.
Este novo systema de estylos diplomaticos, que nós cognominaremos—á brazileira—, estariam ainda hoje em uso, se, em logar de um portuguez illustre e corajoso, estivesse n'aquelle tempo encarregado dos negocios de Portugal qualquer compadre diplomata!
Transcrevamos agora as taes resoluções definitivas:
«... A publicação alludida (as taes informações) occupou-se singularmente das auctoridades portuguezas, assim respondia o ministro brazileiro, porque foi sobre[206] a questão suscitada por estas que se requisitaram informações do ministerio da fazenda.
«Se a duvida houvesse sido levantada collectivamente por todos os agentes estrangeiros acreditados no imperio, de certo que não só as informações mencionadas a todos comprehenderiam, como tambem seria a todos opportunamente communicada a resolução, que tomou o governo imperial.»
A resolução definitiva que o governo brazileiro tomára, de prohibir que os agentes diplomaticos podessem ir a bordo dos navios de commercio portuguezes, é assim explicada pelo ministro dos negocios estrangeiros:
«... Se ao commandante da estação naval d'uma potencia amiga se permitte, na hypothese figurada (depois das visitas da saude e policia, e antes da descarga), mandar um official a bordo do navio mercante d'uma nação, é certo que não só esta faculdade lhe é concedida, pela natureza das funcções policiaes que tem sobre os navios mercantes da sua nacionalidade, como porque de exercel-a não resulta o menor inconveniente.
«Um official de marinha tem uniforme que indica a sua graduação, escaler em que leva o distinctivo do seu pavilhão, e pois não ha receio de que se lhe faltem ás attenções devidas. No mesmo caso porém, não está o agente diplomatico, que, embarcado em um escaler mercante, e não levando comsigo o distinctivo do alto cargo que occupa, expõe-se á contingencia de supportar exames e investigações» etc.
A questão era de continencias. Não havia, pois, motivo para reclamações!
O governo imperial, com as suas resoluções definitivas, prestava culto á etiqueta: era cortezão!
Aquellas informações prestadas pelo ministerio da fazenda ao dos estrangeiros, bem como o aviso dirigido[207] á alfandega, nada tinha com a emigração clandestina! Era negocio de algumas descargas de artilheria, vivorio e outras attenções devidas aos altos cargos dos agentes diplomaticos!
O procedimento do conde de Thomar, com relação á questão da barca Nova Lima, fez com que as auctoridades brazileiras começassem a fazer executar o regulamento do 1.º de maio de 1858, que era letra morta no imperio. Mas durou pouco tempo o seu afan.
Passado o tempo estrictamente necessario para que as nossas auctoridades fossem illudidas, as cousas tornariam ao mesmo estado em que se achavam. Comtudo, é preciso darmos noticia d'um acto justo, praticado pelas auctoridades brazileiras, no illusorio interregno. Assim cumpriremos o dever que nos impozemos de ser justo na apreciação de todos os factos que dizem respeito ao assumpto que discutimos, e apresentaremos mais uma vez á vindicta publica o miseravel procedimento dos traficantes.
«Tendo em 17 de dezembro do anno findo (1859) o delegado da repartição das terras publicas, endereçado o officio, que por cópia respeitosamente levo ás mãos de v. ex.ª, communicava o nosso consul na Bahia ao ministro dos negocios estrangeiros, em 12 de março de 1860, enviou-me tambem o regulamento de 1.º de maio de 1858, exarado na gazeta denominada Gazeta da Bahia, e a cujo officio respondi nos termos da cópia junta.
«Na hypothese de que os agentes consulares brazileiros, residentes em Portugal, inteirassem os capitães de navios que se destinam aos portos do Brazil d'aquellas disposições, deixei de opportunamente occupar a attenção de v. ex.ª com o assumpto do citado regulamento,[208] em virtude do qual, nada se havia obrado n'esta provincia, senão até quasi ignorada a sua existencia (sic): occorre porém que, em 8 de fevereiro findo, (passados quasi dois annos depois da sua publicação), se recolhera a este porto o brigue portuguez Athenas, procedente da cidade do Porto, trazendo a seu bordo quinze passageiros; fôra por este facto o navio visitado, segundo as disposições do mesmo regulamento, e o respectivo capitão Antonio Ferreira Guimarães Freitas, processado e condemnado por haver deixado de as cumprir.»
Vamos transcrever o extracto d'este documento, para provarmos tambem, que se não fôra a intervenção do nosso ministro, residente na côrte do imperio, a respeito da importante questão que divulgamos, o regulamento brazileiro de 1.º de maio de 1858, jámais começaria a ter vigor.
É preciso combinar as datas para serem mais justas as apreciações sobre o que temos avançado. Devendo aquelle regulamento começar a vigorar logo immediatamente á sua publicação, meados de 1858, só d'elle se lança mão em fins de 1859, na questão Nova Lima, e ainda assim por temor do energico diplomata conde de Thomar; e em fevereiro de 1860, na questão do brigue portuguez Athenas.
Devemos notar que a execução do referido regulamento era só contra os navios portuguezes, não obstante a infracção dos commandantes de navios de outras nacionalidades contra as leis que regulavam o assumpto.
Mas o commandante do navio Athenas fôra obrigado a pagar a multa de metade do importe das passagens (453$600 réis), porque sendo obrigado a dar a cada colono o espaço de 30 palmos quadrados, apenas lhe dera 21; por não ter dado camas ou macas aos passageiros; porque a altura da coberta do navio, embora fosse de 9 palmos, este espaço era tomado pela bagagem que devia estar no porão; porque as bandejas[209] ou tinas pequenas de madeira em pessimo estado não podiam ser consideradas utensilios da mesa; porque o capitão não apresentára as relações determinadas pelos §§ 1.º e 2.º do artigo 25 do citado regulamento; e, finalmente, porque as condições hygienicas não foram convenientemente observadas.
É um facto innegavel que as condições de transporte de colonos para o Brazil, na actualidade, nada tem melhorado, não obstante os regulamentos portuguezes e brazileiros; o que prova até á evidencia a falta de força dos nossos governos em fazer cumprir as leis, e a connivencia do governo brazileiro com os aliciadores, porque está provado que, se fossem tambem cumpridas as suas leis, a emigração de portuguezes para o Brazil, já teria deixado de existir.
Mas é preciso concluir as informações sobre a questão do brigue Athenas.
O consul residente na Bahia, julgára excessivo o castigo inflingido ao capitão, e o conde de Thomar expressa-se da seguinte fórma, em seu officio de 2 de abril de 1860, dirigido ao duque da Terceira:
«Em officio n.º 3 de 9 de março findo, participou o consul na Bahia, que em 8 de fevereiro chegára áquelle porto o brigue portuguez Athenas, procedente da cidade do Porto, trazendo a seu bordo 15 passageiros, e que sendo competentemente visitado, e verificando-se que estavam por muitos motivos infringidas as disposições do regulamento do 1.º do maio de 1858, fôra o capitão do referido brigue, Antonio Ferreira Guimarães Freitas, condemnado pela respectiva commissão a pagar metade do valor da passagem de cada um emigrante, regulando cada um a 60$480 réis, moeda brazileira.
«Accrescenta o consul, que aconselhára ao mencionado capitão e consignatario de por si recorrerem á presidencia da provincia, reservando-se para com acerto[210] obrar n'este assumpto, segundo as minhas instrucções, que solicitava.
«Tendo eu a inteira convicção de que todo o rigor que as auctoridades brazileiras mostram contra os capitães de navios portuguezes pelo facto de infringirem os regulamentos sobre transporte de colonos, só póde dar em resultado mostrarem-se mais humanos aquelles capitães e ser tambem mais difficil e menor o numero dos nossos compatriotas, que pela mais completa illusão, correm ao matadouro, julguei dever responder ao consul da Bahia que, visto os legaes fundamentos da condemnação, não interpozesse a sua authoridade e bons officios, e que declarasse sómente ao capitão e consignatario, que poderão usar de per si dos recursos legaes, não devendo tambem contar com a protecção da legação de s. m., visto que pelo facto de conduzir compatriotas seus contra as disposições da lei se tornavam indignos de tal protecção.
«Devo prevenir a v. ex.ª de que é esta a minha resolução a respeito de todos os capitães que se acharem em eguaes circumstancias. Não póde realmente dar-se protecção a capitães de navios portuguezes, que se tornam assim os verdugos da humanidade, e ainda dos seus proprios concidadãos.»
São desnecessarios os commentarios a documentos como este tão cheios de dignidade. Elles por si dizem tudo.
O conde de Thomar devia ser altamente guerreado, porque ao governo brazileiro não convinha alli tão grande difficuldade á emigração clandestina. E effectivamente, os seus desgostos manifestados em mais de um documento, que em seguida examinaremos, mostram até certo ponto, que podiam mais do que o seu nobre intento de ser util á patria. E não vão taxar-nos de contradictorios; porque deve comprehender-se que motivo algum ha que possa demover um patriota illustre[211] a deixar de ser util ao seu paiz. Mas que faria o nosso ministro residente no imperio, desacompanhado das auctoridades, que só elogiavam o seu procedimento, descurando de applicar ao mal o verdadeiro antidoto, que esse ministro, como homem competentissimo, aconselhára para debelar a emigração clandestina, molestia chronica que tanto ha arruinado a patria?
Havemos de provar se o não está já, que as auctoridades do nosso paiz, pódem, mais ou menos, ser tambem accusadas de negligencia e conniventes com os aliciadores. Ora, contra tão reprovado procedimento, era completamente inutil a boa vontade de um só homem.
Os governos do nosso paiz, pódem, mais ou menos, ser accusados de negligencia, com respeito ao assumpto que tanto nos interessa.
Quando o nosso ministro residente no imperio tratava, desde 1859 a 1860, de combater, por todos os meios ao seu alcance, a emigração clandestina, usando dos actos energicos de que temos dado noticia aos leitores, dirigia elle o seguinte officio ao nosso ministro dos negocios estrangeiros, em data de 23 de junho de 1860:
«Tenho a honra de passar ás mãos de v. ex.ª o relatorio da repartição dos negocios do imperio, apresentado ás camaras na presente sessão legislativa.
«É um interesssante documento, que habilita o leitor a conhecer o estado de organisação d'este paiz. Chamo sobretudo a attenção de v. ex.ª sobre o artigo Emigração, pag. 56; n'este artigo encontrará v. ex.ª a estatistica que mostra o numero total de emigrantes entrados no Brazil, durante o anno passado.[212]
«Eleva-se o dito numero a 19:675[44], sendo 9:342 portuguezes; 3:165 allemães; e 7:188 de diversas nacionalidades.
«Julgo desnecessario repetir agora as muitas considerações que por vezes tenho feito sobre este importante objecto.
«Devo persuadir-me de que tenho encarado mal esta questão, porque o ministro do imperio se julga auctorisado a communicar ás camaras legislativas, que o governo portuguez já não cria embaraços á emigração, como ainda ha pouco acontecera, levado por informações inexactas, que felizmente se acham hoje desvanecidas.
«Não comprehendo realmente este modo de avaliar a questão; por um lado está em opposição com tudo o que me tem sido dirigido pela secretaria dos negocios estrangeiros, hoje a cargo de v. ex.ª; por outro lado parece incomprehensivel que o ministro do imperio faça referencia a factos do governo portuguez, não existindo similhantes factos.
«Quaes foram as informações inexactas, que felizmente se acham hoje desvanecidas, deixando por isso o governo portuguez de crear embaraços á emigração?
«Convirá v. ex.ª que para manter a minha dignidade careço de ser devidamente informado a tal respeito.»
A questão era muito importante para deixar de ter o seguinte desmentido official, que não utilisaria muito ao governo brazileiro, já porque elle era useiro e vezeiro em trapassas similhantes, já porque effectivamente o governo portuguez era muito amigo de palavras e verdadeiro inimigo de obras.[213]
O desmentido é este, e tem a data de 1 de agosto de 1860:
«Li com a necessaria attenção o que v. ex.ª refere no seu officio de 23 de junho ultimo, ácerca da asserção feita pelo ministro do imperio, no relatorio da sua repartição, em que diz que o governo portuguez já não cria embaraços á emigração, como ha pouco acontecera, levado por informações inexactas que elle pretende acharem-se hoje desvanecidas.
«Não me surprehendeu menos do que a v. ex.ª este modo de avaliar os factos, tanto mais que não consta n'esta secretaria d'estado que por ordem do governo se tenha facilitado a emigração, mas antes se cuida em evital-a pelos meios possiveis» etc., etc.
E concluia:
«Á vista pois de tudo isto já v. ex.ª póde vêr que o ministro foi inexacto no que expendeu no seu relatorio com referencia ao assumpto.»
Parece, com tudo, que havia alguem que, communicando-se com o governo portuguez, pretendia, n'essas communicações, taxar de inexacto o conde de Thomar.
Vejamos se podemos descobrir o culpado.
Em 12 de junho de 1860, officiava o nosso ministro dos negocios estrangeiros ao representante de Portugal na côrte do imperio, pedindo reclamasse do governo brazileiro a punição do commandante da galera Harmonia, por ter recebido clandestinamente a seu bordo, colonos para o Brazil, nas aguas de S. Miguel.
O conde de Thomar fizera a reclamação immediatamente, e o ministro dos negocios estrangeiros do imperio respondera em 17 de junho do referido anno, promettendo providencias que não dera.
Mas a nossa questão é conhecer um dos culpados de connivencia na emigração clandestina.[214]
«Pareceu-me na verdade extraordinario que, tendo eu recebido ordem de S. M. para reclamar contra o procedimento do capitão da sobredita galera brazileira Harmonia, referia o conde de Thomar, pelo facto de se ter recusado a dar entrada no porto de Ponta Delgada, e a manifestar se na conformidade dos regulamentos fiscaes e da policia, com o premeditado fim de embarcar, como embarcou clandestinadamente colonos, recebesse eu do consul geral a informação de que os passageiros transportadas na dita galera, em numero de 209 pessoas de ambos os sexos, vinham incluidas em 128 passaportes, passados pelos governadores civis das ilhas do Faial e S. Miguel» etc.
Parece que transcrevemos já o sufficiente para desconfiarmos da lisura do nosso consul geral; mas continuemos:
«Convença-se v. ex.ª, acerescentava o nobre diplomata, de que n'este negocio de transporte de colonos para o Brazil, tudo conspira contra o pensamento do governo e da legação de S. M. n'esta côrte. Os interesses de varias repartições e empregados publicos, os interesses individuaes de portuguezes e brazileiros, e por, fim o interesse do governo d'este imperio, teem grande força para deixar continuar e até proteger um trafico que se vai mostrando altamente nocivo ás vidas dos subditos de S. M. e aos interesses da nossa patria.»
Teria o nosso consul algum interesse menos honroso em auxiliar o trafico infame?
Falle mais este documento da mesma origem d'aquelle outro que acabamos de transcrever:
«Em additamento ao meu officio de 24 do mez proximo passado, cumpre-me levar á presença de v. ex.ª a resposta dada pelo consul geral ao que lhe foi ordenado em data de 17 do proximo passado, com o fim de explicar a discordia notavel entre as suas informações a respeito dos passageiros transportados na galera brazileira[215] Harmonia, e as que tinham chegado a esta legação por parte do governo com ordem de reclamar contra o capitão da sobredita galera pelo escandaloso procedimento de sobre a véla embarcar clandestinamente passageiros em frente de Ponta Delgada, e não obedecer ás intimações que pela auctoridade competente lhe haviam sido feitas.
«Como sempre previ, o consul geral não devia encontrar a menor difficuldade em munir-se de documentos officiaes para provar a exactidão das suas informações e para ficarem tidas como inexactas as que pelo governo de S. M. foram mandadas a esta legação, e que serviram de fundamento á reclamação perante o governo imperial contra o capitão da galera Harmonia.
«Em todo este negocio vigoram os motivos que tenho expendido em muitos dos meus anteriores officios, e que se reduzem a estarem os interesses de todos contra o pensamento do governo e da legação de S. M.
«Do officio do consul geral, junto, se deprehendem muitos factos que não escaparão á fina penetração de v. ex.ª, para entrar, se quizer, no fundo da questão da colonisação» etc.
O facto dos escandalos praticados pelo governo brazileiro, a respeito da barca Harmonia, foi, sem duvida, a principal razão da sua retirada do imperio, em fins do anno de 1860.
«Verifica-se tudo o que eu tinha previsto nos meus antecedentes officios, communicava o conde em 6 de setembro de 1860. Vão de accordo as respostas do governo imperial com as que me foram dadas pelo consul geral, etc.
«É negocio este, em que me parece desnecessario insistir, a não me habilitar o governo de sua magestade» etc. etc.
Foram estas as ultimas palavras proferidas pelo conde de Thomar, na qualidade de nosso representante no[216] Brazil, a respeito do assumpto importantissimo da emigração; porque, escusado será dizer, que o governo de sua magestade, jámais habilitaria o seu delegado a pôr termo ao commercio horroroso da escravatura branca.
Seria falta de energia ou connivencia?
Eis ahi está uma pergunta a que não será difficil responder.
Em paiz algum se tem descurado mais do que no nosso o importantissimo assumpto que nos occupa. Com tudo parcerá áquelles que olham superficialmente para estas cousas, que os nossos estadistas já tem feito muito, e que se os remedios applicados não tem produzido o effeito desejado, não é por culpa d'aquelles a quem compete remediar o mal.
Effectivamente, ninguem ha com maiores tendencias para fazer projectos, ás vezes bem deliniados; mas tambem não haverá, de certo, quem mais depressa se esqueça d'elles.
Com respeito á emigração não se póde dizer que os nossos governos se tenham esquecido. Unicamente podemos accusal-os de fallarem muito, demasiadamente, sobre o assumpto... e de não terem feito nada, absolutamente nada, para evitar o mal que nos prostra.
Vem já de longe este afan de se querer regular a emigração para o Brazil.
A lei de 20 de julho de 1855 estabelece medidas salutares a favor dos emigrados; mas para que as disposições d'essa lei possam ser effectivas, falta-lhe o respectivo regulamento. Fallou-se muito da necessidade de organisar esse regulamento, em vista das instantes reclamações dos nossos consules residentes no imperio, que quasi diariamente se queixavam dos horrores da[217] emigração. Mas os nossos governos ouviam as queixas, lacrimosos, e respondiam com bonitas phrases de consolação, que já mais remediariam tão grande mal... mal que, cada dia que passa, augmenta de intensidade, e já nos assombra hoje. Essas queixas tem-se repetido desde ha 20 annos, o que equivale a dizer que os homens d'estado d'este bello paiz tem ensopado muitos lenços e escripto phrases recheadas de sentimento, verdadeiramente liberaes, phrases que consolam quem as lê, mas que nada significam para quem estuda seriamente esta questão.
Desde a sua instalação na côrte do Rio de Janeiro instára o conde de Thomar pela conveniencia de se formular um tratado ou regulamento da emigração; e formulou-o. Esse projecto foi incumbido ao conselheiro da legação, o dr. Antonio José Coelho Louzada, ao qual já em outro logar nos referimos.
Eis o que o benemerito representante de Portugal na côrte do Rio de Janeiro, communicava ao nosso governo, a tal respeito:
«É possivel que o governo de sua magestade, não classifique de perfeito aquelle trabalho, e que obra humana póde ser classificada assim? Mas asseguro a v. ex.ª que o conselheiro Lousada, por um lado se conformou com os verdadeiros principios reguladores de tal assumpto nos paizes mais civilisados, por outro lado aproveitou a especialidade da posição dos dois paizes e dos seus subditos, não deixando jámais de ter em vista as lições da experiencia diaria, a qual, na minha opinião, cumpre principalmente ter em vista n'este delicado objecto. Assim é minha opinião tambem que o conselheiro Lousada é digno dos maiores louvores pela coadjuvação que me prestou, e que muito ha de concorrer para facilitar as ultimas resoluções do governo de sua magestade, as quaes eu sollicito com a maior urgencia.»[218]
O projecto subio á approvação do governo, mas, n'esses intrincados labyrinthos chamados secretarias d'estado, foi completamente retalhado pelos inexperientes conselheiros-amanuenses, naturalmente de accordo com a diplomacia, porque a diplomacia é sempre consultada n'estes casos; e o que é para admirar, é que não obstante o trabalho do dr. Lousada sahir desmantelado dos cadinhos officiaes, o governo brazileiro ou os homens d'estado que então dirigiam os destinos do imperio, com aquelle tacto politico-economico que todos lhe conhecemos, ainda acharam extemporaneas as diligencias empregadas pelo conde do Thomar, e quiçá do governo portuguez, a respeito do regulamento em questão!
E se não vejamos.
São passados tres annos (1860 a 1863) depois das diligencias do conde de Thomar, e o sr. José de Vasconcellos e Sousa que substituiu aquelle diplomata recebia plenos poderes do governo portuguez, para entrar em negociações com o governo do Brazil, afim de se regular de vez a emigração.
O resultado d'essas negociações são assim explicadas pelo sr. Vasconcellos e Sousa:
«A disposição do governo imperial para com o de sua magestade, para com Portugal, e ousarei dizer para comigo individualmente, não póde ser mais favoravel. Isto, não obstante, não prescinde o mesmo governo de attender sériamento com affinco ao que considera necessidade imperiosa, satisfazendo ao mesmo tempo á opinião manifestada, já do proprio partido, já da opposição; e insta comigo, por meio de todos os seus membros, para que seja regulada, quanto antes, e primeiro que tudo, a questão da emigração e o modo d'ella, de[219] tal sorte que cesse de ser duvida, por demais assustadora para o Brazil, a vinda de gente portugueza para este imperio» etc.
O officio datado do 8 de janeiro de 1863, expedido pelo ministro dos negocios estrangeiros, ao representante de Portugal no Brazil, tirava todas as duvidas, que por ventura houvesse contra o nosso governo, de pretender demorar a discussão de um assumpto tão importante para os dois paizes.
Não tinha, pois, de que se queixar o governo do Brazil. O projecto de convenção ia ser-lhe presente pelo nosso delegado.
O sr. José de Vasconcellos communicava pouco depois ao nosso governo:
«Tenho a honra de passar ás mãos de v. ex.ª a inclusa copia da nota confidencial, que n'esta data entreguei em mão propria ao marquez de Abrantes, ministro e secretario d'estado dos negocios estrangeiros de S. M. o imperador do Brazil, acompanhada do projecto da convenção dos colonos, convidando-o para a respectiva discussão e ajuste definitivo, etc.
«Das mãos do marquez de Abrantes tem de passar o dito projecto ás mãos do ministro da agricultura e da justiça, e sómente depois de ouvidas e accordes as suas opiniões sobre elle, entraremos, o dito marquez e eu na respectiva discussão.
«Depois de um longo preambulo, declarou-me que o resultado do exame da materia o tinha convencido de que antes do revogada certa lei de colonisação (a de 11 de outubro de 1837), era impossivel negociar uma convenção de emigração, a cujos principios de liberdade, e mesmo de rigorosa justiça, se oppunham formalmente as disposições da dita lei, etc.
«A final, e depois, de muito boas palavras, affirmou-me que o governo imperial não havia mudado de principios nem de intenções, que havia de fazer a convenção,[220] e que o seu primeiro cuidado seria apresentar ás camaras, em janeiro proximo futuro, um projecto de lei que revogasse a que fica citada, e habilitasse o governo a entrar n'uma negociação franca de emigração, garantida pela nova lei.
«Assim o espero devéras, mas não encubro a v. ex.ª o meu desapontamento grandissimo, e sério desgosto, tanto mais natural e profundamente sentido, quanto, em minha consciencia o digo, e v. ex.ª não ignora, que fiz o que era humanamente possivel para evitar similhante demora! Digne-se v. ex.ª notar, que o unico embaraço para a emigração desde já, é justamente a citada lei de 1837, sobre a qual eu chamei sempre a attenção do marquez de Abrantes, e a do sr. ministro da agricultura e commercio, todas as vezes que fallamos em colonisação, que não tem sido poucas.
«Em tudo isto ha uma prova notavel de boa fé, e de desejo sincero de estabelecer a emigração em base solida, sustentada em principios que não possam ser destruidos com as peias das leis barbaras de outra epocha.»[45]
Parece-nos demasiadamente ingenua a boa fé do sr. José de Vasconcellos e Sousa, com respeito ao assumpto, se attendermos ao seguinte trecho do seu citado officio:
«... Disse-me mais, que assegurasse a v. ex.ª que, tanto esta convenção (de emigração), como a de propriedade litteraria, esta dependente d'aquella, seriam concluidas logo depois da proxima reunião do corpo legislativo (em 1864).»
Perguntamos porque razão estava uma dependente da outra? Que tinha que vêr a convenção litteraria com a que regulava a emigração de colonos portuguezes para o Brazil? Acaso a lei referida, de 1837, serviria tambem de obstaculo á conclusão d'este tratado?[221]
Não. Eram tudo evasivas, evasivas que não podiam ser tachadas de notavel boa fé e de desejo sincero em estabelecer os principios do direito de propriedade litteraria, de que temos sido e continuaremos a ser esbulhados.
Escusado será dizer que no anno de 1864 não foi presente ao corpo legislativo brazileiro, como se havia promettido, o projecto de lei que, segundo a opinião dos ministros do imperio, devia derrogar essa outra de 1837, que impedia a negociação de uma convenção sobre emigrados, a cujos principios de liberdade, e mesmo de rigorosa justiça, se oppunham formalmente as disposições de tão barbara lei!
E o que é mais notavel, é que que essa lei estupida e deshumana, reconhecida como tal pelos primeiros homens d'estado do Brazil, ainda não foi derrogada. É ainda a lei que regula o trabalho dos pobres emigrados alli residentes!
A eliminação da lei de 11 de outubro de 1837 organisada por assim dizermos debaixo da influencia de legisladores que mais pensavam na continuação do horroso trafico da escravatura africana, escapou aos legisladores de 1871, que decretavam livre o ventre da mulher escrava!
E o que é mais, é que estamos em 1878, e as leis de que fallamos continuam, uma, fazendo do preto um cidadão, e a outra fazendo do branco um escravo!
É assim o mundo; e o Brazil, especialmente, ainda nos apresenta d'estes phenomenos!
Dar-se-ha caso que os economistas brazileiros conservem ainda a lei de 1837 com o fim de evitar que se discuta o tratado de emigração proposto por Portugal[222] em 1863, e a tão fallada convenção da propriedade litteraria?!
Se assim é, como o demonstra a irrefutavel logica dos factos que analysamos, não digam que o Brazil protege a emigração.
Mas que tem que ver Portugal com a teimosia dos estadistas brazileiros?
Será necessario pedir licença ao Brazil para publicarmos qualquer lei tendente a evitar o horroroso commercio da escravatura branca?
Parece que sim, porque o governo imperial não ficou satisfeito com a publicação da lei de 1855, e, talvez que por essa circumstancia, o governo portuguez, para não descontentar mais o governo brasileiro, descurou completamente a approvação d'um regulamento tão indespensavel como o exigido no artigo 12.º.
Por outra fórma se não póde deixar de considerar o seu procedimento, se attendermos ao addiamento da questão, censurado pela imprensa em meados de 1872 e immediatamente considerada pelo governo, para guardar apparencias; porque foi outra vez despresada até fins de 1874, em que de novo fôra lembrada, para tornar a ser esquecida, como é facil de prever, se attendermos a que as medidas propostas na legislatura de 1876, pelos membros da commissão nomeada em 1873, não tiveram echo no parlamento, preterindo-se a discussão d'este assumpto gravissimo por outros de uma importancia secundaria, e quem sabe mesmo se essencialmente prejudiciaes aos interesses do paiz.[223]
Os acontecimentos do Pará, em 1874, a que como já dissemos, tambem se refere o auctor do livro o Brazil, obriga-nos a entrar de novo no assumpto.
Mas antes de o profundarmos cumpre-nos declarar que se não publicámos, como prometteramos, o segundo livro annunciado no final das Questões do Pará, foi por que tendo nós pedido documentos que julgamos indispensaveis para fazer a historia d'aquella horrorosa tragedia, a um amigo nosso residente no Pará, e tendo elle accedido do melhor grado ao convite, o portador a quem os confiára, chegado que foi a Lisboa, entendeu dever exonerar-se do compromisso que voluntariamente se impozéra, ou, o que é mais extranhavel, subtrahio-os!
Ó heróico poeta, como tú conhecias o mundo quando assim pensavas:
Dizei-lhe que tambem dos portuguezes
Alguns traidores houve algumas vezes.
Mas... prescindamos dos documentos e examinemos as considerações que aos referidos tumultos fez o auctor[224] do livro o Brazil; e para que com conhecimento de causa sejam julgadas as nossas palavras, citaremos d'esse livro os trechos sobre que entendemos dever fazer alguns reparos.
Um jornal do Porto escrevera opportunamente a respeito das desordens do Pará:
«A colonia portugueza do Pará, é continuamente insultada por alguns jornaes d'aquella terra, insultos quasi sempre acompanhados de improperios soezes e estultos á nossa bandeira nacional, sem se lembrarem sequer, esses desgraçados! que foi á sombra d'ella que os seus avoengos viveram por tres seculos!»
O sr. Carvalho responde o seguinte no seu livro:
«Ao escriptor portuense confessamos que assistem razões muito ponderosas para se pronunciar por este modo. Peza-nos sómente, devéras o dizemos, que ao traçar tão bem cabidos reparos, não carregasse um pouco mais a mão...
E continúa logo:
«...... Ainda assim pedimos-lhe que nos conceda estendel-os tambem a uns certos hydrophobos de cá, que, ha tempos a esta parte, se deixam tomar da mania de vomitar doestos e calumnias contra o Brazil.»
O que é logico é que se o escriptor portuense seguisse o conselho do snr. Carvalho, de carregar um pouco mais a mão, como tantos jornalistas fizeram, quando appreciaram á luz d'este seculo os actos de selvageria praticados no Pará, não poderia deixar de ser cognomisado de hydrophobo!
O auctor do Brazil assim desculpa os nossos insultadores:
«Este imperdoavel abuso da liberdade de imprensa no Brazil, explica até certo ponto a razão de ser dos seguintes pasquins—O Alabama, da Bahia—O Commercio a retalho (digno sucessor do Tribuno), de Pernambuco—e A Tribuna, do Pará.[225]
«Em Portugal, vá-se dizendo tambem para desconto de peccados, surgem a espaços no seio do jornalismo uns dignissimos émulos d'aquelles leprosos d'além-mar. Exemplos:—O Raio—O trinta mil diabos—O chicote dos ladrões, etc., etc.
«Lá e cá o publico sustenta-os e folga com elles. Esta a verdade, tal qual é.»
Não é isto exacto.
Resumamos os acontecimentos horrorosos de que tem sido alvo a colonia portugueza no imperio de Santa Cruz, e que tem dado justa causa a declarar-se a hydrophobia na imprensa de Portugal.
Entre os hydrophobos de cá e os hydrophobos de lá, ha, com effeito, muita differença.
Alguns brazileiros, não satisfeitos com os insultos que nos dirigem, lançam mão do punhal e do trabuco homicida, para satisfazer o odio de raça que os devora; os portuguezes, só depois dos insultos é que usam do direito de represalia, pedindo á imprensa o que lhes nega o governo brazileiro.
No que os brazileiros enchergam calumnias, não ha mais do que factos verdadeiros, que, por serem ás vezes tão extraordinarios, não parecem o que effectivamente são.
É preciso illucidar um pouco mais isto.
Houve exaltação da parte da imprensa portugueza, exaltação justificadissima, em face do espesinhamento do nosso pavilhão, por subditos brazileiros, n'uma das praças publicas da cidade do Pará, em principios de 1873. Essa exaltação recrudesceu quando as auctoridades brazileiras deixaram impune o acto vandalico dos desordeiros. Esta impunidade armava contra nós os paraenses. O seu jornal, a Tribuna, já não se contentava só com insultos, publicava proclamações incendiarias, chamando o povo ás armas contra os portuguezes residentes na provincia. Da cidade do Pará eram destacados[226] para o sertão alguns agentes d'aquelle infame papel, para lerem aos tapuyas o grito de guerra; outros dirigiam-se ás praias do Guajará, junto da cidade de Belem, aonde ha sempre grande movimento de canoas vindas do interior, e alli, no meio dos tripulantes e dos passageiros, todos indigenas, eram lidos infamantes libellos contra os marinheiros ou gallegos, epithetos com que em todo o imperio distinguem os filhos de Portugal! Estas doutrinas subversivas da ordem publica, apregoadas por espaço de dois annos consecutivos, á luz do dia e na presença das indifferentes auctoridades do Pará, produziram a explosão de setembro de 1874, que podia ter produzido resultados mais funestos, se não fôra a Agencia Americana Telegraphica, de que eramos representante na referida cidade. Com tudo, muitos portuguezes foram assassinados, e outros gravemente feridos, ignorando-se hoje ainda qual o verdadeiro numero das victimas. E note-se que tudo isto era devido á propaganda da Tribuna: eis em que davam os risos!
Em Pernambuco e no Ceará davam-se casos quasi identicos.[46]
Não podia a imprensa de Portugal deixar de occupar-se de um assumpto tão grave, invectivando as auctoridades brazileiras de conniventes nos attentados praticados contra os filhos d'uma nação que conservava com o Brazil as relações mais intimas; e dizemos conniventes porque á propaganda nada se oppoz.
Não satisfeitos os desordeiros com o sangue das victimas, que já tingira as terras brazileiras, não contentes porque ainda achavam que era pouco, começaram por insultar a guarnição da corveta Sagres, que n'este tempo largava ferro na bahia do Pará.
O nosso homem do mar, acostumado a ser bem recebido[227] em todos os paizes do mundo, e illudido a respeito da colonia residente no Brazil, de quem se dizia «que o portuguez era insultado porque insultava»; pesaroso pelos proprios insultos, que não podiam ser levados á conta de represalia, procurou os insultadores, a quem infligiu o merecido castigo.
Novas proclamações incendiarias pozeram em sobresalto os habitantes do Pará.
Mais tres portuguezes caem feridos de morte, ás mãos dos soldados assassinos do imperio de Santa Cruz.
Espalha-se o terror, em vista d'este facto assombroso, de serem os agentes da auctoridade publica os assassinos mais convictos, porque apoz o crime, iam declarar aos seus superiores, que acabavam de prestar um serviço á patria assassinando gallegos.[47]
E a Tribuna continuava impunemente a incitar os animos á chacina!
Os destroços que ella faz são incalculaveis; do interior da provincia chegam á cidade noticias atterradoras.
O presidente da provincia, que por excepção á regra se condoeu da sorte dos colonos, não confiando na força publica, que elle bem sabia estar do lado dos desordeiros, pede providencias ao governo central, que nada attende!
O promotor publico, a quem o presidente recommenda a querella da Tribuna, nunca acha motivo para a processar; e os adeptos do pasquim, enthusiasmados pelo procedimento do seu patrono; vão em massa, na frente das musicas e deitando foguetes, agradecer-lhe tão relevante serviço. Esta auctoridade que representa os sentimentos do governo central, porque jámais lhe retirára a sua confiança, ufana-se com a manifestação e vem á janella expressar os seus agradecimentos aos perturbadores da ordem publica![228]
Na mesma cidade e ao mesmo tempo que alguns de seus habitantes chegavam ao apogeu do delirio, ao grito de—mata gallegos—a colonia portugueza prepara-se para a catastrophe. Os mais fortes aguardam resolutos os desordeiros e os mais fracos refugiam-se nos barcos fundeados na bahia do Pará.
Um negociante recebe refugiados em casa, e intrincheira-se; outro, fecha o seu estabelecimento, sóbe com sua mulher e filhos para o pavimento superior da propria habitação, prepara o rastilho que havia de conduzir a uma barrica de polvora o incendio e logo a destruição de tudo que era seu—vidas e cabedal—, destruição que elle prefere á que a si e aos seus preparavam os communistas d'esta parte da America.
E o jornal infame continuava as suas proclamações.
Este terror é levado pelo telegrapho e pela imprensa a todos os cantos do mundo civilisado, e Portugal, a quem mais doía tanta desgraça, condemnou em phrases sentidas que nunca poderiam abonar a civilisação do Brazil, a repetição das scenas barbaras, que desde a noite de 6 de setembro até fins de novembro de 1874, faziam lembrar o sangrento dia de S. Bartholomeu, em França, ou os repetidos massacres antropophagos dos botocudos, contra as primitivas colonias do imperio americano.
Depois reunem os tribunaes brazileiros, para julgarem os crimes commettidos contra os portuguezes, residentes no Brazil. Esses tribunaes condemnam a penas irrisorias, que importam uma absolvição, os assassinos de nossos irmãos: mais uma razão para a imprensa portugueza se sentir da indifferença do governo brazileiro.
O tribunal que devia julgar os assassinos de Jurupary, em cuja causa se achava compromettida a honra do Brazil, não se constitue, porque os cidadãos independentes, note-se que não é a plébe, preferem pagar[229] a multa de relaxado, a ser juizes n'uma causa em que infallivelmente deviam condemnar os seus compatriotas assassinos de estrangeiros inermes![48]
A imprensa portugueza vê isto, e não póde soffrer o impulso de firmar bem, ainda mais uma vez, a sua opinião, a respeito de tanta selvageria. Mas note-se que a tal hidrophobia propagou-se a toda a imprensa de Portugal, sem excepção do Trinta mil diabos e outros, o que não podia deixar de ser.
O governo do imperio não póde ser culpado de tantos desmandos, porque estava longe do theatro dos acontecimentos. Dizem-nos isto com toda a irrisão, e ainda mais:—Uma prova da sua innocencia, e de que reprova os actos vandalicos de alguns dos seus administrados, está no seu procedimento, expresso no seguinte telegramma do Rio de Janeiro, reproduzido no livro do sr. Augusto de Carvalho:
«O governo imperial accedeu, auctorisando-o, ao pedido de indemnisações pecuniarias, para as familias dos subditos portuguezes assassinados no Pará.
«O presidente da provincia procede com todo o rigor contra a Tribuna.»
Mas a imprensa de Portuga! continuou a fazer justissimas accusações ao governo do Brazil, porque as promettidas indemnisações pecuniarias não foram dadas, e porque a Tribuna, não obstante o rigor com que segundo se dizia, tinha sido tratada, continuou por muito tempo o seu fadario infame.
Os hydrophobos de cá, na phrase do escriptor brazileiro, vomitam doestos e calumnias contra o Brazil, quando não pódem soffrer silenciosos tanta barbaridade.
Esses hydrophobos, especializados pelo sr. Carvalho, O Raio, o Trinta mil Diabos, o Chicote dos Ladrões, jornaes satyricos, de que ninguem faz caso, foram creados[230] unicamente para ridicularisar, e ás vezes infamar, as cousas portuguezas.
Mas o Alabama, da Bahia; O Commercio a retalho, de Pernambuco; e a Tribuna do Pará, e tantos outros só foram creados para insultar a colonia portugueza residente no Brazil e chamar ás armas contra ella.
Não póde haver termo de comparação entre uns e outros pasquins.
Com os de cá, folga a nossa ralé; a gente séria condemna-os, e por isso a sua apparição é passageira e sem importancia.
Com os de lá, não acontece o mesmo; a ralé e até as pessoas mais gradas, crêem nas doutrinas subversivas que esses apostolos do mal apregôam.
A prova da importancia d'esses pasquins, está na duração d'elles, e ás vezes na proficiencia com que são elaborados os seus artigos principaes. Que o diga o presidente da provincia do Pará na sua proclamação.[49]
O Alabama, póde dizer-se que é o orgão da mocidade estudiosa que se demora na academia da Bahia!
A Tribuna e o Alabama, calumniavam-nos ao mesmo tempo que diziam aos seus compatriotas, ser uma virtude civica matar um marinheiro!
A differença é muito grande.
Tambem se póde deprehender das palavras do sr. Carvalho, que os hydrophobos de cá, são outros, que não os pasquineiros especialisados acima.
Se a invectiva se refere a nós declaramos terminantemente que a nossa hydrophobia se declarou no meio do alarido das victimas que nós vimos cahir á acção do punhal e do trabuco dos assassinos revolucionados n'essa terra da promissão, e dos quaes nos livrámos, por mercê de Deus, sem desamparar nunca o nosso posto da honra.[231]
Se a invectiva se refere a outros, por exemplo, ao auctor das Farpas, a unica publicação poupada pelo auctor do livro que analysamos, e a unica que mais tem rediculisado o imperio e as suas cousas, para que é que foi pedir ao auctor do folheto uma carta de recommendação para o seu livro?
A stulticia de quererem defender os excessos dos pasquins brazilheiros e cumparal-os com os de cá não é só do auctor do livro o Brazil. Já a Tribuna do Pará e outros jornaes brazileiros, desculpavam os seus injustos desforços d'uma fórma um pouco comica. O sr. Augusto de Carvalho não fez mais do que seguir-lhes as pisadas. Assim falla a Tribuna do Pará:
«Não sabendo, não tendo mesmo com que dessimular o seu embaraço, despeito e confusão, enxergou na expressão—VIL PEDRO PRIMEIRO—(a Tribuna chamava-lhe assim por ser portuguez!) com a qual acoudindo a uma justa represalia, fulminámos a Tribuna de Lisboa,—um attentado contra a familia imperial, entretanto que não tem visto os insultos affrontosos, que todos os dias recebe o povo brazileiro na pessoa de D. Pedro II.
«O que disestes a Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz, sobre as Farpas, etc.?»
É preciso que a verdade seja dita sem rebuço: as Farpas, é a publicação portugueza, que mais feriu os brios da nacionalidade brazileira, na pessoa do seu imperador; verdade seja que os que mais se queixavam, escreviam vil Pedro primeiro ao pae do segundo imperador, e o que é sobre tudo mais irrisorio, os imperialistas do segundo e os calumninadores do primeiro intitulavam-se republicanos!...
Mas republicanos ou imperialistas condemnaram a[232] critica mordaz do auctor das Farpas: nós os ouvimos; rindo-nos do desgosto ridiculo de tal combáda que não se lembrava de certos papeis comicos representados em Coimbra, perante a universidade, e no Porto, em face dos esplendorosos festejos promovidos por seus hospitaleiros habitantes, a sua magestade o imperador.
E são por ventura isoladas as ironias innosentissimas dos criticos europeus, na passagem de sua magestade imperial pelos differentes estados da Europa?
Não. Nem os desgostos manifestados pelos brazileiros, nem as conveniencias puramente mercantis, tem actualmente podido influir no animo d'aquelles que veem em todos os movimentos do illustre imperador uns motivos para rir. E não somos só nós que assim pensamos; e para o que vejamos:
O jornal humoristico illustrado, de Milão, Lo Spirito Folletto, do dia 15 de março, de 1877, um dos mais importantes, no seu genero, em toda a Europa, traz a caricatura do imperador vestido de gibão, com uma penna atravessada na cinta que o singe, e á cabeça uma porção de alfarrabios. Atraz do illustre viajante vae um negro, empurrando um carrinho de mão, carregado de todos os emblemas das sciencias e das artes. Por baixo da caricatura está a seguinte inscripção:
«Una volta un imperatore, per fare une ingresso in una cittá, «si faceva precedere» de una buona batteria di cannoni. Don Pedro invece «se fa seguire» dagli arnesi della scienza. Evviva dunque... il progresso.»
E mais adiante no Spiritelli!
«—Sapete perchè viaggia tanto all'estero l'imperatore del Brasile, abbandonando per mesi e mesi il suo trono?
«—Per fare propaganda repubblicana!
«—Oh bella!... Ma come, in che modo?
«—Provando come due e due fanno quattro, che dal[233] momento che il Brasile sta in piedi durante le sue lunghe assenze, starebbe in piedi anche se d'imperatore non ce ne fosse. É vero, o no?»
Em outro numero apresenta o imperial viajante a dormir, n'um camarote do theatro da Scalla, ironia pungente ao facto de sua magestade se deixar adormecer como qualquer mortal, numa funcção de gala para que tinha sido convidado.
Tem d'estes espinhos a realeza. Ella não sabe que é preciso aturar tudo e todos, os festejos e aquelles que os fazem?
E não se diga que são insignificantes taes actos. Estas manifestações, dadas por um povo ao representante do outro povo, reflectem-se em um e outro; mas se esse representante é indifferente a essas manifestações de respeito, e os que as promovem se escandalisam do indifferentismo, louvae estes, porque tal desgoto representa ainda concideração ao povo representado pelo indifferente.
Na Italia usaram da satyra para fulminar a indifferença. Hade por isto revolucionar-se o povo brazileiro contra os colonos italianos residentes no imperio?
Não. A força da logica manda que no Brazil se revolucionem contra sua magestade o imperador.
Não era, nem nunca foi intento nosso discutir o viajante imperial; mas desde que no Brazil se fazem revoluções contra portuguezes por motivo de sua magestade ser recebido em Portugal nas palminhas das mãos, não devemos deixar passar em claro a dupla offensa que o povo amigo e irmão nos faz.
Mas não fica ainda aqui a satyra. Da Italia passou á Inglaterra... com sua magestade imperial.
O Punch, de Londres, que não desejava ver abalados os seus creditos de ironico, descreveu assim uma digressão do senhor D. Pedro d'Alcantara:
«Extractos de um diario imperial.—4. h. da manhã.—Muito[234] zangado por ver que dormi de mais. Levantei-me, vesti-me á pressa, banhei-me na Serpentine, e fui dar um passeio ao Parque.—5 h.—Fui a Alexandra-Palace, e apanhei os empregados de sorpreza, apezar de lhe ter mandado dizer que havia de lá ir hoje. Zangado por ver que não tinham uma opera prompta.—6 h.—Tomei uma chavena de café, e fui ao Jardim Zoologico. Acordei os leões, montei a cavallo nos elephantes e assisti ao banho matinal dos hippopotamos. N. B. Ufanei-me de me ter anticipado a elles.—7 h.—Fui procurar o principe, e estive de cavaco ao lado da cama de sua alteza real. Depois fui á Polytechnica, e, como os empregados ainda não estavam a pé desci eu sózinho dentro do sino de mergulhador.—8 h.—Fui a Kew, e almocei com o dr. Hooker. Durante a nossa refeição um celebrado botanico teve a bondade de fazer uma leitura.—9 h.—Fui ao hospital de S. Thomaz, puz em polvorosa todos os enfermeiros, visitei o Museu etc. Não tive tempo de esperar uma allocução dos directores.—10h.—Fui á City, e vesitei a casa da camara, o Stock-Exchange, Billingsgate, e a Torre. Tive uma longa conversação com mr. Punch, Fleet Street, 85.—11 h.—Fui a Albert Hall e toquei orgão. Depois fui ao Museu de South-Kensington e assisti a leituras sobre desenho, cosinha, e trabalhos de agulha. Meio dia—Fui ao Palacio de Crystal, e vi os peixes. Em attenção aos meus variados compromissos, os directores mostraram-me os fogos de vista de dia.—1h.—da tarde. Fui a Orleans-Club, e subi o rio. 2h. Fui á moeda e vi o machinismo do correio—3 h.—Fui á camara dos pares e assisti a uma partida de cricket.—4 h.—Corri ao Aquario de Westminster. Um pouco fatigado, mas restaurei-me com um lunch em Grosvenor Gallery.—5 h.—Depois de visitar a Real Academia assisti a um «chá das 5 horas» em Belgravia-South-Kensington.—6h.—Visitei a abbadia de Westminster,[235] a cathedral de S. Paulo, e o oratorio de Brompton.—7 h.—Jantei no hotel, e tomei café em Battersea-Park—8 h.—Fui a Egyptian-Hall ver Zoè, e estive alguns minutos na camara dos communs.—9 h.—Vi o que pude de Convent-Garden, Lyceu, e Her-Magesty, e regalei-me com o artistico representar de m. Jefferson em Haymarket.—10 h.—Telegraphei inscripções aos meus ministros no Brazil, dancei uma quadrilha em Willis-Rooms, e recusou-se-me respeitosamente entrada no Beefsteack-Club, onde soube com muito pezar que não entravam estrangeiros.—11 h.—Ciei em Albion e depois fui a um baile em Carlton Gardens.—Meia noite—Procurei os srs. Gladstone, Tennyson e Thomaz Carlyle, e depois de gozar tres deleitosos cavacos, voltei para o hotel—1 h. da manhã—Escrevi umas poucas de cartas, li o Times, arranjei o meu despertador para as tres, e fui-me deitar.»[50]
A fina ironia das Farpas não é superior á que deixámos transcripta.
Ponham os criticos de parte os preconceitos de nacionalidade, e hão de concordar comnosco.
Pois bem, em paga da hilaridade singella, que não importa desconsideração aos brazileiros, dizem os hydrophobos de lá, em resposta ás ironias dos inglezes, dos italianos e dos portuguezes.
«Vinde colonisar as nossas terras, ó inglezes civilisados e italianos, que vós sois mais uteis do que os portuguezes assassinos e ladrões!»
Ás finas ironias das Farpas, onde especialmente se distingue a mala inseparavel de D. Pedro de Alcantara respondem:—O vosso rei é um bebado e um devasso! E querendo responsabilisar os colonos pelos escriptos de Ramalho Ortigão, escrevem:
«A emigração é um direito baseado na phylosophia, sustentado pelo progresso da humanidade.[236]
«Sim, senhor, não vamos ao contrario d'esse principio eterno do desenvolvimento da arte e da sciencia, da civilisação por tanto.
«Mas não ha direito que não tenha por espelho o dever em seu fiel cumprimento.
«O emigrado suppõe a idéa de utilidades. É um axioma.
«O emigrado é um individuo, e como tal, para fazer valer seus direitos, corre-lhe a obrigação de não faltar aos seus deveres.
«Ora, desde que esquece estes perde aquelles.
«O direito suppõe a justiça, o dever suppõe a moral.
«Desprezada a moral pelo individuo temos um ente perdido e perigoso, que despreza da mesma forma a justiça por meio de um crime.
«Um criminoso não póde ser util a sociedade alguma.
«Assim, pois, o emigrado immoral e affeito ao crime é um individuo inutil.
«Isto posto, indaguemos qual a utilidade, que nos póde sobrevir da colonia portugueza.
«Estudemos pela theoria dos factos apoiados nos grandes mestres, a historia e o tempo.
«Em que consiste o merecimento do braço portuguez?
«Somos forçados a retirar os olhos cobrindo o rosto; pois o quadro que nos offerecem a lavoura, a arte e a industria de nossa terra, é o mais digno de lastima, por mercê da actividade portugueza.
«Como causa, quaes os effeitos da intelligencia d'essa colonia?
«Entre nós, provavelmente, ás sciencias, á litteratura, ás bellas artes nada tem aproveitado; antes as letras, os verdadeiros talentos de nossa patria teem soffrido atroz violencia (sic), indigna opposição da parte d'ella.[237]
«E quaes teem sido as provas da grandeza d'alma portugueza?
«As provas do sentimento, da moral, da virtude, da honestidade do cidadão portuguez temol-as de sobejo ainda que esqueçamos o quanto sabe ser elle ingrato; porque iremos encontral-o em toda a parte—como um ente dissoluto; em todas as situações—como um hypocrita; na mais infima á mais elevada posição—como um cynico perante a lei, diante de Deus um atheu e dos homens uma vibora.
«Não se presta o colono portuguez ás luctas da agricultura nem sua cabeça percebe o hymno que se entoa nas officinas, nos templos do trabalho honesto, porque fecha os olhos, cerra os ouvidos á voz da consciencia, aos gritos da virtude e aos arrojos da concepção humana.
«São portanto colonos estupidos, immoraes, por conseguinte inimigos do dever, que aberrando de um direito perdido aggridem a justiça e exaltam o—crime.
«Incontestavelmente é uma raça inutil.
«Por ventura nos póde convir uma colonia, que, em vez de alimentar, serve de tropeço ao desenvolvimento material de nosso vasto paiz».[51]
Nós não queremos discutir este amontoado de disparates, mas respondemos com o seguinte documento official aos taes hydrophobos de lá que em nada se parecem com os de cá:
«Do relatorio do ministerio da fazenda do imperio do Brazil, apresentado este anno (1877) á assembléa geral legislativa, extraimos a seguinte nota do numero dos contribuintes sujeitos ao imposto industrial no Rio, regulado alli por lei de 15 de julho de 1874, excluidos os estabelecimentos taxados com relação aos meios de producção e os de sociedades anonymas—isto no exercicio de 1875-1876.[238]
«Os contribuintes são:
Portuguezes | 7:394 |
Brazileiros | 1:791 |
Francezes | 466 |
Inglezes | 127 |
Allemães | 127 |
Italianos | 214 |
Hespanhoes | 58 |
Belgas | 13 |
Hollandezes | 1 |
Suissos | 23 |
Americanos | 17 |
Orientaes | 1 |
Chins | 1 |
Africanos | 16 |
Gregos | 4 |
Dinamarquezes | 7 |
Cubanos | 1 |
Suecos | 3 |
10:264 |
«O valor locativo em moeda do Brazil, do local que servia para o exercicio da industria era de réis 6.052:661$198, e o valor total do imposto foi de réis 1.010:090$359, tudo moeda fraca.
«As sociedades anonymas sujeitas ao imposto de industria e profissões, no dito exercicio de 1875-1876, foram 36, sendo 15 brazileiras, 15 portuguezas, 5 inglezas e 1 americana, cujos dividendos subiram a réis 8.553:000$000, pagando de imposto 1,5 por cento, ou 128:000$000 réis.
«O numero de estabelecimentos industriaes (note-se bem—industriaes) sujeito ao referido imposto, no mesmo anno, foi de 182, sendo:[239]
Brazileiros | 45 |
Portuguezes | 109 |
Francezes | 11 |
Inglezes | 3 |
Allemães | 5 |
Hespanhoes | 5 |
Suissos | 3 |
Italianos | 1 |
«Estes estabelecimentos empregavam 976 operarios, e d'elles 100 eram laborados á força humana, 7 por meio de força irracional, 66 pela do vapor e 9 pela da agua. O imposto que pagaram foi de 18:637$436 réis.
Vê-se por estes dados qual é a parte importante que a nacionalidade portugueza tem na industria e commercio do Rio de Janeiro.
«Note-se, no entanto, que em todo o Brazil o imposto das industrias e profissões é avaliado em 2:600:000$000 para o exercicio corrente de 1877-1878.»[52]
Elles, os hydrophobos, ignoram isto, coitados! Nós fazemos-lhes esta justiça.
É por causa d'essa ignorancia que os desgraçados afinam por este diapasão.
«Deus já nos vae ajudando.—A bordo do vapor inglez Jerome sahido d'este porto no dia 26 do corrente mez, escafederam-se para a terrinha trinta e tres gallegos, qual d'elles o mais estupido e vilhaco.
«Por emquanto está o Pará livre d'estes trinta e tres canalhas que nos favorecem com a sua ausencia!
«Oxalá que arribassem todos os ladrões e aventureiros, que chegando aqui sem vintem, sem officio nem beneficio, compram logo fiado uma taberna, assignam muitas vezes letras, sem saberem o que assignam e depois para pagarem, andam roubando aqui acolá, commettendo[240] quanta infamia e praticando toda a sorte de escandalo e desacatos; e quando vêem os gallegos infames que não podem com a carga, atiçam fogo na bodega e raspam-se para a terrinha roubando e desgraçando a muita gente!
«É d'esta escoria, d'este povoléo ordinario que veem de Portugal! Gente boa não vem de lá.
«Desengane-se quem quizer, cada um bicudo que chega ao Brazil ou é um refinado vadio troca tintas, ou um calceta fugido do Limoeiro, ou das enxovias do Carmo. A canalha bicudal tem mais medo das solitarias do Carmo do que do diabo.
«Nós queremos estrangeiros civilisados, laboriosos e honestos, emigrados amigos do trabalho; o que não podemos supportar são portugallegos que veem aos centos, todos ladrões, infames, desatinados, salteadores, assassinos e moedeiros falsos, etc. etc.
«Contra estes ladrões todo o rigor das nossas leis e a maldição do povo brazileiro caia sobre elles.
«Longe, bem longe de nós e de tudo quanto é honesto e civilisado está esta tróça estupida de gallegos. Deixem-nos, vão para o inferno, para a costa d'Africa, para as zonas torridas e humidas de Pedro Botelho, comtudo que favoreçam-nos com a sua ausencia.
«O que querem estes malvados e faccinoras gallegos n'uma terra, onde ninguem os póde vêr?!...»[53]
O que deixamos trascripto, como se pode deprehender, refere-se a portuguezes que sahiam do Brazil, contra quem, ainda que sem motivo, podiam allegar represalias; mas o que vamos transcrever é uma amostra das recepções que n'aquelle paiz hospitaleiro costumam fazer aos colonos que pela primeira vez pisam o solo brazileiro, contra quem parece que não devia haver razão de queixa:[241]
«Pilha de ladrões e velhacos.—A bordo da barca portugueza Camponeza, vinda da terrinha e aqui ancorada no dia 8 do corrente, chegaram 26 badamecos gallegos e velhacos, sujos e réos de policia. Elles que de lá vem é porque fizeram alguma... Ou fugindo do serviço das armas, deixando o pae e a mãe compromettidos, ou arrombando as prisões do Limoeiro e as enxovias do Carmo, onde é a vivenda continua da matúla indigna e safada.
«Pelo ról dos passageiros não consta que viesse um só, entre tantos ladrões, um habil pintor, um perito dentista, um intelligente agricultor, um laborioso agronomo, um engenheiro, emfim, um homem de educação e de bons instinctos. Veiu sim, uma matúla estupida de ladrões, assassinos, vagabundos, jogadores, não bastando ainda os muitos que por aqui estão!
«E não se envergonha a estupida colonia portugueza de apresentar em uma terra estranha patricios seus, filhos do decantado Portugal, como os que vieram agora na barca Camponeza e outros muitos que constantemente vêem baldeados nos porões dos navios!
«E ainda dizem que os portuguezes são nossos civilisadores...
«Barbaridade! affronta!...
«Desengane-se a negra gallegada que aqui como em toda a parte ella não passará de uma gentinha miseravel, estupida, dedicada ao roubo, ao assassinato e á introdução da moeda falsa.»
Finalmente, não chegava navio algum da Europa que transportasse colonos portuguezes, que ficassem isentos d'uma recepção tão delicada e... hospitaleira!
Transcrever taes artigos seria, alem de fastidioso, impossivel, ainda mesmo em meia duzia de grossos volumes.
A represalia contra as Farpas, não podia ser mais inconsequente.[242]
Para salvarem da responsabilidade, que tão justamente cabia á sociedade paraense, diziam os optimistas, e entre estes o auctor do Brazil, que a Tribuna não era bem acolhida por aquelle povo; mas o pasquim assim respondia aos calumniadores:
«Conhecedores como somos, d'este estado morbido da nossa sociedade, exultamos de prazer quando recebemos o nome de algumas senhoras paraenses que mandaram inscrever-se entre os assignantes da Tribuna.
«Este passo certifica-nos que o patriotismo existe mesmo no coração d'aquellas que se acham unidas por laços indissoluveis aos subditos da terra, cuja pressão combatemos.
«Essas corajosas senhoras, que lêem e applaudem a Tribuna, tão mal vista pelos—namorados dos Portuguezes (os paes brazileiros que desejam casar as filhas com compatriotas nossos), abriram um exemplo que, é de suppôr, despertará o patriotismo do seu sexo, que faz os nossos encantos, e a quem deveras desejamos maiores venturas que as gosadas hoje.
«A Tribuna não póde deixar de agradecer-lhes essa honra, de que sempre nos ensoberbeceremos, servindo-nos de estimulo para proseguirmos no caminho que tomamos sobre nossos hombros.
«Agora, que rendemos o preito devido ás nossas formosas e patrioticas assignantes, o leitor nos permitta tratemos de alguns factos.»
Na data em que isto se publicava—20 de maio de 1872—, a Tribuna fazia uma tiragem de 1:000 exemplares, e para mostrar que o apello fôra attendido pelos patriotas, aquelle numero subiu a 3:000, passado apenas um anno![243]
Tambem diziam:—o jornalismo do imperio não faz caso do pasquim; e a Tribuna fulminava assim os insultadores da sua dignidade:
«Estranha o bandido d'além mar, em um aranzel publicado no Diario da Bahia, que o Jornal do Pão de Assucar tenha tido a honra de permutar com o nosso periodico.
«Estes labregos não se conhecem!
«O Jornal do Pão de Assucar, por ser redigido por um homem de bem, foi que pediu a permuta á Tribuna, e ella acceitou. Nós permuttamos com quasi todos os jornaes do imperio, dos logares os mais longiquos, e de todos estes jornaes só ao Globo foi que da nossa parte pedimos permuta; quanto aos mais nós não fazemos mais que acceital-o se o jornal é digno d'essa consideração (sic), se não é damos-lhe um pontapé como fizemos ao Imparcial de Guimarães, porque aqui não jogamos perolas a porcos, nem damos esmolas aos cães.»
Se não fôra demasiado extenso publicariamos n'este logar a lista dos jornaes do imperio que trocavam com o pasquim incendiario do Pará.
Alguns de nossos leitores terão reparado já na insistencia de só querermos apresentar á vindicta publica a Tribuna, deixando incolumes os pasquins Regeneração e Constituição, que tambem se publicam na cidade do Pará; aquelle, orgão official do clero, e este do partido conservador. Não é esse o nosso intento, assim como o não é de isentarmos os pasquins que se publicam nas outras capitaes das provincias, ao sul da do Pará.
Assim, pois, vamos apresentar ao leitor O Argus, O[244] Estandarte, O Progresso, A Malagueta, A Voz do Bacange[54] e o Publicador Maranhense do Maranhão.[55]
Do Ceará a Tribuna Popular. De Pernambuco, o Commercio a retalho e a Luz; e antes de mencionarmos os das outras provincias, transcreveremos alguns especimens hospitaleiros d'estes pasquins... com os quaes se não ri a população.
Falla o Commercio a retalho:
«Vive o povo brazileiro sobre a pressão do mais horroroso pauperismo!
«Certamente causa espanto, que o povo brazileiro viva na miseria, sendo, entretanto, o Brazil tão rico!
«O que contribue directamente para que o povo, habitando n'um paiz tão fertil, viva opprimido pela miseria, são duas causas—a estupida, anti-patriota gestão dos negocios publicos, e o commercio a retalho ser exclusivo dos portuguezes!
«Se desde que organisou-se o governo brazileiro, este tivesse tratado de preparar o paiz, por meio de reformas liberrimas e economicas, por certo que hoje não teriamos de lamentar tantas vexações e desgraças: não teriamos de ver só portuguezes no commercio.
«Se desde que chegamos ao numero de poder tratar dos negocios da patria, nossos antigos não fossem cedendo o campo commercial aos portuguezes, incontestavelmente não veriamos hoje uma mocidade activa, intelligente, sem occupação em demanda de empregos publicos, não achando um logar no commercio, prestando-se a imposições do governo.
«Em condições tão excepcionaes, resta aos brazileiros conquistar a todo o transe o commercio a retalho.[245]
«Continuar a testemunhar o espectaculo pungente de uma mocidade entregue á triste condição de andar pelas secretarias, subir incessantemente escadas de influentes do governo, para adquirir empregos, é impossivel.
«Quando um povo chega ao deploravel estado de ver o primeiro ramo da riqueza do seu paiz entregue a estrangeiros, que escarnecem d'elle, como os portuguezes dos brazileiros, não póde conter-se.
«E, para conquistarmos o commercio, não é preciso desatinos, conquistemos sublime e francamente por meio da união, da associação, concorrendo para as casas dos nacionaes e esquecendo as espeluncas dos passadores de cedulas falsas» etc. etc.
E conclue:
«Escolha o povo: ou nacionalisar o commercio a retalho para salvar-se d'esta miseria, ou succumbir sendo victima d'ella, tendo sobre a campa o vergonhoso epitaphio—covardes! Povo de escravos!»
Nós cá não somos tão máus como o patriota João Cancio e Romualdo—redactores da asneira; nós cá bradaremos aos pasquineiros e a quem lhe dá trella:—ó mandriões! agarrai na enchada e desbravai a terra! e quando ella vos der ouro, vinde então estabelecer o commercio a retalho brazileiro ao lado do commercio a retalho portuguez!...
Mas não ha gastar cera com tão ruins defuntos. Vamos ao que importa.
Na Bahia publica-se o Alabama e o Labaro Academico.
A sua irmã Tribuna expressa-se n'estes termos a respeito do orgão dos estudantes da academia em S. Salvador:
«Labaro Academico».—Pelo paquete do sul entrado no dia 15 do corrente em nosso porto, recebemos o n.º 8 d'esse illustre periodico, redigido por abalisadas pennas.[246]
«A illustre redacção do Labaro Academico sobremodo nos penhorou, que não podemos deixar passar desapercebidas as phrases lisongeiras, que com profusão nos dirige, com as quaes illustramos as columnas do nosso periodico.
«Diz elle que dois elementos nos esmagam, dois elementos nos aviltam.
«Pois bem! Unamo-nos em um amplexo fraterno, e trabalhemos para o nosso desideratum, isto é, regeneremos o nosso paiz—a nossa liberdade.
«O Labaro que trate de expellir o primeiro de nossas ridentes plagas, emquanto nós nos esforçamos para exterminar completamente o segundo da nossa sociedade, isto é, a colonia portugueza, esse cancro que corroe as nossas riquezas, a nossa dignidade, os nossos direitos e o que temos de mais caro—a familia.
«Seja o nosso grito o mesmo que o do bardo de Albion:—Away, away!
«Assim se expressa o Labaro acerca da nossa Tribuna:
«A Tribuna periodico popular que se publica em Belem, capital da provincia do Pará, assim se exprime a nosso respeito:
«Agradecendo as palavras lisongeiras que nos dirigem os illustrados redactores da Tribuna, cumpre-nos dizer que como vós, nós tambem temos um desideratum a realisar; é a regeneração do nosso paiz—a nossa liberdade.
«Dois elementos nos esmagam, dois elementos nos aviltam.
«Nós tratamos de expellir o primeiro das nossas ridentes plagas, procuramos quebrar as cadeias que jungem este colosso Americano ao poste da servidão e degradação a que nos tem arrastado a realeza.
«Vós procuraes arrancar da nossa sociedade um[247] cancro que corroe as nossas riquezas, a nossa dignidade, os nossos direitos e o que temos do mais caro—a familia.
«Trabalhai, que o povo brazileiro vos abençôa e applaude, porque sois os defensores de seus direitos, e a posteridade registrará na historia os vossos nomes.
«Nós tambem trabalharemos sempre e sempre, e se pararmos extenuados pelo cansaço, outros tomarão o nosso logar. Away, away.»
No Rio de Janeiro, finalmente, o jornal a Republica, que fôra redigido por uma pleiada de escriptores celebres no Brazil, comprehendia os principios democraticos ataçalhando a colonia portugueza e oppondo-lhe a barreira de preconceitos mal entendidos, quando a sublime idéa manda derrubar as barreiras que ante si construiram os despotas das nacionalidades!
Não temos presente nenhum exemplar d'este periodico, mas a Tribuna paraense, accusando a recepção, da Republica assim se exprime a seu respeito, em 6 de janeiro de 1874:
«Já não estamos sós:—Pernambuco tem o Commercio a Retalho, e no Rio, a Republica trata de despertar a attenção publica sobre o elemento portuguez tão numeroso e hostil á nacionalidade brazileira.»
A Nação, do Rio de Janeiro, jornal semi-official do governo presidido pelo visconde do Rio Branco, álem de outros artiguinhos capciosos, publicou o seguinte, que o pasquim paraense transcreveu:
«Guita! Guita!... Segundo os diccionarios portuguezes significa esta palavra—barbante cordelinho de linha.—Os gaiatos de Lisboa, porém, conhecem pelo nome de guitas—os soldados de policia. É esse o termo que se pretende hoje popularisar entre nós!
«E são esses estrangeiros (os portuguezes) os que procuram animar desordens, aconselhar o desrespeito[248] á auctoridade, justificar quanto excesso e escandalo se pratica!
«O grande Jornal do Commercio tambem toma parte n'essas brilhantes manifestações, embora com a manha que lhe é habitual. Deixa de fallar nos attentados dos seus queridos compatriotas, e vem dizer que os agentes de policia estão praticando excessos condemnaveis e promovendo desordens, quando toda esta cidade sabe que a prudencia da policia tem ido até á fraqueza.
«O que é certo é que os brazileiros que servem na guarda urbana têm sido aggredidos, insultados e espancados por estrangeiros turbulentos e sem educação; e o que é certo tambem é que esse estado de cousas não póde continuar.
«Estamos muito atrazados ainda, mas regeitamos a civilisação dos carroceiros do lixo.[56]
«Ah! se a centessima parte d'esses factos se desse em qualquer das provincias do norte, no Pará, por exemplo!...»
Agora vejamos quem são os taes guitas do Rio, que a Nação parecia defender.
Falla um correspondente da Tribuna, estabelecido na côrte do imperio:
«Amigos—não sei o que escrever, ou para melhor dizer, não ha novidades a não ser chuva, e muita chuva, que tem sido causa de graves e lamentaveis desgraças, mas sempre a maldita e vil gentalha gallega aproveitando-se das desgraças alheias para o seu nefando fim—o roubo!
«Como verão das noticias que abaixo seguem extrahidas do Jornal do Commercio e do Diario do Rio, um soldado de policia (seja dito de passagem que dois terços dos soldados do corpo de policia d'esta triste e desgraçada côrte é gallegada!!!) aproveitando-se da occasião[249] em que fazia guarda á casa do conselheiro Menezes guardou um relogio com corrente de ouro e um paliteiro de prata! Foi preso, encontrando-se-lhe o roubo!!»
Conclusão:
Se a policia era insultada pelos estrangeiros carroceiros do lixo, a Nação tirava a desforra, defendendo os seus compatriotas; mas se a policia roubava os relogios e os paliteiros de prata, o correspondente da Tribuna dizia de passagem, que dois terços de soldados do corpo de policia era gallegada!
Isto não se commenta.
Assim, pois, ahi fica demonstrada a differença que existe entre os hydrophobos de cá e os hydrophobos de lá.[250]
Para que seja fiel a historia dos tumultos no Pará, em 1874, e para que não haja quem venha negar factos consummados, é preciso dar noticia de alguns documentos que para ahi existem dispersos, e que desappareceriam se não fôra o nosso cuidado de esclarecer a verdade; dando logar o desapparecimento a que futuros historiadores, a titulo d'um patriotismo inconcebivel, desvirtuassem, com seus falsos raciocinios, os lamentaveis acontecimentos occorridos no ultimo semestre d'aquelle anno, n'uma das provincias mais ricas do imperio americano.
Quantos haverá ahi que nos censurarão o vasculharmos esses documentos, que, no entender dos optimistas deveriam ficar esquecidos, para salvaguardar conveniencias mercantís!
E deverá o homem digno esquecer a verdade, para attender a essas conveniencias?
Não, responderão aquelles que, como nós, só vêem no futuro o juiz imparcial de seus actos.[251]
«Sabel-o-ia a historia, se os aios e confessores de principes e de reis, em vez de serem bonzos, fakires e derviches de um credo intolerante e sangrento, e que tem no seu proprio symbolo o germen da sua total aniquilação, fossem chronistas severos e verdadeiros da corrente das idéas, e das leis immutaveis do progresso, na marcha logica e fatal do desenvolvimento da humanidade».[57]
É assim que o illustre escriptor que vimos de citar condemna os melindres dos optimistas systematicos; e nós somos da mesma opinião. Embora se diga que já não existem esses bonzos, fakires, e derviches, o que é certo, é que no referir da historia, ainda ha condescendencias improprias de historiadores imparciaes, e por consequencia d'esta época de liberdade, condescendencias que hão de concorrer poderosamente para que á historia do presente, que devera ser um edificio mais solido do que a historia do passado, faltem os alicerces que a tornariam indestructivel.
Se os receios de que se acercam os que se dizem auxiliares da historia do presente, que ha de ser coordenada no futuro, tivessem por base o temor dos principes e dos reis, escudados na força clerical, que n'outras épocas exercia o seu poderoso influxo, á força dos martyrios da polé, a que não poderam resistir os Galileos da sciencia; era até certo ponto razoavel a condescendencia filha do medo; mas que os receios tenham a sua origem nas contemplações inconfessaveis, isso é que é imperdoavel a quem faz a apologia da liberdade, que veio em auxilio da razão, sem a qual não póde ser escripta a verdadeira historia.
Concordando plenamente com o illustre litterato, que viemos de referir, é preciso provar tambem que não somos bonzos nem derviches do mercantilismo,[252] que, como os reis e principes de antigas épocas, pertende, na actualidade, avassalar a razão.
Eis o que temos feito e continuaremos a fazer. Pena é que nem todos nos sigam o exemplo.
Ás noticias atterradoras do Pará em outubro de 1874 que fizemos transmittir pelo telegrapho, responde o governo portuguez, mandando para as aguas do Tocantins, o aviso de guerra Sagres.
O governo brazileiro, tambem reforçava, com a canhoneira Mearim e a corveta Trajano, a sua esquadrilha do norte.
A Allemanha mandava a corveta Victoria.
Vejamos como a Tribuna recebe a Sagres, em seu numero de 17 de novembro, e quaes as calumnias que proclama sobre a sua guarnição.
Transcrevemos na integra a recepção por que ella déra causa ao conflicto entre um dignissimo official da nossa armada e a redacção do pasquim, conflicto que não deve ficar no escuro para bem da historia.
Falla o papel incendiario:
«Amanheceu ancorada em nosso porto no dia 11 do corrente, esta immunda esterqueira da marinha de guerra portugallega.
«No dia seguinte, ao da chegada os jornaes da nossa imprensa, que seguem o triste e desgraçado fadario de especular com a colonia portugallega, bajulando-a por todos os lados, davam essa noticia da forma seguinte:
«O Liberal do Pará.
«Corveta Sagres.—Amanheceu hontem ancorado em nosso porto este elegante vaso de guerra da marinha portugueza.
«Diario do Gram-Pará.[253]
«Corveta Portugueza:—Está desde ante-hontem á noite ancorada em nosso porto a corveta Sagres, da armada real portugueza. O gentil navio trouxe 19 dias de viagem de Lisboa, tocando em Cabo-Verde. Commmanda-o o sr. capitão tenente Francisco Teixeira da Silva considerado pelos seus honrissimos precedentes como um ornamento de sua classe. A Sagres arquêa 813 tonelladas, tem machina de vapor da força de 300 cavallos dynamicos, é armada com 4 canhões e tripulada por 138 praças.
Seja bemvinda ás aguas do Amazonas a gentil corveta.»
«Diario de Belem:
«A corveta Sagres.—Esta corveta da marinha de guerra portugueza, amanheceu hontem fundeada em nosso porto. Trouxe de Lisboa por S. Vicente 13 dias de viagem.
«É do porte de 813 toneladas, da força de 300 cavallos, monta 6 peças e traz 138 praças de guarnição.
«É commandada pelo sr. capitão tenente Francisco Teixeira da Silva, um dos ornamentos da marinha portugueza, e vem estacionar em nosso porto com o fim de proteger os seus compatriotas, aqui expostos ao furor de uma horda de canibaes.»
«Ora, será a colonia portugallega tão bruta, não haverá no meio d'ella, ao menos um portugallego, que tenha um pouco de senso, para vêr n'aquellas palavras a mais negra irrisão?
«Ora digam-nos agora, portugallegos, não será uma grande caçoada, uma negra irrisão, chamarem a vossa corveta Sagres:—gentil, elegante, protectora etc., etc.?
«Safa! que ser-se cego assim já é demais, e fazer-se tanto assim dos outros tolos é abusar-se muito!
«Pobres portugallegos!
«Ficae certos, que nós somos vossos inimigos, havemos contra vós queimar até o ultimo cartucho, e derramar[254] até a ultima pinga de sangue, porque nos fazeis todo o mal possivel; mas não vos illudimos, de vizeira alçada fallamos a linguagem da franqueza e do positivismo, não nos encobrimos com o manto infame da hypocrisia e falsidade sómente para vos sugar os cobres, como esses miseraveis especuladores do Diario de Belem, Gram-Pará e Liberal do Pará.
«Ficae certos, que quando chegar a hora tremenda da revolução, estes vossos amigos de hoje serão os vossos mais cruentos inimigos, para que elles não sejam victimas da indignação de seus proprios patricios. Elles, os vossos amigos hão de querer rehabilitar-se perante o povo brazileiro, e para isso mais depressa que nós vos mandarão cear com Belzebuth!
«Esperem, esperem e verão como os factos e os tempos se encarregarão de corroborar estas nossas opiniões.
«Crêde-nos que, quando cahir entre nós o raio flammejante da revolução é para fazer uma unica e nobre divisão: de um lado—brazileiros, do outro lado—portugallegos.»
No mesmo numero, a proposito de um baile no Cassino:
«Sympathicas leitoras.—Na carencia de divertimentos, festas e prazeres bateu-vos á porta a festa do glorioso prelado de Sebaste, S. Braz, o milagroso advogado das molestias da garganta.
«Bailes não houve... Alto lá, musa: olha que já me fizeste pregar uma mentira ás benignas leitoras!
«É verdade que eu bem podia vender este peixinho ás minhas delicadas leitoras, porque eu não vi nenhuma nos salões do Cassino, mas em descargo de minha consciencia e respeito ás minhas caras leitoras, não quero, não posso, não devo mentir.
«Portanto, houve no sabbado baile no Cassino; baile, que os seus maiores dilectantis esperavam ser de...[255] grande gala, pois para isso foi convidada toda a officialidade da Sagres.
«Mas oh! bellas leitoras, grandissimo fiasco! Só vi alli meia duzia de moças e outro tanto de moços brazileiros que retiraram-se logo, onde entre elles veiu-se escorregando o vosso chronista, porque a coisa não cheirava lá muito bem.
«Gostei, leitoras, gostei de não vos ver alli n'aquelles agallegados salões do Cassino.
«Pois não! Quem mais dignos de dançar comvosco se não os vossos patricios, creaturas de corpos leves e ageitados, limpos e aceiados?
«Haveis trocal-os pelos corpos dos portuguezes immundos, insupportaveis e pezados como um cêpo?
«Ora essa é o que faltava!
«Arranjem-se p'ra lá... como poderem, comtanto que as nossas amaveis leitoras não estão resolvidas a dançar um fado em lugar d'uma polka, e aguentarem com esses alarves desenfreados.
«E depois de termos os brilhantes salões do Club Militar, o que irão fazer as queridas e patrioticas leitoras nos agallegados salões do Cassino?
«Quem é que troca ouro por couro?
«Gostei, leitoras, crêde-me que vós me enchestes as medidas, gostei de ver a prova de patriotismo que déstes não comparecendo no lusitano baile do Cassino. Os portuguezes quando vos pódem metter as botas não vos guardam deferencia—é bastante sêrdes brazileiras para elles vos calumniarem. Compenetrae-vos d'isto e procedei sempre como agora, que o vosso chronista agradecido e cahido vos beijará respeitosamente as setinosas mãos.»
Este artigo é demasiadamente comico, para dever merecer os nossos reparos; comtudo acceitamos a prova de patriotismo das leitoras de setinosas mãos![256]
Agora venha a calumnia. Tem a palavra ainda a Tribuna:
«Hontem fôra apprehendida pelo patrão do escaller da alfandega, dous saccos com carne secca que segundo ouvimos dizer iam com destino á taberna do Pechincha (portuguez) ao largo das Mercês.
«Não teriam desembarcado da Sagres?»
Ainda mais:
«Como mudam os tempos! Outr'ora os ventos do largo nos traziam os aromas exquisitos, os perfumes inebriantes das flôres silvestres, d'essas ilhas virgens que nos demoram ao N.
«Hoje, trazem-nos o halito impestado d'essa gente portugallega, as emanações putridas e abafadas d'esse fóco de peste que se chama Sagres, os miasmas d'esse trapo bicolor impregnado de sangue africano e coberto de maldições horrendas!»
Mais:
«Visita presidencial.—Sabbado pela uma hora da tarde, o ex.mo sr. presidente da provincia, acompanhado do chefe do mar, inspector do arsenal de marinha, chefe de policia, guarda-mór da alfandega e o consul portuguez, foi fazer uma visita ao chaveco Xagres, ora ancorado em nosso porto, estupidamente appellidado de crubêta pelos estupidos portuguezes. Não sabemos porque não lhe chamam náo.
«Ao atracar o escaller em que ia o presidente, o commandante da alambasada maruja deu signal a esta que subisse ás biergas, e logo, á guisa de preguiça quando se arrasta por algum cipó, eil-os se agarrando pelas enxarcias, meia duzia de gallegos sabujos, que são os de que se compõem a crubêta belha e remendada.
«Logo que chegaram ás gabias, começaram a dar[257] bibas ao pabilhão auri-berde, ao imperadore do Vrasile e não sabemos que mais...
«D'est'arte fizeram uma parodia burlesca e mais ridicula do que as outras nações, em caso identico, costumam fazer.
«Ao retirar-se o presidente, como é estyllo em taes circumstancias, salvaram o castello e a canhoneira Mearim, ficando (oh! vergonha das vergonhas!) recolhida ao profundo silencio a crubêta Xagres, por achar-se impossibilitada...[58]
«Que fiasco, portuguezes!
«Comquanto tivessemos Portugal como a nação mais miseravel da Europa, não lhe dispensando a minima importancia, todavia não tinhamos ainda formado uma idéa tão exacta da sua impotencia e nullidade na ordem das cousas.»
O artigo que vamos transcrever deu causa ao conflicto do dia 21 de novembro de 1874:
«Apesar do desapontamento da colonia portugueza, que esperava um navio de guerra de primeira classe para metter-nos medo, em vez da falua Sagres, que só tem servido para ridiculos, consta-nos que o commercio já nomeou uma commissão, afim de promoverem uma subscripção para os bailes que pretendem dar no salão do Albino, ao largo da Trindade, e no Hotel Central, á estrada de Nazareth.
«Tiveram a honra da nomeação para a commissão os honrados negociantes José Solambada, Joaquim Gallinheiro, Bento de La-Rocque, Alivio Ladrão, José[258] Coelho, (o balão) e Manuel dos Tomates, com os quaes nos congratulamos á vista de tão acertada escolha.
«Medeiros Branco, Frias e o compadre Antonio Muchila foram encarregados para fazerem as poesias analogas ao acto, nas quaes cantarão as Glorias de Alcacer Quibir e as do Rei chegou, depois do que o Club Philarmonico tocará a caninha bierde.
«Ai! que folia! que pagode!
«Sagres, é o gentil buque-luso com quatro canhões, dois por banda, montados em rodisios de cana da India, fundeada em nosso porto, hasteando galhardamente el pavilhon das gloriosas quinas portuguezas, tendo attrahido á flôr d'agua até os bacus, tralhôtos e candirus para a admirarem! Caramba!
«Os canhões são tão grandes como aquelles que os argentinos mandaram fundir, os quaes não cabendo nos seus arsenaes, tiveram de metter os arsenaes dentro dos canhões! Pumpum!
«Veiu a bordo da Sagres gentil, um grosso tonel de azeitonas arvorado em mestre, assemelhando-se muito pela figura grutesca a um d'esses patrões de falua do Tejo.
«Quem sabe se não mandaram esse loup de mer para cá com o unico fim de amedrontar-nos com sua figura obesa e ratona?
«Portugal tem garbo em presentear-nos com salchichões d'esses!
«Pedimos ao sr. Furman que não se esqueça de phothographar essa raridade, pois todas as vezes que vem á terra faz a população morrer de riso.
«Os janotas de pince-nez la del buque com effeito nada arranjarão aqui, porque já são mortos Villarés e Chicos Ruivos... restando apenas o Caleijão.[59]
«Consta-nos mais que a guarnição tem-se agradado[259] tanto da terra, que toda ella quer desertar para aqui reforçar o trafico das carroças e pipas d'agua» etc.
Isto e muito mais foi publicado no n.º 259 da Tribuna, já referido; mas esta ultima parte dos insultos á guarnição da corveta, e especialmente aos janotas de pince-nez, os segundos tenentes da armada real, Carlos Krusse e Marques Costa, deu aso aos novos tumultos do dia 21 que ainda a moderação mais evangelica não poderia evitar.
Carlos Krusse, explica assim as novas occorrencias, em uma carta enviada do Pará á Democracia de Lisboa com a data de 28 de novembro de 1874:
«Sr. redactor.—Depois de commigo se haver dado um caso, que os jornaes da localidade occultam, e que o papel Tribuna procura deturpar, não ficarei silencioso á partida de noticias para ahi. Devo aos portuguezes a narração verdadeira do facto commigo dado. Para os da nossa colonia do Pará é trabalho inutil expôr o que todos elles sabem. Para Portugal são precisas algumas palavras.
«Li um artigo que, com a epigraphe Projectos de baile em honra del buque Sagres, vem publicado no jornal a Tribuna de 17 de novembro do corrente, e vendo o periodo—Os janotas de pince-nez—procurei no escriptorio da redacção um tal homem, ou cousa que o valha, que se responsabilisa pela folha.
«Mandou-me entrar esta repugnante creatura, e depois de lhe pedir com a maior prudencia o ultimo numero do jornal que publicou (o que me queria offerecer, e que, não acceitando, paguei por 800 réis) mostrei-lhe o artigo que ambiguamente me podia dizer respeito.
«Leu, e ao terminar, pedi-lhe me declarasse se era de mim que tratava, para lhe exigir prompta satisfação. Declarou-me terminantemente por duas vezes, (tantas por mim exigidas) defronte dos seus empregados,[260] que nada comigo tinha relação, e que mesmo a palavra mestre, no artigo empregada, se não referia a official algum da corveta, mas sim a alguem da prôa.
«Agora este ente repugnante, vergonha da classe militar (ex-capitão paraguayo) e dos homens de bem, quer, em seus covardes escriptos, mascarar de prudencia o que n'elle foi falta de coragem, para sustentar o que havia escripto e desafrontar-se, quando pouco depois de eu ter entrado na redacção, justifiquei a minha tardança em ali ir, na falta de leitura d'um papel, que lhe disse ter «por unico programma a calumnia e a infamia, contra um povo, contra uma nação de que supponho não conhece a posição geographica».
«A colera reprimida d'essa abjecta creatura obrigou-a a mentir perante o presidente da provincia, queixando-se de que eu lhe havia assaltado a casa!
«Um unico homem, não manejando arma alguma, usando de todo o cavalheirismo, assalta a espelunca de um negro, dentro da qual estão mais cinco ou seis?
«Isto faria rir, se não provocasse dó.
«Na occasião em que procurei esta cousa de fórma humana, este menino da Tribuna, confesso-lhe sr. redactor, que imaginei que ao encontrar um testa de ferro acharia tambem n'elle os brios de homem.
«Reconheço hoje que tratei com um garoto de praça publica, que nos faz caretas ao voltarmos-lhe as costas, e a quem devolvo os epithetos, calumnias e infamias, que me dirigiu e que ahi leram.
«Que precisaria um homem que declara agora uma coisa, e que logo publica um pasquim negando os factos passados na sua officina, presenceado pelos «seus dignos empregados e ouvidos pelos muitos grupos que fóra escutavam e que na minha saída vi?»
«Poder-se-ha usar com homem de tal caracter os meios empregados entre cavalheiros, entre homens de bem?[261]
«Não.—Disse-m'o uma grande parte da colonia portugueza aqui, aconselharam-me todos os meus camaradas.
«Que resta? O desprezo, a entrega de tal procedimento á apreciação do publico e o desforço que se toma para com um garoto quando o acaso depare occasião.
«Não responderei mais, como fazem todos os officiaes da Sagres, ao que diga de futuro a tal Tribuna, e só peço com fervor a chegada de uma occasião propria para o ultimo e unico desforço.
«Convença-se Portugal, de uma vez para sempre, que o seu apreciado Revalescière Prudencia! não serve, quando os acontecimentos chegaram a tomar o corpo que attingiram os do Pará.
«Uma satisfação das affrontas dirigidas ao soberano e á nação, exigida, se preciso fôr, com a força de quatro corvetas, não aqui, mas no Rio de Janeiro, affigura-se-me ser a ultima, mas necessaria solução!
«Desculpe, sr. redactor, o apressado d'estas linhas, que teem tanto de mal escriptas quanto de verdadeiras, e creia no respeito que merece a quem é—De v. etc. C. Krusse.»
Marcelino Nery que se humilhára perante o bravo official, levantou a caricata grimpa pela seguinte forma, n'um avulso—Boletim da Tribuna, quando o portuguez digno lhe dera as costas como a vil sicario:
AOS BRAZILEIROS
«Acabamos de soffrer a mais revoltante affronta, que não foi, como devera ser, punida para não darmos logar a que ignobeis detractores da honra nacional cuspissem infamias cruelissimas á face d'este povo nobre e heroe na paciencia com que tolera os ultrages da colonia portugueza.[262]
«Povo paraense! Ao meio dia de hoje foi a nossa officina invadida por um individuo, cujo nome, occupação e qualidade não indagamos, nem desejamos saber e que cheio da mais sôez prosapia e pela forma porque achava-se ajaezado, disse e acreditamos ser official da carveta Sagres.
«Armado sem duvida e no firme proposito de pôr em pratica um crime hediondo, e na louca persuasão de pratical-o e ficar impune, esse individuo, depois de invadir a nossa officina e encontrar da parte de seu proprietario um cavalheirismo a toda a prova, recuou de sua tentativa e tomou o expediente de proromper, n'uma grita crapulosa, em insultos e injurias contra a honra nacional, contra os brios paraenses, a ver, se arrastando ao extremo da indignação ao capitão Nery, o provocava a um desforço legal que desse-lhe brecha a converter-se de bebado em audacioso malfeitor.
«Foi preciso que o capitão Nery se revestisse da maior prudencia e em termos habeis repellir de dentro de sua propriedade um insolentissimo e arrojado lacaio com fumaças de nobre... que procurava ser castigado a vergalho, se por ventura em outro paiz se desse semelhante affronta.
«Saibam os portuguezes e o mundo inteiro—que se não fossemos generosos, se não tivessemos nobresa de alma, se fossemos selvagens, o infame deixaria os miolos ao estampido do revolwer sobre o chão que pisamos: só a tiro se poderia castigar a selvageria de um javardo agaloado, que teve a suprema audacia de invadir a nossa officina.
«Ninguem dirá que, dentro d'ella um bandido ou bebado pagou com a existencia atrevimentos escarrados em nosssa honra e patria.
«O facto, que expomos, foi levado ao conhecimento do ex.mo sr. presidente da provincia, que prometteu immediatas e energicas providencias com que contamos.[263]
«Percheiro que transmitta esta noticia invertendo a acção e os actores.»
A consciencia dizia-lhe que no boletim deturpára a verdade dos factos; por isso nos impunha aquella especie de ameaça, para que os não illucidacemos em nossas partes telegraphicas, o que já mais elle ou qualquer tribuno façanhudo conseguiriam.
Por isso e por obrigação do nosso cargo fizemos passar para o sul as seguintes partes telegraphicas:
«(21-11-74) Tribuna violentissima contra guarnição corveta; official mais offendido pedio satisfação á redacção. Opinião publica reclama termo estado cousas póde ter graves resultados.»
Antes de proseguirmos vamos dar uma explicação:
O official da Sagres só pedio satisfação quatro dias depois, por que só então lhe constára o insulto. E se não demos parte, no dia 7, da linguagem indecente da Tribuna, era por que nunca faziamos caso d'ella, mas se n'este momento a destinguimos foi pela necessidade que tinhamos de noticiar os acontecimentos gravissimos que se annunciavam.
Aquelle telegramma passou pelo cabo ás 2 h. da tarde, pouco mais ou menos. Marcelino Nery, fôra-se queixar ao presidente, da supposta affronta do official portuguez; e como aquella auctoridade o recebera indifferentemente, o capitão paraguayo, para amedrontar o presidente e a população fez publicar o tal boletim que reproduzimos, ao anoitecer d'esse mesmo dia.
Eis o telegramma em que davamos parte d'esta publicação:
«(21-11-74) Tribuna publica boletim aos brazileiros contra official fôra pedir satisfação. Reina panico.»[264]
«(22-11-74) Mercado falta dinheiro. Espere serviço.»
No dia 22 de tarde, á hora a que expediamos esta parte, dizia-se que os tribunos fariam reunião na praça de D. Pedro II. Foi este boato que deu aso áquella prevenção, para sul, de—espere serviço; e a prova eil-a:
«(23-11-74) Constava tribunos fariam meeting. Chuva continuada evitaria? Policia estava a postos.»
A chuva foi torrencial durante toda a noite; não obstante, nós e a policia estavamos a postos.
Foi no dia 21 de novembro que o presidente Azevedo expedira para o seu governo o importantissimo telegramma que mencionámos a paginas 7 das Questões do Pará, dia em que egualmente fôra expedida para Londres a não menos importante parte, que egualmente transcrevemos no referido livro a pag. 10.
Mas não ficou aqui a questão. Ainda fizemos expedir mais telegrammas, que, julgamos indespensavel transcrever aqui.
E se os não publicámos ha mais tempo, foi porque esperavamos fazer sahir á luz um outro livro, que não publicámos, por que como já dissemos, nos subtrairam a collecção de todos os jornaes que se publicaram no Pará, no ultimo semestre de 1874, em cujos artigos, de origem brazileira, escudariamos as nossas proposições; collecção que pode ser examinada a todo o tempo por escriptores brazileiros, que mais tarde pretendam escrever a historia dos tumultos do Pará n'aquelle anno.
Mas vamos á historia dos telegrammas.
Os espiritos conservavam-se agitados, especialmente, desde o dia 21 de novembro.
Esperavam-se, a toda a hora, providencias do governo[265] central, com respeito ao telegramma do presidente. Até que afinal, o governo deu um ar da sua graça, declarando ao seu representante no Pará, que procedesse dentro dos limites da lei!
Os tribunos que até alli tinham zombado de tudo e de todos, continuaram a zombar, não só da lei, como da decisão do governo, cuja noticia correra logo de bocca em bocca, não obstante a tal decisão ser secreta como secreto tinha sido o telegramma do dia 21 de novembro, que nós devassamos!
Quem padecia mais com as indicisões do governo central era o commercio; por isso expedimos, no dia 25, a seguinte parte telegraphica, resultado das repetidas conferencias que tivemos com seus representantes:
«Bancos restringiram operações. Tribuna sahida hoje mesma linguagem.»
A Tribuna não podia deixar de se mostrar fanfarona, á vista dos medos do governo.
O presidente, não podendo fazer cousa alguma dentro dos limites da lei, foi para o jornal official proclamar ao povo contra os excessos da Tribuna e seus apaniguados.
Compare-se esse documento publicado nas Questões do Pará, com o extracto que d'elle fizemos em nosso despacho telegraphico expedido para o sul em 26 de novembro, e ver-se-ha que a consciencia e não o espirito de nacionalidade, presidira sempre aos nossos actos de agente fiel da companhia Americana.
É este o despacho:
«Jornal Official diz chegou occasião lamentar estado provincia que retrograda gigantescamente. Japão civilisa-se, Pará passa terra selvagens. Ideias tríbunicias defendidas por influencias. Edificações paralisadas, decrescimento rendas, commercio desanimado, telegrammas para Europa suspendendo pedidos. Tribuna cessaria publicação, mas agenciaram subscripções;[266] emissarios foram intimar publicação. Conclue—governo disposto manter tranquilidade. Não tolera empregados devem ser ordem, estejam collocados á testa movimentos tribunicios. Fez sensação artigo. Reuniões influentes casa Tribuna.»
Por aqui póde vêr o sr. Augusto de Carvalho e os seus dignos correligionarios optimistas, que com a propaganda da Tribuna do Pará, não riam nem folgavam os leitores, como riem e folgam com a leitura dos nossos jornaes burlescos.
Em 27 de novembro ainda não tinham socegado os espiritos. A prova d'isso está nos telegrammas do presidente do Pará, publicados na folha official do Rio de Janeiro, e que já transcrevemos em outro logar.[60]
Já viram os leitores, que, comnosco estavam interessados na questão: o presidente, os jornaes de todos os partidos, exceptuando a Constituição e a Tribuna, o corpo commercial e por ultimo, os officiaes da Sagres, que expediram pela agencia americana para o Diario Popular, o seguinte telegramma que não chegou ao seu destino, e para cuja publicação estamos auctorisado:
«(27-11-74.) Diario Popular.—Lisboa. Tribuna insolentissima. Officiaes Sagres prohibidos ir terra. Humilhantissima posição. Providencias immediatas.—Maia.»
O seguinte despacho fôra expedido por nós em 28 de novembro:
«Constituição responde ao Jornal Official, refutando.[267] Opina publicação Tribuna, mudando linguagem. Gran-Pará acompanha Jornal Official.»
E, effectivamcnte, a Tribuna acceitou os conselhos da Constituição!...
Eis como o deputado, Wilkens de Mattos, esclarece a questão, no Diario de Belem de 2 d'agosto de 1874.
E preferimos esta á nossa opinião, porque em summa...somos portuguez!
Falle o sr. Mattos:
«O estylo é o homem, e os artigos da Constituição photographam fielmente a indole de seus redactores.
«Provocado por ella de um modo improprio de cavalheiros, insultado em uma linguagem que só se depara nos vocabularios dos homens da mais infeliz camada da sociedade, corri á imprensa para lançar de sobre mim a responsabilidade que a Constituição me emprestava, e para externar minha opinião a respeito da questão, que tanto tem agitado e prejudicado a sociedade paraense, e levantado grande celeuma contra nós no extrangeiro. Era um dever imprescindivel, a quem, como eu, presa sua terra natal, respeita a opinião publica e quer manter um caracter illibado; mas a Constituição por motivos que me são estranhos, surprehendeu-me mais uma vez com a sua linguagem, que me furto ao desprazer de qualificar. Ninguem, que não esteja dominado de um odio brutal e de prevenções irracionaes, deixará de lastimar a linguaguem de que, a meu respeito, fez uso o jornal, que se diz orgão do partido conservador d'esta provincia, jornal que foi creado tambem para regenerar a imprensa paraense, cuja linguagem, classificada de polluta, elle tanto censurou e condemnou no começo de sua estrêa.
«A Constituição pensou que me abateria e me faria recolher ao silencio, ou provocaria de minha parte represalias na mesma phraseologia com que me aggredio. Enganou-se. Os seus insultos servirão para provar[268] contra ella, que não occulta o seu rancor, o seu espirito abocanhador sempre que tem de derigir-se a quem ousa decahir de suas graças.
«A Constituição mente assim ao seu programma, compromette o seu presente e cava a ruina de seu futuro.
«Devia ella manter-se em terreno decente, usar de linguagem intelligente e circumspecta, propria de cavalheiros, ainda mesmo combatendo seus adversarios politicos, ou aquelles que, sendo conservadores, não concordam com a sua politica. Se a Constituição não respeita as opiniões de seus adversarios ou divergentes, se ella não a procura vencer por meio da intelligencia, empregando a linguagem comedida e decente, como quer ser tratada e considerada?
«Não pense que o insulto lhe dará nunca ganho de causa. Esse meio é reprovado nas sociedades cultas, e só lhe pode attrahir o despreso.
«Lastimo, pois, mais uma vez a trilha errada que procurou a Constituição, e apesar de gravemente offendido por ella, faço cordeaes votos para que seja a sua redacção mais feliz nas suas inspirações, afim de não prejudicar a sociedade em que milita.
«A Constituição sabe bellamente, que na camara temporaria, de que tenho a honra de fazer parte, nunca se tratou de discutir os males que a propaganda e lingoagem da Tribuna teem causado a esta provincia. Se alí se tivesse tratado d'isso, póde estar a Constituição certa, de que externaria eu com toda a franqueza a mesma opinião, que já externei pela imprensa, no meu ultimo artigo. Esperaria, é verdade, e unicamente por um rasgo de cortesia, que os meus collegas, representantes do Pará, primeiro se manifestassem a respeito; mas quer elles o fizessem, quer não, não ficaria occulto nas dobras do silencio, muitas vezes conveniente áquelle que não tem a coragem de seus actos, e que prefere jogar em perpetuo carnaval.[269]
«Não ha consideração alguma que me inhiba de manifestar-me com a isenção d'espirito e com a franqueza a que tem direito os mais caros interesses desta abençoada terra em que tive o berço, e de suas relações com uma nação amiga, da qual descendem os brazileiros, e com a qual se acham estreitamente ligados pelos laços mais estimaveis.
«Os augustos chefes das duas nações são parentes mui proximos. Portugal exercita com o Brazil avultado commercio; envia-nos os seus productos em troca dos nossos. A mesma religião, a mesma lingua; os mesmos costumes. Porque hesitar diante da propaganda que nos faz passar como um povo que vae perdendo a civilisação e ensaia actos barbarescos? Não vejo rasão.
«A Constituição convida-me a declinar os nomes dos seus redactores que cultivam relações pessoaes e exercem influencia sobre o proprietario da Tribuna. Para que esse convite?
«A Constituição, de certo, não quererá que eu me constitua delator. Nunca o conseguirá. Deve ella ter consciencia de que eu estou de posse de muitos de seus segredos, e deve fazer-me a justiça de crêr-me incapaz de fazer publico uso d'aquillo que outr'ora me foi informado. Negar é um impossivel, que alguns de seus actuaes redactores fizeram publicar na Tribuna escriptos seus. Alludo apenas a esta circumstancia, porque não ha quem a ignore.
«Não é em um artigo escripto ao correr da pena, que o deverei fazer.
«Não tenho embaraço algum a pronunciar-me clara, sincera e positivamente, não só contra a propaganda da Tribuna, mas ainda e sobretudo contra a linguagem de que tem sido victimas muitos dos subditos de S. M. Fidelissima, que são honrados negociantes e ricos proprietarios n'esta capital; propaganda e linguagem que[270] teem mareado o bello conceito que já gosavamos, nós os paraenses, na Europa e nos Estados-Unidos.
«Eu que caminho para o ultimo quartel da vida, que não estou atado ao orçamento da provincia, que nada pretendo d'ella, que tenho procurado servir ao paiz com o zelo e capacidade, que Deus me concede, lastimo do fundo do coração, que ainda haja paraense que não queira reconhecer o immenso mal moral, economico e politico, que será aggravado de dia em dia, causado á provincia pelas doutrinas erroneas, e linguagem condemnaveis do obscurantismo, do inimigo da paz e socego das familias, e do progresso desta estrella, cujo brilho se procura embaciar! Lamento isto do fundo d'alma.
«Meus sinceros parabens á Constituição pela lisongeira e expontanea defeza que a Tribuna lhe faz em seu ultimo numero.
«Não leve ella (a Constituição) a mal que eu lhe diga: quem póde o mais, póde o menos.
«Quem teve forças para obter que a Tribuna moderasse a sua linguagem, poderia, se tivesse querido, conseguir ou tolerar, que esse periodico deixasse de apparecer, ainda que fosse temporariamente.
«Não veja n'isto uma insinuação, ha franqueza, e firme convicção.
«Desde que a Constituição aberrando do seu programma primordial, acha prazer em jogar-me doestos e injurias, devo declarar-lhe: que não sei esgrimir com mascarados, nem usar de armas que infamam a quem as emprega.
«Na arena em que o homem educado deve sempre encontrar-se, no uso do raciocinio, na applicação honesta dos factos, respeitando-se a verdade, não hesitarei em encarar a Constituição; mas, diante do insulto e do trato indigno de cavalheiros, não me encontrará.[271]
«Fica ao seu sabor escolher; prosiga, porem, como quizer, que, de uma vez para sempre deve convencer-se, que não responderei ás injurias nem aos insultos: porque quem insulta á sombra de anonymo é só digno de despreso.»
«Wilkens de Mattos.»
Depois d'isto digam os optimistas que somos pessimista systematico contra as cousas brazileiras.
Se aos brazileiros se concede a liberdade de condemnar os excessos commettidos na sua patria, aos portuguezes que soffreram e continuam a soffrer as consequencias d'esses excessos, não deve ser negada essa liberdade.
Assim pois, continuemos a transcripção dos despachos telegraphicos que fizemos expedir do Pará para conhecimento do mundo inteiro, que então desejava estar inteirado do incremento da revolução contra portuguezes:
«(2—12—74) Commissão, praça composta de brazileiros, portuguezes, inglezes, allemães e francezes em nome do commercio do Pará, officiaram hontem ao presidente da provincia, confirmando decadencia, crise medonha, sobresalto, devido a propaganda injusta, criminosa contra nação amiga. Louvam procedimento do presidente da provincia. Firmeza, linguagem energica, artigos na Folha Official, renascerá confiança.»
O original de onde extrahimos este telegramma vem publicado nas Questões do Pará. Por haver quem diga que fomos exaggerado nos despachos é que os transcrevemos, para que sejam comparados com os documentos que lhes deram origem.[272]
Est'outro, é de 5 do referido mez:
«O Jornal Official publica hoje manifestação commissão da praça. Traz resposta do presidente da provincia. Mesmas idéas, 26 de novembro. Publíca portarias, suspensão, contracto conego (Sequeira Mendes) quatro contos collegio Cametá. Demissão dos empregados que professam idéas da Tribuna. Esta continúa.»
Quando o presidente por estes actos, tocára no estomago repleto, os revolucionarios anemicos recuaram um pouco.
Tirar quatro contos de réis ao chefe da propaganda só de uma vez, era cousa seria!
E afinal, tinham razão. A propaganda em logar de lhes dar, aos revolucionarios, alguma cousa de peso tirava-lhes; é verdade que lhes crescia a popularidade; mas isto de popularidade em troca de uns estomagos vasios, não era muito para agradar.
Eis a principal razão porque o orgão popular moderou a sua linguagem até á retirada da Sagres.
N'esta occasião publicára-se a carta do sr. Krusse, em Portugal, e o governo portuguez mandava immediatamente retirar aquelle navio de guerra da bahia da Guajará.
Estavamos então em fins de janeiro de 1875.
A corveta devia partir do Pará para Lisboa, com escalla pelo Rio de Janeiro, na madrugada do dia 3 de fevereiro do referido anno.
Aqui está a despedida Tribuna em seu boletim do dia 2:
«Foi o vapor inglez Ambroze, de proximo ancorado em nosso porto, que nos fez chegar ás mãos o n.º 80 do immundo pasquim, Brazil, onde vêm transcripta uma carta d'aqui enviada pelo fétido lapuz Krusse, o[273] javardo de pince-nez de bordo da nauseabunda Sagres.
«Não lê o povo brazileiro o infamissimo pasquim Brazil, por isso nós vamos fazel-o ouvir, com attenção, o que dizia, ipsis verbis n'essa carta.
«Falla, nojento gallego Krusse:
(Segue a carta que atraz reproduzimos.)
«Está sciente o povo brazileiro, do que dizia na tal carta, não é assim?...
«Ora bem, pois agora fallemos nós.
«Antes que do porto de Belem desferre a immunda esterqueira portugueza Sagres, onde chafurdando-se em putridas materias engorda e vive o fétido e asqueroso gallego Krusse, cumpre-nos, em consideração ao nobre e heroico povo brazileiro, dizer duas palavras sobre a carta acima, que esse cynico bandido e miseravel assassino da honra alheia mandou publicar na degradante imprensa portugueza.
«Hoje, que está no dominio publico o quanto val Portugal, o que é a Sagres, o que são os seus officiaes, principalmente esse garoto de pince-nez, bebado e ladrão Krusse, relativamente a esta magna questão de nacionalidades—não podemos, por certo, temer que nos apanhem os seus infamantes insultos.
«Não. Não nos insulta esse aborto da natureza, essa podre excrescencia, essa massa informe de sebo e de chulé, esse monturo de percevejos, essa larva hedionda podridão dos excrementos humanos a que deram o nome de Krusse. Não! Como um vil, covarde, infame e miseravel cão que é, nem ao menos lhe poderiamos dar a honra de lamber-nos o fim da espinha dorsal.
«Já viram todos, o que dissemos a respeito de ter esse salteador invadido a nossa officina com louco intento de extorquir-nos uma satisfação, não só em um boletim como em um numero do nosso periodico, relatando com a nossa proverbial franqueza, imparcialidade[274] e justiça tudo aquillo que em abono de fé e verdade se passou entre mim e o asqueroso biltre Krusse.
«E era isso uma satisfação que tinhamos de dever dar ao povo brazileiro. Demol-a, e os nossos dignos compatriotas conscios da nossa conducta e reputação que ha cinco annos teem sabido estudar, não trepidaram em lançar sobre esse gallego bebado e safado todo o pezo da mais justa odiosidade. Principalmente quando esse garoto de pince-nez tentou contestar-nos, debalde adulterando a verdade e invertendo o facto, em um artigo que mandou publicar no Jornal do Pará numero 274.
«Ahi porém, não poude elle á vontade vasar o seu venenoso pús. Escreveu então para a infamissima imprensa portugueza, e ahi está elle no seu elemento como em um fétido corpo está o percevejo.
«Pois, se esse grutesco bobo de pince-nez, tão cynica e infamemente faltou a verdade na imprensa brazileira, como podia deixar tambem de mentir e insultar na torpe imprensa de sua terra? Por acaso pode elle lembrar-se d'aquillo que realmente se deu em nossa officina! Póde elle dizer a verdade?
«Não, nunca. O bandido que assalta de dia a nossa officina offuscado pelos vapores intensos da jeropiga; o ladrão que assalta de noite uma outra casa de uma pobre e indefeza senhora, travessa das Gaivotas, e d'ahi é como um vil e pirento caxorro lançado na rua a pezo de cabo de vassoura, mesmo por um seu patricio;[61] um homem, emfim, como Krusse miseravel, mais vil e repugnante que a podre lama de um charco,—é capaz para tudo, maxime para faltar tão descaradamente á verdade de um facto, que depõe altamente contra o seu caracter de sabujo lacaio de pince-nez da Sagres.
«Por isso, a carta d'esse patife gallego não nos demoveria[275] a traçar em tempo estas linhas, se n'ella não deparassemos com alguns trechos acremente offensivos e provocadores á nossa dignidade e caracter, ao governo brazileiro e á integridade do imperio.
«Primeiro, porque queremos mostrar ao governo brazileiro, a que ponto chegou entre nós a louca e insensata audacia dos portuguezes bandalhos como o tal Krusse, quando se arroja a dizer, que Portugal necessitava exigir uma satisfação com a força de quatro corvetas, não aqui, mas no Rio de Janeiro!
«Segundo, porque queremos provar ao publico em geral, que não fazemos carêtas pelas costas a homens de bem, quanto mais á gente da casta do estupido, boçal e mariola Krusse.
«Terceiro, porque queremos bradar alto e bom som a esse mais vil e infame canalha da canalha portugueza:—Gallego Krusse, se é que pedias com fervor a chegada d'uma occasião propria para o ultimo e unico desforço, eil-a que se offerece, anda cá vil sicario, não percas tempo.—
«Quarto, finalmente, porque queremos que fique publico e notorio ao mundo inteiro, qual de nós merece o negro estygma de covarde; porque, para quem como o faccinora Krusse, pede com fervor a chegada d'uma occasião propria para o ultimo e unico desforço,—ainda é tempo e tempo assás opportuno e de sobra para tomal-o.
«Portanto, vem, miseravel sodomita Krusse, gatuno de pince-nez, burlesco e caricato truão agaloado da praça d'armas, cynico, immoral e nefando official dos immundos beliches dos marinheiros da Sagres, escoria das escorias portuguezas, vem, salafrario.
«Vem, se tens amor a esse trapo nojento das quinas, pendurado no penol d'esse carro da lama que se chama Sagres; vem, se não queres vêl-o mais vilipendiado do que tem sido por todas as mais nações que n'elle escarram,[276] com o teu negro titulo de covarde infame; vem, janota pé de chumbo, vem, se te não gira nas veias ignobeis o sangue ignominoso dos cafres européos, vem tomar o teu ultimo e unico desforço.
«Vem, lazarento gallego, não para luctares comnosco, porque és tão miseravel e despresivel, que a arma ou a mão mais indigna que te batesse ainda seria nobre de mais para ti.
«Temos porém, uma unica arma, que é a que mais se aproxima ao merecimento de tua baixeza:—é um chicote para cavallo, com o qual te mandaremos fustigar as ancas, sem que traga isso pezar algum ao braço que te castiga e ao instrumento que te imprime seus degradantes e indeleveis sulcos.
«Vem, descarado canalha, cigano d'uma figa! tomar o teu ultimo e unico desforço.
«Se não vieres, então, tu, infimo bisborria, serás entregue á vindicta publica e á execração do futuro que te bradarão incessante:
«—Maldito! covarde! infame! desgraçado! és portuguez e basta, miseravel! escarneo da humanidade! vergonha eterna dos homens, não da tua raça vil, mas das outras, que na mesma classe que tu, sabem presar a nobreza da farda, a immaculação da honra, brios e dignidade do pavilhão glorioso e heroico que defendem.»
«Marcellino Nery.»
É a bilis de mais de dois mezes, que a premanencia do sr. Krusse no Pará evitára que sahisse do nauseabundo esofago tribunicio.
Expliquemos a peripecia:
Acompanhavamos quasi sempre os officiaes, nos seus passeios pela cidade do Pará, e passavamos muitas vezes, occasionalmente, pela praça de D. Pedro II, onde era o escriptorio da Tribuna.[277]
O hydrophobo Marcelino Nery, desde os acontecimentos de 21 de novembro, nunca mais sahira á rua! e, de binoculo em punho, observava da sua janella, pela extensa praça, se para o seu escriptorio se dirigia algum official da corveta. Não eram estas as intenções da officialidade; mas Nery que não estava d'isso ao facto, e temendo alguma desafronta, serrava a janella no momento em que os officiaes por alli passavam!
O boletim acima transcripto tem, alem da data—2 de fevereiro—as seguintes palavras—ás 7 horas da manhã—, para que quem o lesse ficasse sabendo, pelo que estava escripto, que o papel tinha sido destribuido vinte e quatro horas antes, ainda quando o sr. Krusse podia acceder ao pedido do bravo anti-paraguayo encerrado; mas a verdade é que o tal boletim só foi destribuido na cidade quando já a hora adiantada da noite do dia 2, havia recolhido toda a guarnição para bordo da corveta!
E não vá dizer a historia para o futuro, que o sr. capitão Marcelino Nery, não era um digno heroe do exercito brazileiro que nos sertões envios das margens de Riachoello combatera com denodo pela cara patria!
Foi naturalmente n'esta epocha que o sr. Augusto de Carvalho, escrevera na sua historia o Brazil, aquella affirmativa, de que a Tribuna suspendera a publicação; mas dos trechos transcriptos d'este periodico em outro logar d'este livro, verá o leitor que em 1876, isto é um anno depois da publicação do Brazil, ainda o papel incendiario se publicava; e só suspendeu a sua publicação, quando o governo de S. M. Imperial, como recompensa dos relevantes serviços prestados á civilisação do Brazil, dava ao denodado capitão Nery, a directoria[278] de uma colonia militar ao sul do imperio, com o fim, naturalmente, de incitar os pamphletarios a novos commettimentos contra a colonia portugueza!
Alguem ha que nos accusa de exaggerado no nosso livro Questões do Pará, por termos avançado proposições da mais alta gravidade contra o imperio brazileiro. Essa gente não acha sufficientes os documentos que comprovam as nossas verdades. Talvez que até mesmo continuassem na sua incredulidade em presença dos factos. Não admira. O publico é ás vezes inconsequente; porque acredita nos bruchedos, nas pantomimas das mulheres que deitam cartas, ou nas artimanhas dos jesuitas. Quando se trata de cousas tão importantes, despresa o proloquio—ver e crer...; e só faria uso d'elle, se algum ratão se lembrasse de dizer, que ia atravessar o Tejo com umas botas de cortiça.
Houve incredulos em todas as épochas. Muita gente tem morrido com a esperança de que o sr. rei D. Sebastião hade voltar ainda a estes reinos em manhã de nevoeiro. Não ha tambem quem acredite que a agua de Lourdes fizera o milagre da Misericordia e quejandos? E que importa aos sebastianistas e aos devotos da nova Revalescière as risadas do publico sensato? Não será, de certo, por causa d'isso que deixará de haver quem espere pelos sapatos do defunto rei e quem se recuse a tomar o seu banho na agua milagrosa!
Ha factos extraordinarios na vida de todos os povos; mas nenhum haverá de certo que se assemelhe em phenomenos ao povo brazileiro.
Hade haver pouco mais de 50 annos, quando o imperio, pela bocca do seu primeiro defensor perpetuo, declarava a todo o mundo, que tendo os brazileiros[279] chegado á sua maior edade, pedia a emancipação; diziam os paraenses, tambem pela bocca dos seus escolhidos:
—Nós somos portuguezes! Portugal é a nossa patria!
Não conveio muito este protesto aos libertadores do Ypiranga; por isso alguns navios de guerra foram incumbidos de incender no coração d'este povo o amor á liberdade que lhe promettia a nova patria!
Em 1825 reconhecera Portugal a independencia do Brazil, e o Pará, todo lacrimoso, entregava-se, com medo das palmatoadas, nos braços da risonha deusa!
De 1833 a 1842 mudaram completamente as scenas. O povo que alguns annos antes sacrificaria a vida pela metropole, assassinava e roubava os portuguezes no meio da rua, á luz esplendida d'este seculo, que lhe dera a liberdade![62]
Estas scenas, repetidas mais de uma vez depois d'aquella epocha fatal, não foram ensinadas pelos portuguezes, no longo periodo do seu dominio. Os selvagens, que outr'ora vagueavam por estas paragens, horrorisar-se-iam de semelhantes barbaridades, commettidas por quem já se dizia civilisado. Reconhecera então o governo do Brazil, que os seus agentes haviam exorbitado as ordens da propaganda, sustentada no Paraense e outros pasquins, em que tambem um conego incitava os naturaes á matança dos portuguezes. Por isso lançou mão de um meio extremo, esmagando aquelle povo, que tão mal havia comprehendido o grito dado nas margens do historico ribeiro. Centenas de paraenses foram desde logo mettidos nos porões dos navios e alli assassinados barbaramente.
O governo brazileiro foi sempre amigo dos extremos. Depois de observar attentamente, e na maior paz de[280] espirito, os assassinatos commettidos á sombra d'uma impunidade ridicula, chega-lhe a vez de representar o seu papel de barbaro. Não é de meias medidas. Os seus administrados, á semelhança de certo rei da França, inventam ou modificam uma machina de exterminio. E o governo, quando se cansa de ver correr sangue innocente, manda chegar os assassinos ao terrivel instrumento, e assim lhes rouba com a vida o terrivel papel de carrasco. O resultado é ficar o Brazil sem colonos e sem selvagens que podiam ser civilisados, o que é mau!
Mas depois d'aquelles horrorosos acontecimentos pareceram socegar os animos; porém lá estava a ferida aberta. Os descendentes das victimas do governo brazileiro tinham ouvido por entre as juntas das cobertas dos navios um terrivel anathema, que era ao mesmo tempo a morte da provincia mais rica do imperio. Esse anathema de exterminio contra os colonos tinha sido ouvido tambem pelos portuguezes, que entenderam desde logo dever explorar a industria extractiva de certos productos riquissimos, que, até ha bem poucos annos, parecia no Pará uma mina inexgotavel.
A agricultura que nos paizes virgens offerece sempre um lucro mais duradouro e mais proporcional ao capital e ao trabalho empregado, porque a exploração dos productos extractivos é mais eventual e retarda por consequencia a prosperidade do territorio onde ella se exerce; a agricultura, repetimos, foi desde logo desprezada. O facto era logico. Uma revolução, em qualquer dia de expansão paraense, era facil, e a borracha, a castanha, o cacau e muitos outros productos podiam fazer uma viagem até á Europa, na companhia de seus donos, sem que a estes desse muito cuidado as terras e as arvores que costumam dar semelhantes fructos. Outro tanto não aconteceria com os terrenos comprados pelos colonos, com os productos agricolas ainda por colher ou com os engenhos montados para a sua fabricação,[281] que cairiam irremediavelmente nas mãos dos communistas.
No Pará, depois da sua famosa independencia, houve sempre revolucionarios a incitar os animos, já propensos á desordem, contra portuguezes. E o que é extraordinario é que esta gente, que não quer admittir em seu seio os colonos que mais podem concorrer para o seu engrandecimento, é apologista da republica!
Em 1873, por occasião da prisão dos revolucionarios que no Pará pizaram a nossa bandeira, andavam os apologistas da sublime idéa ameaçando os estrangeiros e promettendo lançar fogo aos estabelecimentos! A musica, que marchava na vanguarda dos communistas tocava o hymno da marselhesa, e do meio d'aquella bachanal saía ao mesmo tempo o grito de—viva o sr. D. Pedro II! e tocava o hymno imperial!
E note-se que são sempre assim os que sonham com a republica no Brazil. Quanto mais republicanos mais inimigos dos estrangeiros. Esta gente, salvas mui raras excepções, que já mais poderão fazer do imperio uma republica, não dá ás palavras e ás cousas a mesma significação que nós lhes damos. As suas idéas estão sempre em manifesta contradição. Ha povos no Brazil, que podemos comparar a um collegio de rapazes a quem a palmatoria muitas vezes não faz conter nos limites da ordem.
O que é facto inquestionavel, é que muito ha que dizer ainda a respeito do odio selvagem que aos portuguezes votam os brazileiros. A conveniencia mal entendida da maior parte dos portuguezes calar os soffrimentos recebidos no imperio, é em parte a origem de tantos males, que, divulgados, serviriam de correctivo salutar. O portuguez soffre ha seculos o barbarismo d'aquelle povo, e não só se resigna com o martyrio que lhe infligem, mas até procura viver no meio d'elle, pugnando ao mesmo tempo pela prosperidade d'um paiz tão despresado[282] pela maioria de seus naturaes. O francez, o inglez, o allemão que reside no Brazil, não tem rebuço em formular as suas queixas contra os indigenas. Estes colonos não são, comtudo, os que mais soffrem. A prudencia do portuguez chega ao ponto de dizer bem do imperio, pouco depois de haver recebido d'elle os mais acerbos desgostos. As excepções são rarissimas, e nós orgulhamo-nos de não pertencer á regra geral.
Pouco tempo depois de havermos publicado as Questões do Pará recebemos uma carta de um subdito francez, nosso particular amigo, o qual foi muitos annos negociante no Pará, e ainda hoje pertence a uma firma respeitabilissima, que assim se expressa a respeito das verdades no mesmo livro contidas:
«Amigo:—Tenho recebido os jornaes, que já emittiram opinião a respeito do seu livro. Admira-me que houvesse um[63] que o taxasse de exagerado, principalmente no que diz respeito ao caixeiro da casa ingleza. Bem se vê, que o jornalista conhece pouco o Pará. Vou contar-lhe alguns casos que alli se deram commigo.
«Quando pela primeira vez appareceu a febre amarella na provincia do Pará, os habitantes da cidade de Cametá amedrontaram-se por tal fórma, que influiram com a camara municipal para que fosse collocada uma guarda na bocca do Tocantins, com o fim de não deixar passar os barcos e as canôas procedentes da cidade de Belem. Constando ao sub-delegado, que eu tinha mandado um bote ao Pará apresentar ao presidente da provincia uma queixa contra tão grande escandalo, expediu logo aquella auctoridade uma ordem de prisão contra mim. O delegado da policia, logo que soube do facto, mandou chamar o sub-delegado a quem perguntou o que havia feito, ao que respondeu confirmando o[283] mandado de prisão. Então aquella outra auctoridade policial lhe fez ver, que seria prudente cassar a ordem, quanto antes, dizendo que eu não era portuguez, mas sim francez, com que se podesse zombar. Sabe que fallei sempre perfeitamente o portuguez e d'ahi a illusão. O subdelegado foi logo a correr a fim de ver se era tempo de cassar a ordem de prisão, o que felizmente poude conseguir. Sabendo eu o occorido mandei logo outro bote ao Pará, com a noticia a meu..., o qual representou ao mesmo consul. Este apresentou-se ao presidente da provincia, na companhia do commandante d'um navio de guerra francez que então estacionava nas aguas do Pará. A auctoridade superior da provincia depois de ouvir attentamente o consul, disse que ia dar as suas ordens e que desde já lhe dava sua palavra de honra, que se eu estivesse preso, mandaria ir em ferros o subdelegado. Então o presidente fez um officio á camara municipal, ordenando-lhe em termos muito severos, que desse entrada franca ás embarcações do Pará e que não tornasse a acontecer outra similhante arbitrariedade. Este officio foi mandado distribuir depois de impresso, aos habitantes da cidade de Cametá!
«Mas outro caso lhe vou contar. Sahia do porto do Pará uma escuna americana, que nos fora consignada. O capitão, por esquecimento, tinha deixado ficar a matricula no consulado. O consul pediu ao guarda-mór para fazer voltar a escuna. Este quiz primeiro consultar o presidente que ficou d'accordo. Passado uma hora, mandou-me o presidente chamar, e disse-me o seguinte:—«Mandei-o chamar, por que tenho estado a pensar no que acabei de fazer, que foi annuir a mandar chamar a escuna americana para receber os papeis que lhe esqueceram. Desejava saber o que pensa v. a tal respeito, porque estou a receiar de ter alguma responsabilidade n'este acto que acabo de praticar.» Respondi-lhe[284] que a responsabilidade era toda do consul, porquanto o navio tinha sido chamado a requesição sua. Esta resposta deixou o presidente muito satisfeito, porque dizia elle que o ministerio brazileiro recommendava muito ás presidencias para não origínarem questões com as tres potencias:—Estados-Unidos, Inglaterra e França! Isto que eu lhe digo é a pura verdade; mas com tudo ainda pode haver quem duvide, assim como duvidam do seu livro.» etc.
Como se vê, estas tristes verdades depoem tanto contra a civilisação de um povo, que effectivamente é preciso estar prevenido para as acreditar.
Ha tempo escreveu um correspondente do Pará para um jornal da capital[64], o seguinte:—«O auctor das Questões do Pará, ou por não querer tornar o livro volumoso, ou por ignorar muita cousa, em razão de ter aqui residido pouco tempo, diz muito menos do que podia e devia dizer.»
Valha-nos ao menos estas demonstrações sinceras dos que ainda soffrem.
Um jornal paraense a—Regeneração—accusa-nos de calumniador das senhoras paraenses no que escrevemos em outro logar[65]. É uma falsidade o que se pertende affirmar com visos de verdade.
Calumnia é o que segue, publicado na Tribuna do Pará:
«Que fecundidade espantosa!—Na Correspondencia de Portugal, transcripta no Diario de Belem de 7 do mez passado, se lê esta noticia:
«Foi publicado o relatorio da Santa Casa da Misericordia,[285] e por elle se vê que no fim do anno economico de 1872-1873, estavam a cargo da misericordia 13:370 expostos, dos quaes apenas pouco mais de 100 na casa dos expostos.»
«Com effeito, 13:370 engeitados no anno de 1873 estavam a cargo da misericordia de Portugal!
«É mais um documento, que offerecemos aos nossos leitores, para com elle provarmos a perversidade de que é dotado o coração portuguez, que expõe os filhos á miseria, á desgraça e á morte!
«Os povos barbaros por certo que não procedem com tanta deshumanidade para com os seus, como a raça portugueza procede para com os proprios filhos, negando-lhes um nome, e preferindo uma morte desgraçada, ou uma educação errante e infame, do que sugeitar-se á creação!
«Mulheres malvadas, corruptas e endemoninhadas, ainda não conhecemos segundas! Soffram muito embora o rigor da miseria e da deshonra, mas por caridade, não exponham á morte os filhos, que não tem culpa da mais abominavel depravação.»
O pobre redactor d'este jornal, ignora a razão porque em Portugal, e em quasi todos os paizes civilisados, as mulheres infelizes engeitam os filhos. Engeitam-os, porque... não são escravas, e porque não teem senhores que as deshonrem, com a mira no lucro proveniente da cria, que, como as bestas, devia ser posta em almoeda no mercado de carne humana!
Cá, as mulheres illudidas, e não malvadas, corruptas e endemoninhadas escondem da familia o fructo da sua deshonra nos asylos que os previdentes governos instituem, a bem da humanidade e da moral publica.
Lá, a escrava deshonrada e aquelle que a deshonrou, fazem gala da deshonra perante a familia que devia ignorar a infamia.
Nós estivemos em casa de uma familia brazileira,[286] onde havia tres mulatas pejadas, que ostentavam diante de uma sinhá e uma sinhasinha o seu estado interessante; e ha quem diga que as ingenuas creanças não ignoravam que o seu proprio papai era o auctor dos futuros moleques!
Mas ninguem ignora que no Brazil, dão-se casos d'estes aos milhares; e que as sinhás no meio d'esta escola immoralissima sabem os segredos mais intimos, que as proprias mulheres deshonradas, entre nós, ignoram muitas vezes.
Á sociedade que, como a nossa, institue hospicios especiaes para os engeitados, chamam-lhe moralisada. Á que faz da casa de familia bordel-hospicio, chamam-lhe corrupta.
Mas... passemos adiante, não vão para ali dizer, que a resposta ao imbecil que escreveu aquellas linhas, antes das nossas injurias, é represalia.
O periodico citado dizia mais, «que havia dois principios que soffriam guerra de morte dos portuguezes no Brazil: um é a dignidade nacional, outro é a religião catholica e apostolica romana representada em seus ministros. O pamphleto do Percheiro[66] põe isto á evidencia. Tal é o ponto de contacto que nos aproxima da Tribuna, cujos excessos de linguagem estão plenamente justificados pelo atrevimento de Percheiro e seus adeptos[67]» etc.
A quem tiver lido os excessos de linguagem, empregados por nós nas Questões do Pará, recommendamos este topico publicado na Tribuna, em 17 de novembro de 1874; isto é, no mesmo numero em que era insultada a officialidade da corveta Sagres; e, note-se bem, quasi um anno antes da publicação d'aquelle livro:
«Cemiterio em Lisboa, 12 de outubro de 1874.[287]
«Miseravel Percheiro.
«As tuas proezas e infamias teem echoado até n'esta fria morada dos mortos!
«Estás pondo tudo em pratica, teus crimes e vicios, n'essa terra abençoada para onde fostes ganhar o pão... o pão para ti e para tuas duas filhas...
«O que tens feito para essas infelizes? Nada! Fizeste-te corretor de infamias... apenas!
«Julgava-te regenerado e enganei-me!
«Julgava que teu coração de marmore ou de sangrento tigre tivesse sido tocado pelas lagrimas ardentes d'essas duas innocentes, de quem és, desgraçadamente, pae!
«Julgava que ao pungir ferrenho do remorso, tu te houvesses abraçado ao pé da cruz da Redempção! e envolto no lábaro sagrado do arrependimento, banhasses a fronte maldita nas aguas lustraes da salvação!
«Julgava que, na terra hospitaleira da Santa Cruz, tu te tivesses tornado homem de bem... enganei-me... hoje como outr'ora és o mesmo, sempre ladrão, sempre assassino! és maldito!
«Sim, assassino!
«Tu fizeste por longos annos a desgraça da vida feliz que consagrei-te—perante o altar do Senhor:
«Fizeste-me derramar lagrimas de sangue á toda a hora do dia e da noite em quanto folgavas no deboche e no jogo.
«Sacrificastes durante minha existencia os deveres, que a nossa união sagrada te impozera, e sacrificaste-os aos pés das mais torpes meretrizes nos antros da crapula, nas urgias.
«Converteste cada momento de minha existencia em seculos de martyrios insanos, até esse momento em que quizeste pôr termo aos meus soffrimentos; até esse momento[288] em que, barbaro, arrancaste dos meus braços minhas e tuas filhas; até esse momento em que finalmente... me assassinaste!
«Assassino!... tuas filhas e meu sangue innocente em que ensopaste as mãos, são os remorsos vivos que sempre te hão de perseguir, quer durmas, quer véles e eu te juro, que d'aqui mesmo, d'esta campa aberta por tuas proprias mãos, te farei sentir que não me esqueço de ti... assassino! e de tuas infamias...
«Generosos brazileiros! uma esmola pelo amor de Deus para as filhas do corrector de infamias Percheiro, que morrem á fome em Lisboa!
«Adeus! recebe a maldição d'aquella que entre os vivos foi—
Tua esposa...»
Agora digam-nos, se depois de devassado o tumulo e desrespeitada a nossa dôr, a mais profunda que havemos soffrido, em 35 annos d'uma existencia attribuladissima, e, por mercê de Deus, honrada; haverá quem, com justiça, possa dizer, que os excessos de linguagem da «Tribuna» estão plenamente justificados pelo atrevimento de havermos publicado as Questões... um anno depois de tanta infamia?!
Ah! como sois inconsequentes!
Depois do nosso livro, é que o governo brazileiro se lembrou de comprar a consciencia do capitão Nery. Pena foi que essa transacção se não fizesse antes de começar a tragedia do Pará. Preferiamos isso á gloria que nos assiste de havermos contribuido, com os nossos excessos, para a pacificação dos animos em tão uberrima provincia.
E olhae que vos não pedimos mais do que a continuação[289] do vosso desprezo, em paga do nosso serviço, ó illustres optimistas!
Se á vil calumnia e á detracção raivosa, não póde escapar quem diz verdades, não deve esperar recompensa dos homens quem pratica o summo bem.[290]
Na sessão do jury do termo de Chaves, comarca de Marajó, inaugurada em 24 e encerrada em 28 de agosto de 1875, foram julgados Severo Antonio de Farias, José Antonio de Magalhães, Bertholdo José Florindo, Manuel Ricardo de Faria, Americo Valentim Barbosa e Pedro Augusto Cardoso, auctores e cumplices do assassinato na ilha do Jurupary, em a noite de 6 de setembro de 1874, dos desventurados subditos portuguezes Zeferino Manuel Pereira de Araujo e José Antonio Pereira Rodrigues. Severo Farias e José de Magalhães foram condemnados no gráu maximo do artigo 271 do codigo criminal, pena de morte; e Manuel de Faria e Bertholdo Florindo, incursos no art. 35 do mesmo codigo, 13 annos de galés; Americo Barbosa e Pedro Cardoso foram absolvidos.[291]
O presidente do jury, obedecendo ao preceito do art. 79 § 2; da lei de 3 de dezembro de 1841, appellou do veredictum do jury para o tribunal da Relação do Pará.
Presidiu o jury o dr. juiz municipal e de orphãos do termo de Soure, Raymundo Theotonio de Brito, 1.º supplente do juizo de direito da comarca de Marajó, e um dos illustrados membros da magistratura brazileira. Serviu de promotor publico o cidadão João Anselmo Pacifico de Cantuaria e de escrivão o serventuario vitalicio Manuel Pio de Sousa e Silva.
A sessão começou ás 10 horas da manhã de 25 e terminou no dia seguinte ás 8.
Não se tendo apresentado defensor aos reus, o presidente do tribunal nomeára para este fim o cidadão Emygdio Antonio Coelho.
Foi isto pouco mais ou menos o que nos transmittiu o Diario de Belem, do Pará.
Agora algumas palavras nossas para illucidar os leitores sobre o assumpto.
Severo Antonio de Farias, Americo Valentim Barbosa e José Antonio de Magalhães foram assim pronunciados pelo chefe de policia:
«Considerando que a confissão dos reus, sendo como foi espontanea, sem constrangimento algum, clara, e de harmonia com o mais constante dos autos, prova o delicto nos termos do artigo 94 do codigo do processo criminal, etc.
«Considerando portanto, que para verificação do roubo foi que se commetteram os homicidios, é fóra de duvida que os tres reus mencionados praticaram o crime previsto no art. 271 do codigo criminal.
«Em vista do exposto, pronuncio os tres primeiramente[292] indicados, como incursos no artigo 271 com referencia ao artigo 269 do cod. crim.[68]» etc.
Ouçamos agora a confissão de Americo Valentim Barbosa:
«Perguntado seu nome, idade, naturalidade, etc.
«Respondeu chamar-se Americo Valentim Barbosa, de 26 annos de idade, solteiro, natural d'esta provincia (Pará), sapateiro, residente no districto de Affuá, e que não sabia lêr nem escrever.
«Perguntado se no dia 6 de setembro esteve na ilha de Jurupary em companhia de Severo e de José Magalhães e o que ali fizeram?
«Respondeu que, estando em casa de Manuel Ricardo na ilha dos Porquinhos, foi notificado pelo inspector do quarteirão Severo Antonio de Farias para uma diligencia que elle interrogado ignorava, e obedecendo á intimação embarcou em uma canôa de Coelho juntamente com Severo e José de Magalhães, conhecido por calangro, e em caminho no largo avisaram a elle interrogado que a diligencia consistia em matar e roubar os negociantes portuguezes Zeferino e seu socio, estabelecidos na ilha de Jerupary, para onde seguiram, visto como elle interrogado não pôde mais fugir(!). Disse mais que ali chegando, foram a casa dos mencionados portuguezes e depois de beberem vinho sem a menor alteração e traiçoeiramente esfaquearam aquelles portuguezes, um dos quaes, de nome Zeferino, ainda usando de uma arma, disparou n'elle interrogado[69]» etc.
Este réo considerado como auctor, pelo juiz formador do processo, por isso que as provas o fazem incurso no artigo 271 com referencia ao artigo 269 do cod. crim., foi absolvido pelo jury de Chaves![293]
Não fallaremos mais de Severo e Magalhães, visto que estes réos foram julgados segundo as leis que regulam a justiça.
Tratemos, pois, de Manuel Ricardo de Farias e Bertholdo José Florindo, condemnados a 13 annos de prisão.
«Considerando ainda, falla o chefe da policia na pronuncia, que o réo Bertholdo José Florindo tinha occultos em sua casa, e no matto visinho a elle, varios objectos roubados, como se vê do auto de busca a folhas vinte tres, não ignorando que foram obtidos criminosamente, tanto que os escondeu, manifestando por esta fórma sua má fé e cumplicidade em um delicto tão grave;
«Considerando que o mesmo Bertholdo confessa em seu interrogatorio a folhas setenta e uma, e auto de perguntas a folhas vinte, corroborado pela declaração de sua mulher, a folhas dezoito, que alguns d'aquelles objectos lhe foram offerecidos por Americo, e outros, elle os entregou para guardar, pedindo-lhe que não descubrisse que elle havia commettido os crimes de Jurupary, e nem que se achava occulto ou homiciado na ilha dos Porquinhos;
«Considerando, portanto, que o reo Bertholdo não só recebeu como occultou objectos que sabia serem roubados, como confessou;
«Considerando que em casa do réo Manuel Ricardo de Farias tambem foi encontrada parte dos objectos apprehendidos, como se vê a folhas vinte e tres, além de que deu asylo em casa ao homicida Americo, sabendo dos crimes que elle havia commettido, como se vê a folhas trinta e duas da sua propria declaração, impedindo ainda que Americo se entregasse á prisão, como se vê a folhas trinta e uma, o que tudo bem mostra sua manifesta cumplicidade;
«Considerando ainda que o réo Manuel Ricardo Farias[294] em companhia do proprio assassino Americo fôra occultar parte dos objectos, que conservava na visinhança de casa, no igarapé Chato, para que se tornasse impossivel descobril-os, folhas trinta e dois v.» etc.
Acabamos de ver que Manuel Farias e Bertholdo Florindo não são mais do que cumplices dos tres auctores do crime praticado contra os dois infelizes portuguezes. As suas proprias declarações estão d'accordo com o depoimento das testemunhas e com a confissão dos assassinos.
Não ha provas de que estes desgraçados acompanhassem na expedição a Jurupary os tres réos Severo, Magalhães e Americo.
Como é então que o jury, sendo justo na classificação do crime—cumplicidade—em que achou incursos os réos M. Farias e B. Florindo, absolve Americo, que, com quanto o não quizessem classificar de assassino, visto que lhe foi acceita a confissão de ter sido obrigado a matar os portuguezes, é inquestionavelmente mais cumplice do que aquelles, se attendermos a que Americo acompanhou a Jurupary os reus Severo e Magalhães, em quanto que Farias e Florindo estavam em casa á espera do resultado da empreza de matar os portuguezes?!
É que o jury attendeu á circumstancia muito plausivel de Americo ter sido o alvo escolhido pelo infeliz portuguez Zeferino, que, quasi exanime, teve a força precisa para disparar a arma contra o seu matador! O tiro não acertou, mas o pobre Americo ficou atordoado, e o jury levou-lhe esta attenuante á conta da sua absolvição!
Pedro Augusto Cardoso estava incurso no artigo duzentos setenta e um do codigo criminal, contra o qual existem no processo todas as provas da sua cumplicidade. Comtudo a verdade deve dizer-se: Cardoso é o[295] menos cumplice; mas o jury igualou-a a Americo, absolvendo-o!
A toda esta mascarada dizia uma folha da capital:[70]
«A desafronta foi plena e terrivel!»
E o juiz que presidiu ao jury, como vimos no começo d'este artigo, appellou da decisão arbitraria, e o tribunal da Relação do Pará impoz aos cumplices que o jury absolvera, a pena de treze annos de prisão com trabalhos!
Com a epygraphe Tribunaes brazileiros publicamos nas Questões do Pará o seguinte:
«No interior campêa a immoralidade a tal ponto, preparam a nacionalisação do commercio a retalho por tal fórma, que causa horror pensar em semelhante labyrintho.
«João Lopes d'Oliveira e seu irmão Narciso, moços portuguezes, commerciantes, foram accusados de ter assassinado um cabouco, com dois tiros de espingarda, na comarca de Serpa (no Amazonas).
«Instaurou-se-lhes o competente processo, e chamados a julgamento, o jury condenou-os na pena de galés perpetuas.
«A base para tal condemnação foi terem deposto 16 ou 18 testemunhas, que, por unanimidade, confirmaram o crime dos accusados, simplesmente por terem ouvido dizer, que aquelles portuguezes tinham assassinado o seu compatriota brazileiro!
«Não ha só uma testemunha de vista.
«A decisão do jury foi annullada pelo tribunal superior, que mandou reunir novos jurados. Reunidos estes a decisão foi em tudo igual á primeira!!![296]
«Esta causa está affecta ao tribunal superior, que decidirá sobre tão grave occorrencia; por isso reservar-me-hei para mais tarde dizer as ultimas palavras sobre esta questão...»
É chegada a occasião de cumprirmos a nossa promessa.
Ultimamente o verdadeiro assassino do cabouco, minado talvez pelos remorsos, e sentindo apertar-lhe a garganta a mão fria e descarnada da morte, chamou um padre que o ouvisse de confissão, e declarou-lhe o seu crime. O assassinado era compatriota do assassino. Morto o miseravel, o confessor, cumprindo um dos sagrados deveres do seu ministerio, communicou este acontecimento ás justiças brazileiras, que, a final se resolveram a por em liberdade os dois innocentes portuguezes, que ha dois annos estavam presos!
Poucos dias antes da nossa retirada do Pará, julgára-se em primeira instancia o processo por injurias publicadas na Tribuna paraense, em que figuravam como auctor o negociante portuguez, Manuel Augusto Valente d'Andrade e réu, o capitão do exercito brazileiro, Marcellino Nery, proprietario d'aquelle pasquim e já bastante conhecido dos leitores.
O juiz de direito, doutor Quintino, sentenciára o infame pamphletario a quatro mezes de prisão.
Tinha o heroe do commercio a retalho, publicado, além d'outros epithetos injuriosos contra o commerciante Andrade, o de ladrão, moedeiro falso, assassino, etc.; injurias que sustentára, sem provas, em pleno tribunal, tendo antes allegado, para esquivar-se ao julgamento, a incompetencia do juizo, que não lhe foi aceite.
Mas suppunha-se que o processo seria annullado pelo[297] tribunal superior, para onde, segundo o direito que lhe conferiam as leis, ia appellar o condemnado, como effectivamente appellou. Portanto, em vista d'este recurso, podia o pasquineiro passear livremente por alguns mezes na presença dos injuriados e o seu periodico continuaria a insultar os caracteres mais probos residentes na provincia. Foi justamente o que aconteceu, porque a Relação poz uma pedra em cima do processo.
Mas antes d'isso os interessados pelo credito do Brazil, se não o proprio governo do imperio, faziam espalhar por todo o mundo, a noticia da suspensão do pasquim incendiario e a condemnação do seu proprietario. A nossa imprensa então exultou de alegria por tão fausta nova, que era quasi que como uma satisfação devida pelo Brazil ao velho Portugal insultado.
Porém, era tudo uma ficção. A Tríbuna continuava com os seus improperios, rindo-se do magistrado que no Pará tem sabido fulminar o clero irrascivel, e, ainda que com menos exito, os tribunos descomedidos. E desgraçadamente o cabo submarino estava n'esse tempo interrompido entre o Pará e Pernambuco e nós não podiamos dizer á Europa que tinha sido mais uma vez ludibriada a justiça.
Passaram-se seis mezes de provações, até que a Relação accordou do lethargo em que parecia envolta, e no dia 9 de julho de 1876, confirmou a sentença da primeira instancia. A este caso applicaremos aqui, para honra e gloria d'aquelle tribunal, o seguinte annexim popular:—Mais vale tarde do que nunca.
O testa de ferro do conego Sequeira Mendes, queixava-se de que a Relação não soubera limpar o escarro que Percheiro lhe imprimira nas faces, querendo fazer suppor aos incautos, que fôra devido ao nosso livro a confirmação da sentença; mas cremos que é mais uma[298] injustiça irrogada aos anciãos, que decidiram contra a causa dos communistas.
Esclareçamos este negocio da mais alta transcendencia para os nossos compatriotas residentes no imperio e quiçá do proprio Portugal, no intuito de apresentarmos ao nosso publico dois documentos curiosissimos, que mais tarde hão de fazer parte da historia do Brazil. Mas antes de transcrevel-os é preciso prevenir os leitores contra as phrases n'elles contidas, em que se accusam manifestas nullidades do processo ou ultrages contra manifestas disposições da lei, por suppostas injurias publicadas na Tribuna paraense contra o portuguez Andrade, phrases mentidas, alli postas com o fim de illudir os incautos, as quaes já mais poderão desmentir as provas constantes no processo. O que se allegava, repetimos, era unica e simplesmente a incompetencia do juizo. O réu não queria ser julgado pelo juiz do 2.º districto criminal (Quintino) e sim pelo do 1.º (Meira de Vasconcellos). O homem lá tinha as suas razões...
Um dia antes da confirmação da sentença, distribuia-se na praça publica, em avulsos, o seguinte aviso, que é d'uma ingenuidade a toda a prova, para não dizermos outra cousa:
AO BRIOSO POVO BRASILEIRO
«Prevenimos aos nossos dignos compatriotas, que, em sessão de 6 do corrente do Egrégio Tribunal da Relação, foi marcado o primeiro dia util, que é ámanhã, sexta-feira (9 de julho de 1875) para o julgamento de appellação que para o mesmo tribunal fizera o sr. capitão Marcellino Nery, do processo de responsabilidade de imprensa, que lhe movera o portuguez Manuel Augusto Valente de Andrade.
«Confiamos sobremaneira nos venerandos desembargadores do Tribunal da Relação, que perante as manifestas[299] nullidades do processo, não farão mais do que justiça.
«O povo brazileiro deve correr a essa sessão, para com a sua presença assistir ao julgamento de appellação d'um brazileiro digno processado infelizmente por um audacioso portuguez.
«Haja mais amor e patriotismo entre os brazileiros e corramos a assistir á sessão do julgamento, ámanhã ás 11 horas da manhã.»
Esta ordem dada aos adeptos do communismo no Pará, surtira optimo effeito; porque, segundo fomos informado, o recinto do tribunal enchera-se de curiosos, mais ou menos interessados no assumpto, que havia de ser decidido n'aquelle dia. E, ainda uma vez para honra do tribunal da Relação do Pará, devemos dizer, que a multidão de tribunos alli reunida, com o estudado fim de impôr medo, não produziu o effeito desejado, por quanto, os juizes se elevaram á altura dos seus deveres.
Nós somos justo, e por isso, quando se nos proporcione o ensejo, havemos de dar a Cezar o que é de Cezar.
Registemos agora o segundo documento.
Vae fallar o representante, in nomine, do papel incendiario, em avulsos distribuidos com profusão pelas ruas do Pará, poucas horas depois da sua condemnação, á luz do dia, na presença das auctoridades, em pleno seculo 19.º:
PROTESTO
«Hontem a Tribuna fez circular um avulso em que vinha o recurso, feito por meu illustre advogado á Relação do districto, da sentença contra mim proferida[300] pelo juiz de direito bacharel Quintino, procedido d'um artigo que assim começava:
«Hoje terá logar o julgamento do processo, em grau de appellação, promovido contra o nosso prestimoso amigo capitão Nery, por um vilissimo portuguez e por suppostas injurias publicadas na Tribuna ácerca d'um irmão do auctor que se acha em Portugal.
«Esse processo, que é um montão de ultrages contra manifestas disposições da lei, estamos intimamente convencidos que cahirá ante a indefectivel justiça dos provectos e venerandos juizes, que o tem de julgar.
«Essas nullidades immoraes não resistirão á sabedoria do Egregio Tribunal da Relação, unico baluarte erguido entre a lei e o arbitrio, entre a moral e a corrupção, entre os potentados do dinheiro e os que soffrem fome e sêde de justiça na sociedade paraense.»
«Quanto se enganou a redacção da Tribuna!
«O julgamento teve com effeito logar, e aquella monstruosidade juridica, que dá a mais triste cópia da moralidade, justiça e conhecimentos theoricos e praticos do jurisconsulto formador do processo e culpa, resistiu á sabedoria dos provectos juizes!
«Hoje deve a sociedade paraense estar desenganada, pois que a lei entre nós não tem sacerdotes, mas sim, com honrosas excepções, vis mercenarios...
«Entre o direito e o arbitrio, entre a moral e a depravação, entre a prepotencia e os que soffrem fome de justiça não existe barreira, por isso que até na Relação esses principios oppostos confundem-se e acima de todos os preceitos da lei alli se eleva a subserviencia, a paixão mesquinha e a vingança miseravel!
«Que desgraçado espectaculo!
«Apezar de todas as nullidades e absurdos a pronuncia foi sustentada!
«Até onde te quererão arrastar, oh! minha querida terra![301]
«Desgraçados! não veem que cada um d'esses actos, que só tem qualificativo na brutalidade dos juizes selvaticamente iniquios, é um barril de petroleo com que alimentam um incendio sinistro!...
«Jámais me persuadi, que magistrados encanecidos no serviço da justiça e collocados n'uma posição independente tivessem a inaudita leviandade de renunciar a dignidade e a consideração publica e manchassem as mãos n'uma sentença odiosa, que os submette á indignação do povo, porque este vê n'essas togas, maculas hediondas...
«Inspirados por paixões ruins não mediram o alcance da sancção que proferiam a um escandalo impudente!...
«O juiz que põe a preço a consciencia é tão prejudicial ou peior ainda que ladrão de estrada...
«Demais, a corrupção que désce dos tribunaes para o seio do povo é mais perigosa ainda que o odio que ferve na immensa caldeira aos gritos da populaça espalhada pelas praças publicas.
«São os espectaculos repugnantes, que os magistrados offerecem ao desespero do povo, que forçam ao povo a pôr em scena tragedias de sangue...
«Estas considerações, porém, não couberam na comprehensão d'aquelles, que por uma sentença immoral legalisaram um ultrage vergonhosissimo feito á justiça e ás expressas disposições da lei!
«Assim, pois, ninguem póde mais contar com a lei nem com a justiça n'esta terra!! a depravação está superior a tudo!!
«E, que coincidencia singular! no mesmo dia e no mesmo logar em que immoralmente saltava-se por sobre a lei para ferir-me como victima d'uma imprensa livre e independente (sic), era tambem desmoralisado o acto d'um juiz, cuja beca jámais se emporcalhou no charco immundo em que tripudiara o ex-juiz de Bragança,[302] onde miseravelmente prostituiu uma infeliz, cuja cegueira não impediu o libinidinoso monstro, apparentado d'um faccinora, e que com exemplos abominandos estimula a perversidade de dous filhos libertinos, bebados e jogadores.
«Sim! no mesmo dia e logar em que sem o minimo respeito nem ao publico nem ao veneravel presidente do tribunal, o hospede d'um ladrão da praça applaudia e secundava a odienta e crapulosa opinião d'um gratuito e vilissimo inimigo, ha pouco tempo fornecedor de artigos para o meu periodico, n'esse mesmo dia o sr. dr. Meira de Vasconcellos (sic) era estupidamente ludibriado pelos vendilhões da lei, por tógas com honras de LIBRÉ da casa Mauá e dos nobres LATROCRATAS da praça do Pará (Os portuguezes).
«Debalde procuram limpar o escarro que Percheiro imprimia-lhes nas faces impudentes!...[71]
«Confesso pia e publicamente que até o ultimo instante nunca me faltou a confiança em semelhantes juizes, pois nunca, até então, nem havia atravessado o pensamento a idéa de que elles desceriam a tamanha abjecção... (de condemnar pela primeira vez o infame... depois da publicação das Questões!).
«Animou-me sempre a esperança de encontrar na Relação provectos e venerandos apostolos da justiça; enganei-me, porém, e enganei-me redondamente: alli a especulação é a lei, a depravação um culto exercido ha longos annos.
«Já houve quem dissesse que o ladrão é mais nobre ainda que o juiz mercenario; porque aquelle arrisca a vida, e este põe em risco a vida dos que julga e a propriedade dos que ficam por julgar.
«Na realidade assim é.[303]
«Por Deus! quando me chegou a noticia d'essa decisão degradante, que annulla todo o respeito e consideração, devidas a juizes probos, tive impetos de entrar n'aquelle templo, desgraçadamente profano, e correr a vergalho esses mercenarios, que o transformam em scenario de comedias obscenas, desempenhadas por ciganos...
«Ordens arbitrarias não se cumprem; no entretanto cumprem-se sentenças absurdas e brutaes!...
«Rasguem, bohemios, raça nomada! rasguem a lei, mas rasguem que o povo veja! rasguem, mas não mintam! rasguem, mas rasguem em publico, e toquem fogo nas tiras e com ella, vão por ahi além em busca de dinheiro, ou de vergonha!... Rasguem, que ella para nada serve, rolando sob vossos pés!... Rasguem, mas que o povo veja!...
«A Tribuna é communista!
«Ai! dos mercenarios se ella o fosse (sic).
«Está lavrada a sentença?
«Pois bem! vou cumpril-a e com coragem e orgulho, porque taes miserias não abatem o homem de bem; ao contrario cria-lhes sympathias, ao passo que cobrem de infamia e opprobrio aquelles que as proferem.
«Querem matar a Tribuna?!
«Pois não! todo o dinheiro, que ahi por ventura corra, é pouco, e sois pequenos demais!... ella continuará sempre; e quando acaso venha a succumbir na lucta, a idéa resistirá, e de suas cinzas surgirá a revolução do nobre pensamento que pleiteamos, eu e meus amigos, na imprensa do Pará.
«O que a Tribuna tem escripto, o que hontem escreveu, o que continuar a escrever, é todo para a historia, para cuja justiça eu appello, instruindo o meu appello com a sentença que meus inimigos (os portuguezes) compraram a um tribunal de meu paiz e contra[304] a qual servirá este de protesto solemne, pois protesto soberanamente contra tamanha iniquidade e formidavel objecção.[72]»
O celebre dr. Samuel Mac-Dowal, (redactor da Regeneração), foi o advogado do réu. E quem fez o protesto que para ahi deixamos transcripto, e que o intelligente capitão assignou de cruz, o qual, diga-se a verdade, faria chorar as pedras, se as pedras podessem vêr as lagrimas do crocodilo paraense, foi tambem o sr. Samuel, orador da associação catholica e acerrimo defensor dos jesuitas do Pará![73]
Mas não obstante a condemnação a Tribuna continuava a publicar-se e a dirigir os mesmos insultos á colonia portugueza e aos tribunaes; e na testa do pasquim figurava ainda como responsavel o mesmo Marcellino Nery, capitão do exercito. As auctoridades cruzavam os braços, sem terem força para repellir os insultos dos pasquineiros, que, julgando-se mais fortes, preparavam scenas peiores do que as presenceadas por nós em fevereiro de 1872 e setembro de 1874. E o clero parece que lhe não era estranho.
O Diario de Belem, accusado de defensor do bispo D. Antonio e do seu clero, e portanto, insuspeito na questão gravissima, que de novo se levantava contra a colonia portugueza residente no Pará, assim fallava em 30 de maio de 1876, a respeito de uns pasquins destribuidos por este tempo na cidade de Belem, chamando o povo á revolta contra os colonos:[305]
«A ordem publica póde achar-se compromettida de um dia para o outro, se a policia continuar o somno de indifferença em que se refocilla: com o fogo não se brinca.
«Na semana ultima quasi não houve dia em que se não derramassem no seio d'esta capital os mais asquerosos pasquins, primando uns pela descarada impudicicia que ostentam, emquanto proclamam outros o assassinato em massa dos portuguezes e dos mações.
«Se não acreditamos, com o Liberal e com a Provincia, que para estygmatisar tão grandes monstruosidades, seja necessario dar-lhes curso forçado estampando-os nas columnas da imprensa diaria para estender a sua circulação e perpetuar a nossa vergonha, é do nosso primeiro dever perguntar á policia se—de tantos pasquins que se distribuiam até no theatro e no largo da Cathedral (!) conforme nos asseguram pessoas de confiança, se de um só não pôde descobrir os auctores ou distribuidores? É muita cegueira!
«Não vamos até ao ponto de fazer insinuações[74]; mas da natureza d'esses documentos, dos interesses que elles procuram servir, da linguagem que empregam, de tudo isto se manifesta que não teria a policia grande trabalho para conhecer-lhes a procedencia.
«São publicações essas, prohibidas pelas nossas leis e constituem crimes policiaes ao alcance e da esphera da policia. O que faz portanto o sr. dr. chefe da policia, magistrado aliaz sizudo e circumspecto?
«Não queremos especular com assumptos d'esta natureza, nem é nosso intuito doestar pura e simplesmente ao honrado sr. Caldas Barreto, ou fazer insinuações desairosas a este ou aquelle individuo; mas só cegos não verão que esse que corre estampado nas columnas do Liberal e da Provincia, traz bem caracterizada a linguagem da Tribuna e nutre os mesmos intuitos...[306]
«Estude-se depois o caracter d'essa impressão, compare-se-a com a dos differentes jornaes que se publicam n'esta capital, e se reconhecerá que o typo é o mesmo que servio em alguns editaes das juntas da qualificação![75]
«Nós chamamos pois a attenção da policia para estes pasquins, que formigam principalmente no theatro, onde se presume que a policia está, sempre que ha representações.
«Queremos ser hoje, como sempre, justo. E pois nos dirigimos á policia, concitando-a para que interrompa o somno que a prostra desde tanto tempo e vele pela ordem publica, que ahi anda á matroca e á mercê dos interesses de occasião.
«Temos a maior sympathia pelo sr. Caldas Barreto; mas fazemos do dever uma religião, e elle antes de tudo.
«Póde a policia continuar indifferente a tantos abusos?»
Como os leitores vêem o Belem não defende o bispo, porque, jornalista sizudo, faz do dever uma religião; e por isso chamava a attenção das somnolentas auctoridades contra os pasquineiros desenfreados, que a todo o transe proclamavam o exterminio dos portuguezes e maçons.
Era, pois, mais grave do que os optimistas suppunham a situação dos nossos compatriotas residentes no Pará. Decididamente o governo do Brazil protegia os desordeiros, e o governo de Portugal recebia tudo isto como a devida satisfação promettida por aquelle a este paiz na gravissima questão do Jurupary. E não contente ainda, decretava mercês honorificas a esses[307] que no Brazil assulavam a populaça contra nossos irmãos!
Nunca a corrupção subira tão alto!
Eis como o Liberal do Pará fulminava o pasquim, transcrevendo-o no seu numero de 20 de maio de 1876:
«Os jesuitas querem a todo o transe perturbar a ordem publica, açulando os odios de raça e o fanatismo das classes ignaras, para vêr se conseguem arrastal-as a scenas de carnificina, que nos degradem perante o mundo civilisado.
«A gente da Boa Nova[76], fez hontem distribuir uma segunda edição do Brado ao Povo.[77]
«Evocam-se as recordações de um passado infame e vergonhoso, appella-se para a faca, e grita-se com toda a força:
«Á arma branca!
«Ou a igreja ou a maçonaria!
«Alerta! Renove-se o 35! mas purifique-se o povo no sangue d'esta raça maldita!»
«É especialmente contra os maçons e os portuguezes que se levanta o grito sanguinario, echo das paixões ferozes, de que os jesuitas se acham dominados.
«A seita maldita quer sangue: impelle-a a mão occulta d'aquelle, que devera ser o exemplo da caridade e do amor do proximo.
«Todas as noutes distribuem-se pasquins infamissimos, que tem o cunho jesuitico.
«A policia não póde nem deve ser indifferente a esses meios anarchicos, de que estão-se servindo os roupetas[308] para espalhar o terror nas familias e nos estrangeiros, que descançam tranquillos á sombra da nossa hospitalidade e das nossas leis.
«Em nome do povo paraense protestamos contra essa infamia, e exigimos a punição dos seus sanguisedentos auctores.
«Leia o publico o pasquim, e veja de quanto é capaz a sanha dos que fazem da religião um instrumento de odio e vinganças:
AO POVO BRAZILEIRO
«Desperta! gigante e alerta!
«Que estupida somnolencia é essa que te esmaga?
«Onde estão os teus brios?
«Que tens feito do teu heroismo?
«Por ventura já não te bate no seio um coração educado nas idéas dos nobres sentimentos?
«Por ventura descreste de tua liberdade e de tua força?
«Em summa, não vês a execração a que te arrasta a indifferença?
«Duvidas de ti? ou a lepra dos homens grandes communicou-se tambem aos teus musculos de gigante?
«Não! não é possivel!
«Tu has-de ser sempre um povo brioso e heroico!
«Volve os olhos ao passado e interroga o 35 e decide-te no que te cumpre fazer.
«Quem te tem negado o meio de subsistencia?
«Quem te impede de obteres o pão para tua mulher e filhos?
«Quem tem levado a miseria ao seio da tua familia?
«Quem tem escarnecido da tua liberdade?
«Quem tem vilependiado teus brios?
«Quem tem escarrado infamias á face dos teus?[309]
«Quem tem com a mão sacrilega revolvido as cinzas de nossos paes para melhor vomitar injurias?
«Quem tem corrompido a nossa sociedade fazendo que n'ella substitua-se a virtude pela depravação?
«Quem, finalmente, tem, depois de estrangular-nos á fome, despojar-nos de nossos direitos e reduzir nossa familia a penuria e a mendicidade, deshonra o nosso nome, o nome de nossos paes e o de nossas irmãs?
«Interroga a tua consciencia que ella te dirá:
«—Que são aquelles mesmos que deram lugar as scenas sinistras de 1835.
«Interroga aquella época que ella te responderá:
«—São esses malfeitores que Portugal exporta para o Brazil.
«Pergunta ao teu brio o que deves fazer: pede conselhos ao 35: e te decide, ó gigante!
«E são elles hoje que, estreitando o circulo de bronze com um circulo de fogo, ameaçam destruir-te para sempre.
«O primeiro passo que deram para levar ao cabo o seu canibalismo foi insultar a religião que bebemos com o leite dos seios de nossas mães.
«Depois de insultarem a Deus e a sua igreja, a esposa de Jesus Christo, esses bandidos infamam os seus sacerdotes porque estes são nossos irmãos, e superior a impiedade cynica d'essas bestas féras collocam a liberdade, a patria e a familia.
«Abandonar a causa de nossa santa religião á furia d'esses impios scelerados é descurar e despresar a propria liberdade, é vender a patria, é renegar a honra e a familia.
«E ha brazileiro, por mais infimo que seja, que tenha a covardia de deixar-se escravisar, de vender sua patria, de renegar a honra de sua familia?
«Oh! jámais!
«E, pois ergue-te gigante! e pede ao 35 que te dê[310] coragem para a um por um d'esses bandidos agarrares pelo pescoço e esmagal-os sob os pés.
«Álerta!
«Queres conhecel-os? queres saber quem são os facinoras que te insultam e imfamam, insultando e infamando a religião de teus paes e seus sacerdotes, nossos irmãos, brazileiros como nós?
«Queres conhecel-os, ó povo? ou saber onde é que elles se infurnam e tramam contra ti, tua familia, tua patria, tua religião, tua honra e teu Deus?
«Em nome do 1835 te respondo:
«—É na maçonaria.
«Sim, é ahi.
«É ahi que elles tramam contra liberdade, honra, familia e crenças do povo brazileiro.
«É ahi, porque a maçonaria é o receptaculo e valhacouto:
«—dos incendiarios;
«—dos ladrões,
«—dos assassinos
«que Portugal exporta para a nossa terra.
«—Eram e são maçons os quadrilheiros presos em S. José.
«Foi da maçonaria que saiu o assassino de Barraquim:
«Foi da maçonaria que saiu o estrangulador de Balthazar;
«Foi a maçonaria que afastou a policia dos estranguladores do porto do Cantão.
«É a maçonaria que tem protegido os incendiarios, bancarroteiros e moedeiros falsos.
«É na maçonaria que se tem combinado a perseguição ao prelado e os insultos ao clero paraense.
«Porque é ella o baluarte erguido contra a justiça publica para proteger os facinoras, malfeitores e scelerados[311] que nos vem de Portugal para realisarem o pensamento arrojado do famigerado Jalles.
«E pois, ó povo, álerta.
«1835 te ordena que tomes a tua faca, e opponhas resistencia contra esses impios salteadores, commissionados pela maçonaria e reunidos no theatro para ultrajar a tua religião, porque estão fartos de ultrajar a tua familia, tua honra, tua patria e escarnecer de tua liberdade.
«Ergue-te e sê heroico!
«Ao punhal d'esses sicarios, ao arcabuz d'esses bandidos, á gritaria obscena e injuriosa, para a qual tem sido impotente a policia e o governo, oppõe a tua faca de mato.
«Lava o insulto que a Deus é feito em teu nome, teu nome, ó povo, que elles odeiam!
«Percheiro e Carvalho tambem são agentes da maçonaria (?); e são maçons Pinheiro Chagas e Castilho.
«Alerta! renove-se o 35! mas purifique-se o povo no sangue d'essa raça maldita!
«Aos pés de cabra e rabo de macaco!
«Á arma branca!
«Eia povo! coragem!
«Decida-se d'esta lucta: ou ser brazileiro, ou venda-se a familia, a honra e a patria.
«Ou a igreja ou a maçonaria; ou ser independente ou escravo, nacional ou portuguez.
«Viva o 1835!»
Viva a civilisação! diremos nós, em pleno 1878.
No pasquim ha uma referencia a respeito da estrangulação de Balthazar, nosso compatriota. A este infeliz nos referimos nas Questões do Pará, e a proposito[312] da condemnação de um innocente, supposto criminoso, publicámos o seguinte artigo, ha tempo:
«Ha dias, quando um pobre doido, filho do Brazil, procurou a morte, sem duvida, em algum momento mais lucido, para pôr termo aos seus soffrimentos, quiz-se tornar responsavel de tão grande desastre a dois pobres enfermeiros, que, estando encarregados de guardar o doente, talvez se tivessem descuidado um pouco no cumprimento de seus deveres.
Parte da nossa imprensa fez a justiça de dar ingresso em suas columnas a uma carta queixosa do inconsolavel irmão da supposta victima, e um jornal se recusou acceitar explicações dos accusados! Em presença de tão horroroso crime tomára o ministro brazileiro todas as providencias perante o nosso governo, quando já as auctoridades do logar onde se dera o facto haviam cumprido os seus deveres.
N'este ponto, hade o nobre diplomata permittir que lhe digamos, que Portugal em nada se parece com o governo do imperio, que s. ex.ª tão dignamente representa.
Não sabemos ainda qual será o desenlace d'esta tenebrosa tragedia; mas promettemos esclarecer os nossos leitores quando for tempo opportuno.
Fallamos n'isto a proposito de um verdadeiro drama, que acaba de representar-se da outra parte de lá do oceano, em terras brazileiras.
Compare o leitor as providencias das nossas auctoridades, a favor da hospitalidade devida aos estrangeiros, com a que costumam dispensar-nos as auctoridades do Brazil.
Ahi vae a historia.
Ha pouco tempo assassinaram no imperio um infeliz portuguez. A policia brazileira, composta de cidadãos que devem comprehender a hospitalidade, tratou de[313] averiguar o caso pela forma mais extraordinaria que é possivel imaginar-se.
Antes de tudo é preciso que se saiba, que a tal policia só sabe descobrir os criminosos, quando o crime é commettido em pleno dia, na presença de muitas testemunhas. Dado o caso, porém, de ser perpetrado no meio das sombras da noite, se a victima é um portuguez, trata a policia de arredar de cima do seu patricio qualquer suspeita. As suas vistas voltam-se logo para os gallegos. Um brazileiro é incapaz de ser criminoso, embora proteste contra isto o Cearense. Foi justamente o que aconteceu no caso em questão.
No logar do delicto encontrara-se apenas um indicio que não sabemos se seria o sufficiente para o verdadeiro descobrimento dos criminosos. Esse indicio era um lenço marcado com um M. Este lenço foi levado immediatamente para o quartel de policia; mas d'ali a 3 ou 4 horas sabia-se em toda a cidade d'aquelle precioso achado!
Vejamos agora as outras diligencias a que as auctoridades procederam.
Em primeiro logar mandou-se intimar para que comparecessem no commissariado todos aquelles cujo nome ou appelido começasse por aquella inicial. O systema, além de ser arbitrario, não podia produzir o effeito desejado, porque a policia tinha sido a primeira a divulgar o segredo de tão optima descoberta.
A experiencia cremos que levou oito dias, porque foram chamados todos os Manueis! e, o que é notavel, é que nenhum cahiu na patetice de dizer que o lenço era seu!
Mas como no meio de tanta barafunda podia ter escapado algum Manuel, um jornal incendiario se lembrou de accusar Manuel Saldanha, commerciante e... portuguez. Foi chamado o homem, não obstante as auctoridades brazileiras darem pouca importancia aos[314] pasquins! E para que se não dissesse, que as mesmas davam menos importancia a um portuguez, foi este desde logo recebido com a maior deferencia... pelo carcereiro!... O motivo d'uma recepção tão desigual, fora simplesmente porque o portuguez se chamava Manuel como qualquer brazileiro. Mas ao cabo de dois dias saira da prizão o nosso compatriota, declarando como todos os outros, que o lenço fatal lhe não pertencia, accrescentando que desde ha muito cheirava rapé e que uzava lenços riscadinhos de Alcobaça!
O proprietario do jornal accusador, do jornal incendiario, que ha quatro annos consecutivos advogava o exterminio da colonia portugueza, e a cuja sombra se commettiam tantos crimes, chama-se Marcelino Nery; e dois dos seus principaes redactores chamam-se, um, Manuel Cantuaria, e outro, Manuel José de Sequeira Mendes; com tudo foram poupados á experiencia policial. Pois não deviam ser dispensados das suspeitas da policia; porque, além d'esta gente fazer uso do lenço branco e do almiscar, de cujo olor se achava impregnado o delicado marotinho, bastantes provas tem dado da sua capacidade para taes commettimentos.
Mas a questão era mais séria do que julgára Manuel Saldanha: porque, para evitar que a policia, contra a sua vontade, fosse, por qualquer acaso, encontrar os verdadeiros criminosos nas fileiras communistas, encarregou-se a Tribuna (a comedia passava-se no Pará) de assestar as suas baterias contra o pobre marinheiro. E o promotor publico do Pará, para fazer a vontade aos seus predilectos do orgão popular, processou o portuguez, que foi immediatamente mettido na cadeia.
Pouco tempo depois constituia-se o tribunal que não tem querido julgar os assassinos de Jurupary, e Manuel Saldanha apparece sentado no banco dos assassinos. A unica prova, que consta de tão monstruoso processo, é um lenço cujo dono se ignora.[315]
O juiz presidente desenrola-o, e em pleno tribunal assoa-se a elle. Pouco depois os jurados seguem-lhe o exemplo. A prova fatal foi afinal cair nas mãos do orgão da justiça publica, que se serviu exclamar, apontando para o lenço e para a fatidica letra:
—Srs. jurados! vêde e ouvi... (dirigindo-se para o supposto réu) Como se chama?
—Manuel...
—Basta, não precisamos de mais provas...
E o portuguez foi sentenciado a galés perpetuas para a ilha de Fernando de Noronha!
O jury que, alguns mezes antes, absolvera dois soldados do exercito brazileiro, assassinos confessos de dois compatriotas nossos, procedia assim contra uma pobre victima, cujo crime foi ter nascido em Portugal e chamar-se Manuel!
O que infelizmente está reconhecido, é que o odio de raça passou dos Tapuyas e dos Tomayos aos Tupinambas e aos Botocudos; e que estes o transmittiram aos brazileiros, que hoje predominam n'aquella parte da America. A unica differença a favor da raça predominante; é não fazer uso da antropophagia; mas em compensação assassina os portuguezes, e quando algum se livra do punhal e do trabuco, não escapa á sanha dos tribunaes.
Mirem-se n'este espelho os nossos compatriotas que veem no imperio um manancial de riquezas e uma terra civilisada e hospitaleira.»[78]
Agora illucidemos a questão que o tempo, magnifico juiz de nossas acções, poz nos devidos termos:
O portuguez Manuel Saldanha, appellou da injusta sentença para o tribunal da Relação do Pará, que annulou o processo e mandou pôr em liberdade a victima!
O brazileiro doido, que tentou suicidar-se, era unico[316] irmão de um barão ou visconde, e senhor de uma fortuna avultadissima.
Logo que a este titular chegára a noticia do desastre succedido ao irmão, escreveu uma carta sentimentalissima a um jornal de Lisboa em que accusava de cumplicidade os enfermeiros; e o tal jornal, ao mesmo tempo que consolava o desventurado aristocrata, negava as suas columnnas á defeza dos enfermeiros que tencionavam provar a sua innocencia!
Começou o processo, e quando elle ia esclarecer a tragedia, o illustre titular sahia immediatamente d'este paiz!...
Sobre o processo poz-se a pedra do esquecimento, que, por conveniencias, negaram ao infeliz Vieira de Castro!
Altos mysterios da justiça!...
Vejam os nossos inimigos de alem-mar como nós cá tratamos os seus compatriotas.
Nós é que não concordamos com a protecção escandalosa; e desde já protestamos contra os previlegios: o sancto principio da hospitalidade não manda proteger os calumniadores de nossos irmãos, por que os calumniadores são opulentos e quem sabe se criminosos.
Manuel Soares Pereira, é um emigrado portuguez, residente ha muito tempo no imperio do Brazil, e que assistiu como voluntario, á lucta travada entre esta nação e o Paraguay, prestando por essa occasião relevantes serviços aos feridos nas refregas; porque Soares tivera a sublime idéa de se inscrever na legião dos irmãos da caridade—que nos acampamentos da guerra aspiram a dar vida e consolações aos moribundos,[317] emquanto que os soldados d'outras legiões apontam ao peito da humanidade os Chassepots da destruição.
Aos soldados de todas as legiões—aos que ferem e matam e aos que curam—costumam dar os governos que promovem os ferimentos, a matança e os curativos, uns pendericalhos em paga d'esses serviços, que os mandões da guerra igualam, mas que a humanidade separa, como sendo a arte dos que ferem e matam uma perfeita antithesis á que exercem os que consolam e curam.
Soares Pereira, não obstante, como já vimos, pertencer a esta ultima legião, foi sentenceado á morte, pelos tribunaes do Brazil, porque tendo elle exercido um cargo humanitario, que os taes mandões da guerra não retribuiam, entendeu dever desertar da legião, onde por muito tempo servira voluntariamente, e onde o deixariam morrer de fome, em paga de uma pratica assidua de acções meritorias.
Desertar dissemos, porque como deserção é que se qualificára a sahida voluntaria de Soares Pereira, do exercito do Paraguay, sahida nunca impedida pelas auctoridades guerreiras do Brazil, estacionadas n'aquella região, em 1867, e por aquelles que lhe visaram depois o seu passaporte de subdito da nação portugueza, documento este que o nosso compatriota apresentára, no seu transito, sem receios, e conscio de que era um cidadão no goso pleno dos seus direitos.
Passaram-se sete annos depois d'aquella data. Isto é, em 1874, o supposto desertor, estabelecido então na cidade da Bahia, requereu uma certidão á repartição competente, para mostrar onde lhe conviesse, os serviços prestados ao Brazil, como enfermeiro na guerra do Paraguay.
A resposta foi ser preso o requerente, para averiguações. Feitas as taes averiguações, concluiu-se que Soares Pereira fôra considerado desertor do exercito, no[318] qual já mais se alistára como soldado, do que são sufficientes provas os documentos que temos á vista e que fazem parte do Livro Branco, apresentado ás côrtes em 1877. Não obstante, é Pereira mettido na mais terrivel masmorra do forte de S. Pedro, da Bahia, onde esteve cinco dias sem alimentos, e de onde o faziam sahir depois para os trabalhos forçados, durante 18 mezes, antes de ser julgado,[79] e só depois d'este periodo é que foi sentenceado á morte!
A 26 de março de 1876, é que foi proferida a sentença, pelo conselho de guerra reunido na cidade da Bahia.
A diplomacia portugueza, começou no imperio, em fevereiro de 1875, a sua lucta; e pelo desenlace de 26 de março, acabamos de vêr que ella não pôde evitar mais aquella vergonha para os tribunaes do Brazil, quando julgam portuguezes.
E porque nada conseguiu a diplomacia até este momento? Porque o nosso vice-consul na Bahia, o sr. Gregorio Anselmo Ribeiro Marques, que já em fevereiro de 1875, cinco mezes depois da prisão, começára a apontar o monumental escandalo, não viu secundados os seus esforços pelo nosso embaixador na côrte do Rio de Janeiro.
Vamos demonstrar esta asserção com os documentos que temos á vista.
Já notámos que passados cinco mezes depois da prisão de Manuel Soares Pereira, isto é, em 4 de fevereiro de 1875, é que começaram as providencias da diplomacia.
Expedindo o nosso vice-consul na Bahia a sua primeira nota ao presidente d'esta provincia brazileira,[319] em que pedia «esclarecimentos dos motivos que determinaram a prisão do referido individuo[80]», não remediava que a prisão illegal continuasse; porquanto, o presidente allegava era seu officio de 11 do mesmo mez e anno, que aquelle subdito de Portugal sentára praça no 16.º batalhão de infanteria de linha, escudando-se este magistrado, para fazer valer a sua affirmativa, á certidão de assentamento, que o general das armas d'aquella provincia lhe remetteu, na qual nada notava com respeito ao acto importantissimo do juramento de bandeira, que era indespensavel para tornar legal o assentamento; o que não impediria, ainda assim, quando o fosse, de que taxassemos de inconsequente o prolongamento da prisão, sem julgamento, de um subdito de nação irmã e amiga; e de barbara, a obrigação imposta arbitrariamente a esse mesmo subdito, de ser levado aos trabalhos forçados, a que a justiça condemna os criminosos convictos.
Não satisfeito com a resposta e com a tal certidão, tudo desconforme, á vista das mais comesinhas noções do direito, o nosso vice-consul, expedindo segunda nota em data de 4 de março do referido anno, não só accusava a falta de juramento de bandeira, que se não exigia dos voluntarios nacionaes (para a guerra do Paraguay) e menos se exigiria de um estrangeiro; mas o que era para notar, não se provava, que o nosso compatriota estivesse «desembaraçado pelo consulado para levar a effeito aquelle juramento, documento de que se não poderia prescindir, em vista da doutrina consignada na resolução do governo imperial, expedida pelo ministerio dos negocios estrangeiros, na data de 4 de julho de 1852», e de outras noções do direito internacional, muito bem apontadas nas notas expedidas, mais tarde, pelo sr. Andrade Corvo.[320]
Á vista d'isto, o presidente replicou immediatamente, que submetteria á consideração do governo imperial o expendido pelo vice-consul.
E o governo imperial respondeu assim, pela bocca do nosso ministro, na côrte do Rio de Janeiro:
«Legação de Sua Magestade Fidelissima, Rio de Janeiro, em 12 de abril de 1875.—Ill.mo sr.—Em resposta ao officio que v. s.ª me dirigiu em data de 8 de março ultimo, cumpre-me dizer-lhe que, em vista das disposições da lei brazileira, de 20 de setembro de 1860, e do que foi declarado pela de 20 de junho de 1865, não póde ser attendida a pretenção de Manuel Soares Pereira, a que se refere o citado officio de v. s.ª Isto mesmo acaba de ser decidido pelo governo imperial em deliberação tomada sobre o referido assumpto, etc., etc.—Mathias de Carvalho e Vasconcellos.»
Teria o vice-consul exorbitado? ou enganar-se-ia o governo imperial?
Parece que sim, que este se enganou, e com elle o nosso illustre diplomata, o sr. Mathias de Carvalho e Vasconcellos, que sem protesto, acolhera a decisão injusta do governo, junto do qual estava acreditado, para tratar de proteger os interesses da nação portugueza, sua patria.
Vejamos se sae ou não exacta a nossa asserção.
A informação do ajudante general, a que recorrera o ministro da guerra brazileiro, para negar a justiça que requeria Manuel Soares Pereira, por via do consul, diz que os corpos de voluntarios da patria, organisados de conformidade com as disposições do decreto de 7 de janeiro de 1865, para a guerra do Paraguay, estiveram sempre sujeitos ás leis militares, etc.; etc.,[321] e que a lei de 20 de setembro de 1860 comprehende os engajados e voluntarios de qualquer natureza, como praças do exercito, e por consequencia sujeitos ao julgamento pelo crime de deserção, etc. Que o juramento de bandeira, era uma mera formalidade, que não podia impedir o assentamento de praça, o que a nosso ver, não impediria tambem que nos assentassem praça lá no Brazil, sem o previo consentimento, para sermos julgado desertor, e depois sentenciado á morte, se por desventura lá apparecessemos!...
Mas com respeito á proposição do vice-consul, de que não se deveria julgar a praça assente ao portuguez, sem que este apresentasse documento do consulado, com o qual se provasse estar desembaraçado, para então poder alistar-se no exercito estrangeiro, não disse nada o ajudante do general.
Foi lapso, naturalmente!
O vice consul é que não se conformou com a informação do tal ajudante, nem com a decisão que á vista da mesma dera á causa o ministro brazileiro respectivo; e despresando o systema adoptado pelo representante de Portugal, de não metter prego nem estopa no batel escavacado da nossa dignidade, novo protesto elevou até junto do sr. Mathias de Carvalho, para ver se livrava o desgraçado portuguez das garras aduncas da tal justiça, que, como a dos tugs levava em mira engordar a sua presa, para ser mais agradavel á deusa Kaly o supplicio final da laçada!
É a 16 de abril de 1876, que o vice-consul expede terceira nota ao presidente da Bahia, rebatendo as doutrinas erroneas da informação do ajudante do general, doutrinas que o sr. Mathias de Carvalho, como já vimos, deixára passar, sem a devida replica.
Em 19 responde-lhe o presidente; e a 20 submette o vice-consul, nota e resposta, á legação de Portugal no Rio de Janeiro.[322]
Examinemos estes documentos, para, a seu turno, fulminarmos a systematica abstensão do embaixador de Portugal em face d'esta questão gravissima.
«A legislação citada pela repartição do ajudante general, diz o vice-consul, é toda applicavel aos subditos do paiz, que tendo servido na armada ou no exercito, quer como voluntarios, quer como guardas nacionaes; e quando as disposições do artigo 5.º da lei n.º 1:101, podessem ser extensivas a estrangeiros, só seriam applicaveis áquelles que fossem legalmente admittidos, exhibindo o desembaraçado do consulado de sua nação; por quanto é essa a opportunidade que tem o respectivo agente consular para lhes fazer sentir, não só as obrigações a que se tem de sujeitar, como averiguar se o subdito de sua nação tem para com essa algum compromisso que o inhiba de sua protecção; este principio, sendo universalmente reconhecido, o foi tambem pelo governo imperial na sua resolução expedida pelo ministerio dos negocios estrangeiros na data de 4 de junho de 1852, e jámais controvertido por nenhuma das disposições da legislação invocada pela repartição do ajudante general; principio este ainda recentemente firmado pelas disposições do artigo 66.º, do regulamento annexo ao decreto imperial, n.º 5881.»
E n'esta conformidade, pedia o relaxamento da prisão de Manuel Soares Pereira, e insistia na reclamação encetada; «e que na nota alludida resalvava os direitos que lhe podessem competir pela reclamação que houvesse de fazer dos damnos e prejuizos soffridos por aquelle seu compatriota, desde o dia da sua prisão até áquelle em que fosse posto em plena liberdade.»
O presidente da provincia nada podia decidir, visto que o assumpto já havia sido submetido ao governo central. Portanto a resposta d'este magistrado ao vice-consul foi:—«que levaria ao conhecimento do ministro a nova reclamação».[323]
Conservaremos a ordem dos documentos, estabelecida no Livro Branco; por isso vamos transcrever o que segue, emquanto o governo brazileiro não replica á 3.ª nota consular:
«Legação de Sua Magestade Fidelissima. Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1875.—Ill.mo sr.—Remetto a v. s.ª o incluso requerimento de Manuel Soares Pereira, a fim de que me imforme sobre a verdade do seu conteúdo. Quanto á petição que o acompanha, convém que v. s.ª aconselhe ao peticionario o meio legal que deve observar para que o recurso de que se trata chegue competentemente ao seu alto destino.—Deus guarde, etc.—Mathias de Carvalho e Vasconcellos.==Ill.mo sr. Gregorio Anselmo Ribeiro Marques, encarregado do consulado de Portugal na Bahia.»
Transcrevemos na integra os documentos assignados pelo nosso embaixador a respeito de tão desgraçada questão, para que todos julguem da justiça das nossas appreciações.
Antes de mais nada examinemos a data d'aquelle documento,—17 de novembro de 1875—e a do ultimo oficcio do vice-consul,—20 de abril de 1875—em que este funccionario remettia a sr. Mathias de Carvalho a copia da 3.ª nota a favor de Soares Pereira, e signifiquemos o nosso assombro por vêrmos que o embaixador do Portugal não deu, n'aquelle extensissimo periodo—oito mezes—, a mais insignificante providencia a respeito da questão; é verdade, que, findo esse tempo, reenviava o requerimento e a petição do desgraçado portuguez, em que se pedia ao ministro o salvasse do martyrio da prisão e dos trabalhos forçados, a que, contra todos os principios do direito, o obrigavam as humanas auctoridades da Bahia... porque esse requerimento não ia pela via legal, que o infeliz não sabia observar! E o que é mais assombroso ainda, é vir o nosso embaixador, depois de estar informado[324] dos acontecimentos, pedir esclarecimentos sobre a verdade do conteúdo do requerimento e petição!
Isto não se commenta.
Mas o portuguez Manuel Soares Pereira, que permanecia na prisão havia já 13 mezes! quando o não mandavam trabalhar para um logar, na distancia de 40 kilometros, naturalmente «porque estando preso no humido xadrez, podia adquirir a terrivel molestia de beriberi, que tanto ataca as mulheres paridas e os homens de vida sedentaria», desculpa ironica e ao mesmo tempo pittoresca, que á barbaridade dava o seu magnanimo salvador, o sr. Manuel Alves Ferreira, o portuguez Soares Pereira diziamos, tinha obrigação de esperar pelas providencias da diplomacia!
Que importava que essas providencias viessem depois da sentença injusta, passados uns poucos de mezes de supplicios, peores que a morte, já quando o infeliz estivesse em marcha para a forca?!
Mais vale tarde do que nunca!
Um portuguez desprotegido não vale tanto como qualquer compadre de sua magestade o imperador do Brazil, ou de outra qualquer real personagem!...
Um portuguez pobre, sempre é um portuguez pobre; e os embaixadores de Portugal junto dos governos das nações estrangeiras, não devem importar-se com esta qualidade de gente!
O ministerio da guerra só respondeu á nota do vice-consul, datada de 16 de abril de 1845, em 25 de setembro; isto é, cinco mezes depois! não obstante julgar aquella repartição, que ao consul não assistia razão plausivel para reclamar justiça do governo brazileiro a favor do subdito portuguez, despoticamente encarcerado na enxovia, desde 22 d'outubro de 1874,[325] contra as expressas determinações dos codigos militares e civis.
O governo, conformando-se na sua replica, com a letra da circular de 4 de junho de 1852, confirmada pelas disposições do artigo 66.º do regulamento annexo ao decreto n.º 5.881, lembrados pelo vice-consul, concordava com a opinião d'este nosso representante na Bahia, que julgára indispensavel a apresentação do desembaraçado, para Soares Ferreira poder assentar praça.
Mas como era preciso achar um ponto de discordancia, porque o facto da prisão do portuguez estava consumado, e planeado o julgamento imbecil, que o havia de sentencear á morte, e porque as auctoridades brazileiras nunca costumam reconsiderar quando se trata de marotos,[81] era preciso que o sophisma viesse enredar a razão.
Procuremos as proprias palavras do governo imperial.
Diz elle, na sua replica:
«Ora a hypothese do aviso do ministerio dos estrangeiros (circular de 4 de junho de 1863) é figurada para o caso de engajamento, em que a parte se apresenta realmente como estrangeiro; entretanto que no caso de que se trata, o individuo occultando a sua qualidade de estrangeiro, assentou praça de voluntario da patria como se brazileiro fosse: não ha por tanto paridade, e fica por terra o argumento que o encarregado do consulado quiz d'ali tirar.»
Antes de desmentirmos a supposta affirmativa, de que o portuguez sentára praça de voluntario como se brazileiro fosse, devemos dizer que nos assombra a ingenuidade do governo imperial em acreditar que se fizessem assentamentos de praça, sem as devidas formalidades,[326] que, se fossem observadas, dariam em resultado conhecer-se a nacionalidade do que se offerecia para o serviço do exercito.
E que razão haveria para o portuguez occultar a nacionalidade?
A negação do desembaraçado da parte do consulado?
E qual seria o consul que negaria esse documento na occasião da guerra do Paraguay, em que brazileiros e portuguezes se auxiliavam mutuamente, como se a causa fôra commum?
Mas se Soares Pereira se apresenta como enfermeiro para que é teimar em chamar-se-lhe praça do exercito?
Por que foi segundo sargento do 14.º corpo de voluntarios da patria, dizem.
Venha o documento em que se prove que elle sentára praça no referido corpo.
Não ha, por que esse corpo foi dissolvido, dizem.
Mas isso não é razão.
É, replicam os sabios brazileiros!
Então suppõe-se que Soares Pereira sentára praça, e com essa supposição levam o maroto ao tribunal, depois de 16 mezes de prisão e de trabalhos forçados, com a grilheta aos pés!...
«Quanto ao artigo 66.º do regulamento ultimamente expedido para o recrutamento, dizem do ministerio da guerra, na já alludida resposta, alem de não poder ter effeito retroactivo, refere-se tambem ao caso em que o estrangeiro se apresenta como tal para assentar praça de voluntario no nosso exercito.»
Comprehende-se á vista d'isto, que o governo brazileiro castigava o portuguez, por não ter declarado que era estrangeiro, e ao qual esse governo considerava desde então como naturalisado cidadão brazileiro, contra as formalidades exigidas pelas leis que regulam o assumpto, de 23 de junho de 1855 e de 12 de julho de 1871![327]
Isto regista-se e não se commenta.
Aquella tirada de que o artigo 66.º não podia ter effeito retroactivo, quando se tratava de esclarecer determinações ambiguas de datas anteriores, e, o que é mais, quando se tratava de proteger o subdito de uma nação irmã e amiga, é... digamos a verdade sem rebuço, é irracional; porque faz lembrar aquella passagem da fabula em que o leão, por se julgar o rei da força, trocidava a presa, emquanto os pequeninos, ávidos de fome, se affastavam do bruto para não terem a sorte do veado!
Em resposta ao officio da legação, com data de 17 de novembro, que atraz deixamos transcripto, e no qual se pedia informação ao vice-consul sobre o requerimento incluso, escreve o seguinte este empregado do governo, em seu officio de 29 de novembro do referido anno:
«1.º Que em resposta á contestação de que a v. ex.ª dei conhecimento em meu officio de 20 de abril proximo passado (sic), recebi da presidencia d'esta provincia o officio datado de 14 de outubro ultimo, transmittindo copia do aviso do ministerio da guerra, datado de 7 d'aquelle mez, e não obstante a doutrina do citado aviso referir-se a que o individuo em questão occultava a sua nacionalidade, assentando praça como voluntario, esse facto só se poderia verificar do primitivo assentamento da praça no 14.º corpo de voluntarios, em que o mencionado individuo diz ter-se inscripto como enfermeiro; entendi pois não treplicar sobre o assumpto, em vista do que v. ex.ª se dignou communicar-me[328] em officio de 12 de abril do corrente anno,[82] o qual só me veio parar á mão posteriormente ao meu citado officio de 20 do referido mez.
«2.º Que tendo feito noticiar verbalmente ao peticionario a resolução do ministerio da guerra, e recommendando-lhe que, quando tivesse de responder ao conselho de guerra, me avisasse para dar-lhe defeza, presisto n'esse intento, não obstante o peticionario parecer não haver confiado nos meus melhores desejos, o que desculpo, em vista da situação em que se collocára.
«Que já em tempo fiz ver ao peticionario que o seu recurso para a munificencia imperial me parecia inopportuno, se por ventura tivesse de responder ao conselho de guerra.
«Concluo, ponderando a v. ex.ª, que o peticionario nenhuns meios tem, e que o advogado já me preveniu de que, para a defeza do peticionario, o que convinha essencialmente era obter uma certidão do primitivo assentamento de praça no 14.º corpo de voluntarios; se, pois, v. ex.ª approvar o meu intento, muito conveniente seria obter-se no ministerio da guerra aquella certidão», etc. etc.
O vice consul não devia estranhar que o desgraçado tivesse pouca confiança nas diligencias officiaes, se attendesse a que essas diligencias a nada obstavam, naturalmente pelo pouco ou nenhum interesse que lhe prestava o embaixador portuguez na côrte do Rio de Janeiro.
Assim, pois, Soares Pereira não teria mais remedio se não recorrer a outros meios, unicos que o salvaram, como havemos de demonstrar.[329]
Mas continuemos a transcripção dos documentos para provarmos o desmazelo do embaixador, e a insaciavel vontade das auctoridades brazileiras em prejudicar-nos, ainda nas causas mais justas.
Em resposta ás informações do vice-consul, de 29 de novembro, acima transcriptas, communicava a legação de Portugal no Rio de Janeiro o seguinte:
«Remetto a v. s.ª a certidão do que consta no archivo da repartição fiscal de guerra ácerca do subdito portuguez Manuel Soares Pereira.
«Quanto á petição por este dirigida a sua magestade o imperador que remetto junta, reporto-me ao que já disse a v. s.ª no meu officio de 17 do referido mez de novembro, etc. Mathias de Carvalho e Vasconcellos.»
E mais nada. Nem um conselho sequer para encaminhar a questão a um desenlace feliz e justo! Nem um conselho sequer, não: o embaixador portuguez, com o seu desprezo manifesto em todos os seus officios, dá-nos a prova desconsoladora de que pugnava mais pela desgraçadissima causa sustentada tão infelizmente pelas auctoridades do Brazil contra um subdito da nação portugueza, aconselhando sempre o vice-consul... ao desprezo da causa que importava a salvação de um homem e a dignidade de Portugal! E dizemos que aconselhava ao desprezo, porque outra cousa não é devolver o requerimento que Soares Pereira lhe endereçára, afim de que o vice-consul informasse a legação de uma cousa sobre que a mesma legação já estava informada havia oito mezes; e outra cousa não é senão desprezo devolver a petição que ao imperador fizera a victima, lá porque a petição não ia pelos tramites legaes!
Pois, para que mais servem os embaixadores juntos dos governos das nações amigas, se não para tratar de advogar os interesses de seus compatriotas?[330]
Venha pelos tramites legaes; isto é: metta na caixa o requerimento!
E quando chegaria o requerimento ao seu destino?
Naturalmente depois da fuzilaria ter feito o serviço que lhe incumbira o justiceiro tribunal da Bahia!
Se a um facto quasi identico, succedido ha pouco na India, em que a causa de um portuguez era menos justa, o peticionario recorresse pelos tramites legaes, ou se el-rei D. Luiz apontasse ao peticionario os taes tramites, para se não sujar com o acto nobilissimo que praticou salvando-o; o portuguez estaria naturalmente a esta hora com a cabeça de menos... á espera do decreto que lh'a poupasse!
Apontar a via dos tramites legaes a quem tinha sede de justiça, n'uma epoca de depravação, que se assimelha á que predominava no imperio dos Caligulas e dos Neros era desenganar o padecente de que justiça não seria feita. Foi justamente o que Soares Pereira pensou, recorrendo aos meios da reacção energica pela imprensa, contra os actos de selvageria dos tribunaes brazileiros; e foi isto que o salvou, como vamos demonstrar.
É chegado o dia 27 de março de 1876, em que o tribunal militar da Bahia condemna Manuel Soares Pereira á pena de morte pelo supposto crime de deserção.
Perante o tribunal não se apresenta defensor para o réo, e sim um procurador que levava uma defesa escripta para ser lida!
O auditor de guerra vendo a defesa sem assignatura, disse que não produziria seus effeitos, porque não estava em termos, visto que devia terminar por artigos, etc. etc.[331]
Depois de algumas observações foi admittida a defesa, assignando o procurador que a tinha levado.
Esta não foi lida, nem o procurador arvorado em advogado, disse uma palavra em defesa da victima.
Seguiu-se o conselho, e o auditor de guerra, conhecendo a critica posição do reu, que se achava sem defensor, offereceu o encargo da defesa ao sr. Manuel Alves Ferreira, negociante portuguez residente na Bahia, auctor dos avulsos—Ás nações civilisadas do universo, em que desmascara a inepcia da diplomacia e a barbaridade das auctoridades brazileiras contra um subdito de nação amiga e irmã, e de cujos avulsos extraimos os esclarecimentos que vamos indicando, avulsos que salvaram o condemnado.
Manuel Alves Ferreira não póde acceitar o encargo «porque não se achava preparado para esse fim.»
Os cuidados promettidos pelo vice-consul eram assim postos em practica! A promessa que elle fizera n'um officio que para ahi deixámos transcripto não podia ser mais fielmente executada!
Eis como esta auctoridade informa do succedido em 27 de março á legação do Rio de Janeiro, em seu officio de 6 de abril, dez dias depois da condemnação de Soares Pereira:
«Corre-me o dever de participar a v. ex.ª que não obstante a defesa escripta (sic) conforme a copia junta, que promoví em favor do subdito de s. m. f..., ao qual se refere o officio de v. ex.ª de 25 de janeiro ultimo, foi o dito individuo condemnado á pena capital a 27 de março ultimo.
«Em 28 do mesmo mez solicitei da presidencia desta provincia copia da respectiva sentença, a respeito da qual me foi respondido o que consta dos officios datados de 31 de março e de 5 do corrente mez, etc. (de que não se passaria a certidão pedida!).
«Dignando-se v. ex.ª no citado officio reportar-se ao[332] que me havia dirigido em 17 de novembro, ácerca da petição de graça, vou solicitar de v. ex.ª o favor (sic) de instruir-me se deverá elle ser encaminhado pela legação a cargo de v. ex.ª, e se se deverá aguardar a decisão definitiva do tribunal superior.
«Devo igualmente certificar a v. ex.ª que sobre o facto da condemnação foi, em 29 de março ultimo, publicado aqui um escripto na gazeta denominada Diario da Bahia[83], além de outros; tudo isto tem servido para commentarios que se tornam desagradaveis, e, a meu ver, de nenhuma utilidade para o paciente.» etc.
N'este ultimo ponto se enganava o vice-consul, porque foi devido unicamente aos escriptos de energica defesa, publicados por Alves Ferreira, que a diplomacia acordára do lethargo que a deshonrava, salvando assim o nosso infeliz compatriota Soares Pereira das selvaticas garras da justiça brazileira. É o que havemos de provar.
Mas antes d'isso cumpre transcrever o officio do embaixador portuguez, datado de 24 de abril, em resposta ao do vice-consul, que acima deixámos apontado, com a data de 6 de abril, o qual é concebido nos seguintes termos:
«Se a sentença que condemnou o subdito portuguez Manuel Soares Pereira deve ser submettida ao tribunal superior, é preciso aguardar a decisão d'esta instancia antes de recorrer a uma petição de graça.
«Não é por intermedio da legação de s. m. que se apresentam taes recursos, ainda quando se trate de subditos portuguezes que tenham direito á protecção das suas auctoridades (sic). Esses recursos tem regras de[333] processo que cumpre observar e vias competentes por onde devem ser encaminhados ao seu alto destino.
«No caso em que Soares Pereira apresente em occasião propria (?) a sua petição de graça, espero que v. s.ª me dará então conhecimento d'este facto, etc. (assignado) Mathias de Carvalho e Vasconcellos.»
Isto é de mais!...
Mas não nos desconsolemos com o procedimento do nobre embaixador: porque se elle não deu grande attenção ás sollicitações justissimas de mais de um anno, que lhe eram dirigidas pelo vice-consul na Bahia, prestou melhor attenção ao energico avulso a que já nos referimos.
Eis como a legação o encaminha para junto do governo de s. m. imperial:
«Legação de sua magestade fidelissima. Illm.º e exm.º sr. duque de Caxias.—Tenho a honra de passar ás mãos de vossa magestade um impresso, publicado na Bahia, referente ao procedimento havido com o subdito portuguez Manuel Soares Pereira.
«Solicitando a esclarecida attenção de v. ex.ª para o que se allega na dita publicação, estou certo que v. ex.ª se servirá ordenar as providencias que a natureza do assumpto reclama, etc., (assignado) Mathias de Carvalho e Vasconcellos.»
E mais nada. Depois d'isto s. ex.ª o embaixador portuguez fazia as malas e retirava-se para a Europa!
Para na actualidade se conseguir qualquer cousa dos poderes publicos é preciso empregar dois meios, bem dissimilhantes entre si: um d'elles é o favoritismo de que lança mão a venalidade, em prol da propria venalidade; outro é a reacção energica, empregada por[334] gente digna contra os actos de flagrantissima injustiça dos potentados.
São mais felizes aquelles, quando campea a corrupção que nos avassalla; e não deixam de ser considerados, ainda que com menos exito, os actos de reacção que deixamos indicados.
No caso sujeito, o portuguez illustre, cujo nome nos honramos muito de inscrever n'este logar, o sr. Manuel Alves Ferreira, conseguiu com os seus protestos—Ás nações civilisadas do universo, que o governo portuguez tomasse a peito a defeza do nosso compatriota, condemnado injustamente pelas justiças brazileiras, e que havia sido desprezado pela legação de Portugal no Rio de Janeiro como já vimos.
Foi o seu primeiro protesto publicado em quasi todos os jornaes portuguezes, e entregue ao imperador e aos passageiros do vapor Hevelius, em viagem para a Europa; protesto que chegou ás mãos do ministro dos negocios estrangeiros de Portugal, e que deu origem ao telegramma d'este alto funccionario do estado, ao então encarregado da legação portugueza no Rio de Janeiro, no qual se participava que o governo de sua magestade não se conformára com as circumstancias do julgamento de Manuel Soares Pereira, despacho que dera igualmente logar á reclamação diplomatica da embaixada, que não vemos extractada no Livro Branco, apresentado ás côrtes em 1877, do qual extrahimos os documentos officiaes aqui mencionados, mas á qual se refere o officio do encarregado dos negocios de Portugal, com data de 9 de junho de 1876.
O acto mencionado—de reacção—, secundado de mais alguns protestos de Alves Ferreira, deu em resultado a reforma, em ultima instancia, da sentença do conselho de guerra da Bahia, modificando a pena capital, em que tinha sido condemnado Soares Pereira, a cinco annos de prisão com trabalhos![335]
Já não era pouco; mas era preciso mais.
As bem elaboradas notas diplomaticas do sr. Andrade Corvo, e os avulsos de Alves Ferreira, fizeram o resto: isto é, conseguiram o perdão da munificencia imperial.
Já era muito!... e já era muito, porque aos innocentes tambem... se perdoa!
Mencionemos agora as providencias empregadas por Alves Ferreira, nos seus avulsos; e extratemos para aqui as informações que a respeito dos soffrimentos impostos pelas auctoridades do Brazil ao nosso compatriota Soares Pereira, aquelle dignissimo portuguez divulgou no imperio, para vergonha do proprio imperio.
Primeiro protesta Alves Ferreira nos jornaes da Bahia contra a selvageria do tribunal militar; e não contente com isto, faz imprimir o seu primeiro avulso, apello As nações civilisadas do universo, que distribue com profusão.
Neste avulso relata o seguinte:
«Em janeiro proximo passado, escreveu o Diario da Bahia, dizendo que no quartel do forte de S. Pedro, d'esta cidade, achava-se preso ha 15 mezes um portuguez sem ter commettido crime algum.
«Á vista da noticia dirigi-me ao dito quartel e ahi encontrei Manuel Soares Pereira, portuguez, ao qual perguntei o motivo de sua prisão.
«Respondeu o seguinte:
«No principio da guerra do Paraguay, formou-se na cidade da Cachoeira, onde me achava um batalhão de voluntarios; seu coronel convidou-me a acompanhar o mesmo batalhão na qualidade de enfermeiro, offerecendo-me vantajosa remuneração.[336]
«Seduzido pelo que me prometteu de viva voz, sem fazermos contracto algum nem me mostrar a lei em que ia viver, acompanhei o batalhão até ao Rio de Janeiro. Ali cahiram muitos soldados de bexigas, a quem assisti com dedicação, tanto que, sendo visitada a enfermaria por S. M. o Imperador, elle mesmo me louvou e animou, ordenando-me a pedir o que fosse preciso para os enfermos. Pedi leite e agua, que era do que mais falta se sentia, sendo tudo fornecido immediatamente. Em seguida marchou o batalhão para os campos do Paraguay, onde servi sempre com dedicação na qualidade em que embarquei. Dissolvido o batalhão, por ter morrido muita gente, passei para outro, que teve o mesmo fim, pelo mesmo motivo, e assim por diante, até que me encostaram ao 16 de linha, de cujo batalhão me ausentei pelos seguintes motivos:
«O coronel que me convidou a acompanhar o batalhão, não tendo cumprido o que verbalmente me prometteu, nunca me pagou o ordenado de enfermeiro mas sim de sargento.
«Os que lhe succederam fizeram o mesmo, até que um dia appareceu uma ordem no campo para que fossem rebaixados a soldados razos todos os estrangeiros que tivessem qualquer posto no exercito; (!) fui eu incluido n'esta ordem, sendo rebaixado a soldado raso, continuando sempre como enfermeiro.
«Quiz retirar-me, não consentiram; dizendo eu que não era engajado, não me attenderam; tive pois de me sujeitar á força.
«Os meus soffrimentos aggravaram-se; o soldo que me prometteram de enfermeiro nunca me pagaram; foi reduzido ao de sargento; deste ainda reduziram para o de soldado, e nem este me pagavam; ficaram-me devendo nove mezes.
«Recebi cartas de minha familia, que reside n'esta[337] provincia, dizendo-me que estava reduzida á ultima miseria, que a viesse soccorrer para não morrer de fome.
«Larguei tudo, embarquei para o Rio de Janeiro, tomei passaporte de meu consul e vim cuidar dos meios de subsistencia de minha familia.
«Aqui vivi alguns annos de negocio, comprando a credito a pessoas que em mim se confiavam.
«Um dia mostraram-me um decreto em que o governo convidava a vir receber o soldo e a gratificação a todos que, tendo servido na guerra do Paraguay, não estivessem quites com o governo.
«Apresentei-me no quartel, procurei receber o que me deviam de soldo e gratificação; mas o que encontrei foi esta prisão, onde estou ha quinze mezes e onde sou tratado como galé ou sentenciado, fazendo todo o serviço que é imposto aos maiores criminosos já sentenciados.
«Fiz dous memoriaes ao imperador, que não sei qual o caminho que tomaram nem que despacho tiveram.
«Já vê V. que estou aqui na terra alheia inteiramente desamparado!!»
«Á vista disto dirigi-me ao encarregado do consulado, o sr. Gregorio Anselmo Ribeiro Marques, para saber o que havia a tal respeito.
«Elle disse-me que tinha reclamado do ministro da guerra a soltura do subdito de S. M. Fidelissima; mas que, julgando-o s. ex.ª desertor, o mandára submetter a conselho de guerra e que este seria breve.
«Estranhei-lhe o tempo de prisão que tinha soffrido um subdito de S. M. Fidelissima, sem ser julgado.
«Appareceram varios escriptos no Diario da Bahia de 1, 9, 17 e 18 de fevereiro do corrente anno, e 19 e 23 de março corrente, todos em relação a esta desgraçada questão.
«Custaram-me estes escriptos um insulto por uma[338] gazeta de 22 de março, na qual me chamavam parasita e o mais que o despeito e pouca educação costumam dar.
«Resignei-me, porém, dizendo commigo que o autor do tal escripto queria-se despir para me enfeitar.
«Em 22 do corrente fui avisado, por pedido do pobre desgraçado, que responderia a conselho a 23.
«Avisei d'isso o encarregado do consulado de Portugal, o qual me mandou dizer que tanto o advogado como o procurador do consulado estavam avisados para darem as providencias.
«Apresentei-me no conselho de guerra, esperando pelo advogado, mas qual, o advogado nunca appareceu.
«Correu o processo na quinta-feira, que não poude ser terminado, sendo-o hoje com a condemnação de pena de morte para este infeliz portuguez.
«Em todo o tempo que este infeliz se acha preso no quartel, ainda não recebeu soccorro de quem quer que seja, nem o receberá, pois actos que não são vistos por todos, que não pescam commendas e cruzes, não são dignos de serem feitos pelos grandes homens.
«V. V. S. S., porém, que parecem pensar de outra maneira, darão a esta questão a publicidade que entenderem; para que no mundo inteiro se conheça este caso.
«Vou publicar esta carta no Diario da Bahia, não só para que S. M. o imperador veja e se recorde das promessas feitas ao infeliz, como para vêr se ha alguem que conteste as verdades que esta encerra» etc.
E á ultima hora do dia 28 de março de 1876:
«Acabo de chegar da prisão onde se acha o infeliz Manuel Soares Pereira. Quando me viu, perguntou-me se o conselho havia reunido e qual a deliberação.
«Estranhei a pergunta, pois entendia que deveria ter assistido á continuação do julgamento, e que lhe teriam lido a sentença.[339]
«É verdade, que, chegando eu hontem ao logar onde funccionava o conselho, só alli encontrei o pessoal do mesmo; entendendo eu que já se deveriam ter retirado o réu e o procurador advogado, pois á hora que lá cheguei se levantava o mesmo conselho.
«Pude unicamente saber por dois officiaes do mesmo, da deliberação que tomaram.
«Quem commentará isto?
«A carta dirigida aos senhores redactores do Brazil, aqui publicada, foi tambem no Diario da Bahia de 29 de março de 1876, e entregue o mesmo Diario no mesmo dia, a S. M. o imperador, no porto da Bahia de S. Salvador.
«Depois de preso, esteve o infeliz cinco dias sem receber ração. Se não morreu de fome, deve-o aos companheiros de prisão, que lhe deram por esmola um boccado da escassa comida.
«Passados cinco dias, aos gritos que a fome incitava no desgraçado, foi este posto em custodia, ou encostado para receber o alimento.
«Depois de tres mezes, abriram-lhe praça em uma companhia, e como tal recebe a ração no Xadrez.
«Tudo isto me foi asseverado pelo padecente; mas os interessados em encubrir o occorrido, podem negar o que affirma o estrangeiro; elles têm testemunhas do quartel, como as que deram para condemnar á morte o desgraçado:—quem poderá provar o contrario?»
No segundo avulso que temos presente, conta Alves Ferreira mais alguns pormenores a respeito do infeliz condemnado, e publica a carta que expedia aos directores da Caixa de Soccorros de D. Pedro V, afim de que o ajudassem a salvar o desgraçado.
O seu magnanimo coração leva-o ao ponto de despender[340] grossas quantias na publicação dos protestos, que elle offerecia gratuitamente ás pessoas que desejassem orientar-se das occorrencias.
Ouçamos o que elle conta no referido avulso, datado de 11 de abril de 1876:
«Nos ultimos dias do mez passado requereu o infeliz portuguez Manuel Soares Pereira ao ex.mo sr. general das armas certidão da sentença proferida pelo conselho de guerra.
«Teve o seguinte despacho:—
«Requeira pelos tramites legaes.
«Em principio do corrente fui ao quartel do Forte de S. Pedro e pedi em nome do condemnado licença ao sr. commandante da companhia para que o homem pudesse pedir certidão de algumas peças do processo.
«Concedeu licença o sr. commandante da companhia.
«Sahi, fiz o requerimento; voltando levei-o ao desgraçado, este o assignou.
«Entreguei-o immediatamente ao sargento, para este o entregar ao commandante da companhia, para depois ao commandante do batalhão e depois ao general das armas, etc.
«Voltei em outro dia, fui saber do condemnado o que havia a respeito.
«Disse-me que lhe haviam apresentado de novo o requerimento para que elle escrevesse por baixo da assignatura esta palavra—Soldado—para lhe darem as certidões pedidas.
«Negou-se o negociante, dizendo que tal não faria, pois é negociante e não soldado.
«Em seguida, procurei o sr. tenente-coronel commandante do batalhão, pedindo a s. s.ª que me fizesse o favor de encaminhar o requerimento, afim de se extrairem as certidões n'elle pedidas.
«S. s. disse-me que não daria certidão alguma, que[341] o homem tinha sido condemnado e que ninguem pode obter certidão de uma sentença depois de proferida: disse-me ainda outras coisas muito bonitas, que virão a luz logo que as circunstancias o permittam: por ora não; elles tem em seu poder o meu protegido...
«Á vista das propostas do sr. commandante fiquei n'uma luta comigo mesmo; ora duvidando da minha razão, ora da de muita gente.
«Dizia assim: o ex.mo sr. general das armas não saberia que não era premittido dar as certidões pedidas? Se o sabia porque despachou: Requeira pelos tramites legaes?
«Se não podiam dar as certidões de maneira alguma para que foram dizer ao homem, que se queria as certidões escrevesse por baixo do nome a palavra—soldado?
«Não posso ser mais extenso; este é pago a tanto por linha; meu dinheiro é pouco, e temo que haja muitos outros infelizes nacionaes e estrangeiros, que precisem de meu auxilio.
«As pessoas de qualquer parte do mundo que quizerem ler um impresso a respeito d'esta desgraçada questão podem mandar pedir, que lhe será fornecido gratuitamente pelo correio, dirigindo-se para esse fim a Manuel Alves Ferreira, 65, Grades de Ferro—Bahia.»
Isto é nobillissimo. Regista-se e pede-se aos poderes do estado não premiem estes serviços, para que se não confundam com outros que para ahi vemos galardear.
É esta a carta que elle dirige á directoria da caixa de Soccorros de D. Pedro V:
«Ill.mos srs. directores—A esta hora devem estar vossas senhorias e todas as mais sociedades portuguezas d'essa cidade da posse de um escripto que dirigi[342] ás nações civilisadas do universo, no qual exponho o que posso dizer ácerca da condemnação á pena de morte do infeliz negociante portuguez Manuel Soares Pereira.
«Por elle terão julgado do procedimento do homem que o governo portuguez tem n'esta terra para velar pelos subditos de S. M. Fidelissima, das obras de muita gente fina e dos trabalhos que tem passado um desgraçado portuguez.
«Tenho acompanhado a questão, diversos outros casos se tem dado, os quaes vv. ss. podem vêr relatados no Diario da Bahia e Diario de Noticias de hoje.
«Peço a vv. ss. e a todos os amigos da humanidade para lerem e meditarem sobre todos estes escriptos. Além do que n'aquelles jornaes e avulsos escrevi, ha o seguinte:
«Soube ás 5 e meia horas da tarde de hoje, que tinham retirado o condemnado da prisão do quartel do Forte de S. Pedro: não sei para onde o levaram, nem que fim lhe deram.
«Como tenha saido hoje d'este porto para essa cidade um vapor nacional, é possivel que tenham embarcado o homem para o affastar d'aquelle que pelo infeliz se interessa.
«Seja qual fôr a razão pela qual o tiraram da prisão, seja para que fim; o que eu peço a vv. ss. é que velem pela sorte do desgraçado, se para ahi o levarem, já que eu não posso mais velar.
«Se eu verificar que embarcaram o pobre negociante, avisarei immediatamente pelo telegrapho, para que vv. ss. tenham dado as providencias, quando esta ahi possa chegar.
«Animo-me a fazer este pedido confiado no titulo da vossa sociedade: pois se é dedicada a soccorrer os infelizes portuguezes não poderão em tempo algum achar uma melhor occasião de o fazer.
«Não deixem que prevaleça o mal se mal ha: para[343] que não venha a soffrer mais aquelle que tanto tem soffrido e que muita gente o julga digno de recompensa e não de castigo.
«Os accusadores d'este infeliz hão de dizer a vv. ss. que elle é desertor do exercito brazileiro.
«Se vv. ss. quizerem verificar o valor d'essa accusação, peçam ao governo imperial o contracto de engajamento feito entre este estrangeiro e o mesmo governo, e verão se apresentam algum contracto.
«Peçam mais o termo do juramento de bandeira e verão se lhes mostram esse termo.
«Não o mostrarão por certo, pois não ha contracto lavrado nem termo de juramento de bandeira.
«Dirão vv. ss. e dirá todo o homem sensato: «Como condemnaram á morte um estrangeiro por falta de cumprimento de contracto feito com o governo quando não apresentam o mesmo contracto?»
«Eu, meus senhores, não posso responder; vv. ss. sabem que nem tudo se póde fallar na terra alheia...
«Agora, que o infeliz se acha longe de mim e dos pequenos soccorros que lhe poderia prestar, preciso de uma mão poderosa que lhe assista, e essa será a mão da caritativa e patriotica sociedade Caixa de Soccorros D. Pedro V.
«Se não tiverem embarcado o infeliz, continuarei a protegel-o.
«Vou pois ver se descubro o logar em que o metteram.
«Peço a vv. ss. licença para publicar esta carta e desculpa da pobreza da linguagem.
«No mais sou de vv. ss. amigo e obrigado.
«Manuel Alves Ferreira.»
Omittamos os nossos elogios a estes actos de verdadeira[344] philantropia, porque o melhor elogio está traçado pelo proprio nas linhas que ahi deixamos.
Vejamos o que Alves Ferreira informa sobre o paradeiro da desgraçada victima do insano odio de raça das auctoridades da Bahia.
São estas as palavras do seu nobilissimo defensor:
«Foi retirado da prisão do forte de S. Pedro e levado para as horriveis masmorras da fortaleza do Barbalho o desgraçado portuguez Manuel Soares Pereira. Quereis vel-o, tendes animo?
«Entrae, mas devagar; cuidado com os precipicios abertos na ponte, que vos pódem devorar...
«Que vêdes? Uma horrivel masmorra, suja, fria e humida, e lá no fundo um desgraçado que largou patria e familia em busca da felicidade!... da felicidade!...
«Olhae para o infeliz; que vêdes? A figura do desespero, o homem angustiado!
«Vêde o fato que o cobre:—farrapos immundos!
«Escutae-o: parece delirar...
«O que diz?—Meus filhos... meus filhos... quem velará por vós?
«Vou morrer, vou já, já... agora, elles ahi vem; é aqui no Barbalho que se executam os sentenciados...
«Meus filhos, meus filhos, quem velará por vós?
«Eu morro: mas qual é o meu crime, qual o meu peccado?»
«Socega irmão; teus olhos são duas postas de sangue, teus soffrimentos horriveis; mas não ha remedio; tem paciencia, soffre!
«Socega irmão, socega infeliz, Deus vela por ti; não morrerás de bala, nem de corda: para te matar basta o ar que respiras n'essa immunda masmorra.
«Socega irmão, não morrerás de bala; homens como[345] tu que se sacrificam para salvar a vida aos desgraçados que se expõem, como tu, entre centenares de pestiados, não terão uma morte infamante...
«Não morrerás de bala; teus filhos são brazileiros, filho de um honrado portuguez, de um homem da caridade, que expôz a vida para salvar seus irmãos, os brazileiros, no leito da dôr...
«Descança, irmão, Deus vela por ti.
«Dá-me esse livro que te emprestei; toma esta obra, se podéres lê; has de alliviar teus soffrimentos, é esta que devem lêr os desgraçados como tu.
«Lê; vês o titulo? é o martyr do Golgotha.
«Se morreres vae em paz para a patria onde todas as obras tem o seu premio.
«Morre, amigo, pois morres para viveres; homens como tu não morrem, tuas virtudes são conhecidas, a posteridade te louvará.
«Vae em paz, recebe o premio de teus sacrificios das proprias mãos de Deus.»
Vacilla a penna que empunhamos, ao transcrever o que ahi fica. Dá de mão a este livro, optimista systematico; não leias isto que entristece: procura as leituras que deleitam, que nós não procuramos seduzir-te. Nós queremos o teu despreso que é a nossa gloria. Nós queremos que tu rias e saltes o cancan desenfreado, que a devassidão te aconselha, como o unico remedio contra a anemia que te definha o corpo e a alma. Salta que a corrupção te dará em premio os meios de que precisas para a boa execução das pantomimas na praça publica. Sustentai bem o vosso papel, que lucrareis melhor recompensa. Nós cá, sentimos, soffremos com os vossos risos; e por que nos convencemos da quasi inutilidade dos nossos exforços, escrevemos mais para a historia os factos dignos d'ella do que para vóz, ó grandes pygmeus![346]
Continua Alves Ferreira a dar conta dos pormenores a respeito do seu protegido, no terceiro avulso Ás nações civilisadas do universo, datado de 10 de maio de 1876:
«Foi tirado em uma padiola das horriveis masmôrras da fortaleza do Barbalho, em estado grave de saude, e conduzido para o hospital militar, o honrado negociante portuguez Manuel Soares Pereira.
«Hoje em companhia do sr. dr. José Barbosa Nunes Pereira, redactor do Jornal do Commercio que se publica n'esta cidade, visitamos, escoltados por um alferes e varias praças, este infeliz estrangeiro, havendo bastante difficuldade para conseguirmos este fim.
«Qual será o motivo da molestia?...
«Será o pessimo ar que tem respirado nas horriveis masmorras que lhe tem feito correr!...
«Serão pezados serviços a que tenham obrigado o desgraçado?...
«Serão os tratos que lhe possam ter dado?...
«Será dos alimentos?
«Será tambem de alguma bebida alcoolica, que lhe dessem em demasiada quantidade?...
«Ah! posteridade... posteridade, como julgarás esta questão?...
«Perante a fria historia, quem será réu n'este malfadado proccesso?...»
O Brazil: é preciso repetir o anathema em quanto houver folego de vida.
Não ha conveniencias que possam obscurecer a verdade terrivel.
Continua Alves Ferreira:
«Hoje vesitei o infeliz negociante estrangeiro Manuel Soares Pereira n'uma das horriveis masmorras da[347] fortaleza do Barbalho. Perguntei o que se havia passado ultimamente com o desgraçado, e este respondeu-me o seguinte:
«Tendo-me conduzido d'aqui em uma padiola para o hospital militar, estive ali sempre, de sentinella ao lado! não me mexia que não fosse presentido por ella.
«Um dia, na occasião em que mudavam a sentinella, disse um cabo a nova sentinella: «Vê lá; este homem vai morrer no sabbado de alleluia, se elle fugir vaes tu em seu lugar.
«No hospital não me quiseram dar medicamentos, e, como o mal não cessasse, pedi ao sr. doutor que me mandasse dar um purgante, o qual me foi dado no outro dia, e no mesmo dia em que o tomei, quando estava produzindo os seus effeitos, fui expellido do mesmo hospital e devolvido para esta prisão....
«Aqui, n'esta prizão, não me dão alimento de qualidade alguma, nem eu tenho dinheiro para o comprar; se não tenho morrido á fome, devo-o á verdadeira caridade, que me tem valido n'esta desgraça.
«Meu negocio evaporou-se, não possuo um real: n'estes dezoito mezes de prizão tudo se perdeu; não só o que era meu, como o de meus credores, que de tão boa bontade de mim se confiaram: elles sabem porém, que eu não sou velhaco, que se lhes não paguei a culpa não foi minha, foi da desgraça que tanto me tem perseguido.»
«Será verdade, meu Deus, que queiram matar o homem desgraçado á fome?....
«Será esta a sentença imposta pelo conselho de guerra?....
«No caso affirmativo, poderiam pol-a em execução antes que subisse ao tribunal superior!...
«Haverá tal pena no codigo ou lei militar do Brazil?...[348]
«E vós nações civilisadas, tereis esta penna em vossos codigos?....
«Dever-se-ha esperar que a caridade publica sustente aquelle a quem as auctoridades do paiz chamam soldado e como tal o tem preso?....
«Será soldado aquelle que nunca jurou bandeira?....
«Poderá o governo brazileiro engajar subditos de outra nação para fazer a guerra a uma terceira, sem licença previa do governo do paiz do qual queira engajar tropa?....
«Será cidadão brazileiro, o estrangeiro que nunca se naturalizou no paiz?....
«Se o homem não podesse perante a lei soffrer as penas que lhe tem sido impostas, quem serão os responsaveis pelos horriveis trabalhos por que tem passado este desgraçado estrangeiro e pelos perjuizos que na saude e propriedade tem soffrido?....
«Infeliz estrangeiro!... que sorte desgraçada te esperava na terra da Santa Cruz?!....
«A vós, almas caridosas de qualquer parte do mundo, pede um boccadinho de pão, para não morrer de fome, o desgraçado portuguez preso nas masmorras da fortaleza do Barbalho!»
As esmolas vieram minorar um pouco os soffrimentos do desgraçado; mas este apello á caridade publica não soára bem aos ouvidos da officialidade que condemnára o desgraçado á morte!
Vão terminar os soffrimentos de Soares Pereira, e com a noticia circumstanciada d'elles, por mercê dos esclarecimentos prestados pelo seu benemerito protector, o livro que contra a emigração de portuguezes para o Brazil nos propozemos escrever.
Como já dissemos, a pena de morte fora-lhe modificada[349] em cinco annos de prisão com trabalhos. Deu-se isto em 31 de maio de 1876.
Depois de dez mezes de galés; isto é, em 28 de março de 1877, foi perdoada a Manuel Soares Pereira esta pena, sendo ao mesmo tempo dispensado do serviço do exercito!
Vamos transcrever a ultima peça desse processo escandaloso—o protesto do supposto desertor; e terminaremos esta questão que nos fastidia.
Eis o documento, publicado no setimo avulso de Alves Ferreira—Ás nações civilisadas do universo:
«Diz Manuel Soares Pereira, que tendo sido preso como desertor do 16.º batalhão de infanteria, em outubro de 1874, condemnado á morte em 26 de março de 1876, e a cinco annos de galés em 31 de maio do mesmo anno de 1876, sendo perdoada esta pena em 28 de março do corrente anno, fôra afinal em 31 do mesmo mez dispensado do serviço do exercito;
«Que estando preso e sem meios de se defender, recebera todo o castigo que lhe quizeram impor, e o fardamento e etapa que lhe quizeram dar;
«Que achando-se actualmente em liberdade, sabia que pelos livros do mesmo batalhão é credor de certa quantia de fardamento e soldo, e que não se julgando nunca soldado no Brazil, não pode, em consciencia receber hoje essa quantia.
«E portanto, se continuarem a julgal-o credor d'ella offerece-a para uma obra pia, isto é, para o hospicio Pedro II, o qual é no Brazil um asylo de alienados.
«Reserva, porem, para si o direito, se o tiver, de haver do governo brazileiro os seus ordenados como enfermeiro, os quaes nunca lhe foram pagos, pelo que lhe prometeu de bocca o sr. commandante do 14.º batalhão de voluntarios cachoeiranos.
«Reserva mais o direito que possa ter pela sua dedicação, provada por irrefutaveis documentos de dedicação,[350] que mostrou nos hospitaes da Cachoeira, Rio de Janeiro e na esquadra, no dia da batalha naval, e nos hospitaes e campos de batalha no Paraguay, como enfermeiro voluntario, e sem contracto.
«Reserva ainda, para si, o direito d'uma indemnisação pelos perjuizos causados ao seu commercio, pois sendo na occasião em que fora preso, estabelecido na Baixa Grande, povoação d'esta provincia, perdera todos os generos do seu commercio, parte do que lhe deviam do mesmo negocio, tudo causado pela longa prisão que soffrera, e pela noticia que no logar correra, de ter sido executado n'esta cidade.
«Guarda mais, para si, o direito a uma indemnisação pelos prejuisos causados na sua saude, em consequencia da fome, maus tratos e pesados serviços a que o obrigaram.
«Guarda tambem para si o direito a uma indemnisação pela injuria de lhe botarem o ferrete dos galés, fazel-o n'este estado correr toda a cidade e parte da provincia, dando-lhe por companheiros assassinos sentenciados.
«Reserva mais o direito a uma indemnisação pelo que n'esta occasião não lembra, mas que de direito seja.
«Appella, pois, para os altos poderes do estado, aos quaes apresentará a sua petição em fórma, logo que suas circumstancias o permittam.»
Hade ter igual resultado ao obtido pela familia dos desgraçados negociantes portuguezes, assassinados na noite de 6 para 7 de setembro de 1874, na ilha de Jurupary.
É assim que o governo brazileiro mostra empenho em reunir debaixo do explendido céu do Cruzeiro, os individuos de todas as nacionalidades, que queiram alli encontrar patria commum![351]
*
* *
Ponhamos ponto final aqui; mas antes d'isto permitta-nos o leitor que façamos a seguinte declaração, que é ao mesmo tempo um protesto contra a propaganda dos optimistas—de que somos inimigo figadal do imperio brazileiro:
Não somos inimigo do Brazil. Nós somos tão amigos d'esta nação, como o pode ser o medico consciencioso, junto do amigo, gravemente enfermo, a quem tenta salvar, applicando ao mal os meios que a sciencia aconselha... não excluindo o energico visicatorio.
FIM[352]
[1] Duas Palavras a Brazileiros e Portuguezes, por J. A. Torres.
[2] Auctor citado.
[3] Interesses portuguezes, por J. R. de Mattos.
[4] Veja-se a nota n.º 1 no fim do volume.
[5] Relatorio do consul geral de Portugal no Rio, de 28 de maio de 1877.
[6] Veja-se Primeiro inquerito parlamentar sobre a emigração portugueza. 1873.
[7] Veja-se nota n.º 1 no fim do vol.
[8] O Brazil, por Augusto de Carvalho.
[9] Negocios externos, documentos apresentados ás cortes em 1874.
[10] Veja-se Primeiro inquerito parlamentar sobre a emigração portugueza.
[11] Buillet, Dictionaire de l'Histoire et geographie.
[12] Consta-nos que os roceiros do Brazil mandaram um presente de cem libras ao auctor do Estudo sobre a colonisação e a emigração para o Brazil.
[13] Considerado, actualmente, engajador official.
[14] Deu-se um facto d'estes com um administrador de concelho do districto de Coimbra, e mal pensavamos nós que, passados apenas alguns mezes, haviamos de ouvir fazer accusações gravissimas a respeito da emigração clandestina, no parlamento portuguez, sem que houvesse uma voz que as refutasse. (Veja-se a nota n.º 2 no fim do volume.)
[15] Veja-se Questões do Pará.
[16] Veja-se a nota n.º 3.
[17] Carta dirigida ao sr. Cruz Coutinho pelo auctor das Farpas, publicada no prefacio do livro—Brazil.
[18] Veja-se o numero das Farpas, correspondente a dezembro de 1872.
[19] Veja-se o n.º das Farpas, já citado.
[20] O Brazil, por Augusto de Carvalho.
[21] Relatorio do consul geral de Portugal no Rio de Janeiro, de 1875.
[22] Relatorio de 7 de dezembro de 1874.
[23] Relatorio de 17 de dezembro de 1874.
[24] America Portugueza—Rocha Pitta.
[25] O Brazil, pag. 2.
[26] Questões do Pará.
[27] Negocios Externos.
[28] Negocios
externos. Sobre este mesmo assumpto, veja-se Questões do Pará.
Cap. XI.
[29] Diario de Belem.
[30] Le Bresil.
[31] A phrase em gripho é a empregada pelos alliciadores, nos contractos de locação de serviços e com a qual encobrem muitas extorções feitas aos collonos.
[32] Liberal do Pará.
[33] Veja-se Questões do Pará.
[34] Veja-se Questões do Pará.
[35] Veja-se Questões do Pará.
[36] Relatorio de 7 de dezembro de 1874.
[37] Relatorio de 4 de janeiro de 1875.
[38] Veja-se a nota n.º 4.
[39] Relatorio citado.
[40] Le Brezil.
[41] Veja-se a nota n.º 5.
[42] Veja-se a nota n.º 6.
[43] Tudo historico. Veja-se—Commendador Barão.
[44] A colonisação por meio da escravatura, era de 43:000 negros para o Rio de Janeiro, e de 90:000 para todo o imperio, annualmente. A desproporção é manifesta.
[45] Officio de 8 de junho de 1863.
[46] Veja-se a nota n.º 7 no fim do volume.
[47] Historico.
[48] Historico. Veja-se Questões do Pará.
[49] Veja-se Questões do Pará.
[50] Traducção do Diario da Manhã.
[51] A Tribuna, do Pará.
[52] Jornal do Commercio, de Lisboa, de 19 de julho de 1877.
[53] A Tribuna do Pará.
[54] «Em remotas épocas foram aqui atrozmente insultados os portuguezes, por alguns jornaes, taes como (segue os nomes citados).» Relatorio do consul do Maranhão, de 7 de dezembro de 1874.
[55] Dos jornaes mencionados só existe hoje o Publicador Maranhense, jornal official do governo da provincia!
[56] Portuguezes ou gallegos, é claro!
[57] Os salões do sr. visconde de Ouguella.
[58] Não salvou porque o regulamento não manda salvar quando hajam só quatro boccas de fogo.—A Mearim não salvou pela mesma razão.
[59] Sodomitas.
[60] Veja-se o opusculo Coisas Brazileiras.
[61] Invenções calumniosas da Tribuna, invenções que ella dava a estampa repetidas vezes contra os portuguezes.
[62] Revolução de 1835 contra portuguezes.
[63] O Districto d'Aveiro. Veja-se a critica ás Questões do Pará, no fim do volume.
[64] A Democracia, de 14 de julho de 1875.
[65] Questões do Pará.
[66] Questões do Pará.
[67] Veja-se a Regeneração de 6 de junho de 1875.
[68] Veja-se o processo no apendice ás Questões do Pará.
[69] Obra citada.
[70] Diario de Noticias.
[71] Nunca fomos injusto para com o tribunal da Relação do Pará.
[72] Este documento tem a data de 10 de julho de 1875 e é assignado por Marcelino Nery.
[73] Consta-nos á ultima hora que este sujeito deixou já o partido catholico e se fez... liberal!
[74] Nem as deveria fazer porque faria mal ao bispo.
[75] A typographia do conego Sequeira Mendes e da Constituição, orgão do partido conservador da provincia, era a que fornecia os impressos ao governo!
[76] Jornal do bispo.
[77] Veja-se Questões do Pará.
[78] A Tribuna, de Lisboa.
[79] As Nações Civilisadas do Universo, por M. A. Ferreira, da Bahia.
[80] Nota de 4 de fevereiro de 1875.
[81] Maroto, na Bahia, significa portuguez!
[82] No qual, como já vimos, o embaixador portuguez, sem estudar a questão, por que n'isso não tinha o minimo interesse, escrevia as seguintes phrases:—«que em vista das disposições das leis brazileiras etc., não póde ser attendida a pertenção de Manuel Soares Pereira» etc.!!!
[83] 1.º avulso—Ás nações civilisadas do universo.
Mappa da população e seu movimento no continente do reino e ilhas adjacentes no anno de 1870 | |||||||||||||||||||||
Districtos | Concelhos | Freguezias | Fogos | População | Movimento da população | ||||||||||||||||
Sexo Masculino | Sexo Feminino | Total | Nascimentos | Casamentos | Obitos | Nascimentos excedentes aos obitos | Obitos excedentes aos nascimentos | Por cada 100 habitantes | |||||||||||||
Sexo Masculino | Sexo Feminino | Total | |||||||||||||||||||
Legitimos | Illegitimos | Total | Legitimos | Illegitimos | Total | Sexo Masculino | Sexo Feminino | Total | Nascimentos | Obitos | |||||||||||
Angra | 5 | 38 | 18:008 | 31:541 | 40:325 | 71:866 | 878 | 245 | 1:123 | 815 | 215 | 1:030 | 2:153 | 451 | 835 | 886 | 1:721 | 432 | — | 2,99 | 2,39 |
Aveiro | 16 | 180 | 69:411 | 119:945 | 137:499 | 257:444 | — | — | 4:029 | — | — | 3:825 | 7:854 | 1:617 | 2:453 | 2:563 | 5:016 | 2:838 | — | 3,05 | 1,95 |
Beja | 14 | 102 | 35:721 | 69:692 | 68:376 | 138:068 | — | — | 2:514 | — | — | 2:412 | 4:926 | 1:122 | 2:828 | 2:755 | 5:583 | — | 657 | 3,57 | 4,04 |
Braga | 12 | 519 | 81:691 | 145:259 | 178:051 | 323:310 | — | — | 4:650 | — | — | 4:436 | 9:086 | 1:822 | 3:490 | 3:791 | 7:281 | 1:805 | — | 2,81 | 2,25 |
Bragança | 12 | 313 | 39:894 | 76:467 | 77:093 | 153:560 | — | — | 2:846 | — | — | 2:685 | 5:531 | 1:042 | 2:822 | 2:684 | 5:506 | 25 | — | 3,60 | 3,59 |
Castello Branco | 12 | 147 | 41:513 | 80:368 | 85:047 | 165:415 | — | — | 2:754 | — | — | 2:716 | 5:470 | 1:209 | 2:472 | 2:519 | 4:991 | 479 | — | 3,31 | 3,02 |
Coimbra | 17 | 186 | 74:144 | 135:268 | 151:257 | 286:525 | — | — | 4:199 | — | — | 3:893 | 8:092 | 1:675 | 2:988 | 3:143 | 6:131 | 1:961 | — | 2,82 | 2,14 |
Evora | 13 | 109 | 25:622 | 50:105 | 48:354 | 98:459 | — | — | 1:771 | — | — | 1:693 | 3:464 | 662 | 1:755 | 1:615 | 3:370 | 94 | — | 3,50 | 3,42 |
Faro | 15 | 66 | 46:975 | 93:827 | 91:485 | 185:312 | — | — | 3:592 | — | — | 3:275 | 6:867 | 1:385 | 2:605 | 2:624 | 5:229 | 1:638 | — | 3,71 | 2,82 |
Funchal | 10 | 52 | 28:482 | 55:186 | 61:277 | 116:463 | — | — | 2:392 | — | — | 2:281 | 4:673 | 952 | 1:478 | 1:455 | 2:933 | 1:740 | — | 4,01 | 2,52 |
Guarda | 14 | 337 | 55:685 | — | — | 216:735 | — | — | — | — | — | — | 7:568 | 1:509 | — | — | 5:983 | 1:585 | — | 3,49 | 2,76 |
Horta | 7 | 39 | 16:436 | 26:802 | 36:295 | 63:097 | — | — | 860 | — | — | 867 | 1:727 | 318 | 520 | 658 | 1:178 | 549 | — | 2,74 | 1,87 |
Leiria | 12 | 116 | 43:748 | 89:675 | 91:436 | 181:111 | — | — | 2:650 | — | — | 2:460 | 5:110 | 1:028 | 2:289 | 2:327 | 4:616 | 494 | — | 2,82 | 2,55 |
Lisboa | 25 | 207 | 111:151[84] | 236:957[84] | 217:734[84] | 454:691[84] | 5:484 | 2:227 | 7:771 | 5:290 | 2:087 | 7:377 | 15:088 | 2:837 | 7:026 | 6:815 | 13:841 | 1:247 | — | 3,32 | 3,04 |
Ponta Delgada | 7 | 44 | 28:805 | 57:062 | 65:336 | 122:398 | — | — | 2:422 | — | — | 2:170 | 4:592 | 817 | 1:413 | 1:385 | 2:798 | 1:794 | — | 3,75 | 2,20 |
Portalegre | 15 | 95 | 26:600 | 47:758 | 48:049 | 95:807 | — | — | 1:806 | — | — | 1:689 | 3:495 | 635 | 1:723 | 1:614 | 3:337 | 158 | — | 3,65 | 3,48 |
Porto | 17 | 361 | 113:060 | 199:747 | 237:903 | 437:650 | — | — | 7:102 | — | — | 6:840 | 13:942 | 2:923 | 4:701 | 5:095 | 9:796 | 4:146 | — | 3,19 | 2,24 |
Santarem | 18 | 141 | 51:706 | 99:514 | 103:647 | 203:161 | — | — | 2:936 | — | — | 2:850 | 5:786 | 1:087 | 3:032 | 2:677 | 5:709 | 77 | — | 2,85 | 2,81 |
Vianna do Castello | 10 | 288 | 55:773 | 96:353 | 113:143 | 209:496 | — | — | 2:601 | — | — | 2:592 | 5:193 | 1:243 | 1:945 | 2:114 | 4:059 | 1:134 | — | 2,48 | 1,94 |
Villa Real | 14 | 256 | 55:350 | 101:915 | 109:650 | 211:565 | — | — | 3:684 | — | — | 3:671 | 7:355 | 1:366 | 2:547 | 2:444 | 4:991 | 2:364 | — | 3,48 | 2,36 |
Vizeu | 26 | 365 | 92:721 | 176:285 | 193:593 | 239:878 | — | — | 5:960 | — | — | 5:858 | 11:818 | 2:105 | 3:911 | 4:181 | 8:092 | 3:726 | — | 3,20 | 2,19 |
292 | 3:961 | 1.111:496 | 1.989:726 | 2.155:550 | 4.362:011 | 6:362 | 2:472 | 67:602 | 6:105 | 2:302 | 64:620 | 139:790 | 27:805 | 52:833 | 53:345 | 112:161 | 27:629 | 657 | 3,20 | 2,59 | |
[84] Estes algarismos foram tirados do censo de 1 de janeiro de 1864, por isso que o mappa do respectivo governo civil sómente trazia o movimento da população. Secretaria d'estado dos negocios do reino, em 29 de novembro de 1872.==Luiz Antonio Nogueira.[354] |
O sr. PIRES DE LIMA:—Desejava conversar em boa paz com alguns dos srs. ministros, que infelizmente não estão presentes, mas como o governo está representado por dois membros do gabinete, isso me basta. S. ex.as não deixarão, por certo, de informar os seus collegas do que eu vou dizer.
São assumptos importantes aquelles sobre que tenho o proposito de discorrer, e parecem-me dignos da attenção da camara.
A emigração dos portuguezes para o Brazil tem nos ultimos tempos attingido proporções verdadeiramente collossaes e gigantescas, o que é uma grande calamidade, calamidade assustadora especialmente para a industria agricola, que é a principal fonte da nossa riqueza. (Apoiados.)
No districto administrativo de Aveiro, que eu conheço um pouco, ha freguezias onde os trabalhos dos campos estão exclusivamente entregues ás mulheres, porque os homens todos, com excepção das creanças e dos velhos, têem saido para a America.
Ainda não ha muitos dias que um collega nosso me disse haver recebido do seu circulo uma carta, na qual se lhe pedia instantemente, que interpozesse a sua influencia junto do governo, para se suspenderem todas as obras publicas! O signatario da carta, agricultor importante, queria que por algum tempo se interrompessem os trabalhos das estradas reaes, districtaes e municipaes, e julgava que só d'este modo poderiam os proprietarios ter braços para cultivar as terras.
Este facto é significativo. Quando os lavradores chegam a esquecer o grande amor que têem ao desenvolvimento de viação publica, póde-se conjecturar que taes são as difficuldades que os assoberbam, quão grande é a falta de trabalhadores, e excessivamente elevado o preço dos salarios.
Eu desejando muito que antes fossem para o Alemtejo e para as nossas possessões ultramarinas os homens validos que vão tentar fortuna no Brazil...
É grande a corrente da emigração, e para a engrossar não[356] concorrem pouco algumas das nossas leis, e mais ainda o modo por que se lhes dá cumprimento.
E estas causas podem ser combatidas facil e vantajosamente pelos poderes publicos.
É necessario que fallemos com franqueza.
A lei do recrutamento é pessima, a sua execução é detestavel.
Ha muita gente que foge para o Brazil para não ser soldado. (Apoiados.)
O governo póde e deve propor a emenda das disposições absurdissimas da lei do recrutamento, e o governo póde e deve corregir os abusos e demazias escandalosissimas que os empregados publicos commettem todos os dias na execução d'esta lei. (Apoiados.)
Enxameam as provincias engajadores convidando colonos a ir para o Brazil, e a troco de dez ou quatorze libras facilitam-lhes passagem para os portos d'aquelle imperio, arranjando-lhes todos os papeis necessarios para a viagem e inclusivamente passaportes falsos.
Isto sei-o eu e sabemol-o nós todos. (Apoiados.)
É grande este mal, mas para o combater não é necessario addicionar nenhum artigo ao codigo penal, basta que o governo faça aos empregados admoestações, e aos agentes do ministerio publico recommendações severas, e obrigue uns e outros a cumprir os seus deveres.
Acabou com a nossa diligencia a escravatura dos pretos na Africa, não cresça com a nossa preguiça a escravatura dos brancos na Europa.
Extinguiu-se a industria da moeda falsa, extinga-se tambem a industria dos passaportes falsos, tão deshonrosa como aquella, e incomparavelmente mais damninha e prejudicial do que ella.
Lembre-se o governo de que os passaportes falsos não só facilitam a passagem para o Brazil aos mancebos sujeitos á lei do recrutamento, mas auxiliam a evasão de criminosos, cuja impunidade é quasi certa nos vastos sertões do novo mundo, etc., etc.
(Sessão de 26 de março de 1877.)
Tivemos a satisfação de ouvir lêr ao sr. Gomes Pércheiro algumas scenas do seu drama os Aventureiros, que nos revelariam um esplendido engenho, se nós não soubessemos de ha muito quanto elle é vantajosamente conhecido.[357]
O drama do sr. Gomes Pércheiro é o fructo das suas mais aturadas lucubrações, um trabalho consciencioso, uma these philosophico-social, que combate habilmente a emigração que está roubando ao nosso fertilissimo solo braços robustos.
Os Aventureiros estão escriptos por mão de mestre, n'um estylo fluente e brilhante, e n'uma dicção pura e vernacula. Este drama terá um notavel exito pelos episodios que constituem o seu enredo, e porque é portuguez de lei.
Não é nosso mister sermos louva-minheiros; nem jámais o seriamos do sr. Gomes Pércheiro, moço illustrado, e cuja reputação não carece de elogios banaes para a nobilitarem.
(Diario do Commercio, de 5 de dezembro 1877.)
*
* *
Hoje pela 1 hora da tarde, na presença de numeroso e selecto auditorio, o escriptor que se tem assignalado na imprensa pela sua propaganda constante e por vezes energica contra a emigração, leu um drama seu, original em 5 actos, intitulado Os Aventureiros, e cuja idéa fundamental é ainda a activa propaganda contra as illusões que arrastam tantos portuguezes a abandonar a patria, em procura de fementidas miragens de riqueza, que tão frequentes vezes se convertem nas tristes realidades da miseria, da doença, da saudade, do abandono, do desespero e da morte.
Não é n'uma simples audição que se póde julgar d'um trabalho d'aquelles, que comtudo se nos afigurou de notavel merecimento, indo direito e seguro ao seu fim, atravez da ficção da acção dramatica, a qual tem scenas e lances de muito interesse e de muita verdade, comquanto no ultimo acto, escolho de todos os dramaturgos, que se estreiam, enfraqueçam um pouco os dotes scenicos da peça, e no conduzir do enredo e no desenho dos diversos typos haja hesitações, que muito insignificantes são para uma primeira tentativa em genero litterario tão difficil. Seguramente Gomes Pércheiro corrigirá alguns dos pequenos senões da sua obra, que o publico admirará e applaudirá então, colhendo d'ella muito proveitoso ensinamento, n'uma questão que preoccupa hoje tanto as attenções dos que pensam e dos que sentem um dos grandes males do nosso paiz.
(Revolução de Setembro, de 21 de dezembro de 1877).[358]
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* *
D. MARIA II.—Lêu-se hontem no salão d'este theatro, como tinhamos annunciado, o drama do sr. Gomes Pércheiro, Os Aventureiros. Encargos do serviço publico obstaram a que o director d'esta folha assistisse; os trabalhos do jornal que são todos durante o dia, impediram tambem outro dos nossos redactores.
DO DIARIO DE PORTUGAL que mais extensamente dá conta do caso, extrahimos com a devida venia o seguinte:
«O assumpto do drama é a emigração.
Não é possivel com uma só audição fazer completa idéa das qualidades scenicas do drama, o que porém se nos affigura como certo, é que abunda em todo elle a verdade, e que é escripto com profundo conhecimento do assumpto.
A emigração figura-se para o sr. Pércheiro um vicio social, que elle combate do modo mais energico.
O assumpto é difficilimo de tratar, não obstante parece-nos que o auctor esteve á altura d'elle.
Feita a leitura, alguns dos cavalheiros presentes exposeram com a mais notavel franqueza, a sua opinião extremamente lisongeira para o sr. Pércheiro.
Pela nossa parte felicitamol-o pelo seu trabalho.
Assistiram á leitura os srs: E. Biester, dr. Cunha Belem, Rodrigues da Costa, Luciano Cordeiro, Hermenegildo d'Alcantara, padre Seabra, Cró Ferreri, dr. Loureiro, Salvador Marques e Thomaz Sequeira.»
Folgamos de que tanto agradasse a obra do sr. Pércheiro, e damos-lhe os nossos parabens.
(Revolução de Setembro, de 21 de dezembro de 1877).
*
* *
A transcendencia do assumpto e a extremada delicadeza do convite do sr. Gomes Pércheiro levaram-nos ao salão do theatro normal para assistirmos á leitura do drama—Os Aventureiros...
O illustre dramaturgo, lidador incansavel nos grandes torneios da civilisação, homem d'um só rosto e d'uma só vontade, tem em vista combater no palco, como já tem combatido no livro e no[359] jornal, a funesta tendencia da emigração para o Brazil e a especulação torpe dos engajadores, que, fazendo mentidas promessas, mostram aos incautos—atravez d'um prisma côr de rosa—um futuro mais ou menos longinquo em que a blusa do operario se ha de trocar pela casaca do commendador.
E, forçoso será dizel-o, o sr. Gomes Pércheiro tracta gentilmente o assumpto: o novo drama, primicias scenicas do auctor, divide-se em cinco actos.
Os dois primeiros passam-se n'uma aldeia do Minho, o terceiro a bordo d'um paquete inglez e os restantes na terra de Santa Cruz.
Os vultos mais salientes do drama são—um abbade, typo paternal que, comprehendendo a sua missão sublime, sem esquecer o cuidado que lhe merece a vida espiritual das suas ovelhas, envida todos os esforços para curar o cancro da emigração, que rouba tantos cidadãos á patria, tantos braços á agricultura e tantos homens á vida. A figura está desenhada magistralmente. Após este vulto sympathico surge um outro egualmente gracioso: uma menina da alta sociedade, educada com todo o esmero christão, escondendo a esmola no seio do pobre, sem que a esquerda tome conhecimento do que a direita deu, tendo em menos conta as honrarias da terra e sacrificando as suas joias para salvar o pae de difficuldades financeiras. Os traços são vigorosos e correctos.
Em meio d'este Eden apparece a antiga serpe encadernada no commendador Manquitó, typo repugnante, fugido d'um presidio do Brasil, engajador, ou o que vale o mesmo, negociante de carne humana.—A scena entre o abbade e este vampiro, que esconde a sua preversidade e o seu punhal nas dobras da capa da hypocrisia, é muito para se ver.
A scena a bordo é copiada aprés nature. Os colonos vendo succumbir uma companheira d'infortunio, não podendo supportar os incommodos da viagem e o alimento grosseiro que lhes é ministrado, o capitão inglez dizendo—I speak portuguese very well—e continuando a dar o mesmo bacalhau com batatas, é um quadro deslumbrante de verdade.
Se nos perguntarem pelo ensemble do drama, emittiremos a nossa humilde opinião: é uma bella estatua que saiu da fundição com algumas pequeninas arestas que devem ser cuidadosamente limadas. Os primeiros quatro actos têem scenas de grande effeito: o quinto talvez tenha das taes arestas, o que não admira, porque aliquando bonus dormitat Homerus. Além d'estes insignificantes senões que desapparecem ao terceiro ensaio, tem a peça os seguintes defeitos:
Inspira-se n'um sentimento nobre, patriotico, humanitario e economico;—fere[360] os interesses de certos argentarios que adquiriram fortuna, Deus sabe como; não blasphema de Christo, ou do seu Vigario, nem, ao menos, dá dois piparotes n'um ABUTRE DE SOTAINA!
Felicitamos o sr. Gomes Pércheiro, mas pedimos vénia para lhe dizermos: o drama Aventureiros não vae á scena, pelas circumstancias apontadas,[85] e s. parece ignorar que vive no moderno Portugal, onde o theatro tem enchentes com os Lazaristas do sr. Ennes e está ás moscas com a Caridade do sr. Cascaes. É esta a nossa opinião, salvo simper meliori judicio.
(A Nação de 22 de dezembro de 1877.)
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Estamos em divida para com o estimavel escriptor, que teve a penhorante amabilidade de convidar-nos para assistir á leitura da sua peça no theatro de D. Maria.
Circumstancias estranhas á nossa vontade inhibiram-nos de agradecer no numero anterior essa prova de deferencia e de dar conta das impressões que nos produziu a leitura do drama do sr. Pércheiro.
Não é facil, n'uma rapida audição, apreciar devidamente um trabalho d'aquella ordem, e analysal-o com minudencia, apontando todas as bellezas, que n'elle sobresaem ou os senões que, n'um ponto ou outro, lhe possam ensombrar o merecimento.
Serve de these ao drama a emigração, considerada sob o ponto de vista social e economico, e o sr. Gomes Pércheiro, que já na imprensa tinha larga e proficientemente tratado o assumpto,—levando-o para o theatro, como meio efficassissimo de propaganda, dota a scena nacional com um excellente drama e presta ao paiz um relevante serviço.
Os Aventureiros são antes de tudo uma peça de propaganda, escripta com profundo conhecimento do assumpto e aturadissima observação.
Os infames manejos que se empregam para o engajamento dos colonos, os soffrimentos d'estes durante a viagem para a America,[361] as tristes e dolorosas realidades que substituem as miragens fascinadoras com que lhes embalaram a phantasia e a cubiça, a vida do colono no sertão com todos os seus traços dessoladores e crueis, são ali postos em relevo, com as mais vivas côres, a maior verdade e desassombro. O 3.º e 4.º actos, excellentes quadros de genero, copiados d'aprés nature, devem produzir funda sensação, porque ao vigor das situações dramaticas, alliam o interesse de scenas perfeitamente desconhecidas do nosso publico, e accentuam com a maior naturalidade os horrores porque passam os miseros expatriados.
Pelo lado litterario a peça do sr. Gomes Pércheiro parece-nos digna do applauso de critica. A linguagem sempre correcta e facil, aquece-se de enthusiasmo nos lances que assim o pedem e obedece em geral ás condições de naturalidade e observação que predominam no drama. Os dialogos estão bem travados, os caracteres bem sustentados e descriptos com traços frisantes.
O drama do sr. Gomes Pércheiro deverá ser representado n'algum dos nossos primeiros theatros, porque a isso tem incontestavel direito e para então rezervamos mais demorada apreciação d'esse excellente trabalho, pelo qual desde já enviamos ao auctor as nossas sinceras felicitações.
(O Contemporaneo n.º 45.)
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Tivemos ha dias a leitura d'um novo drama por um escriptor novo que se propõe a trazer para o theatro a these da emigração para o Brazil, dos seus estimulos, dos seus vicios e dos seus resultados, que tem tratado na imprensa.
A these é delicada, perigosa, irritante. Levada até á condemnação geral da emigração, é uma vasta, uma complexa, uma difficilima these.
A questão da emigração prende-se a uma infinidade dos mais elevados problemas das sciencias economicas e da philosophia politica.
Em Portugal está por estudar inteiramente. Os estudos sociologicos tem pouquissimos cultores sérios porque são pouquissimos os que por uma larga disciplina scientifica, desafogada de paixões de escolla ou dos banaes sentimentalismos do criterio romantico e revolucionario, podem entrar com serena firmeza na revisão delicada das leis e dos phenomenos do organismo social.[362]
A economia politica não ganhou ainda aqui os direitos de cidade... e as sympathias dos editores, apesar da graciosa concessão de duas ou tres escolas onde se lê Baudrillat e Garnier.
Sem offensa para os respectivos professores, que não são os culpados dos desdens d'uma administração superior perfeitamente alheia e hostil ao progresso e ao espirito scientifico, e da indifferença d'um publico que não percebeu ainda muito claramente as vantagens de saber lêr escrevêr e contar, ser economista em Portugal é não querer ser cousa alguma.
Não é por esse caminho que a gente se faz nomear amanuense de secretaria nem membro correspondente da Academia das Sciencias. Ora todos nós mais ou menos precisamos ser amanuenses.
O sr. Pércheiro, porém tem-se contentado com o esforço de lançar alguma luz ácerca do que é a emigração para o Brazil, nas cabeças rudes e ingenuas do nosso povo e nas cabeças rudes mas não egualmente ingenuas, dos nossos politicos e governantes.
Baldado, mas generoso empenho.
Elle viu as cousas de perto; teve occasião de as ver e não se tem cançado de nos dizer o que viu.
É um horror.
Uma parte d'este horror podia contemplal-a e estudal-a toda a gente nos relatorios officiaes dos nossos consules do Brazil, mas os relatorios servem só para dar que fazer á imprensa nacional.
Não se fazem, evidentemente para serem lidos e estudados pelos nossos homens publicos, pelos nossos politicos, pelos nossos deputados, pelos nossos governos.
Lembra-me que ha tempos teve o meu amigo Eduardo Coelho a patriotica ideia de os fazer ingerir suavemente, em pequenas doses, com toda a prudencia, pelo publico.
Entregou este processo therapeutico a um seu intelligentissimo collaborador o sr. Leite Bastos.
Durante muitos dias o Diario de Noticias extractou brilhantemente aquelles documentos. Liam-se cousas medonhas e absurdas alli: concussões d'auctoridade, cruesas das leis, gritos d'infelizes, infamias de contractadores de colonias, etc. etc.
Os emproados collegas da politica militante conservaram-se mudos e indifferentes.
E toda a gente achou massador o Diario de Noticias!
Ditosa condição, ditosa gente.
Como agora toda a gente acha impertinente o sr. Pércheiro.
Que, diga-se a verdade, o sr. Pércheiro tem umas certas culpas.[363]
Se é impertinente ou não, importa-me pouco.
O que eu queria, era que sr. disciplinasse melhor pelo estudo detido, pela serena observação da realidade contemporanea, pela modesta revisão dos elementos de critica e de sciencia que o assumpto exige, as suas aptidões e a sua propaganda.
O sr. Pércheiro é todo paixão. Não se domina; não tempera a tensão violenta e absorvente a que os seus sentimentos certamente generosos, em revolta contra as miserias e vergonhas do dia, lhe arrastam a intelligencia e a palavra.
Esta invasão das faculdades reflexivas pelo tumulto das paixões, ou pela excitação absorvente do sentimento da propria personalidade, perde muitas intelligencias e muitas propagandas boas. Quem propaga, lucta, e quem lucta precisa não dar aos adversarios o flanco do amor proprio para que elles o irritem e desnorteem.
Para tudo é preciso n'esta vida uma pouca de diplomacia.
Não a diplomacia hypocrita, mas a diplomacia do senso real das cousas.
Vamos porem ao drama.
Intitula-se os Aventureiros, e, agrupando certos episodios—e certos caracteres, que pódem dizer-se descolados da lenda sinistra do recrutamento de colonos e da negociação e exploração d'elles, procura e póde affoitamente dizer-se que consegue imprimir nos espiritos dos ouvintes o quanto essa lenda tem de monstruosa e cruelissima realidade.
Dadas as premissas, e essas são attestadas pelos processos d'esse recrutamento e pela mais rudimentar observação d'elles, as conclusões saltam expontaneas e irrecusaveis.
Francamente, o drama lido pelo sr. Pércheiro no theatro de D. Maria excedeu a espectativa mais exigente. Ha scenas vigorosamente traçadas; formosos caracteres; insinuações dramaticas e scenicas muito habeis e valentes que podia não se esperar d'um principiante. A peça tem um tom geral de verdade sentida e de consciencia fartamente revolta, que se impõe facil e despretenciosamente.
Tem varios defeitos: está claro. Precisa certas correcções, indiscutivelmente.
Ha arestas sumidas que é necessario avivar; traços que convém acentuar melhor; quadros que devem retocar-se severamente ou para apagar asperesas ou para remodelar figuras importantes que se apagam e escondem, no desenvolvimento da acção. Esta não está firme e segura. Affrouxa aqui ou ali, denuncia-se prematuramente além; quebra-se n'um ou n'outro ponto.
O sr. Pércheiro não é um escriptor feito e largamente educado[364] pelo estudo, pela leitura e pela experiencia nos segredos e exigencias da arte.
Não é um litterato. A fórma resente-se, mas antes fique no que é do que se lance em artificios triviaes. Em summa, o drama é viavel e a estreia auspiciosa.
«Ha de dar dinheiro», que é o criterio supremo dos empresarios, e ha de dal-o sem ser uma exploração de escandalos obscenos; sendo uma obra de intenções discutiveis na doutrina, mas incontestavelmente honestas e sympathicas na inspiração. Eu sou tanto mais insuspeito n'este juizo ao correr da penna e ao impulso das impressões primeiras, que não gosto de dramas de propaganda, porque a paixão da propaganda vicia e supplanta a verdade do drama, isto é a verdade da arte.
A arte não é tribuna. É altar ou é throno. Não discute; cria.
(Commercio Portuguez, de 22 de dezembro.)
Fernão Vaz.
Examinemos.
A respeito da emigração diz o critico, que «a these é delicada, perigosa, irritante. Levada até á condemnação geral da emigração, é uma vasta, uma complexa, uma difficilima these.»
E accrescenta:
«A questão da emigração prende-se a uma infinidade dos mais elevados problemas das sciencias economicas e da philosophia politica.»
Agora vejamos o que elle diz a respeito do drama:
«Francamente, o drama lido pelo sr. Gomes Pércheiro excedeu a espectativa mais exigente. Ha scenas vigorosamente traçadas; famosos caracteres; insinuações dramaticas e scenas muito habeis e valentes que podia não se esperar d'um principiante. A peça tem um tom geral de verdade sentida e consciencia fartamente revolta, que se impõe facil e despertenciosamente.»
Se se attender a laudatoria que ahi deixamos transcripta, vê-se que nós comprehendemos o papel que o acaso nos distribuira para bem tratarmos a vasta, complexa e difficilima these que se prende a uma infinidade dos mais elevados problemas das sciencias economicas e da philosophia politica. Pela logica racional do critico ninguem pode chegar a colher estes resultados (do drama?) sem estudar muito e muito.[365]
Nós sabemos isto melhor do que o sr. Fernão Vaz; permitta-nos a franqueza... e se quizer, a jactancia.
Mas se é claro que para produzir um trabalho que excedeu a expectativa mais exigente, foi preciso empregar o estudo, para que é dizer, «que era preciso que nós disciplinassemos melhor pelo estudo detido, pela serena observação da realidade contemporanea, pela modesta revisão dos elementos da critica e da sciencia que o assumpto exige» as nossas aptidões e a nossa propaganda?!
Se o drama Os Aventureiros é tudo quanto o sr. Fernão Vaz diz—uma cousa por ahi alem—um conjuncto de tanta cousa boa, que só se obtem pelo largo estudo; para que vem dizer-nos:—o sr. Pércheiro não é um escriptor feito e largamente educado pelo estudo?
O que faz o homem largamente educado pelo estudo?
Faz pilulas e... critica como a costuma fazer o sr. Fernão Vaz.
Vamos dar logar á critica de um moderno Juvenal, e reservar-nos-hemos para dizermos alguma cousa a respeito do Altar-throno, da arte e da tribuna.
Falla o critico ao sr. Vaz:
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* *
Hoje, quinta feira, dia do high-life, abro a minha sala humilde, ignorada—sala au rez-de-la-chaussée, está dito tudo,—para cavaquear com os meus amigos.
—Já leste um folhetim de Fernão Vaz? perguntou-me um amigo velho.
—Ainda não.
—Pois lê; e deu-me uma folha portuense.
—Isto é porto, disse eu.
—Pois enganas-te de meio a meio.
Torno a ler o nome do jornal, soletro-o ao meu amigo, e insisto—é porto,—já te disse.
—Já vejo que tens o paladar estragado, retorquiu-me,—isso não é porto é mata ratos d'esse que se vende, a toda a hora, na cidade do burrié e da fava torrada.
Como o tal meu amigo tem uma linguinha de prata, calei-me e li o folhetim de cabo a rabo ou, como diria o meu mestre de latim, ab initio ad finem usque.
—Que tal?[366]
Eu que queria desviar qualquer conversa desagradavel ao sr. Fernão Vaz, respondi-lhe: a folha é bem escripta.
—Não te faças Ignez d'horta; que a folha é bem escripta sei eu—tracta-se do folhetim.—Aposto que não sabes de quem me lembrei, quando li essa estopada folhetinista? D'Antonio Feliciano de Castilho.
—Ahi vaes tu desenterrar um morto. A que vem Castilho, quando se tracta d'um folhetim?
—A que vem!? eu t'o digo.—Um dia, certo jornalista fallava, diante d'esse cego que via mais que todos os videntes, de um litteratiço como muitos que por ahi enxameiam a cada canto, e, fiel ás leis do elogio mutuo, dizia todo ancho: Fulano é inquestionavelmente um moço de merecimento, é o Janin portuguez. Castilho, que era dotado d'aquelle espirito mordaz que todos lhe conheciamos, com um surriso epigrammatico, volta-se para o tagarella e pespega-lhe com esta nas bochechas: «Tem razão; fulano é um moço de esperanças, é o já-nem portuguez.» Agora applico: o folhetim de que tanto gostas ou finges gostar, é uma desinteria palavrosa e nada mais.
Ao ouvir taes cousas, confesso: vox faucibus haesit. Tive medo: metti a viola no sacco e deixei-o fallar.
—O teu homemsinho dá quatro piparotes na grammatica; faz quatro figas ao senso commum e não te conto nada. Falla-nos em estudos sociologicos, nos mais elevados problemas das sciencias economicas e da philosophia politica, atira-nos á cara com Baudrillat, que nunca viu; com Garnier, que não conhece e passa carta de tolo a tudo que é portuguez.
Vendo que a indignação do meu amigo subia n'um crescendo vertiginoso, não me atrevi a interrompel-o.
—Gomes Pércheiro, rapaz sympathico e estudioso, cujos sentimentos patrioticos ninguem póde contestar, que em assumptos sobre emigração é—um especialista—tem escripto muito e muito bem e ultimamente fez um drama, ou antes um cauterio para curar a chaga da emigração. Queres agora saber o que diz o tal folhetinista? «O sr. Pércheiro, porém, tem-se contentado com o esforço de lançar alguma luz ácerca do que é a emigração.» Isto não se tolera. Pois um homem que, no dizer do teu folhetinista, «viu as cousas de perto; teve occasião de as ver» (que novidade! viu porque teve occasião) «e não se tem cansado de nos dizer o que viu» só lança alguma luz? Que me dizes?
—Que tens uma linguinha...
—Eu tenho linguinha?... Ouve: o teu homem, depois de fazer os seus salamaleques aos redactores do Diario de Noticias, á conta do tal elogio mutuo, sae-se com esta: «Que, diga-se a verdade, o sr. Pércheiro tem umas certas culpas.» Pois o Pércheiro[367] tem culpa das concussões d'auctoridade, cruezas das leis, gritos d'infelizes, infamias de contractadores de colonos, de que falla o citado auctor?!
—Mas que tenho eu com isso?
—Não me interrompas; ouve até ao fim.—O aristarco, depois de dizer que Pércheiro é todo paixão e de lhe dar a entender que tem uma grande dóse d'amor proprio, falla na diplomacia do senso real das cousas—palavrões que ninguem percebe—e diz: «Vamos ao drama. Intitula-se os Aventureiros, e agrupando... certos caracteres, que podem dizer-se descolados da lenda sinistra de recrutamento de colonos, etc.»—Como não assististe á leitura do drama, quero dar-te uma ideia dos caracteres descolados—Um abbade que préga contra a emigração; o sobrinho que arranca da porta da egreja um annuncio pomposo, convidando os pobres camponezes a abandonarem a patria e o lar; um celebre commendador Manquitó, typo repugnante que negoceia em escravatura branca; uma mulher infame que seduz com mentidas promessas inexperientes donzellas, fazendo-lhes ver um futuro brilhante longe dos seus e da terra que lhes foi berço, etc. etc.; eis os personagens que preparam o entrecho do drama, que lhe servem de prologo: chamar a estes personagens caracteres descolados é caso para estourar de riso!
«Francamente, continúa o crítico, o drama lido pelo sr. Pércheiro, excedeu a expectativa mais exigente. Ha scenas vigorosamente traçadas, formosos caracteres... tem varios defeitos: está claro.» Não me dirás porque está claro? perguntou-me o meu amigo.
—Porque vae rompendo a manhã, respondi-lhe eu.
—Não zombes: já ouviste que o drama excedeu a expectativa mais exigente, pois agora ouve lá esta: «O sr. Pércheiro não é um escriptor feito e largamente educado pelo estudo, pela leitura e pela experiencia, nos segredos e exigencias da arte.» Se isto não é um desconchavo, não ha desconchavos no mundo.
Simul esse et non esse!—To be and not be! «Em summa» nota bem, «o drama é viavel» quer dizer, atura-se «ha-de dar dinheiro... sem ser uma exploração de escandalos obscenos.» O que aqui vae! Agora vaes ver o gosto do critico: «Não gosto de dramas de propaganda, porque a paixão da propaganda vicia e suplanta a verdade do drama.» Se o theatro não é propaganda; se a rir, ou mesmo a chorar, não se castigam na scena os costumes, não se infiltra o sentimento do bem e do amor da patria, etc., de que serve o theatro?
Finis coronat opus e regista mais esta: «A arte não é tribuna. É altar ou é throno. Não discute; cria.»
Entendeste? Nem eu.[368]
E, pegando no chapéu, retirou-se aquelle zoilo da gloria critica do sr. Fernão Vaz e eu fui-me deitar.
(A Nação de 10 de janeiro.)
Fulano d'Anzoes.
O sr. Fulano d'Anzoes, parece que não comprehendeu a significação do dito—diplomacia do senso real das cousas.
Nós lh'o explicamos.
O sr. Fernão Vaz, como o sr. d'Anzoes terá reparado, ama a Deus e ao démo. O Deus que o sr. Vaz ama é uma troup de... nem nós sabemos como a havemos de qualifical-a...
No baixo imperio romano houve uns sujeitos que á emitação dos grandes mestres, tambem faziam em publico, nos saraus litterarios, as suas leituras de coisas, abórtos de rethorica e adjectivos, sem arte, sem súco algum.
A estes sujeitos chamavam palhaços ou pantomimos da litteratura do tempo. Na actualidade, em Portugal, tambem ha d'isto. È este o Deus que o sr. Fernão Vaz adora; porque é este que faz o reclame á proficiencia, á capacidade ou ao intellecto dos proselytos da troup.
O démo somos nós, que nos orgulhamos de não pertencer á tal... tropa; e ella... a tropa faz-nos a pirraça de nos não querer lá, por causa das nossas culpas e das nossas impertinencias... de que ainda não começamos a penitenciar-nos nem nos penitenciaremos.
Mas por que, pertencendo Fernão á tal troup, nos diz que o nosso drama escedeu a espectativa mais exigente? Pela mesma razão que diz que não somos litterato, que o nosso drama tem defeitos, que elle é viavel, (assim como quem não quer a cousa) e que elle finalmente, ha de dar dinheiro, assim como poude dar... a Filha da senhora Angot e quejandos.
Chama-se a isto acender uma vela a Deus e outra ao démo, ou mais claro:—chama-se a isto a diplomacia do senso real das cousas!
Nós desculpamos o sr. Fernão Vaz. Não se cria popularidade impunemente. Fallar assim do nosso drama e a proposito d'elle (sic) dirigir dois ou trez salamaleques ao seu amigo Eduardo, que por causa de uma tola popularidade embirra com as Questões do Pará, Coisas Brazileiras, Commendador e Barão, Questão dos Chouriços ou photographias politicas e outras obras que custam dinheiro e que o tal coisa costuma receber e não pagar com uma simples cortezia jornalistica, assim como embirra com os pobres Aventureiros; fallar assim, repetimos, perante a troup dos réclames e de mais a mais n'um jornal, cujos fundadores vivem,[369] mais ou menos, interessados no commercio da escravatura branca, é conveniente, é contemporisar com a cousa, e quem não contemporisar hoje em dia não apanha popularidade e não fica sabendo o que seja—diplomacia do senso real das cousas.
O sr. Fulano d'Anzoes faz uma offensa ao sr. Fernão Vaz, quando lhe põe em duvida a vastidão dos seus conhecimentos economicos e o seu contacto com Baudrillat e outros economistas, não esquecendo Montesquieu, Say, Smith, Otho e... e Garnier, tudo lá de fóra. É injusto, porque o dono do pseudonimo Fernão Vaz está em contacto com a commissão de economistas, nomeada ha pouco pelo sr. Carlos Bento... cá de dentro!
Punhamos ponto final na questão, tratada da nossa parte com simplicidade, isto é, pobresinha de estylo, de rethoricas e de adejectivos; mas antes d'isso façamos uma pergunta ao sr. Vaz, sobre o que entende elle por theatro altar e theatro tribuna? isto é, qual a conveniencia de um e a inconveniencia do outro, no templo, que pode admittir uma e outra cousa, sem prejuiso da arte?
Os homens que estudam lá fóra, e que, com a sua sciencia desejam resolver este problema complexo, não fixam as suas largas vistas n'uma sociedade que desconhecem, por exemplo, na nossa. Estudam o meio em que vivem e por elle fazem obra. Victor Hugo leva ao altar do theatro o seu Ruy Blaz, para que o adorem; e Alexandre Dumas filho manda a sua Margarida Gauthier para a tribuna do theatro prégar ás turbas a regeneração da mulher.
Ambos estes vultos da sciencia podiam ter dito:
Victor Hugo:—o publico francez tem escollas em abundancia, onde aprende a ler, para depois vir cá fóra beber a moral nos milhares de livros que nós escrevemos. O theatro deve ser altar e não tribuna. Dumas replicaria:—a instrucção não chegou ainda onde devia chegar; mas ainda que chegasse, o livro não convence tanto como a tribuna (esteja ella aonde estiver), isto é, como a palavra fallada. Assim pois regeneremos a sociedade no theatro, façamos do theatro tribuna.
O sr. Fernão Vaz estudou o meio em que vive ou estudou o meio em que vivem Hugo, Dumas e outros?
Se estudou o nosso meio encontra uma sociedade que não sabe cousa alguma, por que não sabe ler, e a quem não sabe ler diz-se-lhe por todas as fórmas, com a palavra fallada, o que é necessario que ella aprenda; isto emquanto a nossa sociedade não souber o A B C e mais alguma cousa. É verdade que ainda depois encontrará a opinião dos mais sensatos, dos mestres, a dizer sempre:—o theatro deve ser tribuna.
Mas nós não queremos tal exclusivismo: assim pois, que o theatro seja templo onde haja tribuna e altar.[370]
O Regente interino em nome do Imperador, o senhor D. Pedro II, faz saber a todos os subditos do imperio que a assembléa geral legislativa decretou e elle sanccionou a lei seguinte:
ARTIGO 1.º—O contrato de locação de serviços celebrado no imperio ou fóra, para se verificar dentro d'elle, pelo qual algum estrangeiro se obrigar como locador, só póde provar-se por escripto se o ajuste fôr tratado com interferencia de alguma sociedade de colonisação reconhecida pelo governo no municipio da côrte, e pelos presidentes nas provincias. Os titulos por ellas passados, e as certidões extrahidas dos seus livros terão fé publica para prova do contrato.
ART. 2.º—Sendo os estrangeiros menores de vinte um annos perfeitos, que não tenham presentes seus paes, tutores ou curadores, com os quaes se possa validamente tratar, serão os contratos auctorisados, pena de nullidade, com assistencia de um curador, o qual será igualmente ouvido em todas as duvidas e acções que dos mesmos contratos se originarem, e em que algum locador menor fôr parte, debaixo da expressada pena.
ART. 3.º—Para este fim em todos os municipios onde houver sociedades de colonisação haverá um curador geral dos colonos, nomeado pelo governo na côrte e pelos presidentes nas provincias, sob proposta das mesas da direcção das mesmas sociedades.
Nos outros municipios servirão os curadores geraes dos orphãos. Nas faltas, ou impedimentos de uns e outros, nomearão as sobreditas mesas de direcção para auctorisação dos contratos e os juizes respectivos para os casos das acções que se moverem, pessoa idonea que o substitua.
ART. 4.º—Não apresentando os menores documento legal da sua idade será esta estimada no acto do contrato á vista da que elles declararem e parecer que podem ter, e ainda que depois o apresentem este não valerá para annullar o contrato, mas se estará pela idade que no acto d'este se houver estimado para os effeitos sómente da validade do mesmo contrato.[371]
ART. 5.º—É livre aos estrangeiros de maior idade ajustarem seus serviços pelos annos que bem lhes parecerem, mas os menores não poderão contratar-se por tempo que exceda á sua menoridade, excepto se fôr necessario que se obriguem por maior praso para indemnisação das despezas com elles feitas, ou se forem condemnados a servir por mais tempo em pena de terem faltado ás condições do contrato.
ART. 6.º—Em todos os contratos de locação de serviços, que se celebrarem com os mesmos menores, se designará a parte da soldada que elles devam receber para suas despezas, que não poderá nunca exceder da metade: a outra parte, depois de satisfeitas quaesquer quantias adiantadas pelo locatario, ficará guardada em deposito na mão d'este, se fôr pessoa notoriamente abonada, ou não sendo, prestará fiança idonea para ser entregue ao menor, logo que acabar o tempo de serviço a que estiver obrigado, e houver saido da menoridade. Fóra d'estes casos será recolhido no cofre dos orphãos do municipio respectivo.
Nos municipios onde houver sociedades de colonisação reconhecidas pelo governo, serão taes dinheiros guardados nos cofres das mesmas sociedades.
ART. 7.º—O locatario de serviços que, sem justa causa, despedir o locador antes de se findar o tempo por que o tomou, pagar-lhe-ha todas as soldadas, que devêra ganhar, se o não despedira. Será justa causa para a despedida:
1.º Doença do locador, por fórma que fique impossibilitado de continuar a prestar os serviços para que fôr ajustado;
2.º Condemnação do locador á pena de prisão, ou qualquer outra que o impeça de prestar serviço;
3.º Embriaguez habitual do mesmo;
4.º Injuria feita pelo locador á dignidade, honra, ou fazenda do locatario, sua mulher, filhos ou pessoa de sua familia;
5.º Se o locador, tendo-se ajustado para o serviço determinado, se mostrar imperito no desempenho do mesmo serviço.
ART. 8.º—Nos casos do n.º 1.º e 2.º do artigo antecedente, o locador despedido, logo que cesse de prestar o serviço, será obrigado a indemnisar o locatario da quantia que lhe dever. Em todos os outros pagar-lhe-ha tudo quanto dever, e se não pagar logo, será immediatamente preso e condemnado a trabalhar nas obras publicas por todo o tempo que fôr necessario, até satisfazer com o producto liquido de seus jornaes tudo quanto dever ao locatario, comprehendidas as custas a que tiver dado causa.
Não havendo obras publicas, em que possa ser admittido a trabalhar por jornal, será condemnado a prisão com trabalho, por todo o tempo que faltar para completar o do seu contrato: não podendo todavia a condemnação exceder a dois annos.[372]
ART. 9.º—O locador, que, sem justa causa, se despedir, ou ausentar antes de completar o tempo do contrato, será preso onde quer que fôr achado, e não será solto emquanto não pagar em dobro tudo quanto dever ao locatario, com abatimento das soldadas vencidas: se não tiver com que pagar, servirá ao locatario de graça todo o tempo que faltar para o complemento do contrato. Se tornar a ausentar-se será preso e condemnado na conformidade do artigo antecedente.
ART. 10.º—Será causa justa para rescisão do contrato por parte do locador:
1.º Faltando o locatario ao cumprimento das condições estipuladas no contrato;
2.º Se o mesmo fizer algum ferimento na pessoa do locador, ou o injuriar na honra de sua mulher, filhos ou pessoa de sua familia;
3.º Exigindo o locatario, do locador, serviços não comprehendidos no contrato.
Rescindindo-se o contrato por alguma das tres sobreditas causas, o locador não será obrigado a pagar ao locatario qualquer quantia de que possa ser-lhe devedor.
ART. 11.º—O locatario, findo o tempo do contrato, ou antes rescindindo-se este por justa causa, é obrigado a dar ao locador um attestado de que está quite do seu serviço; se recusar passal-o será compellido a fazel-o pelo juiz de paz do districto. A falta d'este titulo será rasão sufficiente para presumir-se de que o locador se ausentou indevidamente.
ART. 12.º—Toda a pessoa que admittir, ou consentir em sua casa, fazendas ou estabelecimentos, algum estrangeiro, obrigado a outrem por contrato de locação de serviços, pagará ao locatario o dobro do que o locador lhe dever, e não será admittido a allegar qualquer defeza em juizo, sem depositar a quantia a que fica obrigado, competindo-lhe o direito de havel-a do locador.
ART. 13.º—Se alguem alliciar para si indirectamente, ou por interposta pessoa, algum estrangeiro obrigado a outrem por contrato de locação de serviços, pagará ao locatario o dobro do que o locador lhe fôr devedor, com todas as despezas e custas a que tiver dado causa; não sendo admittido em juizo a allegar sua defeza sem deposito. Se não depositar, e não tiver bens, será logo preso e condemnado a trabalhar nas obras publicas por todo o tempo que fôr necessario, até satisfazer ao locatario com o producto liquido dos seus jornaes. Não havendo obras publicas em que possa ser empregado a jornal, será condemnado a prisão com trabalho por dois mezes a um anno.
Os que alliciarem para outrem, serão condemnados a prisão com trabalho, por todo o tempo que faltar para cumprimento[373] do contrato do alliciado, com tanto porém que a condemnação nunca seja por menos de seis mezes, nem exceda a dois annos.
ART. 14.º—O conhecimento de todas as acções derivadas dos contratos de locação de serviços, celebrados na conformidade da presente lei, será da privativa competencia dos juizes de paz do fôro do locatario, que as decidirão summariamente em audiencia geral, ou particular para o caso, sem outra fórma regular de processo, que não seja a indispensavelmente necessaria para que as partes possam allegar, e provar em termo breve o seu direito; admittindo a decisão por arbitros na sua presença, quando alguma das partes a requerer, ou elles a julgarem necessaria por não serem liquidas as provas.
ART. 15.º—Das sentenças dos juizes de paz haverá unicamente recurso de appellação para o juiz de direito respectivo. Onde houver mais de um juiz de direito, o recurso será para o da primeira vara, e na falta d'este para o da segunda, e successivamente para os que se seguirem.
O de revista só terá logar n'aquelles casos, em que os reus forem condemnados a trabalhos nas obras publicas para indemnisação dos locatarios, ou a prisão com trabalho.
ART. 16.º—Nenhuma acção derivada de locação de serviços será admittida em juizo, se não fôr logo acompanhada do titulo do contrato. Se fôr de petição de soldadas, o locatario não será ouvido, sem que tenha depositado a quantia pedida, a qual todavia não será entregue ao locador, ainda mesmo que preste fiança, senão depois de sentença passada em julgado.
ART. 17.º—Ficam revogadas as leis em contrario.
Mando portanto a todas as auctoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como n'ella se contém. O secretario d'estado dos negocios da justiça, encarregado interinamente dos do imperio, a faça imprimir, publicar e correr. Dada no palacio do Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 1837, 16.º da independencia do imperio.—Pedro de Araujo Lima—Bernardo Pereira de Vasconcellos.
Não podem ir n'este logar as cartas que publicámos no Jornal da Noite; porque a questão que alli tratámos está pendente ainda do tribunal. Brevemente as publicaremos em opusculo ou nas notas ao drama os Aventureiros, visto que parte do assumpto das mesmas são a base de um episodio que no mesmo drama romantisámos.[374]
Sua magestade El-Rei viu o officio do governador civil de Lisboa, de 12 de julho ultimo, acompanhando as informações do delegado de policia do porto de Lisboa e differentes documentos com relação ás transgressões dos preceitos da lei de 20 de julho de 1855, que se dizem praticadas por José Maria Gavião Peixoto.
E sendo-lhe tambem presentes os requerimentos em que o referido José Maria Gavião Peixoto pretende mostrar, que a rejeição no governo civil dos contratos por elle celebrados com subditos portuguezes por serviços de locação, não só é injusta, mas ainda prejudicial aos seus interesses:
Houve por bem mandar declarar ao governador civil que não ha motivo sufficiente para rejeitar os contratos celebrados nos termos dos que remetteu por copia no seu indicado officio, pois que n'esses documentos se acham em geral satisfeitas as prescripções das leis e regulamentos de policia, e nos pontos em que d'elles se afastam, não se contrariam o intuito das leis represivas da emigração; que cumpre ter muito em vista, que a pretexto de fiscalisação dos contratos e da proteção aos contratados se não tolha a liberdade individual garantida pelas leis de cada um poder dispor de sua pessoa e bens conforme lhe aprouver; e que do rigor exagerado na fiscalisação póde resultar o que os factos acabam de mostrar, o empenho e cuidado de illudir a lei e os regulamentos policiaes, fazendo-se passar como simples passageiros ou emigrantes os que na realidade são contratados, circumstancias estas que nem sempre será facil descobrir, porque nem todos os contratados terão a sinceridade de confessar a transgressão como succedeu com os individuos que se dirigiam para o Brazil no vapor Talisman, que foram detidos pelo delegado de policia do porto de Lisboa; e finalmente, que sendo de reconhecida conveniencia que o governo saiba por informações officiaes quem sejam os proprietarios no imperio do Brazil que melhor cumpram os seus contratos e mais vantagens offereçam aos colonos, a fim de se usar de mais ou menos rigor, segundo as informações e circumstancias aconselharem, por este ministerio se vae solicitar do dos negocios estrangeiros a expedição das ordens necessarias aos agentes consulares no referido imperio,[375] a fim de prestarem por esta secretaria informações periodicas e escrupulosas sobre este importante assumpto.
Paço, em 10 de agosto de 1870.==José Dias Ferreira.
«Cidade de Goyanna.—Consta que nos dias 1 e 2 do corrente fôra distribuido na cidade de Goyanna um manifesto chamando os goyannenses ás armas, para expellirem os subditos portuguezes alli domiciliados.»
(Redacção do Jornal do Recife.)
«É assombroso o caracter de que se revestem os negocios da Goyanna contra os portuguezes ali estabelecidos. Já não é o cacête, nem o punhal, nem o chumbo, nem a garrafa as armas d'estes reis que tentam, procurando por este motivo, saquear os seus estabelecimentos, são ainda mais incendiarios, incendiarios sim, porque assim o fizeram no estabelecimento do portuguez Antonio Garcia, trazendo d'este modo a perturbação e a confusão ao seio das familias.
«Tudo annuncia funestas consequencias e estes brazileiros, vis algozes da honra e esbanjadores da fortuna alheia, nem ao menos respeitam as suas patricias, a quem esses portuguezes juraram perante o altar de Deus ser seus esposos, nem aos filhos d'estes, brazileiros legitimos, querendo fazer de seus esposos e paes, victimas da mais horrenda atrocidade.
«Em breve armarão na praça publica o patibulo para onde, se o governo não der promptamente energicas providencias, têem de subir os pacatos portuguezes ali residentes, tornando-se isto delicias para os seus inimigos.
«E o governo dirá, por mais que tenha sabido: Não tive noticias.
«Ha bem pouco, foram pronunciados os auctores de taes attentados e estes mesmos que se acham foragidos cruzam as ruas ao meio dia em ponto, porque assim o governo quer.
«O proprio jornal Democrata, que d'antes defendia a causa portugueza, hoje á imposição de homens a quem o povo considera como chefes d'estes motins, se converteu em pasquim, para, dilacerando as vestes da deusa de Guttemberg, injuriar aos portuguezes.
«Mizeria do Brazil! O aprecie o paíz estrangeiro.[376]
«Hoje chega-nos a noticia de que nos dias 1 e 2 d'este mez soltaram fogo; distribuiram um manifesto, chamando os goyannenses ás armas para expellir os portuguezes, querendo repetir as barbaras scenas de 1872.
«Triste estado!
«Por ora ficaremos por aqui.»
Um amigo da familia.
(No mesmo numero do Jornal do Recife.)[377]
«O nosso amigo o sr. D. A. Gomes Pércheiro, moço intelligentissimo, acaba de chegar do Pará e vae, como testemunha presencial dos ultimos acontecimentos que alli se têem passado, publicar um livro intitulado Questões do Pará, que deve lançar muita luz sobre este assumpto, como póde ver-se dos seguintes capitulos de que o livro se compõe:
Verdades da Agencia Americana, sobre os acontecimentos do Pará em 1874.—Prova-se que o conego Manuel José de Sequeira Mendes é tribuno.—A educação dos paraenses.—Verdades amargas sobre a educação.—Os tribunaes do Pará.—Como são julgados os assassinos dos portuguezes.—O Diario de Belem.—O chefe de policia do Pará.—A religião dos paraenses.—A maçonaria.—O funccionalismo publico do Pará.—A salubridade e os medicos do Pará.—Como os brazileiros tratam os colonos agricultores.
Apendice:—Relatorio do chefe de policia sobre os assassinatos de Jurupary.—Inquerito das testemunhas.—Pronuncia dos assassinos dos portuguezes.
Acabamos de assistir á leitura d'este importantissimo trabalho e podemos assegurar ao auctor que a sua publicação ha de ter um exito felicissimo.»
(13 de abril.)
«A sociedade compõe-se, na sua maxima parte, de pobretões. É um principio incontestavel, que eu quizera que não fosse o fim dos meus amigos.
E os pobretões podem abrigar n'alma tantos desejos como os ricassos.
Ha só um ponto em que necessariamente divergem d'aquelles. Se, desde que Horacio versejou, sabemos que ninguem está contente[378] com a sua sorte, o ponto de divergencia salta a todos os olhos: o ricasso deseja soltar-se da riqueza; o pobretão deseja prender-se n'ella.
Outro gallo cantára a todos se não ter onde cahir morto assegurasse a immortalidade; porém não ha tal; pódem todos não ter onde cahir mortos, mas para esse fim, que é em verdade fim, o municipio não nega um pedaço de rua, o amigo não recusa uma nesga de quintal, e o senhorio não furta quatro taboas do sobrado que arrendou.
Mas é sem duvida triste que um ser pensador venha ao mundo sem mais propriedade do que o seu nariz.
E louvor merece portanto qualquer esforço que elle empregue para alargar essa propriedade; o que não quer dizer—alargar as ventas.
Quando alguem pensa em empregar esse esforço, passa-lhe diante dos olhos, em exhibição seductora, uma ala de sujeitos que estiveram alguns annos no Brazil e trouxeram de lá mundos e fundos.
Está logo despertado o desejo de partir para as terras de Santa Cruz.
E o homem embarca.
Diante está uma rota de 1:500 leguas, não é verdade? Embora.
O navio que o conduz abalrôa com outro, a meio caminho; e o viajante tem a sorte da faca de matto do sr. Raphael Zacharias da Costa. Tambem aqui ha uma differença: as companhias de seguros deram pela faca 31:500$000 réis e não darão 30 réis pelo ex-viajante, que só poderá tornar a fazer figura em algum quadro de peça magica, ao lado de conchas e buzios. Nem se lhe póde desejar «a terra lhe seja leve»!
Não abalrôa o navio com outro, mas bate em um rochedo, e as consequencias são as mesmas.
Não succede nem uma nem outra coisa, mas um temporal varre o homem da tolda da embarcação, e o resultado continúa a ser o mesmo. Só se alguma baleia tiver a condescendencia que teve no Mediterraneo a de Jonas, e lhe facultar o bandulho para o transportar durante tres dias; ou algum golfinho tiver a amabilidade de o levar ás cabritas como succedeu a Melicerto nos mares de Corintho.
Vencem-se porém todos esses perigos, e o homem chega são como um pero ás praias do novo mundo, que diga-se a verdade, é mais velho do que todos nós.
O espectaculo é para embasbacar. A natureza sorri. Ciciam as florestas. Os papagaios seduzem-nos com as suas variegadas côres. E as araras!...
O nosso ambicioso desembarca.[379]
Trata elle da vida; ganha o dobro, o triplo, o quadrupulo do que podia ganhar na Europa; e dispõe-se a amontoar dinheiro sobre dinheiro.
O peior é que todos os que vivem têem necessidades. O estomago é imperativo; e a pelle não lhe fica atraz. Aquelle manda que o encham, não com o pomo da arvore da sciencia do bem e do mal, mas com um bife. A pelle determina que a tapem, não com a folha da figueira, mas com um casaco. E no Brazil todas as cousas tem um preço exagerado: exemplo—uma barbeadella 10$000 réis, um biscouto 10$000 réis, um cochicho 10$000 réis. Não ha preço inferior. Este é o minimo, os outros são multiplos de 10$000 réis.
Chega um dia e com o dia chega uma febre. Ali tudo tem côr; e essa febre é amarella. E era uma vez um homem.
Os castellos de fortuna baquearam. Os sonhos de riqueza abalaram.
Succede com o arrojo emprehendedor o que succedeu, mal comparado, com certo commerciante de ovos.
Estava elle sentado no chão, tendo junto de si um cesto carregado de exemplares do genero do seu commercio. Phantasiava, e dizia: «Vou vender estes ovos e com o producto d'elles compro isto; duplico. Vendo depois isto e compro aquillo; quadruplico. Vendo depois aquillo e compro aquell'outro; octoplico o capital... Em tantos annos estou rico, tenho um grande rendimento, moro em palacio, ando de carruagem, recebo zumbaias de toda a gente, eu quero lá ouvir mais fallar em ovos!» Na força do seu enthusiasmo, e no excesso do seu desprezo pelos ovos dá um encontrão no cesto, e lá se vae o alicerce da sua futura grandeza! Nem poude aproveital-o em omelette, porque não tinha lume e frigideira á mão.
Mas consegue o pobre diabo, que foi tentar fortuna para a America, resistir á febre amarella e ás febres de outras côres; e, com muitos trabalhos, muitos sacrificios, muitas privações, chega a augmentar o seu cabedal? Está do mesmo modo perdido.
Se os fados o conduziram á provincia do Pará, atiram-lhe com os diplomas de marinheiro, galego, bicudo, e pé de boi.
Nas outras provincias é muito de suppôr que não haja menos liberalidade na concessão d'estas mercês.
Um livro intitulado Questões do Pará, publicado ha pouco pelo sr. Gomes Pércheiro, instrue muito a este respeito.
Ao stygma que se julga lançar nos portuguezes com aquelles nomes, addicionam-se a nenhuma segurança da vida de cada um, a falta de protecção das leis, e a indifferença dos poderes publicos para tudo o que é portuguez.[380]
Esquecem ali que é o nosso sangue que lhes gira nas veias!
No Pará, ao sopro pestilento da Tribuna, movem-se os braços dos assassinos e cravam o punhal no coração do artista honrado e do negociante laborioso, que teve o seu berço em Portugal e foi áquellas paragens contribuir para o progresso e engrandecimento do imperio brazileiro!
E são de individuos que constituem a força publica, são de soldados, as mais das vezes esses braços.
É ali espancado um cidadão portuguez por cousa nenhuma.
Não ha muito que um logista esteve ás portas da morte, porque não satisfez a correr a um soldado a exigencia de um phosphoro para acender o cigarro.
E mata-se um europeu no Pará por qualquer cousa.
Ha tempos appareceu afogado em um rio um portuguez por nome Antonio. Não se averiguou convenientemente a causa da sua morte. Houve entretanto processo e o juiz d'elle saiu-se com a seguinte sentença:
«Sendo a sentença do infeliz portuguez Antonio dada por um juiz superior a todos os juizes, nenhum recurso existe mais; e por nada mais poder fazer, condemno a todos que trabalharam no presente processo a pagar as custas em Padre Nossos e Ave Marias por alma do finado, entrando n'este numero eu, que já resei o meu, etc.»
O governo do imperio deve olhar seriamente por este estado de cousas, para que se não torne a dizer, como a respeito do Pará disse o jornal francez a Liberté:—é necessario que a Europa volte a civilisar aquella parte do Brazil.
Á vista do exposto, vamos para o Brazil?
Os que tiverem essa tentação, devem, antes de partir, lêr o livro do sr. Gomes Pércheiro, que dá muito ensinamento.
E se, depois de o lerem, não tiverem forças para fazer cruzes á tentação, sua alma, sua palma!
Podem ainda ter uma esperança—voltar á patria embalsamados.
GASTÃO DA FONSECA
(Folhetim de 9 de junho de 1875).
Já saiu á luz o livro do sr. Gomes Pércheiro intitulado Questões do Pará, que ha tempos lhes annunciei.
É um livro valioso para o conhecimento da importante questão de que se occupa. Não é uma obra litteraria, e para o não[381] ser, bastava o escassez do tempo em que foi escripta, visto que o auctor tinha mais por empenho esclarecer a questão do que primar pelo estylo.
Comtudo estão colligidos esclarecimentos muito dignos de ser conhecidos e estudados, e os que teem a peito saber a verdade dos factos deverão percorrer aquellas paginas, escriptas uma ou outra vez com paixão, mas encerrando muitas informações verdadeiras e interessantes.
(8 de maio—do correspondente).
Eis o titulo de um livro saído ultimamente dos prelos lisbonenses e do qual é auctor o sr. Domingos Gomes Pércheiro.
N'este livro procura o sr. Gomes Pércheiro narrar singela e despretenciosamente os factos ainda não mui remotos, occorridos na provincia do Pará e estigmatisados pela imprensa séria e imparcial no Brasil e Portugal.
O sr. Pércheiro, na sua qualidade de testemunha occular de muitos dos factos compendiados no seu livro, adduz documentos e procura comproval-os com transcripções feitas de varios periodicos paraenses. Derrama por este modo muita luz sobre tão deploraveis occorrencias, tornando-se por essa circunstancia muito interessante a sua leitura.
Precede o citado livro uma extensa carta do sr. Ferreira Lobo, escriptor lisbonense.
(2 de junho).
Tem tido grande extracção o livro do sr. Domingos Gomes Pércheiro ácerca das questões do Pará.
De facto, n'aquelle excellente livro repleto de muitos conhecimentos e de considerações do mais alto interesse social, a questão do Pará está perfeitamente elucidada sob todos os pontos de vista.
Quem lêr o livro ficará sabedor de todas as circunstancias que imprimiram e ainda estão imprimindo n'aquella questão um caracter de generalidade, que muito interessa, attendendo a que a colonia portugueza no Brazil é não só a mais numerosa, mas a ella se prendem os destinos e o bem estar de muitas familias e commercio de Portugal.
(24 de junho).[382]
Esteve ante-hontem n'esta cidade, vindo do Porto em regresso para Lisboa o sr. D. A. Gomes Pércheiro que fôra no Pará director da Agencia Americana, que presenceara ali todos os attentados de que foram victimas os portuguezes, e que muito conhecedor das circunstancias actuaes do imperio, procura desviar d'ali a nossa emigração procurando encaminhal-a para a nova Africa, manancial riquissimo de valiosos productos, mas descurado completamente do auxilio e dos esforços dos governos.
O serviço que o sr. Pércheiro está fazendo ao paiz é muito valioso, e ninguem haverá ahi que o não considere devidamente. Sobre a obra do sr. Pércheiro—Questões do Pará, publicaremos dentro de pouco o nosso juizo.
(2 de junho).
Com esta epigraphe publicou o sr. D. A. Gomes Pércheiro um livro, narrando os acontecimentos do Pará, e attribuindo-os em grande parte á inacção e desmazello dos governos portuguez e brazileiro. Nota o auctor que é ainda grave o estado da provincia, e que urge acudir-lhe com os antidotos aconselhados pela experiencia, para que a enfermidade não ganhe forças e não seja depois impossivel obstar a conflagração geral, que ali ameaça rebentar.
O sr. Pércheiro não faz só considerações sobre o flagello que assola o Pará. Não se basea em rumores vagos. Não architectou hypotheses devidas á sua imaginação de portuguez amante do seu paiz. Fez mais. Exhibiu documentos officiaes de grande valia, e mostrou com a imprensa séria do Brazil, que se senão oppozer um dique á onda das vinganças que devasta aquella parte do imperio, os portuguezes terão de evacuar o territorio, onde exercem uma actividade proveitosa para a colonia e para a nação brazileira, rompendo antigas ligações, e cavando um abysmo infranqueavel entre dois povos, que deviam estremecer-se como irmãos. É que a cupidez e o desvario vão accendendo no peito da escoria as chama de Cain.
Teve o sr. Pércheiro uma posição difinida no Pará. Foi ali o encarregado da Agencia Americana Telegraphica encerrada por haver communicado para a Europa as occorrencias que se davam na provincia, embora a verdade dos factos não podesse lisongear os poderes publicos superiores de Portugal e do Brazil. É portanto o seu depoimento auctorisado, por que presenceou[383] uma parte dos acontecimentos que a imprensa portuguesa registrou com entranhado sentimento, ao reclamar dos dois governos providencias energicas, que pozessem cobro ao morticinio de nossos compatriotas, verificado a mais de duas mil leguas de distancia.
Foi portanto o sr. Pércheiro testemunha presencial de bastantes factos, que o levaram fatalmente ás conclusões que se conteem na sua excellente publicação, que nós aqui mencionamos como um titulo de capacidade para o auctor, que foi para o Brazil a fim de ganhar fortuna, e que regressou á patria com a alma cheia de nobre indignação, mas sem ter logrado realisar o seu esperançoso intento.
Houve no Pará um caracter grave e amante da ordem, que se propunha a conter os discolos e a trazel-os a bom caminho. Desejava porém que o governo o auctorisasse a usar de poderes descripcionarios, que elle promettia temperar, com a moderação inherente aos seus habitos e ás faculdades do cargo que exercia. Foi o dr. Pedro Vicente d'Azevedo, antigo presidente da provincia, quem dirigiu ao governo geral o seguinte telegramma:
«Os negocios da Tribuna aggravam-se; posso acabar este estado de coisas se me dá carta branca. Serei prudente. Espero resposta hoje.»
Pois este convite directo promettendo esmagar a conspiração tenebrosa urdida contra os que honradamente trabalham teve a resposta que se segue:
«Proceda dentro dos limites da lei.»
Mas a lei era letra morta no Pará. Os assassinos reuniam publicamente contra os portuguezes inermes, porque os nossos compatriotas exerciam o commercio, e não se desviavam do trafego honrado, por o qual tinham abandonado a patria e a familia. E como a sua applicação era mais proveitosa que a dos naturaes da provincia, reunia-se a ralé da população, não para exceder o estrangeiro em actividade, não estimulada pelo exemplo, mas para cevar paixões ignobeis, para dar a morte aos que se lhes avantajavam na preserverança de suadas canseiras!
Assim o governo geral quebrava a vara do poder nas mãos do seu agente, ordenando-lhe que se houvesse com legalidade, quando para salvar a gente séria, a vida e a propriedade de pessoas respeitaveis, era mister declarar a provincia em estado de sitio! Não comprehendemos como n'um caso desesperado o poder central senão abalançou aos meios heroicos, indicados pelas circunstancias. Teria expurgado aquelle territorio dos vandalos que o infestam, e teria provado á Europa, que no Brazil se conhecem e applicam as leis da verdadeira hospitalidade.
(5 de junho.)[384]
Recordando as lindezas e importancias da minha terra natal, sahe-me dos bicos da penna, o nome de um livro, e o nome do seu auctor que este solo viu nascer e acalentou. O livro é: Questões do Pará; o nome do seu auctor, bem conhecido, escusava-o a sua reputação; mas orgulhoso das glorias da minha terra não desejo omittil-o:
Domingos Antonio Gomes Pércheiro.
Se estas pobres linhas, sem pertenção a escripto, lhe chegarem ás mãos, peço venia para que a sua modestia me perdôe e consinta que eu apresente o meu parecer sobre o seu livro. O meu parecer humilde, como humilde é quem o faz. Questões do Pará é um livro bem raro, que falla e defende a patria; não trata de frivolidades, não faz grimpa de philosophias, não ostenta empoladas utopias, molestia de que a nossa literatura moderna está contagiada. Occupa-se de Portugal e de seu irmão o Brazil. Individualisa-se e soffre com as nossas desgraças.
Historia essas scenas de canibalismo americano, contra os desgraçados portuguezes, que, tendo em vista o trabalho santo, vão procurar uma vida n'aquellas plagas inhospitas. Indigna-se contra taes horrores, e reverbera então o latego sobre os novos Cains.
É um livro verdadeiro, um auxilio para a historia contemporanea.
É um pregão que fará convergir a indignação dos povos cultos contra taes selvagerias. Uma consolação para os desgraçados portuguezes que ainda luctam com o clima, insuperaveis difficuldades e guerra dos brazileiros. Não tem arrendados de estylo, e menos ainda bellezas poeticas, porque lh'as não consentiu a brevidade, nem a gravidade do assumpto. Digne-se o distincto auctor acceitar os meus emboras e felicitações, que, sendo verdadeiras, só peccam pela pequenez do nome que assigna.
(3-5-76)
J. Martins M. da Silva.
Hontem démos noticia do livro publicado pelo prelado da diocese[385] do Pará, e por o não termos podido ler ainda, só referimos o que no prefacio escrevera o reverendo auctor. Hoje temos de fazer outro tanto com o livro do sr. Pércheiro, cujo texto nos é desconhecido. Quanto sabemos a respeito d'elle, o aprendemos na carta do sr. Ferreira Lobo que precede o livro.
O volume do sr. Pércheiro é offerecido aos seus illudidos compatriotas que vêem no Brazil uma nova terra da promissão. Mais nada. Esta dedicatoria só valle um livro porque está recommendando aos mancebos o trabalho na patria onde a remuneração poderá ser modesta, mas é perto do lar domestico, em plena liberdade, com a benevolencia dos nossos affectuosos costumes a affoitar o animo, sem epidemias frequentes, e sempre com a certesa de não morrer de fome, porque não fallece ninguem entre portuguezes, seja natural ou estranho.
E depois em Portugal tambem os humildes enriquecem. Ha exemplos e numerosos. Muitos d'esses negociantes, senhores de estabelecimentos consideraveis, partiram da terra pobrissimos, foram caixeiros de outros commerciantes, e pelo trabalho é que mereceram consideração, pelo zelo estima, pela probidade respeito e auxilio de toda a gente. Depois veiu a riqueza, isto é, a cupula do edificio.
Se na patria havia emprego para a actividade de muita gente, d'aqui por diante ainda deve ser mais facil encontrar meio de adquirir fortuna. Basta observar a abundancia de capitaes, o seu movimento e direcção, a grande quantidade de emprezas que se vão formando por cooperação e interesse de todas as classes, e as facilidades de communicação por mar e terra, para transporte de pessoas e de mercadorias, ou para transmissão de ordens e de avisos...
Emfim... Mas o nosso proposito não é escrever ácerca da emigração. Desviou-nos para este assumpto interessantissimo a dedicatoria do livro. Desculpe o leitor a digressão. Ha, porém, coisas que seria conveniente dizer a todos e repetil-as quotidianamente.
O sr. Pércheiro, segundo informa o esmerado escriptor já referido, foi ha tres annos para o Pará, e voltou ao cabo d'elles de cabeça levantada e mãos vasias. Tendo, porém, observado como por lá eram tratados os portuguezes, ergueu n'este livro um brado de indignação contra a prepotencia de que são victima os nossos irmãos do Brazil.
Accrescenta o sr. Ferreira Lobo, nosso estimado collega na imprensa, que este volume não é primor litterario; que o proprio auctor lhe conhece os defeitos de fórma; que foi escripto na viagem e sem auxilio de livros, e por isso saiu agitado, revolto e caprichoso como as vagas que baloiçavam a mesa sobre [386] a qual foi delineado; que finalmente foi inspirado por sentimento de patriotismo, de independencia, de dedicação, e de coragem.
As questões do Pará que dão o titulo ao livro, não são as mesmas que inspiraram o livro do prelado d'aquella diocese. Referem-se principalmente á luta entre portuguezes e brazileiros, á campanha do commercio a retalho, mas, segundo vimos folheando o volume, não deixou de alludir a essas discordias o auctor. E assim devia ser porque as questões entre o bispo e o governo do Brazil tem ligação com o odio de certos brazileiros aos portuguezes.
Vamos ler com muita curiosidade a obra do sr. Pércheiro, e agradecemos-lhe o favor de offerecer um volume á nossa redacção.
(12 de maio.)
Por todos os portuguezes deveria ser lido este livro, a proposito do que fez o Jornal da Noite as seguintes sensatas ponderações: (Transcreve o artigo do Jornal da Noite.)
(14 de maio.)
O livro subordinado a esta epigraphe, devido á pena do sr. Gomes Pércheiro, tem tido extraordinaria extracção. Não podia deixar de assim ser, porque é um trabalho utilissimo e de muito ensinamento para aquelles que teimam, com prejuiso para as nossas colonias, em ver no Brazil actual, exausto e quasi cadaverico, o antigo emporio de riquezas agricolas, que era a alma do commercio e da industria ainda nascente, e que á porfia pareciam querer fazer do imperio o maior collosso da civilisação americana.
A lei que no Brazil estabelecera a egualdade de nascimento, fazendo de todos os homens uma só familia, surtiu optimos effeitos moraes no mundo liberal, por ver-se que uma nação ainda adolescente comprehendia já a sublimidade da idéa que começára a robustecer-se com as glorias obtidas no Paraguay. A carta da emancipação dos escravos veiu dar ao Brazil facil accesso para sentar-se á mesa do progresso, junto das nações mais velhas que lhe tinham sido mãe.
Mas depois d'isto faltava fazer muito ainda. Era preciso não adormecer ao som dos hymnos inebriantes das glorias passadas;[387] era preciso que governantes e governados estudassem pelo seu passado qual havia de ser o futuro do seu imperio. Era preciso que esse immenso territorio fosse devastado, permitta-se-nos a expressão, pela immensa tempestade do progresso, que se lhe abeirava, para dar-lhe o seu quinhão civilisador; e que leis protectoras se fizessem com o fim de dar livre accesso ao explorador, que mais tarde havia de ceifar as suas mattas insondaveis e poeticas, mas cuja poesia fará retrogradar o Brazil para os seus primitivos tempos. Era preciso substituir no trabalho esse ente, que ainda não estava educado para ser livre, mas que uma idéa humana fizera egual aos outros homens; e não deixar oxidar a roçadoura, a enxada e a pá, e amortecer os animos febris pelo desbravamento das terras incultas, que, como estão, não podem servir de engrandecimento para o imperio. Era preciso que governos e governados, de norte a sul, attraissem, com seus bons tratos o estrangeiro ávido pelas riquezas do seu feracissimo solo.
Leis, filhas de um aturado estudo philosophico, sobre as condições religiosas do imperio, deviam ter substituido as que existem, e que não podem mais servir para uma sociedade nova, e muito especialmente para um paiz que precisa recolher em seu seio homens de todas as crenças. A questão religiosa, que ainda não terminou no imperio, e que tanto mal tem feito ao seu progresso, não teria existido.
Os homens talentosos do Brazil, á similhança do que se faz nos paizes cansados, estudam apenas o incomprehensivel problema da politica e parece quererem contemporisar com o movimento jesuitico.
A par d'isto retraem-se os capitaes, os colonos portuguezes, no norte do imperio, repatriam-se. A falta de braços, faz-se sentir. A lavoura definha-se; por que além da falta de braços, os terrenos limitrophes das povoações estão explorados e os governos não tomam a iniciativa de abrir tunneis, permitta-se-nos a phrase, n'essas immensas montanhas de matta virgem, cujos troncos seculares com sua immensa folhagem nos não deixam ver tão grande manancial de riquesas. As estradas que existem para o interior dos sertões são apenas os carreirinhos do indio, da onça, do veado, da paca e do tatù.
No valle do Amazonas vive-se da industria extractiva. A agricultura foi despresada. Mas a industria extractiva vae morrer, por que os governos não desimpedem as immensas vias de communicação—os rios—que cortam em todas as direcções aquelles immensos territorios, tambem cobertos de plantas.
Que se faz para attrair o estrangeiro? Que pensam os homens eminentes do Brazil?[388]
Nada vemos. E contudo, o mais simples observador nota que o grande imperio está passando por uma crise assustadora.
Suggeriu-nos estas phrases, ao lermos o livro Questões do Pará, cuja leitura recommendamos, a idéa do engrandecimento do imperio do Brazil.
(26 de junho)
É notavel este livro pela questão importantissima de que se occupa, e pelos esclarecimentos que presta, fundados em documentos, e nas palavras do auctor testemunha presenceal dos factos.
Dotado de grande energia e independencia o sr. Pércheiro apresentou as questões do Pará como as viu e entendeu, e as suas palavras, por vezes duras como as verdades amargas, hão de molestar muitos dos que as lerem.
O auctor trata de justificar as verdades das noticias que transmittiu como agente da Agencia Americana.
Interessa-nos muito a questão do Pará, e sobre ella escrevemos modernamente o nosso pensamento n'um artigo que vimos reproduzido no jornal o—Brazil, destinado ao novo mundo.
Inutil é pois repetir n'este jornal as ideias que elle publicou; d'outra sorte escreveriamos detidamente ácerca do livro que annunciamos, e cuja leitura recommendamos aos nossos leitores.
Ao sr. Pércheiro agradecemos a offerta do seu livro.
(15 de maio)
Questões do Pará.—Publicou-se e acha-se á venda nas differentes livrarias uma brochura com o titulo Questões do Pará, de que é auctor o sr. D. A. Gomes Pércheiro.
O sr. Pércheiro era o representante da Agencia telegraphica americana no Pará, e por ella foram enviados os telegrammas que nos informam dos assassinatos de Jurupary, e de outras occorrencias, que se lhes seguiram. Notaremos que, depois d'isso foi fechada a succursal d'aquella agencia no Pará, certamente porque o governo brazileiro entendeu ser mais commodo continuar a perseguição e a chacina, sem que nós, e o resto da Europa[389] podessemos ser informados das façanhas da selvageria.
Agora só de longe em longe, e passado tempo, nos chega noticia do que vae por aquella provincia brazileira.
A brochura do sr. Pércheiro contem esclarecimentos minuciosos, e é um excellente commentario aos documentos publicados no Livro Branco. Logo se vê que o sr. Mathias de Carvalho tem carradas de razão em dar louvores ao governo do seu imperial compadre, pelo zelo, diligencia e sollicitude com que vela pela ordem publica e pela segurança dos portuguezes no Pará.
(n.º 71, de maio)
Este livro deve ser estudado e meditado. É a historia circumstanciada d'essas desgraçadas questões do Pará, entre portuguezes e brazileiros, incitados estes ao odio e á matança de nossos irmãos pelo pasquim da imprensa chamado Tribuna.
Como quem de perto conhece a vida brazileira, mostra com argumentos os perigos da emigração, e achamos util que este livro se colloque ao lado dos escriptos do sr. Augusto de Carvalho que outro fim não tem senão desinvolver a propaganda de emigração de portuguezes para o imperio brazileiro.
Já o dissemos e repetimos: a emigração é um acto de liberdade que ninguem contesta, mas impossivel no estado actual das circumstancias de Portugal e Brazil.
O livro do sr. Pércheiro é obra de um bom coração portuguez que colloca ao serviço da patria e da verdade a sua voz auctorisada.
(16 de maio)
Sabeis o que foi a America?
Ha pouco mais de tres seculos era um mundo escondido pelos mares. Vivia entregue ás leis da natureza e em quanto a civilisação viera do oriente ao occidente em marcha continua, derribando e elevando, sempre vencedora, sempre triumphante, a America nem sequer a olhava pelo cimo das aguas, e nem as correntes dos mares lhe levavam os eccos alegres dos nossos festins ao progresso!
Lá vivia, entregue ás leis dos sentidos, ao codigo do mais forçado, á vontade do mais prepotente.
Os seus habitantes afundavam-se nas matas gigantescas, que[390] similhavam os alicerces dos ceus. Tinham a quina, o café, o assucar, a canella; sentavam-se á sombra do cedro, do secular palisandro e da alta palmeira. Pesava sobre elles o mysterio das grandes florestas virgens, que fazem suppor maiores mysterios; encantava-os o trinado do sabiá, mas, quando se abeiravam das costas, não sabiam cortar um tronco de cedro, e atirando com o fraco lenho sobre o dorso do mar, que rugia, não sabiam collocar-se sobre elle, e domando as ondas, os obstaculos, a desesperança vir até onde, pelo menos os devia incitar a phantasia.
Olhavam com medo e terror o Amazonas, e como os pomos das arvores lhe satisfizessem as primeiras necessidades da vida dormiam em somnolencia permanente os dias da existencia.
A terra era fertil; os naturaes indolentes.
Mas a velha Europa tinha caminhado muito. As loucuras, os gozos, os prazeres que a Asia lhe havia enviado como despojos da conquista pediam novos manciaes de oiro, novos thesouros inexgotaveis, que saciassem a libertinagem da matrona.
A Europa já tinha arrancado perolas dos seios das ondas; sonhou com diamantes.
E quando os sabios, curvados sobre os problemas das sciencias physicas, apontavam para paragens longiquas, os aventureiros lançavam-se logo a procurar a nova terra.
O navegador chegou a ser um poeta.
Faltava-lhe a sciencia, mas tinha a inspiração.
E a inspiração bastava, e foi guiado por ella que Colombo deixou o porto de Palos em 3 de agosto de 1492.
Pouco depois vinha Colombo depor um mundo aos pés do rei Fernando e da rainha Isabel.
*
* *
Os portuguezes foram tambem á conquista. O acaso impelliu Pedro Alvares Cabral a descobrir o Brazil, e o rei D. Manuel podia dar mais luzimento á corôa e mais brilhantismo ao seu reinado.
Começava então o seculo XVI; e iniciava-se pelo descubrimento do Brazil o gigante da Reforma e da Renascença.
D. Manuel não deu grande importancia ao facto: tantas eram as descobertas do seu reinado, que a dependencia de metade de um mundo nem o fazia estremecer!
Mas quando as caravellas chegavam carregadas de oiro e pedrarias, e se buscava ahi o peculio para satisfazer ás sumptuosidades religiosas do rei D. João V e á sequiosidade de dinheiro da curia romana, começou a estremecer-se o Brazil.[391]
Praticámos o nosso dever de povos civilisados. Aquelle povo ignorante, que nada conhecia, mandamos-lhe atravez dos mares as nossas industrias, as nossas sciencias, as nossas artes.
A emigração era uma cruzada abençoada. Os emigrantes iam prégar a religião do trabalho e a sciencia da vida do progresso. Tomaram o livro, e ensinaram a ler o selvagem; agarraram na enchada, e instruiram o natural em cavar a terra.
Ensinaram-lhe a construir lanchas, e a lançal-as sobre as aguas dos rios.
Crearam-lhe novas necessidades, mas deram-lhe meios de as satisfazer.
Derribaram-lhe as choças, e edificaram-lhe habitações firmes e solidas.
Ensinaram-lhe o commercio; arrotearam-lhe os terrenos; secaram-lhe os pantanos; duplicaram-lhe a agricultura; exploraram-lhe o minerio.
Deram-lhe instituições, codigos, leis; mostraram-lhe a associação; prégaram-lhe a liberdade e a beneficencia.
Depois fizemos a nossa primeira revolução liberal. Marchámos contra o despotismo e mostramos-lhe os direitos do povo em 1820.
O gigante do seculo estranhou a audacia, mas temeu a força popular.
Transigiu, ou por outra transigimos.
Mas da liberdade conquistada fizemos participante a colonia brazilica. Estendemos até lá as idéas que a França nos havia ensinado, e quando em Ypiranga o regente soltou a primeira phrase de indepencia, quasi que voluntariamente lhe levantámos a tutella.
Queria governar-se... Muito bem; em 1825 reconhecemos-lhe o direito, demos-lhe a emancipação, e um rei, filho dos soberanos portuguezes, para que a dirigisse.
Não lhe oppozemos grandes obstaculos, nem tentamos sujeital-a pela força.
Ficou livre, e ficámos livres; mas n'esta mutua liberdade que nós reconheciamos, parece que nos deviamos estreitar em amisade de irmãos, em desenvolvimento de interesses, em aspirações de idéas.
Assim não acontece.
*
* *
O povo brazileiro declara guerra de exterminio ao povo portuguez.[392]
A indolencia teme a concorrencia da actividade; o homem perguiçoso e somnolento aborrece o homem trabalhador.
No Pará é que se dá o combate sem treguas. O negociante, o artista, o industrial, o trabalhador, que vão das nossas terras, abandonando a patria e a familia, affrontando todos os perigos, em busca de pão, veem-se odiados, espesinhados e assassinados pela horda de infames, que querem recuar quatro seculos, voltando á selvajaria primitiva.
Incita-os á vingança um pasquim jornalistico, que todos os dias manda de caza em caza, de animo de espirito em espirito o odio contra nossos irmãos.
Em 1875, ainda o fanatismo de braços com o interesse incita as turbas á matança. Os portuguezes são os christãos novos, os judeus e os albigenses em que cevam rancores os parasitas e ociosos.
Senhores homens da Tribuna: expulsae os portuguezes, como á colonia hebrêa faziam os reis catholicos de Hespanha. Confiscae-lhes mesmo as riquesas; chamae a vós as suas propriedades; roubae-lhes o commercio que elles souberam elevar e desenvolver, que assim tereis condignamente satisfeito ao fim da missão jornalistica de assalariados vendilhões.
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* *
Os portuguezes residentes no Pará estão sujeitos ao afiado da faca assassina. São seguidos na sombra e mortos cobardemente nas encruzilhadas.
É crime ser commerciante; o trabalho é um delicto. Assim o entendem os tribunos.
Ganhar honradamente o pão de cada dia, é uma atrocidade; a industria é uma infamia; o homem que trabalha é um gallego.
E, oh supremo desaforo! se os portuguezes se reunem em associação, os tribunos só comprehendem as sociedades de bandidos!
As portas dos nossos compatriotas são marcadas com signaes, para que o punhal possa entrar sem receio de errar o golpe.
A justiça verga-se; é egual para os naturaes, a quem absolve os crimes: esmagadora, despotica e tyrannica para com o portuguez que commetteu a menor transgressão á lei.
No seio das familias ensinam-se as creanças a odiar os filhos de Portugal. As imaginações infantis apresentam-se quadros horrorosos, em que se incute esse odio, em que elle se perpetúa sempre, e cada vez produzindo mais funestas consequencias e terriveis episodios.[393]
O lar é escola de malquerenças; e em vez de ensinarem aos filhos a veneração e o amor pelos portuguezes, que lhes conquistaram a liberdade e a civilisação que estão gosando, educam-nos nos principios repellentes da inveja e do despreso.
E a colonia portugueza, laboriosa, activa, trabalhadora, soffre resignada todos os ataques, todas as injurias e todos os doestos.
O imperio está imperturbavel, e contemporisa.
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* *
Houve um portuguez que presenciou todos estes factos, e que os lançou em livro, contando-os com todas as particularidades.
Foi o sr. Gomes Pércheiro, agente no Pará da Agencia americana telegraphica.
É um cidadão benemerito, que não trepidou diante de obstaculos, para abrir os olhos aos nossos compatriotas, que, indo em procura de trabalho e fortuna, encontraram o punhal do assassino.
Accusado o auctor d'este livro de falso e exagerado nos seus despachos telegraphicos, veio deffender-se á imprensa, provando á evidencia, com documentos incontestaveis, que não mentia ao seu dever nem faltou á verdade dos acontecimentos.
Não fez estylo: escreveu os factos, simplesmente, e pediu sobre elles o veredictum da opinião. Mostra-nos o que é e o que vale o Brazil na actualidade; desmascara muitos hypocritas e farçantes; ensina-nos o que representa a educação brazileira; conta-nos o que significa a sua justiça.
É um livro bom, que todos deviam lêr, para se não deixarem possuir de falsas illusões e de miragens mentirosas.
O portuguez não tem só a vencer a intemperie do clima; tem a luctar com a traição dos naturaes. Quando escapa á febre, nem sempre pode fugir ao punhal.
Portugal não pode dar braços, porque necessita d'elles; como não pode prohibir que cada qual procure a região que lhe aprouver, deve persuadir pelo conselho e vencer pelo exemplo.
O livro do sr. Gomes Pércheiro é exemplo, e bem palpitante e provativo.
É a historia desinvolvida de todos os acontecimentos do Pará, de todos os assassinatos, roubos e torpezas da Tribuna.
Toda a nossa imprensa se tem empenhado n'esta questão, e condemnado os mercenarios jornalistas que além-mar estão fazendo propaganda traiçoeira e vil.
Aquelle farrapo de banalidades só insere calumnias e infamias[394] contra a colonia portugueza, mas o livro Questões do Pará vem desfazer todas essas calumnias, e com pleno conhecimento de facto desarma os tribunos e os que lhe pagam a escripta.
O sr. Pércheiro, publicando o seu livro, prestou um bom serviço a Portugal, e oxalá que da sua leitura se colham os devidos resultados.
Sergio de Castro
(20 de junho)
Este livro trata de questões em que todos nós os portuguezes somos mais ou menos interessados. Todos os annos vão de Portugal, seduzidos por pomposas promessas, e na crença de que o Brazil é um paiz onde o ouro anda aos pontapés, e que basta uma pessoa abaixar-se para ficar rica de um dia para o outro, centenas e centenas de portuguezes, deixando os nossos campos incultos e trocando por lucros, quasi sempre inferiores aos promettidos e sempre arriscados e falliveis, a modesta remuneração na sua patria, junto dos parentes e amigos, debaixo do ceu a cuja luz abriram os olhos e do meio das arvores a cuja sombra brincaram quando meninos. Dissipar as illusões dos credulos, abrir os olhos aos incautos, prevenir os desavisados, é um dos propositos que teve em vista o sr. Gomes Pércheiro escrevendo este livro. Sob o ponto de vista, o capitulo de como os brazileiros protegem os colonos portuguezes é digno de ser lido e meditado.
O livro, escripto em linguagem clara e corrente, offerece larga copia de esclarecimentos sobre a maneira por que são acolhidos e tratados os portuguezes no Pará e contém documentos mui curiosos a este e outros respeitos.
(17 de maio).
Foi publicado ha poucos dias um livro em 8.º, de 272 paginas, intitulado Questões do Pará. É escripto pelo sr. D. A. Gomes Pércheiro, que viveu alguns annos na indicada cidade do imperio do Brazil, e precedido de uma carta do sr. Ferreira Lobo, contador do tribunal de contas, e auctor de mui importantes trabalhos em assumptos de organisação de fazenda.
O livro de que nos occupamos foi escripto ao correr de penna,[395] mas relata com bem vivas côres a serie de vexames por que passam os nossos compatriotas que a sede do ganho tem levado áquella região do Brazil.
O auctor mostra o viver dos nossos patricios em todas as situações, sempre objecto de exploração por parte dos naturaes, que andam dominados do falso principio da nacionalisação do commercio a retalho.
O portuguez, ou antes o marinheiro ou o gallego, como ali denominam o filho de Portugal, é sempre o bode expiatorio nas questões de policia, de impostos, de administração de justiça, de contractos, etc. Prejudicar o portuguez por qualquer fórma é acto meritorio para os naturaes do Pará!
Não são gratuitas as asserções do sr. Pércheiro, porquanto, no livro branco apresentado ás côrtes, encontra-se a confirmação official de tudo quanto parecer exaggerado no livro de que fallamos.
É conveniente que todos leiam a obra do sr. Pércheiro: muitos sonhos dourados hão de desvanecer-se, e as tendencias emigratorias tomarão outra direcção. É lastimavel que offerecendo a nossa Africa occidental localidades salubres, por exemplo, e bem perto, nas ilhas de Santo Antão e Brava, do archipelago de Cabo Verde, os nossos emigrantes despresem o territorio portuguez, onde encontram protecção da auctoridade, segurança das vidas e da propriedade e recompensa dos seus esforços, vão sacrificar-se do outro lado do occeano aos tratos que os proprios brazileiros ostensivamente condemnam, e em terras bem menos salubres que algumas das nossas provincias ultramarinas.
É necessario desvendar os olhos d'esses infelizes, que abandonam patria e familia, por suppostas riquezas que se traduzem em dissabores, attentados pessoaes, oppressões, e, as mais das vezes, doenças cujo resultado se não é a morte é o soffrimento chronico.
O sr. Pércheiro prestou um bom serviço com o seu livro, cuja leitura muito recommendamos.
(30 de maio).
Questões do Pará, por D. A. Gomes Pércheiro. Já no penultimo numero d'esta folha alludimos a este livro. A leitura forçadamente rapida a que procedemos arranca-nos uma doce illusão: o sr. Gomes Pércheiro convence-nos,—mercê de serios documentos,—de que «os nossos irmãos de além mar» não encontram[396] nas terras de Santa Cruz os fraternaes carinhos, nem ainda a hospitalidade, que seria licito esperar de um povo a quem demos a mão para arrancar ás trevas da ignorancia e fazel-o compartilhar dos guizados, bem ou mal temperados, que hoje se servem na meza da Civilisação.
Aos incautos por demasias de concupiscencia, que lhes sobrepujam a reflexão e o proprio instincto conservador, offerecemos em artigo especial um excerpto do livro—A emigração para o Brazil a que alludimos e que do coração a todos recomendamos.
(3 de junho).
Com este titulo recebemos um volume, de que é auctor o sr. D. A. Gomes Pércheiro, com uma carta do distincto escriptor o sr. J. J. Ferreira Lobo.
O novo livro não é obra para recreiar o espirito, mas tem a rara virtude de ensinar muito e dizer verdades que nenhum portuguez deveria ignorar. Tendo residido algum tempo no Pará, o auctor diz sem pretenção e em linguagem fluente de que modo os nossos compatriotas ali são tratados, tanto na vida particular como pelas auctoridades e perante os tribunaes. Cada asserção que avança, comprova-se com o testemunho de pessoas, cujos nomes aponta e com o extracto dos jornaes da localidade. Não é pois uma verrina sem base, é a exposição de factos de cuja veracidade todos se pódem certificar, além de que no livro branco apresentado ás côrtes, se confirma quanto o sr. Pércheiro assevera.
Os que levados pela sede do oiro, abandonam familia e patria, para se dirigirem áquella região, quizeramos nós que compulsassem antes o livro de que vimos fallando, e bem póde ser que a corrente da emigração que hoje toma rumo para ali, derivasse para as nossas possessões onde não faltam riquezas a explorar, onde a segurança individual é milhor garantia, e onde finalmente perante a justiça todos são portuguezes.
Agradecemos o exemplar com que fomos obsequiados.
(2 de junho).
Temos sobre a mesa um volume de 272 paginas, escripto pelo[397] sr. Gomes Pércheiro, que foi agente da Americana telegraphica, no Pará, as quaes paginas são precedidas por uma introducção do sr. Ferreira Lobo, que felicita o auctor «pelo seu brado de indignação contra a prepotencia de que estão sendo victimas no Brazil os nossos irmãos pela patria».
Vê-se já que se não trata de um romance, mas sim de uma questão importantissima para os interesses e dignidade nacional.
Recommendamos a sua leitura aos que desejarem ser instruidos sobre os successos do Pará, resultantes de causa que ainda não cessou, e que encheram Portugal de receio pelos seus filhos e o mundo de horror pelos assassinatos e pilhagem commettida contra as leis da hospitalidade, ou antes contra o direito das gentes.
Rogamos ao auctor que mande um exemplar á commissão de emigração; póde ser que ella o leia, e d'ahi lhe resulte vontade de fazer mais alguma coisa, se é que este mais se póde applicar a quem ainda não fez nada.
O livro do sr. Pércheiro tem mais outro merecimento; é mostrar o atrazo d'aquelles povos, a sua pouca instrucção, a sua pessima organisação politica e judicial, e emfim a corrupção que por lá vae n'aquelle corpo ainda branco, de modo que póde dizer-se fructo apodrecido antes de sasonado.
D'estes e que taes livros desejavamos nós que se propagassem bastantes em Portugal, e quizeramos tambem que os srs. parochos das aldeias dessem d'elles lição aos povos, para lhe debellar a mania ambiciosa que os leva á humilhação em terra estranha.
Felicitamos o sr. Pércheiro pelo bom serviço que prestou ao seu paiz.
Questões do Pará—Precedidas de uma carta do distincto escriptor o sr. Ferreira Lobo. É um livro de 272 paginas, nitidamente impresso, cujo auctor é o sr. D. A. Gomes Pércheiro.
O livro foi escripto ao correr da penna, mas relata com bem vivas côres a serie de vexames por que passam os nossos compatriotas residentes no Brazil.
É digna de lér-se a obra do sr. Pércheiro.[398]
Quando sua magestade el-rei no seu discurso por occasião da abertura das camaras dizia em poucas palavras que o remedio aplicado pelo seu governo na questão dos insultos e maus tractamentos praticados pelos brazileiros nas pessoas dos nossos portuguezes fora energico e que o estado de coisas caminhava para melhor, ficou todo o paiz persuadido que realmente o governo brazileiro por instancias do nosso tractara energicamente d'obstar aos maus tratamentos que os nossos patricios recebiam em todo o paiz, particularmente no Pará.
Infelizmente sua magestade, se não foi illudido pelo governo portuguez, foi-o de certo pelo governo brazileiro, pois que as perseguições contra os nossos patricios continuam, e não vemos que o procedimento do governo tenha evitado tão grande mal.
E não são de pequena importancia os sucessos naquellas longinquas paragens, pois que os nossos irmãos não só se vêem oprimidos pelos homens de baixa esphera e pela ralé da sociedade, mas os proprios tribunaes judiciaes mostram-se benevolos contra os assassinos dos portuguezes. A justiça, que n'um paiz liberal está sempre superior a todas as influencias mesquinhas, ali acha-se eivada d'um exclusivismo condemnavel, perseguindo com o maior rigôr alguns crimes practicados pelos portuguezes, ao passo que absolve sem o menor escrupulo os indigenas que matam os nossos patricios.
Não são gratuitas as nossas asserções, pois que no livro do sr. Pércheiro encontramos os seus documentos justificativos.
O clero debaixo d'uma capa hedionda, que só elle sabe envergar, manifesta-se inimigo terrivel dos portuguezes; e infelizmente não succede isso só no baixo, mas no alto clero.
Os tribunaes não são de certo os que menos revelam a sanha contra os portuguezes. Artigos auctorisados d'alguns jornaes illustrados e que reconhecem esta grande perseguição manifestam claramente a sua opinião fazendo o parallelo entre o castigo aplicado aos delinquentes portuguezes e brazileiros.
E d'este modo emquanto o governo portuguez descança á sombra da sua popularidade os nossos irmãos são martyrisados no Brazil!
Não fazemos extractos d'este livro, porque se os fizessemos teriamos de transcrevel-o todo, pois que em cada pagina se exemplificam as nossas asserções.
Effecttivamente cada facto ali mencionado é um exemplo claro[399] e manifesto do modo cruel por que os nossos patricios ali estão sendo tractados; e cada audiencia que tenha em mira julgar um caso qualquer em que o infeliz portuguez represente, é um novo escandalo de que os proprios brazileiros illustrados se envergonham.
O sr. Pércheiro fez por tanto ao paiz um grande serviço, patenteando aos olhos de todos as perseguições que os portuguezes ali soffrem, por culpa do nosso governo, por culpa do nosso representante n'aquelle selvagem paiz, e por culpa do governo brazileiro que ou não se sente com força d'evitar os grandes malles que ainda hoje se repetem como lemos no Brazil, ou não quer acabar de vez com aquella infame montaria.
Chamamos portanto mais uma vez a attenção do nosso governo para uma questão de tal magnitude, e esperamos que sua magestade el-rei para se não ver obrigado a repetir as palavras que proferiu no seu primitivo discurso, mas que infelizmente não foram confirmadas, será o primeiro, como o primeiro cidadão que é, em acabar de vez com as desgraças por que estão passando os nossos patricios.
O livro do sr. Pércheiro é, pois um livro importantissimo e de certo fez um grande serviço a Portugal, publicando-o.
Resta-nos agradecer em nome do paiz os grandes serviços prestados aos nossos irmãos, e em nome da redacção a preciosa offerta com que aquelle cavalheiro a acaba de brindar.
(8 de junho).
Segundo vae referido na secção de livros, o sr. D. A. Gomes Pércheiro, agente que foi no Pará da Agencia americana, publicou um livro, que tem por titulo—Questões do Pará, e teve a bondade de nos offerecer um exemplar, que muito lhe agradecemos por vir fortalecer as opiniões sempre aqui manifestadas ácerca dos tristes acontecimentos do Pará.
Abrimol-o e lêmol-o com a anciedade a que nenhum portuguez poderá furtar-se quando ouve fallar nas questões do Pará, e topa com um livro dedicado a este deploravel assumpto.
Muito se tem escripto nos jornaes portuguezes, e o que estes não teem podido referir, conhecem-n'o os que lêem as folhas e correspondencias brazileiras. Pois tudo isso é nada, em presença do que o sr. Pércheiro conta no seu livro.
Dos desacatos, assassinatos, roubos, insulto e outras tantas tentativas praticadas contra os nossos compatriotas sabemos nós[400] e sabe toda a gente; que á testa d'esta cruzada selvagem se achava um jornal infame, tambem não era ignorado; que emfim as justiças eram conniventes ou impotentes contra aquelle estado, via-se pela impunidade dos criminosos, pela repetição dos crimes e pela emigração dos nossos compatriotas, que em massa deixavam aquellas paragens, onde á sombra de uma bandeira, que por antonomasia se diz amiga, se deixava correr desenfreada a mais infame violação de todas as leis, de todos os deveres e de todas as praticas de reciproca hospitalidade.
Pois em vista dos factos, dos documentos que se encontram n'este livro, pasma-se da horrorosa desigualdade com que os portuguezes e seus assassinos e roubadores são tratados pelas auctoridades e justiças publicas, sendo victima do rigor demissorio quem assim não procedesse!
Se a desigualdade consistisse no castigo dos portuguezes delinquentes, de agradecer era, para que o exemplo aproveitasse como lição de que só a probidade suscita respeito entre estranhos. Mas quasi se chegam a premiar os crimes commettidos contra portuguezes, vendo-se que havia cruzada de destruição organisada contra elles, á qual não eram indifferentes as proprias justiças.
D'aqui deduzimos nós, e como nós em parte o auctor, que da vigilancia dos nossos governos, da culposa e indesculpavel indifferença do ministro portuguez na côrte do Brazil, e da quasi connivencia d'esta procede todo o mal.
É muito recente o procedimento da Allemanha por causa de um subdito seu, maltratado pelos carlistas, e depois por causa dos acontecimentos de Guetaria. Pois os crimes praticados pelos paraenses contra os portuguezes, incitados publicamente por um periodico, são infinitamente mais do que o preciso para, se houvesse patriotismo n'este paiz, termos rompido as relações com o imperio brazileiro, se elle não désse as satisfações indispensaveis, garantindo a segurança dos nossos compatriotas, e punindo os crimes praticados contra elles.
Mas o ministro de Portugal actualmente no Rio de Janeiro, desde que se enlaçou com uma poderosa familia brazileira, tornou-se incompativel para proceder com energia n'estes conflictos.
O auctor era agente no Pará da Agencia telegraphica americana; presenceou os factos, e pelos narrar com fidelidade foi arguida a Agencia de parcial.
Mas pelos documentos officiaes, que pública, conhece-se que as auctoridades eram conniventes, e se alguma apparecia com desejos de fazer justiça, tinha por premio a prompta demissão, ou não encontrava força para desempenhar os seus deveres,[401] como succedeu com o presidente dr. Pedro Vicente de Azevedo, e com o chefe de policia Samuel Uchôa.
Dos mesmos documentos officiaes constam declarações dos proprios assassinos, pelas quaes se vê que as incitações da Tribuna os demoviam áquelles crimes.
Emfim as cousas chegaram a tal ponto, que um soldado, que assassinou publicamente um portuguez, esperando-o de dia e dando-lhe um tiro, apesar de o confessar, e o crime estar provado, foi condemnado a sete annos de prisão simples, tendo o advogado circumscripto a sua conclusão a pedir que a pena de morte fosse reduzida a vinte annos de degredo com trabalhos!
Em 1857 appareceu afogado um portuguez. Querem ver a sentença que deu o juiz municipal ácerca do desaparecimento do cadaver? Ahi vae:
«Sendo a sentença do infeliz portuguez Antonio, dada por um juiz superior a todos os juizes, nenhum recurso existe mais; e por nada mais poder fazer, condemno a todos os que trabalharam no presente processo a pagar as custas em Padre Nossos e Ave Marias por alma do finado, entrando n'este numero eu que já rezei o meu; e cabendo o maior numero ao sub-delegado, e ao escrivão para não processarem os mortos. O escrivão devolva este ao sub-delegado, deixando traslado no cartorio do despacho de fl. 4, a 14 verso, e d'esta para ser remettida ao bispo, quando elles não paguem as custas.
Cametá, 26 de julho de 1857.—Lourenço José de Figueiredo.»
Não é preciso dizer mais.
O livro do sr. Pércheiro presta um bom serviço aos portuguezes, que antes de irem para o Brazil quizerem ver a triste sorte que os espera.
Diz mais o sr. Pércheiro que o clero do Pará, ou o jezuitismo, que é o mesmo, se associa aos inimigos dos portuguezes, por causa da maçonaria, onde elles estão quasi todos filiados. Isto não é novo.
Por fim aconselha os portuguezes a emigrarem para a Africa, aonde ha grandes riquezas a explorar, e a justiça se administra egual para todos.
(5 de junho).[402]
É um livro ousado, atrevido, abertamente, francamente verdadeiro, como não estamos costumados a ler muitos na nossa terra. As cousas mais graves e melindrosas dizem-se ali sem reticencias equivocas, sem rodeios covardes: os factos são narrados na sua cruel nudez, as pessoas apontadas com desusada e corajosa valentia.
Em todo o livro respira-se a franqueza rude dos tempos primitivos. Nem mesmo os caracteres mais abjectos são ligeiramente mascarados. O sr. Pércheiro não os deixa adivinhar, mostra-os, com toda a energia, com toda a vehemencia, e ao mesmo tempo com toda a confiança e sangue frio que dá a consciencia da verdade. Muitos censurar-lhe-hão a excessiva franqueza em nome d'um savoirvivre que se baseia no proloquio—«nem todas as verdades se dizem.»—Que nunca o intrepido auctor d'esse livro se arrependa de as ter dito. É condição humana o procurar a verdade, e dever de todos o dizel-a. Além d'isso as verdades enunciadas pelo sr. Pércheiro, proveitosas para todos, só para elle poderão ser nocivas. Honra pois ao amor da verdade que vence o egoismo, á coragem que supéra o interesse individual á indignação que esquece as conveniencias triviaes. O livro do sr. Gomes Pércheiro é o maior protesto contra a alliciação exploradora dos engajadores, é o mais efficaz antidoto á febre da emigração que arranca quotidianamente a Portugal milhares dos seus mais robustos filhos, para se estiolarem miseravelmente nas terras doentias e quasi selvagens do norte do Brazil. Tem esse protesto a eloquencia grandiosa dos factos e da verdade. Mostre-se bem ao homem que vae deixar a sua patria para no sólo brazileiro ir consumir a sua vida, o thesouro precioso da sua actividade, os annos floridos da sua adolescencia, em busca de riquezas maravilhosas que lhe sorriem em sonhos; o que é a terra para onde vae; o que soffrem lá os seus irmãos; o modo porque são reconhecidos e pagos os seus trabalhos sem treguas, a sua dedicação sem limites.
Os martyres catholicos acabaram no dia em que a sciencia arrancou do espirito moderno as crenças do maravilhoso, que ali se aninhavam nas trevas da ignorancia, com todo o brilho seductor dos contos de fadas.
Tirem do espirito do emigrante a miragem fascinadora que d'essas ardentes plagas os chama pela boca dos alliciadores; façam-lhes vêr em toda a sua verdade, em que se resume o paraizo[403] que de longe tão seductor é; que a emigração para o Brazil terminará immediatamente e os milhares de braços que para ali vão cavar a terra que muitas vezes lhes é sepultura, empregar-se-hão na cultura do nosso fertil sólo, ou irão explorar outro sólo, tanto mais rico que o Brazil, mais hospitaleiro e civilisado do que elle, que é nosso, e que por nós tão descurado está: os terrenos de Africa. Ha de ferir muitas susceptibilidades, levantar muitos odios o livro Questões do Pará.
Bem o sabia o seu auctor, e mais gloria lhe cabe sabendo-o, não ter recuado. Vendo de perto a tempestade, vivendo no meio d'aquelles tumultos continuos, que tantas vezes teem feito correr o sangue portuguez, sem que as auctoridades brazileiras tenham força, energia, ou vontade para obstar áquelles crimes quasi quotidianos. Soldado d'essa campanha cruenta, que no Pará os portuguezes teem a toda a hora de sustentar, contra o indigena selvagem assalariado pelos tribunos ignobeis, que erguem n'aquellas paragens a esfarrapada bandeira da reacção, o sr. Gomes Pércheiro viu, sentiu e soffreu todas as infamias que aponta, todas as abjecções que castiga, n'um estylo incorrecto ás vezes mas sempre vigoroso, fustigante como o chicote, lacinante como o bistori. Foi mais do que espectador, foi actor tambem n'essa terrivel tragedia.
As Questões do Pará são paginas cruamente verdadeiras á historia do Brazil. Talvez o sr. Pércheiro se deixe ás vezes levar pelo justo rancor que lhe despertaram os crimes que presenceou, a indolencia que viu da parte dos governos em os prevenir, prejudicando assim um pouco a imparcialidade do historiador. Talvez a serenidade do narrador seja ás vezes supplantada pela vehemencia do pamphletario. Não lh'o podemos, porém, censurar, ao vermos que essa vehemencia nasce da indignação santa contra os implacaveis inimigos dos nossos desgraçados compatriotas, que nas terras do Pará morrem assassinados covardemente, vilmente, por um bando de selvagens postos ao serviço do egoismo, da ignorancia, da malvadez e da reacção.
O livro do sr. Pércheiro é de salutar lição para aquelles que no canto placido e benefico da sua patria, se sentirem aguilhoados pela febre da ambição de thesouros imaginarios; é de santo conforto para aquelles que empenhando a vida nas luctas sanguinolentas de que o Pará tem sido theatro, ouvem a voz energica de uma consciencia sã, bradando eloquentemente o pró da sua causa, combatendo energicamente, até ás ultimas trincheiras os seus terriveis inimigos.
Nas Questões do Pará, arrancam-se muitas mascaras, põem-se a nu muitas chagas, desvedam-se muitas infamias que até[404] hoje estavam envoltas nas mais amplas trevas. É grande pois o serviço por esse livro prestado, e nós que acima de tudo prezamos a verdade, a sinceridade e a justiça, aguardando o seguimento das Questões do Pará que o sr. Pércheiro nos promette, louvamol-o hoje pela corajosa franqueza do seu livro, livro que ha de ficar como documento interessante, curioso, e mesmo indispensavel para a historia da emigração portugueza para o Brazil no meiado do seculo XIX, e que mais que é um bom livro, é uma boa acção.
Gervasio Lobato.
(25 de junho.)
Com este titulo acaba o sr. Gomes Pércheiro de publicar um livro, que hade ser lido com soffreguidão em Portugal e no Brazil. Chegado recentemente do Pará, onde esteve envolto na lucta que ali se trava, o sr. Gomes Pércheiro conhece perfeitamente a historia das questões, que trazem acceso o animo dos paraenses. Delegado de uma agencia telegraphica, tinha, por obrigação de officio, de investigar os successos, de lhes averiguar as causas, de penetrar emfim nos segredos d'essa guerra cruenta e infame que um grupo de brazileiros está movendo aos portuguezes que vão ás terras de Santa Cruz procurar hospitalidade e trabalho.
As suas revelações não pódem portanto deixar de ser curiosas, e nós lemos o livro com o maior interesse. Empenhados ha muito n'uma lucta energica contra os propagandistas da nacionalisação do commercio, tendo seguido ha dois annos as peripecias da guerra movida no Pará aos portuguezes, muitas vezes lamentámos não conhecer os fios secretos dos tramas, cujas manifestações exteriores de longe presenciavamos e condemnavamos. Era tão desnatural aquella guerra, eram tão oppostas aos principios hoje admittidos geralmente em todo o mundo civilisado as idéas apresentadas pela Tribuna, que muitas vezes procurámos ler nas entre linhas do ignobil pasquim uma indicação que nos revelasse qual era o motor secreto da sua propaganda, quaes os verdadeiros intuitos d'essa cruzada absurda e ridicula.
O livro do sr. Pércheiro conduz-nos aos bastidores d'esse theatro, onde infelizmente não se representa só a farça em que Arlequino e Pulcinella e Pantalon são Marcellino Nery, João Cancio e Romualdo, onde tambem se representa a tragedia de Jurupary, onde o sangue inunda o tablado, onde scenas de deploravel[405] selvajeria espantam quem das praias do velho mundo contempla ao longe esse estranho e imprevisto espectaculo.
No livro do sr. Pércheiro fructo de rapida e febril improvisação, sente-se ainda todo o ardor do combate, o vigoroso resentimento de quem não conta só infortunios e aggravos alheios, mas que sabe tambem por experiencia propria quanto doem a calumnia e o insulto, vibrados por quem devia acolher o estrangeiro que trabalha com a hospitalidade que hoje em parte nenhuma se lhe recusa. O sr. Pércheiro foi effectivamente uma das victimas da Tribuna. Contra elle teve sempre engatilhados o orgão dos nacionalisadores os seus mais torpes improperios. O seu nome era um dos que voltavam em todos os numeros do jornal de Marcelino Nery lardeados de injurias. Deve honrar-se com isso o sr. Pércheiro; uma verrina da Tribuna vale mais do que trinta attestados de bom procedimento moral, civil e religioso.
Historiando as questões do Pará, o sr. Pércheiro, se não póde evitar que o seu livro cheire a polvora, por assim dizermos, se não póde cohibir violencias de estylo, que a sua situação amplamente desculpa, mostra comtudo o desejo de ser imparcial, e verdadeiro, porque esteia a cada passo a sua narrativa em documentos que a comprovam, e os capitulos puramente historicos do livro quasi que se compõem de extractos dos jornaes paraenses, onde podemos seguir, dia a dia, o desenvolvimento dos successos.
Nos capitulos em que trata de analysar a situação dos portugueses e a attitude dos brazileiros, é certo que por mais de uma vez se sentem as represalias de um espirito ulcerado pelas injustiças de que foi victima, as coleras de uma alma patriotica offendida no que ella tem de mais caro, o bom nome, o pundonor e os brios da sua terra natal. Os jornalistas insultadores que escrevem á solta no Pará não atacam esta ou aquella parte da população portugueza, aggridem collectivamente o nosso paiz, no seu presente, no seu passado, nas suas instituições, no seu caracter nacional.
Difficil seria portanto a um escriptor portuguez, que esteve no Pará envolto na lucta e que recebeu em cheio esses insultos vibrados á sua patria, responder com a moderação á violencia, e pagar os vituperios a Portugal com os louvores ao Brazil. A propria injustiça era desculpavel, e comtudo o sr. Pércheiro procura não ser injusto. Não sabemos o que haverá de exageração apaixonada no que o sr. Pércheiro diz da educação dos brazileiros.
Nós não desejamos acompanhal-o a esse terreno, nós que sempre procurámos marcar bem a distincção entre a população brazileira,[406] generosa, fraternal para nós, ainda que nem sempre isenta de antigos preconceitos, da tribu de insultadores e de assassinos que formam a escoria do Brazil, e que não pódem com justiça ser considerados como os representes de um nobre paiz.
Mas ainda que admittamos que haja n'esses capitulos a apaixonada exaggeração, que é ainda como que um echo da pugna a todo o transe, em que o sr. Pércheiro esteve envolto, não podemos deixar de reconhecer que ha ali revelações que teem um grande cunho de verdade, e que explicam muitos factos que aliás seriam incomprehensiveis. O odio aos portuguezes é tradicional no Pará. Ha mestres que o incutem no animo das crianças. Ha familias que o legam aos seus filhos como um deposito sagrado, e assim se inocula no animo das gerações novas um sentimento absurdo e vil, que prepara os leitores fanaticos da Tribuna, e os assassinos de Jurupary.
Em resumo o livro do sr. Pércheiro respira todo o ardor da lucta, sente-se n'elle impresso o cunho dos resentimentos, ouve-se ainda o echo das violencias do combate, mas é no fim de tudo um livro fluentemente escripto, e que não póde deixar de ser consultado por todos os que desejarem conhecer a historia d'essas deploraveis questões, que tem sido fataes aos nossos compatriotas, fataes tambem á prosperidade do Brazil. São por assim dizer as memorias de um combatente, que foi testemunha occular, testemunha bem informada dos factos que narra, e que em Portugal só são muito perfuntoriamente conhecidos.
Se essas revelações impedirem muitos dos nossos compatriotas de ir procurar fortuna em tão inhospito paiz, terá o sr. Pércheiro prestado a Portugal e aos portuguezes um verdadeiro serviço.
Pinheiro Chagas.
Questões do Pará por D. A. G. Pércheiro. N'este livro que temos á vista e que seu auctor nos offertou, procura-se, em linguagem correcta e por vezes elevada, tornar conhecida a indole dos factos desastrosos que ultimamente tem desacreditado aos olhos do mundo civilisado uma das mais ricas e importantes provincias do Brazil.
O sr. Pércheiro foi agente da Agencia Telegraphica Americana, no Pará e por isso, teve, pela sua posição, de acompanhar todos os movimentos da opinião publica.[407]
A sua narração é serena e conscienciosa, apesar de ter vivido n'aquelle meio de encontradas paixões.
Os partidos não conseguiram cegal-o com a grandeza apparente de suas promessas, e por isso o seu livro tem muita importancia e a sua leitura é de grande utilidade para aquelles que quizerem imparcialmente avaliar a lucta travada no Pará.
Ahi encontra o leitor esclarecimentos de toda a ordem: actos officiaes, artigos da imprensa brazileira, manifestos, documentos judiciaes, etc.
Recommendando a sua leitura não fazemos mais do que praticar um acto de justiça.
(23 de junho.)
Esta obra, sahida ha pouco tempo dos prelos d'uma typographia da capital, trata das questões que ultimamente se deram na provincia do Pará, questões que os leitores muito bem conhecem, e que não carecem agora dos nossos commentarios, pois que já sobejamente os fez a imprensa digna e séria dos dois paizes interessados.
A obra do sr. D. A. Gomes Pércheiro, analysando factos mais ou menos importantes, revela muito patriotismo, muito interesse e dedicação pelas coisas do nosso paiz. O sr. Pércheiro parece-nos um combatente energico, leal e corajoso. Este é, por sem duvida, o seu mais bello titulo de gloria.
Terminamos agradecendo o exemplar com que fomos brindados.
(26 de junho.)
Realisou-se no domingo, em Bemfica, uma festa verdadeiramente esplendida. Por iniciativa do reverendo prior celebrou-se pela vez primeira, n'aquella freguezia a solemnidade de Corpus Christi. O professor de instrucção primaria da localidade, escolheu o mesmo dia para a distribuição dos premios aos seus alumnos mais distinctos. A distribuição effectuou-se na egreja parochial, antes da festa. Assistiram os srs. administrador e camara municipal do concelho, inspector dos estudos, professores[408] das povoações circumvisinhas e algumas das pessoas mais gradas da terra.
A concorrencia foi numerosissima. Os estudantinhos sairam da escola á frente do seu professor e acompanhados pela philarmonica Euterpe. Os convidados distribuiram os premios. Os alumnos premiados foram onze. Os premios foram comprados a expensas do professor.
O nosso amigo, o sr. Gomes Pércheiro, offereceu a cada um dos onze alumnos um exemplar da sua obra—Questões do Pará—com esta dedicatoria: «Aos meninos que estudam e foram approvados na escola de Bemfica, em 1875. Este modesto trabalho ensina um pouco a saber o que é o amor da patria, por isso o offerece o auctor.»
(30 de junho.)
Temos aberto diante de nós um livro, que nos fizeram ha tempos a honra de remetter, e que tem por titulo—Questões do Pará por D. A. Gomes Pércheiro. É uma interessante exposição de factos, que lança muita luz sobre a situação em que se acha a colonia portugueza na provincia do Pará, e desfaz algumas illusões espalhadas geralmente sobre a protecção de que alli gosam os nossos compatriotas.
Entristece-se o espirito ao ler o livro a que nos referimos. Dando mesmo de barato que a paixão entrasse em algumas apreciações, exageradas evidentemente, pondo ainda de parte o estylo declamatorio de alguns periodos que se nos figuram deslocados, e resumindo unicamente a analise aos factos que os documentos citados comprovam, vê-se claramente que no Pará se move crua guerra aos portuguezes, e se desconsidera estranhamente a nação a que pertenceram os antigos descobridores do Brazil.
E o mais desconsolador é que se a guerra existe principalmente nas mais baixas camadas sociaes, estimuladas pela inveja torpe dos lucros que aufere a actividade do commercio portuguez, é nas classes inferiores que a desconsideração mais se revela, não faltando testemunhos a apregoal-a, nem havendo peijo em que ella se declare por actos publicos e significativos.
Os actos praticados pelos afiliados nas idéas d'um papel incendiario e nojento que, para vergonha do jornalismo, pretende no Pará tomar as fórmas de jornal, seriam apenas crimes vulgares,[409] como os de qualquer José do Telhado que nós costumamos deportar para as nossas possessões africanas, se os não revestissem circumstancias que lhes alteram substancialmente a significação.
Ha um homem, que parece que se chama Sequeira Mendes, que é conego, pessoa importante da provincia, proprietario de um jornal, deputado provincial, grande influente politico, que não duvida, ostensivamente mesmo, declarar-se protector d'essa horda de malvados. Provavelmente precisa d'elles para os seus manejos partidarios. E por isso trata de affastar d'elles o castigo que a justiça,—não nos atrevemos a dizer a lei, porque nem sempre a lei é a expressão da justiça,—lhes devia já ter applicado.
Isto prova tambem que a opinião publica é adversa aos portuguezes, e que uma revalidade de nação para nação substituiu o affecto que devia ligar por todos os titulos o Brazil a Portugal. Até a exploração partidaria, dá testemunho de que essa revalidade existe, e produz as suas ominosas consequencias. Um dos factos que mais incontestavelmente attestam este deploravel estado de coisas é a indulgencia criminosa com que o jury brazileiro absolve os que attentam contra os haveres e contra a vida dos portuguezes, e, em opposição, a severidade que desenvolve sempre que o culpado é um portuguez. Isto prova-o o sr. Pércheiro com trechos copiados dos proprios jornaes brazileiros. Não é pois uma simples allegação, caso em que nos recusariamos a acceital-o. Demonstra-o o que se passou com o assassinato do calafate portuguez Antonio Candido Valle por um soldado de infanteria n.º 11, igualmente o demonstra o que se passou com a condemnação do portuguez Domingos dos Santos Coelho.
N'um artigo do jornal brazileiro America do Sul, citado pelo sr. Pércheiro, apresentam-se os factos a esta luz, e não se desfarça mesmo a significação que elles tem. Depois de referir e analysar os dois julgamentos, concilie por esta fórma: «Esperemos: O que nos parece—dizemol-o «ab imo pectores»—é que actualmente, no sanctuario da justiça, não se julgam crimes mas sim nacionalidades. Pois é mau, muito mau, se assim acontece.»
Ora isto é muito grave. Quando nem a serenidade da justiça escapa á influencia d'um odio assim pronunciado, se elle tem já tanta força que faz dobrar a inflexibilidade da lei, é porque o seu poder é grande, enorme.
Outro facto cita o sr. Pércheiro que causa a mais desgraçada impressão, porque mostra que nas proprias repartições do estado se revela a maxima desconsideração por tudo o que é portuguez. Citamos as proprias palavras do auctor do livro:[410]
«Ha já alguns annos, o caixeiro d'uma casa ingleza, moço portuguez, apresentou-se na secretaria do governo e entregou ao continuo um documento, que, depois de assignado pelo official maior, daria livre pratica a um navio, que tinha annunciado a sua sahida para as quatro horas da tarde. Era uma hora quando o empregado portuguez fez a entrega, promettendo voltar ás tres horas. Chegado ali a esta hora, pouco mais ou menos, o continuo recebeu-o mal, e demorou o nosso amigo até fechar-se o expediente. Vinha sahindo o empregado superior, a quem o empregado da casa commercial se dirigiu, e em termos finos lhe communicou o fim da sua ida ali. O official maior, fez ver que estava fechado o expediente, não attendendo ás razões culpaveis do seu subordinado, e á circumstancia de que um navio não devia demorar a sua viagem pela falta de uma simples assignatura.
«Não fez caso o empregado. Estava tratando com um portuguez e isso bastava!
«Não se conformou com isto o pretendente, e sabendo que o presidente e outros empregados d'alta cathegoria estavam reunidos n'uma sala proxima, entrou e fez ver tudo que acabava de acontecer-lhe, não lhe esquecendo dizer que elle era caixeiro da respeitavel casa ingleza de F. e que seus patrões fariam, com toda a certeza, sahir n'aquella mesma tarde o navio que se pretendia despachar.
«Coisa admiravel! o presidente apenas ouviu as palavras—casa ingleza—deu um pulo na cadeira, tocou com estrondo a campainha, ao som da qual acudiu o continuo, que recebeu ordem para chamar o tal official maior. O presidente chegou mesmo a levantar-se da sua cadeira, e dirigindo-se para a janella, fez d'ali signal ao empregado superior.
«Na volta o presidente fez ver a este empregado, que o caso que acabava de dar-se era estranhavel, por quanto ainda ha pouco tempo lhe tinha mostrado um officio confidencial do ministerio competente, no qual se recommendava a maior attenção com todos os negocios trocados entre as differentes repartições do estado e as altas potencias, como a Inglaterra, a França, os Estados Unidos, etc!... O alto funccionario respondeu simplesmente, que o caixeiro pretendente era portuguez, e por isso pensava que a casa commercial era tambem portugueza!!»
Este facto parece incrivel. Recusa-se o nosso espirito a acceital-o. Mas devemos confessar que elle desgraçadamente está d'accordo com outros de que não é licito duvidar, e que se não são tão explicitos, revelam a mesma tendencia. Devendo os portuguezes ser no Brazil os primeiros, vê-se que são os ultimos. E não lh'o merecem decerto, nem pelo passado nem pelo presente.[411] Em toda a parte da monarchia portugueza, onde o brazileiro se apresenta é recebido com mais que deferencia, ás vezes até com favor.
Temos pena de que o sr. Pércheiro dominado por uma paixão, cujo fundamento ignoramos, fosse tantas vezes d'uma critica tão irritada, que obrigue o animo imparcial a dar ás suas palavras, quando as não comprovam testemunhos insuspeitos, certo desconto. A boa critica não póde aceitar como proposições geraes o que deve apenas admittir-se como limitada excepção, quando existe. E seria mesmo mais vantajoso para o credito que deve merecer o seu livro, que moderasse um pouco mais a sua linguagem. Os vicios, os abusos não dão direito a quem os censura de ser... quando menos exaggerados. E perdoe-nos o sr. Pércheiro, cremos que em alguma parte o foi. A verdade não é decerto aquella. Não citamos senão um logar em que esta reflexão nos accudiu, mas podiamos citar outros. É a paginas 181.
Afora isto, era util que o livro do sr. Pércheiro se vulgarisasse, que a população illudida, que deserta para as praias de Santa Cruz, tivesse conhecimento verdadeiro do que por lá se passa, que, quanto a nós, é este o melhor meio d'ella crear mais amor á terra em que nasceu, e não a abandonar tão desassisadamente, arrastada pela sêde insoffrida de uma opulencia rapidamente adquirida.
(Districto de Aveiro, de 5 de julho.)
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* *
Sr. redactor do «Districto de Aveiro».—Só hoje me veiu parar ás mãos o n.º 360 do seu importantissimo jornal, no qual sob o titulo—Nova publicação, vem publicado um extenso artigo de appreciação ao meu pobre trabalho—Questões do Pará, appreciação que não devo deixar passar em claro sem os devidos reparos, embora humildes.
Perdoe-me v. ex.ª que com a minha modestia, que o auctor do referido artigo não quiz ver na carta—prologo feito ao meu livro, lhe diga, que tão abalisado critico me faz algumas injustiças, contradizendo-se mais de uma vez na sua appreciação, por fórma a querer sustentar ao mesmo tempo—o preto e o branco—dos escriptores sem consciencia.
A circumstancia de ter sido tal appreciação publicada em jornal portuguez e de não trazer o nome do seu auctor, me inhibe de collocal-a ao lado dos escriptos parciaes, que sobre o[412] meu insignificante trabalho, hão-de mais tarde apparecer na imprensa brazileira.
Foi o meu livro escripto no corrente anno, desde 6 de março até 8 de abril, dia em que sahi do Lazareto. A 12 d'este mez, apresentei o manuscripto ao meu amigo Ferreira Lobo, ainda na incerteza de que similhante trabalho visse a luz publica: taes eram os defeitos da fórma, que, d'antemão, lhe reconhecera. Animou-me o distincto escriptor, que venho de referir, com a sua carta que antecede as Questões do Pará. Reconheceu-lhe, mais abalisado do que eu, esses defeitos, filhos da exiguidade do tempo e da occasião em que fôra delineado o meu trabalho, das nenhumas aspirações da minha parte ás honras de litterato e ainda menos ás de historiador, para o que sempre reconhecera faltar-me o estylo atreito aos homens talhados pela natureza, como o meu illustre critico, para escrever livros de tão alto merecimento.
Provo ainda n'este logar, que não aspirava eu a tão elevadas honras, com a minha annuencia ás idéas do auctor do prologo, no seguinte:
«Pede comtudo a sinceridade e a franqueza de que me preso que lhe diga, antes de terminar, que não é o seu trabalho um primor litterario. O amigo foi o primeiro a apontar-lhe os defeitos da fórma. Mas não se desconsole com isto. No desordenado da phrase e no descuidado da exposição transparece muito claramente a verdade de tudo que o amigo assevera. Não ha artificios nem arrebiques. O seu escripto foi traçado quasi todo durante a viagem, sem auxilio de livros. É agitado, revolto, caprichoso como as vagas que balouçavam a mesa sobre que foi delineado», etc.
As minhas idéas, quando tratava de publicar o livro, eram outras.
Era meu intento unicamente protestar sem perda de tempo, na esperança de obter do nosso governo remedio salutifero, embora energico, contra a tyrania de que continuavam a ser victimas os nossos irmãos em terras brazileiras.
Eis porque aproveitei para melhor coisa o tempo que me poderia levar a rever a obra ou a fazer-lhe o prologo, onde, com as minhas proprias palavras, apontasse os defeitos litterarios, que ella encerra, satisfazendo assim as justas exigencias dos homens de lettras, em cujo numero conto o meu sapiente sensor.
Tratava-se, pois, n'aquelle momento, de coisas mais importantes para mim do que fazer estylo; por isso, a 15 do referido mez de abril, era o meu trabalho entregue na typographia Lallemant, que, passados apenas 15 dias, me apresentava a 17.ª[413] folha, a ultima, com a qual fechava uma impressão de 3:000 livros! Mas é preciso que eu aponte as contradições em que cahiu o distincto articulista do Districto de Aveiro.
Não cabe bem a quem não aspira ás honras de litterato fazer critica; mas perdoe-me v. ex.ª a liberdade. Digne-se levar estes meus reparos á conta dos que não sabem, e que milhor illucidados, podem aprender mais alguma cousa com outras lições.
Diz o abalisado articulista sobre o meu livro:
«É uma interessante exposição de factos, que lança muita luz sobre a situação em que se acha a colonia portugueza na provincia do Pará, e desfaz algumas illusões espalhadas geralmente sobre a protecção de que ali gosam os nossos compatriotas.
«Entristece-se o espirito ao ler o livro a que nos referimos. Dando mesmo de barato que a paixão entrasse em algumas apreciações, exaggeradas evidentemente. (No torniquete em que eu me vi não quizera eu ver s. ex.ª, a não ser para me dar rasão), pondo ainda de parte o estylo declamatorio de alguns periodos que se nos figuram deslocados. (Nada tem com o caso da veracidade dos factos. Os defeitos já foram reconhecidos pelo auctor, antes de se lhe fazer critica); e resumindo unicamente a analyse aos documentos que os factos comprovam, vê-se claramente», etc.
N'este trecho vê-se que a minha exposição deixou de ser interessante... Mas continuemos:
«E o mais desconsolador é que se a guerra existe principalmente nas mais baixas camadas sociaes, estimuladas pela inveja torpe dos lucros que aufere a actividade do commercio portuguez, é nas classes inferiores que a desconsideração mais se revela, não faltando testemunhos a apregoal-a, etc».
Aqui muda de diapasão. A minha exposição torna a ser interessante, porque esses testemunhos forneço-os eu, sem apresentar documentos que os comprovem. São simples allegações da minha parte, postas no meu livro, talvez que com o fim de fazer melhor venda ao meu peixe!...
Mas o abalisado crítico crê e não crê nas minhas allegações! Recusa-se acceital-as em alguns pontos, não obstante confiar n'ellas quando trato do conego Sequeira Mendes, já no meu livro, já em artigos que n'elle transcrevo, artigos por mim publicados nos jornaes do Pará. E mais se fia ainda no que digo com respeito ao facto do caixeiro da casa ingleza, chegando a honrar-me com as seguintes phrases antes de transcrever para o seu artigo a parte do meu livro onde conto o occorrido:
«Outro facto cita o sr. Pércheiro que causa a mais desgraçada impressão porque mostra que nas proprias repartições do estado se revela a maxima desconsideração por tudo o que é[414] portuguez. Citamos as proprias palavras do auctor do livro» etc.
Depois do meu contendor transcrever o que eu digo ser—facto—mas ao qual não junto documento algum que o comprove, termina com o seguinte, ainda em meu abono: «Este facto parece incrivel. Recusa-se o nosso espirito acceital-o. Mas desgraçadamente está de accordo com outros (que não comprovo com documentos), de que não é licito duvidar» etc.!
Conclue-se, que a minha exposição foi interessantissima.
Mas com respeito aos tribunaes, deixou de o ser: as provas que allego encontra-as s. ex.ª nos trechos dos jornaes que cito. As minhas simples allegações recusa-se a acceital-as. A exposição do jornalista Carvalho, redactor da America do Sul, nosso digno compatriota, o qual não compareceu, como eu, na audiencia onde se julgava o assassino do infeliz portuguez calafate, mereceu-lhe mais credito, porque aquelle cavalheiro é habil e soube fazer estylo!...
A descarga geral é no fim. Ali não ha mais contemplações. O valente guerreiro arranca, uma a uma, todas as folhas de louro, que já começára a arrancar, da corôa que logo no principio da batalha me conferira, e, desapiedado, até pisa a haste em que ellas se prendiam!
Oiçamol-o:
«Temos pena que o sr. Pércheiro, dominado por uma paixão, cujo fundamento ignoramos, fosse tantas vezes d'uma critica tão irritada, que obrigue o animo imparcial a dar ás suas palavras, quando as não comprovam testemunhos insuspeitos, certo desconto.»
Queria o illustrado articulista que eu estivesse a rir e a dispensar zumbaias aos brazileiros, em presença dos portuguezes assassinados, dos tribunaes que absolviam os assassinos e do povo que se ria d'estas absolvições!
Já disse atraz, e agora repito, que as contradicções do articulista são manifestas; porque deixei provado que s. ex.ª acceita as minhas revelações, completamente despidas dos taes testemunhos insuspeitos, que fantasiou sem duvida para ter occasião de fazer estylo.
Mas continuemos:
A boa critica não póde acceitar como proposições geraes, o que deve apenas admittir-se como limitada excepção, quando existe.»
Aqui confesso que não comprehendo o meu sensor: tal é a minha ignorancia!... Porque eu não quero por um momento suppor, que seja possivel ao meu illustre contendor fazer ainda hypotheses sobre as limitadas excepções, que vê na gente brazileira,[415] que eu digo nos odeia em sua maioria, e sobre a qual eu jámais deixarei de sobrecarregar as culpas, que os inconscientes querem levar á conta da ralé.
Vejam como são as coisas. Suppunha eu que tinha sido demasiadamente liberal nas excepções que fiz no meu livro; mas enganei-me!
Alguns portuguezes, para desiludirem-se, precisam ir passar alguns annos na amavel companhia dos tribunos em terras brazileiras.
Convido o illustre crítico a dar um passeio até Jurupary e mais terras do civilisado Pará e outras provincias. Na volta me dirá se eu tenho razão para ser apaixonado, e julgará da exactidão das minhas affirmações de paginas 181 e outros pontos do meu livro, que não rectifico, porque com ellas desejo evitar que os portuguezes incautos procurem mulheres brazileiras, que, salvas mui poucas e honrosas excepções (permitta-se-me a repetição, eu sou incorregivel!) não pódem ser as esposas, nem tão pouco as mães que ambicionamos para nossos filhos. Muitas razões poderia eu adduzir para comprovar esta minha asserção; mas falta-me o tempo e o espaço.
Finalmente, é preciso fazer comprehender aos portuguezes que emigram para o Brazil, que a sua desgraça está no cruzamento das raças lusitana com a brazileira, que tanto nos odeia; assim como está tambem no fausto que lá ostentamos, tão dessimilhantemente dos outros colonos europeus.
Bemfica 19 de julho de 1875
Gomes Pércheiro.
Breves palavras apenas. Queixa-se, ou antes argue-nos o sr. Pércheiro de sermos contradictorios na apreciação do seu livro, porque n'uma parte o elogiamos, e n'outra fomos menos benevolos com elle,—por julgarmos algumas das suas apreciações verdadeiras, e a outras não acceitamos sem attestação de documento.
Somos então sempre contradictorios, e d'este modo a contradicção é inseparavel da nossa pobre crítica, porque temos por costume invariavel elogiar o que nos agrada, e censurar o que nos não parece bom. E o peior é que não nos arrependemos, nem pretendemos emendar-nos de tão feio peccado. Quando nos obrigarem a sahir da nossa obscuridade, ha de ser assim. Tenha-nos embora o sr. Pércheiro por impenitentes. Não nos queixaremos.
Não o supposemos embusteiro, pareceu-nos exaggerado, pelo[416] menos em alguns periodos. A paixão desvaira ás vezes os milhores e mais rectos entendimentos. O sr. Pércheiro, no nosso modo de vêr, estava apaixonado quando escreveu o seu livro. Nós é o que não podiamos estar quando o lêmos, a não ser em favor do sr. Pércheiro, que, na unica vez que tivemos a honra de o receber, nos pareceu um cavalheiro amabilissimo.
Ora o que é escripto com paixão precisa de certo desconto. É o que nós dissemos e dizemos, a respeito das Questões do Pará. E nem por isso deixa o livro de ser uma interessante exposição de factos, pelos documentos que contém, pelo que a boa crítica póde d'elle receber sem escrupulo, pelas noticias que dá com respeito a algumas questões pouco conhecidas entre nós.
Dizemos isto a medo de sermos novamente arguidos de contradicção, visto insistirmos na nota de apaixonado, que melindrosamente repelle.
O sr. Pércheiro diz que não rectifica o que a pag. 181 escreveu a respeito das senhoras brazileiras. Nem nós lh'o pedimos. É uma questão de consciencia. Ha de permittir-nos porêm que continuemos a suppor excepção o que apresenta como regra. Como excepção ha d'isso em toda a parte. Tambem por cá... Como regra, temos o testemunho em contrario de muitas familias vindas de lá, que logramos a fortuna de conhecer.
Nós partimos em tudo isto d'um principio; que para affirmar nos nossos compatriotas a convicção de que se não devem aventurar loucamente aos azares da emigração americana, não é preciso representar-lhe o Brazil como um paiz de selvagens ou pouco menos; e que d'outra sorte, não fazemos mais que corresponder á denominação rusticamente injuriosa de galegos, com que alguns brazileiros julgam affrontar-nos, affrontando-se ao mesmo tempo a si.
Se isso é realmente offensa, preferimos ficar offendidos, a parecer-nos com elles, offendendo-os pela mesma fórma, e com egual justiça. Lisongeia-nos mais o papel de victimas. É questão de gosto talvez.
Podiamos assegurar ao sr. Pércheiro que nos foi desagradavel a certeza de o havermos molestado sem querer. É porém sestro nosso e de muita gente. Ainda ha pouco o nosso antigo amigo, o sr. Teixeira de Vasconcellos, n'um caso identico, se queixava de que todos os auctores lhe pediam que fosse franco a respeito do que escreviam, e todos se julgavam depois offendidos quando elle tomava o pedido ao pé da letra. Acontece sempre isto.
Por isso nós costumamos, e cada vez estamos mais firmes n'este proposito—deixar á redacção d'outros jornaes a noticia das novas publicações com aquellas palavras sacramentaes de[417] louvor, que afinal nada significam. Com isso ninguem se offende. Alguns acham pouco o incenso. Mas d'ordinario todos gostam.
Resta dizer ao sr Pércheiro que o redactor principal do Districto de Aveiro, não costuma assignar os artigos d'esta secção. Esta pratica, que é de muitos outros jornaes do paiz, equivale a uma assignatura.
E faremos uma rectificação, visto ser necessaria. Nós não escrevemos: «é nas classes inferiores que a desconsideração mais se revela;» escrevemos: «é nas classes superiores que a desconsideração mais se revela.» No entretanto foi como o sr. Pércheiro cita que o periodo sahiu á luz. Travessuras dos compositores e descuidos da revisão, a que estamos habituados. Nem d'ordinario já rectificamos. Deixamos esse cuidado ao bom senso de quem lê.
Districto de Aveiro
*
* *
Sr. redactor.—Antes de entrar na apreciação da resposta com que v. exª me honrou em o n.º 366 do seu enteressantissimo jornal, permitta que lhe agradeça o favor da publicação da minha carta, que motivou esta resposta. Dito isto, peço egual favor para a inserção d'esta. Perdoe-me v. ex.ª o abuso. É que eu com a alludida resposta, e outras que se lhe possam seguir, ficarei vencido, mas nunca convencido: tal é o meu obscurantismo a respeito das coisas do Brazil. Para demonstrar a v. ex.ª que não fico convencido, é que escrevo mais estas desconcertadas linhas. Creia que, se não fôra esta razão, deporia a minha penna de chumbo, que jámais poderá vencer a de ouro, tão habilmente dirigida por mão de um digno contendedor como v. ex.ª
N'essa resposta a que eu alludo, e á qual vou fazer algumas considerações, suppõe v. ex.ª que me escandalizam as opiniões contrarias ao meu livro e que me agradam as palavras sacramentaes dos jornalistas sem consciencia. Permitta que lhe diga, que, ainda mais uma vez tornou a ser injusto comigo, injustiça que se estendeu a litteratos mui distinctos, que se serviram apreciar o meu modesto trabalho.
Eu não me escandaliso com a opinião de criticos tão abalisados como v. ex.ª; poderei escandalisar-me com as injustiças e apontar as contradicções. E v. ex.ª foi injusto comigo e contradisse-se em alguns pontos da sua apreciação ao meu livro. Desculpe a teimosia. Eu tambem sou peccador como v. ex.ª Acredite-me com franqueza, que não dispenso as palavras sacramentaes de que falla, nem tão pouco as de censura com que me distingiu, visto que, para umas e outras eu já estava prevenido, ainda antes[418] do meu trabalho ter saido a lume. Antes do apparecimento do artigo de v. ex.ª já eu tinha recebido os jornaes do Pará, onde, a par das injustiças, vi publicados alguns artigos bastante insultuosos. Já vê v. exª que eu esperava flores e espinhos ao mesmo tempo. Mas eu sou tão differente dos outros homens (e sinto que v. ex.ª me não tivesse ainda comprehendido), que julgo importarem em pouco as palmas e as pateadas a quem tem a consciencia tranquilla. E a minha, mercê do Altissimo, não o póde estar mais. Comtudo agradeço umas e outras.
Folgo devéras, que não tenha visto em mim um embusteiro e apenas as parecensas com quem foi exaggerado e apaixonado, isto com referencia a alguns periodos do meu livro. Esta confissão agrada-me; mas é perciso desfazer no animo de v. ex.ª essas ideas, que tão injustamante me arroga. Eis o que ainda vou tentar.
Não ha exaggeração da minha parte, quando digo que a maioria dos paraenses nos odea; porque, para comprovar esta minha asserção, me sirvo das proprias palavras da folha official:
«Ao passo que o Japão se vae civilisando, o Pará, em vista dos ultimos acontecimentos, está passando no estrangeiro como terra de selvagens!
«Pena é que as ideas intituladas patrioticas (o exterminio dos portuguezes), não tenham encontrado apoio sómente em meia duzia de moços inexperientes.»
E basta. Isto significa um mundo de desgraças, que justificariam os meus exaggeros e a minha paixão.
O governo, representante do povo brazileiro, odeia-nos tambem porque despresa a nossa causa, que é justa. Tomando o seu exemplo, os tribunaes são quasi sempre facciosos, quando julgam o portuguez delinquente. Mil factos o comprovam. E no nosso paiz não ha exemplo que os juizes julguem nacionalidades. Haja vista ao processo do infeliz Vieira de Castro!...
Não se póde pôr em duvida a minha proposição:—é ephemera a civilisação no Brazil; porque qualquer paiz civilisado levantar-se-hia contra a propotencia sem egual, se parte d'esse paiz como acontece no norte d'aquelle imperio, quizesse em pleno seculo XIX, repetir um novo S. Berthelemy. E o povo brazileiro, permitta-me a repetição, é responsavel pelos desmandos dos paraenses, porque até hoje ainda não vimos que os seus representantes tomassem medidas energicas contra o estado de effervescencia revolucionaria, que existe no Pará, ha mais de tres annos. Nenhuma voz soou ainda no parlamento brazileiro, interpelando o governo a respeito dos acontecimentos dos dias 6 e 7 de setembro do anno findo; voz que ao mesmo tempo fulminasse um dos seus membros, accusado com bastante fundamento,[419] de estar á testa dos disculos. Este silencio anima os desordeiros, que, contando com a impunidade, preparam novos desacatos para d'aqui a pouco mais de um mez. E se elles se repetirem, o que é muito provavel, porque as proclamações da Tribuna, sempre attendida, cada vez são mais incendiarias, não terei razão de dizer que o Brazil é um paiz de selvagens, porque á testa dos communistas vemos a indifferença das auctoridades, os deputados do imperio, o clero e muitas outras influencias?
Por muito menos que as barbaridades dos paraenses, não vimos nós, hade haver 4 annos, um dos actuaes ministros, então deputado, interpelar o governo por causa da pastoral do actual patriarcha de Lisboa? Não foi ha dias censurado um prégador que, segundo se diz, insultára, em termos mais convenientes do que os dos tribunos, algumas nações amigas? Não me poderá v. ex.ª responder que os actos de repressão d'estes homens foram ditados pelo meio da força, e sim pelo cumprimento do dever, que todo o homem publico deve ter em vista. E o que fazem os deputados ou os senadores brazileiros? Alguns, em pleno parlamento, já nos têem insultado.
As doutrinas do jornal A Tribuna, que segundo dizem os defensores do Brazil, não é acceite pela maioria dos paraenses, echoam livremente em toda a parte: e desgraça é dizel-o:—semilhante jornal é o mais lido na provincia, e mais de cem jornaes brazileiros trocam com este pasquim, insulto permanente a tudo quanto é portuguez!
E desapprova v. ex.ª o epiteto de selvagem com que distingo aquella gente; epiteto que, a fallar a verdade, será um pouco mais insultoso que o de gallego com que os brazileiros nos distinguem, porque gallego, a meu simples entender, é synonimo de trabalhador, que mais honra do que o do indolente. Mas de certo que o epiteto de selvagem não é mais insultuoso que o de ladrão, assasino, falsario e muitos outros com que egualmente nos mimoseiam. Saiba v. ex.ª que, pelo ultimo paquete, recebi eu muitas d'estas distinções! Pretenderá esta gente, com semelhantes blasphemias, arredar-nos do banquete da civilisação? Mas eu, chamando-lhes selvagens, não os prohibo de se civilisarem; com esta distincção já mais os affastarei dos paizes cultos, onde em todas as épocas têem apparecido, sem serem repudiados, alguns d'esses entes, no meio da admiração e do rogosijo publico!
Não chamei ás mulheres brazileiras, adulteras e prostitutas; não digo que o seu imperador é bebado e devasso; não distingo com os epitetos mais infamantes o seu exercito e a sua marinha, cujas forças eu apenas digo serem ephemeras, porque, effectivamente[420] um pequeno exercito europeu, faria do Brazil independente uma colonia de qualquer nação da Europa.
Inflama-se v. ex.ª porque chamei selvagem á maioria dos paraenses, epiteto que se poderá estender á maioria dos brazileiros, se elles de futuro não protestarem contra o insulto de que temos sido e continuaremos a ser alvo! O serem selvagens não lhes tira a honra de serem respeitadores da vida e da propriedade alheia. Dizia Thevet, que os Tupinambas morreriam de pejo se vissem um seu visinho ou o seu proximo carecendo d'aquillo que elles possuissem. Os delinquentes eram castigados. Muitos selvagens se distinguiam pelo seu genio guerreiro. Outros havia, antropophagos, que apresionavam as victimas, que afinal eram os roubadores do seu paiz, e as comiam, depois de assadas nos espetos de marapinima!
Já vê o meu illustre contendor, que nem a todos chamo botocudos, titulo que bem podia caber aos assassinos de Jurupary. No Brazil ha homens civilisados, especialmente no sul, que se horrorisam com os actos de selvageria praticados pelos paraenses, a quem não distinguem com o doce nome de compatriotas. Mas o que é quasi geral, especialmente desde o Rio de Janeiro para o norte, é que os brazileiros, como acontecia ás raças que antigamente predominavam na America do sul, odeiam os portuguezes. Isto é que é irrefutavel. É uma verdade bastante amarga, eu sei; mas... quem não quer ser lobo...
Insiste v. ex.ª sem duvida, por causa das boas relações que entertem com muitas familias brazileiras, em fazer excepção do que, a respeito do aceio das senhoras d'esse paiz, eu sustento ser regra; e para contrapor a sua á minha opinião, diz que isto é questão de consciencia. E eu, permitta-me que lhe diga, que é tambem questão de experiencia; e no caso sujeito, parece-me que não vale menos uma do que a outra. Para confirmar o que digo a tal respeito a pag. 181 do meu livro, não irei, de certo, em procura de algumas familias, que ambos conhecemos, as quaes exceptuarei sempre, mas que continuarão, por causa da experiencia, que me faz consciencioso, a ficar em minoria.
Dizia M. de Tullenere, citado mais de uma vez por Ferdinand Diniz, no seu livro Le Brezil, o seguinte respeito das brazileiras:
«Uma senhora vae á missa acompanhada por numerosos escravos adornados com riqueza; e muitas vezes, em voltando para casa assenta-se n'uma esteira, onde come com a mão, peixe salgado e mandioca.»
Ora, eu não creio que fique limpa quem, ataviada assim da festa, come o peixe por similhante systema.
Aos francezes, inglezes e allemães, quando fallam assim dos[421] outros povos, respeita-se-lhes a linguagem, talvez porque são poderosos. Ás mais pequenas exigencias, ás vezes injustas, segue-se-lhes a força dos canhões! E nós, somos tão miseraveis, tão pequeninos, que nem ao menos podemos dizer as verdades, como justo desforço contra tanta tyrania! É assim o mundo. Quanto tens, quanto vales. Sacrifique-se a consciencia, porque dizem ser forte o Brazil, que nos insulta! sacrifique-se a consciencia, porque a familia brazileira, mais do que qualquer outra, está relacionada com a portugueza!
Disse na minha primeira carta, que o meu illustre critico tinha sido injusto comigo, e essa injustiça eu já a demonstrei. Disse mais que tinha sido contradictorio, e o que ainda vou transcrever da sua apreciação ás minhas Questões do Pará, corroborará mais o que já disséra. Transcreverei apenas o primeiro e o ultimo paragraphos do seu referido artigo, e assim juntos, é mais facil a apreciação.
Diz o 1.º:
«É uma interessante exposição de factos, que ministra muita luz,» etc.
Aqui o meu livro é recommendado aos leitores do Districto de Aveiro.
Resa assim o final:
«Afora isto, (as pag. 181 e outros logares?), era util que o livro do sr. Pércheiro se vulgarisasse» etc.
As pag. 181 e outros logares que o leitor do jornal ignora, porque v. ex.ª não se dignou apontal-as, não devem ser lidas.
Conclusão logica:
Afora o livro do sr. Pércheiro, era bom que o livro se vulgarisassse!
Aponte v. ex.ª os taes logares, que eu e o paiz lhe agradeceremos tão elevado serviço. Então, o leitor prevenido inutilisará as paginas sobre que v. ex.ª fulminou o anathema, e poderá ler, sem escrupulo de peccar, o restante das minhas Questões do Pará.
Era esta a obrigação do bom critico, que, como o historiador, tem que ser muito minucioso para não ser injusto.
Terminarei agradecendo antecipadamente a inserção d'esta, pedindo ao mesmo tempo mil desculpas pela divergencia da minha humilde opinião, o que jámais me impedirá de ser.
De v. etc.
30 de julho de 1875.
Gomes Pércheiro.[422]
A declaração que faz o sr. Pércheiro logo ao principiar a sua carta: «que com a resposta que demos á sua primeira carta, e outras que se lhe possam seguir, ficará vencido mas não convencido,» dispensa-nos de continuar n'esta amigavel controversia. O nosso fim nunca foi vencer. Poderia ser, se tanto, convencer.
Seria pois inconveniente, e por demais inutil, toda a insistencia em qualquer opinião que ao sr. Pércheiro desagrade, não se achando interessado o nosso amor proprio em justificar o que escrevemos, nem pondo nós empenho em nos resalvar das contradicções que o illustre escriptor tão lucidamente descortinou logo no nosso primeiro artigo, e que nós temos a infelicidade de ainda não perceber.
Affirmando que as Questões do Pará era uma publicação interessante, será incontestavel que não podiamos sem incorrer em contradicção, pôr-lhe deffeitos; e escrevendo: «afora isto, o livro merece vulgarisar-se,» talvez dissessemos uma inepcia, porque isto não deverá referir-se só aos defeitos que notamos, mas a todo o livro! Isso porém é que nós não queremos averiguar.
Com relação á civilisação do Brazil estamos n'uma situação de espirito muito analoga áquella que nos collocou a leitura do trabalho do sr. Pércheiro. É possivel que nos achemos tambem n'isto em flagrante contradicção. Concordamos que, não só a população inconsciente e irresponsavel, mas tambem os homens que pela illustração devem encaminhar a opinião, sejam injustos, apaixonados, malevolentes mesmo com relação a Portugal: todavia não deduzimos d'ahi argumento para provar a selvageria do paiz. Vemos n'isso uma deploravel aberração, dictada por uma animosidade sem motivo. Nada mais. E isto parece pouco ao sr. Pércheiro. E será talvez.
Não importa. Separemo-nos em bons amigos. Cada um fica na sua opinião, e fica bem visto que ambos estamos tranquillos da nossa consciencia.
Districto de Aveiro
Chegou-nos ha dias um livro que acabamos de percorrer e que trata de um assumpto que realmente precisava de ser tratado seriamente e por penna imparcial e sabedora dos factos.
Não vae decorrido muito tempo que o telegrapho communicava aos diversos jornaes do paiz os insultos de que estavam sendo alvo os portuguezes residentes no Pará, objecto de que então toda a imprensa do paiz se occupou, pedindo ao governo[423] para providenciar e fazer respeitar n'aquellas paragens o pavilhão das quinas que, segundo se affiançava, os paraenses intentavam enxovalhar em pleno dia.
Suscitaram-se todavia algumas duvidas sobre a veracidade dos factos relatados e portanto foi muito bem vinda uma publicação devida a um cavalheiro que residiu no Pará durante tres annos e que por conseguinte teve occasião de estudar e prescutar todos os factos escandalosos que diariamente ali se repetiam.
O livro a que alludimos é subordinado ao titulo Questões do Pará e é seu auctor o sr. D. A. Gomes Pércheiro.
O sr. Pércheiro tomando o seu escapello, anatomisa minuciosamente os prós e os contras que alli vão encontrar aquelles que vêem no Brazil um novo El dorado e se ligarmos credito, como devemos, ás suas palavras é certo que não se lhes antolha um futuro muito risonho.
Uma grande parte dos trabalhadores succumbem logo ao abordar aquelles portos insalubres em que predominam quasi constantemente as febres, o cholera e outras molestias que desapiedadamente desvastam a humanidade, e os que por ventura logram a felicidade de escapar ás garras da morte, depois de muitos annos de privações que nunca soffreriam na sua terra, conseguem reunir no cantinho do bahú uns 400 ou 500 mil réis, que o tratamento das molestias adquiridas no Brazil lhes absorve, quando exhaustos de forças e na decrepitude da vida, regressam á sua terra natal.
Oh! como é miseravel a vida do artista e do trabalhador portuguez no Brazil! exclama o sr. Gomes Pércheiro e accrescenta; «Os portuguezes que de futuro emigrarem para o Brazil, com o fim de se dedicarem ao commercio, perderão infallivelmente o seu precioso tempo...», o que o auctor demonstra com razões bastante acceitaveis sendo uma das principaes o definhamento que de dia para dia vae tendo ali a agricultura em consequencia da falta do braço escravo que as leis libertaram.
O livro do sr. Gomes Pércheiro precisa de ser estudado; uma simples leitura não é o bastante e o nosso governo prestaria bom serviço mandando pela sua parte tambem estudar o assumpto no campo da pratica. As estatisticas da mortalidade e a descripção minuciosa das privações que sofrrem os nossos irmãos que vão em busca da fortuna, seriam talvez o verdadeiro dique a oppôr-se á emigração.
O clero tambem podia cooperar para isso, porque a sua missão não é só a de rezar padre-nossos e ave-marias.
Nós julgamos necessario que se evite quanto possivel a emigração, mas por meios licitos e sem menosprezar a liberdade do paiz. Não queremos que se apregoe a mentira; queremos que[424] se diga a verdade e que se colham algarismos exactos que fallem com toda a sua eloquencia.
Dito isto cumpre-nos agradecer ao sr. Gomes Pércheiro o delicado offerecimento que nos fez da sua obra, a que toda a imprensa tem dispensado o mais lisongeiro acolhimento e congratulamol-o porque é a mais valiosa recompensa a que um escriptor póde aspirar.
(Agosto)
Duarte de Oliveira Junior.
Quando uma fila de carruagens pesadissimas atravessou pela primeira vez os campos ao empuchão violento do fogo e da agua, a poesia assustou-se e chorou como perdido o encanto das viagens. Soberbas de serras e montes, amenidades e melancholias de longas e incultas planiceis tudo isto se perdia para os olhos e para o coração de quem viaja; perdiam-se além d'isso os sobresaltos, que dá uma floresta com fama de ser um abrigo de salteadores, perdiam-se os mesmos salteadores, os seus roubos e assassinatos.
A poesia não tinha razão; filha do genio e do enthusiasmo, o seu pranto era um delirio.
Gostaes de contemplar as serras, de subir aos montes? Tomae o cavallo ou o bordão; ide lá. Quereis ter sensações, julgaes que um susto ou mesmo um roubo, em meio do desmaiar das damas e do brigar dos homens, é uma cousa bella para soffrer e recordar? Pois escrevei aos salteadores de que tiverdes noticia, dizei-lhes quando passaes que dinheiro levaes, e será satisfeita a vossa vontade. Os wagons não teem mãos que vos prendam e vos puchem para dentro; sois vós que pondes o pé no estribo e subis.
O viajar pelos caminho de ferro não será poetico, mas é commodo, e ás vezes instructivo, o caminho de ferro é ás vezes a torre de Babel a andar; são as cinco partes do mundo a conversarem sentadas n'um banco.
Senão vêde:
Uma noite de maio ia eu no caminho de ferro para Coimbra, tinha a um lado um brazileiro ainda novo, e do outro um homem alto e grosso, com o cabello e a barba já a branquearem-lhe; o brazileiro esperguiçava-se de quando em quando, tirava as botas, e para que o viesse acalentar, promettia dinheiro ao somno.
O meu outro companheiro encostava a cabeça, que abafara[425] n'um bonet de pelle de lontra, ao estofo da carruagem, e erguia e descahia compassadamente as mãos sobre um dos joelhos.
«Está visto, disse-me o brazileiro, não posso dormir.
—Folgo muito, respondi eu, porque poderemos conversar. O sr. vae para Coimbra?
«Para o Porto. O sr. é de Coimbra?
—Sou estudante.
«Oh! estudante; dizem que os estudantes é muito má gente.
—Muito obrigado pelo elogio; mas olhe, são mais as vozes que as nozes.
«Que fazem muita troça. Até fizeram troça ao imperador do Brazil, é verdade? Pode dizer o que quizer, a mim não me importa o imperador, eu não gosto do imperador, ainda que é o primeiro sabio do mundo. Não sei se é, que eu não entendo d'estas cousas, sou negociante e ando a viajar para me divertir, tenho gasto muito dinheiro: agora é gastar. Mas viu o imperador gostou d'elle?
—Pouco. No Porto parece-me que não andou bem; era uma terra...
«Fez isso de proposito—interrompeu o meu companheiro de viagem. Se o imperador tratasse cá bem os portuguezes, os brazileiros deitavam-n'o a voar. Foi para agradar. O imperador anda a tremer de medo.»
A resposta indignou-me.—Não posso acreditar, repliquei eu: e o que affirma seria, se assim fosse, uma acre censura para os brazileiros; mas, repito, o que diz não póde ser.
«Pois póde, exclamou de repente o meu outro visinho. Póde e assim mesmo é que é; o sr. é um idealista, que julga que os reis têem parentes, idéas e sentimentos; está enganado, os reis têem um throno e nada mais; percebe? Foi para agradar aos brazileiros, pois que duvida?
—O sr. é brazileiro? perguntei eu.
«Não sr. sou portuguez, mas tenho estado muitas vezes no Pará e vim de lá ha seis mezes. Ora ouça...
Fiquei curioso e attento.
«Ha no Brazil dois partidos, começou o meu visinho, liberal e conservador; as coisas prosperavam sob o governo do partido liberal, mas algumas provincias começaram a pensar em se constituirem em republica; o imperador chamou ao poder o visconde de Rio Branco, chefe do partido conservador, e este para onerar as provincias que sonhavam com a republica, mandou-lhes presidentes com instrucções para destruirem por todos os modos o thesouro da provincia; tinham uma grande recompensa por isso, e em breve tempo se desempenharam do encargo.[426]
—Honrosissimo encargo!
«No Pará manifestou-se com grande força, sob o dominio do partido conservador, um odio violento e tenaz contra os portuguezes, e este odio, que está em todos os naturaes, achou um orgão n'um jornal de que deve ter ouvido fallar A Tribuna.
«Esta Tribuna é uma tribuna d'onde se prega o morticinio contra os portuguezes. E quer saber quem é o redactor d'este jornal, e o chefe da perseguição? é o conego Manuel José de Sequeira Mendes.
—Bello padre! exclamei eu.
«Por lá quasi todos são assim, crueis e devassos; o Brazil é uma nação nova, mas corrompida até á medulla dos ossos. No parlamento todos os deputados se vendem, e vendem-se a dinheiro de contado. Um francez que tem no Pará uma fortuna collossal, (disse-me o nome) escreveu um dia que dentro d'um certo numero de annos todos os deputados do Pará se lhe tinham vendido. A asserção ficou sem resposta.
—Não imaginava tanto, mas fallemos do conego, chefe da perseguição.
«E deputado ministerial. O visconde de Rio Branco não combate a Tribuna, não contradiz o grito—Mata gallegos—para não levantarem outro—Republica.
—Mas porque é que no Rio de Janeiro não succede o mesmo?
«No Rio de Janeiro dominam os capitaes portuguezes.
—Porque não auxiliam os portuguezes do Rio os do Pará?
«Pela distancia. Umas provincias não podem ali influir sobre as outras. Mas o estado dos portuguezes no Pará é terrivel. Ha tempo um escravo matou um caixeiro portuguez; as leis do Brazil consignam para isto pena de morte sem possibilidade de intervenção do poder moderador; pois o jury absolveu o reu dizendo que o assassino tinha feito um acto meritorio; que matar um portuguez, um gallego, era ser benemerito da humanidade, etc. Esta inpunidade convida ao assassinato, e os portuguezes são roubados e garrotados na rua e em casa sem que a justiça proceda; ou se procede, termina pela absolvição, ou por penalidades, que são um novo insulto. O governo...
—E a causa d'este odio?
«Olhe, nós não comprehendemos o que tinhamos a fazer no Brazil, como o comprehendem os inglezes, os allemães e os francezes. Todos estes trabalham, accumulam e retiram-se; não fazem no Brazil uma casa, não fazem uma festa, não dão um jantar, não casam com uma brazileira; em ajuntando, retiram-se, edificam palacios na sua nação, dão banquetes e festas na sua nação, casam com as mulheres da sua nação, por isso não[427] dão na vista aos brazileiros; nós edificamos ali palacios, damos ali banquetes e festas, ali casamos, etc...
Mas isso é conveniente ao Brazil; nós, dirigindo-nos assim, enriquecemol-o; fazer o que me diz que fazem os inglezes, francezes, allemães, é devastal-o.
É verdade. Mas aquella gente não tem razão, tem só olhos. De quem é este palacio? E d'um marinheiro, ainda outro dia para ahi veio descalço. Ah! estes gallegos não se matam d'uma vez! etc.
«E se os não matam d'uma vez, vão-os matando pouco a pouco.
«A imprensa toca todos os dias a rebate....................
—Que estado de coisas!
«Olhe foi denunciado á Europa por um portuguez de valor, ainda rapaz, director da Agencia americana no Pará. A imprensa do Brazil accusou-o de faltar á verdade; e dinheiro, mulheres, tudo foi tentado para o fazer calar; elle deixou o Brazil, e veio para Portugal para responder d'aqui á imprensa brazileira; verá dentro em breve um livro repleto de factos, e Portugal poderá ver o que é o Brazil.
—A terra da promissão com que sonham os nossos desherdados da fortuna.
«Convertido em inferno pela mais baixa de todas as paixões—a inveja.»
*
* *
Passaram poucos dias, e, entrando no seminario de Coimbra, vi sobre uma meza de estudo um livro intitulado—Questões do Pará, por D. A. Gomes Pércheiro.
—Que livro é este? perguntei.
Leve e leia.
É d'este livro que vou dizer duas palavras ao leitor.
O livro d'hoje e o livro d'hontem não se parecem em nada, como tambem se não parecem o homem d'hoje e o homem d'hontem. O livro d'hontem era pesado, mas solida espada para o ataque, ou escudo para a defesa; o livro d'hoje é liviano, innutil, a figura d'um petit-maitre, que tem palavras sem ter idéas, que, como a velha de Nicolau Tolentino, aprende a brir as risadas diante de um espelho; o livro d'hontem escrevia-se depois do estudo e no impulso d'uma crença; o d'hoje escreve-se antes do estudo e sob o dominio d'uma vaidade, que se quer vêr em letra redonda: o livro d'hontem era um facto, o d'hoje um fato.
O livro do sr. D. A. Gomes Pércheiro não é o livro d'hoje, é[428] um livro excepcional, e, nos tempos do egoismo que correm, um milagre de patriotismo.
A historia da litteratura não tem que inscrever nas suas paginas o nome do auctor porque, escrevendo no decurso de uma viagem, e todo occupado com o assumpto, o livro sahiu sem estylo, e mesmo menos ordenado do que devia ser e do que convinha que fosse; mas fazer a historia do livro, e resumir o que elle é, é traçar um elogio seguro e grandioso do auctor, declaral-o benemerito da nação, digno do respeito e da gratidão de todos os que forem portuguezes.
A historia do livro é esta.
Desenvolveram-se no Brazil violencias de odio contra os portuguezes; o governo, a administração, o poder judicial, sempre o ultimo a corromper-se, pozeram-se em affinidade com a bruteza d'estes rancores, que se têem resolvido em roubos e assassinatos n'umas vesperas sicilianas, lentas, mas de todos os dias e em que um padre prega do alto da imprensa, como evangelho d'uma nação, o morticinio dos alliados naturaes d'essa mesma nação, os unicos que podem enriquecel-a, fecundal-a e fazel-a grande.
O sr. Gomes Pércheiro era empregado na Agencia americana do Pará; como portuguez, e como homem, indignou-o a perseguição que se movia aos seus patricios, e denunciou-a a Portugal e á Europa.
Foi de coragem, e foi heroico o acto, porque os interesses, coisa a que tudo se sacrifica, foram sacrificados pelo sr. Pércheiro ao sentimento da humanidade e do amor da patria, que pedia a expressão da verdade a brados e repetida.
Como Rousseau, o sr. Pércheiro tomou a divisa—vitam impendere vero—e a Agencia americana contou á Europa o que estava sendo o Pará.
A imprensa brazileira levantou-se e desmentiu as asserções do sr. Pércheiro; sabemos mesmo, e permitta-nos o auctor das Questões do Pará que o digamos, que estando para casar com uma rica herdeira do Brazil, se empregou o credito da noiva para o dissuadir de dizer a verdade do que se passava no Pará com os portuguezes.
Para poder dizer a verdade sem rebuço e sem melindre, o sr. Pércheiro quebrou o ajuste de consorcio: para responder á imprensa que o desmentia, o sr. Pércheiro fez-se á vela para Portugal, e no caminho veiu escrevendo o seu livro.
Quantas são as obras que têem uma historia como esta? quantos os escriptores que, quebrando por affeições e por interesses, atravessam o occeano para virem dizer uma verdade?
Ha no sr. Pércheiro uma individualidade nobre e digna de[429] respeito; o seu livro não é, como já dissemos, um livro d'estylo, é um livro de factos; conta-nos o triste estado dos portuguezes no Pará, documenta e prova o que diz; o seu livro é uma lição para Portugal, devia ser um desengano para os illudidos que vêem no Brazil uma nova terra da promissão. É tambem a estes que o auctor o dedica.
Investigando as causas da emigração portugueza encontram-se talvez duas, a idéa que o povo ignorante e pobre faz do Brazil, e o facto de ser Portugal uma nação em que as industrias manufactoras não estão em proporção sufficiente com a industria agricola. Ora a miragem, que é construida de ignorancia, póde contribuir para destruir e esvaecer o livro do sr. Pércheiro. A França teve um ministro de coração e de genio que approveitava o clero para o fazer ensinar ao povo tudo o que podia concorrer para a felicidade d'elle. O ministro chamava-se Turgot. O governo portuguez podia, á similhança de Turgot, mandar distribuir o livro do sr. Pércheiro pelas parochias e escolas ruraes em que a emigração recruta mais gente, pedindo que o lessem e o dessem a ler, e que fizessem sobre o assumpto predicas e conferencias, que dissuadissem da emigração.
Mas o que fazia Turgot, que era um genio, seria uma utopia ridicula para quem o não é: não sabendo já o que ha de fazer, para viver, o governo portuguez manda vir do estrangeiro o Espirito Santo, disfarçado em pombos, e bebe a inspiração nos arrulhos que elles soltam.
Seja como fôr, o livro do sr. Pércheiro não será perdido; irá dar a luz a muitos espiritos, e mesmo quando assim não fosse, ficava de lição o desprendimento generoso e nobre com que o seu auctor atravessou o occeano e sacrificou interesses para proclamar a verdade.
J. F. L.
(19 e 20 de agosto.)
[85] Se, á similhança do que fizemos á policia, aqui ha mezes, fizermos o mesmo á empreza do theatro de D. Maria II, obrigando-a a cumprir á risca o contracto que manda fazer do nosso primeiro theatro normal um templo e não uma espelunca, onde, se assim continuarem as cousas, não tarda que a opera comica indecente substitua a comedia ou o drama que moralisa; se nós lhe desfiarmos um a um os artigos do contracto feito com o governo, é provavel que então nos venham pedir o drama para o representar, sem as condições vergonhosas que fazem d'aquelle estabelecimento uma casa de prego... já se sabe. Deixemos approximar a época de 1878-1879, e fallaremos a proposito em logar mais apropriado.
O índice da obra aparecia no fim do original. Nesta versão electrónica o índice foi movido para o inicio para facilitar a navegação e consulta.
O livro original tinha uma errata no fim, que apresentamos de seguida:
Pag. | Lin. | Erros | Emendas |
19 | 17 | algofares | aljofares |
19 | 28 | venenos | venenosos |
21 | 20 | reunii-os | reunil-os |
63 | 11 | conscencioso | consciencioso |
74 | 33 | honrosa das | honrosas da |
76 | 16 | commer | comer |
76 | 32 | conscenciosos | conscienciosos |
78 | 8 | contrastes | contractos |
79 | 34 | auciliar | auxiliar |
97 | 30 | conscenciosos | conscienciosos |
161 | 17 | menos | menor |
161 | 26 | (se elle roceiro!) | (se elle é roceiro!) |
173 | 18 | as repartições | das repartições |
232 | 5 | axplendorosos | esplendorosos |
251 | 21 | condemnada | coordenada |
268 | 25 | trotou | tratou |
272 | 28 | despendida | despedida |
276 | 32 | Acompanhavam-os | Acompanhavamos |
276 | 33 | passavam-os | passavamos |
320 | 7 | 1775 | 1875 |
Outros erros ha de somenos importancia, que o leitor facilmente corrigirá.
Durante a transcrição foram encontrados outros erros, não constantes na errata. Todos os que foram detectados foram corrigidos, sendo que os mais significativos são apresentados na lista abaixo, e os outros, menores, foram alterados sem qualquer indicação.
Pag. | Erro | Correcção |
16 | até aos 94 | até aos 78 |
18 | menciado | mencionado |
25 | energico—o liberal | energico—e liberal |
35 | VII (nº da secção) | VIII |
36 | AO SUL DO TEJO | AO NORTE DO TEJO |
77 | viagem d'esde | viagem desde |
116 | VI (nº da secção) | V |
164 | publição | publicação |
165 | declação | declaração |
240 | esta esta tróça | está esta tróça |
241 | Componeza | Camponeza |
241 | Caponeza | Camponeza |
257 | V (nº da secção) | IV |
263 | VI (nº da secção) | V |
264 | VII (nº da secção) | VI |
266 | VIII (nº da secção) | VII |
271 | IX (nº da secção) | VIII |
272 | X (nº da secção) | IX |
277 | XI (nº da secção) | X |
278 | XII (nº da secção) | XI |
278 | Questões Pará | Questões do Pará |
280 | borracha a castanha | borracha, a castanha |
280 | compra pelos colonos | comprados pelos colonos |
284 | XIII (nº da secção) | XII |
309 | mencidade | mendicidade |
317 | em 1847 | em 1874 |
320 | em de 12 de abril | em 12 de abril |
332 | XVI (nº da secção) | XIV |
374 | pretende mostra, | pretende mostrar, |
389 | que este, livro | que este livro |
395 | parecer exagerando | parecer exagerado |
429 | d'estylo, um livro | d'estylo, é um livro |
End of the Project Gutenberg EBook of Portugal e Brazil: emigração e colonisação, by Domingos Antonio Gomes Pércheiro *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK PORTUGAL E BRAZIL *** ***** This file should be named 27964-h.htm or 27964-h.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/7/9/6/27964/ Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by Cornell University Digital Collections) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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There are a lot of things you can do with Project Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is in the public domain in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. 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If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived from the public domain (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. 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