The Project Gutenberg EBook of Petronio, by Marcelino Mesquita This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Petronio Peça livremente extrahida do romance Quo Vadis de Henryk Sienkiewicz Author: Marcelino Mesquita Release Date: February 23, 2009 [EBook #28154] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK PETRONIO *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.)
PETRONIO
MARCELLINO MESQUITA
PETRONIO
PEÇA LIVREMENTE EXTRAHIDA DO ROMANCE
QUO VADIS
DE
HENRYK SIENKIEWICZ
LISBOA
MANUEL GOMES, EDITOR
Livreiro de Suas Magestades e Altezas
61—Rua Garrett (Chiado)—61
M DCCCC I
Typ. do DIA, calçada do Cabra, 7—Lisboa
Esta peça foi representada, pela primeira vez, no theatro D. Amelia, na noite de 8 de março de 1901. Foram os interpretes:
Petronio, poeta satyrico...... Eduardo Brazão
Néro, imperador romano...... Augusto Rosa
Paulo de Tarso, apostolo christão...... João Rosa
Marcos Vinicio, consul, sobrinho de Petronio...... Luiz
Pinto
Chilon, philosopho charlatão...... A. Pinheiro
Tigelino, chefe dos pretorianos, rival de Petronio...... A.
Antunes
Senécion, patricio romano...... Carlos Bayard
Vitelio, idem...... João Gil
Lucano, poeta...... Henrique Alves
Vatino, intendente das festas...... F. Senna
Domicio...... A. Sampaio
Musonio, philosopho e poeta...... F. Salles
Ursus, escravo lygio...... Alfredo Santos
Pitagoras, ephebo, favorito de Néro...... Maria Ferreira
Nerva, patricio de Cumas...... Alvaro Cabral
Lucio, idem...... S. Ayres
Seneca, philosopho...... J. Reis
Teiresias, liberto de Petronio...... A. Quaresma
Um escravo de Petronio...... Antonio Silva
1.º Rabbino...... Salles
2.º Rabbino...... A. Pedro
Gulon, liberto de Vinicio...... A. Silva
Outro escravo...... N. Gomes
Timon, gladiador...... N. N.
Croton, idem...... N. N.
1.º Senador...... J. Subtil
2.º Senador...... Germano
Poppêa, concubina de Néro...... Maria Pia
Eunice, escrava de Petronio...... Maria Falcão
Actêa, ex-amante de Néro...... Angela Pinto
Lygia, donzella christã...... Amelia Pereira
Calvia, dama romana...... Elvira Costa
Nigidia, idem...... F. Salazar
Crispinilla, idem...... C. de Sousa
Flavia, idem...... Elvira Santos
Pomponia, idem...... A. O'Sullivand
Lucrecia, idem...... Maria Ferreira
Julia, dama cumense...... Candida
Octavia, idem...... M. Ferreira
Senadores, palacianos, ephebos, pretorianos, escravos, augustanos, povo romano, gladiadores, damas da côrte, escravas, etc., etc.
[1]
Casa de Petronio em Roma. A um lado, a estatua de Petronio, em marmore. Sobre uma meza, frascos varios de aguas, de oleos; escovas, pentes, ferros de frisar. Duas escravas ethiopes e duas brancas, o rodeiam. As negras acabaram de o pentear.
Que manto? (as escravas negras sahem)
O azul. (a escrava sahe e traz)
Bello... como um Deus!
«Animal impudens», de Séneca.[2]
O consul Marcos Vinicio.
Oh!
Salve, Petronio!
Salve. Sê bem vindo em Roma. Que o repouso te seja grato depois da guerra.
Que os Deuses te sejam propicios, sobre tudo Asclépias e Cypris.
Que o tal Asclépias me perdôe; não tenho fé n'elle. Um Deus cuja mãi se ignora! Sabe-se lá se é filho de Arsinoé ou de Corónida? Que fará do pai! Quem, por estes tempos que correm, pode ter a certeza de ser filho... do pai? (Marcos, ri contrafeito) Estás preocupado?
... Não.
Dos Asclepiades já tive de me servir, o anno[3] passado... para a bexiga. Sabia que eram charlatães; mas o mundo repousa sobre o charlatanismo e a vida mesmo não é senão uma illusão! O que é precizo é saber distinguir as bôas illusões das más. Eu mando aquecer a minha estufa com madeira de cedro, pulverisada com ambar, porque prefiro os perfumes aos máus cheiros. Quanto a Cypris, a quem me recomendaste, devo-lhe o ter coxeado, amorosamente, dois mezes; mas, emfim, é uma bôa deusa a quem espero sacrificarás, em breve, as brancas pombas.
Talvez. Se as flechas dos Parthas me não alcançaram, em compensação, fui tocado pelas do Amôr, d'uma maneira imprevista.
Sim?
A dois passos das portas de Roma.
Pelas Graças! conta-me isso.
Tanto mais que precizo do teu conselho...[4]
É escusado perguntar se o teu amôr é correspondido! (olhando-o) Se Lysias te tem conhecido, ornavas, hoje, a porta do Palatino sob a fórma d'um Hercules juvenil. (Eunice offerece-lhe e põe-lhe o manto)
Por Zeus, que bella escolha! Mais bello corpo não se encontrará nem em caza do Barbas de Bronze, d'esse famoso Nero, teu amigo.
Tu és meu parente... e eu não sou egoista; nem tão austero, como um Aulo Plaucio...! Se queres...?
Como te veio á ideia Aulo Plaucio? É d'elle que te venho fallar.
Estarás, tu, por acaso enamorado de Pomponia, sua mulher? Diabo! Velha... virtuosa... Lamento-te.
Não é de Pomponia. Oh! Não![5]
De quem?...
Nem sei. Nem sei mesmo o seu nome. Lygia? Calina? Chamam-lhe Lygia porque é do paiz dos Lygios; mas o seu nome barbaro é Calina. Estive doente em caza d'esse Plaucio, por um accidente de viagem...
Qual?
Desloquei um pé, n'uma queda do cavallo... É uma caza estranha: cheia de gente e silenciosa como um bosque sagrado. Durante quinze dias, ignorei que uma deusa a habitasse. Vi-a, uma manhã, a banhar-se n'um tanque, sob as arvores. E... juro-te pela espuma d'onde nasceu Aphrodite... os raios da Aurora brincavam atravez do seu corpo! Julguei-a uma apparição, uma sombra que os raios do sol nascente dissipassem, como um crepusculo! Desde então, não tive mais tranquilidade; não tive mais descanso; não tive outro desejo; não vejo outra mulher! Tudo me merece desprezo; o oiro, os bronzes de Corintho... Aborreço os vinhos, os festins; só vejo, só quero Lygia! O mundo para mim é ella... e só ella![6]
É uma escrava de Plaucio? Compra-lh'a.
Não é uma escrava.
Uma liberta, então?
Se nunca foi escrava, como pode ser liberta?
Quem é, pois?
A filha d'um rei.
Hein? Começas a intrigar-me...
É filha de Vanio, rei dos Suévos.
O que teve guerras, no tempo de Claudio?...
Com os sobrinhos; que levantaram, contra[7] elle os Lygios, terriveís na rapina. Claudio, temendo pelas fronteiras, mandou Hister, legionario do Danubio, que vigiasse para que a paz não fôsse alterada. Hister exigiu aos Lygios a promessa de não invadirem a fronteira, e, como refem recebeu a filha e a mulher do chefe.
D'onde sabes, tu, isso?
Contou-m'o Plaucio, elle proprio. Na guerra o rei dos Lygios morreu. Hister ficou com a mãi e a filha. A mãi morreu pouco depois, e Hister para se desembaraçar da creança, mandou-a a Pomponio, governador da Germania e vencedor dos Gathes. Quando Pomponio entrou em Roma, em triumphador, a pequena Lygia seguia o seu carro; mas como era um refem e não uma escrava, Pomponio entregou-a a sua irmã, mulher de Aulo. N'esta caza onde tudo respira virtude, cresceu, tão virtuosa e tão pura, que ao pé d'ella, Poppêa, que passa pela mulher mais bella de Roma, é como um figo do outomno, ao pé d'um pômmo das Hesperides!
E, então?[8]
Repito-te, desde que vi a luz brincar atravez do seu corpo...
Ella é então transparente como uma lampreia...!
Não gracejes, Petronio.
Pois bem, diz-me o que queres, claramente.
Quero Lygia! Quero que os meus braços a apertem; que a minha bôcca respire na sua bôcca! Se fosse uma escrava daria por ella cem virgens! Quero-a, eis tudo! Têl-a, guardál-a, até que a minha cabeça branquêje como a crista do Sorate, no hinverno!
... Se não é uma escrava, é, em todo o caso uma rapariga abandonada. Plaucio póde ceder-t'a, se quizer.
Não conheces Plaucio nem Pomponia sua mulher? De resto, amam-na como filha![9]
Pomponia? conheço: é um cypreste! Tem o ar de quem vive n'um cemiterio. Mas é, diga se, mulher d'um homem só; o que faz que entre as nossas romanas, quatro e cinco vezes divorciadas, seja uma phenix!
Mas... Petronio...
Que queres que te diga, meu caro Marcos? Conheço muito bem Aulo Plaucio, como elle conhece o meu modo de pensar e o meu modo de viver. Se pensas que poderei obter alguma coisa d'elle, francamente, parece-me que te enganas.
O teu espirito é inexgotavel em expedientes...
Exageras.
Todo o mundo te conhece.
Como o rei da elegancia? sim. É o meu reino.[10] Se fosse o da Lygia eu não teria senão prazer em te offerecer a minha filha, bello e amoroso consul.
Não fallarás a Plaucio?
... Não. É inutil. Mas... fallarei a Cezar.
Melhor ainda...
Se Lygia é um refem, Cezar pode dispôr d'ella, pode offerecer-t'a.
Fallar-lhe-has, então?
Sim.
Hoje mesmo?
Hoje... talvez. É precizo esperar occasião de o poder louvar, pelo canto, ou pelos versos, ou pela aptidão de cocheiro, de actôr... A proposito, fazes versos?
Nunca pude arranjar um hexametro.[11]
Não tocas cithara, nem alaúde?
Não.
Não guias um carro?
Tomei, uma vez, parte n'umas corridas em Antiochia; mas fui infeliz.
Bem. Estou descançado a teu respeito. O melhor é não fazer nenhuma d'essas coisas e admiral-as, muito, nos outros... sobretudo em Cezar. És bello e Poppêa pode agradar-se de ti. É um perigo. Nero não t'o supportaria. É verdade que Poppêa está uma mulher experiente: d'amôr os dois primeiros maridos saciaram-na; Nero é para outra coisa.
Que é feito de Othon?
O terceiro? O pobre homem ama-a ainda loucamente. Anda a choral-a sobre os rochedos da Hespanha. E, dizem, que de tal modo perdeu os[12] habitos da galanteria, que hoje, com o penteado, só gasta tres horas por dia!
Eu, no caso d'elle, fazia outra coisa.
O quê?
São valentes e duros soldados os da Iberia! Recrutaria umas legiões fieis...
Marcos, Marcos! Essas coisas fazem-se, mas não se dizem, nem como hypotheses... Eu, no logar d'elle, rir-me-hia de Poppêa e de Nero: arranjava uma legião, mas não era de homens, era de mulheres!... (Eunice entra com um frasco.) Ah! a verbena. (deita nas mãos e esfrega as fontes) Não imaginas como isto vivifica, dá fôrça!
Mas... Lygia...
Sim, homem, descança.[13]
Não posso, Petronio. Se eu não consigo comer nem dormir! Vou passeiar um pouco pela cidade, mover-me, andar, distrahir-me...
É verdade, tu não fizeste a barba, hoje!
Nem hontem!
Tens febre. Escuta. Eu não sei o que te prescreveria um medico, um d'esses asclepiades; mas sei o que eu faria no teu logar. Sim... eu sei o que é o amor, e, que quando se deseja uma mulher, nenhuma outra a póde substituir! A belleza, porém, encanta sempre; e uma bella escrava...
Não, não quero.
A novidade faz esquecer... por um novo desejo... (Pondo a mão no hombro de Eunice, que lhe offerece, de novo a verbena) Repara, um pouco, n'esta filha de Cós. Ha dias, o joven Fonteio offerecia-me por ella tres admiraveis éphebos: tres[14] maravilhas dignas do pincel de Scopas! (olhando-a com interesse) É curioso; como não dei ha mais tempo pelos seus encantos? No entanto, dou-t'a, leva-a.
Não, não a quero: não quero ninguem! Obrigado. Vais d'aqui ao Palatino, ao palacio de Cesar?
Vou.
Bem... Voltarei mais tarde. Vou á outra margem do Tibre...
Não. Vais almoçar comigo. Eunice?
Meu senhôr.
Tomarás o teu banho: ungirás o teu corpo, com os melhores perfumes, e irás para casa de Marcos Vinicio.
Ó, meu senhor, não! Não me façais sahir da[15] vossa casa! Prefiro ser, aqui, a ultima das vossas escravas! ser açoitada todos os dias, contanto que me não deis a ninguem! Não posso, tende piedade de mim! Não posso! não posso!
Hein?
Repito-vol-o, senhôr. Não irei para caza de Marcos Vinicio. Não sahirei de vossa casa. Tende piedade! Sêde bom, como sois!
Vai chamar Teirésias. (Eunice sahe)
Petronio, eu não a quero. Nem a ella nem a nenhuma. Deixa...
Uma escrava!
Perdôa-lhe.
Leva Eunice, e dá-lhe quinze chibatadas. (baixo) Com geito para lhe não estragares a pelle. (a Marcos) O que lês?[16]
O teu livro: o Satyrikon. Já não fazes versos?
Não. Desde que Nero é poeta e os faz... É perigoso.
Se amasses!
Hoje? Ser-me-hia precizo encontrar... uma Lygia.
Uma deusa! Alcançar-ma-has, Petronio?
Será tua. Quanto se pode responder por Cezar, respondo.
Tu és filho de minha irmã e por isto me foste sempre muito caro; mas, agora, collocarei, nos meus lares, uma estatua tua, (indicando a estatua de Petronio) tão bella como esta e offerecer-lhe-hei sacrificios. (vendo a) Tu és verdadeiramente bello, Petronio! Se Páris era assim, Helena teve razão na escolha.[17]
Chamam-me o Rei da Elegancia, Marcos. (Eunice entra de semblante alegre) Recebeste as chibatadas?
Sim, meu senhor, quinze, só!
Só! (a Marcos) Não comprehendes?
Não.
Comprehendo eu. (a Eunice) Tu tens um amante, aqui?
Sim, senhor! (inclina a cabeça)
Quem é? (Eunice inclina mais a cabeça, silenciosa) Quem é? (repara na mulher) Hei-de sabêl-o. (a Marcos) Vamos almoçar. (Pôe-lhe a mão sobre o hombro, olha com interesse Eunice) Vamos. (Sahem)
(Eunice deixa-os sahir. Levanta se. Toma por disfarce o frasco da verbena e, fingindo sahir, espreita. Não vendo[18] ninguem, volta, toma a cadeira onde se sentou Petronio; colloca-a ao pé da estatua; sobe, abraça o marmore e, ao mesmo tempo em que os cabellos loiros lhe cahem pelas costas, colla os labios aos labios da estatua).
O PANNO DESCE[19]
Triclinio. (Caza de jantar no palacio de Néro.) No 1.º plano tres mezas, em ferradura, com os competentes leitos e cadeiras. Á esquerda uma balaustrada que se suppôe dar para uma escada, inferior, de entrada. As mezas estão promptas: os tocheiros accesos. Grande movimento de escravos, até á chegada dos convivas. Entram Lygia e Actêa.
Dize-me, minha bôa Actêa, é bem certo que, Néro, Cezar, matou a mulher, a mãi, o irmão?
É certo... e quantos outros!
E, dizias-me que o amavas?
Conhecí-o, moço, bello e generoso! É sempre[20] essa imagem, esse Néro que eu vejo. O outro, o que fizeram os mestres, os aulicos, os amigos, os senadôres, o proprio povo, esse não o conheço. Esse pertenceu sempre a outra mulher, cujo dominio se firmou no sangue: esse é de Poppêa, a divina!
Como eu tremo de estar, aqui! Daria tudo por me vêr de novo em caza de Pomponia: ou na campina de Rôma, só, abandonada que fosse. Se eu pudesse... se tu pudesses, generosa Actêa, proporcionar-me a fuga!
Eu t'o repito, Lygia: era a tua morte e a dos teus. A vontade de Cezar é absoluta! Approuve a Cezar chamar-te, és uma coisa sua, na vida e na morte!
Uma coisa...!?
Tenho lido, tambem, as cartas de Paulo de Tarso, e ellas dizem que, lá em cima, ha um Deus cujo filho morreu por nós! Mas sobre a Terra não ha senão um Deus: é Cezar! A tua doutrina prohibe-te de seres o que eu sou...[21] uma concubina!... e manda-te preferir a morte á deshonra—como os estoicos de que me fallou tanta vez, Epicteto...
Sempre!
Quando uma possa evitar a outra. Ignoras os recursos d'um Cezar. A filha de Sejano, uma creança de doze annos, foi condenada á morte. A lei prohibe que as virgens possam soffrer tal pena. O que imaginas que resolveu, Tiberio?
Eu sei!
Mandou-a violar, primeiro, por um escravo e matou-a depois!
Que horrôr!
Reflecte. Não irrites nunca os tyranos. Os deuses da Terra são sempre sanguinarios. És bella, nova, e tão bôa...! Sê cautelosa e espera no futuro. Eu te protegerei, aqui, quanto pudér.
Como tu és bôa, Actêa![22]
Sem alegria e sem felicidade, é certo;... mas não sou má. «Elle» tambem o não era.
Lamenta-l'o?
Se te digo que o amo, ainda! O teu Deus não morreu por amôr dos que o mataram?
E, perdoou-lhes.
O amôr é o perdão. (Como subindo a escadaria e voltando a entrar no salão, no 2.º plano, começam a entrar os senadôres de togas bordadas nas bandas, sandalias ricas, tunicas de côres. Mulheres vestidas e penteadas á Grega ou á Romana, as cabeças coroadas de flôres, etc.)
Que de gente sobe.
Os convivas que chegam.
Salve, Actêa!
Salve, divina Actêa![23]
Salve, Séneca!
Quem é este velho, de grave aspecto?
É Séneca, o filosofo, mestre de Néro. Um filosofo que manda desprezar as riquezas e fez, em quatro annos, uma fortuna de quatrocentos milhões de cestercios!
E, o companheiro?
É tambem filosofo; mas bom: um estoico.
Como se chama?
Musonio.
Salve, Actêa!
Salve! (a Lygia) Tigelino o infâme, o corruptôr, o valido de Néro. O que fornece as orgias e os venenos!
E, a mulher?
Calvia; a mais impudica das, cortezãs, de Roma. Cinco vezes divorciada.[24]
Que os deuses te conservem sempre a belleza e o coração.
Salve. (a Lygia) Lucano o poeta e Nigidia a amante.
É tão novo.
E é bello; mas Cezar odeia-o. Os seus versos são melhores do que os d'elle e Cezar não perdôa. A sua vida não vale uma moeda d'oiro.
E elle sabe-o? e, arrisca-se, aqui?...
É uma creança. (Entra Crispinilla, com Pitagoras.) Crispinilla a devassa, cheia de incestos...
E o mancebo? aquelle adolescente?
É Pitagoras, o éphebo favorito de Néro.
Como favorito? Ama-o muito?[25]
Sim... Ama-o, muito! (Um grupo de homens e mulheres passa e comprimenta de longe, sem grande respeito). Senécion, Vitelio, Domicio... Vês como me comprimentam, de longe? Houve tempo em que teriam vindo comparar-me ás Deusas e beijar me os pés! São os cortezãos de todos os tempos. (O grupo sobe)
Onde vão?
Dizer a Poppêa, a divina, o que em tempo me disseram a mim!
Como tudo isto faz mêdo!
E asco! (Entram, conversando, Petronio e Marcos Vinicio. Petronio vai para os grupos; Vinicio vê Lygia e desce). Petronio e Marcos Vinicio. Estes conheces de certo.
Marcos!
Á mais pura das virgens da Terra, á mais bella das estrellas do Céu, á divina Lygia, salve!
Salve, Marcos Vinicio.[26]
Salve, Actêa. Por Vénus, sois ainda a mais bella mulher do palacio de Néro.
Cuidado, Marcos Vinicio, que se arremedais vosso tio, no galanteio, não tendes como elle a faculdade de que Néro oiça pelos vossos ouvidos e falle pela vossa bôca.
O louvor é tão perigoso em Caza de Cezar?
É que dirigido a mim pode parecer epigrama.
Felizes os meus olhos que te comtemplam: os meus ouvidos que escutam a tua voz mais dôce do que as citharas e as flautas!
Como fiquei bem, ao vêr te! Que mêdo tenho de estar aqui! Sabias que me encontravas?
Sabia e todavia ao vêr-te senti na minh'alma um extranho e novo prazer![27]
Como sabias?
Disse-m'o Aulo Plaucio.
Como estará! e os seus! E porque estou eu aqui?
Por mandado de Cezar.
E para quê?
Cezar não dá conta, a ninguem, dos seus actos.
Nada d'isto é natural, Marcos. Conhecia-me, acaso Cezar? Tenho o presentimento de desgraças! Tu és bom: leva-me para caza dos Plaucios, a caza onde eu vivi tranquilla e tão feliz! Faz-me mal este ruido, esta gente toda. Porque me arrancaram do pequeno jardim onde brincava com Aulo? O que me convem a mim é o socêgo e a obscuridade. Não nasci para festas e para jantares! e, aqui, no palacio de Néro... tenho mêdo, leva-me![28]
Acalma-te! Estou ao pé de ti. Nada pode acontecer-te. Amo-te, não o crês?
Sim, Marcos.
E, tu m'o disséste, tambem, n'esse jardim, onde brincavas com o pequeno Aulo. E, eu não ouvi nunca mais outra voz; não vi outro olhar senão o teu; não pensei, não tive outro querer, outra vontade senão a ti.
O socêgo entra na minh'alma com as tuas palavras, generoso Marcos!
Tu és a minha felicidade, ó mais bella do que Vénus! A minha felicidade completa, inegualavel; porque nem Cezar, nem nenhum Deus, póde sentir maior alegria do que um mortal (abraça-a, delicadamente) que sente bater contra o peito um peito querido! Assim, ó Lygia, o amôr nos eguala aos Deuses!
A tua palavra é como a luz, que afugenta as trévas e dissipa os terrôres. Entrego-me a ti.[29] Restitue-me aos meus. Pomponia, a casta, amar-te-ha como se fôsse tua mãi: abençoar-nos-ha e seremos felizes! Por ella e pelos seus te agradeço o prazer que lhe darás; e, por mim, Marcos, amar-te-hei até ao fim da minha vida.
(Na sala do fundo, onde estão, tambem, mezas visiveis, rompe a orchestra de citharas, flautas, harpas e timbales. Os escravos serventes entram dos lados)
Vem Cezar. (Vai a querer subir)
Não me deixes, só!
Não. (Actêa, desce) Aqui tens Actêa... Eu volto já. (Sobe.)
Oh! Actêa! (agarrando-lhe a mão)
Que tens?
Foje-me a vista.
Serena-te (beijando-a) Isso passa!
(Néro apparece ao fundo. Á maneira que passa, a multidão aclama-o. Começam a cahir flôres do tecto até ao fim do acto. Os escravos trazem brazeiros e deitam-lhe myrra. Gritam)[30]
Avé, Cezar!
Avé, Jupiter!
Avé, divino Cezar!
Salve, divino!
Olympico!
Hercules!
Immortal!
Á meza! (Os homens deitam se nos leitos. As mulheres occupam leitos e cadeiras. Os escravos enchem as taças de vinho que veem em baldes com gêlo: outros servem a comida. A orchestra toca mansamente. Néro, reclinando-se no leito, coroado de rosas): Petronio, dir-se-hia que entoei um dos meus hymnos!
É a condicção dos Deuses. A sua presença basta para arrancar as saudações dos homens.
Estas? Que significam? Os romanos são verdadeiros selvagens. Não me entendem. Lembras-te do meu apparecimento em Napoles?
Que noite!
Que noite de gloria! Nunca sentirei mais, na[31] minha vida, uma impressão egual! Chorei! Lembras-te, Petronio?
Como um mortal! E, desmaiaste, até, nos meus braços, exclamando: «Onde ha triumpho comparavel ao meu?! Eis o que são os Gregos! eis a Grecia!»
Comprende-me a Grecia. Em Roma, sei-o bem, chegam a censurar-me por cantar em publico; como se a arte divina pudésse manchar a purpura dos Cézares!
Voltaremos?
Certamente. Tu sabes que as profecias me dão a soberania do Oriente e do Egypto. Fundarei alli um imperio luminoso de arte, de sol, de poesia, de realidade transformada em sonho, de vida transformada n'um perpetuo gozo! Quero esquecer Roma e collocar o centro do mundo entre a Grecia, a Asia e o Egypto. Viver a vida, não dos homens, mas dos Deuses. Vogar atravez do Archipélago, em galéras d'oiro, á sombra de vélas de purpura, embriagar-me de sol, de poesia! Ser, ao mesmo tempo, Apollo e Osiris! Reinar ... viver... sonhar...![32]
Eis o sonho d'um Cezar!
Uma realidade! No Egypto levantarei monumentos, ao lado dos quaes as pyramides hão-de parecer brinquedos de creanças! Farei construir uma esphinge, sete vezes maior do que a de Memphis, que olha para o deserto, semelhando-a a mim! E, os seculos futuros não fallarão d'outra coisa: do monumento e de Néro!
Pelos teus versos tu te erigiste, já, um monumento, não sete, mas setenta vezes maior do que a de Chéops.
E, pelo meu canto?
Se tu pudésses levantar uma estatua,—como a de Memnom—, que ao nascer do sol o fizesse ouvir, durante seculos, os mares do Egypto coalharam-se-hiam de navios, onde as multidões, das tres partes do mundo, viriam embriagar se, esquecer a vida, ouvindo a tua voz!
(Néro, radiante, bebe e todos o acompanham)[33]
E... emfim, desposarei a Lua, que é viuva, e serei verdadeiramente um Deus!
E, cazar-nos-has com as estrellas, para formarmos a constelação de Néro! (A Vitelio, gordissimo, que está de pé, na meza do centro, de taça em punho, ébrio) Cazarás Vitelio com o Nilo para gerarem hipopótamos.
E a mim, que destino me dás?
Cezar pode dar-te o deserto e serás rei... dos chacaes.
Insolente!
(Cezar falla em segredo com Petronio. De repente pôe no olho uma esmeralda e olha Marcos e Lygia. Marcos diz segrêdos amorosos, todo curvado.)
Como eu te amo, Lygia! (apertando-lhe o pulso)
Deixa-me, Marcos, fazes-me mal.[34]
Oh! divina, ama-me muito! (beija-lhe o pulso) muito!
Cezar está a olhar-vos.
Que me importa?
Tu brincas com a vida, Marcos; não bebas mais.
O Phalerno é tão dôce e Lygia tão bella! (Offerece-lhe a taça; Lygia recuza; Marcos bebe)
Petronio, quem é a dama que se senta ao lado de Marcos Vinicio?
A rapariga... o refem que mandaste buscar a caza dos Plaucios.
Ah! De que povo é?
Dos Lygios.[35]
Deve ser bella... Vinicio enche-a de galanteios.
Cobre um tronco velho d'oliveira com um vestido feminino e Vinicio achal-o-ha admiravel. A mocidade! Muito magra. Uma cabeça de dormideira n'um pé esguio. A ti, estheta divino, que prezas na mulher sobretudo a haste, aposto—por muito difficil que seja julgar das proporções d'uma mulher sentada—aposto que já lhe viste o defeito?...
Não tem ancas.
Nenhumas. (malicioso)
Não sei o que questionavas, mas sou da opinião de Cezar.
Fazes bem. Eu estava dizendo a Cezar que tu tinhas uma certa inteligencia: Cezar affirmava que eras estupido como um burro! (gargalhadas)[36]
E está dito!
Seja como fôr, eu creio nos sonhos. Séneca um dia disse-me que tambem acreditava... como Plinio.
Sim? Pois a noite passada sonhei que era Vestal.
Bravo!
E, então? São todas velhas e feias, as vossas vestaes. Só Rubria tem fórma humana. Assim, ao menos, seriamos duas. Ainda que Rubria, na primavera, tem a pelle cheia de manchas rôxas.
De que são?
Ella é que sabe... e os médicos.
É o abrir dos botões. Flôres do amôr![37]
Calvia, onde deixaste a cabelleira loira, das... vestaes?
Tu és um impertinente.
Não era o que me chamavas, uma noite, no lago d'Agripa.
És capaz de dizer que te não resistí, satyro? Que não estiveste a meus pés?
Para os encher d'anneis. (Calvia olha instintivamente os pés: todos riem)
O meu annel. (rí estupidamente)
De que diabo rí esta barrica de cêbo?
O riso é proprio do homem. Vitelio quer provar-nos que não é um porco.[38]
O annel... perdí o meu annel de cavalleiro... O annel que me veio de meu pai...
Que era sapateiro.
Vitelio, rindo parvamente, procura o annel no colo de Calvia.
Que queres? O atrevido.
Elle não perdeu o que procura.
E... ainda que o ache não será capaz de o usar.
(Os escravos reenchem as taças. Ouvem-se vozes. Vinho. Phalerno.)
O jantar durará muito, ainda, Marcos?
Inda agora começou. Não estás bem?
Sim... mas... morre-se com calor... com os perfumes...[39]
Toma o meu leque. Queres um vinho geládo?
Ó não. Queria sahir.
É impossivel.
Néro, que tem estado a comer e beber bem e a conversar com Petronio, levanta-se. A musica emudece. Terpros e Diodoro, correm com as citharas. Néro faz gesto negativo.
Pela arte e pela humanidade!
Não estou em voz. Onde está Poppêa?
Doente; não pode vir.
Chamai-a (o escravo sahe)
Faze desta festa um festim, divino Cezar: canta![40]
Cezar, não sejas implacavel.
Não sejas implacavel!
Sê magnanimo, Cezar!
O meu medico prohibiu me de cantar, hoje.
Poupa a tua divina garganta, Cezar. Que seria de Roma e da Grecia se a tua voz se enublasse!
Recitarei o meu hymno novo. Se, mais tarde, puder, cantarei.
Graças, Cezar.
Entra Poppêa, sumptuosa e bella.
Salve, divina Augusta! Salve, ó Deusa! Salve, divina![41]
Um momento, bella Poppêa. Vou recitar o meu novo hymno a Vénus. Precizo de têl-a diante.
Ó Marcos, é possivel! Poppêa, a sanguinaria, é esta mulher de uma belleza divina?!
Sim, é bella; mas tu és cem vezes mais! Bebe um golo, para que eu ponha os meus labios no sitio dos teus! (Offerece-lhe a taça, que Lygia recusa)
Faz-se silencio profundo. Musonio, o poeta, encosta-se a uma cadeira e adormece, emquanto Nero recita. Este vê-o.
Embalde pretendi deixar a escravidão,
Que nos impôe o amôr!
A Deusa luminosa
Que accende, em Chypre, o facho da paixão
Por sobre a humanidade; altiva, desdenhosa
Arrancou-me do peito o coração,
E foi depôl-o aos pés, da mais formosa
Das Romanas, Poppêa, a minha amada!
Da Vénus Aphrodite a incandescente lava
Passou pela minh'alma!
As intimas ternuras,[42]
Só pode soluçar a minha lyra escrava
Do seu divino olhar, das calidas alvuras
Do seu colo de neve, da bôcca onde os Prazeres
Moram em ninho rubro entre desejos...
Uma lyra que chora a pedir beijos!
Vem, amada Poppêa, e escuta a Deusa:
Sê como ella, de quem tens a fórma,
Caritativa e dôce!
Abre o teu leito
Aos segrêdos do amôr, ao eterno gozo!
Eu sou um Deus! que troca a divindade,
Do mundo o senhorio, a magestade,
Pelo logar do esposo!
Ó poeta divino! Salve!
Ó voz divina!
Ó immortal!
Ó Jupiter!
Ó artista divino!
Ó resplandecente!
Salve! Salve! Salve!
Obrigada, Cezar! (sahe)
Mulheres choram, homens fazem gestos exagerados de espanto: o éphebo Pitagoras vem joelhar-se ao pé do leito de Néro e fica. Sentam-se de novo alguns convivas, outros ficam de pé.[43]
A Cezar olimpico! (Todos bebem)
Petronio?
Os versos são admiraveis. Lucano deve estar amarello de inveja! Querel-os-hia peores, para poder fazer-lhes um elogio que os valesse.
Maldito o destino que me fez contemporaneo de Cezar! Elle me eclipsa como a luz do sol a luz d'um candieiro!
Faze-me dormir Musonio, o estoico, por uma vez.
Lentamente?
Não.
Musonio adormeceu emquanto Néro recitava!
É um crime?[44]
De lesa-magestade.
E vão acordal-o?
Para dormir outra vez... para sempre!
Eh! Musonio? eh! filosofo?
Que é? Que queres? Maldito cão!
Cezar, chama-te. (Musonio, levanta-se)
O quê sonhavas?
Que Cerebero me ladrava, raivosamente.
Tu vês, Vatino, é preciso acreditar nos sonhos.[45]
Petronio brindou a Cezar olimpico. Todos beberam; faltas, tu!
Musonio, percebe, e hesita em pegar na taça.
Vamos: a Cezar olimpico.
Musonio, olha Cezar, que o fita com a esmeralda; bebe, vacila e cahe morto.
Que horrôr!
Dois escravos levam-no
Tem coragem. Senta-te.
Os gladiadôres? (Entram Croton e Timon) Croton, não te esqueças de que és o mestre da minha escola. E tu, Timon, mostra-nos, se podes, como se substitue um mestre.
Os gladiadôres luctam. O interesse cresce.
Bravo, Croton.
Bello grupo para marmore.[46]
Bravo! Timon.
Que bellas fórmas!
Vestal, silencio!
Não é uma bella arte?
A mais bella, depois do canto e da musica.
Hei-de de experimental-a, tambem.
Sereis invencivel!
Croton dominou Timon. Agarra-lhe a garganta e vai estrangulal-o.—Á voz de Néro: abraça-o e ergue-o.
Alto! Bravo, Croton! (applausos) Exercita-te, Timon. Por momentos tiveste a victoria. Tens qualidades. Vai e não te esqueças de que me deves a vida.[47]
Ella é vossa, divino Cezar!
Dai-lhe de beber. E, a mim; por Bacho, que não hei-de engulir a sêco esta aza de pavão de Samos. (deitam-lhe vinho) Que comes, tu, Calvia?
Una bocado de cabrito de Ambracia.
Estás em familia! Petronio, estás triste? A tua vista tem fome de graça e de belleza. Tigelino, mostra-nos a graça assyria.
Tigelino sobe. Ouve-se o côro bachico. Dançarinas assyrias, semi-núas, de cabeças ornadas de flôres, envoltas n'um véu ligeiro, braços e tornezellos com braceletes d'oiro, entram dançando com o côro. Os convivas comem e bebem, conversando em segrêdo. Côro e danças esmorecem lentamente. Os escravos dão vinho ás bailadeiras. Algumas sentam-se. Todos estão bebedos, excepto Lygia e Actêa. Durante as danças as luzes das salas esmorecem.
Eu creio nos Deuzes. Dizem que Roma ha-de morrer! Ha quem diga que ella morre já! A falta[48] é dos rapazes que não tem fé e sem fé não ha virtude.
Quem é que diz de Roma vai morrer?
Os filosofos.
Má raça, essa, dos filosofos.
Não ames nunca um filosofo, Nigidia! Ama os poetas. A filosofia é uma adega cheia de ôdres... os filosofos. Quanto mais ôccos, maiores são. Disse-o não sei se Epicteto.
Nunca disse isso, Epicteto.
Não? Pois podia dizel-o; porque disse tolices muito maiores. Então, digo-o eu.
Não, Roma não morre! Teriamos de morrer todos! Nunca mais beber vinho! (chora sobre o colo de uma bachante.)[49]
Não chores, imbecil... que te fazes feio. Dorme antes. (empurra-o levemente. Elle cahe debaixo d'uma meza e fica.)
Eh! lá, Bachantes, aqui está um Fauno!
Pitágoras, vem cá! (a Petronio) conheces alguma coisa mais bella? (beija as mãos do éphebo) Hei-de cazar comtigo! Mãos tão bellas, nunca vi. Vi... já... quando? (lugubre) Eram de... minha mãe! (pausa e espanto) Eram de minha mãe... Sim, d'Agrippina! (baixo) Dizem que pelas noites de luar pelas aguas da Baïa... vagueia como que á procura... não se sabe de quê! Se encontra uma barca desapparece; mas o pescadôr que a viu, morre!
Nos Deuses não acredito... mas nos espectros... sim. Nos espectros!
E, todavia celebrei, grandiosamente, aos Deuses tumulares! Não a quero vêr... Cinco annos![50] cinco annos! Matei a, mas fui forçado a isso! Matava-me ella, se não o faço! Se eu tivesse morrido não me tinheis ouvido, hoje!
Graças, Cezar, por nós, pela cidade, pelo mundo!
Não a quero vêr! (gritando) Vinho! e que esses timbales rujam!
Eu sou um Fauno! É é é... cho... ó ó ó. Os faunos amam as florestas! Nos jardins de Néro ha bosques profundos! Nigidia, levanta-te... acorda... vamos para o bosque!
Tem razão Lucano; abraza-se, aqui! Vamos para os jardins! Agora, sim, agora, vou cantar. Trazei vinhos! Terpnos, Diodoro, as citharas. (obedecem) Quero dançar tambem. E archotes... quero luz... muita luz... tudo bem claro, que a não quero vêr!
Quem?[51]
A mulher das mãos brancas... como as de Pitágoras! (reparando em Actêa que acabou de fallar com Ursus o gigante que fica atraz de Marcos e Lygia) Ó bella e generosa Actêa! dá-me o teu braço. Vou cantar, para ti, uma canção á Lua! Á casta Lua, serena como tu, velada e meiga!
Senhôr, sou a vossa escrava.
Não; és uma estrella do meu céu! Um comêta que só apparece, de longe em longe! (sobem todos)
Dá-me os teus labios! Hoje ou amanhã... que importa? Para que esperar? És minha! Cezar roubou-te para mim!
Marcos...
Para mim! Ha quanto te quero! Um dia em caza dos Plaucios, vi-te no banho... núa! Não o sabias? Como és bella! Sahias da agua como a[52] Vénus das espumas... Um sonho! Pedi-te a Cezar que te mandou buscar... Amanhã vaes para minha caza... Dá-me os teus labios! (força para beijal-a) Dá-mos, já, agora.
Marcos, não te conheço... tem piedade!... não, nunca...!
Piedade? não; amôr! És minha, quero beijar-te... quero a tua bôcca! Dá-m'a! (agarrando-lhe brutalmente a cabeça) Ó dá-m'a, por Jupiter! ou...
O escravo Ursus agarra-o pela cinta e atira-o sobre o leito.
Es tu? (atira-se-lhe ao colo e fica suspensa)
Não tenha mêdo... sou eu! (leva-a a colo)
Lygia! Lygia! (vai a querer seguil-a, e cambaleia) Por Hercules! (ampara-se a uma assyria que bebe) Que é? que foi?[53]
Um sonho! Bebe!
Marcos bebe e cahe sobre o leito.
Eis os senhores do mundo! (sahe, levando Lygia).
No jardim ouve-se a musica. As luzes esmorecem. Um ou outro bebedo levanta a cabeça aos sons da orchestra e torna a deixal-a cahir. As rosas sahem sempre. O panno desce, lento.
FINAL DO 1.º ACTO[54]
[55]
Caza de Vinicio. O tablium ornado com flôres. Perfumadôres no chão.
Estavas bebedo, hontem. Não gostei de te vêr. Andaste como um carroceiro dos montes Albanos. Não sejas nunca tão sôfrego. Lembra-te que um bom vinho deve ser bebido lentamente. Porque escravo a mandaste buscar?
Por Altacino.
É de confiança?
Da maior. (passeia agitadíssimo) Que demora![56]
E, faze por lhe alcançares as bôas graças. Pôe-na de bom humôr, para lhe destruires o máu effeito das brutalidades de hontem.
Que demora!
Sê generoso, que ella merece-o. É bella! Sê magnanimo!
Deviam, cá estar, ha meia hora.
De certo. Queres tu, para matar o tempo, que te falle das prophecias de Appolonio de Tyana, ou das maximas de Aristóteles, meu mestre, o estheta maximo?
Não... Deviam já ter chegado.
Está dito... Deviam já ter chegado.
Malditos escravos. Teem as pernas ankilosadas[57] por falta de exercicio. Terei de os fazer correr diante das varas.
Elles não são o amante que espera. Tu não tens paciencia, nem serenidade. É precizo ser distincto, sempre! E, depois, não se traz assim uma princeza, uma filha do rei da Lygia.
Tu zombas?... se fôsse comtigo!
Agradeceria aos Deuses o fazer-me prelibar, mais amplamente, uma posse divina.
A demora não é natural... Eu vou vêr...
Não percas a tua bella linha esthetica. Espera; não sejas vulgar. (ouve-se ruido) Tanto mais, que me parece que chegam. (o ruido augmenta. Á porta apparecem quatro escravos. Dois d'elles com os rostos ensanguentados)
Onde está Lygia?[58]
Ai, Senhôr!; ai, Senhôr!
Onde está Lygia? (avança furioso)
Vê o sangue, Senhor! Vê o sangue!
Defendêmo-la, até á ultima.
Que é d'ella?
Raptaram-na!
Ah! miseravel. (atira-lhe uma taça á cabeça) Gulon?
Senhôr.
Cem varadas a cada um.
Senhôr, piedade!
Até a morte! (os escravos sahem, em grita, adiante de Gulon)[59]
Está doido! Vamos ter carnificina. Repugnam-me os talhos. Vale. (sahe)
Mas quem poderia roubar-ma? Quem? Plaucio? Ai d'elle, se o foi! Ai d'elle!... Pedirei a Cezar a sua morte!... E, se foi Cezar? Pelas furias! se foi Néro n'uma das suas nocturnas «pescas de Perolas,» como elle lhes chama?! E, quem podia ser senão, elle, Néro? Quem ousaria oppôr-se á sua vontade? Viu-a hontem, apeteceu-lhe... roubou-ma! Cezar diverte-se comigo! Por Écate, por Érebo, por vós ó Deuses do lar, (toma terra n'um vaso e espalha-a pelo o chão) juro que quem quer que foi, escravo ou imperadôr, mendigo ou Cezar, mato o! (ao introductor, que apparece) O meu manto.
Actêa deseja fallar-vos.
Actêa? Em bôa hora. Venha. (A Actêa, que entra, agarrando-lhes as mãos) Onde está Lygia?[60]
Vinha perguntar-t'o.
Não sei; roubaram-ma no caminho. (junto do rosto d'Actêa, com os dentes cerrados) Actêa, se tens amôr á vida, se não queres ser causa de desgraças, cujo alcance nem podes conhecer, diz-me a verdade: foi Cezar quem m'a robou?
Cezar não sahiu hontem do palacio.
Pela memoria de tua mãi, por todos os Deuses, Lygia não está no Palatino?
Pela memoria de minha mãi, Lygia não está no Palatino, nem foi Cezar quem t'a robou.
Então foram os Plaucios! Ai d'elles!
Aulo Plaucio procurou-me, hoje, a saber de Lygia.[61]
Hypocrisia! Se não soubesse d'ella ter-me-hia procurado a mim.
Tambem procurou.
A mim?
De manhã.
Não o vi, nem me fallou.
Os teus servos contaram-lhe o acontecido. (Pausa) Não, Marcos, o que aconteceu, aconteceu por vontade de Lygia.
Tu sabias que ella queria fugir?
Sabia que ella não consentiria em ser tua concubina!
E... tu? que tens sido toda a tua vida?[62]
Eu?... És pouco generoso! Eu era uma escrava!
Seja como fôr. Cezar deu-ma! Descobril-a-hei nem que seja debaixo da terra. Farei d'ella o que eu quizer! A minha concubina... porque não? A minha concubina! Nem que seja precizo chicoteal-a, de dia e de noite! Dal-a-hei, ao ultimo dos meus escravos! Mandal-a-hei atrelar a um moinho da costa d'Africa. Procural-a-hei, eu. Procural-a-ha Cezar, inda que seja precizo empregar todas as legiões.
Tu deliras...! Tem cautella em não metter Cezar, na busca, porque te arriscas a perdel-a para sempre, no dia em que elle a achar.
Como?
Ouve, Marcos. Hontem, antes de jantar levei Lygia, para a distrahir, a passeiar nos jardins. Encontrámos Poppêa e a pequena Augusta, sua filha e filha querida de Néro, nos braços da ama negra. Á tarde a creança cahiu doente e Lilith,[63] a ama, diz que foi a estrangeira que a enfeitiçou! Se a creança melhora, tudo esquecerá: se peóra Poppêa será a primeira a accusar Lygia de feiticeria e, encontrada, não terá salvação!
Talvez que ella enfeitiçasse a creança... e a mim tambem!
A negra diz que a pequenita se pôz a chorar logo que passou por nós. É certo, ouvi. Mera coincidencia. Procura-a; mas antes das melhoras da creança não falles de Lygia. Seus olhos choraram, bastante, de mais... por ti!
Por mim? Disse-t'o ella?
Eu o vi. As suas lagrimas eram sinceras e a sua dôr sentida. Como velei por ella no palacio de Cezar, quiz valer-lhe, se pudesse, ainda, junto de ti.
Como?
Invocando a tua generosidade para ella.[64]
Zombas de mim: se não sei onde pára...
Ainda o podes saber: deixa-a em paz.
Não posso.
Desposa-a.
Nunca!
Não é uma escrava, é um refem de guerra: os refens são sagrados.
Concorreste, já vejo, para o rapto?
Talvez.
Contra, Cezar.
Não; contra ti.
E, dás-lhe razão?
Defendo-a.
Tu ama-la?[65]
Quanto ella merece.
Porque te não paga, como a mim, o amôr com o desprêzo.
Homem cégo, ella amava-te.
A mim? Que amôr é esse que prefere a vida errante, a indigencia do dia seguinte e talvez uma morte miseravel, a uma vida de riquezas e de alegria? Que amôr é esse, que tem mêdo do prazer e sêde dos sofrimentos? É que ella me odeia, do coração!
Como imaginaste captival-a? Em vez de te inclinares diante dos seus pais adoptivos, os Plaucios, e de lh'a pedires para esposa, por surpreza, roubaste lh'a. Era a filha d'um rei, quizeste fazer d'ella a tua concubina! Feriste-lhe os olhos inocentes com o espectaculo da orgia, sem comprehenderes que aquella creança candida preferiria a morte á deshonra! Sabes tu quaes são as suas crenças? sabes que Deus adora? e se esse Deus não é melhor[66] do que essa Vénus impudíca e essa Isis que os Romanos veneram, no seu impudôr? Que te importou tudo isto? A pobre creança, quando fallava de ti, córava: amava-te! Como lhe pagaste a aspiração pura do primeiro amôr? Enchendo-a de espanto, tratando-a como a uma escrava, insultando-a!
Eu não a insultei!
Generoso senhôr... vilmente! Venceste os Parthas, tu? Que é agora um coração de mulher para um famoso guerreiro? Enganaste-te: é mais facil vencer os barbaros. Amava-te; é possivel que te despreze, agora!
Que me importa? Amo-a eu; quero-a, hei-de tel-a.
Se ella te não amar, essa satisfação deve ser bem mesquinha. O amôr de dois é um misterio divino: o de um só: uma torpeza! Nobre consul, adeus![67]
Salve, divina Actêa.
Salve, galante Petronio.
Dou-vos graças pela bondade com que tratastes Lygia.
Fiz o meu dever. Ella tem a candura d'uma virgem e a graça das pombas...
Que vôam.
Officio de quem tem azas. Adeus. (sahe)
Sabes alguma coisa de Lygia? Actêa a que veio?
Saber d'ella... Não sahiu da cidade. Os meus escravos vigiam as portas. Ella ou o tal gigante, hão-de apparecer.[68]
Tens sorte em que não seja Cezar o raptadôr. Trago-te uma boa nova.
Qual?
Eunice, a minha escrava,—desde hontem que reparo que é verdadeiramente bella!—conhece um homem capaz de a descobrir.
Quem é?
Um tal Chilon, médico, sabio, feiticeiro, ou o que é, que lê o destino e prediz o futuro. Mandei-o chamar e trago-t'o. Queres fallar-lhe?
Que venha.
Petronio faz signal para dentro. Chilon entra. É um corcovado, tunica no fio, esburacada, barba e cabelleira intonsas. Sandalias velhas, etc.
Salve, senhores nobilissimos![69]
Aproxima-te. Sabes bem do que queres encarregar-te?
Pelo o que em toda a Roma se falla, não é difficil de adivinhar. Roubaram aos teus escravos, nobre senhôr, Lygia, ou Calina, filha adoptiva dos Plaucios. Encarrego me de t'a descobrir, na cidade ou fóra, onde estiver.
Que meios tens para isso?
Os meios tens, tu, senhôr. Eu só possúo o genio.
É homem para a descobrir.
Previno-te de que se me enganas para me apanhares dinheiro, mando-te desfazer com varadas.
Eu sou um pobre filosofo, senhôr, e um filosofo[70] não pode deixar de pensar na recompensa, sobretudo quando ella pode sêr da especie que acabais de me fazer entrevêr, tão magnanimamente!
Então és filosofo?; mas Eunice disse-me que eras médico ou adivinho. D'onde a conheces?
Veio consultar-me. A minha fama chegou até ella.
Sobre quê?
Materia d'amôr. Queria curar-se d'um amôr, não partilhado.
E, curaste-a?
Fiz mais. Dei-lhe um amuleto que faz nascer o amôr reciproco: um fio do cinto da Vénus de Chypre.
De que escola és tu, divino sabio?[71]
Senhôr, pelo meu manto em escumadeira, sou um cynico: um estoico, pela paciencia com que soffro a minha miseria: e, porque, como não tenho liteira, tenho de andar a pé, de taberna em taberna, a dar lições aos que me pagam o vinho, sou um peripathetico.
Gostas de vinho?
Heraclito disse que o vinho era fôgo e que o fôgo era uma divindade!
Deante da qual o teu nariz se illumina.
Já te tens empregado em cargos semelhantes?
Hoje, senhôr, a virtude e a sabedoria teem tão pouco valôr, que um pobre filosofo se vê forçado a lançar mão de todos os meios de existencia![72]
Quaes são os teus?
Saber tudo o que se passa e offerecer os meus serviços a quem preciza d'elles.
E pagas-te?
Conforme os meus meritos. Que remedio!
Não devem ser grandes porque te não deram ainda para um manto.
Sou modesto, senhôr. O que é pequeno não é o meu merito é a gratidão dos homens. Quando se esconde um escravo de preço quem o descobre? Quem indica os culpados dos pasquins em louvôr de Poppêa, a divina? Quem descobre nas livrarias os versos contra Cezar? Quem leva as cartas que se não podem confiar aos escravos? Quem faz fallar os barbeiros, os alfaiates, os taberneiros e capta a confiança dos escravos a saber[73] tudo o que se passa n'uma casa, do atrio ao jardim? Quem conhece todas as ruas, praças, bêcos, alfurjas, da cidade? Quem sabe o que se diz, nas thermas, no circo...
Basta, por todos os Deuses, illustre sabio, ja sabemos quem és.
E quanto valho.
Bem. Tens necessidade de indicações?
Eu? Tenho necessidade de armas.
Quaes?
Os tempos vão tão máus, para os filosofos...
Ahi tens.
Começamos a entender-nos. Nobre senhor, ouvide: Lygia não foi roubada por Aulo, nem[74] está no Palatino. O rapto foi feito por Ursus, o gigante seu escravo, e pelos christãos.
Ouve, Marcos.
Lygia adora a mesma divindade que Pomponia, a mais virtuosa das Romanas; é Christã...
Como o sabes?
Sou christão!
Tu?
Desde hontem, senhôr, desde hontem.
Reflecte Chilon. Tu não és um imbecil. Quererás presuadir-nos de que Pomponia e Lygia pertencem á seita dos inimigos do genero humano, dos envenenadôres, das gentes perdidas nos ultimos vicios?
É christã, senhôr, tende a certeza absoluta.[75]
O que quer dizer que Pomponia e Lygia envenenam as fontes, immolam as creanças encontradas nas ruas e se entregam ao deboche? Tu que viveste em caza de Aulo vês como isto é uma calumnia ou uma tolice! Ou então os christãos não são o que se diz.
Seja como fôr. Foi então esse Ursus quem a roubou?
Com os christãos.
E, encontral-a-has? Saberás onde está?
Esta noite, ainda, trarei noticias.
Duplicarei a offerta se a achares. Gulon? (para dentro)
Meu senhôr.[76]
Dá um manto capaz a esse... filosofo.
Nobre consul, sois duplamente generoso: cobrís d'uma vez, com a mesma capa: a Sciencia e a Virtude! Nobre Petronio, vale. (Sahe)
Adeus... collega. Não me desagrada o tal filosofo. Descobre Lygia, verás. Mas parece-me bom mandares desinfectar o atrio... A respeito de perfumes a filosofia está muito atrazada... só conhece... os naturaes. Fica-te com os Deuses... Sabes que amanhã é a festa do Lago?
Sei.
Dizem que Vatino inventou maravilhas. Não podes faltar. Cezar poderia notar a tua falta. E... bôas novas, até lá.
Gulon?
Meu Senhôr. O jantar?[77]
O meu manto e o estilete. (paseia agitado)
Eil-os. (Veste-lhe o manto) Ides só?
Só. (Sahe)
O PANNO DESCE[78]
[79]
Salão no palacio de Néro. Ao fundo um terraço d'onde se vê Roma. Mezas, cadeiras. Anoitece, gradualmente, durante o acto.
Dou graças aos Deuses, nobre consul, por te saber ainda vivo.
Ah! Petronio.
Nem me vias. D'onde te desenterraste? Em tua caza, em parte alguma se sabia onde estavas. Alguma Deusa te raptou para a sua morada?
Talvez.
Mas tu estás mal, meu sobrinho, muito mal. É evidente que Vénus te perturbou o espirito e te faz perder a razão! Por Pollux, se a chama que te consome te não reduz a cinzas, tu metamorfoseias-te[80] n'aquella esphinge do Egypto, que dizem que perdida d'amôr pela Lua, se tornou indifferente ao dia, de modo a só esperar a noite, para poder com os olhos de pedra, namorar a amante!
Oxalá me transformasse em esphinge!
... Se não sou eu, na ultima vez que nos vimos, na festa do lago, ou tinhas de transformar-te em esfinge... ou eras um homem perdido.
Como assim?
Quem era a mulher que, no bosque de Diana, te queria levar para entre as sombras?
A mulher mascarada?
Sim.
Não sube, nem quiz.
Era Poppêa.[81]
Heim?
Chamei-te a tempo. Ella fugiu. Se n'esse momento lhe negas o amôr, que era feito de ti?
Tel-o-hia recuzado.
Evitei essa asneira a tempo; mas a hesitação que mostraste, valeu-te o seu odio. As mulheres não perdôam, nunca, essas coisas... e então Poppêa...! Acautela-te.
Desprezo-a.
A pequena Augusta morreu...
Que me importa?
A morte atribue-se aos feitiços de Lygia.[82]
Imbecís!
E, a proposito... Lygia?
Tu não calculas, Petronio, o que me tem acontecido.
Mas diz. Tens-me causado sustos. Sabes que te quero...
N'essa noite... a do Lago, quando cheguei a caza esperava-me Chilon.
O filosofo?
O tal. Sabia de Lygia, vinha propôr-me o raptal-a. Concordei. Fomos, eu, elle e Croton, o gladiadôr, embuçados, ao Ostrianum, o velho cemiterio, á sahida da porta Capuana. Alli se reunem escondidamente os Christãos e lá ouvi Paulo, o apostolo, pela primeira vez. Lygia estava junto d'elle, envolta n'um manto escuro, embebida, a[83] ouvil-o, n'uma allucinação de todo o seu sêr, arrebatada, divina! Se tivesses visto a sua figura d'uma belleza ideal...
Adiante.
Todo o meu amôr renasceu com a furia d'um toiro das Hespanhas. Jurei tel-a. Alli, era perigoso: os christãos eram alguns centos. Seguimo-la até a caza, á sahida. Uma velha caza, no bairro do Transtiberino. Entrou n'um pateo com o velho apostolo e esse Ursus, o escravo gigante, que a não larga, nunca. Escondemo-nos n'um corredôr á espera de occasião propicia, eu e Croton, porque o filosofo não sendo capaz de entrar... ficou de vigia, na rua. Ursus veio buscar agua á cisterna do pateo. Era occasião: virei-me para Croton e disse-lhe: matta. O gladiadôr atirou-se ao escravo como um tigre; eu corri pelo corredôr, empurrei a porta entreaberta, agarrei Lygia ao collo e corri para fóra. Desmaiára.
Bello grupo dariam para um rapto.
Ao chegar ao pateo eis o que eu vi. Ursus dominava[84] Croton vergado sobre um joelho, apertando-lhe, com uma das mãos, o pescoço. O gladiadôr tinha um estertôr na garganta, os olhos sahiam-lhe das orbitas! Ao vêr-me, Ursus, applicou sobre o peito de Croton um murro tal que este rolou pelo chão, de bôcca aberta, jorrando sangue. Estava morto!
Por Hercules, que esse homem merece uma estatua.
De chofre, voltou-se para mim, agarrou-me este braço e partiu-m'o.
Depois?
Não me lembra senão d'uma voz, feita de todos os sons das citharas, dizer: Ursus, não mates! Quando acordei estava n'uma cama e vigiava-me uma pobre viuva, um filho e... ella!
E foi ella quem te tractou?
Tratou-me um medico; mas salvou-me, ella! Que cuidados, que dedicação, dias e noites! Contando[85] mesmo as horas dolorosas da doença, passei, alli, os melhores dias da minha vida. O apostolo, contava toda a vida e morte de Cristo, seus milagres e douctrina. Vi os mais bellos exemplos de caridade, de amôr e de perdão! Se tu o ouvisses!
Não me faltava mais nada! O que faz o amôr! Começavas a achar essa religião adoravel, porque era a de Lygia.
Talvez.
É assim. O amôr transforma as pessôas completamente, opiniões e gostos. Como a mim me está acontecendo. D'antes só gostava do perfume da verbena; lembras-te? Hoje, como a bella Eunice prefere o das violetas, é d'este que eu gosto mais.
Eunice?
Sim, Eunice. Ah! tu não sabias ainda... Tenho que te agradecer aquella recuza... É uma maravilha de esthetica, a loira Eunice! Uma obra de Praxiteles...![86]
E a tua Chrisotémis?
Mandei-lhe umas sandalias bordadas a perolas... É como quem diz: vai passeiar. É o meu processo; ellas já sabem. Chrisotémis, francamente, era contemporanea da guerra de Troia. E, afinal, melhoraste, sahiste... e o que é feito da tua Lygia?
Fugiu-me.
Outra vez?
No dia em que me levantei, ella sahiu.
Tinha mêdo de ti?
Tinha mêdo de si, propria.
É extraordinario![87]
Dizes bem. Ella não é como as outras mulheres!
Ah! não? Então não perdes nada com a abstinencia.
Não podemos entender-nos.
Decerto, não. Que o Hades confunda esses christãos que te fazem perder o senso commum.
Tu não conheces a sua doutrina.
Enganas-te, conheço. Já li as taes cartas de Paulo de Tarso. Babozeiras. É uma doutrina anti-humana: porque a felicidade só vem da belleza, do amôr, e da força! A isto, chama elle, vaidades! E que theorias! Retribuir o mal com o bem... Que justiça! O que devemos ao bem? Se a sanção é a mesma para o bem e para o mal, porque seriam os homens bons?[88]
Segundo elles a sanção começa na vida futura, eterna.
Isso são coisas a verificar... depois da morte.
A vida para elles começa com a morte.
É natural. É como se se dissesse: o dia começa com a noite! Vais raptar Lygia outra vez?
Não. Prometti-o.
Tens tenção de adoptar a doutrina christã?
Querel-o-hia; mas toda a minha natureza se oppõe.
Emfim, és capaz de esquecer Lygia?[89]
Nunca!
Então vai... viajar. (entram escravos com amphoras e taças que collocam nas mezas do 1.º salão e nas da varanda) Vem Cezar. O que vieste fazer?
Cezar mandou-me convidar para a leitura da Tróiada.
Tambem? E... se elle te perguntar por Lygia?
Não sei...
Dize-lhe... que a tens guardada... que esta ausencia... foi a lua de mel.
Entra Cezar, Poppêa, Tigelino, Vitelio, Senecion, Vatino etc. escravos. Poppêa sobe para o terraço, com outras damas, onde bebem. Os éphebos galanteiam, etc.
Salve, Petronio. Inda bem que chegaste. Creio que vou morrer de tédio, de aborrecimento! A minha viagem á Grecia, adiada![90]
Porquê?
Vesta, a propria Deusa, me avisou, no templo. Venho agora de lá. Tão ao ouvido me disse: addia a viagem, que me assustou.
Ficámos todos aterrados. A vestal Rubria desmaiou.
Que linda garganta que tem Rubria! Que branca! (bebe) Eu precizo distrahir-me. Vinheis ouvir o poema! Não posso lêr! Nem cantar! Nem tenho paciencia. Não posso ficar em Roma, irei para Ancio. Abafo, n'estes bairros apertados, no meio de cazas que se desmuronam, de ruellas immundas. Um ar empestado chega até aos jardins, chega até aqui! Porque não houve, nunca, um tremôr de terra que destruisse Roma? Se um Deus, na sua colera, a nivelasse com a terra, eu ensinaria como se edificava uma cidade para capital do mundo!
Não dizes, tu, Cezar: se um Deus destruisse a cidade?[91]
Sim e então?
Não és, tu, um Deus?
Podes fazel-o.
Fal-o.
...Não lerei o meu poema! O meu incendio de Troia flameja timidamente! Julgava que egualaria Homero e tinha ficado contente.
Não o egualaste?
Não...! Um esculptor quando por esculpir a estatua de um Deus, escolhe um modêlo. Nunca vi arder uma cidade, não o posso pintar.
Mas tens genio para tanto se o quizeres fazer, Cezar. Aposto que os teus versos...[92]
Não, não. Responde-me a uma questão, Petronio. Tens pena que tenha ardido Troia?
Pena de quê? Por Marte, pelo contrario. Tróia não teria ardido sem o fôgo dado por Prometheu aos homens e sem os gregos terem declarado a guerra a Priamo. D'ahi veio que Eschylo escreveu o seu Prometheo e Homero a Illiada. Quero mais a estes dois poemas do que á tal Troia, provavelmente uma villoria de cazas de madeira, velhas e sujas!
Eis o que é fallar com tino. Á poesia e á arte tem-se obrigação de sacrificar, tudo. Felizes os Gregos que deram a Homero o assumpto do seu poêma! Feliz Priamo que viu as ruinas da sua patria!... Eu nunca vi uma cidade em chamas!
Silencio geral de receio.
Nem eu!; mas se fosse Cezar e a quizesse vêr, via-a!
Era facil.[93]
Poppêa e as damas, Cezar, pedem-te para vires cantar.
Aproxima-se a noite, o sol agoniza, a tarde é bella, o ar cheio de perfumes dos jardins. Á natureza só falta um cantico...
O teu, Cezar!
É cêdo ainda. (olha para Tigelino, misteriosamente) É cêdo, ainda.
Eu adoro a musica.
Das taças.
Dize-me, Petronio, que pensas tu da musica?
A tua, sobretudo, quando a oiço, faz-me sentir um mundo de prazeres novos. A musica é um mar, onde á onda succede a onda, á agua, agua sem[94] fim, até... ao infinito...! e é sempre impossivel vêr a outra margem.
É assim que eu penso da musica. Quando canto e tóco, eu, Cezar, senhôr do Mundo, descubro reinos desconhecidos, mares virgens, mundos nunca sonhados! Vejo os Deuses! subo ao Olimpo! Um sôpro estranho passa, a esphera vibra em roda de mim e dir-te-hei (leva Petronio, pelo braço, para o lado) que eu, Cezar e Deus (muito baixo) me sinto tão pequeno como um grão d'areia!
Só os grandes artistas se sentem pequenos deante da belleza!
Morro de aborrecimento, aqui! Ouve: imaginas que sou cégo ou idiota? Pensas que não sei que por essa Roma pregam, todos os dias, inscripções injuriosas, pelas esquinas? que me chamam matricida, assassino de meu irmão, e de minha mulher? Que me chamam algoz, porque tenho morto a meus inimigos?... Um homem bom póde ser cruel?
Póde.[95]
Eis o meu caso. Quando a musica acalenta a minh'a alma, eu sinto-me tão bom como uma creança no bêrço.
Os Romanos nunca vos souberam apreciar.
Os Romanos! Como eu odeio os Romanos! (Vai á meza beber. Anoitece mais) Tigelino?
Sahiu. Disse que ia mandar accender as lampadas.
Ah! sim... Escurece.
Cezar, o cantico? (ao fundo)
Ainda é cêdo... (Desce a Petronio) Sou em tudo um artista. A musica abre-me as portas d'uma prespectiva indizivel; devo aos Deuses o explorar esse infinito! Para ascender ás regiões olimpicas[96] não será precizo, primeiro, praticar algum prodigioso acto propiciatorio?
Não te entendo, Cezar.
Para abrir as portas do mundo desconhecido, eu quiz fazer o maior sacrificio que pode fazer um homem: minha mulher... minha mãi... foi para isso que ellas morreram! Mas é precizo um sacrificio ainda maior para abrir as portas do Olimpo! Cumpra-se a vontade dos Oraculos!
...Qual é o teu projecto?
Vais vêr... de aqui a pouco. (sobe)
Extranho-o.
Mas, antes, vê bem que ha dois Néros: um o que os homens conhecem; o outro o que só tu conheces: o que mata como a Morte e o que delira como Bacho! E, mata, porque odeia a baixeza, tudo o que[97] é vil e lhe repugna tudo o que não merece a vida! E mata e elimina!... Como a vida será pequena quando eu desapparecer!
Comprehendo o teu coração e as tuas máguas!
Como o meu coração é, por vezes, negro! Como este mundo e esta terra são pequenos, mesquinhos, para mim! Mas, quanto eu puder, aniquilarei esta vida, e esmagarei este mundo!
(Subito Roma apparece incendiada por diversos lados. Ouve-se ruido ao longe. Pitagoras, desce)
Cezar, Roma está a arder!
Quê?
A ardêr?
Ó Deuses immortaes!... eu vos dos dou graças!.. Posso em fim vêr uma grande cidade em chammas! Posso acabar o meu canto![98]
Cezar? Cezar?
Ah! É agora o momento. A minha cithara? (Sobe)
Divino imperador?
Quê?
A cidade é um oceano de chamas! Os homens cahem asfixiados! O terrôr enloquece!
É a vontade dos Deuses! A minha cithara? (Trazem-lh'a. Terpnos, Diodoro e os musicos correm) Ó Deuses, que espectaculo sublime! Graças, por poder vêr, como Priamo, o incendio de minha patria! Agora, vou cantar! (sobe)
Centurião, sabes tu se o bairro do Transtevero, foi invadido, já?
Todo, Senhôr. Foi o primeiro.[99]
Maldicção! Se ella morreu... (sahe, doido)
(O incendio generalisa-se. De todos os lados do palacio corre gente para o terraço. Néro sobe os degráus e de cithara em punho, acompanhado, canta)
Berço de meus pais,
Roma divina!
Quanto eras cara
Á minh'alma!...
O ruido, ao longe, cresce. Ouvem-se os rugidos das féras. O panno desce.
FIM DO SEGUNDO ACTO[100]
[101]
Sala no palacio de Néro. Néro e Poppêa, Vinicio, Tigelino, Petronio, Vitelio, Senecion e Vatino.
Ha tres dias que componho o meu poema. Não posso perder tempo. Sejamos breves. Roma está exaltada?
Gravemente.
A animadversão cresce?
Cada vez mais.
O Senado?[102]
Indignadissimo contra ti.
Ó o Senado! Reedificarei a cidade! Dar-lhe-hei uma outra digna do povo romano; que mais quer?
Mas as miserias, as mortes causadas...
Não abri os meus jardins ao povo? Não tem elle que comer, á farta?
Os pequenos estão satisfeitos. Os grandes...
É preciza uma decisão rapida. Que havemos de fazer, o que será conveniente...? A tua opinião, Petronio.
Vamos para a Grecia e depois para o Egypto.
É facil partir: voltar é que não será tão facil.[103]
Por Hercules, voltaremos, se fôr precizo, á frente das legiões da Asia!
Assim, farei.
Escuta-me, Cezar. O conselho é desastroso. Antes de chegares a Ostia, rebentará a guerra civil. E sabes, tu, se algum vago descendente do divino Augusto, se não se fará proclamar imperador?
Farei que nenhum exista. Tu sabes como.
Mas será um outro. Hontem, os meus soldados ouviram dizer á multidão que se devia proclamar alguem, como Thrazéias!
Povo insaciavel e ingrato! Que mais quer?
A vingança.
A vingança?... quer victimas? (Pausa e silencio)[104] Se nós lançassemos a nova de que foi... (olhando-os) Vatino, quem incendiou a cidade?
Eu?... Quem sou eu, ó divindade...?
Tens razão. É preciso alguem mais importante. (circunvagando o olhar): Vitelio!
As minhas banhas farão rebentar um novo incendio.
Tigelino?... Tigelino, fôste tu que incendiaste Roma!
Por tua ordem, Cezar!
És meu amigo?
Tu o sabes, Senhôr.
Bem. Sacrifica-te por mim.[105]
Eu bem o quizera, Senhôr; mas não posso fazêl-o. (ironico) O povo murmura e revolta-se. Queres tu que a guarda pretoriana faça o mesmo, pelo seu chefe?
A divina Augusta deseja fallar-te, Tigelino.
Permittis? (Cezar, faz signal aprovativo. Tigelino sahe)
Aqueci uma serpente no seio! (a Petronio) Vamos, falla tu. Confio em ti. Tens mais senso do que todos elles juntos e és meu amigo.
Vamos para a Grecia.
Esperava mais do teu juizo. Se parto quem me garante que o senado não proclame outro imperadôr? O povo era-me fiel... não é. O senado!... Ah! se este povo e este senado tivesse uma cabeça, só![106]
Se queres conservar Roma, Cezar, é precizo deixares alguns Romanos.
Roma, os Romanos, que me importam? Escutar-me-hiam na Helada! Ao redor de mim, aqui, não ha, senão traição! (subito) Petronio, a plebe murmura pelas praças... se eu fôsse ao Campo de Marte e cantasse o meu hymno; o que cantei durante o incendio... não poderia, eu, como Orpheu, encantal-os?
A difficuldade, Cezar, era elles deixarem-te principiar.
Pois vamos para a Grecia.
Ouve-me, Cezar. O povo quer uma vingança e uma victima! Que digo eu? uma? centenas, milhares! Existem as que o devem sêr, devem-se-lhe. Ignoras que na cidade se acoita um exercito de christãos? Não os conheces? Não te fallei, eu, tanta vez dos seus crimes e das suas infames cerimonias?[107] das suas profecias segundo as quaes o mundo acabará pelo fôgo? O povo, instintivamente, odeia-os e suspeita d'elles. Ninguem os vê nos templos, no circo, nas corridas! Murmura contra ti e não fôste, tu, Cezar, nem eu, quem incendiou a cidade! Foram elles! É preziso dizêl-o. Viram-nos levando nas mãos as tochas incendiarias! O povo tem sêde de vingança? dá-lha. O povo quer circo, quer sangue? dá-lh'o! Conheces os culpados! manda!
A caça a Lygia.
Coragem!
Oh! Zeus, Appolo, Hera, Actréa, vós, todos, ó Deuses immortaes, porque nos não socorresteis? Que tinha feito essa bella Roma, a esses energumenos?
Vinga-a!
Faz justiça!
Que castigo terrivel, que torturas serão bastantes[108] para punir tal crime? Com a ajuda das potencias do Tartaro, darei ao meu povo um tal espectaculo, que d'elle se falará, em Roma, pelos seculos dos seculos!
Que Cezar bandido! (olhando Marcos, que passeia louco) É precizo salvar Lygia. Ou me perco, ou a salvo. (approximando-se galante, natural, brincando com a tunica gracioso) Assim... encontrastes as victimas? bem; mas escutai me. Tendes a auctoridade, tendes a guarda dos pretorianos, tendes a fôrça! Então sêdes leaes. Entregai os christãos ao povo, supliciais-os; mas confessai primeiro que não foram elles que incendiaram Roma! Ha tambem uma elegancia da alma: como mestre de todas as elegancias dir-vos-hei, que não supporto tão miseraveis comedias! (Pasmo) Com relação a ti, Cezar, porque me tens fallado muita vez da posteridade, reflecte o que ella dirá de ti! Pela divina Clio! Néro-Senhôr do mundo, Nero-Deus queimou Roma porque era tão formidavel na Terra, como Zeus no Olympo! Nero-poeta amou a tal ponto a poesia que lhe sacrificou a Patria! Desde o principio do mundo, ninguem ousou pensar em tão extraordinaria coisa! Tu o fizeste, esta gloria é tua, não a[109] renegues. Ao pé de ti o que será Priamo, Agamenon, Achilles? os proprios Deuses? Coragem. Livra-te de abdicações indignas; porque então a posteridade poderá dizer-te: Nero queimou Roma; mas tão pussilamine Cezar, como pussilanime poeta, negou o facto, e atirou, cobardemente, a falta por sobre os innocentes! Tal acção não honrará a tua memoria!
Senhôr, dá-me licença para que sáia. Aconselham-te a lançares-te no maior perigo: tratam-te de Cezar e poeta pussilanime, de comediante... Os meus ouvidos recuzam se a ouvir mais.
Cezar hesita? Estou perdido! (a Tigelino) Tigelino, a ti é que eu chamei comediante, porque o és, ainda n'este momento.
Porque não posso escutar as tuas injurias?
Porque figuras um grande amôr por Cezar e ainda ha pouco, ouvimo-lo todos e elle, o ameaçaste com a guarda de pretorianos.[110]
Cezar, como permittes que taes pensamentos venham a alguem e que esse alguem os diga deante de ti?
É assim que tu sabes reconhecer a amizade que sempre te tive?
Petronio perdeu-se por mim!
Se me enganei, Cezar, mostra-me o meu erro; mas sabe que te disse o que me ditou a lealdade que, emfim, te devo!
Renova os insultos.
Punide-o, Senhôr.
Castigai o insultadôr.
Castigai-o! (affastam-se de Petronio)[111]
Quereis que o puna? Foi sempre o meu companheiro e meu amigo! Feriu-me o coração; mas quero que elle saiba que este coração só tem para os amigos, o perdão.
Conheço o teu perdão! (alto) Cezar! (inclinando-se, faz signal a Marcos, e sahem.)
Quereis ouvir as testemunhas?
Que venham.
Um escravo sahe e traz dois rabinos de longas togas e mitras, um escriba e Chilon.
Salve, monarcha dos monarchas, rei dos reis!
Salve, Senhôr do mundo!
Salve, Cezar, Leão entre os homens! tu cujo reino[112] é semelhante á claridade do sol, ao cedro do Libano, ao balsamo de Jerichó!
Accusais os christãos de terem incendiado Roma?
Nós, Senhôr, só os accusamos de serem inimigos dos homens, e inimigos de Roma. De terem muita vez ameaçado a cidade e o mundo, com o fogo do céu! O resto dil-o-ha este homem, de cujos labios nunca sahiu a mentira, porque nas veias de sua mãi corria o sangue do povo escolhido!
Quem és, tu?
O teu cão fiel, divino Osiris! Um pobre estoico!
Detesto os estoicos: o seu desprezo pela arte e a sua linguagem repugnam-me; como a sua miseria e falta d'aceio. Por isso mandei matar Musonio...
Senhôr, eu sou um estoico por necessidade. Cobre[113] o meu estoicismo, ó Resplandecente, com uma corôa de rozas e poê-lhe, deante, uma taça de vinho e elle cantará Anacréonte!
Gosto de ti.
Vale quanto peza.
Que sabes dos christãos?
Permittir-me-has que chore, divino Cezar?
Não. Aborrecem-me as lagrimas.
E terás, cem vezes, razão; porque os olhos que te viram uma vez, não devem chorar nunca.
Falla dos christãos.
Ouve, divino Isis! De creança me dediquei á filosofia e procurei a verdade. Procurei-a na academia[114] de Athenas e na de Alexandria. Tendo ouvido fallar da doutrina dos christãos, julguei que fosse uma escola onde achasse algumas parcellas da verdade. Relacionei-me com elles e, por minha desgraça, o primeiro que conheci foi um tal Glaucos, medico de Napoles. Sube por elle, que adoravam um certo Christo que promettera exterminar os homens e aniquilar todas as cidades da Terra. Por isso odeiam os homens, envenenam as fontes e em suas assembléas cobrem de improperios os templos onde adoramos os nossos Deuses. Christo foi crucificado, mas prometeu-lhes que no dia em que Roma fosse destruida, voltaria á terra, a dar-lhes o reino promettido.
Então é a occasião.
O povo comprehenderá porque Roma foi queimada.
Muitos o sabem já, divina Augusta! N'isso se falla nos Jardins, no Campo de Marte, a toda a hora. O povo levanta-se, sedento de vingança! Essa vingança será a minha.[115]
Porquê?
Ouvide, divino Cezar! Glaucos, o medico, não me ensinava que a doutrina christã ordenasse que se odiassem os homens; pelo contrario dizia que esse Christo era uma bôa divindade e que a base da sua doutrina era o amôr. Amei Glaucos e tanto d'elle confiei que com elle partilhava o meu pão e o meu dinheiro. Um dia, entre Napoles e Roma, deu-me uma punhalada e vendeu-me a mulher, a minha Berenice, tão formosa e tão bella! a um mercadôr de escravos!
Pobre homem.
Chegado a Roma procurei os seus chefes para obter justiça contra Glaucos. Nada obtive; mas fiquei conhecendo o apostolo Pedro, o apostolo Paulo, o filho do Zebedeu, Crispo e muitos outros. Sei onde habitavam, antes do incendio e onde se reunem. Posso indicar o subterraneo do Vaticano e o Cemiterio d'Ostrianum. N'este, ouvi pregar o apostolo Paulo. Vi Glaucos degolar creanças para que o apostolo derramasse o sangue sobre[116] a cabeça dos neophitos e ouvi Lygia, a filha adoptiva dos Plaucios, gabar-se de ter enfiteiçado a tua filha, divina Osiris! e a tua, ó Isis, a pequenina Augusta!
Cezar, vinga a nossa filha! Ouves, Cezar?
Por Hercules!
Ouvindo isto quiz apunhala-la. Impediu-m'o o nobre consul Marcos Vinicio que estava ao seu lado e que a ama!
Quem?
O consul Marcos Vinicio.
É christão? Oh! a tragedia degenera em farça!
Senhôr, pela luz que vêm de ti, te juro que o é. Como o é Pomponia, o pequeno Aulo, Lygia, Ursus, Lino e milhares d'outros, cujos templos[117] secretos posso indicar! As vossas prisões não chegarão para os conter!
Cezar, vinga a nossa filha. Ordemna.
E, appressai vos, aliás, o consul Marcos Vinicio terá tempo de a esconder. Sahiu correndo... dir-vos-hei a caza...
Dou-te dez homens. Vai lá immediatamente.
Dez homens... com Ursus lá dentro... nem de longe!
Tigelino, entrego-t'os.
E, nossa filha, Cezar?
Por todos os Deuses que será vingada! Oh, os christãos! não deixarei um sobre a face de Terra! Os leões de Numidia e os tigres de Hircania terão[118] o mais lauto banquete de que ha memoria, na historia do mundo!
Cezar, um velho que se diz ex-centurião da Judêa pede para te fallar.
Que quer?
Não o disse. Quer fallar a Cezar...
Entre quem seja.
És tu o Cezar?
Creio que sou. E, tú, quem és?
Paulo de Tarso!
Não conheço; mas falla... Estou hoje de bom humôr... Vens da Judêa?[119]
Lá estive, pela segunda vez, depois de percorrer a Lygia, a Cilicia e a Galacia. Depois de ter fundado a egreja de Thessaloníca e de ter prégado em Athenas e em Corintho.
Prégado, o quê?
A religião de Christo, nosso Senhôr, meu e teu!
És christão? É o primeiro que vejo...
Pela graça de Deus.
Qual Deus?
O unico que ha. Que está no céu! e que um dia desceu á Terra e morreu pelos nossos pecados e pela nossa remissão!
Tambem por mim?[120]
Por todos.
Ignorava que devia esse favor a teu Deus! Séneca nunca me fallou d'essa divindade! Encarrego-te de lhe agradeceres por mim!
O meu Deus é superior ás tuas zombarias...
Mas o que queres, tu, afinal, com o teu Deus? É para me fallares d'elle que aqui vieste?
Em seu nome.
És christão. Vens pedir o perdão para ti e para os teus?
De quê?
Do seu crime.
Qual crime?
O de terem incendiado Roma.[121]
Gritam isso nas praças, vós o espalhastes! A plebe miseravel, sedenta de sangue, pede para elles o circo e a fogueira!
E tel-a hão.
Porquê?
Porque fôram elles...
Que...
... Incendiaram a cidade.
Néro, Imperadôr dos Romanos, Rei do mundo, Cezar augusto... mentes! (Vai a lançar-se a elle)
Deixai. Velho, tu és um doido por fôrça.
Chamo-me Paulo e sou apostolo de Christo![122]
É poderoso o teu Deus. Só assim...
Tu o vês. Tu és Cezar, cercado dos teus, defendido pela tua guarda pretoriana, tendo ao teu dispôr, dezenas de legiões: eu sou Paulo, um velho cujas pernas tremem no andar, cujos braços oscilam quando ora, e eu faço, pelo meu Deus,—o que tu não serias capaz de fazer pelos teus falsos Deuses—rio-me de ti, de teu poder, porque elle não alcança mais do que até á morte!
É o maior alcance.
Não é nenhum. A vida da terra é transitoria e mesquinha: só é grande a que vem depois da morte: infinita, eterna!
Quem t'a garantiu?
O meu Deus; que eu vi morrer na Cruz, no Calvario, ao pé de Jerusalem, para nol-a dar[123] em troca! O que prégou a egualdade na Terra, o que amaldiçoou o despota e levantou o escravo; o que prégou o desprezo da carne e santificou a alma! O que condemnou, ó Romanos, a vossa luxuria tôrpe, a vossa prostituição feita de todas as abominações e infamias! O Deus dos Christãos! Aquelle que fez com que eu, o mais humilde dos seus pastores, vos fale como se fôra o vosso imperador e elle... o verdadeiro, pense...
No supplicio a inventar de que sejas digno, divino apostolo!
Todos me agradam, Nero. Desde o harpão dos teus gladiadores, até aos dentes das tuas feras! Está assente para mim... agradeço-te! Mas ha uma legião de pobres que nunca te fizeram mal; que vivem felizes na humildade das suas crenças com o seu Deus e que, como elle ensinou, dão a Cezar o que é de Cezar e a Christo o que é de Christo! Nunca perturbaram os teus prazeres, nunca disputaram o teu poder, nunca insultaram publicamente os teus affectos, nem tentaram contra a tua vida ou a dos teus.[124] Innocentes d'um crime de que os accusam, só podem defender-se, morrendo! São fracos, humildes, ignorados! Não carregues a tua memoria com crimes inuteis; porque, em verdade te digo, que se o fizeres terás de responder por elles...
Ante quem?
Ante o nosso pae, que está no céu!
Cala-te.
Cezar, disse!
De mais. Tigelino mette-me na cadeia esse apostolo, esse pastor, a vêr se o tal poderoso Deus o tira de lá. (A Paulo) E, quanto ás tuas ovelhas, prepara-te para vêres, no Circo, como os leões lhes tosquiam a lã.
Não ha piedade na tua alma, Cezar?
Não sou um Deus...[125]
Não. Ha um, só! E, em nome d'elle, eu te amaldiçôo! Assassino de tua mãe e de tua irmã! Anti-Christo! O abysmo abre-se a teus pés! a morte vae empolgar-te! o tumulo abre a guella para te engulir! Amaldiçôo-te, cadaver vivo! porque morrerás no espanto e no terrôr! e serás condemnado por todos os seculos dos seculos sem fim! (Agarram-no) Maldito sejas, assassino! incendiario! matricida!
Cala-te, velho!
Tem audacia, por Jupiter! Guarda-m'o para o circo, quero vêr como é feito, por dentro, um apostolo christão!
(Os escravos levam-no, arrastado)
Emfim, consegui distrahir-me, hoje. Vamos jantar.
Dá o braço a Poppêa. Vão sahindo.
O PANNO DESCE[126]
[127]
Jardim de Petronio.
Poucas flôres. O calôr do incendio chegaria a Cumes?
Procura-te um servo de Numa, com uma carta.
Vem de Roma?
De Numa. (da-lhe um rolo de pergaminho)
Como vai o teu senhôr?
Bem, nobre Petronio.[128]
.......... «Aviso-te de que receberás, em breve, ordem de não abandonar Cumas e dias depois a de te abrires as veias... Eis o que está decidido no palacio de Cezar... Vale. Séneca.» Virá atrazada a ordem. Licio, dirás a teu amo que lhe agradeço a carta e que já estava prevenido. Leva-lhe esta taça (dá-lhe uma d'oiro) como recordação minha e penhôr de nossa longa amizade. (o servo sahe) (ao escravo) Chama Eunice. (rindo) Julgava, talvez, surprehender-me esse bandalho de Cezar! Como se eu lhe não conhecesse as manchas de toda a vida! Como não respondi, logo, á sua carta, decidiu-se. Pois ha-de agradar-lhe a resposta. (Entra Eunice, de branco. Petronio, senta-se) Vem Eunice; abraça-me e beija-me! Amas-me?
Se fôsses um Deus, não te amaria mais. (ajoelha-se-lhe aos pés)
E tu sabes a quem deves o meu amôr?
A ti, á tua bondade![129]
E a Chilon.
A Chilon?
Não te vendeu elle dois fios da cinta da Vénus de Chypre?
Oh, o charlatão! Ninguem pode modificar a vontade dos Deuses?
Nem mesmo o nobre Chilon?
Nobre?
É hoje um dos companheiros de Néro. Uma arma de Poppêa. Delatou os christãos.
Oh, o infame!
Tal imperadôr, tal côrte! (acaricia-lhe a cabeça) Mas tu és, verdadeiramente, bella, Eunice.
Meu Senhôr![130]
Feliz aquelle que, como eu, encontrou o amôr habitando em tal corpo! Parece-me ás vezes que sômos duas divindades! Nem Lyzias, nem Praxiteles, criaram, nunca, linhas tão bellas! Não ha marmore mais quente, mais rozado do que o do teu collo! (Toma um punhado de violetas e deita-lh'o pela cabeça e hombros) Eis o que os christãos querem abolir: o culto da belleza! Um selvagem não criaria uma tão ridicula filosofia. Trata sempre o teu corpo bello, como um dom divino! Sê sempre Deusa, bella, adoravel, Eunice! (Beija a)
Tu és tão bom, meu senhor, tão bom, que eu quizera ser realmente uma Deusa... e tua escrava, como sou!
Enganas-te. Tu não és minha escrava: pertencem-te esta casa, estes jardins, os meus escravos, os campos e os rebanhos.
A mim?[131]
A ti. Libertei-te ha muito. Nada te disse. O consul dispensou a tua presença. Fiz-te, sem saberes, os meus presentes de nupcias.
Meu senhor e para quê?
Porque vamos talvez separar-nos.
Como, senhor?
Socega... terei de fazer uma longa viagem...
Leva-me comtigo.
Não posso.
Não podes?
É uma desconhecida viagem... que se tem de fazer, só![132]
Só?
Só!
Petronio! meu senhor. (Joelha de novo).
Sim!
Que desgraçada sou! Os deuses não permittirão...
Eunice, eu quero morrer... como me compete!
Comprehendo, meu senhor. (Domina-se completamente.)
Tu és bella, livre, rica! A mocidade e a belleza tem os seus direitos. Lembra-te de mim... com amor!
Não, meu senhor, eu não sou rica nem livre. Não o quero ser. Sou a tua escrava![133]
Então eu serei o escravo da minha escrava. (Acaricia-a) Eunice, faz servir o jantar. (Dão um longo beijo.) Que a belleza seja sempre adorada!
E a bondade!
Eunice sahe e volta com Nerva, Lucio, Octavia e Julia. Ao entrar uns adolescentes coroam-nos de rozas. Trazem-se perfumes. Ha uma orchestra invisivel.
Salve, Petronio.
Salve, salve.
Reclinam-se. Os escravos servem.
Que noticias de Roma?
Cesar mandou-me chamar.
É teu amigo, Cezar.
Muito.[134]
Acaso serás tu, agora, o querido dos homens, como tens sido sempre o das mulheres?
Que os Deuses se amerciem de mim, formosa Octavia. Na minha edade! (Riem).
E, não vais?
Não vou.
Ficarás então em Cumas?
Para sempre.
E o imperador?
Que cante e dance.
É a sua maneira de descançar.[135]
É; porque para se fatigar vae matando os christãos.
A perseguição continúa?
Cada vez mais terrivel.
Haverá, ainda, muitas tardes de circo?
É natural. Os christãos são já aos milhares, em Roma, como em outras cidades da Italia, na Grecia e na Asia. Ha-os entre os legionarios, entre os pretorianos, nas melhores familias de Roma.
Dizem que nunca houve tres tardes de circo, como as dos christãos!
Nunca![136]
Estiveste em todas, Petronio?
Em todas.
Amas o espectaculo?
Não: necessitava de lá estar.
Conta-nos.
Nenhum de vós esteve em Roma?
Nenhum; creio.
Pois foram celebres as tardes. Nero lançou a ordem de prisão. Agarraram-se homens e mulheres, velhos e novos, creanças e virgens! Na primeira tarde, vestiram-nos com pelles de animaes e largaram-lhes os cães fulvos de Peleponéso e os molossos zebrados dos Pyrenéus,[137] esfaimados, de dias. As prezas, porém, eram extranhas, e os cães hesitaram no attaque. Mas logo que o primeiro enterrou os dentes na espadua d'uma rapariga, os outros, ao verem sangue, cahiram sobre o monte dos christãos, ajoelhados! Então, por entre as convulsões, os estertores de agonia, os uivos dos mastins, ouviam-se vozes, que diziam: pelo Christo! pelo Christo! As feras mutilavam e, sobre a arena, corria em rêgos o sangue entre membros decepados e os corpos sedentos dos cães insaciaveis! O cheiro do sangue e dos intestinos abertos cobriu os perfumes da Arabia e encheu o circo! Os cães não venciam a tarefa. O povo rugindo, em delirio, pediu os leões. Viram-se então cabeças desapparecer em guellas vermelhas, peitos abertos com um roçar de garra, corações e ventres extravazados, e o ruido dos ossos triturados por maxillas de ferro! O povo esmagava-se, descendo as bancadas, para vêr melhor: os leões enchiam de trovões as arcarias do Circo!
E acabou?
Não. Havia ainda muitos vivos. Abriram-se[138] as jaulas e sahiram os tigres do Euphrates, as pantheras de Java, ursos, lobos, hyenas, chacaes! A scena perdeu toda a apparencia de realidade! Entre os gritos, os urros, os rugidos, ouviam-se gritos, aqui e ali, pelas bancadas, gritos, entre dentes, de mulheres em espasmo, cujas forças se iam exgotando! Empallideciam os rostos e vozes gritavam: basta! basta! Um exercito de Numidas, armados de flechas, fez recolher as féras. Limpou-se a arena; as fontes jorraram aguas perfumadas e uma nuvem de adolescentes, vestidos de amôres, encheu o circo de petalas de rosas! Caso extranho e unico no circo: Nero desceu á arena, tomou a cithara e cantou um hymno!
E foi applaudido?
Como sempre.
A mim era-me impossivel assistir a uma tarde de circo.[139]
E tu, Petronio, cujo gosto e prazeres teem um tão grande cunho de elegancia e de delicadeza...
Comecei por dizer, bella Julia, que precisava de lá estar.
E, a segunda?
Conta-nos a segunda.
Foi menos interessante. Limitaram-se a queimar muitos e a sacrificar os restantes. Todo o prazer do espectaculo, para quem o achava, estava em gozar a morte lenta, a agonia das victimas! (Reparando) Por Pollux, eu deixo de contar, se apenas empregaes os vossos sentidos em me ouvir.
Escutamos-te e comemos, ao mesmo tempo.
Mas não bebeis. (faz signal; os escravos enchem as taças)[140]
Conta a terceira.
É mais curiosa, a terceira tarde?
Terrivelmente curiosa, para mim. Foi de noite. Na noite a seguir áquella em que Néro passeiou, entre crucificados christãos, breados, a arder, pelos jardins!
Que crueldade!
E quê cheiro! A peripecia extranha foi esta. Quando soaram as cornetas, correu-se a grade d'um subterraneo e um homem colossal, um Lygio, de côxas herculeas e braços, os musculos do peito que pareciam dois escudos unidos, tal era o relêvo, appareceu, na arêna! Quando se esperava que inimigo lhe dariam, abriu-se a grade fronteira e um toiro da Hespanha, negro como a noite, rompeu pelo circo, trazendo, atado ás hastes, no cachaço, o corpo semi-nú d'uma virgem christã. Lygia! rugiu o escravo ao conhecer[141] a rapariga! Lygia, tem coragem!... E, de espinha curva, rapido, cortando a terra, o olhar em braza, as mãos em garra... aproximou-se do toiro, e d'um salto, cahiu-lhe na frente, agarrando lhe os cornos! Fez-se um silencio profundo! Ouvir-se-hia o vôo d'uma môsca! Homem e toiro quedaram se na imobilidade do marmore, semelhantes a um trabalho d'Hercules, esculpido! Para se libertar do jugo, o toiro, fincando-se nas patas, dobrou-se, em arco: turgiam-se os musculos do homem a estalar a pelle que se fazia purpura! No peito de Néro, como no das vestaes, como nos do povo inteiro, os corações saltavam! Corria o suor pelas testas! A palavra expirava nos labios! Homem e toiro, n'um suprêmo esforço, dir-se-hiam pregados no solo! Estes momentos duraram séculos. Subitamente, ouviu se como um vagido surdo, e, como n'uma allucinação, os olhos viram a cabeça da fera, voltar, voltar, quasi imperceptivelmente... Ouvia-se o respirar offegante do homem; mas a cabeça do toiro continuava a voltar-se, lentamente, lentamente... quando, de subito, da bôcca sahe-lhe, pendida a lingua cheia de baba! Um momento mais... um ranger de vertebras... e n'um tremôr subito, o olhar baço, o pescoço estendido, como uma massa inerte, o toiro cahe!... morto![142]
Por Jupiter, eis ahi um homem!
Por Venus!
Por Hercules!
E, foram perdoados?
O povo ergueu-se pedindo-o. Néro recuzava, quando, de subito, um bello rapaz, um guerreiro, salta á arena, rasga a tunica no peito, para mostrar as cicatrizes das batalhas e levanta os braços para o povo, cobrindo com o manto o corpo nú da christã. O povo rugiu improperios e Néro, com mêdo, cedeu.
Quem era esse mancebo? Um amante?
Um apaixonado, que a pretendera arrancar á prizão que tentava salval-a, ainda, nos subterraneos do circo, e que, sem esperança, estava a meu lado, branco como um cadaver![143]
Chamava-se?
Quem era?
Marcos Vinicio, o filho de minha irmã. Eis porque vos disse do começo, bella Octavia, que precizava de lá estar.
Que tormentos d'amante!
A felicidade é como a vida: nasce entre dôres!
Que é feito d'elles?
Cazaram e foram para o campo, para a beira mar, afogar em beijos os terrôres e lagrimas passadas!
Que os Deuses os protejam.
Pois brindemos aos Deuses pela sua felicidade. (bebem)[144]
Amava-lo muito, Petronio?
Tanto, que arrisquei, por elle, o favôr de Cezar!
Como?
Defendendo os christãos.
Os christãos?
Os christãos que me importavam? Defendia Lygia e Marcos.
Espantava-me que defendesses os Deuses estranhos.
Nem os estranhos, nem os nossos.
Não amas os nossos Deuses?[145]
Muito... para figuras de rethorica!
O que amais então no mundo, elegante sceptico?
As arvores e as flôres; as joias e os perfumes; as estatuas de Praxiteles e os bronzes de Corintho; os vinhos velhos da Grecia e as mulheres novas... de toda a parte.
Tendes amado muito.
E, ainda os livros, a poesia, os versos—excepto os de Néro—.
Dizem que os scepticos são, sempre, alegres.
Será por isso que me esforcei por viver, sempre, alegremente, e o farei até ao fim... o que será facil... agora! (tomando a taça) Á Rainha de Chypre! por Eunice![146]
Aos Deuses, pela felicidade de Petronio!
Ao meu senhôr! (bebem os dois, sós)
Amigos, perdoai-me o fazer-vos um pedido: eu quizera que cada um de vós se dignasse de acceitar a taça com que brindou aos Deuses e á minha felicidade. (toma a taça) Eis a taça do meu brinde á rainha de Chypre, por Eunice. Nenhuns outros labios beberão por ella; nenhuma outra mão ousará levantal-a, em honra de outra divindade! (atira-a ao chão e parte-se: espanto) Amigos, alegrai-vos. A velhice é a triste companheira dos nossos ultimos annos. Dou-vos um exemplo e um conselho.
Que queres fazer?
Gozar, beber, contemplar as fórmas divinas que repoisam a meu lado e adormecer, emfim, n'um sonho, cercado de rozas. Fiz já as minhas[147] despedidas a Cezar. Ouvide o que lhe mandei dizer, no meus adeus. (tira um rolo e lê) «Sei, divino Cezar, que me esperas impacientemente e que para premiares a minha ida para junto de ti, não duvidarias dar-me o comando das tuas guardas e fazer de Tigelino um almocreve, officio para que parece ter sido creado pelos Deuses! Pelo Hades e em particular pelos manes de tua mãi, de teu irmão, de tua mulher, juro-te que me é impossivel ir. A vida é um thesoiro de que eu sube extrahir as mais preciosas joias; mas tem coisas, tambem, que confesso sou incapaz de suportar até ao fim! Não vás pensar que me indignou o assassinato de tua mãi, de teu irmão, de tua mulher; que me revoltei contra o incendio de Roma; que me offendeu o teu processo de matar todos os homens honrados de teu imperio! Não; mas por largos annos ainda, deixar-me esfolar os ouvidos pelo teu canto, vêr as tuas pobres tibias escoicear nas danças pirricas, ouvir-te tocar, declamar, recitar a teu modo—pobre poeta d'agua dôce—semelhante perspectiva é superior a minhas fôrças. Resolvi morrer! Roma tapa os ouvidos; o universo cobre-te de gargalhadas! E, eu? eu não quero mais envergonhar-me de ti! O ladrar de Cerebero ser-me-ha menos penoso: não sou amigo[148] d'elle, não tenho de córar pela sua voz! Goza e passa bem, mas deixa-te de musica! assassina, mas não faças versos! envenêna, mas para-te de dançar! incendeia as cidades, mas deixa em paz a cithara! Tal é o conselho do teu amigo, Petronio.» (dá o rolo ao escravo) Queima esta carta e manda entrar o médico.
... Mas é a morte!
E, nós...?
Nada receieis. Nenhum tem necessidade de dizer que ouviu ler esta carta. (Faz signal ao medico que entra. Este passa-lhe no pulso uma anilha de oiro e com um estylete abre-lhe a veia radial).
Senhor, se os Deuses me dessem a immortalidade, se Cezar me desse um imperio, para te deixar, eu não faria nunca! Tenho pois o direito de ir comtigo... concede-m'o!
Tu amas me, verdadeiramente, divina! Vem commigo, pois, se assim o queres.[149]
Abre. (O medico faz o mesmo. O sangue corre. Eunice inclina se sobre o peito de Petronio).
Phalerno! (Um escravo deita-lh'o) Servide antes, ás damas, o xaroposo Careno, ou o opalino Chio, que convida a amar! (Inclina se para Eunice) Não queres tu, Divina, que bebamos, na tua taça, pela ultima vez, aos Deuses, por toda a felicidade que nos deram?
Sim, meu senhor. (Bebem os dois).
Marcos Venicio e Lygia.
Bem vindos! (Ao medico) Não posso morrer ainda; estanca-me o sangue. (O medico liga-lhe o pulso, rapido).
Salve senhores! salve Petronio.
Salve Marcos![150]
Salve Lygia!
Salve, formosa Lygia!
Salve! Salve! (Os escravos trazem duas cadeiras. Marcos e Lygia sentam-se). Que vieste fazer a Cumes, Marcos?
Escrevemos-te. Queriamos que fosses passar comnosco uns tempos na nossa casa da Sicilia. A tua carta entristeceu-nos. Resolvemos vir-mos buscar-te. És preciso á nossa ventura!
Admiro o teu coração: como me admira que dois noivos se possam lembrar d'um amigo ausente.
Tu és para nós muito caro. Devemos-te a maior parte da nossa felicidade!
Foi o vosso Christo quem vos salvou! (Levemente ironico).[151]
Não rias...
Oh, não; mas é preciso confessar que Ursus e o povo romano tambem fizeram alguma coisa para o caso.
Vem comnosco, Petronio.
Não, feliz esposo da princeza Aurora: se eu tivesse desejo de ir para onde me queres levar, eu não o poderia fazer. Se alguma coisa depois da morte—ao contrario da opinião de Pyrrhon—subsiste e vive, a que animava o corpo da minha bella, de cabellos d'oiro, a minha Eunice, espera-me! (Indicando-a) Está morta! (Arranca a facha do pulso e aperta Eunice contra o peito).
Petronio!
Meu amigo!
Não vos afflijaes! Para vós nasce a aurora da vida, para mim, pôz-se já o sol, cerca-me o crepusculo![152] Tinha de ser: conheces Néro, comprehendes o resto. Vivi como quiz, morro como me apraz! Não vos afflijaes! A morte é um episodio da vida! Já vês, Marcos, que te enganas, se pensas que só o teu Deus dá a tranquillidade na morte! Vê como morro tranquillo. Platão diz que a virtude é uma musica e a vida do sabio uma harmonia! Se assim é, vivi e morro virtuoso. (Toma a taça) Permitte, virtuosa Lygia, que me despeça de ti, com as palavras com que te saudei, na primeira vez que nos vimos. «Vi durante a minha vida povos sem conto, mas uma mulher que te egualasse, eu não vi nunca!» (Aos dois) Se eu tenho uma alma, ella irá poisar junto á vossa casa, na forma d'uma borboleta, ou, como querem os egypcios, na de um falcão. Só, assim, irei. (Levantando a taça e todos) O ultimo brinde aos noivos. (A voz enfraquece levemente) Que a terra de Sicilia se metamorfoseie para vós n'um jardim dos Hesperides, que os Deuses dos campos, dos lagos, das fontes, façam nascer as flores sob os vossos pés, e que em todos os acanthos dos vossos pyristilos vivam e noivem, eternamente, as pombas brancas! (Bebe e todos. Inclina-se a beijar a cabeça d'Eunice).[153]
Um servo de Numa.
Outro?
Nobre Petronio. Chego de Roma a toda a brida, mandado por Numa, meu senhor, dizer-te...
O quê?
Revoltou-se Vindex, com as legiões da Galia. A guarda pretoriana, amigos, escravos, todos abandonaram Cezar. Todos fugiram do palacio e o deixaram só! Só, de mêdo, suicidou-se!
É tarde! (Desmaia e morre sobre a cabeça de Eunice).
Que dôr!
Mortos! O bom Petronio! A bella Eunice![154]
Sabeis, vós, amigos, o que morreu? O mundo romano: a Graça e a Belleza!
Ó Christo! tende piedade das suas almas!
(O PANNO DESCE, LENTO)
FIM DO TERCEIRO E ULTIMO ACTO
End of the Project Gutenberg EBook of Petronio, by Marcelino Mesquita *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK PETRONIO *** ***** This file should be named 28154-h.htm or 28154-h.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/2/8/1/5/28154/ Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at https://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit https://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: https://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.