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Nota de editor: Devido à existência de erros tipográficos neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Nov. 2009)




Maria Amalia Vaz de Carvalho




PELO MUNDO FÓRA








LISBOA
Livraria de Antonio Maria Pereira―editor
50, 52―Rua Augusta―52, 54

1896



PELO MUNDO FÓRA






Maria Amalia Vaz de Carvalho




PELO MUNDO FÓRA








LISBOA
Livraria de Antonio Maria Pereira―editor
50, 52―Rua Augusta―52, 54

1896






LISBOA
Typographia e Stereotypia Moderna
II―Apostolos―II
1896





I



Não ha de certo ninguem, por pouco imaginativo e pouco phantasista que seja, que não tenha architectado um complicadissimo e alegre sonho dando-lhe por base o prazer das viagens. Aos homens é o interesse de visitar cousas novas, de experimentar sensações mais vivas, que os attrahe e chama; ás mulheres é o amor do desconhecido que lhes irrita a insaciavel curiosidade.

Imaginamos todos que a ventura está justamente... onde nós não estamos. E que seria facil conquistal-a, indo em demanda d'ella um pouco longe, em um logar d'onde ella nos sorri, d'onde ella nos acena, cariciosa... traiçoeira.

Eu cedi tambem á estranha, á irresistivel suggestão. Fui-me por esse mundo fóra em [2] busca do pomo d'ouro, que tantas vezes se parece com aquelle fructo colhido em terras da Palestina―mimo e velludo por fóra, cinzas escuras no interior.

Era bem natural que, para mim tão profundamente modelada pelo espirito da França, o primeiro objectivo fosse a terra onde a civilisação franco-latina se resume em synthese deslumbradora.

Chamava-me Paris. E Paris não era, já se vê, a cidade luxuosa e alegre do boulevard, a cidade da permanente festa, do prazer que se elabora de todos os requintes de uma decadencia, da phrenetica aspiração ao gozo material da vida.

Paris era a terra sagrada d'onde brotára para a especie humana a primeira scentelha da Liberdade.

Paris era a patria, pelo menos moral―d'aquelles espiritos de que a minha alma colhêra, n'um vago extase fecundante, a flôr maravilhosa e inspiradora.

Todos os que eu intellectualmente mais amára tinham ido alli receber a consagração suprema da gloria ou da desgraça, ás vezes de ambas ellas.

[3] Eram, no grande seculo classico, Pascal, Racine e Molière; eram, na soberba Renascença franceza, Rabelais e Montaigne; eram depois, n'esse seculo XVIII hoje tão calumniado, mas sempre tão grande, e que tão indomitas energias acordara na alma do homem, Rousseau com a sua morbida sensibilidade de ambicioso e de revoltado, que nós hoje comprehendemos tão bem; era Voltaire, a sã ironia hoje desdenhada, mas que tão benefica acção exerceu na treva do espirito humano; era Diderot, o profundo precursor de todas as modernas theorias criticas, o homem que no seu tempo moveu maior numero de idéas novas e suggestivas; era a pleiade formidavel e fascinante da Revolução, a que na minha mocidade me dera sensações de tão absoluto assombro, a que, desde Turgot e Mirabeau até Robespierre, refizera em novos moldes o mundo moral e o mundo politico; era, na cumiada mais alta e mais luminosa da montanha da Historia, essa grande figura immortal, o Alexandre do seculo XIX, o heroe de Homero, o phrenetico conquistador, que empobreceu talvez a França, que dizimou as populações e crucificou as mães e as noivas, que sangrou do seu melhor sangue [4] as nações e as raças, mas que imprimiu na sua patria o cunho epico, inapagavel, inolvidavel, com que ella ainda hoje espanta e assombra o espirito dos estrangeiros! Parece dos tempos lendarios e é de hontem esse homem soberbo e fatal―em cujo olhar profundo ha reverberações do Olympo, e cuja fronte pensativa fez parar embevecidos, silenciosos, os mais impassiveis e os mais frivolos―cuja figura nós topamos a cada passo na Capital do Mundo.

Modernamente, quantos outros me chamavam, ainda mais queridos ao meu coração, ainda mais intimamente e estreitamente identificados com todas as recordações mais doces da minha vida intellectual... Era Michelet, o poderoso encanto allucinante; era Balzac, a vida intensa que pullula em creações immortaes; era Renan, a graça emballadora, ondeante e morbida, que anesthesia e faz sonhar; e Taine, o vigor soberbo da idéa servido por um temperamento possante de artista e de poeta, um Spinosa que tivesse o pincel do Veronez para traduzir as visões do seu pensamento altissimo; era Musset, o divino; era Sand, e Sainte Beuve, e Hugo, e Lamartine: e cada um me attrahia por um lado ou por muitos lados da [5] sua sensibilidade e do seu genio, e cada um me dizia a palavra magica que faz parar, suspenso, embevecido, um espirito de poeta e de artista, humilde embora...

Eram mais, eram muitos mais, todos lidos, todos decorados com enternecimento e apaixonado enlevo. Eram os que eu sempre amei desde que abri os olhos d'alma, e a quem devo os prazeres mais ardentes, mais refinados ou mais subtis da minha vida interior.

Todos alli me chamavam―côro de mortos que eu tinha a louca illusão de encontrar ainda. Parecia-me que o sorriso aberto e expansivo do pae Dumas havia de accentuar-se sympathicamente ao encarar com o meu assombro extatico; que a voz mordente de Voltaire se amolleceria para acolher em mim a mais fervente enthusiasta do espirito francez; que Beaumarchais me contaria, entre risonho e caustico, uma nova travessura de Figaro, uma nova paixão de Cherubin; que Molière, descendo do seu pedestal marmoreo, me diria ao ouvido uma d'aquellas profundas reflexões satyricas que elle não poupára ás bas-bleus do seu tempo!

Para mim confundiam-se n'um cahos allucinante [6] as épocas, os seculos, os periodos historicos.

O meu humilde espirito colhêra apaixonadamente scentelhas soltas de todos esses espiritos; a minha memoria guardava reverente, em relicario precioso, perfumes vagos de todas essas essencias raras! Amara-os tanto! Sonhara-os tanto! O scenario onde elles se tinham movido interessava-me tão profundamente!

Oh! Balzac ia decerto contar-me a historia, para elle real, das suas elegantes e pallidas heroinas; elle que era forte e bom, compadecido da minha pequenez, não duvidaria apresentar-me a esse mundo mais humano, mais verdadeiro que o outro em que tanto á vontade sabia mover-se.

A viscondessa de Beauseant, a espirituosa e aristocratica rainha do faubourg, aquella que amára tanto um portuguez, e que tivera no seu abandono uma dignidade tão gentil e uma attitude de tão romanesco encanto, ao vêr-me patrocinada pelo seu grande artista, far-me-hia o que fez a Eugenio de Rastignac: proteger-me-hia, introduzir-me-hia, carinhosa e maternal, no circulo estreito, exclusivo, selecto onde viviam as suas eguaes.

[7] Então, n'este ponto do meu sonho galopante, mais rapido que o trem que me levava, mais vertiginoso que o scenario mudavel que me envolvia, eu deixava o mundo da realidade sempre limitado, sempre condicional e sempre estreito, por outro amplissimo, fascinador e deslumbrante.

A multidão prestigiosa das figuras de Balzac cercava-me n'uma especie de circulo encantado. Todo o sortilegio poderoso com que esse grande artista―o Napoleão da litteratura―actuou sobre o nosso tempo, descia sobre o meu cerebro, excitava-o, estimulava-o perigosamente.

Todos os meus gostos de observadora achavam alli a sua satisfação plena. Esquecia, n'esse mundo de tão frisante realidade, de tão intensa vida, tudo que o mundo actual tem de nauseante e de triste...

De resto, Nucigen, o formidavel banqueiro da Comedia humana, é bem mais assustador que Reinach e que todos os judeus modernos da Columna da Bolsa; Vautrin tem um porte épico de criminoso que deixa a perder de vista Cornelio Herz, ou Arton; de Marsay, esse personagem que é de Balzac como Hamlet é de [8] Shakespeare, como Tartufo é de Molière, como D. Juan é de Byron, é um politico, um diplomata, um perverso das altas cumiadas sociaes, bem superior a Rouvier, a Clemenceau, aos pobres pygmeus da terceira Republica; Lousteau, Claude Vignon, Emilio Blondet, Nathan, os principes do jornalismo, os grandes criticos e os manipuladores de successos ou de derrotas litterarias, não podem realmente comparar-se ao sr. Mayer, ao sr. Magnard, ao proprio sr. Rochefort.

E que pleiade encantadora de artistas e de sabios! Que lindas figuras luminosas de pintores, de esculptores, de romancistas, de pensadores! D'Arthez! Joseph Bridau! Camille Maupin! Leon Giraud! Fulgence Ridal!

Em Miguel Christien transparece a integridade rigida, a consciencia admiravel, a fogosa independencia de Armand Carrel; em D'Arthez a bella alma, a vida modesta e simples, a magnificencia intellectual de um Berryer...

E todos desfilavam ante os meus olhos offuscados, os cinzeladores da palavra, os manejadores soberbos ou do escalpello que abre as entranhas humanas para extrahir d'ellas o segredo da vida, ou do pincel que rasga janellas [9] de luz para o azul, para o Ideal! Os mestres da sciencia e da arte, os grandes typos que constituiram essa sociedade imaginaria da obra de Balzac, reflexo idealisado da outra que elle frequentava e conheceu tambem.

Ao pé d'esse agrupamento sublime de figuras que o genio creou, e que illuminam o talento, a gloria, a ambição ou a desventura, que ora se contorcem como os personagens que Miguel Angelo pintou nos seus frescos soberbos, sob o influxo de uma dôr tremenda, ora sorriem olympicamente, como os retratos do Ticiano, surge uma legião adoravel de mulheres, em quem a graça indefinivel da parisiense se allia ao eterno mysterio da poesia feminina, mulheres que se vestem como duquezas modernas, e sorriem, enygmaticas e suggestivas, como a Monna Lisa, eternamente indecifravel, do pintor florentino.

Mulheres que sabem ouvir, que sabem comprehender, e julgar, e consolar, e amar; mulheres que, sendo perversas, teem o encanto diabolico da princeza de Cadignan e de Mme. Marneffe, e que, sendo puras, se chamam Henriette de Morsauf, Duqueza de Langeais; mulheres que são ao mesmo tempo imaginarias [10] e reaes; que ficaram representando na historia um papel preponderante e caracteristico, como as inspiradoras da Renascença italiana, como as amigas gregas de Socrates e de Platão.



II



O comboio levava-me, rapido, ferozmente rapido. Levava-me para longe do meu ninho, dos meus filhos, de tudo que me faz a vida consolada e boa, de tudo que me dá força para o trabalho, para a lucta, de tudo que enche de bençãos a minha existencia laboriosa e triste...

Á paizagem arida, pedregosa, da Extremadura hespanhola succedia um scenario mais animado, mais caracteristico. Aldêas que desde os tempos hispano-arabes se conservam na mesma immobilidade barbara, sinos altos de egrejas gothicas, perfis apenas entrevistos de velhos conventos, ninhos de cegonhas nas arvores [12] que pareciam correr commigo, sombrias manchas de arvoredo que o vento torcia em attitudes de desesperada supplica...

A grandeza alpestre dos Pyrenéos e a França, a França emfim!... Oh! que jubilo estranho e mysterioso se mesclou então com a saudade que me ia alanceando e cortando as raizes da alma!

A França! Como eu tinha levado annos a amar e a sonhar esse paiz entre todos aureolado aos meus olhos da luz que vem de cima!

Outras que para lá partem levam projectos de requintada elegancia para pôr em pratica. Irão ao Redfern, o alfaiate afamado da rua Rivoli, que veste tão primorosamente as francezas de alto cothurno; irão ao Worth, popularisado pelos romances modernos; á Laferrière, que veste as actrizes de mais fama; ao Felix, que principescas encommendas acabam de singularisar; comprarão na Virot o ultimo modelo de chapéo; receberão chez Lenthéric des conseils de beauté, que elle dá carissimos, pela hora da morte, segundo a expressiva phrase portugueza, e que de resto tão pouco aproveitam a quem os recebe; interrogarão anciosas a elegancia avulsa da parisiense que [13] passa, pedindo-lhe o segredo, que só ella tem, de andar por sobre o solo molhado ou enlameado, sem macular de leve a fimbria, gentilmente arregaçada, do seu simples, gracioso e bem posto vestido escuro, que se amolda sobre um espartilho de mestra, com a nobreza com que sobre o corpo de uma estatueta de Tanagra se amolda a roupagem de linhas magistraes que o envolve sem encobril-o; o segredo de collocar sobre a sua fina cabeça pequenina, lindamente penteada, ou antes, lindamente despenteada, um minusculo chapéo, similhante a uma borboleta ou a uma flôr, que o vento parece querer levar, e que não leva nunca...

O Paris que as attrahe é o Paris da moda, da elegancia, do chic, do concours hippique, da avenue des Acacias, do vernissage e dos pequenos theatros gaiatos. O Paris que as attrahe é o dos figurinos, das lojas de modas, dos ourives da rua de la Paix, dos frequentadores do boulevard des Italiens e da Madeleine.

O Paris que, na velocidade vertiginosa, quasi tragica do expresso, surgia ante meus olhos, era um Paris phantastico, unreal, feito, construido, cimentado com o genio dos seus grandes [14] artistas, dos seus grandes poetas, dos seus historiadores, dos seus moralistas, dos seus sabios, dos seus criticos, dos seus dramaturgos, dos seus romancistas geniaes!

A França, a que minha alma aspirava, como aspira ás paizagens desoladas da Palestina a alma dos grandes ascetas do christianismo, como aspiram á mystica e penetrante atmosphera de Bayreuth os fanaticos da religião wagneriana, era a França que desde Jean Goujon até Rodin, e desde o Poussin até Puvis de Chavannes, e desde Froissart até Michelet, e desde Mme. Laffayette até Georges Sand, e desde Balzac até Zola, e desde Pascal até Renan―um, o catholico que se inclina sobre o abysmo da duvida, outro, o sceptico que tem a uncção evangelista de um santo... e desde Montaigne até Anatole France, e desde Racine até Bourget... os finos psychologos do eterno feminino―e desde Ronsard até Victor Hugo, e desde Marot até Verlaine, e desde a grande renascença do seculo XVI até ao magnifico movimento do romantismo, têem enchido o mundo da arte, e da poesia, e da realidade, e da ficção, de obras primas sem conta e sem medida!...

[15] De pequena tinham-me ensinado essa lingua tão clara, que milhares de artistas forjaram, bateram, cinzelaram, incrustaram de pedrarias coruscantes, esmaltaram de riquissimas côres, metal precioso feito de todos os metaes, e que tem qualidades de flexibilidade, de elegancia, de sonoridade, de harmonia, de colorido, e de pujança absolutamente incomparaveis e inimitaveis... De pequena tinham-me mettido nas mãos as obras primas dos seus genios mais brilhantes, e eu sentia-me no intimo da minha alma mais franceza ás vezes do que propriamente peninsular.

Ah! mas que melancholico foi o despertar do meu ambicioso, do meu doido sonho!...

Atravessei, com uma rapidez que me deixou confusa e palpitante, o Paris da minha evocação de vidente; estavam mortos os amigos que me tinham alimentado com a medula do seu cerebro, ou com o leite da sua poesia, e, vivos que fossem, alli perto d'elles, na atmosphera em que elles tinham respirado, nas ruas em que elles tinham morado, no scenario que elles enchiam do seu nome é que eu, pela primeira vez, ia sentil-os longe, muito longe de mim, na incommensuravel distancia moral, [16] que a proximidade physica revelava de repente ao meu chimerico espirito de sonhadora!


Senti então o que nunca julguei que sentiria n'esse paiz que eu reputava positivamente a patria do meu espirito! Senti uma nostalgia tão violenta, tão dolorosa, que pensei morrer d'ella! Uma especie de desaggregação intellectual, que deve ter nome na pathologia do cerebro, mas que eu não sei scientificamente classificar―o que de resto não admira nada!

Esqueci-me do que aprendera, fiquei-me em uma especie de assombro mudo, em que a saudade de Portugal punha uma nota alanceadora, torturante.

O que os livros me tinham revelado foi como que varrido da minha memoria; os sonhos que eu tinha edificado sobre a minha vinda a Paris, desmoronaram-se em uma especie de estranho cataclysmo, e percorri a linda capital da Europa civilisada, não como uma pessoa que de antemão, e por muito os ter visto descriptos, conhecesse os seus encantos, as suas bellezas soberanas, os filtros subtis que do seu pavé de bois se exhalam de envolta com o [17] cheiro penetrante da terra sempre humida e sempre regada, a festa perenne das suas ruas e avenidas onde a miseria não vem pôr a sua mancha livida, onde perpassa uma multidão sempre garrida e sempre feliz, a perfeição nos seus theatros, a perversa poesia das suas canções fim de seculo, a tenra verdura das suas arvores, tão bem cuidadas que parece que de manhã cedo as lava todos os dias, a esponja e sabonete, um exercito de invisiveis jardineiros, a lindeza da sua luz que á tarde se faz de um cinzento roseo como o das paizagens de Corot, tão inexprimivelmente bellas... mas como um ser inteiramente novo às impressões da vida extra-civilisada e que d'ella recebesse uma especie de choque estupidificante!

Através de tudo, o que eu sentia vivo, absorvente como um cauchemar, era a saudade do meu paiz, da minha Lisboa das sete collinas, construida em amphitheatro, sobre o Tejo amplo e azul, da bonhomia d'este nosso viver um pouco provinciano, pacato apesar do ridiculo de parodia involuntaria que ás vezes o desfigura e o desnacionalisa, da familiaridade com que todos nos conhecemos, nos amamos através do debique permanente, em que andamos [18] uns a respeito dos outros, da tranquillidade um tanto adormecida do nosso espirito, do amor da casa que distingue todo o bom lisboeta, da ausencia de ambição que, exceptuando as alturas procellosas da politica, imprime o seu cunho esterilisador, mas calmante, em todas as nossas almas serenas...

A lingua então, a musica da lingua patria, fazia-me uma falta dolorosa. Tinha sêde de ouvir falar portuguez!

E preferia aos divertimentos que a engenhosa amabilidade do meu querido hospedeiro me proporcionava, e ás excursões artisticas em que elle era um cicerone incomparavel, instruidissimo, raffiné, cheio de idéas originaes e suggestivas, as tranquillas e doces noites passadas em Neuilly, na luz discreta da lampada Carcel, que um quebra-luz côr de rosa fazia mais acariciadora e mais suave, e onde a familia adoravelmente intelligente, e inolvidavel para mim, de um escriptor portuguez, que é um artista da mais pura raça intellectual e da mais ampla envergadura de engenho, me fazia uma especie de pequenina patria. Alli a conversa tinha o tom preguiçoso da nossa conversa, os gostos combinavam-se com os meus [19] gostos, os nossos geitos especiaes de portuguezas manifestavam-se a cada instante, e o que a graça feminil de umas combinada com o genio nervoso e original de outros podiam dar de delicioso ao meu espirito, harmonisavam-se para me fazer esquecer a patria, os filhos, os outros amigos ausentes!

Nem sabem―n'esse ideal cantinho do mundo onde vivem, um pouco alheados da civilisação babylonica que os aperta, os cinge e os invade ás vezes―elle, o artista laborioso e apaixonado mettido no seu trabalho austero e impeccavel, como um monge na sua cella estreita, ellas, as duas encantadoras irmãs, envoltas na grinalda viva de lindissimas flôres humanas, que são para uma tudo, e quasi tudo para o coração instinctivamente maternal da outra,―nem sabem o bem que me fizeram n'uma d'estas crises absurdas que só os nervosos conhecem e das quaes o mundo estupidamente ri!

Foi ahi sobretudo que eu, curada d'aquella violenta nostalgia que ameaçava inutilisar inteiramente o resultado moral da minha viagem, reaprendi a gosar Paris, não já o meu Paris ideal, especie de babylonia construida [20] em nuvens, mas o Paris verdadeiro, o Paris real, tal como elle lentamente me foi sendo revelado pelo intelligente cicerone que eu tive a fortuna de ter no meu divagar de touriste.



III



Folheio ao acaso as notas escriptas a correr, na rapidez da minha viagem, e transcrevo-as para aqui, na sua sinceridade frisante.

É, de resto, o unico merito que hoje podem ter as notas de viagem, o temperamento pessoal do artista que viu, através das impressões que a sua visão lhe deu. Mais nada. Tudo está dito, e não ha quem acorde uma emoção nova, na alma do leitor blasé pelo conhecimento da obra dos grandes artistas que viajaram. O proprio Bourget, que é um mestre, cujo unico defeito é ter vindo um pouco tarde, depois de muitos outros, está reduzido a chamar Sensações de Italia ao seu livro encantador de viagem na terra classica da Arte. As sensações [22] que a Italia lhe deu a elle, eis unicamente o que o delicado escriptor se atreve a contar, certo de que toda a essencia de poesia que d'esse maravilhoso e fecundo solo se pode extrahir, outros a extrahiram antes d'elle por lá ter passado.

A minha unica desculpa vem a ser esta: costumada a contar n'este mesmo logar as impressões colhidas na leitura dos livros, porque me não atreverei a completar, a ampliar, a desenvolver essas impressões livrescas com outras colhidas em diversos ramos de arte; mais directas, mais reaes?...


―Acabo de sahir do Louvre, onde fui visitar as galerias da esculptura e principalmente essa sala entre todas privilegiada e bemdita, onde a Venus victoriosa, a Venus de Milo, esplende na sua sagrada formosura.

Chamava-me de longe, como um sortilegio poderoso exercido pelo Bello, essa figura que eu tinha mil vezes visto em reproducções, em estampas, em photographias, que me tinham dito ser a suprema divinisação do corpo feminino, e que eu ia pela primeira vez contemplar na sua genuina pureza marmorea.

[23] A minha impressão, comquanto profunda, tem o seu quê de incerto e duvidoso. Porque? Será porque a Venus não realisou o sonho que eu fizera da perfeição ideal dos seus contornos e das suas linhas? Não. Ella é realmente a belleza augusta, sobrehumana, ideal, como a proclamam unanimes os que a tem visto e julgado.

Mas é que eu não tenho em mim enraizado como uma religião da infancia, fazendo corpo com as minhas crenças, idéas e sentimentos, esse culto da belleza physica que foi a feição primacial da civilisação dos gregos.

Para mim um corpo divino é uma expressão litteraria, não é um dogma de esthetica instinctiva.

Por isso, através da bella estatua procuro adivinhar, nas suas linhas mais geraes, a extincta civilisação que ella representa, de que ella é como que o remate e a flôr!

Como Taine diz tão bem, «todas as grandes cousas um pouco remotas correspondem a sentimentos que já não temos.»

Precisamos de os reconstruir pela reflexão; e como ainda os menos profundamente instruidos têem uma educação cosmopolita e multipla, [24] em que umas poucas de concepções de arte se ajustam e sobrepõem, como nós temos, adquirida laboriosamente, ou bebida no ar que respiramos e nas rapidas leituras que fazemos, uma noção, profunda ou elementar, de cada uma das civilisações que antecederam a nossa, acabamos depois de algum tempo de meditação por comprehender, com o espirito, não com a alma, o sentimento que inspirou a obra de arte que estamos contemplando um pouco inintelligentemente.

O snobismo artistico consiste em fingir que se entende tudo á primeira vista, mesmo as cousas mais avêssas ao nosso temperamento individual ou nacional. Evitar esse snobismo a todo o custo, deve ser o decidido empenho de qualquer espirito honesto e sincero.

A Venus é, mesmo para o simples profano, uma esplendida revelação de arte? É, de certo.

Não póde um corpo feminino ondular em linhas mais puras, não póde a branca flôr do marmore palpitar com mais intensa vida.

Pela graça magestosa da sua mutilada attitude (que fazia ella quando tinha os seus divinos braços, perguntam debalde os criticos especiaes da arte grega!), pela serenidade ineffavel [25] da sua posição, pela harmonia absoluta das suas linhas esculpturaes, pelo rythmo inspirador do seu corpo marmoreo,―a Venus de Milo, brotada do cinzel de desconhecido artista, na hora mais feliz da arte da Grecia, logo depois de Phidias lhe haver imprimido o sello supremo de sua grandeza, antes do escopro de Praxiteles a haver impregnado de uma languida graça voluptuosa, de um sensualismo requintado e enervante, que decahe mais tarde na imitação anti-esthetica da Natureza, nos realismos da polychromia, na extincção final do gosto e do puro ideal artistico: a Venus de Milo merece ser considerada, como diz Paulo de Saint Victor, aquella Eterna Belleza que Platão adorava, a Venus victrix cujo nome Cesar dava por senha aos seus soldados na vespera de Pharsalia, e em todo o caso a mais bella interpretação, que os modernos possuem d'esse feminino eterno que a Grecia tanto amou, que no mundo historico ella foi a primeira a amar, e cujo culto poetico e sensual traduziu nos seus mythos divinos, nos seus ritos magnificos, na sua arte incomparavel...

Comtudo, nós sómente possuimos truncados restos, fragmentos secundarios da esculptura [26] grega e não somos capazes, senão por dilettantismo e por curiosidade intellectual, de comprehender bem o culto apaixonado que ao corpo humano foi consagrado pela Grecia.

É necessario avistar ao menos de longe essa raça simples, viril, intelligente e bella, que foi de todas as raças a unica que poz a sua concepção da felicidade humana em perfeito accordo com a sua concepção das leis do Universo, que á realisação positiva de todos os seus instinctos chamou Virtude, e á encarnação de todos os impulsos naturalistas deu o nome de deuses; que tendeu ao aperfeiçoamento, e ao desenvolvimento pleno da natureza humana na sua constituição politica, no seu organismo social, nos seus costumes, na sua arte, na sua religião; que fez deuses á similhança dos homens para os poder amar, e que, chegada ao ponto culminante da sua perfeição artistica, esculpiu homens á similhança de deuses para lhes render culto...

Que nos importa hoje, a não ser como exercicio d'arte, a belleza ideal de um corpo de homem ou de um corpo de mulher?

Para nós a belleza tem outras regras bem mais complicadas, bem mais subtis, e tão difficil [27] nos é conceber um corpo sem defeito, movendo-se na plena graça e na plena liberdade da sua harmonia muscular, como seria á Grecia conceber o nosso moderno ideal do bello, todo em expressão, com a alma atormentada e complexa que se revela principalmente através do gesto, através do olhar, através da physionomia ardente e devastada...

Para a Grecia, porém, habituada a realisar a perfeição, não sómente no marmore, que isso veiu mais tarde como complemento e como resultado, senão na propria carne humana, e que seguia todos os processos pelos quaes uma raça de homens se desenvolve, se robustece, se apura, se requinta, até poder attingir a belleza suprema: que empregava não só a eliminação systematica de todos os productos defeituosos, não só o cruzamento forçado dos fortes e das bellas, mas tambem os exercicios permanentes da força, e da graça robusta e livre, nos jogos do gymnasio, na orchestrica, nas dansas guerreiras ou sacerdotaes, na educação, emfim, do corpo levada ás mais minuciosas praticas que podem depurar-lhe as formas e desenvolver-lhe as latentes energias―para a Grecia a belleza physica é mais que uma virtude, [28] é uma condição absoluta da vida nacional.

Sem belleza, isto é, sem harmonia, não ha força; sem força como é que a pequena Grecia venceria a poderosa Persia? Como é que ella chegaria a ser o nucleo de extraordinaria civilisação, de que ainda hoje, apesar de trinta seculos de mutilações continuas, a nossa alma se alimenta, nutre e revigora?



IV



Mas quem nos diz a nós que a Venus de Milo, objecto de uma ardente e justa admiração entre os modernos, não fosse no fim de contas uma estatua vulgar no seu tempo?

Os grandes esculptores gregos, aquelles cuja chronologia e cuja historia chegaram até nós, descobertas pela paciente erudição, em alguns fragmentos de Plinio, de Pausanias, de Cicero, de Quintiliano, não faziam as suas obras mais preciosas senão em ouro, em prata, em marfim, em materias firmes bem mais raras que o paros e o pentelico, de que hoje se guardam nos museus os torsos mutilados, os fragmentos soltos, as reconstituidas estatuas.

[30] Ao pé do que se sumiu d'essa sublime estatuaria grega, flôr suprema d'aquella civilisação de athletas, de gymnastas, de oradores e de heróes, quantas attitudes para a «esculptura»! O que resta vale bem pouco, e representa apenas como documento de uma éra extincta.

Mas pelo que resta, nós sabemos que o corpo bello, viril, robusto e são, movendo-se livremente sob a claridade azul de um céo sem manchas, era o ideal artistico d'esse povo que, mais feliz que nenhum outro, traduziu integro e immaculado o seu sonho da vida, e―para quem é a vida, mais que um sonho?―na religião, na arte, na poesia, nas paginas luminosas de Homero, Eschylo e Platão, na fórma sublime da sua Acropole, ante a qual Renan soltou aquelle melancolico e sublime grito de amor, nas frisas e estatuas dos seus templos, nas ceremonias divinas e inspirativas do seu culto, que ora são castas como a longa procissão das Panatheneas, ora são soberbas de força e de pujança animal como as dansas e os jogos de ephebos nús...

A Grecia amou a sobriedade, a correcção, a graça e a força.

E depois de percorrer um periodo longo e o [31] progressivo da iniciação, chegou ao ponto de combinar e fundir os extremos mais oppostos n'aquella completa harmonia, que só uma vez se realisou na terra e que não torna mais!

Que importa, porém, que não torne?

Bastou que apparecesse uma vez, que brilhasse sobre nós, astro longinquo e puro hoje apagado e de que ainda vêmos o reflexo calmo, para que o mundo ficasse eternamente ungido d'aquella graça mysteriosa, d'aquelle divino atticismo que em alguns raros eleitos resplandece e de que todos temos o presentimento, a sêde, ou a avidez!

Por isso Renan, a alma mais accessivel á influencia do bello de que talvez possa ufanar-se o nosso tempo, dizia no alto da Acropole estas palavras que traduzem um sentir universal que até alli não achára expressão condigna:

―«Ó Natureza impeccavel! Oh! simples e verdadeira Belleza! Deusa cujo culto significa sabedoria e razão! oh! tu cujo templo é uma lição eterna de sinceridade e consciencia! chego bem tarde aos umbraes dos teus mysterios; venho ao teu altar cheio de remorsos! Para te encontrar, que infinito esforço eu fiz!

[32] «A iniciação que, n'um sorriso, davas ao atheniense na primeira infancia, só á força de reflexões e de esforços eu pôde conquistal-a!

«Tu só és moça! tu só és pura! tu só és sã! tu só és invencivel!»

Um outro critico profundo, que estudou a Grecia com o amor com que se estuda a civilisação-mãe, de que todas mais ou menos dependeram depois, diz que no caracter nacional d'essa raça se discriminam claramente os tres traços fundamentaes que constituem a intelligencia de um artista.

Estes tres traços são a delicadeza da percepção, a necessidade absoluta da clareza e o amor e culto da vida presente.

O primeiro d'esses traços permittiu-lhes perceber as relações secretas das cousas, deu-lhes o sentimento fino e raro das nuances, e a suprema aptidão para construirem conjunctos de fórmas, de seres e de côres, combinações de circumstancias e de elementos tão bem ligados entre si e por tão estreita identidade de relações, que a sua creação de arte foi tão viva que excedeu no mundo imaginario a harmonia preestabelecida no mundo real e verdadeiro.

Ao segundo deveram o sentimento da proporção [33] que possuiram como nenhum outro povo, o odio ao vago e ao abstracto, o desdem pelo monstruoso e pelo enorme,―que é a marca distinctiva do Oriente, do qual elles só aproveitaram o bom,―o gosto dos contornos firmes e precisos. O amor e o culto da vida presente bem o revelaram na sua religião sem mysterio e sem au delá, na sua paixão pela belleza plastica, na sua sêde de serenidade e de alegria, no seu antagonismo ingenito com a doença, com as miserias physicas ou moraes, no seu encantamento absoluto, e que é para nós immoral mas que para elles o não era, deante do corpo nú, representação suprema da força, da graça, da saude e da belleza...

Uma raça tão maravilhosamente dotada, idealista e positiva a um tempo, tinha por força de traduzir-se no esplendor das artes plasticas.

O espectaculo permanente dos bellos corpos nús, ou envoltos lassamente na elegante e longa tunica que na altura do joelho se duplica e cahe sobre os pés em pregas esculpturaes de inimitavel graça, a contemplação habitual d'essa raça que se distingue pela nobreza simples das attitudes, pela perfeição athletica da fórma, [34] pela serenidade do aspecto que as nossas mesquinhas ambições ou o nosso devastador pensamento não tinham convulsionado,―tudo devia naturalmente produzir, pelo pendor imitativo que caracterisa o espirito do homem, a maravilhosa floração de artistas sublimes que ao principio tentaram e depois conseguiram libertar a noção do bello da estreita prisão que o cingia e apertava, fixar no marmore, no ouro, no marfim e no bronze a soberba visão da força militante ou graça ingenua e pura!

Como é interessante seguir a evolução da arte grega desde o ponto em que ella parece ainda pedir á inspiração hieratica do Egypto o molde incorrecto que a liga e mumifica, até a hora em que Praxiteles arranca do marmore a sua Venus de Gnido, de que a Anthologia canta assim a voluptuosa formosura:

«Cythera trazida pelas ondas foi a Gnido admirar a propria imagem, e após longa contemplação falou d'est'arte: Onde é que Praxiteles me viu sem véos?... Não, Praxiteles não ousou violar-te com olhar sacrilego. O que elle fez foi representar-te com o cinzel qual te havia sonhado!»

Ao principio, a architectura e a estatuaria, [35] estreitamente unidas, pareciam identificadas e inseparaveis; mas quando a estatuaria se emancipou, não foram sómente as frisas e os baixos relevos dos templos, as colossaes effigies da «cella» interior, que captivaram e deslumbraram o olhar do povo grego, foram as soberbas figuras erguidas ao ar livre, a Athenêa colossal de Phidias, a Sosandra de Kalamis, as mulheres de Carya, a Artémis divina em volta de cuja estatua as virgens da Lacedemonia vêm tecer annualmente as suas dansas rituaes!

Desappareceu o ingenuo symbolismo primitivo, que representava cada divindade com os attributos do seu poder, ou com os accessorios significativos das transformações naturaes de que ellas todas eram a concreta imagem; agora o que se revela ao fanatismo de belleza que palpita na alma grega, são divinos corpos de mulheres em toda a magnifica pujança da sua belleza creadora, em toda a graça adoravel da sua feminina poesia.



V



A estatua deante da qual eu acabo de passar algum tempo, pedindo-lhe o segredo do perdido Ideal que ella traduz, representa, como eu já disse, esse momento fugitivo e bello da vida grega.

Esculpiu-a um desconhecido artista: mas não são totalmente desconhecidos tambem para nós, os pobres oleiros que amassaram e modelaram as lindas estatuas encontradas nos tumulos de Tanagra e não são tambem ellas a poesia, o encanto, o velado mysterio, a ineffavel graça?

Falando d'ella, diz Paulo de Saint Victor: «Oh! bemdito seja o camponez grego, cuja enxada exhumou a deusa enterrada ha dois mil annos em uma leiva de trigo!... Graças [37] a elle, a idéa do Bello ascendeu mais um gráu sublime, o mundo plastico encontrou a sua Rainha!... A belleza ondula d'essa cabeça divina e espraia-se em todo o corpo como uma luz!... Só a lingua de Homero e de Sophocles seria digna de celebrar tão regia Venus! Sómente a amplidão do rythmo hellenico poderia moldar, sem deslustral-as, fórmas tão perfeitas!

«Por que palavras exprimir a magestade d'esse marmore triplamente sagrado, a attracção mesclada de assombro que elle inspira, o ideal supremo e ingenuo que revela?»

E Theophile Gauthier, descrevendo-a, diz assim:

«A fronte soberba, de linhas curvas, cingida pelas bandelettes do penteado, é tal qual a podiamos sonhar para séde de uma alma divina; o collo direito e firme lembra o fuste de uma columna dorica, o seio de virgindade eterna é digno de servir de modelo, como o de Helena, para a taça dos altares!»

E, no emtanto, essa bella e pequenina cabeça, que uma graça ideal nimba eternamente, não é tal como elle diz, séde de uma alma divina. A Venus de Milo não pensa. N'aquella [38] branca flôr marmorea uma alma vegetativa sonha e dorme! Que sabe ella da Vida e das suas longas tragedias, que sulcam de rugas profundas a fronte pallida das mulheres, que contorcem em ancias, indomitas como o Oceano, a alma dos homens?

Quem lhe revelou, a ella, o segredo das nossas paixões que devastam, das nossas luctas que ou disvirilisam ou depravam, das contradicções medonhas de que erriçamos o nosso cruel destino, dos abysmos que abrimos debaixo dos nossos cançados pés? Que presentimento sequer tem ella―a deusa inalteravel e serena―de tudo que a engenhosa imaginação dos que vieram depois―deuses e homens―inventou para se torturarem e nos torturarem?

Os dois mil annos que temos a pesar-nos sobre a cabeça e sobre o peito, passou-os ella ignorante e tranquilla sob a terra da Grecia.

O que ella representa é um momento risonho e curto da existencia humana; um momento em que tudo é bello e harmonioso na terra e no céo, em que, para imitar os deuses que crearam, os homens não precisam de deixar mutilar as suas energias mais vivas, os [39] seus instinctos mais naturaes; um momento em que o amor é sagrado e puro como a fonte inexgotavel dos sêres, e como tal tem culto e tem altares; um momento em que a Natureza é benevola e sã, e em que da espuma dos mares da Jonia póde brotar a flôr maravilhosa da eterna belleza, em que a inconstancia das ondas, a perfida doçura das sereias, o abysmo glauco, que tem no fundo grutas de esmeralda collaboram em uma obra divina e produzem um symbolo immortal...





Que differença d'essa concepção propria á esculptura antiga e a nossa de hoje, tão fundamentalmente opposta nos fins e nos processos!

E no emtanto a estatuaria franceza representa no seculo XIX um momento glorioso da historia da arte! Mas desenganem-se. Póde a estatuaria franceza moderna revelar um grande talento da parte de quatro ou cinco ou mesmo mais individuos; não é, não pode já [40] ser uma necessidade, uma aspiração da raça, universal e irreductivel!

É um esforço de talento individual, não é o rebento vigoroso e vivaz em que desabrocha finalmente a alma de um povo!

Depois da minha visita incompleta, mas cheia de interesse, ás galerias da antiguidade classica, fui ao Luxemburgo vêr as estatuas francezas modernas, e procurei, nos monumentos erguidos aqui ou alli, á memoria de um artista querido ou de uma gloria nacional, o sello, a marca, pelos quaes uma arte revela as intimas fibras de que é feita.

Vi corpos de mulher verdadeiramente encantadores! O marmore, branco de mais, tinha a fluidez da carne tenra sob a qual o sangue, púrpura viva, circúla rico e livre, mas pareceu-me que a preoccupação da expressão dominava absolutamente os artistas e que elles tinham quasi todos perdido o segredo em virtude do qual um corpo humano, masculino ou feminino, interessa por si só, pela harmonia das suas proporções, pela liberdade com que jogam os seus musculos, pelo rythmo mysterioso de cada uma das suas linhas.

E voltei d'essa peregrinação artistica sempre [41] mais convencida, de que a esculptura é talvez a mais bella das artes, mas a que está em menos harmonia intima com o nosso ideal da vida!

Que temos nós feito em um longo esforço de dezenove seculos, apenas interrompido pelo movimento artificial, erudito e artistico, mas não popular da Renascença?

Temos contrariado pertinazmente a acção da Natureza sobre os nossos gostos, instinctos e paixões. O que é o christianismo na sua essencia philosophica e na sua influencia social? Uma reacção violenta e permanente contra essa noção pagã da existencia que fazia d'ella uma festa perenne e magnifica; que fazia do corpo humano alguma cousa de sagrado e de inviolavel, que tudo devia tender a satisfazer e a servir; que fazia dos instinctos naturalistas da nossa especie a lei suprema a que céo e terra se subordinassem, pois que os deuses para serem amados deviam ter e tinham as paixões que hoje fazem os homens criminosos.

O animal humano era realmente então o rei da creação, mas nenhuma das suas forças enfraquecera ou diminuira, nenhuma das suas energias fôra mutilada, nenhum dos seus instinctos [42] domados, e elle movia-se livre, feliz, triumphante e bello, em uma atmosphera de apotheose, que nenhuma sombra vinha sinistramente obumbrar.

A antiguidade grega não é uma orgia, porque a orgia precisa de ter por fundo a consciencia do peccado, e a Grecia em tudo que fez de peccaminoso e de immoral aos nossos olhos, não violou nenhuma lei divina, não foi de encontro a nenhum preceito dogmatico; pelo contrario, obedecendo ao seu instincto, obedeceu á sua religião.

D'esta harmonia entre a lei moral, que então não existia senão rudimentar, e a realidade physica, vem a sua immensa felicidade e o encanto incomparavel da sua civilisação.

Para o christianismo, pelo contrario, o corpo é o involucro, amaldiçoado as mais das vezes, de paixões condemnaveis, de instinctos que é necessario a todo o custo dominar, subjugar, vencer.

Não é impunemente que a especie humana tem vivido acurvada durante longos seculos a este jugo incomportavel.

Resente-se d'elles até a revolta dos atheus.

Por isso a nossa concepção da belleza physica, [43] partindo de outras fontes mais profundas e mais turvas, não podia ter nunca a incomparavel claridade que tem o ideal grego. Os esculptores, que conservam na sua alma o cunho indelevel que alli tem imprimido a civilisação christã, á belleza do corpo humano prendem fatalmente considerações de ordem complexa que não influenciaram a estatuaria antiga.

As mulheres teem a attitude languida de peccadoras nuas, a carne, que o marmore quer fingir, e que tem d'ella ás vezes a flexibilidade, a macieza, a vibratil poesia, tem tambem palpitações e solicitações voluptuosas que a grave e simples belleza nunca deve suggerir aos que a contemplam e que não suggeria aos contemporaneos de Phidias!

Isto não quer dizer que desde a antiguidade a esculptura seja uma arte morta. E seria realmente sacrilego que tal avançasse, quem viu curvada, em religioso assombro, a reproducção fiel d'essa Noite de Miguel Angelo, de uma tristeza tão tragica e sublime, e o grandioso Moysés de biblica magestade incomparavel, e o Penseroso, e o San Jorge do Donatello, cuja nobre attitude altiva faz passar um [44] calafrio de admiração pelos nervos ainda mais resistentes.

Mas quer dizer que a estatuaria é hoje uma arte destinada a satisfazer, não a alma collectiva das multidões, mas o espirito culto dos dilettanti e dos artistas; uma arte em que o genio individual póde manifestar-se sublimemente e lá está a Porta de Bronze que Rodin anda esculpindo que o diga, e lá estão os tumulos de Barrias, e lá está o baixo relevo de Rude, e lá estão as innumeras estatuas, os innumeros monumentos que enchem as praças e os museus affirmando que a França d'este seculo possue uma intensa vitalidade artistica que a honra a deve encher de justo orgulho. O proprio Falguière, um pouco amaneirado como é, e dando ao marmore palpitações sensuaes e lubrica languidez, lá tem no monumento erguido na Escola das Bellas-Artes a Henri Regnault uma figura de mulher deliciosa e viva, que faz estremecer de goso o verdadeiro artista, isto para não fallarmos na sua formosa Diana por quem consta que morreu de amor um pobre hysterico, dos muitos que andam enchendo este triste mundo com o espectaculo das suas perversões morbidas!

[45] A arte moderna, a que inspira a todas as almas de hoje o mesmo spasmo de agonisante prazer, é a musica. Essa sim, que é para nós o que a estatuaria pura, augusta e simples foi para os athenienses, o que a architectura gothica foi para as torturadas almas idealistas da idade media, o que a pintura foi para os renascidos pagãos da Renascença italiana, ébrios de côr, de luz, de vida. Essa sim, que é de nós todos, e que nos faz vibrar, chorar, soffrer, e nos consola e nos tortura, e nos arranca a nós mesmos e nos leva ao Inferno e ao Céo.



VI



Visto que no outro capitulo fallei, não na inferioridade o que seria um mal escolhido termo, mas na differença que distingue a estatuaria moderna da estatuaria antiga, vou dizer alguma cousa a respeito de um dos artistas mais palpitantemente modernos, mais caracteristicamente diversos dos antigos que hoje possue a França e a quem de passagem me referi nos meus anteriores artigos.

Este artista é Rodin. Os seus principios foram rudes e difficilimos, como o de quasi todos os verdadeiros artistas, quer dizer d'aquelles que trazem comsigo um temperamento tão accentuadamente independente e tão intransigentemente pessoal, que desnorteia todas as rotinas e revoluciona todas as estheticas estabelecidas e todas as escolas triumphantes.

[47] Hoje Rodin é, elle proprio, um triumphador.

Acceitam-lhe as suas audacias, proclamam-lhe a altiva independencia artistica, chamam-lhe um dos primeiros, senão o primeiro esculptor do seculo.

Nem sempre comtudo succedeu assim.

Quando elle primeiro apresentou no Salon a sua figura denominada «L'áge d'airain», que hoje, comprada pelo Estado, se admira no Jardim do Luxemburgo, a primeira impressão do Jury, diante da escrupulosa exactidão de algumas partes d'esse corpo energico, foi que o estatuario o tinha modelado sobre um corpo vivo e real.

Como se um tal excesso realista e anti-esthetico não fosse a condemnação de um artista e pudesse produzir outra cousa a não ser uma obra morta logo á nascença.

Foi em 1877 que a figura da «Idade de bronze» foi mandada ao Salon. Em 1881 Rodin expunha o «S. João de bronze», «um anachoreta magro e robusto, de musculatura devastada e solida, erguida sobre pés que a marcha endureceu, torso nodoso, habituado a todas as intemperies, com um gesto de prégador obstinado, [48] que levanta a face illuminada e aberta dos mysticos e dos colericos.»

Até 1885 Rodin, que ao pé do «S. João» expuzera tambem a «Creação do homem», apresenta na grande nave do Palacio da Industria os bustos expressivos e magistraes de Jean Paul Laurens, de Carrier-Belleuse, de Victor Hugo, de Dalou, de Antonin Proust.

No emtanto o acontecimento magno que até o presente domina a carreira artistica de Rodin é a concepção e a execução da «Porta», destinada ao «Museu das artes decorativas», á qual me referi já n'estas mesmas notas.

Fiz, acompanhada do meu amavel cicerone o trajecto longo que leva ao «atelier» de Rodin.

Caminhámos pela rua da Universidade, atravez dos longos boulevards e das largas avenidas que se entrecruzam ou correm parallelamente nas proximidades dos Invalidos.

É uma rua aristocratica e socegada; tem grandes palacetes e tem velhas arvores.

Outras vezes surprehendem-nos entre esses vestigios de antigas grandezas, pequenas casas graciosas com jardinsinhos á ingleza cuidados e cheios de flores.

No fim, perto da odiosa torre Eiffel, escandalo [49] de mau gosto, americanismo revoltante erguido em plena Athenas moderna,―a physionomia d'esta rua placida e tranquilla modifica-se bastante.

Grandes muralhas nuas, grandes tectos envidraçados, mais altos do que as muralhas, annunciam ao observador que entra n'um bairro de esculptores e pintores.

Entrámos no n.º 182.

Transposta a grande porta, que lembra o portão de uma das nossas quintas, achámo-nos dentro de um cerrado bastante vasto, em que o chão é musgoso e esverdinhado, em que ha recantos de herva alta e viçosa, e por sobre os muros do qual, verdes ramarias de arvores espreitam curiosamente...

A dois passos do vertiginoso movimento de Paris respira-se aqui uma paz profunda, uma quasi solidão melancolica e doce.

Aqui e alli, enormissimos blocos de marmore de fórmas diversissimas, de côr frigida e branca, de arestas que brilham como aço ou como vidro ao sol de abril, de veias azuladas em que parece gyrar um mysterioso sangue...

Dormem na severa prisão cyclopica d'esses blocos brutaes corpos airosos, leves, esbeltos [50] de nymphas florentinas, bustos delicados de Eva adolescente, divinas nudezas de que esses marmores são a primeira fórma rude, fórmas delicadas em que o genio do artista accenderá uma chispa mysteriosa de vida immortal.

Que deliciosas figuras de mulher um cinzel magistral arrancará d'essa massa dura e informe!

Como elle saberá flexibilisal-a em membros de uma graça serpentina, arredondal-a em braços que se abrem em uma curva deliciosa e suggestiva, derramar, sobre niveas espaduas nuas, a vaga fluida e revolta de uma cabelladura crespa e magnifica, entreabrir em um sorriso enygmatico finos labios femenis, allumiar de ignota chamma o globo cavado de uns olhos, desabrochar em molles curvas a flôr de um seio virginal...

Todas estas visões de um mundo increado nos são suggeridas pela vista d'esse campo cheio de pedras enormes, que á tarde, na luz rosea e violeta do crepusculo, parece―disse-nos alguem―uma charneca semeada de gigantescos tumulos...

Sobre esse armazem de pedra ao ar livre abrem as portas baixas dos «ateliers» de esculptores [51] que alli vieram buscar a commodidade e a solidão. Um d'elles é o atelier de Rodin, que eu ia visitar.





Infelizmente, foi trahida a minha anciosa espectativa. O mestre não estava, e o discipulo, que trabalha com elle,―um rapaz do Norte, de immensa distincção de aspecto,―nem sequer pôde mostrar-nos a esplendida Porta, que estava no compartimento fechado contiguo áquelle em que nós entrámos, para admirar alguns grupos de marmore, em que a poderosa griffe do grande esculptor se imprimira profundamente.

O talento de Rodin é tão pessoal, é tão inconfundivel a sua maneira, que, depois de se ter visto um corpo humano modelado por elle, não tornamos a confundir este poderoso manejador do cinzel com nenhum dos seus contemporaneos celebres.

Discipulo de Barye e de Carrier-Belleuse, a originalidade de Rodin destaca, comtudo, em uma energia indominavel.

E original é ainda o assumpto que elle escolheu [52] para essa Porta monumental, apesar de arrancado á Divina Comedia Dantesca. É uma transformação da idéa do poeta, não é uma copia do seu pensamento, nem um reflexo exacto da terrivel visão florentina.

Transcrevo de um critico eminente que fez a analyse da obra do esculptor a descripção d'essa obra soberba, que eu tanto quizera ter visto.

Mas, antes d'isso, o retrato do esculptor tal como elle apparece, envolto no prestigio de uma sympathia merecida, aos seus admiradores que se contam por milhares.

Rodin é baixo, atarracado e placido de aspecto.

A barba loura cahe-lhe em ondas fartas por sobre o peito, enquadrando um rosto friamente espiritual, um d'estes rostos de homem que valem principalmente pela luz interior que os illumina, e que ora traduz a serenidade silenciosa do trabalhador satisfeito com a sua obra, ora a distracção absorvente do artista em lucta com as difficuldades ingentes da execução manual, ora a preoccupação dolorosa do investigador insaciavel em busca do novo e do perfeito. A fronte de mystico, um pouco ogival [53] na fórma, é vasta bastante para conter um cerebro potente de pensador e de poeta.

O olhar e a voz estão em harmonia absoluta; olhar agudo, brilhante, que concentra em si a luz; voz doce, intima, penetrante, que se insinua, e onde um toque de causticidade põe não sei que estranho realce...

Tal o artista de tenaz vontade, a quem a estatuaria moderna, complicada e symbolica, revela os seus segredos mais subtis.

Como typo representativo da arte moderna, não o ha mais culto, mais philosophico, mais apto para entender tudo e tudo realisar.

E porque elle é assim, absolutamente incompativel com o simples ideal grego, é que procurou no grande poeta da Idade Média o assumpto da sua obra definitiva e magistral, obra de metaphysico e de observador, ao mesmo tempo que é obra de artista; representação tragica, complexa e soberbamente executada, da Natureza e da Vida, em alguns dos seus aspectos mais inquietadores.



VII



Tem seis metros de altura a famosa Porta. As estatuetas do alto, alguns grupos dos paineis, e os baixos relevos inferiores estão completos ou quasi completos, mas ha pela vasta officina, espalhadas no chão, nos sofás, nas cadeiras, em ètagères, estatuetas de todas as dimensões, em todas as posturas incoherentes, convulsas; de supplica, ou desespero, de agonia ou de dôr, dando a impressão de um campo de batalha em que os combatentes se conservassem todos vivos, ou de um cemiterio que houvesse resuscitado inteiro, em virtude de qualquer galvanismo prodigioso...

O escriptor a que me estou referindo considera [55] esta multidão de estatuas um agrupamento humano tão significativo, tão eloquente, tão expressivo em cada uma das suas mil attitudes, que só o apreciará quem o estudar individuo por individuo, como se folheia um livro pagina por pagina, como se lê uma partitura nota por nota, como se analysa um corpo fibra por fibra...

É a Porta do Inferno, quer dizer a agglomeração n'um drama cheio de movimento e de vida dos Instinctos, das Fatalidades, das Paixões inclementes que no homem vivem intensamente, dominando-lhe a vontade, vencendo-lhe a razão, subjugando-lhe as resistencias, dobrando-o sob a sua acção irreductivel, fazendo d'elle o instrumento inconsciente de uma força da natureza que a sua intelligencia não comprehende, e que a sua virtude não submette...

Sob o cinzel d'este artista genuinamente, apaixonadamente, sentidamente moderno que é Rodin, o poema do vate gibelino não conservou a côr local, nem tão pouco o colorido catholico que o especialisa.

O esculptor despiu o seu symbolo de toda a significação italiana e medievica, e sómente [56] aproveitou a moldura que elle lhe prestava para exprimir dentro d'ella os aspectos humanos e universaes, que o tempo não transforma e que o meio não pode alterar.

A Porta ainda está por concluir; sómente o enquadramento do poema esculpido se póde julgar executado e completo.

As divisões principaes, todavia, já podem ser imaginadas.

Começando pela parte inferior da Porta vê se que os baixos-relevos por sobre os quaes se vae erguer a composição principal, têem nos paineis centraes mascaras inolvidaveis, contrahidas por todas as expressões da Eterna Dôr.

Corre em doida grinalda viva, em roda d'essas physionomias atormentadas, uma dança vertiginosa de mulheres, de satyros e de centauros.

Pelos dois humbraes da Porta, sobe uma theoria de figuras apertadas no estreito espaço, alongadas, fluidas, em alto relevo parcial.

São as doces apaixonadas, as criminosas felizes da paixão illicita, os amantes que a mesma angustia entrelaça, e as velhas, que já perderam o que tinham de humano, e as creanças inconscientes, nascidas de pouco tempo e já marcadas [57] pela garra adunca da Vida, tentando em vão prescrutar com os seus olhinhos cegos o limbo incolor onde os membros rachiticos se lhes agitam convulsamente.

No alto, sobre o frontão ha tres homens que são a representação viva do distico dantesco: Lasciate ogni speranza. Inclinam-se uns sobre os outros na attitude da desolação inconsolada. Apontam com os braços extendidos para um ponto ignoto, a região do irreparavel, do horrendamente irreparavel.

Por debaixo d'elles á frente das multidões movediças, que constituem o primeiro circulo do inferno, um poeta nú, sem nenhum dos distinctivos que marcam uma época ou uma nacionalidade, medita, mas em uma postura de repouso.

Os membros fortes são feitos para as longas caminhadas e para as luctas asperrimas, o rosto inquieto e intrepido, que se crispa na obsessão de uma idéa fixa, reflecte e repercuta a piedade, a indignação, a tristeza, todas as sensações que excitam o pensador até ao enthusiasmo, e o commovem até á lamentação dolorida e tragica.

Aos pés d'elle, sob o seu triste olhar meditativo [58] passa em turbilhão vertiginoso, cahe no espaço vasio, ou rasteja dolorosamente a humanidade inteira, na sua teima feroz de viver, de viver atravez da lucta dilacerante, de viver despedaçada, torturada, sangrenta, com espasmos violentos de gozo que fazem soffrer mais do que as dôres, com agonias d'alma que lembram arroubamentos de extase!..

Extraordinaria a concepção do Mestre! Dizem que esses esboços, esses estudos, essas realisações plasticas bastam para provar a tenacidade de trabalho do obreiro maravilhoso, a actividade genial de um creador de seres vivos!

Cada figura isolada, cada grupo freneticamente enlaçado, cada representação de uma das mil paixões que cingem nos seus tentaculos de polvo o corpo fragil e a alma dolorida da pobre humanidade, affirma victoriosamente não só a destreza magistral do estatuario, como tambem a ardente visão do poeta e a comprehensão soberba do pensador.

Ha entre centenas de outros, cuja descripção acabo de ler enlevada, com pena inconsolavel de os não ter chegado a vêr com os meus proprios olhos, um que bastaria, segundo a mais [59] exigente critica assegura, para confirmar a grandeza de concepção, a força tranquilla e a doçura melancholica d'este grande artista, que em fórmas asperas, atormentadas, sem a molleza amaneirada de que hoje a estatuaria reveste o corpo humano,―soube encerrar e traduzir o infinito das tormentas moraes e a variedade horrorisante das dôres physicas.

Esse grupo é o de Francesca e Paolo, ou antes, tão supprimidas estão todas as condições do tempo e do logar, tanto escrupulo houve da parte do artista em conservar os caracteres geraes e puramente humanos, este grupo é o do amante e da amante, quer dizer do Amor.

Do Amor, não como a Grecia o pintou nos seus mythos risonhos, mas do Amor ardente, apaixonado, cruciante e doloroso, cruel e divino, prodigo em extasis e em torturas, em espasmos e em lagrimas, tal como a morbida imaginação de hoje o concebeu e creou!...

O homem é alto e forte, esbelto e flexivel. A mulher, em pleno desabrochar da puberdade, está sentada com tal ligeireza e tal meiguice sobre o seu joelho esquerdo, que parece pesar apenas o que pesaria uma ave.

A mesma doçura de contacto é perceptivel [60] aos sentidos no gesto com que elle, fazendo do braço um collar quente e caricioso, a prende a si, emquanto que a outra mão lhe toca no corpo com delicada ternura... Essa mão forte e musculosa, feita para se imprimir pesadamente nas cousas, tem a leveza divina do contacto de uma flôr.

O abandono da amante é completo. Enlaça-o como uma liana, enrola-se n'elle com um carinho em que ha a gratidão do amor feliz e a avidez insaciavel de caricias; e com a mão que lhe fica livre d'este abraço apaixonado toca femenilmente nos cabellos com um geito feito de timidez e de graça pueril.

A cabeça do homem inclina-se, a cabecinha da mulher ergue-se para elle e as duas boccas encontram-se em um beijo que é como que a união mystica de dois seres!

A extraordinaria magia d'esse beijo consiste n'isto: é um beijo visivel! Visivel na impressão violenta que contorce em uma attitude de sedenta adoração o corpo do homem; visivel no arroubamento da mulher todo ardor e todo graça!

É triste e deliciosa essa representação sublime e symbolica do amor humano. Envolve-a [61] como que o nimbo da tristeza que envolve aos nossos olhos tudo que é bello, intenso de vida e condemnado á morte!...

Como vêm, a inspiração de Rodin participa do que mais agudo tem a observação da vida real, da vida verdadeira em todas as suas manifestações e fórmas physicas, e de tudo que mais alto e subtil tem a poesia das cousas e que d'ellas se destaca como um perfume inebriante, capitoso e perturbador!

O que elle principalmente traduz é o amor nas suas infinitas modalidades tragicas ou divinamente bellas...

O amor dos nervos, o amor da carne e o amor da alma entrelaçados e produzindo esse mixto doloroso, que embriaga como um filtro, que corróe como um veneno, que contrahe como uma convulsão, que entontece os sentidos e dá ao coração as revelações da infinita Dôr!

D'entre os criminosos de Dante, elle escolheu para os modelar pela sua mão genial de grande artista pensador, os criminosos que o amor subverteu no abysmo infernal.

Elles exprimem o cançasso devastador da saciedade que já nada espera; o phrenezi do [62] extase que nada satisfaz; a ternura desbordante que a morte ha de breve estancar; as fadigas as aspirações, os sonhos morbidos, as angustias e as melancholias que essa paixão entre todas omnipotente inflinge aos seus condemnados escravos.

O amor que Schopenhauer descreve como a astucia suprema da Natureza que se recusa a morrer, e que a maior parte das vezes não passa de um arrebatamento ephemero, de uma illusão rapida e momentanea; o amor que é a impossivel aspiração que leva dois seres a quererem formar essa Unidade mysteriosa que seria o supremo triumpho da Vida sobre a Dôr,―aspiração que remata no tragico desengano e na fallencia absoluta do Ideal sonhado, pois que nunca uma alma consegue penetrar absolutamente outra alma, nunca dois entes estranhos conseguem ser apenas um ser unico, e não ha agonia mais tragica do que esse luctar angustioso para alcançar um impossivel bem,―o amor tal como á triste lucidez dos nossos dias elle apparece, doloroso, violento e cheio de ardentes lagrimas: eis a inspiração, senão unica, principal do grande traductor plastico da sombria epopéa dantesca!

[63] Como é triste, como representa bem o Terror sentido perante as duras revelações da Vida, a sua Eva admiravel que, levantando os dois braços em um gesto de espavorida angustia, e como que esmagando com elles os seios tumidos da humanidade futura, tapa com as mãos entrelaçadas os olhos que tanta miseria têm de ver ainda na terra...

É triste, soberba e bella, rica sobretudo de maravilhosas interpretações a concepção que Rodin fórma da estatuaria moderna. E por elle ser, d'entre os esculptores modernos, o que mais frisantemente e voluntariamente se afasta do ideal da Antiguidade, é que eu, em face da Venus de Milo radiosa, tranquilla, serena e pura, quiz levantar deante dos olhos do leitor um esboço ao menos rude e tosco embora, d'essa tragica Porta do Inferno, pela qual o esculptor nos faz penetrar na gehenna das loucas paixões insaciadas, que erguem na sombra o seu brado ululante de intraduzivel dôr...



VIII



Quando a gente de longe evoca a grande cidade do luxo, da vida intelligente, da industria genial, pensa em tudo menos na belleza ideal das suas arvores. A mim, vejam que estranha cousa!―foi isso que positivamente me deslumbrou.

O arvoredo em Paris, nos arredores de Paris, nos jardins, nos parques, nos bosques de Paris, é verdadeiramente delicioso e de um encanto incomparavel e unico.

N'aquella fornalha tudo parece possivel menos o permanente idyllio que as arvores representam, pois nem Cintra, essa orgia de verdura, me consolou tanto a alma a este respeito [65] como Paris. Vê-se que o culto da arvore, a paixão da Natureza, vive em um canto do coração d'esse pagão extra-civilisado, que se chama o parisiense. E depois será realmente extra-civilisado como nós julgamos o parisiense genuino? Não haverá n'essa immensa cidade cosmopolita, a par de uma minoria pequena de artistas de talento, uma incontestavel multidão de almas ingenuas que representam de boa fé toda a especie de comedia, desde o scepticismo à outrance, até ao chauvinismo á Boulanger? Será verdade o que dizem d'elle os que o pintaram com uma amargura tão acre, F. Flaubert e Balzac, por exemplo?

Como quer que seja, sceptico ou sentimental, o parisiense adora as arvores, as flores, a natureza em todo o seu idyllico e sereno encanto.

Um passeio ao domingo, em Auteuil, em Saint Cloud, em Neuilly, nas avenidas do Bois, bastaria para nos esclarecer a tal respeito. É que tambem alli as arvores são incomparaveis. Ha alamedas longas e deliciosas, em que o arvoredo de um verde um pouco ruço se recorta no azul levemente grisalho do céo! Ha longe verduras em Auteuil, por exemplo, que [66] dão vontade de chorar, que penetram a alma de uma saudade doce e amarga a um tempo, a saudade que Adão teve de certo do Paraiso, de onde foi expulso! Os horisontes desdobram-se tão longos, tão calmos! Quem dirá que alli, a dois passos, se desenrola a multipla fita dos boulevards, onde a febre da vida é tão tentadora e tão intensa! Auteuil parece ser o fim do mundo, tão sereno e vagamente adormecido é o seu aspecto, tão ineffavel bucolismo se exhala da sua tranquilla paizagem. Para cada lado que lancemos os olhos, se abrem larguissimas avenidas ao lado de arvoredos, com uns fundos longiquos, em que ha toda a especie de cambiantes.

O ceu de um azul muito lavado, em que parece ter-se extendido um véu diaphano de vapor, é bem differente do meu céu portuguez de uma côr tão quente, ás vezes deslumbradora e excessiva! A agua parece crystallina, ou sombreada de verde, de uma transparencia deliciosa ou de uma côr glauca, atravéz das rendas do arvoredo, movediças e multicôres.

Abril tudo em flor, atira em flocos a sua neve perfumada aos troncos ha pouco despidos; [67] os castanheiros agitam os seus pennachos brancos; os lilazes saturam a atmosphera do seu cheiro estonteador; ha uma expansão risonha n'este paraiso artificial creado pelo homem, que se não encontra infelizmente nos nossos paizes do Sul, onde o solo é tão fecundo, onde a Natureza um pouco acariciada e auxiliada se desentranharia em maravilhas de producção!

A nós basta-nos o sol ardente e a vida brutal de que as cousas palpitam no nosso verão africano; não sabemos pelo trabalho incessante, intelligente e methodico crear estes paraisos, onde repousa depois ineffavelmente a frenetica actividade do homem do Norte.

A mim, filha de um paiz accidentado, esta paizagem plena, em que as alamedas se desdobram lentas, magestosas à perte de vue, faz-me uma impressão de deliciosa calmaria. Não me canso de olhar para as arvores, as formosas arvores, enormes, colossaes, de um verde tenro, de um verde ruço, de um verde mauve, de todas as gradações imaginaveis do verde, e em que a nota do verde esmeralda, mais rara, apparece de vez em quando como uma estridula fanfarra de côr.

[68]


Do alto da torre de Eiffel, Paris apparece todo entrecortado de manchas negras de arvoredo―«Não ha cidade com mais arvores», digo eu verdadeiramente abysmada ao meu companheiro e cicerone que me responde:―«Londres ainda tem mais!»

Só nós portuguezes, com uma terra maravilhosa, um céu esplendido, um clima em que a flora de todas as zonas egualmente se domestica, somos incapazes pela nossa inercia proverbial de ter esta abundancia adoravel de arvoredo, de verdura massiça em torno de nós!

As alamedas de Saint Cloud, com os cimos verdes entrelaçados, formando a abobada sobre a cabeça dos transeuntes, pareceriam um bocadinho de floresta selvagem, se não fosse a invasão da burguezia e do povo vestido de gala que ao domingo positivamente as inunda e banalisa, tirando ao sonhador que alli foi acariciar a sua chimera intima todo o gozo que elle podia beber na solidão.

Quando de Saint Cloud, por uma tarde serena e dôce e luminosa de Abril, se regressa a Paris, como eu regressei, pelo caminho ao longo do Sena, entre o renque fino e tenro [69] dos choupos que se debruçam nas aguas do rio, e os chalets e os palacetes que espreitam do outro lado da estrada do meio dos jardins coalhados de lilazes e de rosaes em flôr, não ha coração por mais secco e positivo que resista ao encanto embalador d'este passeio.

Surprehende-se uma pessoa a ser moça outra vez, moça e romanesca e a arranjar na phantasia uma existencia que quereria ter vivido alli, n'aquella paz tão proxima da infinda agitação, n'aquelle ermo tão chegado ao borburinho de uma vida em festa.

Deve ser bom viver e sonhar alli, perto do mundo e tão longe d'elle, a minutos de distancia do boulevard da Yvette Guilbert, a deusa da chansonnette moderna, da Comedie e da sua classica e correcta interpretação da arte, do Chat Noir e da sua phantasia revoltada, e ao mesmo tempo tão longe de tudo isto, no silencio do arvoredo em flôr, na serenidade pantheista da dormente e calma Natureza, no seio inebriante dos lilazes e das rosas que estillam voluptuosa lethargia de cada petala da sua flôr avelludada e tenra...



A vida para certos organismos de eleição só [70] se comprehende n'estes dois pólos contrarios. Ou tudo que a civilisação tem de mais quintessencial e de mais extremo, ou tudo que a natureza tem de mais calmo e de mais permanente.

Juntar as duas cousas seria para o verdadadeiro artista o ideal, mas que poucos são os que as sabem ou querem reunir!...

Pensava eu estas cousas vagas, ao passar deante de Bagatelle, a casa campestre e o lindissimo parque, que surdiram com tão vertiginosa rapidez de uma aposta entre a infeliz e então leviana Maria Antonietta e o Conde de Artois, e que hoje, depois de varias vicissitudes―as casas e os homens passam egualmente por ellas―pertence aos herdeiros do celebre philanthropo William Wallace. A lembrança d'esse tempo, d'essa côrte, d'essa mulher, cujo nome se fez prestigioso no martyrio, levaram a minha imaginação para longe, para bem longe no passado.

Fazia justamente cem annos que tanto luxo tanto prestigio, tanta gloria tradicional se tinham afogado tragicamente em ondas de sangue.

Noventa e tres, o anno fatal, surgia sangrento [71] e tragico ante os meus olhos, produzindo em mim aquelle espanto e aquella fascinação que eu sempre sinto quando voluntaria ou involuntariamente o evoco.

Tambem ella, a pobre rainha martyr, quiz experimentar essa suprema sensação da vida feita de contrastes fortes; tambem ella quiz, ao lado das pompas de Versailles, a deliciosa pastoral do Trianon; tambem ella, despindo os pesados brocados e as sedas tecidas com ouro da côrte, quiz enfiar, ligeira e garrida, o vestidinho de cassa, com o lenço castamente cruzado sobre os seios opulentos; a sua imaginação romanesca de leitora de Rousseau, de admiradora de Gluck, tambem se soube comprazer n'esta delicia das experiencias contrarias que é o sol do dilettantismo, mas nem porque viveu intensamente a vida e gozou tudo que ella tem de melhor, desde a amisade até á arte, lhe foi menos pesada a sua cruz, nem menos cruel a sua dolorosa via desde Versailles até á Guilhotina.

O ambicioso coração humano deseja tudo, a tudo aspira e tudo quer!

E para que, no fim de contas? lá o diz Pascal na sua phrase incisiva e sombria: «o remate [72] é sempre identico, qualquer que tenha sido a comedia ou a tragedia que o antecedeu».

E aqui está como a vista do arvoredo de Bagatelle me levou para longe do bucolismo, encontrado, onde meu Deus?... a dois passos da fornalha de Paris!...


A mais completa visão de arte e de magnificencia que ainda os meus olhos tiveram, de que elles guardarão para sempre o reflexo illuminado, foi em Fontainebleau que a recebi.

Fontainebleau está para Versailles como uma joia de Benevenuto está para um vaso de macissa prata imperfeitamente burilado. Não ha comparação entre os dois, e para um artista não ha hesitação na escolha.

Como paizagem, aquelle sitio, aquella poetica e enorme floresta consagrada por tantas recordações artisticas, litterarias e historicas, é tudo que póde haver de mais estranhamente bello.

Tem a poesia selvagem e a graça outoniça, e saudosa. Parece um paiz devastado onde se deram lutas de titans, por onde passou o sopro de uma tempestade cyclopica, onde a natureza estrebuxa em cataclysmos tremendos, e [73] faz ao mesmo tempo o effeito calmante e doce de um ninho de verdura que abriga a alma dolente, e a envolve no filtro subtil das suas essencias vegetaes. O outomno na floresta de Fontainebleau, quando as arvores se revestem de toda a riqueza infinita de colorido d'esse periodo divino, quando a pompa victoriosa das fortes verduras acres de seiva se degrada e decompõe em tons expirantes de um encanto mysterioso, em como que gangrenas vegetaes que desde o purpureo sangrento e o amarello alaranjado vão até ao côr de lilaz e ao côr de malva,―o outomno alli deve ser um poema de voluptuosa melancolia, d'estes que só sabem saborear os que se deleitam na tristeza como em um nectar sagrado, defezo ás profanidades do vulgo...

Não admira que n'essa floresta tenham vindo meditar e soffrer tantas grandes almas desenganadas da illusão multiforme da vida.

Conta Michelet, que perguntando a uma mulher intelligente para onde ella quereria fugir se uma grande dôr lhe désse a sêde, a necessidade de um asylo no seio da Natureza, ella lhe respondera:―Para Fontainebleau.

―E se tivesse uma alegria enorme, uma [74] alegria que lhe dilatasse a alma até ao infinito, onde mais lhe agradaria estar:―Em Fontainebleau!

É que realmente aquella paizagem, como diria Amiel, representa todos os estados da alma.

Por isso S. Luiz nas suas fundas dôres, quando as idéas e os sentimentos do seu tempo agonisavam, dando-lhe um espectaculo que lhe pungia atrozmente o coração, era alli na floresta sombria que ia rezar pedindo a Deus conforto e paz.

Luiz XIV vencido e velho, corroido por esse tédio dos Cesares, a quem nada resistiu―que é de certo o estado de espirito que mais deve approximar-se da infinita desolação de Satanaz, foge de Versailles, das suas pompas, dos triumphos que os seus pintores lhe coloriam e que então não eram mais que ironias diabolicas do passado orgulho, e vem procurar, sob as arvores colossaes da floresta amiga, o repouso, o silencio, o adormecimento ás suas lancinantes dôres de rei... Francisco I, desenganado d'esse sonho da Italia, que durante os seculos XV e XVI perseguiu os reis da França, vem alli construir uma Italia franceza que o console de haver perdido a outra, a que Miguel [75] Angelo e Raphael, Bramante e Donatello, Leonardo de Vinci e o Ticiano tinham feito tão fascinadora e tão grande!...

É em Fontainebleau que Napoleão se despede do seu sonho homerico e sublime, d'esse sonho de um Imperio Universal, que unificasse o mundo civilisado sob um despota intelligente, e que lhe foi commum com Alexandre, com Cesar, com Carlos Magno e Carlos V, com todos os grandes capitães da historia, tão raros como os grandes poetas.

É alli que essa epopéa magestosa e tremenda se lhe desfaz nas tremulas mãos que assignam a suprema abdicação do poder e da gloria.

Quantas recordações me suggere esse logar fatidico de Fontainebleau, ou seja o palacio de fadas, ou seja a grande floresta sombria e vasta, onde talvez os Celtas, ascendentes dos francezes de hoje, colherão no tronco dos annosos carvalhos o qui das evocações druidicas.

E sahindo d'essas espheras da grandeza social para outra, mais ampla talvez, mas menos visivelmente pomposa, é em Fontainebleau, que Georges Sand e Musset dão aquelles ultimos passeios tão tristes, de uma melancolia feita de tanta saudade, quando elle já sabe que não podia [76] viver sem ella nem com ella, como diz a triste cantiga peninsular quando ella começa a perceber, que, Ashaverus femenil do amor, tem de percorrer até ao fim o seu amargo e cru fadario, sem encontrar quem satisfaça a sua sêde do infinito, sem poder parar n'essa caminhada atroz em procura do impossivel!

Que fundo de paizagem tão triste para um fim de amor! Onde poderiam elles encontral-o que lhes saturasse a alma de mais tristeza, de mais melancolia, de mais intensa e inexoravel saudade!...

Era alli ainda que Musset voltara mais tarde evocando em soluços immortaes as melhores recordações do seu fatal amor.


Dante pourquoi dis tu qu'il n'est pire misère
Qu'un souvenir heureux dans les temps de douleur
Quel chagrin t'a dicté cette parole amère
Cette offense au malheur!

En est il donc moins vrai que la lumière existe
Et faut-il l'oublier du moment qu'il fait nuit
Est ce bien ta grand âme immortellement triste
Est ce tu qui l'as dit?

Non, par ce pur flambeau dont la splendeur m'éclaire
Ce blasphème vanté ne vient pas de ton coeur
Un souvenir heureux est peut-être sur terre
Plus vrai que le bonheur

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[77] As estatisticas dirão quantas leguas quadradas tem a floresta; os naturalistas saberão explicar quaes as diversas qualidades da sua flora, e que essencias se distillam das suas varias resinas; eu sei sómente que ella me encantou, como uma das mais bellas cousas que os meus olhos ainda contemplaram. Fui a Barbozin, a aldêa em que Millet e Rousseau pintaram as suas télas melhores, e evoquei alli as figuras da litteratura contemporanea que tem por fundo magestoso―bem mais magestoso do que ellas são grandes!―a floresta divina de Fontainebleau.

A scena capital e magistral da Sapho de Daudet é alli que se passa; quando o pobre moço, empolgado pelo polvo terrivel que é para a mocidade uma mulher perdida, tenta despegar-se d'ella, quer fugir-lhe para recomeçar ao longe uma existencia calma e boa―em harmonia com as leis sociaes, protectoras para quem as respeita, inexoraveis e implacaveis para quem as despreza ou para quem as illude―e é vencido irreductivelmente pela piedade que ella lhe inspira, por aquelle bramido de animal, longo, constante, ininterrupto, com que Sapho acorda e sobresalta os écos de immensa [78] solidão ao vêr imminente a ruptura de que elle lhe fala, que elle com mil precauções lhe faz prever... Grande quadro e de uma moral acre e dolorosa mas incontestavel, que os moços deviam meditar, se é que os moços meditam, se é que a mocidade é compativel com a previdencia e o calculo.

O parisiense tem a uma hora e meia de caminho de ferro essa grande matta que é uma das maiores da Europa e a maior da França, por isso parte da litteratura contemporanea a tem para theatro das suas scenas de enthusiasmo, de paixão ou de desespero.

Os pintores vão alli procurar os effeitos maravilhosos da luz penetrando na espessura, banhando-a em purpura, recortando em fundo de ouro a renda delicada da sua folhagem, picando de pontos deslumbrantemente luminosos os seus intersticios mais miudos e mais finos; Millet arrancou-lhe em paginas immortaes o segredo da religiosidade infinita que possuem as velhas arvores; Rousseau recortou em pequenas télas retalhos de paizagem em que a alma das cousas palpita mysteriosamente.

A floresta de Fontainebleau educou uma geração de paizagistas, qual d'elles mais penetrado [79] da melancolica poesia da natureza. Que benefica tem sido a sua calma e suggestiva influencia, que saudade eu tenho da luz a que ella me appareceu, luz primaveril, que punha tons de um tenro ineffavel em cada rebento, que rejuvenescia os velhos troncos colossaes!

É perto d'alli o lindo Castello de Francisco I, a que é preciso conduzir o leitor. Deixemos, pois, a floresta e penetremos no palacio.



X



Nos seculos XV e XVI todos os principes, todos os poderosos da terra tiveram um distinctivo commum que os caracterisa: o seu amor enthusiasta das maravilhas da arte.

Sabe-se o que foi Lourenço de Medicis, esse Mecenas da litteratura italiana, esse amante apaixonado e prodigo da erudição, da architectura, da pintura, da estatuaria. Esse homem intelligente e sagaz, poeta elle proprio, e apezar de humanista notavel, sacudindo com bastante independencia o jugo do antigo que pesava demais sobre as musas da Italia,―mereceu a gloria suprema de ficar immortal no marmore modelado pela garra de Miguel Angelo.

[82] O Penseroso, das estatuas do mestre uma das mais emocionantes, uma das mais mysteriosamente e tragicamente bellas, teve por modelo o grande homem florentino, cujo tumulo havia de adornar mais tarde. Leão X, Julio II e Clemente VII, foram os papas mais doudos pela arte de que reza a historia.

Ludovico o Mouro encheu de bens e de glorias a Leonardo Da Vinci; os chefes da aristocratica Republica veneziana não hesitavam quando se tratava de pagar com prodigalidade louca aos seus soberbos pintores. Mas Francisco I, o rei da França a quem se deve a magica de Fontainebleau, esse não sómente adorava a Arte, mas era amigo apaixonado dos artistas.

Sabe-se o enthusiasmo louco com que elle acolheu na sua côrte o já octogenario Leonardo Da Vinci.

―«Hei de afogar-te em ouro, dizia elle a Benevenuto.―Faço-te conego―exclamou deslumbrado para o italiano Rosso no dia em que este, pela primeira vez o fez penetrar n'essa galeria esplendida, ainda hoje chamada de Francisco 1.º―em que o rei desenganado e cançado passou depois quasi todos os ultimos annos da sua accidentada existencia. E a promessa [83] extravagante cumpriu-se tal como se fez. Rosso teve um logar de conego na collegiada da Sainte Chapelle.

O que fizera elle para merecer tão piedosa distincção? Pintára o mais estranho e luminoso carnaval de alegria e de côr, que ainda a imaginação febril de um artista d'aquelle tempo de febre concebera e realizára.

Uma multidão pantagruelica em que ha de tudo: o bello e o horrendo, o delicioso de graça, e o grotesco; figuras virginaes a que talvez serviram de modelo para o pintor, e de encanto ephemero para o rei, as doces raparigas que alli perto ceifavam as tremulas searas, ou iam buscar as amphoras cheias de agua crystallina das rochas, ás fontes de Fontainebleau que Jean Goujon e Benevenuto vão fazer idealmente bellas.

No meio da immensa turba de mulheres e de homens, uma flora e uma fauna inteiramente novas, a flora e a fauna que os navegadores e os conquistadores da peninsula iberica acabavam, no fim das suas aventurosas viagens, de revelar ao velho mundo attonito.

A delicia de Francisco I não teve limites ao entrar n'aquelle recinto encantado em que o [84] mundo da arte lhe desvendava os seus aspectos mais bellos!

Interrogador e curioso como era, cada quadro lhe suggeria uma pergunta e uma investigação nova.

O mundo estranho de que o Rosso pintava algumas das maravilhas ineditas fazia scismar o pagão devoto que Francisco I era, como todas essas crianças grandes da Renascença.―Mas então mentia a Biblia quando contava a creação do homem?

Essas raças, cujo segredo agora se desvendava pela vez primeira, não eram tal, não podiam ser filhas do biblico Adão?

E a terra movia-se em torno do sol? Onde ficavam n'esse caso as palavras de Josué?...

Depois contavam-lhe as magnificencias da Turquia, a magnanimidade de Solimão, as maravilhas da civilisação arabe, tão superior em certos pontos n'aquelle tempo á civilisação christã, e esta idéa de que o turco não era finalmente o ante christo, o inimigo figadal de todo o bem e de todo o bello, produzia um espanto infantil no animo de Francisco I.

Tempo encantador este de que a galeria de Fontainebleau ouviu as conversações curiosas, [85] mixto de tudo que ha mais ingenuo e mais subtil, mais refinado e mais credulo!...

Ao lado do fauno sensual, do satyro coroado, que foi Francisco I,―o qual para contrapor aos seus vicios innumeros teve sómente a vibrante sensibilidade para tudo que é bello;―surge a Margarida das Margaridas, a encantadora, a diserta, a latinista, a intelligente rainha de Navarra. N'aquelle tempo saber latim não é um requinte de pedantismo, é uma exigencia da fina cultura.

Quem não soubesse latim não sabia nada, não tinha conhecimento nem da poesia no que ella tem de mais perfeito e mais bello, nem da Historia no que tem de mais suggestivo e de mais inspirador. Ora Margarida amava os poetas e a poesia, e ajudava seu irmão a fazer a Historia, aconselhando-o, auxiliando-o, inspirando-o, negociando por elle com os diplomatas do tempo.

A sciencia, a erudição, a poesia enchem o espirito de Margarida; quem lhe enche completamente a alma é o irmão, esse irmão grosseiro e sensual, natureza que, a não ser o amor da arte, seria feita do barro mais vil, e que mesmo salvo por esse amor, que é no fim [86] de contas mais uma sensualidade requintada do seu temperamento que uma aspiração espiritualista, reflecte a omnipotencia dos seus instinctos animaes no soberbo, no inolvidavel retrato que d'elle fez Ticiano, o maior retratista do mundo, aquelle que melhor traduz a profunda expressão moral, a mobil physionomia, o caracter pessoal inconfundivel de cada um dos seus modelos...

Esse perfil de fauno sensual, que o Ticiano retratou, domina e absorve o coração delicado e subtil de Margarida.

Por isso eu a evocava agora, na galeria soberba, em que o sol entra a flux, ao lado do rei seu irmão, analysando com elle as bellas pinturas que fazem das paredes um kaleidoscopo tão curioso e illuminado, em que o velho e o novo mundo se confundem, discutindo―com Budé seu bibliothecario, com Duchatel seu leitor, com os dois irmãos du Bellay, os celebres humanistas da Renascença franceza, seus favoritos e commensaes,―um dialogo de Platão que tivesse acabado de lêr em grego, um verso de Virgilio de que ella houvesse ha pouco saboreado o nectar subtil, servido na lingua de ouro do seculo de Augusto; uma apostrophe de Cicero, nas suas [87] Catilinarias, mais abrazada em rhetorica flamma; conversando com Marot, seu poeta e seu servidor, ácerca da medição e do rythmo de um hexametro ou de um hendecassyllabo; ou perguntando a todos elles, curiosamente, avidamente, informações ácerca do novo livro extravagante que um physico e antigo tonsurado chamado Rabelais acabava de dar á estampa em Lyão, contando as mirabolantes e inverosimeis aventuras de Gargantua e Pantagruel, dois gigantes de quem ninguem até alli ouvira falar, e de Panurgio, o maior sacripante que de memoria de homem fôra celebrado em lingua vulgar...



Ao reinado do prisioneiro de Pavia segue-se o do mystico e apaixonado Henrique II. Margarida eclypsa-se na sombra, e á musa dos poetas succede a inspiradora dos artistas ébrios de enthusiasmo...

No céo da Renascença azul e ouro, é Diana quem desponta... A Salamandra, emblema e symbolo do rei que arde continuamente na flamma impura do desejo, sem jámais chegar a consumir-se, é substituida pela inicial de Henrique enlaçada por dois crescentes symbolicos, e esta [88] data assim poeticamente indicada vale para a posteridade muito mais que a mais rigorosa chronologia marcada pelos sabios. Este anagramma amoroso representa um grande amor, um estranho sentimento que participa do mysticismo cavalleiresco e do sortilegio magico, do ideal mais puro e do envoûtement mais pavoroso.

Quem é esta esbelta Diana, ligeira, airosa e bella? Não o perguntem á Historia, que essa, implacavel como a verdade, falar-lhes-ha de uma velha furia, sedenta de dinheiro e de vinganças, esmagando os povos, que a maldizem, com o peso das contribuições mais engenhosas, das que tiram o sangue e a pelle á plebe opprimida que se lamenta em vão.

Perguntem-n'o á Arte, a magica divindade que transfigura tudo aquillo em que toca. Responder-lhes-ha a Diana de Jean Goujon, encostada familiarmente ao veado manso e bello que lembra o principe encantado das lendas, ou mais longe ainda, sempre modelada pelo sublime artista, contemplando amorosamente o mesmo bicho symbolico, que approxima da bocca finamente recortada da deusa a sua bocca de animal, como que a pedir o beijo mysterioso que quebre o encanto que o tem encarcerado [89] n'aquella fórma inferior e que o restitua bello e victorioso á antiga fórma humana.

Responde-lhes a Nympha de Benevenuto Cellini, ora entre as féras que caçou e os galgos que as perseguiram, ora estendendo-se voluptuosa junto á frescura das fontes, ora caminhando nua pelos campos, seguida pelo cortejo das nymphas que ella, a Diana immortal, a inspiradora dos eternos amores que não se extinguem, domina inalteravelmente pela altiva elegancia e pelo magestoso porte regio.

De todas estas imagens estranhas, inverosimeis, de corpo longo e flexivel, que parecem copiar na pedra dura a fluidez das aguas correntes, o baloiço ondeante das hervas altas, a voluptuosa flexibilidade das lianas que se enredam e entrelaçam,―de todas estas imagens que a arte prodigalisou aqui, a nossa imaginação compõe uma só figura, um só vulto, uma só imagem que as concretiza a todas.

É a mulher amada e triumphante, a Diana dos encantos invenciveis e inviolados, a que pediu á deusa, sua madrinha o segredo dos filtros que fazem parte do seu culto antigo, para ser eternamente amada, contra o tempo, contra a fortuna, contra tudo...

[90] A arte que a immortalisou no marmore devia-lh'o. Ninguem como ella fez da arte uma auxiliar, uma amiga, uma feiticeira cumplice dos seus encantamentos de mulher. Que importa o que diz a historia de Diana de Poitiers? Quem fala verdade é a Arte. De todas as mil illusões de que a vida se faz e se compõe, só ella é mais intensa do que a realidade, e mais verdadeira do que a verdade!



XI



Uma das excursões feitas por mim com mais prazer é a dos Museus, tanto artisticos como historicos.

Deixo para mais tarde falar no que senti em frente de alguns quadros do Louvre ou do Museu de Madrid e vou falar agora da minha visita ao museu Carnavalet. O palacio em que este museu está estabelecido pertenceu a Madame de Sévigné e foi habitado por ella; d'aqui a quantidade de recordações d'esta mulher encantadora, que o povoam e para mim o tornam particularmente interessante.

Ha logo á entrada um busto d'ella que me fez parar enlevada em contemplação de uma das physionomias mais espirituosas e mais [92] sympathicas que o Passado legou aos nossos dias.

O nez carré de que ella fala nas suas cartas, e que tornaram celebre os seus contemporaneos referindo-se tantas vezes a elle, lá está, mas sem diminuir, antes accentuando o encanto da sua expressão. Os lindos cabellos penteados ao nome d'ella, (porque aquelle penteado de caracoes que enquadra tão graciosamente o rosto feminil ficou sendo chamado á Sevigné) dão um caracteristico especial á sua bella cabeça de juvenil matrona adoravel. O bom humor, a graça gauleza sorriem na bocca espirituosa e finamente recortada.

A gente não se espanta, ao ver este lindo busto de mulher, de que o original inspirasse verdadeiras e ardentes paixões, e que até aos sessenta annos houvesse, não quem a requestasse á moda de Ninon ou de Catharina da Russia, mas quem quizesse casar com ella, como quiz o duque de Luynes, que por signal foi repellido.

Para mim, digo francamente, o Museu Carnavalet é Madame de Sevigné e não é mais nada. Este museu, extravagante contraste! está cheio de recordações revolucionarias. Lá está [93] uma reducção feita, creio que em pedra, da Bastilha, lá está uma galeria, por signal detestavel, de retratos dos vultos principaes da revolução.

Por debaixo da fileira de retratos em que figuram Mirabeau, Robespierre e Marat, está a cadeira em que expirou Voltaire. A collocação pareceria propositadamente feita, senão fosse antes uma necessidade de symetria, pois que, encostada á mesma parede na outra extremidade da sala, está tambem a cadeira em que expirou Béranger.

Entre Voltaire e os homens da Revolução a affinidade é vizivel para o espirito, mas o pobre Béranger é que não vem aqui ao caso para cousa alguma, de modo que a intenção philosophica que eu á primeira vista attribui aos conservadores do museu ficou prejudicada pela segunda idéa que elles tiveram de collocar a cadeira de Béranger em symetria com a de Voltaire.

Uma conclusão apenas me atrevo a tirar: é que em França quem sahe do vulgar morre de cadeira. Incommodissima maneira de dar a alma ao Creador! Ainda bem que nem a Béranger posso aspirar, quanto mais a Voltaire; [94] isto augmenta as minhas probabilidades de morrer deitada na propria cama, unica maneira pela qual me appetece sujeitar-me á sorte commum de todos os mortaes.

Não venho, já se vê, fazer uma descripção miuda do Museu Carnavalet. Além de não ter fixado tanta cousa que vi―e que vai desde os troços de ruinas e dos barros romanos achados em diversas excavações recentes ou antigas, desde truncados monumentos, ou fragmentarios tumulos, pertencentes a epocas ainda anteriores ao dominio romano, até a centenas de reliquias da Revolução―não acho que isso seja sufficientemente interessante para o leitor, a quem não posso communicar impressões que não recebi.

Ha, por exemplo, no Museu uma collecção enorme de caricaturas da época de Luiz Filippe, feitas, creio, que em barro. São hediondas. Tudo que teve um nome no reinado d'esse rei dos burguezes, burguez elle proprio dos pés até á cabeça, alli está representado sob uma fórma que produz cauchemar, á força de irritantemente feia.

Lembro-me por exemplo de uma cousa que me impressionou: uma ordem autographa de [95] Luiz XVI ordenando aos suissos da sua guarda que cessassem o fogo que estavam fazendo contra o povo. Ora, esta ordem―a ultima que elle assignou como rei―encerra nada menos que a sua abdicação e a sentença da sua morte e dos seus.

Acabada a resistencia, o monstro jacobino pôde refocilar-se á vontade no sangue regio. Ninguem mais se levantou deante d'elle para obstar ao direito da sua vingança secular.





Tudo isso que em outro logar e em outra ordem de idéas me produziria a maior impressão, alli apparecia-me inopportuno e deslocado.

Como aquelles objectos friamente classificados me pareciam estranhos ao tempo de febre de que elles são as reliquias, por assim dizer, mumificadas!... É preciso, para que certas recordações do passado nos «empolguem», se apossem ardentemente de nós, que as evoque a imaginação omnipotente e creadora de um Michelet ou de um Carlyle! De outro modo, em vez de nos tornarem mais «vivo» o tempo a [96] que se referem, parece que o recuam indefinidamente nos limbos do passado.

Um «museu» tira a vida aos objectos que encerra; não os conserva.

Assim como o processo de enterramento dos egypcios, creado em odio á morte, concorre para tornar mais saliente a idéa da morte, assim tambem o desejo de conservar certas reliquias parece que lhes diminue a realidade no passado. É possivel que eu exprima muito vagamente uma cousa que sinto sem a saber muito bem traduzir, mas o leitor intelligente, que tem visto muitos museus e tem talvez sentido esta mesma desconsolação, comprehende perfeitamente o que ella significa!

Repito, pois: o encanto do museu Carnavalet tirei-o eu de mim mesma, evocando n'aquellas frias salas que percorri, acompanhada pelo indispensavel guia, as figuras que outr'ora as encheram de animação e vida.

Vi madame de Sevigné e o seu querido tio, o bom abbade de Livry, que tão bem se sahiu da educação da sua querida e intelligente pupilla.

Pareceu-me escutar as finezas hyperbolicas, que á moda do tempo, Ménage e Chapelain, [97] dirigiam cada um por seu lado á amavel e gentil Maria. Ménage resolveu ensinar-lhe italiano e hespanhol, e resolveu, o que é peior, apaixonar-se loucamente por ella. O bom pedante perdeu, já se vê, o tempo e o feitio que não era de amoroso, como egualmente o perdeu um homem que é o perfeito contraste d'elle, o cynico, o duellista, o donjuanesco Bussy Rabutin, que, depois de amar Madame de Sevigné, a odiou de morte, e depois de a odiar tornou a querer-lhe muito, encontrando-a sempre de pedra pura os seus transportes, mas capaz de apreciar o que havia de scintillante e caustico no seu espirito, de intrepido no seu valor, de melhor no seu pouco bom caracter. Viuva com vinte e dois annos, e em uma côrte licenciosa, em que ella propria se mostra cheia de estranhas indulgencias para os peccados alheios―tudo passou por ella sem lhe macular de leve a fimbria do seu vestido branco.

Foi admiravelmente virtuosa, sem ser por isso implacavel para as paixões que a cercam, e que fazem d'esse tempo um capitulo do mais accidentado romance.

Amiga extremosa de Fouquet, vê-se em riscos [98] de sahir levemente compromettida do processo do Intendente de finanças, em cujo cofre de galantes segredos se encontram cartas d'ella. No emtanto essas cartas são simples pedidos em favor de um ou de outro protegido da marqueza, e se provam alguma cousa é a bondade, a generosidade do seu coração prompto a acudir e a valer. Se Fouquet guardava preciosamente esses bilhetes formalistas é porque talvez no coração do galante financeiro a formosa physionomia de madame de Sevigné tivesse produzido uma impressão excepcional; mas isso não basta para comprometter uma mulher que as primeiras pessoas da côrte, em influencia e em virtude, protegem ardente e abertamente. Um dia Tonquedec, fidalgo da Bretanha, e o duque de Rohan-Chabot em casa d'ella, e por causa d'ella, armam uma especie de briga que conclue por um encontro no campo, como todas as brigas d'aquelle tempo. Nem por isso a fama de madame Sevigné soffre a mais leve arranhadura. Que culpa tem ella das loucuras e dos extremos que inspira a sua «razoavel» e formosa pessoa!

O conde de Ludre esteve vae não vae a [99] vencer as resistencias mysteriosas d'aquelle coração de mulher que a precoce experiencia da vida endurecêra para o amor.

Mas, aquelle asseio de arminho, aquelle amor das cousas justas, rectas e claras, que é em certas mulheres um preservativo efficaz contra os desfallecimentos da vontade, e o exclusivismo ardente do seu amor materno, salvam-n'a d'essa tentação suprema, como a salvam do prestigioso amor de Turenne, da côrte persistente do principe de Conti, do amor claro ou disfarçado de tantos entre os melhores, entre os mais queridos e os mais felizes em aventuras femininas.

No meio d'esse fogo que accende, a marqueza conserva-se alegre, calma, gostando das anecdotas picarescas bem contadas, prompta a receber uma confidencia escabrosa, comtanto que lh'a façam com espirito e bom humor; indulgente para o amor da sua maior amiga pelo duque de la Rochefoucauld, indulgente para as historias mais ou menos salgadas que de todos os lados lhe vêem aos ouvidos, dotada d'aquella philosophia tolerante que a mulher virtuosa tem como ninguem, porque sabe, como ninguem, o preço da virtude.



XII



Insensibilidade? Não de certo. Amor bem entendido de mãe, e medo talvez de soffrer mais do que soffrera já na sua curta experiencia da vida conjugal, a que um duello infeliz―e por causa de uma mulher―tinha dado fim.

Quem soube no amor maternal pôr tantos requintes de sensibilidade, tão intensa paixão, tanta vida, tanta abnegação, tão louco enthusiasmo, o que seria em outra ordem de sentimento em que taes excessos são quasi naturaes? O que a salvou foi talvez o exagero da propria sensibilidade. Teve medo de si. Sondou-se e percebeu de que loucuras seria capaz, amando, aquella que da maternidade serena e [102] calma soube fazer uma paixão tempestuosa. Tendo bebido na infancia o amor dos grandes sentimentos á Corneille, de que a propria Mlle. de Scudery, a feiissima Sapho fez na sua obra vasta uma grandiloqua caricatura; iniciada pelos seus mestres Ménage e Chapelain nas extravagancias grandiosas da litteratura hespanhola; tudo que provavelmente via em torno de si estava longe de corresponder ao seu ideal de sacrificio eterno, de inalteravel constancia. D'ahi, provavelmente, o seu proposito firme de se refugiar no amor materno, extrahindo d'elle tudo que podia formar o alimento da sua alma exigente, ambiciosa.

Depois ella viveu em uma quadra e em um meio em que o papel de espectadora tinha o maximo interesse e podia satisfazer até mesmo um espirito como o seu. Tudo que a cercava era digno de attenção e de estudo. Tudo interessava, ensinava e dava ensejo para longas reflexões.

Em cima Luiz XIV―o Jupiter que ella viu sempre com olhos de adoração, de quasi deslumbramento, olhos com que o seu tempo o viu tambem, com que a posteridade continuaria a vêl-o, se o desastre final de sua obra lhe não désse [103] a sorte que tem sempre os vencidos, e se Saint-Simon não tivesse revelado ao mundo, com a sua espionagem genial, o monstruoso egoismo, o acanhado espirito, a mediocre envergadura intellectual d'esse idolo com pés de barro;―Luiz XIV que o amor divino e divinamente desinteressado da La Vallière envolvera em uma nuvem de olympico prestigio. Abaixo d'elle,―tudo n'esse tempo ficava muito abaixo d'elle―essa adoravel Henriqueta de Inglaterra, fina, branca, lyrial, que a prematura morte embalsamada na eloquencia sublime de Bossuet, e a vida cheia de graça, de encanto aristocratico e talvez de amor, transformaram na figura impregnada da poesia mais subtil d'aquelle periodo accidentado e romanesco. Em torno d'esses astros de primeira grandeza gravitam milhares de satellites de um brilho fulgurante e deslumbrador.

O amor e a guerra, como nos romances da cavallaria antiga, fazem d'essa côrte alguma cousa de excepcional na Historia do mundo.

A guerra já se vê, não como a faziam Frederico da Prussia ou Napoleão, mas a guerra pomposa que celebrou pomposamente Boileau; a guerra em que os banquetes, as festas, os [104] bailes se entremeiavam aos combates; em que um cerco durava longos mezes, e cada marcha parecia uma cavalgada festiva...

Mademoiselle, a grande Mademoiselle, apaixonada por Lauzun chorava todas as lagrimas de seu corpo porque lhe não deixavam desposar o eleito do seu coração; a epopéa gentil das Longueville, das Chevreuses, das lindas e intrepidas heroinas da Fronda, andava ainda em todas as memorias e em todas as imaginações. Hoje era Luiza de la Vallière a mais doce martyr de um regio amor de que reza a Historia, que depois de pedir humildemente perdão á sua rival coroada do escandalo que dera, fazia da ceremonia da sua consagração a Deus um d'estes acontecimentos palpitantes com que vibra uma geração inteira; amanhã é Montespan, a altiva Wasthi, a sultana magestosa que toma posse do seu logar de favorita com um impudor, uma soberba, uma pompa theatral, que escandalisam, que emocionam, que fazem trabalhar as pennas todas da côrte em comptes rendu mais ou menos pittorescos, mais ou menos eloquentes...

Depois as guerras entre os Jesuitas e Port-Royal; a lucta theologica entre Fénélon e Bossuet; [105] o apparecimento de uma tragedia de Racine; a publicação dos Caracteres de La Bruyère; as Maximas do Duque de Larochefoucauld; o livro de Madame de La Fayette; um sermão do Pére Bourdaloue; um conto de La Fontaine; os acontecimentos os mais sagrados e os mais profanos, as leituras mais edificantes e as mais gaiatas, os incidentes mais comicos e os mais tragicos―tudo se succede, tudo se entrelaça, fazendo da existencia um espectaculo tão alegre, tão variado, tão divertido, tão interessante, tão atordoador, que facil foi a Madame de Sévigné resignar-se a não pôr na sua propria vida interesses dramaticos, que outros se encarregavam de fornecer-lhe em profusão.

Basta a curiosidade para encher a existencia, disse algures Fontenelle. Esta maxima de egoista acha-se justificada pensando na vida de madame de Sévigné.

Onde ha espirito mais eminentemente curioso no sentido elevado e espiritual da palavra do que o d'esta eminente e deliciosa personalidade femenina?

Ella tem a curiosidade intelligente de todos os phenomenos de ordem moral e intellectual. Interessa-a o espectaculo das paixões humanas [106] e achou um theatro perfeitamente adequado ao genero de observações que mais a divertem.

A côrte de Luiz XIV, antes que madame de Maintenon tivesse desdobrado sobre ella o véo de hypocrita devoção em que tão cautelosamente se embrulhára, é tudo que ha de mais proprio a interessar, a apaixonar um observador, um moralista como Madame de Sévigné.

Moi qui aime tant à faire des reflexions, esta phrase vem mil vezes nas suas adoraveis cartas. E que assumpto sempre vivo, sempre palpitante para reflexões não é essa côrte, onde tudo que as paixões humanas têem de mais ardente, de mais insaciavel, de mais caracteristico, de mais desordenado, se manifesta sob os mais variados aspectos e nas fórmas mais pomposas...

O amor sem outra lei que não seja a inconstancia e o capricho; a ambição sem outra restricção e outro limite que não sejam os que fatalmente lhe impõe a fraqueza humana; a inveja, a soberba, a cubiça mais desenfreada, o orgulho ao mesmo tempo mais feroz e o mais cheio de aberrações inexplicaveis, orgulho que principalmente se compraz nos excessos mais abjectos do servilismo―e todos estes [107] diversos sentimentos, uns simples, outros complexos, uns harmonicos, outros contradictorios, manifestados atravez de caracteres em que ha ainda relevo, contorno accentuado, individualidade inconfundivel, energia pessoal.

Póde haver espectaculo mais digno de interesse, contemplação que sem talvez elevar o espirito o divirta e o instrua mais?

Não é, porém, o jogo complicado, brutal ou subtil do interesse e das paixões pessoaes, o unico objecto de estudo para o espirito de madame de Sévigné. Ella tem uma vasta leitura, uma aptidão para se interessar pelos estudos mais aridos, quasi maravilhosa.

Quando a vida em Paris a cança, quando a sociedade habitual do seu salão começa a enfastial-a um pouco, quando as graças de monsieur de Coulanges, a extrema amabilidade de d'Haqueville (o qual é tão extraordinariamente serviçal e de tal modo se multiplica para satisfazer os seus amigos que lhe mereceu a ella a alcunha de Les d'Haquevilles) lhe parece um tanto massadora, quando a gotta de M. de La Rochefoucauld o faz dar gritos que lhe excitam demasiadamente a sensibilidade, quando Le Père Bourdaloue a tem fatigado de predicas, [108] quando emfim o meio habitual em que ella se move tem perdido, pela continuação, um pouco do seu interesse e da sua novidade, quando as salas que ella frequenta e das quaes é o querido adorno mais precioso e raro, não offerecem assumpto nenhum que a satisfaça, quando a côrte está em uma phase de semsaboria estacionaria, sem incidentes e sem dramas, eil-a que parte para Livry, ou para os Rochers, e ahi na paz deliciosa do campo, que ella e La Fontaine são no seculo XVII os unicos a sentir, passeia sósinha debaixo das arvores, ouve o rouxinol, o cuco, e la fauvette, saboreia a graça primaveril do arvoredo em flor, e consagra a noite a longas leituras em que ha de tudo, Tasso, Cervantes, Descartes, Racine, La Fontaine, até Horacio, porque a encantadora marqueza sabia latim e até o ensinou á filha.





O que mais celebre torna deante da posteridade Mme. de Sevigné, o seu amor pela filha, é a maior prova de quanto póde a illusão sobre um cerebro, sobre um coração de mulher! [109] Mme. de Grignan, la plus belle fille de France, como lhe chamavam os que queriam por uma tocante attenção lisongear o coração da mãe, não é realmente digna por motivo nenhum da adoração que inspira. Pedante, interesseira, ambiciosa, gastadora, ingrata sobretudo, ingrata para essa mãe adoravel cujo crime unico foi preferil-a em tudo ao irmão, Carlos de Sevigné, tão sympathico quanto ella é antipathica, tão dedicado quanto ella é egoista, tão apaixonado pelas graças, virtudes e encantos da mãe, quanto ella parece ser-lhes indifferente, Mme. de Grignan tem por unica virtude a de ter inspirado essas deliciosas cartas, em que um periodo longo e interessantissimo da Historia se reflecte com incomparavel vivacidade, com uma frescura, um pittoresco, uma animação que jámais serão excedidos.

No final da minha visita ao museu, quando eu tinha achado prazer infinito em evocar estas visões do passado, e muitas outras que não podem caber no limitado espaço d'estas notas, o guia que não sei porque tinha sympathisado commigo e com meu amavel companheiro, decidiu de si para si que nós eramos dignos de ser apresentados ao conservador do museu, [110] Monsieur Cousin, que não sei se é parente do celebrado philosopho do eclectismo.

Levou-nos, pois, a um gabinete reservado onde nos esperava uma encantadora surpreza. Monsieur Cousin vive fechado em uma pequena sala, furtada a todas as vistas profanas, imaginem com quem?

Com madame de Grignan! Não madame de Grignan em carne e osso, que isso não seria no fim de contas uma companhia por demais preciosa. Imagino que a convivencia de la plus belle fille de France não era tão agradavel que a propria mãe, idolatra como era, não preferisse viverem em casas separadas, quando madame de Grignan vinha a Paris tractar das suas innumeras demandas, e discutir com juizes, advogados e procuradores como uma verdadeira madame Pimbêche que era.

Não, a maneira por que madame de Grignan se achava representada n'aquelle gabinete escondido, era por meio de um esplendido retrato de Mignard. A filha da encantadora marqueza apparece alli formosissima. Cabellos de um louro fulgurante, veneziano, o louro de Ticiano, ou de Palma Vechio; pelle branca, transparente, atravez da qual se sente gyrar [111] um sangue vivo e puro, olhos azues de uma belleza profunda e rara, penteado levantado na frente e voluptuosamente entrelaçado de rubras flôres de romeira e de flôres brancas de laranjeira.

No peito, completamente decotado, um ramo viçoso das mesmas flôres.

―Flôres de Provença, fez-me notar Mr. Cousin, com aquella nota carinhosa na voz, que revela o namoro de um velho sabio, o namoro que o seu homonymo Cousin teve pela duqueza de Longueville e pela de Chevreuse!

―Flôres do meu Portugal, atalhei eu, que ao vêl-as tivera tanta saudade do meu pequeno paiz longinquo.

Se a minha antipathia a Mme. de Grignan não fosse fundada e irreductivel, tinha-a destruido de certo este adoravel retrato que a representa verdadeiramente formosa, e o que é mais, seductora! retrato que, apezar de ser de Mignard, parece feito na maneira ampla e superior dos grandes mestres.

Assim a viu o pintor, assim a viu sua mãe, assim a vê em pensamento e feliz enlevo o velho conservador, que se fechou com ella [112] em um quarto e que a não deixa avistar se não a raros profanos!

O meu passeio pelo Museu Carnavalet mais me confirmou na eterna ironia das cousas grandes ou pequenas!

Não posso deixar de confessar que, tirando as minhas evocações intimas, a melhor impressão que de lá trouxe, deu-m'a o retrato da minha inimiga pessoal.



XIII



Uma das horas mais commovidas da minha vida foi aquella em que entrei nos Invalidos para vêr o tumulo de Napoleão.

Sei bem que é esta uma excursão obrigada aos viajantes da agencia Cook, aos touristes prud'hommescos da provincia, aos badauds de todas as origens, procedencias e classes.

Mas terão esses porventura sufficiente poder para banalisar uma figura como a do Imperador?

Depois, eu fui criada por uma mãe enthusiastica de gloria, no culto quasi fanatico de Napoleão.

Para mim elle nunca foi, como para os meus compatriotas do principio do seculo, o ogre da [114] Corsega, o monstro peior que Nero e Caligula. Pelo contrario. As manchas do seu caracter só muito mais tarde a historia m'as fez conhecer. Na minha mocidade não me falavam senão nos esplendores da sua fama e nos prodigios da sua heroicidade.

Tantas mudanças teem passado pela França desde que, em uma ilha solitaria e longinqua do Oceano, o grande homem expirou, renegado e abandonado por todos os seus, que eu receiava encontrar lá muito esmorecida a sua memoria, muito apagados os vestigios de sua passagem.

Enganei-me. A lenda napoleonica resuscita com insolito vigor n'essa França de que ella foi a gloria ultima e inultrapassavel!

Havia n'essa occasião justamente em Paris a exposição dos quadros de Meissonier, e essa exposição admiravel dominavam-n'a dois quadros, que nunca mais podem ser esquecidos depois de uma vez terem sido vistos.

O primeiro quadro intitula-se 1807. É Napoleão depois de Friedland, triumphante, glorioso, acclamado.

O Imperador ainda magro, esbelto e sobrio, monta o seu lendario cavallo branco, rodeia-o [115] um estado maior de marechaes deslumbrante e numeroso, a cada titulo dos quaes esta ligado um nome retumbante de batalha e de gloria; os seus granadeiros admiraveis, a sua velha guarda fanatisada e invencivel acclama-o em gritos que positivamente se ouvem na tela palpitante de Meissonier.

É o momento culminante da epopeia grandiosa. Sobejam os assombros, os crimes apparecem n'um esplendor de purpura que lembra menos a côr do sangue do que a côr da aurora!

A tyrannia já se revela em mil symptomas da vida do conquistador e da vida do imperante. Os povos já perguntam n'um brado ululante de angustia em nome de que direito derrubam os seus thronos tradicionaes e lhe invadem os seus lares pacificos!

Mas ah! mais forte do que esse gemido desolado das nações invadidas, mais forte do que o choro convulso das mães a quem arrancam continuamente os filhos, os mais bellos e os mais fortes,―é o clangor bellico do clarim que avisa a França da suas victorias incontaveis! Lodi, Arcole, Rivoli, Marengo, Iena, Austerlitz, estão em todas as boccas, produzem em todos os [116] cerebros o assombro, o respeito, o enthusiasmo!

O segundo quadro―1814―é a retirada, é a derrota, é a melancolica derrocada do sonho gigantesco e sobrehumano.

O heroe vem cançado, abatido e triste. Cavallo, cavalleiro, cortejo militar, paizagem circumdante, tudo respira a mesma desolação e o mesmo abandono!

A velha guarda ficou sepulta nos gêlos da inhospita Moscovia; os marechaes cançados, são os mesmos que vão acceitar, suggerir a déchéance proxima....

Entre um anno, o da gloria soberba e unica, e outro, o da derrota universal, quantos crimes de lesa-nação, de leso-direito, até de leso-entendimento. Napoleão acabára por sentir aquella embriaguez dos Cesares que os atirava ao crime e á loucura em virtude de uma attracção irresistivel e fatal.

Vencera todos e perdera o segredo indispensavel de se vencer a si proprio. D'aqui a ruina, d'aqui, depois da tragedia de Waterloo, o suplicio prometheano de Santa Helena!

Bastavam estes dois quadros para dar a Meissonier o logar eminente que elle tem entre [117] os pintores francezes. Accusam-n'o de ser minucioso em demasia, de ter uma concepção acanhada da arte, de dar muito mais attenção aos pormenores que á esthetica geral da sua obra; mas estes dois quadros desmentem todas as accusações que lhe fazem os seus detractores. Meissonier comprehendeu a verdadeira grandeza, a grandeza epica, a que inspirou Homero e Camões; a que faz ainda hoje palpitar os frios corações d'esta era de industrialismo e de interesse egoista.

O heroe que elle alli nos representa, tanto na hora estonteadora do triumpho, como na hora tragica da derrocada, é o mais importante dos grandes homens, no dizer de Carlyle, o que vale mais que todos os outros, porque é aquelle a quem a vontade de todos se subordina em um impeto de lealdade e adoração.

Eu tinha visto, havia pouco, os dois quadros famosos de que não posso nem sei descrever o interesse, a expressão, a intensa vida suggestiva, quando fui visitar nos Invalidos o tumulo de preciosa pedra, em que as cinzas de Napoleão estão guardadas.

Lá está elle cercado por doze silenciosas estatuas de marmore que symbolisam victorias, [118] e de bandeiras crivadas de balas que seu exercito conquistou.

Não houve nada de banalmente curioso na minha visita; era uma romaria piedosa feita a um idolo da minha mocidade, á unica figura grandiosa que a edade moderna póde apresentar em face das grandes figuras antigas que se chamam Alexandre ou Cesar.

Em toda a parte o tenho visto; a sua figura que participa da Lenda e que é da Historia, protege ainda a França como uma divindade tutelar contra a onda da mediocracia que avança. N'esse paiz onde hoje apenas soam réles nomes de réles politiqueiros, echoa a pequena distancia um nome que vale mais que todas as outras glorias modernas. Que valem Frederico II ou Pedro o Grande, que vale Luiz XIV, que valem Condé ou Turenne ou Luxemburgo, que valem Colbert ou Vauban, que valem Guilherme d'Orange, ou Malbourough, que valem Walenstein ou Carlos XII ao pé d'este homem estranho, homem do destino, que reuniu em si, a todas as qualidades brilhantes do guerreiro, as qualidades solidas do administrador; que foi legislador e soldado, que dominou e venceu a anarchia, que levou atravez do mundo [119] inteiro, do Sena até ao Neva e do Tejo até ao Vistula a idéa da Revolução, de que elle foi a formula tangivel, o propheta feito homem, a representação concreta e o visivel symbolo?!

É por isso que só na Antiguidade se encontram dois homens cuja missão excedeu em importancia universal aquella que Napoleão representou na Historia, e que esses dois homens são Alexandre e Cesar.

As campanhas de Alexandre tiveram no desenvolvimento intellectual da Grecia e do mundo uma influencia enorme e decisiva:

Não é para mim falar das maravilhas estrategicas d'essas campanhas, das quaes uma manobra celebre foi genialmente reproduzida por Napoleão em Austerlitz; mas o que interessa á humanidade inteira e por mim póde ser lembrado, é a impulsão gigantesca que a intelligencia do homem recebeu quando o genio grego foi pela primeira vez profundamente penetrado pelo genio do Oriente, quando os capitães e os soldados da guerreira Macedonia venceram o amollecido imperio persa, e caminharam desde o Danubio até ao Nilo, desde o Nilo até ao Ganges, vendo cada dia cousas novas, [120] sentindo cada dia impressões e suggestões até alli desconhecidas; quando elles estremeceram ao sopro gelido que vem dos paizes que se alastram ao longo do mar Negro, e foram quasi que asphyxiados, pelo simoun ardente, pelos vendavaes de areia dos desertos do Egypto; quando se assombraram deante das Pyramides que tinham resistido a vinte seculos de velhice, e interrogaram em vão os obeliscos de Luqsor cobertos de indecifraveis hieroglyphos, e as longas fileiras de esphinges mudas, mysteriosas exhalando de si o pavor de um symbolo inexplicado! quando admiraram as estatuas colossaes de reis que na aurora do mundo haviam vivido e reinado, e se assentaram nos salões de Esar Haddon sobre os thronos dos velhos reis da Assyria que enormes leões alados estavam sombriamente guardando havia seculos e seculos...

Á Grecia revelaram-se então noções do Universo que ella ignorava; maravilhas estranhas de uma civilisação que não fôra feita como a sua de proporção e de harmonia, mas que esmagava pela grandeza, e que se impunha pela força colossal.

Pela Iliada e pela Odyssea se percebe que [121] observadores eram os filhos subtis da alada Grecia.

Tudo que elles então viram e estudaram foi aproveitado mais tarde nas fórmas de uma civilisação nova, mixto do que a hellenica teve de mais bello e a oriental de mais grandioso.

E que sensações deliciosamente novas lhe não daria essa paisagem que elles então conheceram e na qual havia de tudo, desde os areaes sem fim até aos Jardins do Industão; desde as miragens do deserto até ás densas sombras das florestas profundas; desde as montanhas cuja crista se ia perder no seio das nuvens, até ás redondas colinas esbrumadas em nevoa de um tenue côr de rosa; desde o tigre real de salto felino e ondeante e o elephante que em Arbelle fazia tremer a terra sob o peso gigantesco do corpo desforme, até ao rhinoceronte e o hippopotamo, o camello, e o crocodilo, do Nilo e do Ganges; d'essa paisagem em que as arvores eram palmeiras e tamarindos, oleandros e verdes myrtaes; em que os homens tinham todas as côres e todos os trages; em que ao Persa acobreado succedia o Syrio queimado do sol, e o Africano côr da noite...

[122] Tudo isto era um encantamento e uma surpreza, tudo isto continha e incluia em si resultados que assombraram o mundo.

Os conhecimentos exactos, as noções verdadeiras e positivas acêrca do universo, podem bem datar-se das campanhas famosas de Alexandre. Foi então que se fez essa união fecunda e miraculosa do espirito hellenico e do espirito oriental, a India, a Persia, a Babylonia, continham em germen Alexandria e as suas escolas, os Arabes e a sua civilisação ephemera mas deslumbrante...

Quanto a Cesar, esse latinisou, romanisou o mundo até então descoberto; tornando possivel a sua posterior christianisação.

Sob o sceptro dos Imperadores o mundo tinha-se feito romano, e d'alli veiu que sob o baculo dos primeiros Bispos elle poude fazer-se christão. Não havia já nem raças que mutuamente se dilacerassem, nem religiões que umas ás outras se contradissessem, nem tribus que entre si se combatessem... O Imperio novo estava maduro para receber o baptismo de uma só religião, á qual as hordas barbaras viriam successivamente submetter-se...

[123] É ainda, por isso mesmo, que os que hoje vêem na Historia a logica successão de causas e de leis produzindo a logica successão de phenomenos que são resultados, vêem em Napoleão a força ao serviço da idéa, o instrumento de uma grande transformação social obedecendo a uma missão superior, e cumprindo-a de uma fórma perfeita. A Revolução franceza sem Napoleão, não chegaria a ser um facto historico, egual nos seus effeitos á proclamação do christianismo, superior nas suas intenções á Reforma do seculo XVI.

Essa Revolução hoje tão calumniada pelos mesmos que lhe gosam os resultados definitivos e os effeitos niveladores e libertadores, acabaria, a não dar-se o apparecimento fatidico de Napoleão, em uma anarchia ensanguentada da qual nem um principio se salvaria talvez. Napoleão sahido do meio da turba, como que encarnando em si a alma do povo, liberta da sua escravidão secular, fez da Revolução um facto, um facto irreductivel, contra o qual nem a mais reaccionaria vontade pôde nada. Em primeiro logar elle formulou em leis, as doutrinas revolucionarias; o seu codigo civil tem resistido a todas as mudanças de regimen [124] politico que ha setenta e oito annos tem convulsionado a França á superficie, sem terem comtudo alterado a sua constituição civil e o seu regimen de propriedade; depois elle fez de uma Revolução local, que tinha por origem primeira os abusos financeiros, uma Revolução universal que levou o mundo a um dos periodos decisivos da sua marcha progressiva, e que transformou completamente a organisação social de toda a Europa moderna.

Os seus exercitos assoladores como eram, e não os defenderei mesmo contra os que lhe chamam as hostes de Attila, os seus exercitos semearam, sem o saber, sem o querer talvez, a semente da liberdade por toda a parte onde levaram o lemma da usurpação e da tyrannia. Elles passaram, e sob os pés d'essas legiões terriveis que espalhavam o assombro e o pavor, ergueram-se por encanto instituições novas, e os povos readquiriram a dignidade e a liberdade, ambas perdidas na abjecta subserviencia ao despotismo sem grandeza das modernas dynastias.



XIV



As bellas theorias optimistas dos doutrinarios que haviam proclamado os Direitos do homem, a Egualdade, a Liberdade e a Fraternidade, a bondade innata da especie humana, o retrocesso á boa Natureza, o Culto da razão humana como a religião melhor e a mais infallivel, tinham produzido, ninguem sabia em virtude de que sortilegio hediondo, uma horda de freneticos cannibaes, devorando-se uns aos outros com delicia selvagem e requintes de odio e covardia, ao pé dos quaes empallideciam as descripções que o passado nos legou das suas peiores tragedias.

Ninguem atinava como de tão puras premissas tinham sahido tão horrendos resultados; [126] ninguem podia explicar como do bem se gerara tanto mal, como do progresso das luzes se tinha feito tão negra escuridão, porque motivo intenções tão sublimemente generosas tinham produzido tão monstruosos e contradictorios effeitos.

A primeira embriaguez da liberdade sem restricções e sem limites, produz sempre no homem esta demencia má. A Historia assim o diz, mas n'esse tempo era apenas uma restrictissima minoria, a que sabia lêr a Historia e colher as suas lições.

Imagine-se que Napoleão não tinha então surgido; que depois da orgia de sangue que se chamou Terror, e da orgia de lodo e vinho e que se chamou Directorio, não se erguia, mais alto que qualquer individualidade e qualquer instituição, essa força disciplinadora, organisadora dos partidos internos, subjugadora dos inimigos estranhos, tão poderosa, tão efficaz, tão capaz de querer, tão profundamente inimiga da anarchia mansa, que dissolve as nações e da anarchia brava que as esphacella.

A reacção mais desbragada e mais insolita tomaria então conta da França, que n'esse momento decapitada, mutilada, exangue e sceptica, [127] não achava dentro de si nem uma energia redemptora, nem uma crença activa, nem uma só fibra que não estivesse morbidamente combalida.

O sublime esforço de tantos genios humanitarios seria por um longo periodo, que hoje não podemos calcular com acerto, inteiramente perdido; da Revolução restaria apenas a memoria dos seus inexpiaveis crimes. E porque havia rolado nos degraus da guilhotina a bella cabeça precocemente embranquecida de Maria Antonietta, e porque o pobre e burguez e inoffensivo Luiz XVI tinha expiado, como quasi sempre succede em politica, os erros e as faltas dos seus antecessores, acontecia que Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Turgot, Condorcet teriam pensado, escripto, meditado, trabalhado em vão.

Quem é que seria capaz de pacificar os partidos exasperados a não ser esse homem superior a todo o seu tempo, superior á sua raça, e que pôde congregar no mesmo fim:―fazer grande e gloriosa a patria commum;―os vencidos e os vencedores, os regicidas e os ex-emigrados os que tinham escapado por milagre ás proscripções jacobinas e os que as tinham [128] decretado, Fouché e Talleyrand, os filhos da antiga aristocracia espoliada, e os triumphantes espoliadores que estavam na posse do que fôra d'ella?...

E d'essa agglomeração de interesses contrarios, de ambições que se excluiam, de classes que eram antagonicas por instincto e por circumstancias, de adversarios que se odiavam mutuamente, quem tirou a França poderosa, affirmativa, unificada pelo mesmo codigo de justiça, enriquecida pelo mesmo regimen de propriedade, tendo conquistado a egualdade civil para todos os seus filhos, vendo abertas todas as carreiras para as individualidades que se distinguissem no seu seio, consolidadas todas as conquistas, emfim, d'essa liberdade que ameaçara suicidar-se, envenenando no seu sangue aquelles que d'elle haviam sonhado nutrir-se?





É este o papel cumprido por Napoleão na Historia, é esta a sua missão na França; como foi sua missão no mundo espalhar, propagar os principios da Revolução que elle, sem talvez o querer, representava como ninguem!

[129] Os que o julgarem mais tarde hão de julgal-o assim, e hão de perdoar ou escurecer, como succede com Cesar, como succede com Alexandre, os seus erros e defeitos pessoaes, os quaes, feito o balanço final, que só o futuro fará, foram talvez mais uteis do que nocivos, porque contribuiram para o inutilisar no momento em que o seu papel deixava de estar em estreita harmonia com as circumstancias que necessitaram a sua cooperação.

Ultimamente, porém, desenvolveu-se no mundo a febre de atacar ou defender o caracter pessoal de Napoleão em memorias numerosissimas, em folhetos, em livros de historia, em pamphletos, em ensaios criticos, etc., etc.

Quem deu o branle a este movimento bibliographico extravagante, que tem como heróe Napoleão, foi Taine em um dos seus volumes sobre as Origens da França Contemporanea, em que traçou do grande homem um retrato, por todos conhecido hoje, retrato á Rembrandt, cuja belleza magistral não fere á primeira vista senão os verdadeiros entendidos, quer dizer os psychologos e os observadores e moralistas.

Taine para desenhar Napoleão serviu-se do [130] seu velho processo de documentos miudinhos juxtapostos, que não é de certo o mais interessante para o grosso publico. Interrogou as testemunhas oculares, os criados, as damas de honor da Imperatriz Josephina, as pessoas que mais ou menos estiveram na intimidade e no contacto directo de Napoleão. Ora, é bem sabido que não ha grande homem para o seu criado de quarto, mas ainda assim Napoleão excede tanto a craveira commum e Taine sabe de tal modo vivificar os mortos documentos com que fórma o seu dossier de investigador, a sua imaginação auxiliou-o de tal modo, indo procurar nos condottieri do seculo XIV e XV, como Stendhal já fizera antes d'elle, os antepassados cuja influencia hereditaria e atavica, se fez sentir com tão pittoresco relevo no grande aventureiro do seculo XIX―que mais contribuem para a grandeza de Napoleão as accusações de Taine, que os elogios de mediocridades incapazes de entenderem a verdadeira grandeza.

Já se vê que um homem como Napoleão não póde ser julgado pelo nosso codigo moral. O seu potente cerebro, o maior de certo que a determinados respeitos tem havido no mundo, não se deixa subordinar pelas leis fatalmente restrictas, [131] pelas quaes a simples humanidade tem de reger-se para mutuamente se supportar.

A sua imaginação portentosa põe-n'o continuamente a dous passos do crime ou da loucura; as suas paixões indomitas não conhecem regra, como não conhece obstaculos a sua vontade inflexivel.

É em virtude d'estas faculdades extraordinarias que elle é capaz de executar cousas que os outros nem em sonhos ousariam conceber.

Não admira que as memorias do tempo lhe sejam muitas vezes contrarias. Elle teve de subjugar muitas vontades, de se contrapôr a muitas ambições, de humilhar naturalmente muitas vaidades, de excitar muita inveja e muito despeito, para que os seus contemporaneos mais intimos sejam capazes de perdoar-lhe a grandeza excepcional de um destino que a todos offuscava.

Mas o que ninguem póde negar-lhe é o poder singular de seducção que o seu sorriso irresistivel, que o seu olhar de aguia exerciam. Venceu e dominou todos os que se lhe approximavam, e os proprios imperantes, seus inimigos, receberam, ao contacto d'aquella grandeza simples que o distinguia, o choque electrico que [132] se communicava fatalmente da alma d'elle ás almas com que a sua estava em contacto.

O retrato de Taine indignou, porém, apezar da sua incontestavel belleza artistica, apezar da sua expressão intensa de vida, dos toques humanos que o fazem palpitar, os adoradores de um Napoleão imaginario, todo virtudes burguezas de familia, e clemencia de Moral em acção e um escriptor francez para mim desconhecido, o Sr. Arthur Levy, acaba de publicar um grande volume com o fim de contrapôr o verdadeiro Napoleão, o que elle chama Napoleon intime, ao terrivel grande homem descripto por Taine, e de contradizer o critico francez em todas as suas asserções ácerca do caracter pessoal do Imperador.

Ora, o Napoleon intime do Sr. Arthur Lévy é a mais falsa personagem historica que póde imaginar-se, embora seja todo elle composto, como um mosaico laboriosissimo, de pedacinhos de cartas escriptas por Napoleão, e de pedacinhos de documentos de uma authenticidade incontestavel.

O que mais irrita o auctor do Napoleon intime é a hereditariedade italiana, que Taine tão logicamente lhe attribue. Um burguez francez [133] dos quatro costados e com todas as virtudes médias e as qualidades mediocres da burguezia francesa eis o que o Sr. Levy pretende fazer do heroe das Pyramides e de Austerlitz e de Arcole e de Wagram!...

Sobre o tumulo de soberba pedra moscovita, que a piedade de nacionaes e estrangeiros visita quotidianamente em veneravel recolhimento, poder-se-hia escrever segundo o criterio do Sr. Arthur Levy, o que sobre a sepultura de um burguez de 1830 mandou gravar a familia consternada:

Bom esposo, bom pae, bom filho e bom guarda nacional.

Napoleon intime está escripto, é verdade, com grande copia de referencias, de citações e documentos. Em primeiro logar, documentos e citações truncadas nada significam. Depois, quando muito, elles poderiam provar que uma das faces do multiplo caracter de Napoleão era essa que o Sr. Arthur Levy quer apresentar como predominante: isto é, uma certa fraqueza, que é frequente nos seres superiores para o seu entourage mais intimo, para a familia, para a mulher, para os amigos, sempre que os amigos lhe não resistiam.

[134] O heróe de mil batalhas desde as campanhas da Italia e do Egypto até essa admiravel campanha de França, a de mais superior estrategia, segundo asseveram entendidos; o organisador, o administrador, o general extraordinario em cuja visão se gravava toda a topographia de um paiz, com os seus accidentes de terreno, os seus valles, e montanhas, os seus recessos, as suas planicies, os seus pontos mais fracos e os mais fortes, e que fazia d'essa sciencia rara a applicação mais genial e a mais pratica; o homem de mil occupações simultaneas, que deslumbrava, pasmava, esfalfava os seus collaboradores subalternos; o violento, o apaixonado, o teimoso, o tyranno; o organismo de uma delicadeza de impressões, de uma violencia de impulsos, de um apuro de sensibilidade excepcionaes; o que suggeria milagres e os fazia; o que subjugou e seduziu uma nação inteira; a figura, emfim, unica! em toda a Historia moderna, que foi Napoleão, nem por um momento transparece nas paginas de uniforme e banal elogio que o Sr. Arthur Levy lhe consagra laboriosamente.

Napoleão antes queria, de certo, esse retrato ás vezes de um crú realismo de toques, que Taine [135] lhe consagrou, do que o monotono panegyrico d'este seu incommodo admirador.

Aquelle que eu fui ver aos Invalidos é talvez o Napoleão de Taine, o do Sr. Levy, oh! esse é que affirmo com a infallibilidade da minha intuição de mulher, que não é de modo algum.



Segunda parte




O fim do Paganismo

(gastão de boissier)



A litteratura franceza da actualidade é pouco abundante em obras fundamentaes de sciencia ou de historia, embora conte no seu seio dois dos historiadores mais brilhantes dos modernos tempos Renan e Taine. Á excepção, porém, d'estes dous grandes espiritos, que devem as linhas principaes da sua educação intellectual á Allemanha e á Inglaterra e nos quaes são profundamente sensiveis essas influencias estranhas―póde dizer-se que a grande geração dos Michelet, dos Quinet, dos Auguste Comte não deixou herdeiros capazes de nobremente a representarem.

[140] Continúa, porém, a escrever-se muito em França, e como as qualidades eminentemente sociaveis d'esta nação privilegiada a tornam apta para o seu grande papel de propagadora, de educadora dos espiritos, póde bem accrescentar-se que nós os europêus do Occidente quasi tudo que sabemos, o sabemos passado pelos livros da França.

Ou traduzidos para francez ou assimilados pelo espirito da França, é por esse caminho que nos chegam todas as grandes idéas mais ou menos novas, elaboradas ou transformadas pela raça anglo-saxonia, pela raça germanica, ou pela raça slava.

Eu por mim lamento infinitamente que em Portugal a litteratura ingleza por exemplo seja tão incompletamente conhecida. Tenho achado tantas vezes um gozo incomparavel na leitura de escriptores inglezes, que não posso deixar de sentir que esse intenso prazer intellectual não seja mais universalmente partilhado. E é-o tão pouco que ha tempos uma amiga minha―muito instruida e grã ledora por signal―me affirmava ter ouvido a um homem de Estado portuguez, ministro, e não sei que mais, se mais alguma cousa póde haver que ministro, na opinião [141] imparcial de quem o é,―affirmar audaciosamente que para provar a inferioridade mental da Inglaterra bastava dizer isto: é que a Inglaterra não tinha uma litteratura!

Que a patria que viu nascer desde Chaucer e Spencer, até Shakespeare, Milton e Byron, desde Bacon até Herbert Spencer, desde Addisson até Macaulay, desde Richardson até Georges Elliot, desde Bunyan o inspirado da Religião até Carlyle o inspirado da Historia―perdôe as heresias do joven estadista, meu compatriota, cuja ignorancia me parece o estar realmente predestinando para governar e dirigir a nossa metaphorica Náu do Estado, por muitos annos e bons.

Vinha tudo isto a proposito de eu ter hoje, contra o meu costume, de apresentar um livro francez tão erudito, tão profundamente e facilmente elaborado, tão cuidadosamente feito sobre documentos authenticos, como se o firmasse o nome de um inglez estudioso, ou de um sabio allemão.

O livro, chama-se O fim do paganismo e deve-se á penna autorisada e seria de Gaston Boissier da Academia Franceza, grande e sincero cultor da antiguidade latina e autor de obras [142] muito importantes sobre a historia das lettras classicas.

A obra é enorme. Tem dous volumes macissos que tratam unicamente de assumptos estreitamente ligados ao seu titulo, mas apezar d'isso lê-se com immenso agrado, porque é profundo sem ser pedante, é vivo sem ser desordenado e está escripto com um sentimento intenso e profundo da época que o inspirou.

Essa época é aquella em que as ultimas luctas religiosas se travaram no Occidente entre o Paganismo que expirava e o Christianismo que irrompia ardente, impetuoso, tumido de seiva, cheio de um longo futuro das entranhas fecundas da humanidade.

Abre com o seculo IV pela conversão de Constantino, isto é, pela christianisação do Imperio Romano, e fecha com a invasão dos barbaros e com a destruição d'esse Imperio assombroso, que até ás vesperas da sua completa anniquilação fez o espanto até d'aquelles mesmos que mais soffreram d'elle, e que não podiam crêr que elle fosse destruido!

Ja se vê que nos é impossivel em um artigo, ou mesmo em uma série de artigos, resumir este trabalho que representa longos annos de [143] estudo e de paciente investigação; que reflecte a leitura aturada do mais enfadonho e difficil de todas as litteraturas, a da egreja primitiva e a de Roma decadente.

Não queremos, porém, deixar de anunciar este livro áquella classe de leitores que amam sinceramente o estudo, e principalmente o estudo da historia, um dos mais attractivos, um dos mais interessantes que existem no mundo, porque é um d'aquelles que suggerem mais variedade de pensamentos e mais extensa série de impressões intellectuaes.

A que logo se destaca d'esta obra monumental de que tivemos a paciencia de lêr attentamente as mil e tantas paginas é esta: Como nas mais diversas épocas, os homens, tendo attingido um certo gráu de civilisação, se parecem entre si!...

Quantas similhanças frisantes, que identidade de pontos de vista encontramos entre os homens que figuraram no IV seculo da nossa éra e os homens de hoje!

Não admira, porém, isso tanto, logo que pensarmos que ha bastantes similhanças entre a phase de civilisação que atravessamos e a d'esse seculo que assistiu ao esphacelar de um immenso [144] imperio, ao fim tragicamente melancolico de uma religião, á transição violenta e brutal na distancia, mas menos violenta de facto do que a imaginámos, de um regimen para outro que lhe era totalmente opposto.

Não é por uma historia systematicamente escripta, chronologicamente ligada pelos factos, que Gaston Boissier nos inicia n'essa quadra tão afastada de nós.

O auctor preferiu um methodo muito mais captivante e talvez um pouco menos difficil.

Traça quadros differentes e livros completos em si. Fórma como que uma galeria de figuras typicas, cuja influencia se tenha feito sentir pela sua obra escripta ou pela sua acção directa sobre os contemporaneos.

Escolhe aquelles que deixaram um nome celebre e analysa-lhes os livros, as cartas, as poesias, etc. etc. Pede á historia do tempo que lhe forneça os seus documentos mais incontestaveis e reconstrue com elles ou uma physionomia de Imperador ou uma figura de Poeta, ou uma veneravel e grandiosa imagem de Bispo ou de Doutor da nascente egreja.

Constantino, o imperador convertido, Julião, o imperador apostata, são dois estudos de alto [145] interesse historico e psychologico. Em ambos, o auctor vê dois convertidos, dois fanaticos, um do christianismo que se apossa da sua alma e a transporta em allucinações supremas, outro dos velhos deuses, abandonados, cuja restauração prepara com paixão fogosa e arrebatamento devoto.

Nem Constantino é o ambicioso que muitos historiadores têem imaginado e descripto, nem Julião é o livre-pensador que Voltaire enthusiasticamente applaudia.

São duas almas sinceras que usáram do poder illimitado que possuiam, para imporem ás almas dos outros a fé que os transportava. Julião vingava-se assim da oppressão em que o tinham tido longos annos e associava á causa dos deuses vencidos a sua propria causa de opprimido e de victima.





No livro intitulado O Christianismo e a Educação Romana, Geston Boissier, o erudito escriptor, traça o mais brilhante quadro d'essa educação antiga, cujo poderoso encanto é tão penetrante, é tão subtil que nunca mais [146] ella deixou de ser a base da instrucção que o mundo tem dado aos seus modernos filhos.

Foi por meio da educação, dada publicamente por mestres pagãos á mocidade christã, que os dois cultos inimigos se fundiram no coração e na imaginação da humanidade. Sem darem por isso, os christãos receberam a influencia do paganismo expirante, por meio dos livros dos seus poetas sublimes e dos seus admiraveis prosadores.

Quem bebera com o leite as inspirações de Homero e de Virgilio; quem aprendera a bem pensar com Platão e a bem dizer com Cicero; quem recebera a magistral lição da Philosophia e do Direito antigo; quem formára o seu espirito por esses moldes incomparaveis, não podia mais esquecer o mel de tão doce eloquencia, a graça de tão perfeita poesia e a lição viril de tão alta sciencia philosophica!

S. Jeronymo, Santo Antonio, Santo Agostinho, os grandes doutores, os grandes luminares do christianismo, estão todos penetrados, até á medulla, d'essa influencia suprema e invencivel.

Foi, portanto, por meio da educação, que os [147] dois elementos, o pagão e o christão, se fundiram harmoniosamente.

É de um interesse profundo o quadro que Gaston Boissier desenha d'essa educação romana, tão propria para formar chefes politicos e chefes militares incomparaveis. Mas no seculo IV da éra christã essa educação modificara-se muito, a ponto de já não parecer a mesma, nem ser capaz de produzir os mesmos fructos. Um romano de grande familia não conhecia, nos tempos aureos da vida d'esse imperio, senão dois officios: a guerra e a politica. Aprendia no campo a guerra; a politica aprendia-a, não, lendo Aristoteles ou Platão, mas assistindo diariamente ás sessões do Senado.

Esta educação pratica de uma efficacia admiravel fazia então os valentes capitães e os famosos dominadores politicos.

A Inglaterra contemporanea, de todos os paizes modernos o que mais se parece com a Antiga Roma imperial, tambem cultiva a força viril dos seus filhos nos mais variados sports que a desenvolvam; na natação, na nautica, nas corridas de cavallos, na lucta athletica, nos jogos da gymnastica moderna,―mais [148] sabia, embora menos esthetica do que a antiga,―e tambem começa, de muito moços, a exercital-os na arte da palavra, na educação que forma os oradores, os debaters, os grandes parlamentares da eloquencia ou dos negocios.

Nas Universidades de Oxford e de Cambridge, ha clubs especialmente destinados á discussão dos negocios publicos, onde se propõem e se debatem assumptos de interesse nacional e de politica geral.

Mais tarde, quando os professores gregos se estabeleceram em Roma, os grammaticos e os rhetoricos tomaram conta da mocidade, ou nas escolas publicas, ou no seio das grandes familias.

A Grecia cultivara com enthusiasmo a philosophia, a musica, a rhetorica, etc. Os Romanos, porém, de uma inaptidão esthetica tão justamente reconhecida por Mommsen―não acceitaram com prazer, de quantas artes e sciencias lhes trouxeram os seus educadores gregos, senão a grammatica e a rhetorica. A philosophia affigurava-se-lhes um palavriado vão e inutil; a geometria e as mathematicas só os captivavam pelas suas applicações de [149] utilidade pratica; eram para elles a arte de contar e de medir.

A rhetorica, porém, essa arte de falar que tanta influencia produzia na imaginação antiga, impoz-se-lhes fatalmente após as primeiras reluctancias do instincto conservador, que detestava tudo que era innovação.

Foi então que a educação dividida em dois ramos, fez da leitura e explicação dos poetas, da critica e analyse das suas obras, a sua base fundamental.

Ainda hoje a Inglaterra, sob as suas apparencias gothicas a mais romana das nações, dá aos discipulos das suas universidades aquella fórte educação classica que torna tão substancial e tão nobremente florida ao mesmo tempo a eloquencia dos seus grandes oradores.


II


Sem podermos acompanhar o livro altamente instructivo de Gaston Boissier, nos variados assumptos que elle trata, sem tentarmos resumir os quadros magistraes da vida da antiguidade que elle traçou, n'essas paginas tão ricas de informação e tão sobrias de côr, escolhamos, [150] para d'elles dar conta aos leitores, a quem este genero de trabalho interessa particularmente, alguns dos seus capitulos mais notaveis.

A biographia de Tertuliano, um apologista do christianismo, que o mundo moderno conhece apenas de nome, apesar da sua celebridade theologica não póde, por exemplo, interessar-nos tanto como a Conversão de Santo Agostinho.

Este Santo que conheceu até á saciedade, até á nausea, todas as delicias da volupia pagã, este joven elegante, que frequentou com tamanha paixão litteraria as escolas de Carthago, este christão que seguiu com enlevo as procissões da Mãe dos Deuses, e que no theatro devorou avidamente as peças ligeiras do reportorio antigo―interessa-nos pela violenta crise mortal que determinou a sua conversão.

Elle mesmo nos confessou em um livro que será sempre avidamente lido pelos prescrutadores insaciaveis do eterno abysmo humano, todas as gradações, todos os cambiantes por que passou a sua alma sequiosa do Infinito e que procurava estancar a sêde que tinha lá dentro de verdade e de luz, correndo atraz de todas [151] as sensações acres e pungitivas, sondando com curiosidade inquieta todos os segredos da Paixão e do Prazer.

Tanto mais meritorio é o sacrificio feito por Santo Agostinho, ao renunciar ás delicias da litteratura pagã, ás graças da musa classica, aos encantos da sociedade polida e culta, quanto era sincero e apaixonado o amor que ella tinha por todos esses prazeres da intelligencia e dos sentidos.

Admirador de Virgilio, discipulo de Cicero, elle atirou-se porém, com ardente desejo de achar n'ellas a verdade que lhe fugia, ao estudo das Escripturas. Ao principio a barbaria christã revoltou o seu puro gosto. Só mais tarde é que, através da fórma incorrecta d'essas traducções hebraicas feitas por escrupulosos e ignorantes christãos, elle poude perceber as correntes puras e limpidas, os mananciaes de vida interior, as preciosas riquezas d'alma, que jorravam dos livros sagrados, e que vinham renovar a alma humana, vazar em moldes novos as suas aspirações e os seus sonhos, crear uma nova fórma de civilisação infinitamente mais rica e mais complexa do que essa, que a formidavel depravação romana tinha gasto [152] com os seus excessos orgiacos e os seus monstruosos e nunca vistos crimes!

Todo o capitulo consagrado a essa bella figura do christianismo primitivo, a esse grande espirito que tanto concorreu para a organisação definitiva dos seus dogmas, e em que Gaston Boissier conta as suas luctas interiores e, finalmente, o triumpho soberbo da sua conversão é de um interesse palpitante.

Teem sempre actualidade para aquelles que pensam os intimos combates de uma consciencia sincera.

Aos que fôrem verdadeiramente homens nada do que é humano póde ser estranho; e onde é que a maravilhosa planta dá a sua flôr mais desabrochada e mais perfeita do que n'esses typos luminosos, nos quaes o genio concretisou todos os seus esplendores, a vontade, todas as suas sublimes energias, a consciencia, todas as suas forças mysteriosas!...

Santo Agostinho é o homem que amou, que aspirou, que conheceu a vida, que luctou e que venceu por fim, sobrepondo a todas as contingencias da existencia limitada e mesquinha o que elle na sua alta consciencia julgou ser a eterna verdade!

[153] Subir tão alto pela acção do seu proprio entendimento é conter dentro de si, em um momento cuja memoria não mais se anniquilla, fecundando eternamente outras almas e outras existencias;―aquella porção de elemento divino que é dado á frágil humanidade realisar e encarnar em si bem raras vezes.

São estas almas superiores as eternas bemfeitoras da nossa raça imperfeita, tão grande pelo que sonha, tão mesquinha pelo que consegue executar.

As origens da poesia latina christã, que compõem o livro 4.º, no segundo volume, são tambem cheias de interesse e novidade para quem não está costumado―e quem o está hoje em dia?―a versar tão remotos assumptos!

A litteratura christã nasceu como já dissemos da mistura que se fez durante tres seculos da antiguidade profana e do christianismo.

Aos que conhecem e apreciam a litteratura dos grandes seculos da Grecia e de Roma, deve incontestavelmente parecer mediocre, quasi insupportavel, essa rude e incorrecta litteratura, onde o melhor era imitado ainda assim, [154] com inconsciente impudor, dos modelos antigos.

Mas muito embora ella não tenha valor litterario, ninguem póde negar-lhe um grande valor historico.

O grande abalo moral que o Christianismo imprimira ás almas não tem comtudo, um éco que lhe corresponda na poesia d'este tempo.

Era muito imperfeito o instrumento d'essa lingua latina em dissolução na qual tantos povos varios tinham introduzido as suas locuções barbaras, e que manejada por humildes artifices ignorantes as mais das vezes, perdera o sabor e a graça ampla e perfeita da aurea latinidade.

Não póde pois ser classificada como uma obra de litteratura, a serie de escriptos, que essa era,―no entretanto fecunda e na qual se estavam surdamente e subterraneamente elaborando tantos elementos novos―produziu e nos legou.

N'esse tempo cumpria-se justamente um dos maiores acontecimentos da Historia.

O mundo estava sendo revolvido até ás suas entranhas mais profundas.

Havia dramas intimos em cada consciencia, [155] parecidos com esse, de que Santo Agostinho nos representa o mais elevado typo; havia luctas dolorosas em cada familia; em uns a sêde do martyrio tinha voluptuosidades violentas; em outros a plenitude da paz religiosa attingia uma especie de beatifico esplendor. Que novas sensações de uma intensidade inultrapassavel conheceram então as almas! Que fontes de graça mysteriosa jorraram subitamente n'esses renovados corações! Os crentes elevaram o espirito n'um extase até alli desconhecido. A vida eterna abria as portas resplandecentes aos sequiosos do eterno au de lá. Jesus Christo mostrava as chagas do seu corpo, e os estygmas do seu martyrio affrontoso aos que sentiam subir na alma como uma maré mysteriosa, o novo sentimento do amor, a divina emoção da piedade fraternal, que subito fizera todos os homens irmãos, e todos os irmãos soffrendo a partilha angustiosa da mesma agonia!

O Evangelho revelava as suas lendas cheias de graça, as suas parabolas de idyllica innocencia, as suas lições de simples e ineffavel bondade, aos saciados de uma civilisação dissoluta e abominavel!

[156] Todos tinham um quinhão n'aquella herança preciosa!

Para todos havia pão e vinho n'aquella ceia symbolica, em que as almas rejuvenescidas por um sopro de amor commungavam maravilhadas!

Não é, porém, na litteratura, mesmo nos mais rudes ensaios da litteratura christã do tempo, que este mundo de emoções novas tem o seu perduravel reflexo.

A alma do povo, na sua fecundidade prodigiosa, desatou-se, abalada por este impulso que a transfigurava e sacudia, em idéas, em typos, em imagens, em lendas, que a Arte Christã em todos os seus periodos tem largamente aproveitado. Em dois seculos, do segundo ao quarto seculo, a imaginação christã elaborou e amontoou thesouros que enriqueceram o mundo moderno.

Os evangelhos apocryphos gerados espontaneamente pela alma popular, no tempo do christianismo primitivo, são os thesouros mais ricos em que essa imaginação se desentranhou.

A mais doce, a mais imaginosa poesia do christianismo encontra-se alli. Todas as lendas [157] que fizeram o encanto da nossa infancia, e que emballaram tambem com o seu rythmo dulcissimo a risonha infancia da alma moderna, são tiradas d'essa poesia anonyma, em que todas os almas collaboraram em um enleio religioso, e em uma fé palpitante e suggestiva, inconsciente dos prodigios que creava.

Essa é que é a verdadeira litteratura christã, aquella em que as forças espontaneas que geram os mythos e os adornam com todas as flores da mais variada poesia, se revelam com encantadora eloquencia.





Passando em claro os capitulos consagrados a S. Paulino de Nola, um santo gaulez que inspira uma sympathia patriotica a Gaston Boissier; o capitulo que tracta da vida e das obras do poeta Prudencio; e muitos outros que estão cheios de revelações sobre a quadra que descrevem, e em que nós os leitores podemos reconstituir com intenso colorido esse seculo estranho, em que um periodo da Historia da humanidade findava e outro principia a destacar-se nitidamente―paremos [158] deante do Livro quinto do 2.º vol. que tem este titulo que é só por si um regalo para os gulosos de taes estudos: A sociedade pagã nos fins do seculo IV.

Mas percebo agora que cheguei ao fim do espaço de que posso dispôr. E este capitulo de costumes,―em que uma sociedade aristocrata, culta, amiga das lettras, fastienta até ao requinte, frivola até á dissipação, muito occupada de elegancias mundanas, de convenções e de cerimonias, muito sceptica, separada por um abysmo do mundo moderno cujos representantes eram justamente os que compunham a seita que ella teimava a desprezar como plebeia, humilde e ignorante, mesmo depois de fazerem parte d'ella homens de valor moral de Agostinho,―este capitulo, digo em que uma sociedade tão parecida com a nossa com os mesmos preconceitos, com os mesmos vicios, com a mesma despreoccupação do perigo está posta de pé, com admiravel vigor, precisa de um artigo especial que muito proximamente lhe consagrarei.


III


O methodo de Gaston de Boissier é, com algumas [159] modificações secundarias, o methodo de Taine.

Para penetrar uma sociedade, o erudito escriptor estudou a sua litteratura. Para comprehender bem a litteratura de um dado periodo elle procura conhecer e investigar cuidadosamente a vida dos seus escriptores. Cada typo representativo―representative man, dizem os inglezes―dá-lhe o segredo das idéas, dos sentimentos que predominavam em uma determinada época.

Assim para dar a conhecer aos seus leitores a alta sociedade romana do quarto seculo, Gaston Boissier vae lêr e faz-nos lêr a nós as cartas de Aurelio Symmachus―personagem de que muitos dos seus leitores e dos leitores benevolos d'este estudo, encurralados na extrema especialisação da educação moderna, nunca de certo ouviram falar.

Todos sabem, que as cartas de Plinio, o moço, e as cartas de Cicero lançam uma grande luz sobre a sociedade da sua época, e concorreram como documentos admiraveis para que a moderna critica, tão erudita e tão comprehensiva, reconstituisse através d'ellas a alma da Antiguidade.

[160] Pois Gaston Boissier pede ás cartas muito menos caracteristicas de Symmachus o mesmo impagavel serviço.

N'aquelle tempo, tão proximo da hora em que Alarico viria bater ás portas de Roma, ninguem percebe a imminencia do perigo que ameaçava a sociedade antiga.

Symmachus occupa-se muito pouco dos negocios publicos; acha-os, ou «nullos ou de pequena importancia.»

Quem lê as correspondencias, aliás adoraveis dos grandes amadores da epistolographia no seculo XVIII, tambem não percebe n'ellas o minimo rebate dos perigos que ameaçam o regimen que ia esboroar-se em sangue e em violencias tremendas. Nem o proprio Voltaire, tão agudo de intelligencia, tão perspicaz, tão penetrante, e que tão activamente collaborára na propaganda a que se deveu a Revolução, percebe levemente a responsabilidade que assumia, e as tempestades que elle creára com a sua palavra de fogo.

Nas vesperas das grandes crises que iam transfigurar o mundo, occupam-se todos de galantarias, de ditos graciosos, de versinhos bem [161] feitos, de anecdotas de velado escandalo, de intrigas de amor ou de ambição.

Quem presente sequer que Danton vai trovejar e que Robespierre vai sorrir sinistramente e que d'esse trovão e d'esse sorriso vai surgir um mundo novo?

Tambem hoje, um seculo depois da Revolução, quando, feitas todas as conquistas politicas, a alma inquieta, e nunca satisfeita, do homem reclama imperiosamente a solução prompta, radical do terrivel problema da miseria―quem é que percebe nos salões de Paris, de Londres, de Nova-York e de Berlim que a terrivel liquidação está a chegar, e que uma era tenebrosa de anarchia e de lagrimas, de ruinas e sangue espera porventura os que teimarem em viver muito?

É da lei das sociedades não perceberem nunca claramente as transformações que se estão elaborando no proprio seio d'ellas.





Como quer que seja, a verdade é que o grande senhor romano, cujas cartas nos interessam n'este momento, se não preoccupa absolutamente [162] nada com os negocios do Imperio. Comquanto no seu tempo o Senado seja ainda um corpo importante, elle perdeu comtudo o seu antigo esplendor.

Os Senadores deixaram de ser grandes e poderosos magistrados, mas conservam-se uma classe activa, eminentemente aristocratica, impondo, ja se vê, a moda e dominando os costumes.

É justamente a transformação que se opera na aristocracia europêa, entre o fim do seculo XVII e o principio do seculo XVIII. Occupam grandes cargos honorarios na côrte imperial, como os fidalgos francezes de que nos fala Saint-Simon―e dominam―o que tambem frequentemente lhes succedia a elles―na administração interna das provincias romanas.

Um dos encargos e das honras, que estes ultimos teem e conservam zelosamente, consiste no caro privilegio de dar jogos publicos ao povo. O pão e espectaculos, de que fala Juvenal, continuam a ser até á final dissolução do Imperio, as unicas necessidades da plebe romana. Muitas cartas de Symmachus, que era conservador das tradições antigas, tratam exclusivamente de encommendas de feras e de [163] animaes, feitas aos amigos que elle tinha em todo o mundo.

Na occasião de investir da pretura o seu filho primogenito gastou elle uma somma equivalente a dois milhões de francos.

Para todos os lados manda emissarios encarregados de lhe trazerem artistas de merito, bichos raros, ornamentos estranhos, sumptuosos e imprevistos, com que elle possa deslumbrar os olhos da plebe e manter a sua popularidade.

N'este ponto não podemos accrescentar que o mundo moderno tenha similhanças com a sociedade antiga. Entre as nossas eleições constitucionaes e estas festas populares com que se comprava o affecto do povo, a differença não é realmente tão pequena como isso.

Os modestos banquetes, com que entre nós o eleito obsequeia os seus eleitores não se parecem lá muito com esses prodigiosos espectaculos em que sómente para lhe agradarem a elle, ao povo-rei, senadores como Symmachus mandavam vir ursos do norte, leões da Africa, cães da Escocia, crocodilos do Nilo,―d'esse verde Nilo, de que Cleopatra fôra a serpente lasciva,―cavallos de Hespanha, comicos da Grecia, [164] gladiadores saxões, mimicos, cocheiros, de Byzancio, o inferno!... Todo o mundo, então conhecido, contribuia para o prazer cruel d'esse povo insolente!

Eis um traço de costumes que demonstra, mais que mil dissertações a distancia moral que nos separa dos homens d'esse tempo, ainda mesmo dos melhores:

Symmachus, para essa festa monumental, mandára vir como gladiadores os prisioneiros saxonios, raça valente, sobre a qual contava para o pleno successo do espectaculo. Pois na vespera vinte e nove d'esses homens de bravo coração, não querendo servir para os prazeres do povo romano, estrangularam-se uns aos outros, no carcere em que os guardavam.

Symmachus, que era um bom homem, um homem culto, que conhecia a philosophia e a litteratura antiga, que sabia, emfim, tudo que sabia o seu tempo, longe de perceber a selvagem grandeza d'este acto heroico, enfureceu-se contra os desgraçados, e exclamou de muito boa fé: «Não quero que me falem mais d'esses miseraveis, que são ainda mais perversos que Spartacus

E esta exclamação de ingenua crueldade, [165] vale mais que uma longa analyse do caracter e da sensibilidade antigos.





O modo externo de viver em Roma differe pouco do já conhecido pelas Cartas de Plinio. As regras de civilidade social têem-se, porém, complicado ainda mais. O tempo nas altas classes passa-se a fazer e a receber visitas, a assistir a cerimonias mundanas, taes como casamentos, investidura da tunica viril, conselhos de familia, etc., etc.

A paixão das lettras é universal na sociedade elegante―tal como no nosso seculo XVIII. Os grandes e graves personagens do tempo passam a vida a trocar entre si versinhos mais ou menos chôchos e a cumprimentarem-se com effusão pelos seus talentos litterarios.

Roma acolhe os litteratos estrangeiros sob o reinado de Theodosio, como o fazia no tempo de Trajano. Os mais illustres escrevem e applaudem quem escreve, e, como no tempo dos Medicis em Florença―os quaes, já se entende, tratavam de imitar a antiguidade―ha [166] banquetes em que se leva a noite a discutir doutamente theorias scientificas e litterarias.

A classe alta possue grandes riquezas. O nosso Symmachus, um dos menos ricos, tem tres casas em Roma e quinze villas nas mais bellas regiões da Italia. Não se excede em luxo, em graça voluptuosa, em douta cultura, em elegancia magnifica, a vida d'essa classe privilegiada, cujos avós tinham conquistado o mundo e que tratava agora de lhe gosar em paz as infinitas delicias.





Não se imagine, porém, que só a sociedade pagã estava contaminada d'este egoismo, d'esta preguiça epicurista, d'esta artistica e sumptuosa indolencia. S. Jeronymo, que tambem, antes de convertido, tinha saboreado o gosto d'esta vida ostentosa e anesthesiante, que tambem conversára com as mulheres de espirito, lêra avidamente os deliciosos poetas pagãos, bebêra emfim até á embriaguez essas «delicias de Roma» contra as quaes se revoltava depois, é o [167] proprio que nos conta o modo porque os ociosos e os ricos de ambos os cultos passavam a existencia.

«Em que se passa o tempo na grande cidade? pergunta elle, em uma das suas cartas. Em ver e ser visto, em receber visitas e fazêl-as. Em louvar os presentes, e dizer mal dos ausentes. Começa a conversação e não ha meios de acabar.

«Contam-se historias escandalosas. Morde-se e é-se mordido. Dilacera-se quem não está, e adula-se quem ouve.»

Não parece a descripção de uma sala do nosso tempo?

Querem vêr agora o retrato de um abbade da Regencia?

«Levanta-se muito cedo e regula desde logo a ordem das suas visitas. Procura o caminho mais curto, e vai surprehender, ao sahir do leito as damas que pretende visitar. Repara, porventura, em uma almofada, em uma toalha elegante, em algum objecto d'esta ordem. Apalpa-o, admira-o, lamenta-se de não possuir nada egual, e tanto faz, que acaba por conseguir que lhe façam presente d'elle.

«Onde quer que a gente vá, é a primeira [168] pessoa que encontra; sabe todas as noticias; corre a divulgal-as antes de ninguem; inventa-as quando lhe faltam verdadeiras, e, em todo o caso, aformosêa-as com incidentes novos em cada vez que as conta.»

Pois este abbadesinho galante, este joven padre parasita e lisongeiro, não é tal da Regencia como eu lhes disse. É de Roma no tempo de S. Jeronymo e é elle quem o descreve, com este ironico vigor, com esta agudeza espirituosa em uma das suas Epistolas!





A differença exterior entre esta civilisação e a nossa é bem grande; os caracteres divergem extraordinariamente em resultado da distancia que vai da moral antiga á moral moderna; o elemento da caridade, essa base fundamental do christianismo, ainda apezar de enunciado e de prégado pelos seus apostolos não penetrára profundamente nas almas, que a religião antiga affeiçoára e modelára―mas apesar de tudo isso, quantos quadros d'esse tempo que parecem copiados do tempo actual; quantas [169] figuras d'essa época que vemos reproduzidas na nossa; quantas paixões então dominantes, que a moral da egreja, que o sentimento religioso mais desenvolvido e mais educado, que a philosophia moderna mais piedosa e mais humana, não conseguiram ainda amordaçar.

Como essa sociedade que tripudiava no luxo colossal e na ostentosa e deslumbrante magnificencia―esquecida ou despreoccupada dos perigos que a ameaçavam,―assim a nossa sociedade de hoje, tendo attingido um gráu de civilisação e de riqueza material differente, mas não inferior ás de Roma, se estonteia no gozo egoista de todos os prazeres, e no estadear cynico de todos os vicios, sem presentir que uma seita, tão tenaz como a christã, e menos pacifica e menos espiritualista do que ella, tão capaz de abnegações heroicas e de sacrificios sublimes, e não tendo como ella o seu fim exclusivo no Reino dos Céos, no Reino que não é d'este mundo, avança subterraneamente, recrutando-se nas minas onde não ha luz, nas fabricas onde não ha Deus, nas officinas onde o trabalho é uma ignominia, nas trapeiras miseraveis onde as creanças agonisam com fome entre as blasphemias desesperadas dos pais, [170] nas enxovias immundas onde o ar falta e onde a desesperança brama sinistramente―e se prepara energica e sombria para o definitivo assalto que ha de render a velha sociedade apodrecida!

O que queriam―não esses christãos degenerados e contagiados pelo paganismo de que fala com amargo despreso S. Jeronymo―mas os grandes christãos que sacrificavam e oravam nas catacumbas, que morriam nos amphiteatros e que escreviam com o sangue do coração os seus rudes hymnos de adoração e de fé?

Queriam o desmoronamento total d'esse imperio que era a somma do todas as iniquidades pagãs, que era a escravidão do miseravel e a apotheose do mau rico!

O que quer hoje o socialismo triumphante?

A morte d'esta sociedade, cujo esplendor maravilhoso se faz com o sangue, e as lagrimas do miseravel, do, como nunca, miseravel proletario!

Não é verdade que esta similhança basta para dar ao livro um intenso e profundo interesse?



Anthero de Quental

a obra e a sua morte


I


Hesito em falar ainda de Anthero de Quental! Succedeu um tão silencioso esquecimento ao pasmo, ao sobresalto da primeira noticia do seu suicidio!... E no emtanto, se havia physionomia complexa, suggestiva, capaz de interessar e de captivar o nosso espirito era a d'este poeta de tão requintada e extrema delicadeza de inspiração e de pensamentos.

A primeira impressão que recebi da sua morte, foi tão violenta e dolorosa que em vão tentei traduzil-a em palavras, ou mettel-a no [172] molde imperfeito e rude de uma apreciação critica qualquer.

É hoje sómente, depois de volvido um mez ou mais sobre esse suicidio, que devia enluctar as lettras portuguezas, que eu me atrevo a conversar com os leitores a respeito d'elle.

O livro dos Sonetos, saudado na sua primeira apparição com sincero e quasi religioso enthusiasmo, póde considerar-se como a completa confissão d'aquella alma combalida, que procurou na Morte o extremo refugio contra as luctas asperas do Pensamento, contra as chimeras perseguidoras da Imaginação.

Se o considerarmos do ponto de vista pratico e material, d'onde a maior parte da gente se colloca para julgar os homens e as cousas, Anthero não era realmente um infeliz.

Tinha, pelo contrario, mil predicados, mil qualidades invejaveis.

Tinha, primeiro de tudo, um superior e bello talento incontestado; tinha a sufficiente abastança para não precisar viver d'elle―o que eu pelo menos considero o maior dos bens―tinha a adoração dos amigos (que lhe chamavam Santo Anthero), o respeito dos estranhos, a par de uma consciencia immaculada [173] que no exercicio do bem encontrava permanente e ineffavel consolo; tivera até na mocidade o raro dom de uma belleza de Christo, espiritual, meiga e serena.

E, comtudo, apezar de tantas circumstancias que se reuniam para dever tornar-lhe doce a vida, depois da leitura d'aquelles sonetos magistraes, em que tão requintadas amarguras e tão estranhos supplicios se crystallisavam, por assim dizer, em perolas maravilhosas, não havia leitor que não sentisse esta interrogação desabrochar-lhe nos labios: onde é que este homem tão tranquillamente e tão lucidamente desesperado encontra a força de continuar a viver?

O suicidio do grande poeta responde agora, lugubre, mas coherente, terrivel mas logico, á irresistivel pergunta.

O pessimismo de Anthero não era, como a maior parte dos que nós por ahi conhecemos, um pessimismo pessoal, egoista, limitado ás contradicções e ás tristezas do seu proprio destino.

Era um pessimismo philosophico, como o de Leopardi, como o de Schopenhauer, como o de Leconte de Lisle.

[174] A sua concepção da vida, tão triste que faz horror e espanto, traduz-se no soneto: A Divina Comedia, em que elle figura os homens erguendo para os remotos céus os braços desesperados e apostrophando esses deuses que só produziram a Dôr, a Paixão, o Peccado, as Illusões, as luctas fratricidas.


«Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dôr nos evocastes?»
Mas os deuses com voz ainda mais triste,
Dizem:―«Homens! porque é que nos criastes?»


A Morte, não sob uma fórma repellente e odiosa, mas attrahente como esphynge, perturbante e voluptuosa como sereia que vem cantar a sua cantilena de seducção á flôr das aguas de um verde glauco, a Morte, revestida de um mysterioso encanto subjugador e estranho, paira por sobre todas os paginas d'este livro, impregnando-as de subtil e contagiosa tristeza.

Dir-se-hia que os sonetos lhe são quasi inteiramente consagrados. É a ella que elle vê [175] sempre, chamando-o, chamando-o baixinho, entontecendo-o com as promessas do seu silencio eterno, da sua paz profunda e vasta, do seu mysterio que ninguem soube ainda violar.

Anthero pensára tanto que o cérebro esgotado pedia emfim misericordia. A sua ambição não fôra de vãs glorias, nem vãos triumphos; quizera levantar uma ponta d'esse véo que esconde a eterna Verdade, além da qual tantas gerações humanas têem sonhado com alguma cousa de inextinguivel e de eterno.

E essa agonia intellectual que o dilacerou exprime-se em todos os seus versos, com uma potencia maravilhosa, e uma energia devoradora que acabou por consumil-o!

A illusão, o vasio universal, que encarava ao sahir das suas vertiginosas contemplações metaphysicas, faziam-n'o recuar pavido e tremente. A vida não lhe dava o que elle queria; para áquem d'esse vasto mundo invisivel que a sua alma de sonhador presentia e pelo qual ella anciava, nada havia que lhe satisfizesse a sêde ideal. Por isso Anthero, fugindo voluntariamente d'elle, foi buscar a sua amiga de todas as horas, aquella que podia entregar-lhe [176] a chave do eterno enygma que o desesperava; a


«Morte! irmã do Amor e da Verdade»





A proposito do suicidio de Anthero, falou-se muito de tres suicidios tambem famosos que o precederam; mas realmente, a não ser pela notoriedade que os assignala, eu não sei que elles tenham comparação com o d'este poeta. Nem Camillo, nem Julio Cesar Machado nem Soares dos Reis se mataram pelos motivos transcendentes que actuáram no animo de Anthero de Quental.

Os tres mataram-se porque soffriam mais do que é dado aos seres humanos soffrer sem procurarem no anniquilamento a paz invocada entre supplicios.

Um d'elles, Camillo, artista de nervos exasperados pela cegueira, temperamento de hysterico para o qual a resignação era uma virtude impossivel, matou-se para fugir ás trevas densas de uma lobrega morte em que se sentia perdido!

Julio Cesar Machado matou-se porque, no [177] meio do mundo hostil que não satisfizera nenhuma das ambições da sua pobre alma delicada e sonhadora, elle concentrava as affeições todas do seu coração, os ultimos sonhos da sua phantasia, a esperança, a suprema gloria, no amor de um filho que se suicidára com 19 annos!―deixando-o só. O infeliz enlouqueceu e matou-se tambem...

Sobre a morte de Soares dos Reis paira uma sombra de mysterio. Quem sabe que luctas intimas, que drama de paixão intensa e dolorosa esse suicidio não veio rematar!

A morte de Anthero obedeceu a outro genero de impulsos. Não digo que para ella não concorresse tambem o estado de miseria moral e de anarchia mental em que via a sua patria (da qual havia pouco elle tinha porventura esperado qualquer acto de energica reacção contra o destino), mas a sua dôr era uma d'estas dôres de ordem aristocratica e rara, que não se originam como as da maioria dos homens no coração, mas que emanam do espirito cançado de cogitar em vão no mysterio impenetravel das cousas...

Querem vêr os espectros que enchiam de pavor sagrado as suas noites? Ouvi este soneto [178] que é, como todos os outros, pagina solta de uma confissão intellectual complicada e dolorosa, tal como um Pascal ou um Amiel a escreveram tambem cada um, já se vê, na sua respectiva esphera, um nos seus immortaes Pensamentos, outro no seu jornal tão caracteristico e tão pouco comprehendido:


Espectros que velais emquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus somnos curtos e cançados
Me encheis as noites de agonia e susto!...

De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados,
Disputar dia a dia á mão dos fados
Uma parcella do saber augusto.

Se a minh'alma ha de vêr sobre si fitos
Sempre esses olhos tragicos, malditos!
Se até dormindo, com angustia immensa

Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma, verter sobre o meu peito
As lagrimas geladas da descrença!


Foram estas as dôres que o mataram. A sua consciencia não achava repouso em nenhuma das concepções do Universo em que alternativamente tentava acolher-se.

Ora, dirigindo-se á meiga Virgem do Catholicismo [179] elle a invocava com infantil simplicidade; ora punha na mão direita de Deus o seu coração cançado, e lhe ordenava que alli dormisse eternamente; ora achava que a Duvida tinha soprado sobre o mundo um vento de ruina e de morte, que tudo emmurchecêra, que tudo apagára, deixando apenas uma humilde e mysteriosa flôr desabrochar a medo no fundo da consciencia humana.

Aspirava ao nirvâna, á paz inconsciente; queria cahir n'aquelle vacuo tenebroso onde na immobilidade indefinida termina o ser inerte, ocioso; e ao mesmo tempo a comprehensão atavica da eternidade catholica torturava-lhe em horas de lucta o inquieto espirito.

Que aspiração intensa ao ideal, a d'este formoso espirito alado! Que sublimes tormentos os seus, procurando sem descanço a verdade e a luz!...

Mas sempre, em todas as phases d'esta interna lucta que talvez fizesse sorrir alguns dos leitores dos sonetos emquanto o suicidio do poeta lhe não deu o seu fundo de lugubre realidade,―Anthero chamou pela Morte, a invocou, lhe sorriu, lhe deu os nomes mais bellos, os mais doces, os mais apaixonados!

[180] D'elle se pôde dizer que foi um amante da Morte, amante austero e triste, mas nem por isso menos fervoroso e ardente

Por motivos inteiramente diversos dos seus, tambem Santa Thereza, a apaixonada castelhana, chamou a Morte com aquelles mesmos arroubos de extase que nos surprehendem e nos fazem estremecer a nós, pobres creaturas feitas de carne melindrosa e fragil, a quem o soffrimento repugna, e a sepultura com a sua podridão infecta repelle formidavelmente.

Digam-me se ha em lingua alguma expressão de dôr mais completa do que a d'este soneto a que Anthero pôz o titulo de Despondency por não achar em portuguez um termo que rigorosamente correspondesse ao estado de resignada e tranquilla desesperança que elle traduz:


Deixal-a ir, a ave, a quem roubáram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as azas partidas a levaram...

Deixal-a ir, á vella que arrojaram
Os tufões pelo mar na escuridade,
Quando a noite surgiu na immensidade,
Quando os ventos do Sul se levantaram...

[181]
Deixal-a ir a alma lastimosa,
Que perdeu a paz e fé e confiança
Á morte quêda, á morte silenciosa...

Deixal-a ir a nota desprendida
De um canto extremo e a ultima esperança...
E a vida... e o amor... deixal-a ir a vida!





Não ha por tudo isto motivos para espanto no suicidio de Anthero. Elle não era, como já dissémos, um escriptor de officio, que de proposito exacerbasse e cultivasse em si proprio o desespero e as lagrimas, para as transformar em rhetorica livresca; não tinha tambem um vão amor de gloria indesculpavel em quem sondava com tão penetrante e lucido olhar o vasio de todas essas chimeras, a ephemera duração de tudo que é da terra...

Era uma alma sincera e torturada, que naturalmente desafogava o seu sentir tanta vez contradictorio e doentio, em versos de uma magia dolorosa, de uma graça delicada e triste, de uma profundidade de expressão inegualavel, e n'esses versos só uma nota era constante: o elogio da Morte.

[182] Invocou-a sempre, chamou por ella, coroou-a de funebres flôres, supplicou-lhe que o accolhesse no seu regaço frio, achando emfim que depois do mal de haver nascido não havia senão um bem: tornar ao Nada.


II


Quando o livro dos Sonetos appareceu escrevi eu um estudo sobre elles, que não tinha, já se vê, outro merecimento além de uma sinceridade absoluta e de uma immensa sympathia.

Lembra-me de que lamentava do fundo da alma que o auctor d'essas bellas poesias tão raras na nossa litteratura,―a qual como todas as litteraturas meridionaes não pecca pelo excesso de pensamento―tivesse consummido a vida, que tão bellas cousas podia dar-lhe, mettido em si mesmo, n'aquella especie de meditação [184] allucinada que se traduzia, é verdade, em versos magnificos, mas versos que eram, como as perolas, productos de uma dôr mortal.

E revoltava-me contra a solidão mental em que Anthero se concentrára, contra as hesitações do seu querer, contra as fluctuações do seu pensamento, contra o pessimismo bhuddico da sua doutrina, contra tudo que fizera d'elle um philosopho germanico, ou um sonhador nebuloso e doente, e o separava da vida, da vida que tem tantos risos no meio das suas charnecas desoladas, ou dos seus sarçaes cheios de espinhos e de reptis....

Mesmo com o risco de parecer vaidosa, não quero deixar de offerecer aos meus leitores, a carta, até hoje absolutamente inedita, que Anthero de Quental me escreveu então, depois de ter lido os meus artigos que se publicaram primitivamente no Jornal do Commercio de Lisboa, e que hoje estão incluidos no volume intitulado Alguns homens do meu tempo.

Ahi vae a formosa e eloquente carta:


«Porto, 24 de dezembro.

Minha Senhora


Agradeço-lhe muito os seus artigos no Jornal [185] do Commercio, e creia V. que o não faço só por civilidade, ainda que não é cousa que se deva desdenhar par le temps qui court. Não lhe direi que me agradaram os seus artigos, porque isso é o menos; dir-lhe-hei que me commoveram. Ha n'elles uma sinceridade, que me encantou, e um tom fraternal que me foi direito ao coração, onde quero que não morra nunca a vibração d'essas palavras amigas. Creio que V. se engana na apreciação que fez das doutrinas chamadas (quanto a mim impropriamente) pessimistas e nos receios que lhe inspiram as tendencias bhuddicas que começam a manifestar-se por todos os lados, em sociedades que attingiram o nec plus ultra da civilisação, ou em individuos que attingiram o nec plus ultra do pensamento.

Tudo isso, é verdade, está ainda bastante obscuro e confundido com elementos estranhos e até contradictorios, e por isso me não admira que não possa ainda ser apreciado sem grandes apprehensões. O meu livrinho, apenas aqui ou alli em meia duzia dos ultimos sonetos, fere a nota exacta e sã, porque infelizmente morreu-me o dom dos versos, precisamente quando [186] começava a pensar e a sentir alguma cousa que realmente merecesse ser posta em verso.

Não podia elle, tão incompleto e obscuro, justamente onde mais cumpria que fosse claro e amplo, dissipar aquellas apprehensões, antes era natural que contribuisse para as radicar. Mas a minha convicção é que taes apprehensões não são fundadas e que entre os sentimentos naturaes e espontaneos do coração humano, entre o seu ideal de justiça, de harmonia e de belleza, e o ponto de vista ascetico do Bhuddismo, não só não ha contradicção verdadeira, mas que, pelo contrario, é só n'essa esphera que elles encontram a sua mais perfeita expressão, libertos de muitas illusões e de muitas imperfeições que lhe andam forçosamente misturadas, e attingem a plena consciencia do que são e para que são. E seria singular com effeito que a doutrina, que entre todas, faz consistir no Bem a verdade suprema da existencia humana, pudesse collidir com aquelles espontaneos impulsos da nossa natureza, que não são, no fundo, senão fórmas e momentos, mais ou menos obscuros, mais ou menos incompletos da nossa fundamental aspiração a esse mesmo Bem!

[187] A, verdade é que a civilisação moderna chegou, no seculo actual, como a civilisação antiga, no periodo do Imperio Romano, a um ponto em que, sob pena de completa ruina, o problema metaphysico-psychologico tem de ser sondado a uma profundidade desusada e proporcional ao gráu superior da mesma civilisação.

Hoje, como então, as questões metaphysico-psychologicas são a chave de todas as outras questões porque, tendo o proprio progresso das instituições e das idéas arruinado os antigos alicerces moraes da sociedade, a grande questão, a questão vital e inadiavel não é já a do aperfeiçoamento das instituições nem do augmento dos conhecimentos, mas a da organisação theorica e pratica da vida moral, a creação da ordem nas consciencias, em uma palavra a remodelação do homem interior, sem o qual o outro homem, da sociedada e da vida pratica, por forte e sabio que pareça é mais miseravel que o escravo mais embrutecido.

O progresso gigantesco do naturalismo, filho de uma civilisação poderosa e complexa como nenhuma, só poderá ser equilibrado por um progresso equivalente do ascetismo. Sem esse [188] equilibrio a sociedade moderna, que já hoje nos causa mais terror do que admiração, poderá continuar ainda por algum tempo de poderosa, tornada formidavel, e, de formidavel, bestial: mas o homem, o verdadeiro homem, isto é, o homem moral, terá morrido: e morto elle, tudo cahirá, por que só elle sustenta a grande mólle social. A sociedade é, antes de tudo, um facto de ordem moral.

Mas não continuo com estas reflexões, porque desejo fazer d'ellas o assumpto de um escripto, até a certo ponto em resposta aos artigos de V. e que publicarei em fórma de carta, se V. levar isso a bem.

E termino, minha senhora, pedindo a V, que me consinta assignar-me d'aqui em diante, como realmente sou, seu muito amigo.―Anthero de Quental»





Esta carta tão bella na fórma, e tão profunda no pensamento, apresenta porém a contradicção fundamental a que Anthero succumbiu.

[189] O ascetismo é a contemplação mais inerte: o Bem demanda a actividade mais incansavel, o esforço mais tenaz.

Como conciliar estes dois termos oppostos? Se para o extatico e contemplativo pensador a quem o nirvana sorri como o supremo fim da sua ascensão ideal, cada homem não é mais do que um momento que toma consciencia de si e logo passa, aquelle que na terra procura o Bem e tenta pelo seu esforço creal-o, sabe que se dissolvem as fórmas em que a consciencia se encarna, mas que ella, a sublime chamma não se apaga jámais... Nós os passageiros de um dia que conseguimos por instantes guardal-a no nosso seio mortal, passamos rapidos sim, mas não antes de a transmittirmos áquelles que nos succedem sempre mais pura, e sempre mais intensa...

O patrimonio real da humanidade é este: por este lhe vale a pena padecer e luctar. Este não morre com as pobres gerações que se succedem como as folhas das arvores, como as ondas do mar...

Não é pelo Buddhismo antigo, ou pela ascetica renuncia aos bens reaes da vida que a sociedade tem de salvar-se. É pelo exercicio [190] activo das suas energias espontaneas, é pela fé na sua missão do bem, na sua ascensão a qualquer eminencia moral, que ella ainda não antevê de longe, mas que existe decerto, mas que deve existir, ou este instincto de progresso a que obedecemos, seria mais uma ironia atroz entre outras tantas!...

A prova de que esse ascetismo a que Anthero recorre na sua bella carta é esteril, é que elle, querendo salvar por este modo a sua clara consciencia e o seu espirito genial, veiu acabar na morte voluntaria, no suicidio banal dos vencidos e dos fracos!

Infelizmente era eu, tão mesquinha, e não elle, tão grande, que tinha razão, e essa razão, foi o seu acto extremo que m'a veiu dar.

Ninguem pensára mais alto e mais justo que esse homem de uma consciencia tão delicada, de uma penetração philosophica tão subtil, e cujo entendimento parecia talhado para as mais elevadas especulações da metaphysica e da psychologia.

E no emtanto elle não achou outra resolução ao problema que está presentemente posto deante dos olhos das sociedades extra-civilisadas [191] e dos individuos que pensam intensamente, senão a do suicidio silencioso.

É profundamente desoladora a phase do espirito humano que, de vez em quando, se manifesta em factos como este.

Como escapar a este estado de descrença absoluta em qualquer destino ulterior da nossa especie? Retroceder á boa Natureza, á primitiva ignorancia dos simples, como manda Tolstoi? Mas em primeiro logar a natureza não é boa, depois, quem sabe póde porventura, e só por effeito da sua vontade começar de um dia para o outro a ignorar?...

Cada sociedade que chega ao extremo da sua civilisação particular, o que, exaltando de um lado o orgulho natural do homem, produz por outro, no espirito d'elle, uma irritação doentia, uma penosa desesperação resultante dos limites que este acha sempre á sua curiosidade transcendente―cada sociedade que attinge esta perigosa eminencia, está por esse mesmo facto, muito proxima da sua fatal degeneração.

Nenhuma civilisação se elevou mais alto nas abstracções do pensamento, nos arrojos da metaphysica do que esse Bhuddismo em que [192] Anthero de Quental tentava encontrar a suprema paz da consciencia humana. E o que tem elle produzido senão resultados negativos, e allucinações doentias? A civilisação antiga, grega e romana, procurou resolver o problema do destino do homem divinisando-lhe as paixões, e fazendo a permanente apotheose da força. E todos sabem em que agonia vasquejante o mundo antigo se diluiu. A Edade Media teve uma comprehensão harmonica e grandiosa da vida e do destino humano, mas tanto exigiu do espirito e tão pouco pensou na fatal realidade, que fez de cada organismo de homem um anjo e um animal perpetuamente identificados, e ao cabo do sublime esforço, respondeu-lhe o retrocesso pagão da Renascença.

O mundo moderno quer achar na sciencia a chave do todo o eterno enygma que até hoje se conserva inviolado, a explicação do universal mysterio que o envolve e penetra, a resolução de todos os problemas complexos que se têem accumulado deante do seu espirito em dois ou tres mil annos de pensamento―e a sciencia impotente, incompleta, desconsoladora [193] não tem agua que sacie a nossa sêde, não tem piedade que unja a nossa lenta agonia!

Os melhores abdicam ou pelo indifferentismo inerte, ou pelo suicidio; que é ainda uma victoria do espirito ultrajado sobre si mesmo!

E um véo de tristeza densa e plumbea envolve este mundo enorme, agitado, convulso, atravessado de fios electricos que em minutos transmittem de um ao outro dos seus extremos o pensamento e a palavra; cortado de locomotivas vertiginosas; abarrotado de riquezas brutas; ebrio de orgulho material, de luxo e de vaidade; persuadido de que é a realisação mais completa da felicidade e do triumpho moral do homem; mas tremendo a cada abalo subterraneo que revele quão minados estão os seus alicerces e em que movediça areia assentam os seus edificios de Babel!

Comtudo ha uma affirmação, no meio de tantas duvidas e de tanta desordem mental, que póde ser feita sem medo!

O Bem existe! A consciencia humana conhece-o mesmo quando o atraiçôa ou o desdenha. É ella que o tem creado em seculos de lucta sublime! Os humildes de coração são talvez os que estão mais perto das fontes vivas [194] d'onde elle promana, e é pela humildade e pela acceitação resignada do seu destino incompleto e triste e eternamente obscuro, que a pobre humanidade definitivamente se salvará!

Por mais que amenos e veneremos a memoria de Anthero, não podemos pois achar justo o seu suicidio.

Contentamo-nos em achal-o explicavel.



Anatole France

I


Conhece porventura o leitor este mestre do estylo, que é francez e moderno, e podia ser grego e antigo?...

Conhece este discipulo de Renan, discipulo que dispõe de mais liberdade moral e de mais fogo juvenil que o seu querido e respeitado mestre?

Anatole France é, como Renan, um charmeur, mas é mais do que elle―um voluptuoso.

A sua philosophia, mais Renanesca do que Hegeliana, move-se phantasiosamente em um universo de illusões.

[196] E as fulgidas imagens, sempre renovadas, da sua esplendida imaginação, reveste-as uma melancolia deliciosa e morbida, como se elle as evocasse com a consciencia de que lhe mentiam, e as adorasse perdidamente, mesmo depois de as saber fugitivas, falsas, ephemeras...

Um dos melhores livros que elle tem escripto, e cujas edições se multiplicam com espantosa rapidez―apezar d'elle o ter no pensamento dedicado aos delicados, aos happy few de que fala desdenhosamente Stendhal―chama-se Thaïs.

Thaïs é uma lenda dourada dos primeiros seculos christãos, que entre parenthesis estão sendo apetecivel mina de estudos litterarios, de poesias, de erudição e de arte.

Tem o livro como personagens principaes Paphnucio, um anachoreta da Thebaida, de carne mortificada pelos longos jejuns, flagellada pelos duros cilicios, curtida pelos sóes causticantes do deserto, amachucada nas caminhadas extenuantes por sobre as penhas bravas e os quentes areaes―e Thaïs, uma gloriosa e applaudida actriz de Alexandria, bella como Venus, e intelligente como Aspasia, e prodiga de affagos como as duas, em que esplendidamente [197] se encarnára para enlouquecer e perder os homens.

Paphnucio construira nas margens do verde Nilo uma pobre cabana feita de ramos de arvores e de lodo amassado.

Vivia alli na penitencia e na castidade; na contemplação e no ascetismo. Obedeciam-lhe e amavam-no as feras do deserto; legiões de anjos, bellos como adolescentes gregos, visitavam-no de vez em quando na sua Thebaida escondida; os demonios, com figuras de animaes immundos, vagavam uivando em torno d'elle e dos solitarios que aqui e ali tinham escolhido para morada o deserto―e tentavam em vão os santos ascetas.

Quando elles iam de manhã encher as suas bilhas do barro ao poço que os dessedentava, viam as patas dos satyros e dos faunos travessos impressas na movediça areia.

Considerada sob o seu verdadeiro aspecto, a Thebaida era um campo de batalha, onde se travavam a toda a hora, e especialmente de noite, os maravilhosos combates do inferno e do céu.

Mas tão profunda era a virtude d'esses santos cenobitas que submettia ao seu poder as proprias féras.

[198] Quando um solitario estava para morrer, vinha um leão abrir-lhe a cova com as garras. O santo homem, logo que conhecia por este signal que Deus o chamava a si, ia beijar uma por uma as faces de todos os seus irmãos espirituaes.

Depois deitava-se sereno e calmo e adormecia no seio do Senhor.

Esta descripção do Deserto e das suas maravilhas, do ascetismo e das suas visões, da Thebaida e dos allucinados combates que ahi as paixões humanas travavam com a perfeição ideal, todo este symbolismo humano e comprehensivel está traçado com mão de mestre.

Parece nos seus lineamentos visiveis a pintura de um primitivo, tanto é certo que só o extremo requinte na Arte sabe traduzir bem a ineffavel simplicidade.

Paphnucio nascera em Alexandria, de paes nobres, e fôra por elles instruido na delicia das profanas lettras. Era de muito longe que elle tivera de partir, para chegar á perfeição santissima da sua vida de anachoreta christão.

Um dia, porém, lembrou-se por sua desgraça espiritual, ou por seu aperfeiçoamento [199] superior, que tinha conhecido em Alexandria uma formosa actriz chamada Thaïs.

Tão bella como a mais bella das suas visões esplendidas do Paraizo e condemnada á eternidade das penas, á perdição infernal, á ignorancia absoluta do bem!...

Conhecel-a, lembrar-se nitidamente d'ella e não a salvar, não tentar salval-a ao menos!...

Paphnucio não pôde submetter-se a esta dura lei.

Deixa, pois, o deserto, procura a cidade faustosa e tentadora onde Thaïs fazia as delicias e a admiração do povo, e vae arrancar ao inferno a sua presa deslumbrante.

É necessario fazer notar que ainda bem Paphnucio não começára a premeditar esta santa empreza, já os demonios que em figuras de chacaes costumavam uivar lamentosamente em torno de sua cabana, sem comtudo lhe penetrarem pela porta sempre aberta, se permittiram entrar por ella dentro, deitando-se perto d'elle, familiarmente, como amigos velhos. Que encontrariam os demonios na alma do velho cenobita para assim procederem?...

A graça ironica, a commoção subtil com [200] que estes quadros são traçados, podem ser indicados pelo commentador, mas não podem ser fielmente traduzidos por elle.

Ao pé do altivo asceta, que julga ter dentro de si força que baste a dominar as indominaveis, as omnipotentes paixões humanas, e se considera com direito de desafiar o Peccado e de o vencer, ha uma encantadora figura de frade laborioso e simples, que nem chega a odiar o Mal, porque lhe ignora os requintes tentadores, e que cultiva no deserto um pequenino jardim e uma horta em miniatura, aceitando o amavel convivio dos bichos e dos passarinhos, envolvendo no mesmo amor humilde e doce a vasta natureza cheia de graças e de assombros.

As gazellas vêm apoiar a fina cabeça inquieta nos joelhos do santo: as figueiras que elle trata dão grandes figos cheios de nectar cuja contemplação é para elle um regalo innocente.

Este bom homem dá de conselho ao orgulhoso apostolo que se deixe de tanto zêlo, pois que, vista a impossibilidade em que a gente está de emendar o mundo, mais vale emendar-se a si proprio de todos os peccados até [201] d'aquelle que consiste em se julgar impeccavel.

Mas Paphnucio não o quer de fórma alguma attender; isto, seja dito de passagem, com alegria dos chacaes seus inimigos antigos e agora seus inopportunos familiares.





Põe-se, portanto, a caminho. Vestido tão sómente de um longo cilicio, ei-lo que se dirige para o Nilo―no designio de seguir a pé a margem lybica até á cidade fundada por Alexandre.

Que deliciosa a narração d'esta romaria, feita pela lingua de ouro de Anatole France! Ha phrases que cantam no ouvido como uma flauta da Jonia!... ha imagens que se desdobram deante de nós como uma evocação de magia!

Nem a traducção litteral poderia fazer presentir o encanto rythmico, emballador, quasi morbido, de requintado que é, d'este estylo em que as palavras se harmonisam em um concerto ideal, para formarem a mais suave, e subtil, e suggestiva das musicas.

[202] E emquanto assim se encaminha para Alexandria, Paphnucio foge das cidades e das aldeias; tem medo de encontrar creanças a brincar na soleira das portas, mulheres paradas á beira das cisternas, sorrindo cariciosamente ao peregrino que passava, como a Nosso Senhor a Samaritana já sorrira.

Quando, ao entardecer, a aragem passava nos tamarindos em flôr, o sombrio apostolo puxava para o rosto o seu capuz escuro, tal era o receio que sentia de enternecer-se deante da belleza ineffavel, do divino mysterio das cousas...

Viu uma enorme sphinge egypcia talhada no rochedo de granito e obrigou-a a confessar o Santo Nome de Jesus Christo. Encontrou um eremita bhuddico, todo nú, de barba branca a fluctuar-lhe em ondas no peito curtido ao sol, e, depois de lhe ouvir a confissão do seu nihilismo absoluto, depois de lhe escutar as blasphemias de um scepticismo sem fim, ainda tentou convertel-o à fé profunda que lhe abrazava o coração.

A paizagem luminosa e estranha desentranhava-se em maravilhas; o ibis mysterioso e hieratico retratava no liquido espelho do rio [203] o seu longo pescoço côr de rosa pallido; os salgueiros agitavam a múrmura folhagem argentea; as cegonhas voavam no céu claro; e nos cannaviaes da margem escutava-se o grito de outras aves aquaticas.

O valle perdia-se ao longe em ondulações verdes; as aguas palpitavam como um seio de virgem; a seiva, a vida, a fecundidade, o amor fremente e creador parecia pullular em tudo, em tudo...

Paphnucio, porém, só pensava na cortezã esbelta e branca, de braços côr de lyrio e olhos côr de violeta, que em Alexandria representava as traições de Helena, os delirios de Phédra, o sacrificio da candida Ephigenia, ante uma turba delirante, que a sua belleza embriagava e perdia...


II


A primeira vez que, em Alexandria, Paphnucio avista Thaïs é no theatro em que ella representava a immolação de Polyxena.


Tal contra a linda moça Polyxena
Consolação extrema da mãi velha
Porque a sombra de Achilles a condemna
Co'o ferro o duro Phyrro se apparelha...


Não se lembram do nosso Camões? Era justamente esse lance da epopéa homerica que Thaïs traduzia pela mimica expressiva e perfeita, a qual, na decadencia da Arte antiga, suppria agora na scena, viuva dos seus grandes [205] mestres de outr'ora, a alada, a divina poesia de Euripedes e de Menandro. Thaïs altiva e doce appareceu ao austero monge dando-lhe, como dava a todos que a contemplavam «o tragico estremecimento da sua fatal belleza.»

Segue-se então a lucta travada entre o asceta e todas as seducções pagãs que circumdavam a cortezã esplendida, para converter esta á religião dos pobres, dos miseraveis e dos simples.

Thaïs fôra iniciada em pequenina por um escravo negro da Nubia, chamado Ahmés, n'essa religião que reveste de tão voluptuosas delicias o sacrificio e a dôr.

Tinha-a mesmo baptisado, em uma época de perseguições e de angustias, o bispo proscripto de Cyreno, que pela Egreja soffrêra os mais horrendos martyrios.

E toda a dulcissima e piedosa lenda evangelica lhe fôra contada baixinho, pela voz queixosa e cantante do misero escravo negro, quando Thaïs, maltratada pelos paes, sem tecto carinhoso que lhe abrigasse o corpinho infantil, torturado de açoites, ia deitar-se á noite a um canto do estabulo, entre animaes domesticos, com Ahmés perto d'ella―sentado sobre os calcanhares, [206] as pernas dobradas, o busto direito na altitude hereditaria da sua raça, e o rosto negro banhado n'aquella divina luz de esperança e de misericordia com que a estrella de Bethlem tem, durante dezenove seculos, inundado, casta e divina, os desherdados de todo o bem terrestre.

Portanto, não a espantou em excesso a apparição do monge, depois de uma vida consagrada ao prazer, que lhe dera o tédio sem lhe dar a felicidade.

Só um momento, durante esses vinte annos de embriaguez hyper-aguda, ella conhecêra a ephemera felicidade de amar. As lagrimas que chorou tinham tido para a pobre um sabor acre e doce ao mesmo tempo. Nesse amor encontrára tudo―até a perdida innocencia e a divina puerilidade da sua fé. A bella cortezã de Alexandria realizára o delicioso pensamento do poeta, e tambem ella, como a Marion dos perdidos amores, podia repetir exultante:


Et l'amour m'a refait une virginité


Mas subito esse homem, que de todos lhe parecêra diverso, appareceu-lhe tal como os [207] outros todos, e ella fugiu espavorida, para não vêr mais a imagem da sua illusão que se partira.

Conheceu depois a gloria, os applausos, os enthusiasmos, as adorações febris, que duravam uma hora e que se tinham julgado eternas.

Por ella os philosophos se fizeram crianças credulas; os voluptuosos tiveram a coragem do suicidio; deram-lhe thesouros os avarentos; lagrimas, os egoistas; os poetas chamaram-lhe a sua Musa; os politicos esqueceram, para se demorarem aos seus pés, o bem dos Estados e os requintes que ha no prazer do mando.

E Thaïs, indifferente a todos e com todos brincando cruelmente, conservava no fundo da sua alma a recordação indistincta e vaga d'esse mundo mysterioso de que lhe tinham revelado o encanto.

Supersticiosa e cheia de ancia indefinida, tinha a sêde atormentadora do desconhecido, a que faz as santas, as arrependidas sublimes, e as loucas...

Quando Paphnucio lhe appareceu, cedeu quasi que sem resistencia á rude voz que a chamava para o aspero caminho dos penitentes. Para seguir o seu implacavel mestre deixou os banquetes [208] em que a acclamavam, sob os bellos e poeticos nomes da poesia antiga, os homens mais opulentos e considerados da Alexandria, os poetas, os rhetoricos, os sacerdotes de Serapis, os dandys do tempo, preoccupados como os de hoje, com a arte de amestrar bellos cavallos e de enamorar bellas mulheres.

Para o seguir, deu ordem aos numerosos escravos que a serviam, que queimassem os seus thesouros de arte: os cofres de marfim, de ebano e cedro, que, entreabrindo-se, deixavam cahir corôas, grinaldas, collares esplendidos; e os seus ricos tapetes, os seus bordados de prata, as tapeçarias floridas, os leitos faustosos, os coxins macios: e as estatuas de nymphas que pareciam animadas como mortaes: e o Eros eburneo a quem se attribuiam maravilhosas e não sabidas virtudes, e que valia o seu peso centuplicado em ouro.

Para o seguir, desprezou os seus vestidos brilhantes; os mantos de purpura; as sandalias de ouro; os pentes, os espelhos, as lampadas cinzeladas por industriosas mãos de escravos artistas; as theorbas, as lyras:―todos os instrumentos da sua seducção complicada e subtil, todas as bellas cousas que representavam as [209] recordações de uma vida de luxo, de opulencia e de amor... Não a prendeu a gloria de actriz estremecida; chamavam-lhe a clara estrella, a doce lua do céu alexandrino, e o rude solitario arrebatou-a falando-lhe em penitencias duras e em flagelladores cilicios, em lagrimas de vergonha e de amargura choradas ao pé da Cruz.

―Mulher, dizia-lhe o monge com voz colerica, arrastando-a comsigo ao longo da costa―vê esse enorme mar azul. Nem toda a agua que elle tem póde lavar as tuas manchas asquerosas!

E emquanto elle a apostrophava com a eloquencia do mais impetuoso e ardente horror, relembrando-lhe uma por uma, com minuciosidades de confessor, as ignominias em que se perdera o seu corpo, que Deus fizera tão bello, Thaïs seguia-o docilmente sob o sol abrazador, e por cima dos penhascosos caminhos, onde os seus pés nús, tão lindos, tantas vezes cobertos de beijos, se desfaziam em sangue.





[210] Todas estas paginas que contam o piedoso furor do apostolo, e a humildade ineffavel da peccadora arrependida, estão escriptas com uma paixão acre e flammejante.

Vê-se bem que o inferno e todas as suas furias estão dentro d'esse orgulhoso coração de monge, que se julga acima do Peccado e que é vencido pela força irreductivel de um Poder que elle negou.

Thaïs, não; essa arrependida e submissa é em Christo que pensa e a sua alma anceia por desprender-se do impuro corpo, para subir, lavada em lagrimas, ao seio eternamente misericordioso do Homem Divino que perdoou á Magdalena, e que não consentiu que fosse lapidada a mulher adultera pelos que não tinham direito de a julgar.

A ultima parte do livro está impregnada de uma ironia, delicada como tudo que sae da penna de Anatole France, mas destoante da opulencia da côr e de estylo que inspiram as duas primeiras partes.

Consiste toda ella na narração das penitencias a que Paphnucio se entrega logo que percebe nitidamente que o zelo que o levou a salvar Thaïs conduzida por elle a um convento [211] de mulheres―não é tão puro nem tão desinteressado como na sua illusão a respeito de si proprio elle suppuzera até alli.

As penitencias ás vezes chegam a ser de um comico voltaireano. Exemplo: a columna no alto da qual, mystico acrobata, elle se encarapitou um tão longo espaço de tempo, que em volta d'este novo Simão o Stylita construiu-se uma grande cidade com todas as abominações mais ou menos legalisadas, que ha sempre nos centros populosos.

Paphnucio dizia, porém, aos bispos e á brilhante clerezia, que attrahidos pela fama da sua virtude rara, e dos milagres que ella operava sobre enfermos epilepticos, coxos, cégos, manetas etc., etc., vinham cumprimental-o e visital-o de muito longe:

―«Meus irmãos, a penitencia que me imponho é nada em comparação das tentações que tenho, e cujo numero e força me espantam. Um homem visto de fóra é pequeno, e do alto da columna a que Deus me elevou, vejo os seres humanos agitarem-se como formigas. Mas considerado interiormente, o homem é immenso; é grande como o mundo porque o contém em si... Tudo que se extende ante os [212] meus olhos, esses mosteiros, essas casas, essas barcas sobre o rio, essas aldêas, e o que descubro ao longo de campos, de canaes, de areias, de montanhas, tudo isso é nada ao pé do que eu tenho aqui dentro! Ha no meu coração cidades innumeras e desertos sem fim. E o mal, o mal e a morte extendidos por sobre essa immensidade, cobrem-na, como a noite cobre a terra. Eu sósinho contenho um Universo de pensamentos máus.»

Falava assim, accrescenta Anatole France, porque o amor da mulher, como uma serpente, se lhe enroscára no seio.





O final do livro, ou antes, a moral do livro é esta: Presente-se a salvação da cortezã arrependida que trouxera sempre, dentro do seu corpo manchado, a saudade nostalgica do ignoto bem, a chaga aberta e sangrenta de uma aspiração insaciada―e a perdição do apostolo orgulhoso, que déra ao seu desejo, á sua paixão terrena, a fórma de um fanatico proselytismo, e que tão rudemente falava ás gentes do Peccado e da Virtude.

[213] Que quer Anatole France provar? pergunta a critica conspicua, um pouco escandalisada d'esta orgia de estylo, de descripções, de paizagens, de dilettantismo artistico.

Cá por mim imagino que elle não quiz provar nada.

Quiz fazer divagar a sua imaginação de poeta pelos desertos onde os monges vivem penitentes e castos, e pelas cidades douradas e luxuosas onde as actrizes bebem em taças de crystal as perolas diluidas de uma adoração voluptuosa.

Quiz levar-nos ao banquete do opulento pagador das esquadras de Alexandria, onde philosophos e poetas discreteiam com a elegancia e o requinte da civilisação de Bysancio. Quiz fazer-nos penetrar na alma de uma louca mulher d'aquelle tempo, tão bella que, em ella entrando na sala do festim, coberta de flôres naturaes, parecia emprestar a estas a sua vida e receber d'ellas o mimo, a frescura o encanto virginal.

Quiz―é este o sentido profundo e philosophico do seu livro―dizer-nos que ás vezes os que apresentam mais austera virtude são os que trazem mais serpentes venenosas no coração [214] pharisaico, incapaz de indulgencia e de perdão, e que o arrependimento, quando é sincero, humilde, e parte de uma alma sedenta do infinito e capaz de o conter em si, póde resgatar grandes erros e lavar na fonte crystallina das suas lagrimas, muita nodoa de que o mundo, o impeccavel mundo, costuma fugir enojado e austero...



Ernesto Renan

sua obra, o seu espirito, a sua philosophia


I


Venho tarde para accrescentar qualquer cousa ao que n'este jornal de certo se tem dito a esta hora da vida de Renan, e da sua morte. Venho tarde para ajuntar, qualquer dado biographico, qualquer inedito incidente aos já citados aqui por informadores habeis e intelligentes.

Mas venho cedo, talvez, para conversar com os leitores ácerca d'esse espirito encantador, que desapparecendo d'entre os vivos, deixa na Europa culta uma lacuna imprehenchivel.

Não é, porém, meu intento fazer obra de [216] critico, o que além de mais, seria prematuro ainda. Tentarei apenas dar a impressão, que a minha sensibilidade recebeu da leitura d'esse fino artista, d'esse poeta, que tão bem se conhecia a si mesmo, que um dia, figurando-se a si sob o nome Léolin, nos Dramas Philosophicos, dava do seu genio esta adoravelmente exacta definição:


«O que é que eu faço no mundo? Contemplo e goso. Vou a toda a parte; entro em todos os lugares e em todos comprehendo alguma cousa. Eis a minha profissão. Procuro o Bello, devorado de sêde, que jámais saciei. A verdade demanda maior dose de perseverança nos que a buscam; é por isso que ella me foge, talvez.»


Não ha convivencia mais estreita, que a que tem largos annos existido, entre mim, obscura e pobre mulher, e essa deliciosa intelligencia de artista, um dos mais requintadamente perfeitos que a litteratura tem possuido em todo o mundo.

É fóra de duvida que, para mim, o hebraisante, o erudito, o epigraphista sagaz, o archeologo [217] meticuloso, o decifrador de textos assyrios, o sabio, emfim, que era Renan, me interessava mediocremente. Admirava que um tão grande poeta tivesse a humilde ambição de ser apenas um grande erudito; ambição que lhe era de resto cruelmente contestada por terriveis homens calvos, de oculos azues com aros de ouro e nomes impronunciaveis de terminações barbaras, que eu nunca tinha lido, e julgo aqui entre nós, que sómente se tinham lido a si mesmos...

Esses, escreviam volumes in folio para provarem que o Sr. Renan não conhecia os textos, e o divino celta que tanta vez me fizera vibrar até ás lagrimas com as notas da sua harpa mysteriosa―desesperava-se com a incredulidade d'aquelles medonhos eruditos allemães, de que toda a gente que se presa ignora a existencia, não atinando sequer com a arrevesada pronuncia dos seus respectivos nomes...

O hebraisante era-me pois indifferente, mas o historiador ficava de pé, com a sua intuição extraordinaria da alma religiosa das multidões extinctas; com a vida intensa que elle sabia dar aos personagens do passado; com a sua [218] visão clara e profunda das cousas que já foram; com o magico poder de evocação que elle possuia, como Carlyle o possuiu, como o possuiram Michelet e Victor Hugo, mas de um modo inteiramente diverso d'aquelles todos.

Um Michelet resuscitando periodos historicos de enthusiasmo fremente e de doentia exaltação, saberá dar vida ás perturbações nervosas, aos desfallecimentos e aos extases dos seus congeneres do passado.

Um Victor Hugo dará o nitido contorno das cousas, e até para o mundo da allucinação levará o seu poder de descrever o incommensuravel, de figurar o impossivel...

Um Carlyle tera a visão ardente de um mundo como foi o puritano, capaz de produzir Cromwell; e saberá―desmontando peça a peça o machinismo complicado d'esse caracter de allucinado e de batalhador, de perfido conductor de homens, e de crente quasi fanatico―revelar-nos o segredo da quadra estranha de que elle é o producto natural, a resultante logica...

Renan saberá principalmente interpretar e traduzir problemas e sentimentos moraes, estados [219] de consciencia. Para elle, como para o grande inglez que escreveu o Culto dos heroes, a historia, é uma cousa viva, uma cousa ineffavel e divina, destinada a resuscitar diante dos olhos do nosso espirito, os soffrimentos, as emoções violentas ou delicadas, as luctas, as tristezas, as fraquezas e heroicidades, dos nossos irmãos que morreram, das gerações que modelaram fatalmente a nossa, e ás quaes devemos o que somos em bom e em mau.





Quando a noticia da morte de Renan nos veio sorprehender dolorosamente a todos, acabava eu de passar dois mezes no campo, em uma solidão quasi absoluta, em uma isolação moral quasi selvagem, lendo apenas com intima delicia, o mais arido talvez, por ser o mais erudito, de todos os livros do grande exegeta: a sua longa Historia do Povo de Israel, cujo 4.º e 5.º volumes elle deixou para serem posthumamente publicados.

E depois de ter vencido aquelle primeiro impulso de preguiça, que um espirito de mulher indolente não podia deixar de experimentar [220] ante um trabalho d'esta ordem―eu acabára por sentir-me irresistivelmente e deliciosamente transportada áquelles tempos obscuros em que o semita nomada, o soberbo vagabundo da Historia, enriqueceu o thesouro humano, com a mais alta noção religiosa a que á nossa especie foi dado ainda attingir, a noção de um deus unico, cujo espirito está em tudo, e ao qual o vasto Universo obedece submisso!...

Assim como a Grecia creou a alta cultura intellectual, a philosophia, a poesia, as artes plasticas; assim como Roma creou as fortes instituições politicas, tendo o Direito por base; o semita creou a religião de que a nossa alma se tem alimentado longos seculos, e que tão profundo cunho lhe imprimiu, que ainda hoje o mais sceptico de entre os scepticos demolidores do passado se não póde libertar da sua poderosa e absorvente influencia!

Essa genese de monotheismo, que Renan intitulou a Historia do Povo de Israel, é talvez de todas as suas obras aquella em que as soberbas e multiplas faculdades do seu grande espirito tiveram melhor espaço para se desenvolverem.

[221] Nada mais bello, nada mais profundamente interessante para um espirito que pensa, do que a evolução da idéa religiosa, seguida passo a passo, com os seus periodos de impetuosa florescencia, com os seus desfallecimentos e os seus eclypses, com os desdobramentos subitos de sua apaixonada energia, com as acquisições moraes, tão laboriosamente e dolorosamente feitas atravez de violencias spasmodicas e de paroxysmos convulsionarios.

Sendo a civilisação moderna uma resultante da collaboração alternativa da Grecia, da Judéa e de Roma, as origens da historia d'essa raça mysteriosa, em cujo seio havia virtualmente Jahvê e Jesus não podem deixar de produzir uma ardente curiosidade em todo o espirito avido de conhecimento e de luz moral.

Eu tinha-me pois, n'essa reclusão completa em que vivera, embriagado longamente, voluptuosamente, da prosa, de Renan, capitosa e perturbadora.

E quem como elle sabia, da lingua que fallava, extrahir effeitos de harmonia, ao pé dos quaes, os das outras artes me pareciam absolutamente secundarios?

[222] Falando do idioma hebraico, Renan diz em uma das bellas paginas da sua Historia do Povo de Israel:


«Uma aljava de flechas de ouro, um grosso cabo de potentes contorsões, um trombone de bronze, dilacerando o espaço com duas ou tres agudas notas: eis o hebraico.

«Uma lingua d'estas não pode exprimir nem um pensamento philosophico, nem um resultado scientifico, nem uma duvida, nem uma percepção do infinito.

«As lettras dos seus livros serão contadas como numeros, mas serão feitas de fogo como a chamma. Dirá poucas cousas essa lingua, mas as que disser, serão martelladas sobre uma bigorna.

«Derramará ondas de colera, terá gritos de raiva contra os abusos do mundo; clamará pelos quatro ventos do céo para que acudam ao assalto das cidadellas do Mal. Como os instrumentos rituaes do santuario não servirá para uso algum profano; nunca lhe será dado exprimir a alegria innata da consciencia, a luminosa serenidade da Natureza; mas clamará a guerra santa contra a injustiça, e o appello [223] dos grandes panegyricos; será o clarão das neomenias e a trombeta do Juizo final. Felizmente que o genio hellenico comporá, para a expressão das alegrias e das tristezas da nossa alma um alaúde de sete cordas, o qual saberá vibrar unisono com tudo que é humano, um grande orgão de mil teclas igual ás multiplas alegrias da vida.

«A Grecia conhecerá toda as delicias, desde as dansas em côro nos pincaros do Taygeto até ao banquete de Aspasia; desde o sorriso de Alcibiades até á austeridade do Portico; desde a canção de Anacreonte até ao drama philosophico de Eschylo e aos sonhos dialogados de Platão.»


Este admiravel, este soberbo trecho, que acabamos de traduzir integralmente, em que o genio das duas linguas toma forma, em uma outra lingua, nunca fallada com tal melodia e tal poder, quizera eu que fosse posto como epigraphe á Historia do Povo de Israel, em que Renan traduziu genialmente sob a divina inspiração do genio Grego, a alma tumultuosa e sombria, agitada e sequiosa de justiça, dos prophetas da raça semitica.

[224] Oh! como elles renascem alli nas paginas do grande escriptor, os fundadores de quanto ha de tremendo e de sombrio na religião que veio depois a dominar o mundo!

Como alli se reflecte igualmente, na prosa divina do Mestre, a Grecia que sobre a Acropole lhe revelou o segredo dos seus primores! O assumpto é o semita, mas a lingua em que essa sublime evocação se fez, o magico instrumento, atravez do qual nós communicamos com o arido e difficil assumpto, a inspiração adoravel, que presidiu a este trabalho de reconstituição historico-religiosa, a arte plastica, com que elle é genialmente modelado, tudo isso foi colhido pela alma de Renan, abelha ébria de luz e de perfume e de succos balsamicos, no coração da Grecia!

É só ahi que a Belleza e a Razão têem a mesma fórma e a mesma essencia; é só ahi que a Venus Amphytrite sorri á musa de Socrates e que a Poesia e a Religião enredam voluptuosamente a fantasia e a sensibilidade do homem na mesma rede azul e ouro tecida de sonhos, que são symbolos e de chimeras entontecedoras, que sao divinas verdades.

Mas quem leu sómente de Renan a Historia [225] do Povo de Israel ficará conhecendo todo o genio complexo do escriptor?

Decerto que não. Elle é um grego pelo amor da belleza plastica, mas é um celta pela sensibilidade doentia, pela delicadeza concentrada do seu genio.

Os que desejarem conhecel-o, precisam de ler tudo que elle escreveu.

Precisam de seguil-o atravez dos meandros, alguns quasi inaccessiveis, da sua Historia das origens do Christianismo.

Precisam de penetrar bem no estranho mysticismo que ha no fundo d'este temperamento de sceptico; precisam de interrogar os escaninhos inesperados d'esta imaginação de poeta, que em certas paginas,―como por exemplo, no sonho de Leolino, na Eau de Jouvence, invocando a alma da adorada irmã morta; nas paginas dulcissimas dos Souvenirs de Jeunesse; na symphonia esplendida que se chama La Prière sur l'acropole; na dedicatoria de um dos seus livros celebres; em trechos dos seus estudos de Historia Religiosa;―attinge uma virtuosidade, um poder de harmonia, excita uma emoção, faz vibrar tão intensamente os nervos do leitor, que póde bem dizer-se que a lingua [226] falada e escripta se transforma sob os seus dedos de magico em musica transcendente que parece vir d'além da terra, em musica que penetra no coração e o desfallece de delicioso extase.


II


Este conhecimento da obra total do grande escriptor, que eu considero imprescindivel em quem, com acerto e justiça, quizer falar d'elle, não o tinham, estranho é dizel-o, senão com rarissimas excepções, os que em França, no jornalismo, commemoraram luctuosamente o passamento de Renan. A accusação que eu aqui deixo, fêl-a, com a sua graça incomparavel Julio Lemaître no artigo que ao seu querido philosopho consagrou no Jornal dos Debates. Porque Renan escreveu muito, escreveu immenso. Durante cincoenta annos trabalhou dez horas por dia, o que é extraordinario.

[228] E além das monographias scientificas e dos estudos especiaes que publicára nas Revistas e nos Jornaes de Sciencias, além da Historia das Origens do Christianismo, que vae de Jesus a Marco Aurelio, e que se compõe de sete grossos volumes, além da Historia do Povo de Israel de que ha publicados tres volumes e para publicar dois, elle passou as horas que não consagrava á sua principal tarefa, a escrever toda a especie de artigos litterarios: ensaios criticos; dialogos philosophicos á maneira de Platão, como os que publicou em volume com o titulo que acima démos; comedias e dramas á moda e na tradição de Shakespeare como o Prêtre de Nemi, L'eau de Jouvence, Caliban, etc. etc.; cartas que são celebres como aquella escripta à un ami d'Allemagne, e outra a Mr. Berthelot; fragmentos de historia religiosa; estudos de moral; trechos adoraveis como o consagrado a Francisco d'Assis, o santo que teve a adoração de Michelet e de Renan, etc. etc.

As mil faces do talento de Renan só as conhece o que leu essa obra vastissima atravessada por uma flecha ideal de encanto e de magia; para a saber apreciar devidamente, é comtudo, [229] necessario mais do que havel-a lido, porque então, n'esse caso estava a minha humilde pessoa, a qual se recusa a tão elevada empreza.

Uma das accusações feitas a Renan, até pelos seus criticos mais benevolos, é a de contradictorio e a de incoherente.

Baptisáram de renanismo uma certa qualidade requintada e subtil de duvida amavel, que acolhe todas as idéas, que acha em todas alguma cousa de verdadeiro e muito de falso, que se balouça voluptuosamente entre doutrinas adversas, que se inclina ora para uma ora para outra das mil fórmas da vida sem se dar completamente a nenhuma d'ellas, que em cada chimera acha um fundo de verdade, e em cada verdade acceita e indiscutida um fundo de inanidade e de illusão, que ante a Natureza,―Isis de mil faces,―se limita a comprehender e acceitar as contradicções do Universo, explicando-as se póde, e admittindo a legitimidade absoluta dos mais variados pontos de vista, sem ter nenhuma das qualidades estreitas e limitadas do sectario ou do fanatico.

Ora esse modo de ser intellectual é tanto da nossa época, que Renan, professando-o, não fez [230] mais do que representar em uma condensação superior de pensamento e de critica, a philosophia do seu tempo.

Que culpa teve elle de nascer justamente em um periodo da civilisação em que estes caracteres da intelligencia são justamente os que assignalam o homem superior, o artista consciente, o representative man de uma phase do pensamento humano.

De resto, querendo dizer a verdade toda, esse estado de espirito de Renan, é-lhe commum com as intelligencias mais altas de todos os tempos. Shakespeare, que foi tambem um dilectando genial não dizia já que o homem è talvez feito do mesmo estofo que os seus sonhos?

A interpretação dos phenomenos visiveis do mundo é feita por esses espiritos, não de um modo racionalista e logico, mas consoante a fugitiva inspiração do momento que passa.

A raiz de toda a realidade mergulha em um abysmo insondavel e obscuro, em que elles gostam de debruçar-se, ora trementes de pavor, ora gelados pela duvida...

Mas a justiça, que nem sempre fazem a Renan e que é necessaria fazer-lhe, exige que se accrescente a esses traços por assim dizer [231] exteriores de seu talento esta qualidade fundamental que resalva o que elles podiam ter de perigoso para os discipulos de sua philosophia.

Ha uma cousa em que elle acreditou sempre, da qual não negou nunca a existencia necessaria, embora lhe contestasse ás vezes nos caprichos da sua ondeante palavra, cariciosa e triste, os resultados uteis, ou as compensações interesseiras; essa cousa é a moral!

«A moral é a cousa séria e verdadeira por excellencia; basta ella para dar um sentido e um fim á vida humana, diz elle no prologo dos seus Ensaios de Moral e de Critica.

«Escondem-nos véos impenetraveis o segredo d'este mundo estranho, cuja realidade se impõe a nós e nos esmaga; a philosophia e a sciencia procuram eternamente, sem jámais a encontrarem, a fórmula d'esse Proteu que a razão não limita e que a linguagem não exprime. Mas ha uma base indubitavel que o scepticismo por mais completo não póde abalar, onde o homem achará até ao termo dos seus dias o ponto fixo de todas as incertezas; o bem é o bem; o mal é o mal. Para odiar um e amar outro, não é necessario qualquer [232] systema, e é n'este sentido que a fé e o amor, que na apparencia não têem ligação alguma com a intelligencia, são o verdadeiro fundamento da certeza moral e o unico meio que o homem possue para comprehender alguma cousa do problema da sua origem e do seu destino.»

Por estas palavras sinceras e que Renan honrou tão nobremente, em uma longa existencia laboriosa, honesta e casta, consagrada ao trabalho incessante, á desinteressada investigação da verdade, ás sondagens tão difficeis da Historia,―por estas palavras se percebe bem claro, que o renanismo não significa indifferença moral, mas sim benevola sympathia por ideaes diversos, contemplação amorosa dos phenomenos que se succedem em perpetua fluidez, em perpetua transformação, embevecimento perante as mil fórmas alliciadoras com que a eterna illusão nos tenta, nos seduz, nos anesthesia, para nos fazer aceitar o pesado encargo da vida...

A riqueza extraordinaria d'esta intelligencia consiste na quantidade de contrastes, de aspectos e de nuances que n'ella se conciliam e n'ella se contém. Os contrastes de um caracter [233] são o sêllo da sua individualidade, da sua vida exuberante e intensa. Os contrastes de idéas cabendo em uma intelligencia dão a medida do seu grande valor.

As contradições que desnorteiam uma logica vulgar, não assustam por exemplo o pensamento allemão de uma tão extraordinaria complexidade. A concepção, a synthese magnifica de um Hegel envolve e concilia os mais contrarios termos no seu vastissimo seio. Ora, em Renan, além da influencia da Biblia, tão accentuada no seu modo dizer e de sentir, além da influencia grega tão esplendidamente demonstrada na oração sobre a acropole, que vem inserta nos adoraveis Souvenirs de jeunesse, actuou de um modo profundo, decisivo a influencia da Allemanha.

Na sua moral Renan obedece á inspiração de Kant, na sua concepção do Universo, Renan é Hegeliano. E senão vejamos esta phrase caracteristica:

«Deus é immanente no conjunto do Universo, e em cada um dos seres que o compõem. Não se reconhece, porém, egualmente em todos. Reconhece-se mais na planta que no rochedo, mais no animal que na planta, mais no [234] homem que no animal, mais no homem intelligente que no cerebro limitado, mais em Socrates que no homem de genio, mais em Buddha que em Socrates, mais em Christo que em Buddha.»

Eis o resumo de toda a theologia hegelina e renanesca.

Se accrescentarmos a isto a affirmação de que nenhuma vontade particular se tem manifestado até hoje, nem poderá jámais manifestar-se na evolução do Universo, ou na marcha da humanidade, mas que esse Deus, de que elle nega a existencia pessoal, está por assim dizer em formação no tempo e no espaço, á proporção que o mundo vai attingindo a consciencia sempre mais perfeita de si proprio, e que o homem vai descobrindo as eternas leis da verdade, da belleza, da virtude e do bem; de que o Universo tem um fim idéal, aspira a um divino objectivo e não é nem póde ser a resultante de uma agitação inane, inutil e vã; que a razão, reinando mais e mais sobre a humanidade, acabará por crear Deus, creando o bem absoluto, e a divina harmonia das cousas;―nós teremos completado a philosophia de Renan, nem sempre original, [235] e em todo caso pouco consoladora para os humildes e para os pobres de espirito que em nada collaboram para a formação definitiva d'esse Deus, que está em via de apparecer vizivel aos homens que hajam attingido o mais alto ponto da consciencia...

Esta philosophia reveste-se porém, das mais deliciosas fórmas, ella tem para se desenvolver e para se reduzir a preceitos geraes, um instrumento incomparavel, de uma graça que nenhum artista ainda egualou.

Esse instrumento, que é a prosa de Renan, é que o torna principalmente querido entre os que lêem...

A sua melancolia de celta, a sua sensibilidade doentia, a doçura estranha, inspirada de algumas das suas phrases, tem tido sobre a minha alma de mulher o poder inexplicavel de um sortilegio.


III


O desinteresse levado quasi a um extremo irritante para os praticos homens de hoje, a fidelidade tocante a todas as causas vencidas; um amor das tradições da raça, que se exalta até á poesia, uma fórma de imaginação absolutamente singular e inconfundivel caracterisam os Celtas, a cuja raça Renan tanto se orgulhava de pertencer.

«Em parte alguma, diz elle, a eterna illusão se adornou de mais seductoras côres, e no grande concerto da especie humana nenhuma familia egualou esta, nos sons penetrantes, que vão até o coração. Os seus cantos de alegria acabam em tom elegiaco; nada eguala a deliciosa [237] tristeza das suas melodias nacionaes; dir-se-hiam emanações do céu, que, deslisando gotta a gotta dentro d'alma, a penetram, como reminiscencias de outro mundo.

«Ninguem, como ella, saboreou jámais tão longamente essas volupias solitarias da consciencia, essas reminiscencias poeticas, em que se cruzam simultaneamente todas as sensações da vida, tão vagas, e profundas e penetrantes, que, a prolongarem-se muito, fariam morrer, sem que pudesse dizer-se se era de delicia ou de amargura.

A infinita delicadeza de sentimento que caracterisa a raça celtica está estreitamente ligada á sua necessidade de concentração... D'ahi esse pudor delicioso, esse não sei quê de velado, de requintado, de sobrio, a egual distancia da rhetorica do sentimento tão familiar aos povos latinos e da ingenuidade reflectida que tanto se faz sentir nos allemães.

«Essa raça quer o infinito; tem sêde d'elle; procura-o a todo o preço, para além da tumba, para além do inferno...»

Estas phrases de Renan, colhidas no seu esplendido estudo sobre a poesia das raças celticas [238] são o segredo de mil particularidades d'aquella fina sensibilidade de artista.

O que elle diz dos cantos nacionaes da sua raça, podia egualmente applicar-se ao genero indefinivel de encanto quasi physico que a sua prosa exerce em temperamentos accessiveis a certa ordem de emoções.

A estranha combinação que n'elle se fez de duas inspirações tão oppostas e ambas tão pronunciadas no seu espirito, a da poesia biblica e a da poesia dos Celtas; a alta cultura complexa que o seu entendimento assimilou de um modo tão feliz; o dom irresistivel da ironia que a fada que presidiu ao seu nascimento lhe trouxe occulto entre as mais finas flores de uma sensibilidade morbida; o optimismo de um temperamento são e de uma calma existencia, luctando com a noção pessimista que a sciencia lhe deu do Universo e da vida; as suas tendencias de dilettante e de aristocrata, desenvolvido em um meio de brutal democracia e de lucta pela vida phrenetica; a hereditariedade de uma mãe da Gasconha e de um pae bretão; até a estranha circumstancia de elle ter ouvido―nos braços maternos e dos labios queridos de onde lhe escorria o [239] mel dos unicos beijos que não mentem,―contados com a mais graciosa florescencia de incidentes e detalhes, todas as nebulosas tradicções do Cyclo de Arthur, todas as lendas poeticas de Bretanha, isto por uma deliciosa voz ironica, que não acreditava n'ellas, e que era como o acompanhamento musical da serenata de D. Juan, o risonho desmentido áquella poesia tecida em sonhos;―todos estes contrastes, todas estas influencias contradictorias, composeram em não sei que mysterioso laboratorio, a essencia rara que era o genio de Renan.

Esse philtro capitoso, inebriante, seria salutar? Parece-me, receio bem que não! Renan era muito do seu tempo para não ter d'elle a pontinha de corrupção intellectual, que, em temperamento physico menos equilibrado, levaria ao scepticismo dissolvente, á egoistica indisciplina que se traduz pela satisfação de todas as paixões, ainda as mais funestas.

Elle, que era um santo na pratica da vida, e que, sahindo do seminario, quiz trazer para o trato social as virtudes, a castidade, a serena despreoccupação de sentimentos que o agitassem, que lhe haviam sido recommendadas pelos padres que o creáram; elle, que era um santo [240] na moral, podia na vida intellectual ser esse delicioso diletante que se comprazia em perder-se nos complicados meandros do pensamento, amando como Socrates a virtude e chamando-lhe como Bruto um nome vão! glorificando o martyrio e notando ao mesmo tempo a impossibilidade que ha para o homem superior em morrer por uma idéa, necessariamente falsa, pois que nunca a verdade póde estar em uma só face de qualquer doutrina; recommendando a moral como «a cousa por excellencia verdadeira e séria» e dizendo aos homens, aos fracos mortaes a quem o desinteresse custa tanto, que nenhuma recompensa lhes advirá dos sacrificios feitos a essa abstracção sublime; negando a intervenção de Deus na obra universal e affirmando que o Universo tem um fim divino; sentindo e communicando aos que o lêem, as sensações mais dubias e as mais contradictorias; vibrando ao influxo das idéas mais diversas, desde o mysticismo até a transcendente ironia, tendo feito a viagem á roda do mundo do pensamento, e vindo de lá, da sua longa e laboriosa romaria, egualmente indifferente ou egualmente benevolo para todas as doutrinas, para todos os [241] estados da alma, menos para o fanatismo dos sectarios, que lhe inspirava um desdem piedoso, e que ainda assim comprehende, porque ninguem entendeu melhor Jeremias e Ezéchias, os prophetas da feroz Jerusalem!

Elle podia ser essa encarnação suprema do genio da critica moderna. Mas os que não têem o mesmo dom feliz de separar a vida da intelligencia da vida dos sentidos? Mas os que vivem a sua philosophia e traduzem em actos as suas theorias?...

Oh! para esses, a doutrina d'esse santo será o mais corrosivo dos venenos; o encanto miraculoso d'aquelle genio ondeante, cujo pessimismo desabrochava na flor de um sorriso e cuja esperança se afundava, mysteriosa e lugubre nymphéa, no pantano glauco de uma negação sombria,―seria a mais desorganisadora e a mais corruptôra das lições!





Mas esquecemos o que houve de triste e de negativo n'essa philosophia, cujas raizes mergulham no complicado e sceptico pensamento germanico!

Nós, as mulheres, amemo-lo pela graça―esse [242] dom feminino, que elle possuiu como ninguem mais, pela linguagem divina, de que elle revestiu as suas idéas, por milhares de trechos verdadeiramente impeccaveis, de uma unctuosidade evangelica, de uma pureza transcendente, de uma poesia ineffavel, com que elle enriqueceu a litteratura universal.

Como havia em Rénan de tudo,―e é este o seu caracteristico mais singular, e é este, em face da estricta logica, o defeito mais reprehensivel da sua intelligencia―podia um admirador consciencioso e delicado extrahir, dos seus livros innumeros, um livro piedoso, especie de Imitação, menos ascetico, porém, mais perfumado das flôres do Evangelho primitivo; livro para ser lido em hora de crise d'alma, livro para ser decorado pelos delicados, pelos contemplativos, pelos tristes...

No prefacio dos seus Estudos de Historia religiosa, diz Renan pouco mais ou menos isto mesmo.

Formúla o voto de que alguem, das perolas soltas do seu escrinio, que sabemos ser de millionario, compozesse uma especie de livro d'horas, para ser folheado depois da sua morte, por finas, esguias e brancas mãos patricias, [243] na paz obscura e calmante das cathedraes.

Oh! Como a subtil ironia que atravessa, flecha de luz aeria, este voto estranho, é bem d'elle! D'esse aristocrata, que deveu á democracia a liberdade que amplamente gozou; d'esse dilettante, d'esse mystico que desejaria ser enterrado na nave lateral de uma sombria egreja catholica; d'esse ironista que manejou tanta vez o arco de Voltaire com settas mais finas, settas feitas de ouro; d'esse philosopho que prégou a inanidade da sabedoria; d'esse sabio que se ria da sciencia; d'esse iconoclasta dos templos que ungiu de balsamos tão inneffavelmente doces os pés de Jesus Christo, e que achou na piedade da sua alma uma fórmula de scepticismo mais respeitosa que muitas orações, de um realismo por assim dizer concreto e material...





Se eu pude traduzir a impressão que elle me dava, impressão confusa e deliciosa, indefinivel e querida, impressão que era ao mesmo tempo receio de me deixar seduzir, encanto ao sentir-me arrastada na corrente d'aquelle feiticeiro [244] perigoso; se eu pude dizer todo o amor com que lhe quiz, e todas as restricções com que este sentir me subjugára, dou-me por feliz, porque a fazer a critica da obra de Renan, a isso nunca eu ousaria aspirar.



Oliveira Martins

I


Tres mezes decorreram já desde que a negra terra do cemiterio o encobriu aos olhos dos que o amavam, e não está de molde o mundo moderno, que tumultua desvairadamente anarchico para chorar os seus mortos ou para commemorar os seus heróes!

Desde que elle morreu, esta pobre nacionalidade portugueza que a sua alma soube tão bem estudar, comprehender, amar nos momentos typicos da sua grandeza, chorar nos espasmos convulsivos ou no torpôr comatoso da sua longa agonia, desde que elle morreu, já [246] esta pobre patria, tão sua amada, se tem deixado afundar mais alguns gráos no abysmo de uma decadencia para que não ha cura.[1] Quasi todos o esqueceram, a elle, ao grande melancolico que, durante mais de vinte annos, se não cansou de avisar os despreoccupados, de accusar os cynicos, de analysar cruamente ou desalentadamente o lento processo por que uma nação se desagrega e esphacella e para quem a historia foi mais uma obra de moralista do que um trabalho de laboriosa e minuciosa erudição.

Quasi todos o esqueceram, ou se recordam apenas do que mais ephemero e contingente houve no seu espirito, e uma das coisas que mais dóe é este silencio, mortalha peior que todas as mortalhas, que na hora seguinte ao desapparecimento de um grande espirito lhe envolve nas funerarias dobras o nome que parecia tão brilhante em vida! [247]

Depois, mais tarde, é certo que a posteridade vinga esse nome da indifferença da geração a que elle devia ser mais querido, mas isso não impede que a impressão geladora de tão duro esquecimento faça soffrer algumas almas raras que não esquecem o que amaram...

Para mim, a morte de Oliveira Martins foi um golpe dolorosissimo...

Feridos os dous por uma doença traiçoeira que se apresentava no empobrecido organismo de ambos, egualmente ameaçadora de morte proxima e que para elle tão cedo realizou a negra ameaça, ambos tinhamos partido com differença de dias apenas para Cascaes.

Eram contiguas as casas que habitavamos, davam ambas para o lindo parque que o fallecido Visconde de Gandarinha alli plantou luxuosamente.

A primavera tinha desdobrado pelo parque todo em viço e pela extensão dos campos um enorme estendal das flôres mais frescas, mais vivas, mais cheias de mimo e côr. Inundavam-nos as salas os lyrios amarellos, as rubras papoulas, os malmequeres brancos e dourados, as verdes espigas, toda essa divina e [248] inoffensiva flóra dos campos que consola os doentes sem os envenenar.

Através das rendas transparentes do arvoredo em que todos os tons, todas as nuances do verde se casavam em uma gamma opulenta e maravilhosa, avistava-se, das janellas dos dous convalescentes, o mar, o grande mar azul, em que Oliveira Martins lêra tão commovedoramente a lenda do nosso destino nacional, a historia gloriosa e tragica da vida e da morte da Patria Portugueza.

Barcos de véla passavam a cada instante, e elle sabia conhecer cada typo de embarcação.

Cada véla que atravessava o mar longinquo, palpitando ao vento fresco de abril, tinha para elle uma suggestão viva, uma lembrança saudosa ou pittoresca.

A luz, a luz embriagante da primavera de Portugal, derramada em caudaes da concava saphyra dos Céus, reanimava-o dia a dia, dava-lhe aspirações frementes de vida, de alegria, de trabalho, de actividade mental.

Ouvi-lo era um encanto.

Menos abatido de espirito, e mesmo de corpo, que eu, era elle quem, descendo a escada [249] da sua casa e subindo a da minha, vinha sentar-se na pequenina sala onde eu quotidianamente esperava aquella visita deliciosa.

E de sua voz lenta, cheia de pausas, de uma doçura como que abafada, modulando-se em tons de intima melancholia, de acre desprezo, de tolerante e passivo desdem, e ás vezes, raras vezes, de alegre e despreoccupada ironia, ia preguiçosamente escorrendo toda uma philosophia da Vida, triste sim, mas não desesperada nem crúa...

Mystico de temperamento, mystico de sentir, o seu scepticisrno das coisas era temperado sempre por aquelle instincto tão raro na alma penisular, positiva até na sua fé, o instincto do mysterio ambiante, o presentimento de alguma coisa ignorada que nos cerca, acompanha, domina, nunca revelada, nunca explicada, nunca tangivel, mas tão impossivel de definir como de eliminar...


«There are more things in heaven and earth, Horatio.
Than are dreamt of in your philosophy.
»


Estas palavras do Hamlet lembravam-me quando o ouvia discorrer de vagar, sempre muito de vagar, olhos de sonho fitos vagamente [250] no espaço, como que vendo n'elle coisas que nós lá não viamos...

Falávamos de tudo. Mais, no emtanto, do presente que do passado. Era nobre, glorioso, épico o passado? De certo!

Mas que importava, se estava inteiramente extincto para nós. O presente causava á grande alma especulativa e triste de Oliveira Martins um tedio inenarravel. Esta agonia sem grandeza; esta lucta de mesquinhos, de baixos interesses, lembrando a germinação e o fervilhar de vermes na putrefacção de um cadaver querido; esta inconsciencia de perigos imminentes; esta ignorancia universal de todas as forças e elementos que, ou conjugados ou antagonicos, hão de fatalmente ter uma influencia capital no modo de ser organico da sociedade portugueza; este risonho cynismo que anima as classes dirigentes e lhes inspira todas as manifestações da sua actividade ou da sua inercia; este quadro desolador de um paiz que lucta pela vida, é verdade, mas que perdeu todas as energias materiaes ou ideaes, por meio das quaes uma vida se conserva―arrancava-lhe expressões de uma tão inconsolada [251] tristeza, como eu me não recordo de as ter ouvido a mais ninguem.


II


Outras vezes, nas horas mais calmas, mais doces da conversação, quando o crepusculo ia envolvendo a paizagem maritima, tão doce, suggestiva e melancolica, em uma especie de ideal neblina azul―era pelo seu trabalho passado que os olhos do grande morto se espraiavam.

Dizia-me então a commoção intensa, dolorosa, extenuadora, com que elle vivera, por assim dizer, algumas scenas da sua Historia, revelando essa profunda e hyper-aguda sensibilidade intellectual que é talvez a feição predominante, a faculté maitresse do seu genio...

Em momentos sagrados, d'estes que serão um eterno segredo entre o artista que sente e o Deus que o inspira, ou antes em momentos em que o artista se sente um deus, isto é, um Creador, e em que o elemento divino, de que o seu genio é a revelação suprema, o levanta [252] acima de si proprio e da sua pobre existencia ephemera, fugitiva, mortal, o grande artista, que havia em Oliveira Martins, vivia seculos de gozo extenuante, de volupia ideal incomparavel...

―«Sahía d'esses momentos alagado em lagrimas e como que exhausto, envelhecido»―contava elle, deixando transparecer na palavra e no gesto um vago assombro.

É por isto que o trabalho lhe exhauriu a mais pura seiva do seu sangue, não porque fosse nem excessivo, nem brutalmente aturado, como por exemplo o de Balzac.

Outras vezes ainda a saudade levava-o docemente, talvez sem dar por isso, a evocar a memoria do querido amigo morto, de Anthero de Quental. Oliveira Martins fôra o companheiro, o confidente, o amigo dilecto do poeta dos Sonetos, em quem Souza Martins, n'um magistral estudo psychico-pathologico, acaba de descobrir uma ascendencia scandinava, que explica e justifica a essencia de sonho nebuloso e mystico de que o seu talento parece haver sido elaborado.

Falando de Anthero, era inexgotavel a memoria de Oliveira Martins. O intimo drama [253] d'aquelle coração e d'aquelle espirito ninguem melhor o conheceu e interpretou.

A excessiva idealisação na esphera sentimental, o abuso do pensamento, a acceitação simultanea das mais contrarias, das mais oppostas, das mais irreductiveis theorias, a multipla concepção da vida que n'esse desequilibrado de genio se transformou na loucura e na morte: tudo elle analysava, estudava, esclarecia com aquella attenção paciente, com aquella agudeza de intelligencia, com aquelle estranho dom de penetrar e comprehender as almas mais diversas,―e até uma alma diversa segundo os momentos, a influencia exterior, as crises morbidas, a propria temperatura physica,―com aquella extraordinaria lucidez critica, serena, impessoal que assignala os homens verdadeiramente superiores.

Para elle proprio―deixem me este orgulho de que aliás tenho recordação escripta pela sua propria mão e confirmado pela sua sublime e dedicada e heroica enfermeira, amiga e esposa―para elle proprio estas conversações que o capricho de cada momento ia inspirando e movendo, se tinham tornado um prazer subtil e delicado. Eu ouvia, sem muitas vezes [254] fazer mais que suggerir, excitar, conduzir um pouco ao sabor da minha curiosidade intellectual o rumo errante da sua palavra fascinadora...

Elle pensava alto, e gosava talvez de dar fórma concreta ás visões fugitivas da imaginação, de prender o peso de uma definição verbal, á aza subtil de uma idéa que ia esmaecer, volatilisar-se, fugir espaço em fóra...

O ardente desejo de Oliveira Martins, sedento de vida, como todos os feridos por aquella doença atroz que escolhe os melhores e os mais delicados organismos, para os fulminar em plena flôr de intelligencia e vida―o ardente desejo de Oliveira Martins era partir para Castella e estudar de perto o theatro de scenas que a sua mão magistral ainda deixou esboçadas em rapidas notas. Escrever o seu livro sobre D. João II e depois terminar por D. Sebastião,―o querido heroe lendario, o nosso rei Arthur fielmente esperado durante seculos por tantas almas de fé,―o cyclo da nossa vida nacional; que depois não tem feito mais que arrastar-se, desprestigiada, desformisada, pervertida na fórma e na essencia, até esta tristeza de hoje amorpha e gelatinosa: [255] eis o sonho concebido pelo escriptor glorioso e admiravel.

Foi com o fito de visitar a Hespanha e depois de ir trabalhar em algum eremiterio bem recolhido, bem arejado e fresco, bem afastado de todo o movimento social, que Oliveira Martins mais robustecido, e na apparencia melhorado, deixou Cascaes.

Ha uma carta sua de Salamanca em que transparece do novo aquella tristeza que na doença o acompanhou como um presentimento funereo. Não resisto ao desejo de copiar alguns trechos d'ella:―«Ahi vão duas linhas do viajante que pisa agora as terras de Santa Thereza.

«Em Alba de Tormes esteve ella; aqui na cathedral tem um dedo que eu hontem tive a honra de tocar.

«Dizia a Santa, ardendo em divino amor: muero porque no muero. Eu não digo outro tanto, mas, em verdade, a vida não é realmente senão o desdem de viver e de morrer. Morrer para quê? Para quê viver? Os hespanhoes têem uma locução muito frequente e muito expressiva. É uma phrase, na qual, como succede com a musica, cada um mette o que [256] tem na idéa. Quien sabe? Quem sabe o que é viver? Quem sabe o que é morrer?»

N'esta fluctuação vaga do pensamento que se comprazia em ver sempre de cada problema as duas faces contrarias, está em raccourci muito do que foi a philosophia particular de Oliveira Martins!

Da viagem a Hespanha voltou elle já ferido sem apello e sem possivel cura pelo punhal traiçoeiro da Morte!

Ainda esperou contra todas as esperanças, ainda a paizagem agreste e idyllica a um tempo do convento de Brancanes e cercanias o embriagou como a ultima estrophe deliciosa d'esse poema da Natureza, que para a alma d'elle, como para poucas almas, tinha harmonias, côres, visões divinas, philtros alucinantes e poderosissimos. E ainda como ultima exhalação do seu querido espirito para o meu, algumas palavras me vieram provar a força pertinaz da sua illusão e os extremos da sua delicada e preciosa amizade.

«―Hontem, para provar a mão, comecei a trabalhar no meu Principe Perfeito. Não imagina a alegria que me deu vêr que não tinha morrido ainda. Ainda escrevo. Ainda vivo. [257] Cumpra depressa a promessa da sua visita...

«―Não ha calmante como a paizagem e os rumores do campo. Sente-se a gente arvore. Aqui ha tudo. Solidão no meio de um campo habitado, pomares nos valles, montes em volta, em frente o mar. Que mais se quer? O convento onde estou é enorme; cabe aqui tudo. Ha terraços delirantes. Ha arvores verdadeiras; uma matta a valer; pinheiros, sobreiros, medronheiros. Venha depressa...»

É a ultima vez que a sua mão traçou linhas que me fossem dirigidas e eu propria infelizmente, preza pela doença em Cascaes que nunca deixei, não o tornei mais a ver.

Mas publiquei trechos d'estas duas cartinhas preciosas, porque duas faces bem caracteristicas do espirito complexo de Oliveira Martins estão aqui adoravelmente retratados. N'uma a ondulação melancholica e vaga do seu sonho ante o mysterio da vida e o mysterio da morte. N'outra, na ultima, o seu ardente amor pantheista da natureza viva, aquella paixão fremente que o fazia dar uma alma á paizagem, communicar a sua fecunda emoção ás arvores e ás cousas, sentir no seio d'ellas a communhão mysteriosa que prende em uma [258] cadeia de infinitos élos sem quebra, a pedra á planta, a planta ao animal, o animal sem alma á alma infinita, á alma Universal!


III


Deante da obra tão vasta e variada de Oliveira Martins não póde ainda a critica lavrar qualquer juizo definitivo. É cedo de mais para que esse tribunal pronuncie a sentença decisiva que tem de ficar gravada no Pantheon das glorias portuguezas. Mas se a critica impassivel e austera tem de addiar ainda o resultado da sua investigação, é licito a cada um de nós dar a impressão intima que recebeu do trabalho devéras extraordinario do escriptor que se finou.

Em primeiro logar a dualidade de aspectos que essa obra apresenta, transforma-a em uma especie de problema altamente interessante para a psychologia.

Em Oliveira Martins, a par do mystico contemplativo, do sonhador philosopho, do moralista desdenhoso, havia―estranha coisa, tão [259] rara na nossa raça simplista―um ser inteiramente contrario a esse, um espirito positivo na analyse dos factos, rigoroso nas deducções do pensamento, pratico na administração dos negocios, e em que uma rara sagacidade das coisas se alliava a um methodo maravilhoso na classificação dos conhecimentos positivos.

Estes dois homens tão diversos formaram um só, ás vezes coutradictorio até ao enigma irritante, incomprehensivel ao entendimento médio, illogico perante a opinião do vulgo. Separados, cada um d'elles formava um conjuncto completo de qualidades harmonicas, uma força intellectual de primeira grandeza. Juntos, havia momentos em que eram capazes de desnortear, de entontecer até o espirito mais perspicaz e mais aberto ao feliz dom da sympathia intelligente. Assim como o seu talento tinha estas duas faces distinctas quasi inconciliaveis, pois que presuppõem qualidades em absoluto antagonismo e temperamentos em radical opposição, assim tambem a sua obra parece dividir-se em dois ramos diversissimos. A um d'esses ramos, o mais arido para mim, o que nada admira―pertencem os seus tão notaveis artigos jornalisticos, quasi [260] todos compilados nos volumes Politica e economia nacional e Carteira de um jornalista, os seus opusculos e livros sobre o Regimen das riquezas, o Socialismo, as Eleições e até o seu magnífico projecto de Lei de fomento rural, que póde bem chamar-se um programma completo de restauração patriotica, uma especie de systema de hygiene applicado ao organismo exangue de um paiz que, primitivamente destinado a uma existencia modesta e rudemente tonica de trabalho rural, de obscura felicidade sem historia, se gastou nos excessos e nas aventuras d'esse sonho ultramarino que o fez viver, é certo, e que lhe deu renome, mas que o condemnou á longa e incuravel anemia de que todos morremos hoje aos poucos...

É como um homem verdadeiramente pratico que apparece aos nossos olhos, o publicista, o deputado, o politico nem sempre feliz, embora sempre perfeitamente intencionado do periodo que talvez mais do que nenhum outro, elle quereria ter riscado da historia, aliás tão nobre da sua vida. É sob essa face que elle assombrou muitas vezes não sómente os espiritos da nossa terra mais chãos e mais [261] positivos, mas ainda os homens de negocio estrangeiros com quem teve de tratar tantos assumptos de importancia e que ficavam falando d'elle como de uma intelligencia rapida, aguda e fria, absolutamente rara nas nações peninsulares.

Se essas faculdades sem o auxilio de outras já são sufficientes para assignalar o alto valor de um homem, o que fará quando a essas se ajuntam em rarissimo connubio outras, mais altas, mais nobres, mais reveladoras de uma grandeza ingenita e de um valor moral amplissimo?!... Quando o mesmo homem, que ha pouco parecia versar, com tanta segurança e tão fino criterio, questões de que dependem o bem estar material e a ordem administrativa e economica das nações, se revela de repente um delicado artista vibrante e creador, um entendimento alado, capaz de erguer-se ás cumiadas mais altas do Pensamento, um vidente para quem a historia é uma continua revelação de reconditos segredos da alma, uma evocação magica de figuras vivas, uma palpitante suggestão de moral e de justiça?!...

Os que tiverem de pôr de pé deante da [262] posteridade a figura inteira de Oliveira Martins, têem de evocal-o sob estes dois aspectos e fundir ambos na culminação intellectual a que elle attingiu.

Outros fizeram a historia com mais exactidão e mais verdade―se a verdade historica é apenas a verificação rigorosa das datas e a decifração lenta dos documentos coevos; outros fundiram em mais bronzeo estylo as cogitacões do seu vasto pensamento; outros interrogaram com mais paciente e minucioso escrupulo os monumentos do passado, legados sob multiplas fórmas materiaes ou moraes, artisticas ou religiosas, á geração sua contemporanea: poucos têem possuido, mais ardente e mais vivo esse poder estranho de penetrar na alma de uma raça e de lhe traduzir as aspirações occultas ou os sonhos realisados; de lêr a summula completa dos destinos de uma nação na obra truncada que ella tentou em vão consummar; de evocar em plena vibração de vida, em plena intensidade de emoção communicativa os typos representativos de uma época remota e finda; de emprestar a sua propria alma á alma dos mortos e de os fazer resurgir do sepulchro, onde pareciam para [263] sempre esquecidos, á luz fremente do mais bello e claro dia.

Accusam-n'o com razão de contradicções, de inexactidões e erros de facto, que um espirito inferior meticuloso podia facilmente corrigir ou evitar. Sim. Tudo isso é verdade.

Mas escrevam, se são capazes, a Historia que elle escreveu, interessem-nos apaixonadamente como elle nos interessou, dêem o vigor, o relevo, a vida que elle deu aos personagens que evocava, façam de cada um dos seus livros o drama agitado que elle fez, transformem a Historia como elle a transformou, em uma prophecia, em um lamento, em uma licção, em uma suggestão ardente, em uma saudade inconsolada do que foi e não póde tornar a ser.

Outros narram precisamente os factos, elle commentou-os, esclareceu-os, deu-lhes o sentido occulto, a amarga e profunda philosophia.

O nosso destino historico; o papel particular que aos portuguezes foi distribuido n'essa tragedia épica da peninsula iberica, que deu mundos ao mundo inconsciente; o preço atroz por que nós pagamos a posse d'esse ideal que foi nosso um momento e que perdemos justamente [264] por tel-o realisado completo;―quem melhor o soube explicar, tornar claro aos olhos ainda os menos penetrantes, tornar palpavel aos entendimentos ainda os mais obtusos?


IV


Na obra que elle deixa tão grande, que revela uma capacidade e um methodo de trabalho assombrosos, pois só assim se poderia escrever tanto, longe de tudo ser perfeito ha muita coisa desegual, muita coisa que elle não teria escripto se a necessidade quotidiana o não houvesse por largos annos espicaçado,―porque é preciso que se saiba lá fóra que este trabalhador incansavel foi um chefe de familia exemplar, e que, ficando na quasi infancia orphão de pae, foi elle quem auxiliou nobremente sua mãe a educar e formar uma familia numerosa de que até ao ultimo instante foi desvelado amigo.

Deve tambem confessar-se que ha muito de injusto e de cruel nos juizos que na, temeraria mocidade, isolado, e inexperiente elle formulou [265] a respeito dos homens e das cousas. O seu Portugal Contemporaneo foi mais escripto sobre pamphletos e artigos de jornal, sempre suspeitos, do que sobre documentos authenticos completados pelo austero e profundo estudo do movimento liberal que iniciou para nós a éra moderna. Ha capitulos na Historia de Portugal que os seus livros posteriores, ungidos tão docemente pelo amor dos heroes patrios, parecem negar, contrariar, annullar inteiramente. Elle proprio teve de contradizer, na maturidade do seu grande espirito, no qual um incessante progresso se faz sentir, grande parte das theorias que primeiro enunciara e que tão profundo ecco tiveram na sociedade portugueza e tão irremediavel influencia exerceram no espirito pessimista e desenganado da contemporanea geração. O culto dos heroes que elle acabou pregando e exemplificando da maneira mais irresistivel, mais poderosa e mais bella, foi elle―força é dizel-o, porque deante das cinzas de um grande morto, a verdade impõe-se como um dever sagrado―foi elle quem quasi completamente o destruiu na nossa alma, aliás disposta a derrubar todos os idolos, a escarnecer todas as religiões!

[266] Mas como estas maculas parciaes, mas como estes mesmos enganos do seu entendimento que lentamente se foi formando, aperfeiçoando, cultivando e depurando, desapparecem no conjuncto da sua obra! Mas como resgatam amplamente e soberbamente esses senões secundarios, livros como a sua Civilisação Iberica tão admiravelmente traçada por um pincel de artista e de pensador, como o seu volume Os Filhos de D. João I, feito todo elle sob uma inspiração soberba da epopéa, como o seu Condestavel tão bello, tão puro, em que a sua alma parece entender tão bem os mais intimos segredos d'uma alma de extase e de fé, prenunciando d'este modo a resignação ineffavel, a pacificação serena e alta, a submissa doçura ao mysterio supremo, no qual todas as contradicções se conciliam, a humilde piedade unctuosa da sua morte edificante, d'essa morte que tantos balsamos verteu no dilacerado coração da esposa, que n'ella teve a sua crucificação e a sua corôa, a sua maior dôr e o seu consolo mais sublime!

Como em Nuno Alvares o interessa mais ainda que o guerreiro audaz o asceta e o santo! Que trechos aquelles em que elle, subindo [267] a uma altura onde não tinha subido ainda e que representa a culminação suprema a que o seu engenho chegou, nos conta os arrebatamentos, as visões, as asceticas delicias em que a alma do santo Condestavel se dilata até aos céus!

N'este livro, mais que em nenhum outro, o estylo de Oliveira Martins póde ser apreciado na sua complexidade e nas suas modalidades tão varias!

É um estylo unico, inconfundivel, atormentado, desegual, feito de imagens propriamente suas, de torneios de phrase inimitaveis e que o põem a cem leguas do classicismo acceito e consagrado. Ora se levanta em uma especie de somnambulismo vago a alturas ennevoadas e insondaveis, ora cahe de chofre na vulgaridade de um realismo voluntariamente plebeu; á ironia trascendente de umas paginas oppõe o amargo pessimismo de outras; á colera convulsa que o espectaculo das cousas lhe acorda no coração, segue-se o desdem benevolo e superior de quem julga este mundo todo illusorias apparencias, que umas nas outras se esvaem e se transfiguram; o seu grande poder de suggestão vem menos dos vocabulos empregados, [268] menos dos epithetos escolhidos, do que da repercussão indefinida e infinita que certas phrases que elle emprega nos accordam na alma. Ás vezes, ha uma limpidez serena e correntia n'este estylo magico; outras vezes, é obscuro erriçado de symbolos, enredado em labyrinthos em que a mente se perde e desnorteia!

Se o estylo deve traduzir todas as nuances de uma dada individualidade e ser o transumpto claro e fiel de um temperamento artistico nunca houve ninguem que tivesse um mais accentuado estylo do que Oliveira Martins!

De cada uma das maneiras do escriptor eu queria dar idéa, transcrevendo um trecho que lhe correspondesse, mas não será melhor que cada leitor procure na obra tão complexa e tão variada, aquillo que melhor quadre ao seu gosto especial, á sua concepção artistica, á indole do seu espirito...

Recommendo-lhe, porém, as ultimas paginas da mais transcendente e ideal belleza da Historia de Nun'Alvares, as descripções que esmaltam ora com o colorido brilhante de uma téla de Veroneze, ora com a melancolia pungitiva de uma paizagem de Ruysdael, ora com [269] a luz aeria, docemente unreal de um trecho de floresta pintado por Corot, esse livro de todos o mais admiravelmente escripto que o historiador nos legou.

Recommendo-lhe a analyse do caracter de Nuno Alvares, de João I, dos Inclytos Infantes, principalmente de D. Pedro, paginas de uma psychologia tão delicada, penetrante e subtil, em que o fundo mystico da imaginação de Oliveira Martins se allia á sua profunda intuição dos segredos da alma humana! E o quadro magistral feito a duas pinceladas rapidas da Côrte de D. Fernando, ai de nós! tão parecida com a sociedade de hoje que não sei mesmo dizer se não foi ella que serviu de modelo ao artista para chegar a conseguir taes effeitos de realismo brutal e de frisante e juvenalesca ironia!

Não farei comparações sempre inexactas entre Oliveira Martins e outros escriptores que o precederam. Acho que essas comparações não são em alguns casos mais do que erros palmares de critica que desconcertam e irritam! Um escriptor que se parece com outro, é raras vezes um artista de raça. Não póde um talento grande deixar de suppor uma personalidade [270] accentuada, forte, isto é, differente. De resto não conheço em Portugal escriptor algum, cuja indole, cujas tendencias, cuja comprehensão das cousas se possa comparar com as de Oliveira Martins.

Elle nunca poderá ser considerado como um representative man, nem do tempo nem da raça a que pertenceu. D'aqui a sua originalidade viva e talvez o principal caracteristico do seu talento.

Á viveza, á meiguice, á sensibilidade vibrante do meridional, elle juntava a profunda melancolia, o symbolismo vago, a fluctuação de sonho do germano, e como elle tantas vezes se comprazia em lêr os vestigios de antigas influencias ethnicas, no caracter dos seus personagens historicos mais dilectos, póde tambem dizer-se que no seu genio tão complexo, tão estranho, tão cheio de meandros, complicações e antagonismos inconciliaveis se casam o poetico elemento celta, o positivismo calculista do phenicio, a profundidade e o pessimismo semita, a viva paixão do arabe, e o sentimento da Natureza que o barbaro do Norte primeiro suggeriu ao coração seco do civilisado latino!


FIM




Antonio Maria PEREIRA―Editor




OBRAS

de

Maria Amalia Vaz de Carvalho






A arte de viver na sociedade, 1 vol. br, 1$000 réis. Ricamente encadernado 1$400.

Pelo mundo fóra, 1 vol. broch. 500 rs Encad. 700 rs.

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Volumes publicados


N.º 1―Tristezas á Beira-Mar, romance de Pinheiro Chagas, 1 vol.

N.º 2―Contos ao Luar, por Julio Cezar Machado, 1 vol.

N.º 3―Carmen, romance de Merimée, traducção de Mariano Level, 1 vol.

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N.º 5―A Mascara Vermelha, romance historico de Pinheiro Chagas, 1 vol.

N.º 6―John Bull e a sua ilha, traducção de Pinheiro Chagas, 1 vol.

N.º 7―O juramento da duqueza, romance historico por P. Chagas, 1 vol.

N.º 8―A lenda da meia-noite, romance phantastico, por P. Chagas, 1 vol.

N.º 9―A joia do vice-rei, romance historico, por Pinheiro Chagas, 1 vol.

N.º 10―Vinte annos de vida litteraria, por Alberto Pimentel, 1 vol.

N.º 11―Honra d'artista, romance de Octavio Feuillet, traducção de Pinheiro Chagas, 1 vol.

N.º 12―Os meus amores, contos e balladas, por Trindade Coelho, 1 vol.

N.º 13 e 14―A aventura d'um polaco, por Victor Cherbuliez, traducçao de Maria Amalia Vaz de Carvalho, 2 vol.

N.º 15―Os contos do tio Joaquim, por R. Paganino, 1 vol.

N.º 16―As batalhas da vida, contos por Guiomar Torrezão, 1 vol.

N.º 17―Noites de Cintra, romance por Alberto Pimentel, 1 vol.

N.º 18 e 19―Em segredo, romance traducção de Margarida de Sequeira, 2 vol.

N.º 20 e 21―A Irmã da Caridade, por Emilio Castellar, traducção de L. Q. Chaves, 2 vol.

N.º 22―Migalhas de historia portugueza, por Pinheiro Chagas, 1 vol.

N.º 23―A Cruz de Brilhantes, por A. Campos, 1 vol.

N.º 24―Contos, do Affonso Botelho, 1 vol.

N.º 25―Contos phantasticos, por Theophilo Braga, 1 vol.

N.º 26―O mysterio da estrada de Cintra, por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, 1 vol.

N.º 27―O naufragio de Vicente Sodré, romance historico de P. Chagas, 1 vol.

N.º 28―Vid'airada, por Alfredo Mesquita, 1 vol.

N.º 29―O Bacharel Ramires, por Candido Figueiredo, 1 vol.

N.º 30 e 31―Amor á antiga, romance de Caiel, 2 vol.

N.º 32―As Netas do Padre Eterno, por Alberto Pimentel

N.º 33―Contos, de Pedro Ivo, 1 vol.


Requisições á Livraria do editor Antonio Maria PEREIRA
50, 52―Rua Augusta―52, 54, LISBOA




Antonio Maria PEREIRA―Editor
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Maria Amalia Vaz de Carvalho

Pelo mundo fóra 500
A arte de viver na sociedade, br. 1$000
A aventura d'um polaco (trad.), br. 400
Raphael, de Lamartine (trad.), enc. 3$200


Teixeira de Queiroz

Os noivos, 2.ª edição (com o retrato do auctor) 1$000
O Sallustio Nogueira 1$000
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Wenceslau de Moraes

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O Mysterio da estrada de Cintra, 3.ª edição 200


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N'este valle de lagrimas 500
A queimar cartuxos (no prélo)
Santos portuguezes 500


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Historia de Portugal, 2 vol. 1$400
Portugal contemporaneo, 2 vol. 2$000
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Historia da civilisação iberica 700
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A Inglaterra de hoje 600
Cartas peninsulares 600
Systhema dos mythos religiosos 800
A vida de Nun'Alvares 2$000
O Principe perfeito 2$000



Notas:

[1] Isto foi escripto como se vê tres mezes depois da morte de O. Martins, n'um dos momentos mais deploraveis sob o ponto de vista politico, que o Portugal moderno tem atravessado. As victorias de Africa vieram n'esta hora como que alliviar o nosso espirito do pezo esmagador que o opprimia, e desmentir, sob determinados aspectos, o pessimismo absoluto que n'esta phase transluz. (Fevereiro, 1896).


Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 31 Para __ encontrar ... Para te encontrar
#pág. 47 do musculatura ... de musculatura
#pág. 48 surprehem-nos ... surprehendem-nos
#pág. 57 __ rosto ... o rosto
#pág. 66 arvoredos' ... arvoredos,
#pág. 74 su as ... suas
#pág. 74 Fran ça ... França
#pág. 79 rebento' ... rebento,
#pág. 121 deliciciosamente ... deliciosamente
#pág. 142 entranhas fecundos ... entranhas fecundas
#pág. 146 Santo Agostinha ... Santo Agostinho
#pág. 181 contante ... constante
#pág. 186 que que ... que
#pág. 187 Imperio Romana ... Imperio Romano
#pág. 190 achaou ... achou
#pág. 195 seu o ... o seu
#pág. 219 cousa sa ... cousa
#pág. 221 qne ... que
#pág. 227 passsamento ... passamento
#pág. 230 dile ctando ... dilectando
#pág. 231 ex prime ... exprime
#pág. 232 difficies ... difficeis
#pág. 250 coi sas ... coisas
#pág. 252 fossse ... fosse

Variantes dos nomes próprios (à excepção dos indicados anteriormente)
foram mantidas de acordo com o original.

*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30404 ***