Nota de editor:
Devido à
existência de erros tipográficos neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Nov. 2009)
Maria Amalia Vaz de Carvalho
PELO MUNDO FÓRA
LISBOA
Livraria de Antonio Maria
Pereira―editor
50, 52―Rua Augusta―52, 54
1896
PELO MUNDO FÓRA
Maria Amalia Vaz de Carvalho
PELO MUNDO FÓRA
LISBOA
Livraria de Antonio Maria
Pereira―editor
50, 52―Rua Augusta―52, 54
1896
LISBOA
Typographia e Stereotypia Moderna
II―Apostolos―II
1896
I
Não ha de certo ninguem, por pouco imaginativo
e pouco phantasista que seja,
que não tenha architectado um complicadissimo
e alegre sonho dando-lhe por base o
prazer das viagens. Aos homens
é o interesse
de visitar cousas novas, de experimentar
sensações
mais vivas, que os attrahe e chama; ás
mulheres é o amor do desconhecido que lhes
irrita a insaciavel curiosidade.
Imaginamos todos que a ventura está justamente...
onde nós não estamos. E que seria
facil conquistal-a, indo em demanda d'ella um
pouco longe, em um logar d'onde ella nos sorri,
d'onde ella nos acena, cariciosa... traiçoeira.
Eu cedi tambem á estranha, á irresistivel
suggestão. Fui-me por esse mundo fóra em
[2]
busca do pomo d'ouro, que tantas vezes se
parece com aquelle fructo colhido em terras
da Palestina―mimo e velludo por fóra, cinzas
escuras no interior.
Era bem natural que, para mim tão profundamente
modelada pelo espirito da França,
o primeiro objectivo fosse a terra onde a
civilisação
franco-latina se resume em synthese
deslumbradora.
Chamava-me Paris. E Paris não era, já se
vê, a cidade luxuosa e alegre do
boulevard,
a cidade da permanente festa, do prazer que
se elabora de todos os requintes de uma decadencia,
da phrenetica aspiração ao gozo material
da vida.
Paris era a terra sagrada d'onde brotára
para a especie humana a primeira scentelha
da Liberdade.
Paris era a patria, pelo menos moral―d'aquelles
espiritos de que a minha alma colhêra,
n'um vago extase fecundante, a flôr maravilhosa
e inspiradora.
Todos os que eu intellectualmente mais amára
tinham ido alli receber a consagração suprema
da gloria ou da desgraça, ás vezes de
ambas ellas.
[3]
Eram, no grande seculo classico, Pascal,
Racine e Molière; eram, na soberba Renascença
franceza, Rabelais e Montaigne; eram
depois, n'esse seculo XVIII hoje tão calumniado,
mas sempre tão grande, e que tão indomitas
energias acordara na alma do homem,
Rousseau com a sua morbida sensibilidade de
ambicioso e de revoltado, que nós hoje comprehendemos
tão bem; era Voltaire, a sã ironia
hoje desdenhada, mas que tão benefica
acção
exerceu na treva do espirito humano; era Diderot,
o profundo precursor de todas as modernas
theorias criticas, o homem que no seu
tempo moveu maior numero de idéas novas e
suggestivas; era a pleiade formidavel e fascinante
da Revolução, a que na minha mocidade
me dera sensações de tão absoluto
assombro,
a que, desde Turgot e Mirabeau até Robespierre,
refizera em novos moldes o mundo moral
e o mundo politico; era, na cumiada mais
alta e mais luminosa da montanha da Historia,
essa grande figura immortal, o Alexandre do
seculo XIX, o heroe de Homero, o phrenetico
conquistador, que empobreceu talvez a França,
que dizimou as populações e crucificou as
mães
e as noivas, que sangrou do seu melhor sangue
[4]
as nações e as raças, mas que imprimiu
na sua patria o cunho epico, inapagavel, inolvidavel,
com que ella ainda hoje espanta e assombra
o espirito dos estrangeiros! Parece
dos tempos lendarios e é de hontem esse homem
soberbo e fatal―em cujo olhar profundo ha
reverberações
do Olympo, e cuja fronte pensativa
fez parar embevecidos, silenciosos, os mais
impassiveis e os mais frivolos―cuja figura nós
topamos a cada passo na Capital do Mundo.
Modernamente, quantos outros me chamavam,
ainda mais queridos ao meu coração,
ainda mais intimamente e estreitamente identificados
com todas as recordações mais doces
da minha vida intellectual... Era Michelet, o
poderoso encanto allucinante; era Balzac, a vida
intensa que pullula em creações immortaes;
era Renan, a graça emballadora, ondeante e
morbida, que anesthesia e faz sonhar; e Taine,
o vigor soberbo da idéa servido por um temperamento
possante de artista e de poeta, um
Spinosa que tivesse o pincel do Veronez para
traduzir as visões do seu pensamento altissimo;
era Musset, o divino; era Sand, e Sainte
Beuve, e Hugo, e Lamartine: e cada um me
attrahia por um lado ou por muitos lados da
[5]
sua sensibilidade e do seu genio, e cada um me
dizia a palavra magica que faz parar, suspenso,
embevecido, um espirito de poeta e de artista,
humilde embora...
Eram mais, eram muitos mais, todos lidos,
todos decorados com enternecimento e apaixonado
enlevo. Eram os que eu sempre amei
desde que abri os olhos d'alma, e a quem devo
os prazeres mais ardentes, mais refinados ou
mais subtis da minha vida interior.
Todos alli me chamavam―côro de mortos
que eu tinha a louca illusão de encontrar ainda.
Parecia-me que o sorriso aberto e expansivo do
pae Dumas havia de accentuar-se sympathicamente
ao encarar com o meu assombro extatico;
que a voz mordente de Voltaire se
amolleceria para acolher em mim a mais fervente
enthusiasta do espirito francez; que Beaumarchais
me contaria, entre risonho e caustico,
uma nova travessura de
Figaro, uma
nova paixão de
Cherubin;
que Molière, descendo
do seu pedestal marmoreo, me diria ao
ouvido uma d'aquellas profundas reflexões satyricas
que elle não poupára ás
bas-bleus do
seu tempo!
Para mim confundiam-se n'um cahos allucinante
[6]
as épocas, os seculos, os periodos historicos.
O meu humilde espirito colhêra apaixonadamente
scentelhas soltas de todos esses espiritos;
a minha memoria guardava reverente,
em relicario precioso, perfumes vagos de todas
essas essencias raras! Amara-os tanto! Sonhara-os
tanto! O scenario onde elles se tinham
movido interessava-me tão profundamente!
Oh! Balzac ia decerto contar-me a historia,
para elle
real, das suas elegantes e
pallidas heroinas;
elle que era forte e bom, compadecido
da minha pequenez, não duvidaria apresentar-me
a esse mundo mais humano, mais
verdadeiro que o outro em que tanto á vontade
sabia mover-se.
A viscondessa de Beauseant, a espirituosa e
aristocratica rainha do
faubourg,
aquella que
amára tanto um portuguez, e que tivera no seu
abandono uma dignidade tão gentil e uma attitude
de tão romanesco encanto, ao vêr-me
patrocinada pelo seu grande artista, far-me-hia
o que fez a Eugenio de Rastignac: proteger-me-hia,
introduzir-me-hia, carinhosa e maternal,
no circulo estreito, exclusivo, selecto onde
viviam as suas eguaes.
[7]
Então, n'este ponto do meu sonho galopante,
mais rapido que o trem que me levava, mais
vertiginoso que o scenario mudavel que me
envolvia, eu deixava o mundo da realidade
sempre limitado, sempre condicional e sempre
estreito, por outro amplissimo, fascinador e
deslumbrante.
A multidão prestigiosa das figuras de Balzac
cercava-me n'uma especie de circulo encantado.
Todo o sortilegio poderoso com que
esse grande artista―o Napoleão da litteratura―actuou
sobre o nosso tempo, descia sobre
o meu cerebro, excitava-o, estimulava-o
perigosamente.
Todos os meus gostos de observadora achavam
alli a sua satisfação plena. Esquecia, n'esse
mundo de tão frisante
realidade, de tão intensa
vida, tudo que o mundo actual tem de
nauseante e de triste...
De resto, Nucigen, o formidavel banqueiro
da
Comedia humana, é bem
mais assustador
que Reinach e que todos os judeus modernos
da Columna da Bolsa; Vautrin tem um porte
épico de criminoso que deixa a perder de vista
Cornelio Herz, ou Arton; de Marsay, esse personagem
que é de Balzac como Hamlet é de
[8]
Shakespeare, como Tartufo é de Molière, como
D. Juan é de Byron, é um politico, um diplomata,
um perverso das altas cumiadas sociaes,
bem superior a Rouvier, a Clemenceau, aos
pobres pygmeus da terceira Republica; Lousteau,
Claude Vignon, Emilio Blondet, Nathan,
os principes do jornalismo, os grandes criticos
e os manipuladores de
successos ou
de
derrotas litterarias, não podem realmente comparar-se
ao sr. Mayer, ao sr. Magnard, ao
proprio sr. Rochefort.
E que pleiade encantadora de artistas e de
sabios! Que lindas figuras luminosas de pintores,
de esculptores, de romancistas, de pensadores!
D'Arthez! Joseph Bridau! Camille
Maupin! Leon Giraud! Fulgence Ridal!
Em Miguel Christien transparece a integridade
rigida, a consciencia admiravel, a fogosa
independencia de Armand Carrel; em D'Arthez
a bella alma, a vida modesta e simples,
a magnificencia intellectual de um Berryer...
E todos desfilavam ante os meus olhos offuscados,
os cinzeladores da palavra, os manejadores
soberbos ou do escalpello que abre as
entranhas humanas para extrahir d'ellas o segredo
da vida, ou do pincel que rasga janellas
[9]
de luz para o azul, para o Ideal! Os mestres
da sciencia e da arte, os grandes typos
que constituiram essa sociedade imaginaria da
obra de Balzac, reflexo idealisado da outra
que elle frequentava e conheceu tambem.
Ao pé d'esse agrupamento sublime de figuras
que o genio creou, e que illuminam o talento,
a gloria, a ambição ou a desventura,
que ora se contorcem como os personagens
que Miguel Angelo pintou nos seus frescos soberbos,
sob o influxo de uma dôr tremenda,
ora sorriem olympicamente, como os retratos
do Ticiano, surge uma legião adoravel de mulheres,
em quem a graça indefinivel da parisiense
se allia ao eterno mysterio da poesia feminina,
mulheres que se vestem como duquezas
modernas, e sorriem, enygmaticas e suggestivas,
como a Monna Lisa, eternamente indecifravel,
do pintor florentino.
Mulheres que sabem
ouvir, que sabem
comprehender,
e julgar, e consolar, e amar; mulheres
que, sendo perversas, teem o encanto
diabolico da princeza de Cadignan e de Mme.
Marneffe, e que, sendo puras, se chamam Henriette
de Morsauf, Duqueza de Langeais; mulheres
que são ao mesmo tempo imaginarias
[10]
e reaes; que ficaram representando na historia
um papel preponderante e caracteristico,
como as inspiradoras da Renascença italiana,
como as amigas gregas de Socrates e de Platão.
II
O comboio levava-me, rapido, ferozmente
rapido. Levava-me para longe do meu
ninho, dos meus filhos, de tudo que me
faz a vida consolada e boa, de tudo que me dá
força para o trabalho, para a lucta, de tudo
que enche de bençãos a minha existencia laboriosa
e triste...
Á paizagem arida, pedregosa, da Extremadura
hespanhola succedia um scenario mais
animado, mais caracteristico. Aldêas que desde
os tempos hispano-arabes se conservam na
mesma immobilidade barbara, sinos altos de
egrejas gothicas, perfis apenas entrevistos de
velhos conventos, ninhos de cegonhas nas arvores
[12]
que pareciam correr commigo, sombrias
manchas de arvoredo que o vento torcia em
attitudes de desesperada supplica...
A grandeza alpestre dos Pyrenéos e a França,
a França emfim!... Oh! que jubilo estranho
e mysterioso se mesclou então com a saudade
que me ia alanceando e cortando as raizes
da alma!
A França! Como eu tinha levado annos a
amar e a sonhar esse paiz entre todos aureolado
aos meus olhos da luz que vem de cima!
Outras que para lá partem levam projectos
de requintada elegancia para pôr em pratica.
Irão ao Redfern, o alfaiate afamado da rua
Rivoli, que veste tão primorosamente as francezas
de alto cothurno; irão ao Worth, popularisado
pelos romances modernos; á Laferrière,
que veste as actrizes de mais fama; ao
Felix, que principescas encommendas acabam
de singularisar; comprarão na Virot o ultimo
modelo de chapéo; receberão
chez Lenthéric
des conseils de beauté,
que elle dá carissimos,
pela hora da morte, segundo a
expressiva
phrase portugueza, e que de resto tão pouco
aproveitam a quem os recebe; interrogarão
anciosas a elegancia avulsa da parisiense que
[13]
passa, pedindo-lhe o segredo, que só ella tem,
de andar por sobre o solo molhado ou enlameado,
sem macular de leve a fimbria, gentilmente
arregaçada, do seu simples, gracioso
e bem posto vestido escuro, que se amolda sobre
um espartilho de mestra, com a nobreza
com que sobre o corpo de uma estatueta de
Tanagra se amolda a roupagem de linhas magistraes
que o envolve sem encobril-o; o segredo
de collocar sobre a sua fina cabeça pequenina,
lindamente penteada, ou antes, lindamente
despenteada, um minusculo chapéo, similhante
a uma borboleta ou a uma flôr, que
o vento parece querer levar, e que não leva
nunca...
O Paris que as attrahe é o Paris da moda,
da elegancia, do
chic, do
concours hippique,
da
avenue des Acacias, do
vernissage e dos
pequenos theatros gaiatos. O Paris que as attrahe
é o dos figurinos, das lojas de modas, dos
ourives da rua de
la Paix, dos
frequentadores
do
boulevard des Italiens e da
Madeleine.
O Paris que, na velocidade vertiginosa, quasi
tragica do
expresso, surgia ante
meus olhos,
era um Paris phantastico,
unreal,
feito, construido,
cimentado com o genio dos seus grandes
[14]
artistas, dos seus grandes poetas, dos seus
historiadores, dos seus moralistas, dos seus sabios,
dos seus criticos, dos seus dramaturgos,
dos seus romancistas geniaes!
A França, a que minha alma aspirava, como
aspira ás paizagens desoladas da Palestina a
alma dos grandes ascetas do christianismo,
como aspiram á mystica e penetrante atmosphera
de Bayreuth os fanaticos da religião
wagneriana, era a França que desde Jean Goujon
até Rodin, e desde o Poussin até Puvis
de Chavannes, e desde Froissart até Michelet,
e desde Mme. Laffayette até Georges Sand,
e desde Balzac até Zola, e desde Pascal até
Renan―um, o catholico que se inclina sobre
o abysmo da duvida, outro, o sceptico que
tem a uncção evangelista de um santo... e
desde Montaigne até Anatole France, e desde
Racine até Bourget... os finos psychologos do
eterno feminino―e desde Ronsard até Victor
Hugo, e desde Marot até Verlaine, e desde a
grande renascença do seculo XVI até ao magnifico
movimento do romantismo, têem enchido
o mundo da arte, e da poesia, e da realidade,
e da ficção, de obras primas sem conta e sem
medida!...
[15]
De pequena tinham-me ensinado essa lingua
tão clara, que milhares de artistas forjaram,
bateram, cinzelaram, incrustaram de pedrarias
coruscantes, esmaltaram de riquissimas côres,
metal precioso feito de todos os metaes, e que
tem qualidades de flexibilidade, de elegancia,
de sonoridade, de harmonia, de colorido, e de
pujança absolutamente incomparaveis e inimitaveis...
De pequena tinham-me mettido nas
mãos as obras primas dos seus genios mais brilhantes,
e eu sentia-me no intimo da minha
alma mais franceza ás vezes do que propriamente
peninsular.
Ah! mas que melancholico foi o despertar
do meu ambicioso, do meu doido sonho!...
Atravessei, com uma rapidez que me deixou
confusa e palpitante, o Paris da minha evocação
de vidente; estavam mortos os amigos
que me tinham alimentado com a medula do
seu cerebro, ou com o leite da sua poesia, e,
vivos que fossem, alli perto d'elles, na atmosphera
em que elles tinham respirado, nas ruas
em que elles tinham morado, no scenario que
elles enchiam do seu nome é que eu, pela
primeira vez, ia sentil-os longe, muito longe
de mim, na incommensuravel distancia moral,
[16]
que a proximidade physica revelava de
repente ao meu chimerico espirito de sonhadora!
Senti então o que nunca julguei que sentiria
n'esse paiz que eu reputava positivamente
a patria do meu espirito! Senti uma nostalgia
tão violenta, tão dolorosa, que pensei morrer
d'ella! Uma especie de desaggregação
intellectual,
que deve ter nome na pathologia do cerebro,
mas que eu não sei scientificamente
classificar―o que de resto não admira nada!
Esqueci-me do que aprendera, fiquei-me em
uma especie de assombro mudo, em que a
saudade de Portugal punha uma nota alanceadora,
torturante.
O que os livros me tinham revelado foi como
que varrido da minha memoria; os sonhos
que eu tinha edificado sobre a minha vinda a
Paris, desmoronaram-se em uma especie de
estranho cataclysmo, e percorri a linda capital
da Europa civilisada, não como uma pessoa
que de antemão, e por muito os ter visto descriptos,
conhecesse os seus encantos, as suas
bellezas soberanas, os filtros subtis que do seu
pavé de bois se exhalam
de envolta com o
[17]
cheiro penetrante da terra sempre humida e
sempre regada, a festa perenne das suas ruas
e avenidas onde a miseria não vem pôr a sua
mancha livida, onde perpassa uma multidão
sempre garrida e sempre feliz, a perfeição nos
seus theatros, a perversa poesia das suas canções
fim de seculo, a tenra verdura das
suas
arvores, tão bem cuidadas que parece que de
manhã cedo as lava todos os dias, a esponja e
sabonete, um exercito de invisiveis jardineiros,
a lindeza da sua luz que á tarde se faz de um
cinzento roseo como o das paizagens de Corot,
tão inexprimivelmente bellas... mas como um
ser inteiramente novo às impressões da vida
extra-civilisada e que d'ella recebesse uma especie
de choque
estupidificante!
Através de tudo, o que eu sentia vivo, absorvente
como um
cauchemar, era a saudade
do meu paiz, da minha Lisboa das sete collinas,
construida em amphitheatro, sobre o Tejo
amplo e azul, da bonhomia d'este nosso viver
um pouco provinciano, pacato apesar do ridiculo
de parodia involuntaria que ás vezes o
desfigura e o desnacionalisa, da familiaridade
com que todos nos conhecemos, nos amamos
através do
debique
permanente, em que andamos
[18]
uns a respeito dos outros, da tranquillidade
um tanto adormecida do nosso espirito,
do amor da casa que distingue todo o bom
lisboeta, da ausencia de ambição que, exceptuando
as alturas procellosas da politica, imprime
o seu cunho esterilisador, mas calmante,
em todas as nossas almas serenas...
A lingua então, a musica da lingua patria,
fazia-me uma falta dolorosa. Tinha sêde de ouvir
falar portuguez!
E preferia aos divertimentos que a engenhosa
amabilidade do meu querido hospedeiro me
proporcionava, e ás excursões artisticas em
que elle era um
cicerone
incomparavel, instruidissimo,
raffiné, cheio de
idéas originaes e
suggestivas, as tranquillas e doces noites passadas
em Neuilly, na luz discreta da lampada
Carcel, que um quebra-luz côr de rosa fazia
mais acariciadora e mais suave, e onde a familia
adoravelmente intelligente, e inolvidavel
para mim, de um escriptor portuguez, que é
um artista da mais pura raça intellectual e da
mais ampla envergadura de engenho, me fazia
uma especie de pequenina patria. Alli a conversa
tinha o tom preguiçoso da nossa conversa,
os gostos combinavam-se com os meus
[19]
gostos, os nossos geitos especiaes de portuguezas
manifestavam-se a cada instante, e o
que a graça feminil de umas combinada com
o genio nervoso e original de outros podiam
dar de delicioso ao meu espirito, harmonisavam-se
para me fazer esquecer a patria, os filhos,
os outros amigos ausentes!
Nem sabem―n'esse ideal cantinho do mundo
onde vivem, um pouco alheados da civilisação
babylonica que os aperta, os cinge e os
invade ás vezes―elle, o artista laborioso e
apaixonado mettido no seu trabalho austero e
impeccavel, como um monge na sua cella estreita,
ellas, as duas encantadoras irmãs, envoltas
na grinalda viva de lindissimas flôres
humanas, que são para uma
tudo, e quasi
tudo para o coração instinctivamente maternal
da outra,―nem sabem o bem que me fizeram
n'uma d'estas crises absurdas que só os nervosos
conhecem e das quaes o mundo estupidamente
ri!
Foi ahi sobretudo que eu, curada d'aquella
violenta nostalgia que ameaçava inutilisar inteiramente
o resultado moral da minha viagem,
reaprendi a gosar Paris,
não já o meu
Paris ideal, especie de babylonia construida
[20]
em nuvens, mas o Paris verdadeiro, o Paris
real, tal como elle lentamente me foi sendo
revelado pelo intelligente
cicerone
que eu tive
a fortuna de ter no meu divagar de
touriste.
III
Folheio ao acaso as notas escriptas a correr,
na rapidez da minha viagem, e
transcrevo-as para aqui, na sua sinceridade
frisante.
É, de resto, o unico merito que hoje podem
ter as notas de viagem, o temperamento pessoal
do artista que
viu,
através das impressões
que a sua visão lhe deu. Mais nada. Tudo está
dito, e não ha quem acorde uma emoção
nova,
na alma do leitor
blasé
pelo conhecimento da
obra dos grandes artistas que viajaram. O proprio
Bourget, que é um mestre, cujo unico
defeito é ter vindo um pouco tarde, depois de
muitos outros, está reduzido a chamar
Sensações
de Italia ao seu livro encantador de viagem
na terra classica da Arte. As sensações
[22]
que a Italia lhe deu a elle, eis unicamente o
que o delicado escriptor se atreve a contar,
certo de que toda a essencia de poesia que
d'esse maravilhoso e fecundo solo se pode extrahir,
outros a extrahiram antes d'elle por lá
ter passado.
A minha unica desculpa vem a ser esta:
costumada a contar n'este mesmo logar as impressões
colhidas na leitura dos livros, porque
me não atreverei a completar, a ampliar, a
desenvolver essas impressões
livrescas com outras
colhidas em diversos ramos de arte; mais
directas, mais reaes?...
―Acabo de sahir do Louvre, onde fui visitar
as galerias da esculptura e principalmente essa
sala entre todas privilegiada e bemdita, onde a
Venus victoriosa, a Venus de Milo,
esplende
na sua sagrada formosura.
Chamava-me de longe, como um sortilegio
poderoso exercido pelo Bello, essa figura que
eu tinha mil vezes visto em reproducções, em
estampas, em photographias, que me tinham
dito ser a suprema divinisação do corpo feminino,
e que eu ia pela primeira vez contemplar
na sua genuina pureza marmorea.
[23]
A minha impressão, comquanto profunda,
tem o seu quê de incerto e duvidoso. Porque?
Será porque a Venus não realisou o sonho que
eu fizera da perfeição ideal dos seus contornos
e das suas linhas? Não. Ella é realmente a
belleza augusta, sobrehumana, ideal, como a
proclamam unanimes os que a tem visto e julgado.
Mas é que eu não tenho em mim enraizado
como uma religião da infancia, fazendo corpo
com as minhas crenças, idéas e sentimentos,
esse culto da belleza physica que foi a feição
primacial da civilisação dos gregos.
Para mim um
corpo divino
é uma expressão
litteraria, não é um dogma de esthetica
instinctiva.
Por isso, através da bella estatua procuro
adivinhar, nas suas linhas mais geraes, a extincta
civilisação que ella representa, de que
ella é como que o remate e a flôr!
Como Taine diz tão bem, «todas as grandes
cousas um pouco remotas correspondem a sentimentos
que já não temos.»
Precisamos de os reconstruir pela reflexão;
e como ainda os menos profundamente instruidos
têem uma educação cosmopolita e
multipla,
[24]
em que umas poucas de concepções de arte se
ajustam e sobrepõem, como nós temos, adquirida
laboriosamente, ou bebida no ar que respiramos
e nas rapidas leituras que fazemos,
uma noção, profunda ou elementar, de cada
uma das civilisações que antecederam a nossa,
acabamos depois de algum tempo de meditação
por comprehender, com o espirito, não com a
alma, o sentimento que inspirou a obra de arte
que estamos contemplando um pouco inintelligentemente.
O
snobismo artistico consiste em
fingir que
se entende tudo á primeira vista, mesmo as
cousas mais avêssas ao nosso temperamento
individual ou nacional. Evitar esse
snobismo a
todo o custo, deve ser o decidido empenho de
qualquer espirito honesto e sincero.
A Venus é, mesmo para o simples profano,
uma esplendida revelação de arte? É,
de certo.
Não póde um corpo feminino ondular em
linhas mais puras, não póde a branca
flôr do
marmore palpitar com mais intensa vida.
Pela graça magestosa da sua mutilada attitude
(que fazia ella quando tinha os seus divinos
braços, perguntam debalde os criticos especiaes
da arte grega!), pela serenidade ineffavel
[25]
da sua posição, pela harmonia absoluta das
suas linhas esculpturaes, pelo rythmo inspirador
do seu corpo marmoreo,―a Venus de
Milo, brotada do cinzel de desconhecido artista,
na hora mais feliz da arte da Grecia, logo depois
de Phidias lhe haver imprimido o sello
supremo de sua grandeza, antes do escopro de
Praxiteles a haver impregnado de uma languida
graça voluptuosa, de um sensualismo
requintado e enervante, que decahe mais tarde
na imitação anti-esthetica da Natureza, nos
realismos da polychromia, na extincção final
do gosto e do puro ideal artistico: a Venus de
Milo merece ser considerada, como diz Paulo
de Saint Victor, aquella Eterna Belleza que
Platão adorava, a
Venus
victrix cujo nome
Cesar dava por senha aos seus soldados na vespera
de Pharsalia, e em todo o caso a mais bella
interpretação, que os modernos possuem d'esse
feminino eterno que a Grecia tanto amou, que
no mundo historico ella foi a primeira a amar,
e cujo culto poetico e sensual traduziu nos seus
mythos divinos, nos seus ritos magnificos, na
sua arte incomparavel...
Comtudo, nós sómente possuimos truncados
restos, fragmentos secundarios da esculptura
[26]
grega e não somos capazes, senão por
dilettantismo
e por curiosidade intellectual, de
comprehender bem o culto apaixonado que ao
corpo humano foi consagrado pela Grecia.
É necessario avistar ao menos de longe essa
raça simples, viril, intelligente e bella, que foi
de todas as raças a unica que poz a sua
concepção
da felicidade humana em perfeito accordo
com a sua concepção das leis do Universo,
que á realisação positiva de todos os
seus
instinctos chamou Virtude, e á
encarnação de
todos os impulsos naturalistas deu o nome de
deuses; que tendeu ao aperfeiçoamento, e ao
desenvolvimento pleno da natureza humana na
sua constituição politica, no seu organismo
social,
nos seus costumes, na sua arte, na sua
religião; que fez deuses á similhança
dos homens
para os poder amar, e que, chegada ao
ponto culminante da sua perfeição artistica,
esculpiu
homens á similhança de deuses para
lhes render culto...
Que nos importa hoje, a não ser como exercicio
d'arte, a belleza ideal de um corpo de homem
ou de um corpo de mulher?
Para nós a belleza tem outras regras bem
mais complicadas, bem mais subtis, e tão difficil
[27]
nos é conceber um corpo sem defeito,
movendo-se na plena graça e na plena liberdade
da sua harmonia muscular, como seria á
Grecia conceber o nosso moderno ideal do bello,
todo em expressão, com a alma atormentada
e complexa que se revela principalmente
através do gesto, através do olhar,
através da
physionomia ardente e devastada...
Para a Grecia, porém, habituada a realisar
a perfeição, não sómente no
marmore, que
isso veiu mais tarde como complemento e como
resultado, senão na propria carne humana, e
que seguia todos os processos pelos quaes uma
raça de homens se desenvolve, se robustece, se
apura, se requinta, até poder attingir a belleza
suprema: que empregava não só a
eliminação
systematica de todos os productos defeituosos,
não só o cruzamento forçado dos fortes
e das
bellas, mas tambem os exercicios permanentes
da força, e da graça robusta e livre, nos
jogos do gymnasio, na orchestrica, nas dansas
guerreiras ou sacerdotaes, na educação,
emfim, do corpo levada ás mais minuciosas
praticas que podem depurar-lhe as formas e
desenvolver-lhe as latentes energias―para a
Grecia a belleza physica é mais que uma virtude,
[28]
é uma condição absoluta da vida
nacional.
Sem belleza, isto é, sem harmonia, não ha
força; sem força como é que a pequena
Grecia
venceria a poderosa Persia? Como é que ella
chegaria a ser o nucleo de extraordinaria
civilisação,
de que ainda hoje, apesar de trinta seculos
de mutilações continuas, a nossa alma se
alimenta, nutre e revigora?
IV
Mas quem nos diz a nós que a Venus de
Milo, objecto de uma ardente e justa
admiração entre os modernos, não fosse
no fim de contas uma estatua vulgar no seu
tempo?
Os grandes esculptores gregos, aquelles cuja
chronologia e cuja historia chegaram até nós,
descobertas pela paciente erudição, em alguns
fragmentos de Plinio, de Pausanias, de Cicero,
de Quintiliano, não faziam as suas obras
mais preciosas senão em ouro, em prata, em
marfim, em materias firmes bem mais raras
que o paros e o pentelico, de que hoje se guardam
nos museus os torsos mutilados, os fragmentos
soltos, as reconstituidas estatuas.
[30]
Ao pé do que se sumiu d'essa sublime estatuaria
grega, flôr suprema d'aquella
civilisação
de athletas, de gymnastas, de oradores e de
heróes, quantas attitudes para a
«esculptura»!
O que resta vale bem pouco, e representa apenas
como documento de uma éra extincta.
Mas pelo que resta, nós sabemos que o corpo
bello, viril, robusto e são, movendo-se livremente
sob a claridade azul de um céo sem
manchas, era o ideal artistico d'esse povo que,
mais feliz que nenhum outro, traduziu integro
e immaculado o seu sonho da vida, e―para
quem é a vida, mais que um sonho?―na religião,
na arte, na poesia, nas paginas luminosas
de Homero, Eschylo e Platão, na fórma
sublime da sua Acropole, ante a qual Renan
soltou aquelle melancolico e sublime grito de
amor, nas frisas e estatuas dos seus templos,
nas ceremonias divinas e inspirativas do seu
culto, que ora são castas como a longa procissão
das Panatheneas, ora são soberbas de
força e de pujança animal como as dansas e os
jogos de ephebos nús...
A Grecia amou a sobriedade, a correcção, a
graça e a força.
E depois de percorrer um periodo longo e o
[31]
progressivo da iniciação, chegou ao ponto de
combinar e fundir os extremos mais oppostos
n'aquella completa harmonia, que só uma vez
se realisou na terra e que não torna mais!
Que importa, porém, que não torne?
Bastou que apparecesse uma vez, que brilhasse
sobre nós, astro longinquo e puro hoje
apagado e de que ainda vêmos o reflexo calmo,
para que o mundo ficasse eternamente ungido
d'aquella graça mysteriosa, d'aquelle divino
atticismo que em alguns raros
eleitos resplandece
e de que todos temos o presentimento, a
sêde, ou a avidez!
Por isso Renan, a alma mais accessivel á
influencia do bello de que talvez possa ufanar-se
o nosso tempo, dizia no alto da
Acropole
estas palavras que traduzem um sentir universal
que até alli não achára
expressão condigna:
―«Ó Natureza impeccavel! Oh! simples e
verdadeira Belleza! Deusa cujo culto significa
sabedoria e razão! oh! tu cujo templo é uma
lição eterna de sinceridade e consciencia! chego
bem tarde aos umbraes dos teus mysterios;
venho ao teu altar cheio de remorsos!
Para
te encontrar, que infinito esforço eu fiz!
[32]
«A iniciação que, n'um sorriso, davas
ao atheniense
na primeira infancia, só á força de
reflexões
e de esforços eu pôde conquistal-a!
«Tu só és moça! tu
só és pura! tu só és
sã!
tu só és invencivel!»
Um outro critico profundo, que estudou a
Grecia com o amor com que se estuda a
civilisação-mãe,
de que todas mais ou menos
dependeram depois, diz que no caracter nacional
d'essa raça se discriminam claramente os
tres traços fundamentaes que constituem a intelligencia
de um artista.
Estes tres traços são a
delicadeza da
percepção,
a
necessidade absoluta da clareza e
o
amor e culto da vida presente.
O primeiro d'esses traços permittiu-lhes perceber
as relações secretas das cousas, deu-lhes
o sentimento fino e raro das
nuances, e a suprema
aptidão para construirem conjunctos de
fórmas, de seres e de côres,
combinações de
circumstancias e de elementos tão bem ligados
entre si e por tão estreita identidade de
relações,
que a sua creação de arte foi tão
viva
que excedeu no mundo imaginario a harmonia
preestabelecida no mundo real e verdadeiro.
Ao segundo deveram o sentimento da proporção
[33]
que possuiram como nenhum outro
povo, o odio ao vago e ao abstracto, o desdem
pelo monstruoso e pelo enorme,―que é a marca
distinctiva do Oriente, do qual elles só aproveitaram
o bom,―o gosto dos contornos firmes
e precisos.
O amor e o
culto da vida presente
bem o revelaram na sua religião sem mysterio
e sem
au delá, na sua
paixão pela belleza
plastica, na sua sêde de serenidade e de alegria,
no seu antagonismo ingenito com a doença,
com as miserias physicas ou moraes, no
seu encantamento absoluto, e que é para nós
immoral mas que para elles o não era, deante
do corpo nú, representação suprema da
força,
da graça, da saude e da belleza...
Uma raça tão maravilhosamente dotada,
idealista e positiva a um tempo, tinha por
força de traduzir-se no esplendor das artes
plasticas.
O espectaculo permanente dos bellos corpos
nús, ou envoltos lassamente na elegante e longa
tunica que na altura do joelho se duplica e
cahe sobre os pés em pregas esculpturaes de
inimitavel graça, a contemplação
habitual d'essa
raça que se distingue pela nobreza simples
das attitudes, pela perfeição athletica da
fórma,
[34]
pela serenidade do aspecto que as nossas mesquinhas
ambições ou o nosso devastador pensamento
não tinham convulsionado,―tudo devia
naturalmente produzir, pelo pendor imitativo
que caracterisa o espirito do homem, a
maravilhosa floração de artistas sublimes que
ao principio tentaram e depois conseguiram
libertar a noção do bello da estreita
prisão que
o cingia e apertava, fixar no marmore, no
ouro, no marfim e no bronze a soberba visão
da força militante ou graça ingenua e pura!
Como é interessante seguir a evolução
da
arte grega desde o ponto em que ella parece
ainda pedir á inspiração hieratica do
Egypto
o molde incorrecto que a liga e mumifica, até
a hora em que Praxiteles arranca do marmore
a sua Venus de Gnido, de que a Anthologia
canta assim a voluptuosa formosura:
«Cythera trazida pelas ondas foi a Gnido
admirar a propria imagem, e após longa
contemplação
falou d'est'arte: Onde é que Praxiteles
me viu sem véos?... Não, Praxiteles
não ousou
violar-te com olhar sacrilego. O que elle fez
foi representar-te com o cinzel qual te havia
sonhado!»
Ao principio, a architectura e a estatuaria,
[35]
estreitamente unidas, pareciam identificadas e
inseparaveis; mas quando a estatuaria se emancipou,
não foram sómente as frisas e os baixos
relevos dos templos, as colossaes effigies da
«cella» interior, que captivaram e deslumbraram
o olhar do povo grego, foram as soberbas
figuras erguidas ao ar livre, a Athenêa colossal
de Phidias, a Sosandra de Kalamis, as
mulheres de Carya, a Artémis divina em volta
de cuja estatua as virgens da Lacedemonia
vêm tecer annualmente as suas dansas rituaes!
Desappareceu o ingenuo symbolismo primitivo,
que representava cada divindade com os
attributos do seu poder, ou com os accessorios
significativos das transformações naturaes de
que ellas todas eram a concreta imagem; agora
o que se revela ao fanatismo de belleza que
palpita na alma grega, são divinos corpos de
mulheres em toda a magnifica pujança da sua
belleza creadora, em toda a graça adoravel da
sua feminina poesia.
V
A estatua deante da qual eu acabo de
passar algum tempo, pedindo-lhe o segredo
do perdido Ideal que ella traduz,
representa, como eu já disse, esse momento
fugitivo e bello da vida grega.
Esculpiu-a um desconhecido artista: mas
não são totalmente desconhecidos tambem para
nós, os pobres oleiros que amassaram e modelaram
as lindas estatuas encontradas nos
tumulos de Tanagra e não são tambem ellas
a poesia, o encanto, o velado mysterio, a ineffavel
graça?
Falando d'ella, diz Paulo de Saint Victor:
«Oh! bemdito seja o camponez grego, cuja
enxada exhumou a deusa enterrada ha dois
mil annos em uma leiva de trigo!... Graças
[37]
a elle, a idéa do Bello ascendeu mais um gráu
sublime, o mundo plastico encontrou a sua
Rainha!... A belleza ondula d'essa cabeça
divina e espraia-se em todo o corpo como
uma luz!... Só a lingua de Homero e de Sophocles
seria digna de celebrar tão regia Venus!
Sómente a amplidão do rythmo hellenico
poderia moldar, sem deslustral-as, fórmas tão
perfeitas!
«Por que palavras exprimir a magestade
d'esse marmore triplamente sagrado, a attracção
mesclada de assombro que elle inspira, o
ideal supremo e ingenuo que revela?»
E Theophile Gauthier, descrevendo-a, diz
assim:
«A fronte soberba, de linhas curvas, cingida
pelas
bandelettes do penteado,
é tal qual
a podiamos sonhar para séde de uma alma
divina; o collo direito e firme lembra o fuste
de uma columna dorica, o seio de virgindade
eterna é digno de servir de modelo, como o
de Helena, para a taça dos altares!»
E, no emtanto, essa bella e pequenina cabeça,
que uma graça ideal nimba eternamente,
não é tal como elle diz, séde
de uma alma
divina. A Venus de Milo não pensa.
N'aquella
[38]
branca flôr marmorea uma alma vegetativa
sonha e dorme! Que sabe ella da Vida e das
suas longas tragedias, que sulcam de rugas
profundas a fronte pallida das mulheres, que
contorcem em ancias, indomitas como o Oceano,
a alma dos homens?
Quem lhe revelou, a ella, o segredo das
nossas paixões que devastam, das nossas luctas
que ou disvirilisam ou depravam, das
contradicções medonhas de que
erriçamos o
nosso cruel destino, dos abysmos que abrimos
debaixo dos nossos cançados pés? Que
presentimento
sequer tem ella―a deusa inalteravel
e serena―de tudo que a engenhosa imaginação
dos que vieram depois―deuses e homens―inventou
para se torturarem e nos
torturarem?
Os dois mil annos que temos a pesar-nos
sobre a cabeça e sobre o peito, passou-os ella
ignorante e tranquilla sob a terra da Grecia.
O que ella representa é um momento risonho
e curto da existencia humana; um momento
em que tudo é bello e harmonioso na
terra e no céo, em que, para imitar os deuses
que crearam, os homens não precisam de
deixar mutilar as suas energias mais vivas, os
[39]
seus instinctos mais naturaes; um momento
em que o amor é sagrado e puro como a
fonte inexgotavel dos sêres, e como tal tem
culto e tem altares; um momento em que a
Natureza é benevola e sã, e em que da espuma
dos mares da Jonia póde brotar a flôr maravilhosa
da eterna belleza, em que a inconstancia
das ondas, a perfida doçura das sereias,
o abysmo glauco, que tem no fundo grutas de
esmeralda collaboram em uma obra divina e
produzem um symbolo immortal...
Que differença d'essa concepção
propria á
esculptura antiga e a nossa de hoje, tão fundamentalmente
opposta nos fins e nos processos!
E no emtanto a estatuaria franceza representa
no seculo XIX um momento glorioso da
historia da arte! Mas desenganem-se. Póde a
estatuaria franceza moderna revelar um grande
talento da parte de quatro ou cinco ou
mesmo mais individuos; não é, não pode
já
[40]
ser uma necessidade, uma aspiração da
raça,
universal e irreductivel!
É um esforço de talento individual,
não é
o rebento vigoroso e vivaz em que desabrocha
finalmente a alma de um povo!
Depois da minha visita incompleta, mas cheia
de interesse, ás galerias da antiguidade classica,
fui ao Luxemburgo vêr as estatuas francezas
modernas, e procurei, nos monumentos erguidos
aqui ou alli, á memoria de um artista
querido ou de uma gloria nacional, o sello, a
marca, pelos quaes uma arte revela as intimas
fibras de que é feita.
Vi corpos de mulher verdadeiramente encantadores!
O marmore, branco de mais, tinha
a fluidez da carne tenra sob a qual o sangue,
púrpura viva, circúla rico e livre, mas
pareceu-me
que a preoccupação da
expressão dominava
absolutamente os artistas e que elles tinham
quasi todos perdido o segredo em virtude
do qual um corpo humano, masculino ou
feminino, interessa por si só, pela harmonia
das suas proporções, pela liberdade com que
jogam os seus musculos, pelo rythmo mysterioso
de cada uma das suas linhas.
E voltei d'essa peregrinação artistica sempre
[41]
mais convencida, de que a esculptura é
talvez a mais bella das artes, mas a que está
em menos harmonia intima com o nosso ideal
da vida!
Que temos nós feito em um longo esforço
de dezenove seculos, apenas interrompido pelo
movimento artificial, erudito e artistico, mas
não popular da Renascença?
Temos contrariado pertinazmente a acção
da Natureza sobre os nossos gostos, instinctos
e paixões. O que é o christianismo na sua
essencia
philosophica e na sua influencia social?
Uma reacção violenta e permanente contra
essa noção pagã da existencia que
fazia d'ella
uma festa perenne e magnifica; que fazia do
corpo humano alguma cousa de sagrado e de
inviolavel, que tudo devia tender a satisfazer e a
servir; que fazia dos instinctos naturalistas da
nossa especie a lei suprema a que céo e terra
se subordinassem, pois que os deuses para serem
amados deviam ter e tinham as paixões
que hoje fazem os homens criminosos.
O animal humano era realmente então o rei
da creação, mas nenhuma das suas
forças enfraquecera
ou diminuira, nenhuma das suas
energias fôra mutilada, nenhum dos seus instinctos
[42]
domados, e elle movia-se livre, feliz,
triumphante e bello, em uma atmosphera de
apotheose, que nenhuma sombra vinha sinistramente
obumbrar.
A antiguidade grega não é uma orgia, porque
a orgia precisa de ter por fundo a consciencia
do peccado, e a Grecia em tudo que fez de
peccaminoso e de immoral aos nossos olhos,
não violou nenhuma lei divina, não foi de
encontro
a nenhum preceito dogmatico; pelo
contrario, obedecendo ao seu instincto, obedeceu
á sua religião.
D'esta harmonia entre a lei moral, que então
não existia senão rudimentar, e a realidade
physica, vem a sua immensa felicidade e o encanto
incomparavel da sua civilisação.
Para o christianismo, pelo contrario, o corpo
é o involucro, amaldiçoado as mais das
vezes, de paixões condemnaveis, de instinctos
que é necessario a todo o custo dominar, subjugar,
vencer.
Não é impunemente que a especie humana
tem vivido acurvada durante longos seculos a
este jugo incomportavel.
Resente-se d'elles até a revolta dos atheus.
Por isso a nossa concepção da belleza physica,
[43]
partindo de outras fontes mais profundas
e mais turvas, não podia ter nunca a incomparavel
claridade que tem o ideal grego. Os
esculptores, que conservam na sua alma o cunho
indelevel que alli tem imprimido a civilisação
christã, á belleza do corpo humano
prendem fatalmente considerações de ordem
complexa que não influenciaram a estatuaria
antiga.
As mulheres teem a attitude languida de peccadoras
nuas, a carne, que o marmore quer
fingir, e que tem d'ella ás vezes a flexibilidade,
a macieza, a vibratil poesia, tem tambem
palpitações
e solicitações voluptuosas que a grave
e simples belleza nunca deve suggerir aos que
a contemplam e que não suggeria aos contemporaneos
de Phidias!
Isto não quer dizer que desde a antiguidade
a esculptura seja uma arte morta. E seria
realmente sacrilego que tal avançasse, quem
viu curvada, em religioso assombro, a reproducção
fiel d'essa
Noite de Miguel Angelo,
de
uma tristeza tão tragica e sublime, e o grandioso
Moysés de biblica
magestade incomparavel,
e o
Penseroso, e o
San Jorge do Donatello,
cuja nobre attitude altiva faz passar um
[44]
calafrio de admiração pelos nervos ainda mais
resistentes.
Mas quer dizer que a estatuaria é hoje uma
arte destinada a satisfazer, não a alma collectiva
das multidões, mas o espirito culto dos
dilettanti e dos artistas; uma arte
em que o
genio individual póde manifestar-se sublimemente
e lá está a
Porta de
Bronze que Rodin
anda esculpindo que o diga, e lá estão os tumulos
de Barrias, e lá está o baixo relevo de
Rude, e lá estão as innumeras estatuas, os
innumeros
monumentos que enchem as praças e os
museus affirmando que a França d'este seculo
possue uma intensa vitalidade artistica que a
honra a deve encher de justo orgulho. O proprio
Falguière, um pouco amaneirado como é, e
dando ao marmore palpitações sensuaes e lubrica
languidez, lá tem no monumento erguido na
Escola das Bellas-Artes a Henri
Regnault
uma figura de mulher deliciosa e viva, que faz
estremecer de goso o verdadeiro artista, isto
para não fallarmos na sua formosa Diana por
quem consta que morreu de amor um pobre
hysterico, dos muitos que andam enchendo este
triste mundo com o espectaculo das suas perversões
morbidas!
[45]
A arte moderna, a que inspira a todas as almas
de hoje o mesmo spasmo de agonisante
prazer, é a musica. Essa sim, que é para
nós
o que a estatuaria pura, augusta e simples foi
para os athenienses, o que a architectura gothica
foi para as torturadas almas idealistas
da idade media, o que a pintura foi para os renascidos
pagãos da Renascença italiana, ébrios
de côr, de luz, de vida. Essa sim, que é de
nós
todos, e que nos faz vibrar, chorar, soffrer,
e nos consola e nos tortura, e nos arranca a
nós mesmos e nos leva ao Inferno e ao Céo.
VI
Visto que no outro capitulo fallei, não na
inferioridade o que seria um mal escolhido
termo, mas na differença que distingue
a estatuaria moderna da estatuaria antiga,
vou dizer alguma cousa a respeito de um dos
artistas mais palpitantemente
modernos, mais
caracteristicamente diversos dos antigos que
hoje possue a França e a quem de passagem
me referi nos meus anteriores artigos.
Este artista é Rodin. Os seus principios foram
rudes e difficilimos, como o de quasi todos
os verdadeiros artistas, quer dizer d'aquelles
que trazem comsigo um temperamento tão
accentuadamente independente e tão intransigentemente
pessoal, que desnorteia todas as
rotinas e revoluciona todas as estheticas estabelecidas
e todas as escolas triumphantes.
[47]
Hoje Rodin é, elle proprio, um triumphador.
Acceitam-lhe as suas audacias, proclamam-lhe
a altiva independencia artistica, chamam-lhe
um dos primeiros, senão o primeiro esculptor
do seculo.
Nem sempre comtudo succedeu assim.
Quando elle primeiro apresentou no
Salon
a sua figura denominada «L'áge
d'airain», que
hoje, comprada pelo Estado, se admira no Jardim
do Luxemburgo, a primeira impressão do
Jury, diante da escrupulosa exactidão de algumas
partes d'esse corpo energico, foi que o estatuario
o tinha modelado sobre um corpo vivo
e real.
Como se um tal excesso realista e anti-esthetico
não fosse a condemnação de um artista
e pudesse produzir outra cousa a não ser uma
obra morta logo á nascença.
Foi em 1877 que a figura da «Idade de bronze»
foi mandada ao
Salon. Em 1881 Rodin
expunha
o «S. João de bronze», «um
anachoreta
magro e robusto,
de musculatura
devastada e
solida, erguida sobre pés que a marcha endureceu,
torso nodoso, habituado a todas as intemperies,
com um gesto de prégador obstinado,
[48]
que levanta a face illuminada e aberta
dos mysticos e dos colericos.»
Até 1885 Rodin, que ao pé do «S.
João» expuzera
tambem a «Creação do homem»,
apresenta
na grande nave do Palacio da Industria
os bustos expressivos e magistraes de Jean
Paul Laurens, de Carrier-Belleuse, de Victor
Hugo, de Dalou, de Antonin Proust.
No emtanto o acontecimento magno que até
o presente domina a carreira artistica de Rodin
é a concepção e a
execução da «Porta»,
destinada ao «Museu das artes decorativas»,
á
qual me referi já n'estas mesmas notas.
Fiz, acompanhada do meu amavel
cicerone
o trajecto longo que leva ao «atelier» de Rodin.
Caminhámos pela rua da
Universidade, atravez
dos longos
boulevards e das largas
avenidas
que se entrecruzam ou correm parallelamente
nas proximidades dos Invalidos.
É uma rua aristocratica e socegada; tem
grandes palacetes e tem velhas arvores.
Outras vezes
surprehendem-nos
entre esses vestigios
de antigas grandezas, pequenas casas
graciosas com jardinsinhos á ingleza cuidados
e cheios de flores.
No fim, perto da odiosa torre Eiffel, escandalo
[49]
de mau gosto, americanismo revoltante
erguido em plena Athenas moderna,―a physionomia
d'esta rua placida e tranquilla modifica-se
bastante.
Grandes muralhas nuas, grandes tectos envidraçados,
mais altos do que as muralhas,
annunciam ao observador que entra n'um
bairro de esculptores e pintores.
Entrámos no n.º 182.
Transposta a grande porta, que lembra o
portão de uma das nossas quintas, achámo-nos
dentro de um cerrado bastante vasto, em que
o chão é musgoso e esverdinhado, em que ha
recantos de herva alta e viçosa, e por sobre os
muros do qual, verdes ramarias de arvores espreitam
curiosamente...
A dois passos do vertiginoso movimento de
Paris respira-se aqui uma paz profunda, uma
quasi solidão melancolica e doce.
Aqui e alli, enormissimos blocos de marmore
de fórmas diversissimas, de côr frigida e branca,
de arestas que brilham como aço ou como
vidro ao sol de abril, de veias azuladas em
que parece gyrar um mysterioso sangue...
Dormem na severa prisão cyclopica d'esses
blocos brutaes corpos airosos, leves, esbeltos
[50]
de nymphas florentinas, bustos delicados de
Eva adolescente, divinas nudezas de que esses
marmores são a primeira fórma rude,
fórmas
delicadas em que o genio do artista accenderá
uma chispa mysteriosa de vida immortal.
Que deliciosas figuras de mulher um cinzel
magistral arrancará d'essa massa dura e informe!
Como elle saberá flexibilisal-a em membros
de uma graça serpentina, arredondal-a em
braços que se abrem em uma curva deliciosa
e suggestiva, derramar, sobre niveas espaduas
nuas, a vaga fluida e revolta de uma cabelladura
crespa e magnifica, entreabrir em um
sorriso enygmatico finos labios femenis, allumiar
de ignota chamma o globo cavado de uns
olhos, desabrochar em molles curvas a flôr de
um seio virginal...
Todas estas visões de um mundo increado
nos são suggeridas pela vista d'esse campo
cheio de pedras enormes, que á tarde, na luz
rosea e violeta do crepusculo, parece―disse-nos
alguem―uma charneca semeada de gigantescos
tumulos...
Sobre esse armazem de pedra ao ar livre
abrem as portas baixas dos «ateliers» de
esculptores
[51]
que alli vieram buscar a commodidade
e a solidão. Um d'elles é o atelier de Rodin,
que eu ia visitar.
Infelizmente, foi trahida a minha anciosa espectativa.
O mestre não estava, e o discipulo,
que trabalha com elle,―um rapaz do Norte, de
immensa distincção de aspecto,―nem sequer
pôde mostrar-nos a esplendida
Porta, que estava
no compartimento fechado contiguo áquelle
em que nós entrámos, para admirar alguns grupos
de marmore, em que a poderosa
griffe
do
grande esculptor se imprimira profundamente.
O talento de Rodin é tão pessoal, é
tão inconfundivel
a sua maneira, que, depois de se
ter visto um corpo humano modelado por elle,
não tornamos a confundir este poderoso manejador
do cinzel com nenhum dos seus contemporaneos
celebres.
Discipulo de Barye e de Carrier-Belleuse, a
originalidade de Rodin destaca, comtudo, em
uma energia indominavel.
E original é ainda o assumpto que elle escolheu
[52]
para essa
Porta monumental, apesar
de
arrancado á Divina Comedia Dantesca. É uma
transformação da idéa do poeta,
não é uma copia
do seu pensamento, nem um reflexo exacto
da terrivel visão florentina.
Transcrevo de um critico eminente que fez
a analyse da obra do esculptor a descripção
d'essa
obra soberba, que eu tanto quizera ter
visto.
Mas, antes d'isso, o retrato do esculptor tal
como elle apparece, envolto no prestigio de
uma sympathia merecida, aos seus admiradores
que se contam por milhares.
Rodin é baixo, atarracado e placido de aspecto.
A barba loura cahe-lhe em ondas fartas por
sobre o peito, enquadrando um rosto friamente
espiritual, um d'estes rostos de homem que
valem principalmente pela luz interior que os
illumina, e que ora traduz a serenidade silenciosa
do trabalhador satisfeito com a sua obra,
ora a distracção absorvente do artista em lucta
com as difficuldades ingentes da execução
manual, ora a preoccupação dolorosa do
investigador
insaciavel em busca do novo e do
perfeito. A fronte de mystico, um pouco ogival
[53]
na fórma, é vasta bastante para conter um
cerebro potente de pensador e de poeta.
O olhar e a voz estão em harmonia absoluta;
olhar agudo, brilhante, que concentra em
si a luz; voz doce, intima, penetrante, que se
insinua, e onde um toque de causticidade põe
não sei que estranho realce...
Tal o artista de tenaz vontade, a quem a
estatuaria moderna, complicada e symbolica,
revela os seus segredos mais subtis.
Como typo representativo da arte moderna,
não o ha mais culto, mais philosophico, mais
apto para entender tudo e tudo realisar.
E porque elle é assim, absolutamente incompativel
com o simples ideal grego, é que
procurou no grande poeta da Idade Média o
assumpto da sua obra definitiva e magistral,
obra de metaphysico e de observador, ao
mesmo tempo que é obra de artista;
representação
tragica, complexa e soberbamente executada,
da Natureza e da Vida, em alguns dos
seus aspectos mais inquietadores.
VII
Tem seis metros de altura a famosa
Porta.
As estatuetas do alto, alguns grupos dos
paineis, e os baixos relevos inferiores estão
completos ou quasi completos, mas ha pela
vasta officina, espalhadas no chão, nos sofás,
nas cadeiras, em
ètagères,
estatuetas de todas
as dimensões, em todas as posturas incoherentes,
convulsas; de supplica, ou desespero, de
agonia ou de dôr, dando a impressão de um
campo de batalha em que os combatentes se
conservassem todos vivos, ou de um cemiterio
que houvesse resuscitado inteiro, em virtude de
qualquer galvanismo prodigioso...
O escriptor a que me estou referindo considera
[55]
esta multidão de estatuas um agrupamento
humano tão significativo, tão eloquente,
tão expressivo em cada uma das suas mil attitudes,
que só o apreciará quem o estudar individuo
por individuo, como se folheia um livro
pagina por pagina, como se lê uma partitura
nota por nota, como se analysa um corpo
fibra por fibra...
É a
Porta do Inferno,
quer dizer a agglomeração
n'um drama cheio de movimento e
de vida dos Instinctos, das Fatalidades, das
Paixões inclementes que no homem vivem intensamente,
dominando-lhe a vontade, vencendo-lhe
a razão, subjugando-lhe as resistencias,
dobrando-o sob a sua acção irreductivel,
fazendo d'elle o instrumento inconsciente de
uma força da natureza que a sua intelligencia
não comprehende, e que a sua virtude não
submette...
Sob o cinzel d'este artista genuinamente,
apaixonadamente, sentidamente
moderno que
é Rodin, o poema do vate gibelino não conservou
a côr local, nem tão pouco o colorido
catholico que o especialisa.
O esculptor despiu o seu symbolo de toda a
significação italiana e medievica, e
sómente
[56]
aproveitou a moldura que elle lhe prestava
para exprimir dentro d'ella os aspectos humanos
e universaes, que o tempo não transforma
e que o meio não pode alterar.
A
Porta ainda está por
concluir; sómente o
enquadramento do poema esculpido se póde
julgar executado e completo.
As divisões principaes, todavia, já podem ser
imaginadas.
Começando pela parte inferior da
Porta vê
se que os baixos-relevos por sobre os quaes
se vae erguer a composição principal,
têem nos
paineis centraes mascaras inolvidaveis, contrahidas
por todas as expressões da Eterna Dôr.
Corre em doida grinalda viva, em roda d'essas
physionomias atormentadas, uma dança vertiginosa
de mulheres, de satyros e de centauros.
Pelos dois humbraes da Porta, sobe uma
theoria de figuras apertadas no
estreito espaço,
alongadas, fluidas, em alto relevo parcial.
São as doces apaixonadas, as criminosas felizes
da paixão illicita, os amantes que a mesma
angustia entrelaça, e as velhas, que já perderam
o que tinham de humano, e as creanças inconscientes,
nascidas de pouco tempo e já marcadas
[57]
pela garra adunca da Vida, tentando em
vão prescrutar com os seus olhinhos cegos o
limbo incolor onde os membros rachiticos se
lhes agitam convulsamente.
No alto, sobre o frontão ha tres homens que
são a representação viva do distico
dantesco:
Lasciate ogni speranza. Inclinam-se
uns sobre
os outros na attitude da desolação inconsolada.
Apontam com os braços extendidos para
um ponto ignoto, a região do irreparavel,
do horrendamente irreparavel.
Por debaixo d'elles á frente das multidões
movediças, que constituem o primeiro circulo
do inferno, um poeta nú, sem nenhum dos distinctivos
que marcam uma época ou uma nacionalidade,
medita, mas em uma postura de
repouso.
Os membros fortes são feitos para as longas
caminhadas e para as luctas asperrimas,
o
rosto inquieto e intrepido, que se crispa na
obsessão de uma idéa fixa, reflecte e repercuta
a piedade, a indignação, a tristeza, todas as
sensações que excitam o pensador até
ao enthusiasmo,
e o commovem até á
lamentação
dolorida e tragica.
Aos pés d'elle, sob o seu triste olhar meditativo
[58]
passa em turbilhão vertiginoso, cahe no
espaço vasio, ou rasteja dolorosamente a humanidade
inteira, na sua teima feroz de viver,
de viver atravez da lucta dilacerante, de viver
despedaçada, torturada, sangrenta, com espasmos
violentos de gozo que fazem soffrer
mais do que as dôres, com agonias d'alma que
lembram arroubamentos de extase!..
Extraordinaria a concepção do Mestre! Dizem
que esses esboços, esses estudos, essas
realisações plasticas bastam para provar a
tenacidade
de trabalho do obreiro maravilhoso,
a actividade genial de um creador de seres
vivos!
Cada figura isolada, cada grupo freneticamente
enlaçado, cada representação de uma
das mil paixões que cingem nos seus tentaculos
de polvo o corpo fragil e a alma dolorida
da pobre humanidade, affirma victoriosamente
não só a destreza magistral do estatuario, como
tambem a ardente visão do poeta e a comprehensão
soberba do pensador.
Ha entre centenas de outros, cuja descripção
acabo de ler enlevada, com pena inconsolavel
de os não ter chegado a vêr com os meus proprios
olhos, um que bastaria, segundo a mais
[59]
exigente critica assegura, para confirmar a
grandeza de concepção, a força
tranquilla e
a doçura melancholica d'este grande artista,
que em fórmas asperas, atormentadas, sem a
molleza amaneirada de que hoje a estatuaria
reveste o corpo humano,―soube encerrar e traduzir
o infinito das tormentas moraes e a variedade
horrorisante das dôres physicas.
Esse grupo é o de
Francesca e
Paolo, ou
antes, tão supprimidas estão todas as
condições
do tempo e do logar, tanto escrupulo houve da
parte do artista em conservar os caracteres geraes
e puramente humanos, este grupo é o do
amante e da amante, quer dizer do Amor.
Do Amor, não como a Grecia o pintou nos
seus mythos risonhos, mas do Amor ardente,
apaixonado, cruciante e doloroso, cruel e divino,
prodigo em extasis e em torturas, em
espasmos e em lagrimas, tal como a morbida
imaginação de hoje o concebeu e creou!...
O homem é alto e forte, esbelto e flexivel.
A mulher, em pleno desabrochar da puberdade,
está sentada com tal ligeireza e tal meiguice
sobre o seu joelho esquerdo, que parece
pesar apenas o que pesaria uma ave.
A mesma doçura de contacto é perceptivel
[60]
aos sentidos no gesto com que elle, fazendo
do braço um collar quente e caricioso, a prende
a si, emquanto que a outra mão lhe toca
no corpo com delicada ternura... Essa mão
forte e musculosa, feita para se imprimir pesadamente
nas cousas, tem a leveza divina do
contacto de uma flôr.
O abandono da amante é completo. Enlaça-o
como uma liana, enrola-se n'elle com um
carinho em que ha a gratidão do amor feliz
e a avidez insaciavel de caricias; e com a mão
que lhe fica livre d'este abraço apaixonado toca
femenilmente nos cabellos com um geito
feito de timidez e de graça pueril.
A cabeça do homem inclina-se, a cabecinha
da mulher ergue-se para elle e as duas boccas
encontram-se em um beijo que é como que
a união mystica de dois seres!
A extraordinaria magia d'esse beijo consiste
n'isto: é um beijo visivel! Visivel na impressão
violenta que contorce em uma attitude de
sedenta adoração o corpo do homem; visivel
no arroubamento da mulher todo ardor e todo
graça!
É triste e deliciosa essa
representação sublime
e symbolica do amor humano. Envolve-a
[61]
como que o nimbo da tristeza que envolve aos
nossos olhos tudo que é bello, intenso de vida
e condemnado á morte!...
Como vêm, a inspiração de Rodin
participa
do que mais agudo tem a observação da vida
real, da vida verdadeira em todas as suas
manifestações
e fórmas physicas, e de tudo que
mais alto e subtil tem a poesia das cousas e
que d'ellas se destaca como um perfume inebriante,
capitoso e perturbador!
O que elle principalmente traduz é o amor
nas suas infinitas modalidades tragicas ou divinamente
bellas...
O amor dos nervos, o amor da carne e o
amor da alma entrelaçados e produzindo esse
mixto doloroso, que embriaga como um filtro,
que corróe como um veneno, que contrahe
como uma convulsão, que entontece os sentidos
e dá ao coração as
revelações da infinita
Dôr!
D'entre os criminosos de Dante, elle escolheu
para os modelar pela sua mão genial de grande
artista pensador, os criminosos que o amor
subverteu no abysmo infernal.
Elles exprimem o cançasso devastador da
saciedade que já nada espera; o phrenezi do
[62]
extase que nada satisfaz; a ternura desbordante
que a morte ha de breve estancar; as fadigas
as aspirações, os sonhos morbidos, as angustias
e as melancholias que essa paixão entre
todas omnipotente inflinge aos seus condemnados
escravos.
O amor que Schopenhauer descreve como a astucia
suprema da Natureza que se recusa a morrer,
e que a maior parte das vezes não passa de
um arrebatamento ephemero, de uma illusão
rapida e momentanea; o amor que é a impossivel
aspiração que leva dois seres a quererem
formar essa Unidade mysteriosa que seria o
supremo triumpho da Vida sobre a
Dôr,―aspiração
que remata no tragico desengano e na
fallencia absoluta do Ideal sonhado, pois que
nunca uma alma consegue penetrar absolutamente
outra alma, nunca dois entes estranhos
conseguem ser apenas um
ser unico, e
não ha
agonia mais tragica do que esse luctar angustioso
para alcançar um impossivel bem,―o amor
tal como á triste lucidez dos nossos dias elle
apparece, doloroso, violento e cheio de ardentes
lagrimas: eis a inspiração, senão
unica,
principal do grande traductor plastico da sombria
epopéa dantesca!
[63]
Como é triste, como representa bem o
Terror
sentido perante as duras revelações da Vida,
a sua Eva admiravel que, levantando os
dois braços em um gesto de espavorida angustia,
e como que esmagando com elles os seios
tumidos da humanidade futura, tapa com as
mãos entrelaçadas os olhos que tanta miseria
têm de ver ainda na terra...
É triste, soberba e bella, rica sobretudo de
maravilhosas interpretações a
concepção que
Rodin fórma da estatuaria moderna. E por elle
ser, d'entre os esculptores modernos, o que
mais frisantemente e voluntariamente se afasta
do ideal da Antiguidade, é que eu, em face
da Venus de Milo radiosa, tranquilla, serena
e pura, quiz levantar deante dos olhos do leitor
um esboço ao menos rude e tosco embora,
d'essa tragica
Porta do Inferno,
pela qual o
esculptor nos faz penetrar na gehenna das loucas
paixões insaciadas, que erguem na sombra
o seu brado ululante de intraduzivel dôr...
VIII
Quando a gente de longe evoca a grande
cidade do luxo, da vida intelligente, da
industria genial, pensa em tudo menos
na belleza ideal das suas arvores. A mim, vejam
que estranha cousa!―foi isso que positivamente
me deslumbrou.
O arvoredo em Paris, nos arredores de Paris,
nos jardins, nos parques, nos bosques de
Paris, é verdadeiramente delicioso e de um
encanto incomparavel e unico.
N'aquella fornalha tudo parece possivel menos
o permanente idyllio que as arvores representam,
pois nem Cintra, essa orgia de verdura,
me consolou tanto a alma a este respeito
[65]
como Paris. Vê-se que o culto da arvore,
a paixão da Natureza, vive em um canto do
coração d'esse pagão extra-civilisado,
que se
chama o parisiense. E depois será realmente
extra-civilisado como nós julgamos o parisiense
genuino? Não haverá n'essa immensa cidade
cosmopolita, a par de uma minoria pequena
de artistas de talento, uma incontestavel multidão
de almas ingenuas que representam de
boa fé toda a especie de comedia, desde o scepticismo
à outrance,
até ao chauvinismo á
Boulanger? Será verdade o que dizem d'elle
os que o pintaram com uma amargura tão
acre, F. Flaubert e Balzac, por exemplo?
Como quer que seja, sceptico ou sentimental,
o parisiense adora as arvores, as flores,
a natureza em todo o seu idyllico e sereno encanto.
Um passeio ao domingo, em Auteuil, em
Saint Cloud, em Neuilly, nas avenidas do Bois,
bastaria para nos esclarecer a tal respeito. É
que tambem alli as arvores são incomparaveis.
Ha alamedas longas e deliciosas, em que o
arvoredo de um verde um pouco ruço se recorta
no azul levemente grisalho do céo! Ha
longe verduras em Auteuil, por exemplo, que
[66]
dão vontade de chorar, que penetram a alma
de uma saudade doce e amarga a um tempo,
a saudade que Adão teve de certo do Paraiso,
de onde foi expulso! Os horisontes desdobram-se
tão longos, tão calmos! Quem dirá
que alli, a dois passos, se desenrola a multipla
fita dos
boulevards, onde a febre da
vida
é tão tentadora e tão intensa! Auteuil
parece
ser o fim do mundo, tão sereno e vagamente
adormecido é o seu aspecto, tão ineffavel
bucolismo
se exhala da sua tranquilla paizagem.
Para cada lado que lancemos os olhos, se abrem
larguissimas avenidas ao lado de
arvoredos,
com uns fundos longiquos, em que ha toda a
especie de cambiantes.
O ceu de um azul muito lavado, em que parece
ter-se extendido um véu diaphano de vapor,
é bem differente do meu céu portuguez
de uma côr tão quente, ás vezes
deslumbradora
e excessiva! A agua parece crystallina,
ou sombreada de verde, de uma transparencia
deliciosa ou de uma côr glauca, atravéz
das rendas do arvoredo, movediças e multicôres.
Abril tudo em flor, atira em flocos a sua
neve perfumada aos troncos ha pouco despidos;
[67]
os castanheiros agitam os seus pennachos
brancos; os lilazes saturam a atmosphera
do seu cheiro estonteador; ha uma expansão
risonha n'este paraiso artificial creado pelo homem,
que se não encontra infelizmente nos
nossos paizes do Sul, onde o solo é tão fecundo,
onde a Natureza um pouco acariciada
e auxiliada se desentranharia em maravilhas
de producção!
A nós basta-nos o sol ardente e a vida brutal
de que as cousas palpitam no nosso verão
africano; não sabemos pelo trabalho incessante,
intelligente e methodico crear estes paraisos,
onde repousa depois ineffavelmente a
frenetica actividade do homem do Norte.
A mim, filha de um paiz accidentado, esta
paizagem plena, em que as alamedas se desdobram
lentas, magestosas
à perte de
vue,
faz-me uma impressão de deliciosa calmaria.
Não me canso de olhar para as arvores, as
formosas arvores, enormes, colossaes, de um
verde tenro, de um verde ruço, de um verde
mauve, de todas as
gradações imaginaveis do
verde, e em que a nota do verde esmeralda,
mais rara, apparece de vez em quando como
uma estridula fanfarra de côr.
[68]
Do alto da torre de Eiffel, Paris apparece
todo entrecortado de manchas negras de
arvoredo―«Não
ha cidade com mais arvores»,
digo eu verdadeiramente abysmada ao meu
companheiro e
cicerone que me
responde:―«Londres
ainda tem mais!»
Só nós portuguezes, com uma terra maravilhosa,
um céu esplendido, um clima em que
a flora de todas as zonas egualmente se domestica,
somos incapazes pela nossa inercia
proverbial de ter esta abundancia adoravel de
arvoredo, de verdura massiça em torno de nós!
As alamedas de Saint Cloud, com os cimos
verdes entrelaçados, formando a abobada sobre
a cabeça dos transeuntes, pareceriam um bocadinho
de floresta selvagem, se não fosse a
invasão da burguezia e do povo vestido de
gala que ao domingo positivamente as inunda
e banalisa, tirando ao sonhador que alli foi
acariciar a sua chimera intima todo o gozo
que elle podia beber na solidão.
Quando de Saint Cloud, por uma tarde serena
e dôce e luminosa de Abril, se regressa
a Paris, como eu regressei, pelo caminho ao
longo do Sena, entre o renque fino e tenro
[69]
dos choupos que se debruçam nas aguas do
rio, e os
chalets e os palacetes que
espreitam
do outro lado da estrada do meio dos jardins
coalhados de lilazes e de rosaes em flôr, não
ha coração por mais secco e positivo que resista
ao encanto embalador d'este passeio.
Surprehende-se uma pessoa a ser moça outra
vez, moça e romanesca e a arranjar na phantasia
uma existencia que quereria ter vivido
alli, n'aquella paz tão proxima da infinda
agitação,
n'aquelle ermo tão chegado ao borburinho
de uma vida em festa.
Deve ser bom viver e sonhar alli, perto do
mundo e tão longe d'elle, a minutos de distancia
do
boulevard da Yvette Guilbert, a
deusa
da
chansonnette moderna, da
Comedie e da
sua classica e correcta interpretação da arte,
do
Chat Noir e da sua phantasia
revoltada, e
ao mesmo tempo tão longe de tudo isto, no
silencio do arvoredo em flôr, na serenidade
pantheista da dormente e calma Natureza, no
seio inebriante dos lilazes e das rosas que estillam
voluptuosa lethargia de cada petala da
sua flôr avelludada e tenra...
A vida para certos organismos de eleição
só
[70]
se comprehende n'estes dois pólos contrarios.
Ou tudo que a civilisação tem de mais
quintessencial
e de mais extremo, ou tudo que a
natureza tem de mais calmo e de mais
permanente.
Juntar as duas cousas seria para o verdadadeiro
artista o ideal, mas que poucos são os
que as sabem ou querem reunir!...
Pensava eu estas cousas vagas, ao passar
deante de
Bagatelle, a casa
campestre e o lindissimo
parque, que surdiram com tão vertiginosa
rapidez de uma aposta entre a infeliz
e então leviana Maria Antonietta e o Conde
de Artois, e que hoje, depois de varias vicissitudes―as
casas e os homens passam egualmente
por ellas―pertence aos herdeiros do
celebre philanthropo William Wallace. A lembrança
d'esse tempo, d'essa côrte, d'essa mulher,
cujo nome se fez prestigioso no martyrio,
levaram a minha imaginação para longe,
para bem longe no passado.
Fazia justamente cem annos que tanto luxo
tanto prestigio, tanta gloria tradicional se tinham
afogado tragicamente em ondas de sangue.
Noventa e tres, o anno fatal, surgia
sangrento
[71]
e tragico ante os meus olhos, produzindo
em mim aquelle espanto e aquella fascinação
que eu sempre sinto quando voluntaria
ou involuntariamente o evoco.
Tambem ella, a pobre rainha martyr, quiz
experimentar essa suprema sensação da vida
feita de contrastes fortes; tambem ella quiz,
ao lado das pompas de Versailles, a deliciosa
pastoral do Trianon; tambem ella, despindo
os pesados brocados e as sedas tecidas com
ouro da côrte, quiz enfiar, ligeira e garrida,
o vestidinho de cassa, com o lenço castamente
cruzado sobre os seios opulentos; a sua
imaginação
romanesca de leitora de Rousseau,
de admiradora de Gluck, tambem se soube comprazer
n'esta delicia das experiencias contrarias
que é o sol do
dilettantismo, mas nem
porque viveu intensamente a vida e gozou tudo
que ella tem de melhor, desde a amisade até
á arte, lhe foi menos pesada a sua cruz, nem
menos cruel a sua dolorosa via desde Versailles
até á Guilhotina.
O ambicioso coração humano deseja tudo,
a tudo aspira e tudo quer!
E para que, no fim de contas? lá o diz Pascal
na sua phrase incisiva e sombria: «o remate
[72]
é sempre identico, qualquer que tenha
sido a comedia ou a tragedia que o antecedeu».
E aqui está como a vista do arvoredo de Bagatelle
me levou para longe do bucolismo, encontrado,
onde meu Deus?... a dois passos da
fornalha de Paris!...
A mais completa visão de arte e de magnificencia
que ainda os meus olhos tiveram, de
que elles guardarão para sempre o reflexo illuminado,
foi em Fontainebleau que a recebi.
Fontainebleau está para Versailles como
uma joia de Benevenuto está para um vaso de
macissa prata imperfeitamente burilado. Não
ha comparação entre os dois, e para um artista
não ha hesitação na escolha.
Como paizagem, aquelle sitio, aquella poetica
e enorme floresta consagrada por tantas
recordações artisticas, litterarias e historicas,
é tudo que póde haver de mais estranhamente
bello.
Tem a poesia selvagem e a graça outoniça,
e saudosa. Parece um paiz devastado onde se
deram lutas de titans, por onde passou o sopro
de uma tempestade cyclopica, onde a natureza
estrebuxa em cataclysmos tremendos, e
[73]
faz ao mesmo tempo o effeito calmante e doce
de um ninho de verdura que abriga a alma dolente,
e a envolve no filtro subtil das suas essencias
vegetaes. O outomno na floresta de Fontainebleau,
quando as arvores se revestem de toda
a riqueza infinita de colorido d'esse periodo
divino, quando a pompa victoriosa das fortes
verduras acres de seiva se degrada e decompõe
em tons expirantes de um encanto mysterioso,
em como que gangrenas vegetaes que
desde o purpureo sangrento e o amarello alaranjado
vão até ao côr de lilaz e ao
côr de malva,―o
outomno alli deve ser um poema de voluptuosa
melancolia, d'estes que só sabem saborear
os que se deleitam na tristeza como
em um nectar sagrado, defezo ás profanidades
do vulgo...
Não admira que n'essa floresta tenham vindo
meditar e soffrer tantas grandes almas desenganadas
da illusão multiforme da vida.
Conta Michelet, que perguntando a uma mulher
intelligente para onde ella quereria fugir
se uma grande dôr lhe désse a sêde, a
necessidade
de um asylo no seio da Natureza, ella
lhe respondera:―Para Fontainebleau.
―E se tivesse uma alegria enorme, uma
[74]
alegria que lhe dilatasse a alma até ao infinito,
onde mais lhe agradaria estar:―Em Fontainebleau!
É que realmente aquella paizagem, como diria
Amiel, representa todos os
estados da
alma.
Por isso S. Luiz nas suas fundas dôres, quando
as idéas e os sentimentos do seu tempo agonisavam,
dando-lhe um espectaculo que lhe pungia
atrozmente o coração, era alli na floresta
sombria que ia rezar pedindo a Deus conforto
e paz.
Luiz XIV vencido e velho, corroido por esse
tédio dos Cesares, a quem nada resistiu―que
é de certo o estado de espirito que mais deve
approximar-se da infinita desolação de Satanaz,
foge de Versailles, das suas pompas, dos
triumphos que os seus pintores lhe coloriam
e que então não eram mais que ironias diabolicas
do passado orgulho, e vem procurar, sob
as arvores colossaes da floresta amiga, o repouso,
o silencio, o adormecimento ás
suas
lancinantes dôres de rei... Francisco I, desenganado
d'esse sonho da Italia, que durante os
seculos XV e XVI perseguiu os reis da
França,
vem alli construir uma Italia franceza que o
console de haver perdido a outra, a que Miguel
[75]
Angelo e Raphael, Bramante e Donatello, Leonardo
de Vinci e o Ticiano tinham feito tão fascinadora
e tão grande!...
É em Fontainebleau que Napoleão se despede
do seu sonho homerico e sublime, d'esse sonho
de um Imperio Universal, que unificasse o
mundo civilisado sob um despota intelligente, e
que lhe foi commum com Alexandre, com Cesar,
com Carlos Magno e Carlos V, com todos
os grandes capitães da historia, tão raros como
os grandes poetas.
É alli que essa epopéa magestosa e tremenda
se lhe desfaz nas tremulas mãos que assignam
a suprema abdicação do poder e da gloria.
Quantas recordações me suggere esse logar
fatidico de Fontainebleau, ou seja o palacio de
fadas, ou seja a grande floresta sombria e vasta,
onde talvez os Celtas, ascendentes dos francezes
de hoje, colherão no tronco dos annosos
carvalhos o
qui das
evocações druidicas.
E sahindo d'essas espheras da grandeza social
para outra, mais ampla talvez, mas menos
visivelmente pomposa, é em Fontainebleau, que
Georges Sand e Musset dão aquelles ultimos
passeios tão tristes, de uma melancolia feita de
tanta saudade, quando
elle
já sabe que não podia
[76]
viver sem
ella nem com ella, como
diz a
triste cantiga peninsular quando
ella começa a
perceber, que, Ashaverus femenil do amor,
tem de percorrer até ao fim o seu amargo
e cru fadario, sem encontrar quem satisfaça a
sua sêde do infinito, sem poder parar n'essa
caminhada atroz em procura do
impossivel!
Que fundo de paizagem tão triste para um
fim de amor! Onde poderiam elles encontral-o
que lhes saturasse a alma de mais tristeza, de
mais melancolia, de mais intensa e inexoravel
saudade!...
Era alli ainda que Musset voltara mais tarde
evocando em soluços immortaes as melhores
recordações do seu fatal amor.
Dante pourquoi dis tu qu'il n'est pire misère
Qu'un souvenir heureux dans les temps de douleur
Quel chagrin t'a dicté cette parole amère
Cette offense au malheur!
En est il donc moins vrai que la
lumière existe
Et faut-il l'oublier du moment qu'il fait nuit
Est ce bien ta grand âme immortellement triste
Est ce tu qui l'as dit?
Non, par ce pur flambeau dont la
splendeur m'éclaire
Ce blasphème vanté ne vient pas de ton coeur
Un souvenir heureux est peut-être sur terre
Plus vrai que le bonheur
..............................................................................................
..............................................................................................
[77]
As estatisticas dirão quantas leguas quadradas
tem a floresta; os naturalistas saberão explicar
quaes as diversas qualidades da sua flora,
e que essencias se distillam das suas varias
resinas; eu sei sómente que ella me encantou,
como uma das mais bellas cousas que os meus
olhos ainda contemplaram. Fui a Barbozin, a
aldêa em que Millet e Rousseau pintaram as
suas télas melhores, e evoquei alli as figuras
da litteratura contemporanea que tem por fundo
magestoso―bem mais magestoso do que
ellas são grandes!―a floresta divina de Fontainebleau.
A scena capital e magistral da
Sapho
de
Daudet é alli que se passa; quando o pobre
moço, empolgado pelo polvo terrivel que é para
a mocidade uma mulher perdida, tenta despegar-se
d'ella, quer fugir-lhe para recomeçar ao
longe uma existencia calma e boa―em harmonia
com as leis sociaes, protectoras para quem
as respeita, inexoraveis e implacaveis para
quem as despreza ou para quem as illude―e
é vencido irreductivelmente pela piedade que
ella lhe inspira, por aquelle bramido de animal,
longo, constante, ininterrupto, com que
Sapho acorda e sobresalta os
écos de immensa
[78]
solidão ao vêr imminente a ruptura de que elle
lhe fala, que elle com mil precauções lhe faz
prever... Grande quadro e de uma moral acre
e dolorosa mas incontestavel, que os moços deviam
meditar, se é que os moços meditam, se
é que a mocidade é compativel com a previdencia
e o calculo.
O parisiense tem a uma hora e meia de caminho
de ferro essa grande matta que é uma
das maiores da Europa e a maior da França,
por isso parte da litteratura contemporanea a
tem para theatro das suas scenas de enthusiasmo,
de paixão ou de desespero.
Os pintores vão alli procurar os effeitos maravilhosos
da luz penetrando na espessura, banhando-a
em purpura, recortando em fundo de
ouro a renda delicada da sua folhagem, picando
de pontos deslumbrantemente luminosos os
seus intersticios mais miudos e mais finos; Millet
arrancou-lhe em paginas immortaes o segredo
da religiosidade infinita que possuem as
velhas arvores; Rousseau recortou em pequenas
télas retalhos de paizagem em que a alma
das cousas palpita mysteriosamente.
A floresta de Fontainebleau educou uma geração
de paizagistas, qual d'elles mais penetrado
[79]
da melancolica poesia da natureza. Que
benefica tem sido a sua calma e suggestiva influencia,
que saudade eu tenho da luz a que
ella me appareceu, luz primaveril, que punha
tons de um tenro ineffavel em cada
rebento,
que rejuvenescia os velhos troncos colossaes!
É perto d'alli o lindo Castello de Francisco I,
a que é preciso conduzir o leitor. Deixemos,
pois, a floresta e penetremos no palacio.
X
Nos seculos XV e XVI todos os principes,
todos os poderosos da terra tiveram um
distinctivo commum que os caracterisa:
o seu amor enthusiasta das maravilhas da arte.
Sabe-se o que foi Lourenço de Medicis, esse
Mecenas da litteratura italiana, esse amante
apaixonado e prodigo da erudição, da
architectura,
da pintura, da estatuaria. Esse homem
intelligente e sagaz, poeta elle proprio, e apezar
de humanista notavel, sacudindo com bastante
independencia o jugo do antigo que pesava
demais sobre as musas da Italia,―mereceu
a gloria suprema de ficar immortal no
marmore modelado pela garra de Miguel Angelo.
[82]
O
Penseroso, das estatuas do mestre uma
das mais emocionantes, uma das mais mysteriosamente
e tragicamente bellas, teve por modelo
o grande homem florentino, cujo tumulo havia
de adornar mais tarde. Leão X, Julio II e Clemente
VII, foram os papas mais doudos pela
arte de que reza a historia.
Ludovico o Mouro encheu de bens e de glorias
a Leonardo Da Vinci; os chefes da aristocratica
Republica veneziana não hesitavam
quando se tratava de pagar com prodigalidade
louca aos seus soberbos pintores. Mas Francisco
I, o rei da França a quem se deve a magica de
Fontainebleau, esse não sómente adorava a
Arte, mas era amigo apaixonado dos artistas.
Sabe-se o enthusiasmo louco com que elle
acolheu na sua côrte o já octogenario Leonardo
Da Vinci.
―«Hei de afogar-te em ouro, dizia elle a
Benevenuto.―
Faço-te
conego―exclamou deslumbrado
para o italiano Rosso no dia em que
este, pela primeira vez o fez penetrar n'essa
galeria esplendida, ainda hoje chamada de
Francisco 1.º―em que o rei desenganado e
cançado passou depois quasi todos os ultimos
annos da sua accidentada existencia. E a promessa
[83]
extravagante cumpriu-se tal como se fez.
Rosso teve um logar de conego na collegiada
da Sainte Chapelle.
O que fizera elle para merecer tão piedosa
distincção? Pintára o mais estranho e
luminoso
carnaval de alegria e de côr, que ainda a
imaginação febril de um artista d'aquelle tempo
de febre concebera e realizára.
Uma multidão pantagruelica em que ha de
tudo: o bello e o horrendo, o delicioso de graça,
e o grotesco; figuras virginaes a que talvez
serviram de modelo para o pintor, e de encanto
ephemero para o rei, as doces raparigas
que alli perto ceifavam as tremulas searas, ou
iam buscar as amphoras cheias de agua crystallina
das rochas, ás fontes de Fontainebleau
que Jean Goujon e Benevenuto vão fazer idealmente
bellas.
No meio da immensa turba de mulheres e
de homens, uma flora e uma fauna inteiramente
novas, a flora e a fauna que os navegadores
e os conquistadores da peninsula iberica
acabavam, no fim das suas aventurosas viagens,
de revelar ao velho mundo attonito.
A delicia de Francisco I não teve limites ao
entrar n'aquelle recinto encantado em que o
[84]
mundo da arte lhe desvendava os seus aspectos
mais bellos!
Interrogador e curioso como era, cada quadro
lhe suggeria uma pergunta e uma investigação
nova.
O mundo estranho de que o Rosso pintava
algumas das maravilhas ineditas fazia scismar
o pagão devoto que Francisco I era, como todas
essas crianças grandes da Renascença.―Mas
então mentia a Biblia quando contava a
creação do homem?
Essas raças, cujo segredo agora se desvendava
pela vez primeira, não eram tal, não podiam
ser filhas do biblico Adão?
E a terra movia-se em torno do sol? Onde
ficavam n'esse caso as palavras de Josué?...
Depois contavam-lhe as magnificencias da
Turquia, a magnanimidade de Solimão, as
maravilhas da civilisação arabe, tão
superior
em certos pontos n'aquelle tempo á
civilisação
christã, e esta idéa de que o turco
não era
finalmente o ante christo, o inimigo figadal de
todo o bem e de todo o bello, produzia um espanto
infantil no animo de Francisco I.
Tempo encantador este de que a galeria de
Fontainebleau ouviu as conversações curiosas,
[85]
mixto de tudo que ha mais ingenuo e mais
subtil, mais refinado e mais credulo!...
Ao lado do fauno sensual, do satyro coroado,
que foi Francisco I,―o qual para contrapor
aos seus vicios innumeros teve sómente a vibrante
sensibilidade para tudo que é bello;―surge
a Margarida das Margaridas, a encantadora,
a diserta, a latinista, a intelligente rainha
de Navarra. N'aquelle tempo saber latim
não é um requinte de pedantismo, é uma
exigencia
da fina cultura.
Quem não soubesse latim não sabia nada,
não tinha conhecimento nem da poesia no
que ella tem de mais perfeito e mais bello,
nem da Historia no que tem de mais suggestivo
e de mais inspirador. Ora Margarida amava
os poetas e a poesia, e ajudava seu irmão
a fazer a Historia, aconselhando-o, auxiliando-o,
inspirando-o, negociando por elle com os
diplomatas do tempo.
A sciencia, a erudição, a poesia enchem o
espirito de Margarida; quem lhe enche completamente
a alma é o irmão, esse irmão grosseiro
e sensual, natureza que, a não ser o
amor da arte, seria feita do barro mais vil, e
que mesmo salvo por esse amor, que é no fim
[86]
de contas mais uma sensualidade requintada
do seu temperamento que uma aspiração
espiritualista,
reflecte a omnipotencia dos seus instinctos
animaes no soberbo, no inolvidavel retrato
que d'elle fez Ticiano, o maior retratista
do mundo, aquelle que melhor traduz a profunda
expressão moral, a mobil physionomia,
o caracter pessoal inconfundivel de cada um
dos seus modelos...
Esse perfil de fauno sensual, que o Ticiano
retratou, domina e absorve o coração delicado
e subtil de Margarida.
Por isso eu a evocava agora, na galeria soberba,
em que o sol entra a flux, ao lado do rei
seu irmão, analysando com elle as bellas pinturas
que fazem das paredes um kaleidoscopo tão
curioso e illuminado, em que o velho e o novo
mundo se confundem, discutindo―com Budé seu
bibliothecario, com Duchatel seu leitor, com os
dois irmãos du Bellay, os celebres humanistas
da Renascença franceza, seus favoritos e commensaes,―um
dialogo de Platão que tivesse acabado
de lêr em grego, um verso de Virgilio de
que ella houvesse ha pouco saboreado o nectar
subtil, servido na lingua de ouro do seculo de
Augusto; uma apostrophe de Cicero, nas suas
[87]
Catilinarias, mais abrazada em rhetorica flamma;
conversando com Marot, seu poeta e seu
servidor, ácerca da medição e do
rythmo de um
hexametro ou de um hendecassyllabo; ou perguntando
a todos elles, curiosamente, avidamente,
informações ácerca do novo livro
extravagante
que um physico e antigo tonsurado
chamado Rabelais acabava de dar á estampa em
Lyão, contando as mirabolantes e inverosimeis
aventuras de Gargantua e Pantagruel, dois gigantes
de quem ninguem até alli ouvira falar, e
de Panurgio, o maior sacripante que de memoria
de homem fôra celebrado em lingua vulgar...
Ao reinado do prisioneiro de Pavia segue-se
o do mystico e apaixonado Henrique II. Margarida
eclypsa-se na sombra, e á musa dos poetas
succede a inspiradora dos artistas ébrios de
enthusiasmo...
No céo da Renascença azul e ouro, é
Diana
quem desponta... A Salamandra, emblema e
symbolo do rei que arde continuamente na flamma
impura do desejo, sem jámais chegar a consumir-se,
é substituida pela inicial de Henrique
enlaçada por dois crescentes symbolicos, e esta
[88]
data assim poeticamente indicada vale para a
posteridade muito mais que a mais rigorosa
chronologia marcada pelos sabios. Este anagramma
amoroso representa um grande amor,
um estranho sentimento que participa do mysticismo
cavalleiresco e do sortilegio magico, do
ideal mais puro e do
envoûtement mais pavoroso.
Quem é esta esbelta Diana, ligeira, airosa e
bella? Não o perguntem á Historia, que essa,
implacavel como a verdade, falar-lhes-ha de
uma velha furia, sedenta de dinheiro e de vinganças,
esmagando os povos, que a maldizem,
com o peso das contribuições mais engenhosas,
das que tiram o sangue e a pelle á plebe
opprimida que se lamenta em vão.
Perguntem-n'o á Arte, a magica divindade
que transfigura tudo aquillo em que toca. Responder-lhes-ha
a Diana de Jean Goujon, encostada
familiarmente ao veado manso e bello que
lembra o principe encantado das lendas, ou
mais longe ainda, sempre modelada pelo sublime
artista, contemplando amorosamente o mesmo
bicho symbolico, que approxima da bocca
finamente recortada da deusa a sua bocca de
animal, como que a pedir o beijo mysterioso
que quebre o encanto que o tem encarcerado
[89]
n'aquella fórma inferior e que o restitua bello e
victorioso á antiga fórma humana.
Responde-lhes a Nympha de Benevenuto
Cellini, ora entre as féras que caçou e os
galgos que as perseguiram, ora estendendo-se
voluptuosa junto á frescura das fontes, ora
caminhando nua pelos campos, seguida pelo cortejo
das nymphas que ella, a Diana immortal, a
inspiradora dos eternos amores que não se extinguem,
domina inalteravelmente pela altiva
elegancia e pelo magestoso porte regio.
De todas estas imagens estranhas, inverosimeis,
de corpo longo e flexivel, que parecem copiar
na pedra dura a fluidez das aguas correntes,
o baloiço ondeante das hervas altas, a voluptuosa
flexibilidade das lianas que se enredam
e entrelaçam,―de todas estas imagens que
a arte prodigalisou aqui, a nossa imaginação
compõe uma só figura, um só vulto, uma
só
imagem que as concretiza a todas.
É a mulher amada e triumphante, a Diana
dos encantos invenciveis e inviolados, a que
pediu á deusa, sua madrinha o segredo dos
filtros que fazem parte do seu culto antigo, para
ser eternamente amada, contra o tempo, contra
a fortuna, contra tudo...
[90]
A arte que a immortalisou no marmore devia-lh'o.
Ninguem como ella fez da arte uma
auxiliar, uma amiga, uma feiticeira cumplice
dos seus encantamentos de mulher. Que importa
o que diz a historia de Diana de Poitiers?
Quem fala verdade é a Arte. De todas as mil
illusões de que a vida se faz e se compõe,
só
ella é mais intensa do que a realidade, e mais
verdadeira do que a verdade!
XI
Uma das excursões feitas por mim com
mais prazer é a dos Museus, tanto artisticos
como historicos.
Deixo para mais tarde falar no que senti
em frente de alguns quadros do Louvre ou do
Museu de Madrid e vou falar agora da
minha
visita ao museu Carnavalet. O palacio em que
este museu está estabelecido pertenceu a Madame
de Sévigné e foi habitado por ella; d'aqui
a quantidade de recordações d'esta mulher
encantadora,
que o povoam e para mim o tornam
particularmente interessante.
Ha logo á entrada um busto d'ella que me
fez parar enlevada em contemplação de uma
das physionomias mais espirituosas e mais
[92]
sympathicas que o Passado legou aos nossos
dias.
O
nez carré de que ella
fala nas suas cartas,
e que tornaram celebre os seus contemporaneos
referindo-se tantas vezes a elle, lá
está, mas sem diminuir, antes accentuando o
encanto da sua expressão. Os lindos cabellos
penteados ao
nome d'ella, (porque
aquelle penteado
de caracoes que enquadra tão graciosamente
o rosto feminil ficou sendo chamado
á
Sevigné) dão um caracteristico
especial á sua
bella cabeça de juvenil matrona adoravel. O
bom humor, a graça gauleza sorriem na bocca
espirituosa e finamente recortada.
A gente não se espanta, ao ver este lindo
busto de mulher, de que o original inspirasse
verdadeiras e ardentes paixões, e que até aos
sessenta annos houvesse, não quem a requestasse
á moda de Ninon ou de Catharina da
Russia, mas quem quizesse casar com ella, como
quiz o duque de Luynes, que por signal foi repellido.
Para mim, digo francamente, o
Museu
Carnavalet
é Madame de Sevigné e não é
mais
nada. Este museu, extravagante contraste! está
cheio de recordações revolucionarias.
Lá está
[93]
uma reducção feita, creio que em pedra, da
Bastilha, lá está uma galeria, por signal
detestavel,
de retratos dos vultos principaes da
revolução.
Por debaixo da fileira de retratos em que
figuram Mirabeau, Robespierre e Marat, está a
cadeira em que expirou Voltaire. A collocação
pareceria propositadamente feita, senão fosse
antes uma necessidade de symetria, pois que,
encostada á mesma parede na outra extremidade
da sala, está tambem a cadeira em que
expirou Béranger.
Entre Voltaire e os homens da Revolução a
affinidade é vizivel para o espirito, mas o pobre
Béranger é que não vem aqui ao caso
para cousa alguma, de modo que a intenção
philosophica que eu á primeira vista attribui
aos conservadores do museu ficou prejudicada
pela segunda idéa que elles tiveram de collocar
a cadeira de Béranger em symetria com
a de Voltaire.
Uma conclusão apenas me atrevo a tirar: é
que em França quem sahe do vulgar morre
de cadeira. Incommodissima maneira
de dar a
alma ao Creador! Ainda bem que nem a Béranger
posso aspirar, quanto mais a Voltaire;
[94]
isto augmenta as minhas probabilidades de
morrer deitada na propria cama, unica maneira
pela qual me appetece sujeitar-me á sorte
commum de todos os mortaes.
Não venho, já se vê, fazer uma
descripção
miuda do
Museu Carnavalet.
Além de não ter
fixado tanta cousa que vi―e que vai desde os
troços de ruinas e dos barros romanos achados
em diversas excavações recentes ou antigas,
desde truncados monumentos, ou fragmentarios
tumulos, pertencentes a epocas ainda anteriores
ao dominio romano, até a centenas de
reliquias da Revolução―não acho que
isso seja
sufficientemente interessante para o leitor, a
quem não posso communicar impressões que
não recebi.
Ha, por exemplo, no
Museu uma
collecção
enorme de caricaturas da época de Luiz Filippe,
feitas, creio, que em barro. São hediondas. Tudo
que teve um nome no reinado d'esse rei dos burguezes,
burguez elle proprio dos pés até á
cabeça,
alli está representado sob uma fórma que
produz
cauchemar, á
força de irritantemente
feia.
Lembro-me por exemplo de uma cousa que
me impressionou: uma ordem autographa de
[95]
Luiz XVI ordenando aos suissos da sua guarda
que cessassem o fogo que estavam fazendo
contra o povo. Ora, esta ordem―a ultima que
elle assignou como rei―encerra nada menos
que a sua abdicação e a sentença da
sua morte
e dos seus.
Acabada a resistencia, o monstro jacobino
pôde refocilar-se á vontade no sangue regio.
Ninguem mais se levantou deante d'elle para
obstar ao direito da sua vingança secular.
Tudo isso que em outro logar e em outra
ordem de idéas me produziria a maior impressão,
alli apparecia-me inopportuno e deslocado.
Como aquelles objectos friamente classificados
me pareciam estranhos ao tempo de febre de
que elles são as reliquias, por assim dizer, mumificadas!...
É preciso, para que certas recordações
do passado nos «empolguem», se apossem
ardentemente de nós, que as evoque a
imaginação omnipotente e creadora de um Michelet
ou de um Carlyle! De outro modo, em
vez de nos tornarem mais «vivo» o tempo a
[96]
que se referem, parece que o recuam indefinidamente
nos limbos do passado.
Um «museu» tira a vida aos objectos que encerra;
não os conserva.
Assim como o processo de enterramento dos
egypcios, creado em odio á morte, concorre
para tornar mais saliente a idéa da morte, assim
tambem o desejo de conservar certas reliquias
parece que lhes diminue a realidade no
passado. É possivel que eu exprima muito vagamente
uma cousa que sinto sem a saber
muito bem traduzir, mas o leitor intelligente,
que tem visto muitos museus e tem talvez sentido
esta mesma desconsolação, comprehende
perfeitamente o que ella significa!
Repito, pois: o encanto do museu Carnavalet
tirei-o eu de mim mesma, evocando n'aquellas
frias salas que percorri, acompanhada
pelo indispensavel guia, as figuras que outr'ora
as encheram de animação e vida.
Vi madame de Sevigné e o seu querido tio, o
bom abbade de Livry, que tão bem se sahiu
da educação da sua querida e intelligente
pupilla.
Pareceu-me escutar as finezas hyperbolicas,
que á moda do tempo, Ménage e Chapelain,
[97]
dirigiam cada um por seu lado á amavel e
gentil Maria. Ménage resolveu ensinar-lhe
italiano e hespanhol, e resolveu, o que é peior,
apaixonar-se loucamente por ella. O bom pedante
perdeu, já se vê, o tempo e o feitio que
não era de amoroso, como egualmente o perdeu
um homem que é o perfeito contraste
d'elle, o cynico, o duellista, o
donjuanesco
Bussy Rabutin, que, depois de amar Madame
de Sevigné, a odiou de morte, e depois de a
odiar tornou a querer-lhe muito, encontrando-a
sempre de pedra pura os seus transportes,
mas capaz de apreciar o que havia de
scintillante e caustico no seu espirito, de intrepido
no seu valor, de melhor no seu pouco
bom caracter. Viuva com vinte e dois annos,
e em uma côrte licenciosa, em que ella propria
se mostra cheia de estranhas indulgencias
para os peccados alheios―tudo passou
por ella sem lhe macular de leve a fimbria do
seu vestido branco.
Foi admiravelmente virtuosa, sem ser por
isso implacavel para as paixões que a cercam,
e que fazem d'esse tempo um capitulo do mais
accidentado romance.
Amiga extremosa de Fouquet, vê-se em riscos
[98]
de sahir levemente compromettida do processo
do Intendente de finanças, em cujo cofre
de galantes segredos se encontram cartas
d'ella. No emtanto essas cartas são simples
pedidos em favor de um ou de outro protegido
da marqueza, e se provam alguma cousa
é a bondade, a generosidade do seu
coração
prompto a acudir e a valer. Se Fouquet guardava
preciosamente esses bilhetes formalistas
é porque talvez no coração do galante
financeiro
a formosa physionomia de madame de
Sevigné tivesse produzido uma impressão
excepcional;
mas isso não basta para comprometter
uma mulher que as primeiras pessoas
da côrte, em influencia e em virtude, protegem
ardente e abertamente. Um dia Tonquedec, fidalgo
da Bretanha, e o duque de Rohan-Chabot
em casa d'ella, e por causa d'ella, armam
uma especie de briga que conclue por um encontro
no campo, como todas as brigas d'aquelle
tempo. Nem por isso a fama de madame
Sevigné soffre a mais leve arranhadura.
Que culpa tem ella das loucuras e dos extremos
que inspira a sua «razoavel» e formosa
pessoa!
O conde de Ludre esteve vae não vae a
[99]
vencer as resistencias mysteriosas d'aquelle
coração de mulher que a precoce experiencia
da vida endurecêra para o amor.
Mas, aquelle asseio de arminho, aquelle
amor das cousas justas, rectas e claras, que é
em certas mulheres um preservativo efficaz
contra os desfallecimentos da vontade, e o exclusivismo
ardente do seu amor materno, salvam-n'a
d'essa tentação suprema, como a salvam
do prestigioso amor de Turenne, da côrte
persistente do principe de Conti, do amor
claro ou disfarçado de tantos entre os melhores,
entre os mais queridos e os mais felizes
em aventuras femininas.
No meio d'esse fogo que accende, a marqueza
conserva-se alegre, calma, gostando das
anecdotas picarescas bem contadas, prompta a
receber uma confidencia escabrosa, comtanto
que lh'a façam com espirito e bom humor;
indulgente para o amor da sua maior amiga
pelo duque de la Rochefoucauld, indulgente
para as historias mais ou menos salgadas que
de todos os lados lhe vêem aos ouvidos, dotada
d'aquella philosophia tolerante que a mulher
virtuosa tem como ninguem, porque sabe,
como ninguem, o preço da virtude.
XII
Insensibilidade? Não de certo. Amor bem
entendido de mãe, e medo talvez de soffrer
mais do que soffrera já na sua curta
experiencia da vida conjugal, a que um duello
infeliz―e por causa de uma mulher―tinha
dado fim.
Quem soube no amor maternal pôr tantos
requintes de sensibilidade, tão intensa paixão,
tanta vida, tanta abnegação, tão louco
enthusiasmo,
o que seria em outra ordem de sentimento
em que taes excessos são quasi naturaes?
O que a salvou foi talvez o exagero da
propria sensibilidade. Teve medo de si. Sondou-se
e percebeu de que loucuras seria capaz,
amando, aquella que da maternidade serena e
[102]
calma soube fazer uma paixão tempestuosa.
Tendo bebido na infancia o amor dos grandes
sentimentos á Corneille, de que a propria Mlle.
de Scudery, a feiissima Sapho fez na sua obra
vasta uma grandiloqua caricatura; iniciada
pelos seus mestres Ménage e Chapelain nas
extravagancias grandiosas da litteratura hespanhola;
tudo que provavelmente via em torno
de si estava longe de corresponder ao seu ideal
de sacrificio eterno, de inalteravel constancia.
D'ahi, provavelmente, o seu proposito firme de
se refugiar no amor materno, extrahindo d'elle
tudo que podia formar o alimento da sua alma
exigente, ambiciosa.
Depois ella viveu em uma quadra e em um
meio em que o papel de espectadora tinha o
maximo interesse e podia satisfazer até mesmo
um espirito como o seu. Tudo que a cercava
era digno de attenção e de estudo. Tudo
interessava, ensinava e dava ensejo para longas
reflexões.
Em cima Luiz XIV―o Jupiter que ella viu sempre
com olhos de adoração, de quasi deslumbramento,
olhos com que o seu tempo o viu tambem,
com que a posteridade continuaria a vêl-o,
se o desastre final de sua obra lhe não désse
[103]
a sorte que tem sempre os vencidos, e se Saint-Simon
não tivesse revelado ao mundo, com a
sua espionagem genial, o monstruoso egoismo,
o acanhado espirito, a mediocre envergadura
intellectual d'esse idolo com pés de barro;―Luiz
XIV que o amor divino e divinamente
desinteressado da La Vallière envolvera em
uma nuvem de olympico prestigio. Abaixo d'elle,―tudo
n'esse tempo ficava muito abaixo d'elle―essa
adoravel Henriqueta de Inglaterra, fina,
branca, lyrial, que a prematura morte embalsamada
na eloquencia sublime de Bossuet, e a
vida cheia de graça, de encanto aristocratico
e talvez de amor, transformaram na figura impregnada
da poesia mais subtil d'aquelle periodo
accidentado e romanesco. Em torno d'esses
astros de primeira grandeza gravitam milhares
de satellites de um brilho fulgurante e deslumbrador.
O amor e a guerra, como nos romances da
cavallaria antiga, fazem d'essa côrte alguma
cousa de excepcional na Historia do mundo.
A guerra já se vê, não como a faziam
Frederico
da Prussia ou Napoleão, mas a guerra
pomposa que celebrou pomposamente Boileau;
a guerra em que os banquetes, as festas, os
[104]
bailes se entremeiavam aos combates; em que
um cerco durava longos mezes, e cada marcha
parecia uma cavalgada festiva...
Mademoiselle, a
grande Mademoiselle, apaixonada
por Lauzun chorava todas as lagrimas
de seu corpo porque lhe não deixavam desposar
o eleito do seu coração; a epopéa
gentil
das Longueville, das Chevreuses, das lindas e
intrepidas heroinas da
Fronda,
andava ainda
em todas as memorias e em todas as imaginações.
Hoje era Luiza de la Vallière a mais
doce martyr de um regio amor de que reza a
Historia, que depois de pedir humildemente
perdão á sua rival coroada do escandalo que
dera, fazia da ceremonia da sua consagração
a Deus um d'estes acontecimentos palpitantes
com que vibra uma geração inteira;
amanhã
é Montespan, a altiva Wasthi, a sultana magestosa
que toma posse do seu logar de favorita
com um impudor, uma soberba, uma pompa
theatral, que escandalisam, que emocionam,
que fazem trabalhar as pennas todas da
côrte em
comptes rendu
mais ou menos pittorescos,
mais ou menos eloquentes...
Depois as guerras entre os Jesuitas e Port-Royal;
a lucta theologica entre Fénélon e Bossuet;
[105]
o apparecimento de uma tragedia de Racine;
a publicação dos
Caracteres de La Bruyère;
as
Maximas do Duque de
Larochefoucauld;
o livro de Madame de La Fayette; um sermão
do Pére Bourdaloue; um conto de La Fontaine;
os acontecimentos os mais sagrados e os
mais profanos, as leituras mais edificantes e
as mais gaiatas, os incidentes mais comicos e
os mais tragicos―tudo se succede, tudo se entrelaça,
fazendo da existencia um espectaculo
tão alegre, tão variado, tão
divertido, tão interessante,
tão
atordoador, que facil
foi a Madame
de Sévigné resignar-se a não
pôr na sua
propria vida interesses dramaticos, que outros
se encarregavam de fornecer-lhe em profusão.
Basta a curiosidade para encher a
existencia,
disse algures Fontenelle. Esta
maxima de
egoista acha-se justificada pensando na vida
de madame de Sévigné.
Onde ha espirito mais eminentemente
curioso
no sentido elevado e espiritual da palavra
do que o d'esta eminente e deliciosa personalidade
femenina?
Ella tem a curiosidade intelligente de todos
os phenomenos de ordem moral e intellectual.
Interessa-a o espectaculo das paixões humanas
[106]
e achou um theatro perfeitamente adequado ao
genero de observações que mais a divertem.
A côrte de Luiz XIV, antes que madame de
Maintenon tivesse desdobrado sobre ella o véo
de hypocrita devoção em que tão
cautelosamente
se embrulhára, é tudo que ha de mais
proprio a interessar, a apaixonar um observador,
um moralista como Madame de Sévigné.
Moi qui aime tant à faire des
reflexions,
esta phrase vem mil vezes nas suas adoraveis
cartas. E que assumpto sempre vivo,
sempre palpitante para reflexões não é
essa
côrte, onde tudo que as paixões humanas
têem
de mais ardente, de mais insaciavel, de mais
caracteristico, de mais desordenado, se manifesta
sob os mais variados aspectos e nas fórmas
mais pomposas...
O amor sem outra lei que não seja a inconstancia
e o capricho; a ambição sem outra
restricção e outro limite que não
sejam os que
fatalmente lhe impõe a fraqueza humana; a
inveja, a soberba, a cubiça mais desenfreada,
o orgulho ao mesmo tempo mais feroz e o
mais cheio de aberrações inexplicaveis, orgulho
que principalmente se compraz nos excessos
mais abjectos do servilismo―e todos estes
[107]
diversos sentimentos, uns simples, outros
complexos, uns harmonicos, outros contradictorios,
manifestados atravez de caracteres em
que ha ainda relevo, contorno accentuado, individualidade
inconfundivel, energia pessoal.
Póde haver espectaculo mais digno de interesse,
contemplação que sem talvez elevar o
espirito o divirta e o instrua mais?
Não é, porém, o jogo complicado,
brutal ou
subtil do interesse e das paixões pessoaes, o
unico objecto de estudo para o espirito de madame
de Sévigné. Ella tem uma vasta leitura,
uma aptidão para se interessar pelos estudos
mais aridos, quasi maravilhosa.
Quando a vida em Paris a cança, quando a
sociedade habitual do seu salão começa a
enfastial-a
um pouco, quando as graças de monsieur
de Coulanges, a extrema amabilidade de
d'Haqueville (o qual é tão extraordinariamente
serviçal e de tal modo se multiplica para satisfazer
os seus amigos que lhe mereceu a ella a
alcunha de
Les d'Haquevilles) lhe
parece um
tanto massadora, quando a gotta de M. de La
Rochefoucauld o faz dar gritos que lhe excitam
demasiadamente a sensibilidade, quando
Le Père Bourdaloue a tem fatigado de predicas,
[108]
quando emfim o
meio habitual em que
ella se move tem perdido, pela continuação,
um pouco do seu interesse e da sua novidade,
quando as salas que ella frequenta e das
quaes é o querido adorno mais precioso e
raro, não offerecem assumpto nenhum que a
satisfaça, quando a côrte está em uma
phase
de semsaboria estacionaria, sem incidentes e
sem dramas, eil-a que parte para Livry, ou
para os
Rochers, e ahi na paz
deliciosa do
campo, que ella e La Fontaine são no seculo
XVII os unicos a
sentir, passeia
sósinha debaixo
das arvores, ouve o rouxinol, o cuco, e
la fauvette, saboreia a
graça primaveril do arvoredo
em flor, e consagra a noite a longas
leituras em que ha de tudo, Tasso, Cervantes,
Descartes, Racine, La Fontaine, até Horacio,
porque a encantadora marqueza sabia latim e
até o ensinou á filha.
O que mais celebre torna deante da posteridade
Mme. de Sevigné, o seu amor pela filha,
é a maior prova de quanto póde a
illusão
sobre um cerebro, sobre um coração de mulher!
[109]
Mme. de Grignan,
la plus belle fille de
France,
como lhe chamavam os que queriam por
uma tocante attenção lisongear o
coração da
mãe, não é realmente digna por motivo
nenhum
da adoração que inspira. Pedante, interesseira,
ambiciosa, gastadora, ingrata sobretudo,
ingrata para essa mãe adoravel cujo
crime unico foi preferil-a em tudo ao irmão,
Carlos de Sevigné, tão sympathico quanto ella
é antipathica, tão dedicado quanto ella
é egoista,
tão apaixonado pelas graças, virtudes e encantos
da mãe, quanto ella parece ser-lhes indifferente,
Mme. de Grignan tem por unica virtude
a de ter inspirado essas deliciosas cartas,
em que um periodo longo e interessantissimo
da Historia se reflecte com incomparavel vivacidade,
com uma frescura, um pittoresco,
uma animação que jámais
serão excedidos.
No final da minha visita ao museu, quando
eu tinha achado prazer infinito em evocar estas
visões do passado, e muitas outras que não
podem caber no limitado espaço d'estas notas,
o guia que não sei porque tinha sympathisado
commigo e com meu amavel companheiro, decidiu
de si para si que nós eramos dignos de
ser apresentados ao conservador do museu,
[110]
Monsieur Cousin, que não sei se é parente do
celebrado philosopho do eclectismo.
Levou-nos, pois, a um gabinete reservado
onde nos esperava uma encantadora surpreza.
Monsieur Cousin vive fechado em uma pequena
sala, furtada a todas as vistas profanas, imaginem
com quem?
Com madame de Grignan! Não madame de
Grignan em carne e osso, que isso não seria
no fim de contas uma companhia por demais
preciosa. Imagino que a convivencia de
la
plus belle fille de France não era
tão agradavel
que a propria mãe, idolatra como era, não
preferisse viverem em casas separadas, quando
madame de Grignan vinha a Paris tractar das
suas innumeras demandas, e discutir com juizes,
advogados e procuradores como uma verdadeira
madame Pimbêche que era.
Não, a maneira por que madame de Grignan
se achava representada n'aquelle gabinete
escondido, era por meio de um esplendido
retrato de Mignard. A filha da encantadora
marqueza apparece alli formosissima. Cabellos
de um louro fulgurante, veneziano, o louro de
Ticiano, ou de Palma Vechio; pelle branca,
transparente, atravez da qual se sente gyrar
[111]
um sangue vivo e puro, olhos azues de uma
belleza profunda e rara, penteado levantado na
frente e voluptuosamente entrelaçado de rubras
flôres de romeira e de flôres brancas de
laranjeira.
No peito, completamente decotado, um ramo
viçoso das mesmas flôres.
―Flôres de Provença, fez-me notar Mr.
Cousin, com aquella nota carinhosa na voz,
que revela o namoro de um velho sabio, o
namoro que o seu homonymo Cousin teve
pela duqueza de Longueville e pela de Chevreuse!
―Flôres do meu Portugal, atalhei eu, que
ao vêl-as tivera tanta saudade do meu pequeno
paiz longinquo.
Se a minha antipathia a Mme. de Grignan
não fosse fundada e irreductivel, tinha-a destruido
de certo este adoravel retrato que a representa
verdadeiramente formosa, e o que é
mais, seductora! retrato que, apezar de ser de
Mignard, parece feito na maneira ampla e superior
dos grandes mestres.
Assim a viu o pintor, assim a viu sua mãe,
assim a vê em pensamento e feliz enlevo
o velho conservador, que se fechou com ella
[112]
em um quarto e que a não deixa avistar se
não a raros profanos!
O meu passeio pelo Museu Carnavalet mais
me confirmou na eterna ironia das cousas
grandes ou pequenas!
Não posso deixar de confessar que, tirando
as minhas evocações intimas, a melhor
impressão
que de lá trouxe, deu-m'a o retrato
da minha
inimiga pessoal.
XIII
Uma das horas mais commovidas da minha
vida foi aquella em que entrei nos
Invalidos
para vêr o tumulo de Napoleão.
Sei bem que é esta uma excursão obrigada
aos viajantes da agencia Cook, aos
touristes
prud'hommescos da provincia, aos
badauds de
todas as origens, procedencias e classes.
Mas terão esses porventura sufficiente poder
para banalisar uma figura como a do Imperador?
Depois, eu fui criada por uma mãe enthusiastica
de gloria, no culto quasi fanatico de
Napoleão.
Para mim elle nunca foi, como para os meus
compatriotas do principio do seculo, o
ogre
da
[114]
Corsega, o monstro peior que Nero e
Caligula.
Pelo contrario. As manchas do seu caracter
só muito mais tarde a historia m'as fez
conhecer. Na minha mocidade não me falavam
senão nos esplendores da sua fama e nos prodigios
da sua heroicidade.
Tantas mudanças teem passado pela França
desde que, em uma ilha solitaria e longinqua do
Oceano, o grande homem expirou, renegado e
abandonado por todos os seus, que eu receiava
encontrar lá muito esmorecida a sua memoria,
muito apagados os vestigios de sua passagem.
Enganei-me. A lenda napoleonica resuscita
com insolito vigor n'essa França de que ella
foi a gloria ultima e inultrapassavel!
Havia n'essa occasião justamente em Paris
a exposição dos quadros de Meissonier, e essa
exposição admiravel dominavam-n'a dois quadros,
que nunca mais podem ser esquecidos
depois de uma vez terem sido vistos.
O primeiro quadro intitula-se
1807.
É Napoleão
depois de
Friedland, triumphante,
glorioso,
acclamado.
O Imperador ainda magro, esbelto e sobrio,
monta o seu lendario cavallo branco, rodeia-o
[115]
um estado maior de marechaes deslumbrante
e numeroso, a cada titulo dos quaes esta ligado
um nome retumbante de batalha e de
gloria; os seus granadeiros admiraveis, a sua
velha guarda fanatisada e invencivel acclama-o
em gritos que positivamente se
ouvem
na tela
palpitante de Meissonier.
É o momento culminante da epopeia grandiosa.
Sobejam os assombros, os crimes apparecem
n'um esplendor de purpura que lembra
menos a côr do sangue do que a côr da
aurora!
A tyrannia já se revela em mil symptomas
da vida do conquistador e da vida do imperante.
Os povos já perguntam n'um brado
ululante de angustia em nome de que direito
derrubam os seus thronos tradicionaes e lhe
invadem os seus lares pacificos!
Mas ah! mais forte do que esse gemido desolado
das nações invadidas, mais forte do que
o choro convulso das mães a quem arrancam
continuamente os filhos, os mais bellos e os
mais fortes,―é o clangor bellico do clarim que
avisa a França da suas victorias incontaveis!
Lodi, Arcole, Rivoli, Marengo, Iena, Austerlitz,
estão em todas as boccas, produzem em todos os
[116]
cerebros o assombro, o respeito, o enthusiasmo!
O segundo quadro―
1814―é
a retirada, é
a derrota, é a melancolica derrocada do sonho
gigantesco e sobrehumano.
O heroe vem cançado, abatido e triste. Cavallo,
cavalleiro, cortejo militar, paizagem
circumdante, tudo respira a mesma desolação
e o mesmo abandono!
A velha guarda ficou sepulta nos gêlos da
inhospita Moscovia; os marechaes cançados,
são os mesmos que vão acceitar, suggerir a
déchéance
proxima....
Entre um anno, o da gloria soberba e unica,
e outro, o da derrota universal, quantos crimes
de lesa-nação, de leso-direito, até de
leso-entendimento.
Napoleão acabára por sentir aquella
embriaguez dos Cesares que os atirava ao crime
e á loucura em virtude de uma
attracção irresistivel
e fatal.
Vencera todos e perdera o segredo indispensavel
de se vencer a si proprio. D'aqui a
ruina, d'aqui, depois da tragedia de Waterloo,
o suplicio
prometheano de Santa
Helena!
Bastavam estes dois quadros para dar a
Meissonier o logar eminente que elle tem entre
[117]
os pintores francezes. Accusam-n'o de ser
minucioso em demasia, de ter uma concepção
acanhada da arte, de dar muito mais attenção
aos pormenores que á esthetica geral da sua
obra; mas estes dois quadros desmentem todas
as accusações que lhe fazem os seus detractores.
Meissonier comprehendeu a verdadeira
grandeza, a grandeza epica, a que inspirou Homero
e Camões; a que faz ainda hoje palpitar
os frios corações d'esta era de industrialismo
e de interesse egoista.
O heroe que elle alli nos representa, tanto
na hora estonteadora do triumpho, como na
hora tragica da derrocada, é o mais importante
dos
grandes homens, no dizer de
Carlyle,
o que vale mais que todos os outros, porque
é aquelle a quem a vontade de todos se subordina
em um impeto de lealdade e adoração.
Eu tinha visto, havia pouco, os dois quadros
famosos de que não posso nem sei descrever o
interesse, a expressão, a intensa vida suggestiva,
quando fui visitar nos
Invalidos o
tumulo
de preciosa pedra, em que as cinzas de Napoleão
estão guardadas.
Lá está elle cercado por doze silenciosas
estatuas
de marmore que symbolisam victorias,
[118]
e de bandeiras crivadas de balas que seu exercito
conquistou.
Não houve nada de banalmente curioso na
minha visita; era uma romaria piedosa feita a
um idolo da minha mocidade, á unica figura
grandiosa que a edade moderna póde apresentar
em face das grandes figuras antigas que se
chamam Alexandre ou Cesar.
Em toda a parte o tenho visto; a sua figura
que participa da Lenda e que é da Historia,
protege ainda a França como uma divindade
tutelar contra a onda da
mediocracia
que avança.
N'esse paiz onde hoje apenas soam réles
nomes de réles
politiqueiros, echoa a pequena
distancia um nome que vale mais que todas
as outras glorias modernas. Que valem Frederico
II ou Pedro o Grande, que vale Luiz XIV,
que valem Condé ou Turenne ou Luxemburgo,
que valem Colbert ou Vauban, que valem Guilherme
d'Orange, ou Malbourough, que valem
Walenstein ou Carlos XII ao pé d'este homem
estranho, homem do destino, que reuniu em
si, a todas as qualidades brilhantes do guerreiro,
as qualidades solidas do administrador; que
foi legislador e soldado, que dominou e venceu
a anarchia, que levou atravez do mundo
[119]
inteiro, do Sena até ao Neva e do Tejo até ao
Vistula a idéa da Revolução, de que
elle foi
a formula tangivel, o propheta feito homem,
a representação concreta e o visivel symbolo?!
É por isso que só na Antiguidade se encontram
dois homens cuja missão excedeu em importancia
universal aquella que Napoleão representou
na Historia, e que esses dois homens
são Alexandre e Cesar.
As campanhas de Alexandre tiveram no desenvolvimento
intellectual da Grecia e do mundo
uma influencia enorme e decisiva:
Não é para mim falar das maravilhas estrategicas
d'essas campanhas, das quaes uma
manobra celebre foi genialmente reproduzida
por Napoleão em Austerlitz; mas o que interessa
á humanidade inteira e por mim póde ser
lembrado, é a impulsão gigantesca que a
intelligencia
do homem recebeu quando o genio
grego foi pela primeira vez profundamente penetrado
pelo genio do Oriente, quando os capitães
e os soldados da guerreira Macedonia
venceram o amollecido imperio persa, e caminharam
desde o Danubio até ao Nilo, desde o
Nilo até ao Ganges, vendo cada dia cousas novas,
[120]
sentindo cada dia impressões e suggestões
até alli desconhecidas; quando elles estremeceram
ao sopro gelido que vem dos paizes
que se alastram ao longo do mar Negro, e foram
quasi que asphyxiados, pelo simoun ardente,
pelos vendavaes de areia dos desertos
do Egypto; quando se assombraram deante das
Pyramides que tinham resistido a vinte seculos
de velhice, e interrogaram em vão os obeliscos
de Luqsor cobertos de indecifraveis hieroglyphos,
e as longas fileiras de esphinges
mudas, mysteriosas exhalando de si o pavor
de um symbolo inexplicado! quando admiraram
as estatuas colossaes de reis que na aurora
do mundo haviam vivido e reinado, e se
assentaram nos salões de Esar Haddon sobre
os thronos dos velhos reis da Assyria que enormes
leões alados estavam sombriamente guardando
havia seculos e seculos...
Á Grecia revelaram-se então
noções do Universo
que ella ignorava; maravilhas estranhas
de uma civilisação que não
fôra feita como a
sua de proporção e de harmonia, mas que esmagava
pela grandeza, e que se impunha pela
força colossal.
Pela Iliada e pela Odyssea se percebe que
[121]
observadores eram os filhos subtis da alada
Grecia.
Tudo que elles então viram e estudaram
foi aproveitado mais tarde nas fórmas de uma
civilisação nova, mixto do que a hellenica
teve de mais bello e a oriental de mais grandioso.
E que sensações
deliciosamente
novas lhe
não daria essa paisagem que elles então
conheceram
e na qual havia de tudo, desde os
areaes sem fim até aos Jardins do Industão;
desde as miragens do deserto até ás densas
sombras das florestas profundas; desde as montanhas
cuja crista se ia perder no seio das nuvens,
até ás redondas colinas esbrumadas em
nevoa de um tenue côr de rosa; desde o tigre
real de salto felino e ondeante e o elephante
que em Arbelle fazia tremer a terra sob o
peso gigantesco do corpo desforme, até ao rhinoceronte
e o hippopotamo, o camello, e o crocodilo,
do Nilo e do Ganges; d'essa paisagem
em que as arvores eram palmeiras e tamarindos,
oleandros e verdes myrtaes; em que os homens
tinham todas as côres e todos os trages;
em que ao Persa acobreado succedia o Syrio
queimado do sol, e o Africano côr da noite...
[122]
Tudo isto era um encantamento e uma surpreza,
tudo isto continha e incluia em si resultados
que assombraram o mundo.
Os conhecimentos exactos, as noções verdadeiras
e positivas acêrca do universo, podem
bem datar-se das campanhas famosas de Alexandre.
Foi então que se fez essa união fecunda
e miraculosa do espirito hellenico e do
espirito oriental, a India, a Persia, a Babylonia,
continham em germen Alexandria e as suas
escolas, os Arabes e a sua civilisação ephemera
mas deslumbrante...
Quanto a Cesar, esse latinisou, romanisou o
mundo até então descoberto; tornando possivel
a sua posterior christianisação.
Sob o sceptro dos Imperadores o mundo tinha-se
feito romano, e d'alli veiu que sob o
baculo dos primeiros Bispos elle poude fazer-se
christão. Não havia já nem
raças que mutuamente
se dilacerassem, nem religiões que
umas ás outras se contradissessem, nem tribus
que entre si se combatessem... O Imperio
novo estava maduro para receber o baptismo
de uma só religião, á qual as hordas
barbaras viriam successivamente submetter-se...
[123]
É ainda, por isso mesmo, que os que
hoje vêem na Historia a logica successão
de causas e de leis produzindo a logica successão
de phenomenos que são resultados, vêem
em Napoleão a força ao serviço da
idéa, o instrumento
de uma grande transformação social
obedecendo a uma missão superior, e cumprindo-a
de uma fórma perfeita. A Revolução
franceza
sem Napoleão, não chegaria a ser um facto
historico, egual nos seus effeitos á
proclamação
do christianismo, superior nas suas
intenções á Reforma do seculo XVI.
Essa Revolução hoje tão calumniada
pelos
mesmos que lhe gosam os resultados definitivos
e os effeitos niveladores e libertadores,
acabaria, a não dar-se o apparecimento fatidico
de Napoleão, em uma anarchia ensanguentada
da qual nem um principio se salvaria
talvez. Napoleão sahido do meio da turba,
como que encarnando em si a alma do povo,
liberta da sua escravidão secular, fez da
Revolução
um facto, um facto irreductivel, contra
o qual nem a mais reaccionaria vontade pôde
nada. Em primeiro logar elle formulou em leis,
as doutrinas revolucionarias; o seu codigo civil
tem resistido a todas as mudanças de regimen
[124]
politico que ha setenta e oito annos tem
convulsionado a França á superficie, sem terem
comtudo alterado a sua constituição civil e o
seu regimen de propriedade; depois elle fez de
uma Revolução local, que tinha por origem
primeira os abusos financeiros, uma Revolução
universal que levou o mundo a um dos
periodos decisivos da sua marcha progressiva,
e que transformou completamente a organisação
social de toda a Europa moderna.
Os seus exercitos assoladores como eram, e
não os defenderei mesmo contra os que lhe
chamam as hostes de Attila, os seus exercitos
semearam, sem o saber, sem o querer talvez,
a semente da liberdade por toda a parte onde
levaram o lemma da usurpação e da tyrannia.
Elles passaram, e sob os pés d'essas legiões
terriveis que espalhavam o assombro e o pavor,
ergueram-se por encanto instituições novas,
e os povos readquiriram a dignidade e a
liberdade, ambas perdidas na abjecta subserviencia
ao despotismo sem grandeza das modernas
dynastias.
XIV
As bellas theorias optimistas dos doutrinarios
que haviam proclamado os
Direitos
do homem, a Egualdade, a Liberdade
e a Fraternidade, a bondade innata da especie
humana, o retrocesso á boa Natureza, o Culto
da razão humana como a religião melhor e
a mais infallivel, tinham produzido, ninguem sabia
em virtude de que sortilegio hediondo, uma
horda de freneticos cannibaes, devorando-se uns
aos outros com delicia selvagem e requintes de
odio e covardia, ao pé dos quaes empallideciam
as descripções que o passado nos legou
das suas peiores tragedias.
Ninguem atinava como de tão puras premissas
tinham sahido tão horrendos resultados;
[126]
ninguem podia explicar como do bem se gerara
tanto mal, como do progresso das luzes
se tinha feito tão negra escuridão, porque motivo
intenções tão sublimemente generosas
tinham
produzido tão monstruosos e contradictorios
effeitos.
A primeira embriaguez da liberdade sem
restricções e sem limites, produz sempre no
homem esta demencia má. A Historia assim
o diz, mas n'esse tempo era apenas uma restrictissima
minoria, a que sabia lêr a Historia
e colher as suas lições.
Imagine-se que Napoleão não tinha
então
surgido; que depois da orgia de sangue que
se chamou Terror, e da orgia de lodo e vinho
e que se chamou Directorio, não se erguia,
mais alto que qualquer individualidade e qualquer
instituição, essa força
disciplinadora, organisadora
dos partidos internos, subjugadora
dos inimigos estranhos, tão poderosa, tão
efficaz,
tão capaz de querer, tão profundamente
inimiga da anarchia mansa, que dissolve as
nações e da anarchia brava que as esphacella.
A reacção mais desbragada e mais insolita
tomaria então conta da França, que n'esse momento
decapitada, mutilada, exangue e sceptica,
[127]
não achava dentro de si nem uma energia
redemptora, nem uma crença activa, nem uma
só fibra que não estivesse morbidamente
combalida.
O sublime esforço de tantos genios humanitarios
seria por um longo periodo, que hoje
não podemos calcular com acerto, inteiramente
perdido; da Revolução restaria apenas a memoria
dos seus inexpiaveis crimes. E porque
havia rolado nos degraus da guilhotina a bella
cabeça precocemente embranquecida de Maria
Antonietta, e porque o pobre e burguez e inoffensivo
Luiz XVI tinha expiado, como quasi
sempre succede em politica, os erros e as faltas
dos seus antecessores, acontecia que Montesquieu,
Voltaire, Rousseau, Turgot, Condorcet
teriam pensado, escripto, meditado, trabalhado
em vão.
Quem é que seria capaz de pacificar os partidos
exasperados a não ser esse homem superior
a todo o seu tempo, superior á sua raça,
e que pôde congregar no mesmo fim:―fazer
grande e gloriosa a patria commum;―os vencidos
e os vencedores, os regicidas e os ex-emigrados
os que tinham escapado por milagre
ás proscripções jacobinas e os que as
tinham
[128]
decretado, Fouché e Talleyrand, os filhos
da antiga aristocracia espoliada, e os
triumphantes espoliadores que estavam na
posse do que fôra d'ella?...
E d'essa agglomeração de interesses contrarios,
de ambições que se excluiam, de classes
que eram antagonicas por instincto e por
circumstancias, de adversarios que se odiavam
mutuamente, quem tirou a França poderosa,
affirmativa, unificada pelo mesmo codigo
de justiça, enriquecida pelo mesmo regimen de
propriedade, tendo conquistado a egualdade civil
para todos os seus filhos, vendo abertas todas
as carreiras para as individualidades que se
distinguissem no seu seio, consolidadas todas as
conquistas, emfim, d'essa liberdade que ameaçara
suicidar-se, envenenando no seu sangue
aquelles que d'elle haviam sonhado nutrir-se?
É este o papel cumprido por Napoleão na Historia,
é esta a sua missão na França; como
foi
sua missão no mundo espalhar, propagar os principios
da Revolução que elle, sem talvez o querer,
representava como ninguem!
[129]
Os que o julgarem mais tarde hão de julgal-o
assim, e hão de perdoar ou escurecer, como
succede com Cesar, como succede com Alexandre,
os seus erros e defeitos pessoaes, os quaes,
feito o balanço final, que só o futuro
fará, foram
talvez mais uteis do que nocivos, porque contribuiram
para o inutilisar no momento em que
o seu papel deixava de estar em estreita harmonia
com as circumstancias que necessitaram
a sua cooperação.
Ultimamente, porém, desenvolveu-se no mundo
a febre de atacar ou defender o caracter pessoal
de Napoleão em
memorias
numerosissimas,
em folhetos, em livros de historia, em pamphletos,
em ensaios criticos, etc., etc.
Quem deu o
branle a este movimento
bibliographico
extravagante, que tem como heróe
Napoleão, foi Taine em um dos seus volumes
sobre as
Origens da França
Contemporanea,
em que traçou do grande homem um retrato,
por todos conhecido hoje, retrato á Rembrandt,
cuja belleza magistral não fere á primeira
vista senão os verdadeiros entendidos, quer dizer
os psychologos e os observadores e moralistas.
Taine para desenhar Napoleão serviu-se do
[130]
seu velho processo de documentos miudinhos
juxtapostos, que não é de certo o mais
interessante
para o grosso publico. Interrogou as testemunhas
oculares, os criados, as damas de honor
da Imperatriz Josephina, as pessoas que
mais ou menos estiveram na intimidade e no
contacto directo de Napoleão. Ora, é bem sabido
que não ha grande homem para o seu criado
de quarto, mas ainda assim Napoleão excede
tanto a craveira commum e Taine sabe de tal
modo vivificar os mortos documentos com que
fórma o seu
dossier de
investigador, a sua imaginação
auxiliou-o de tal modo, indo procurar
nos
condottieri do seculo XIV e XV,
como Stendhal
já fizera antes d'elle, os antepassados cuja
influencia hereditaria e atavica, se fez sentir com
tão pittoresco relevo no grande aventureiro do
seculo XIX―que mais contribuem para a grandeza
de Napoleão as accusações de Taine,
que
os elogios de mediocridades incapazes de entenderem
a verdadeira grandeza.
Já se vê que um homem como Napoleão
não
póde ser julgado pelo nosso codigo moral. O seu
potente cerebro, o maior de certo que a determinados
respeitos tem havido no mundo, não
se deixa subordinar pelas leis fatalmente restrictas,
[131]
pelas quaes a simples humanidade tem
de reger-se para mutuamente se supportar.
A sua imaginação portentosa põe-n'o
continuamente
a dous passos do crime ou da loucura;
as suas paixões indomitas não conhecem
regra, como não conhece obstaculos a sua vontade
inflexivel.
É em virtude d'estas faculdades extraordinarias
que elle é capaz de executar cousas que
os outros nem em sonhos ousariam conceber.
Não admira que as
memorias do tempo lhe
sejam muitas vezes contrarias. Elle teve de subjugar
muitas vontades, de se contrapôr a muitas
ambições, de humilhar naturalmente muitas
vaidades, de excitar muita inveja e muito despeito,
para que os seus contemporaneos mais
intimos sejam capazes de perdoar-lhe a grandeza
excepcional de um destino que a todos
offuscava.
Mas o que ninguem póde negar-lhe é o poder
singular de seducção que o seu sorriso
irresistivel,
que o seu olhar de aguia exerciam.
Venceu e dominou todos os que se lhe approximavam,
e os proprios imperantes, seus inimigos,
receberam, ao contacto d'aquella grandeza
simples que o distinguia, o choque electrico que
[132]
se communicava fatalmente da alma d'elle ás
almas com que a sua estava em contacto.
O retrato de Taine indignou, porém, apezar
da sua incontestavel belleza artistica, apezar da
sua expressão intensa de vida, dos toques
humanos
que o fazem palpitar, os adoradores de
um Napoleão imaginario, todo virtudes burguezas
de familia, e clemencia de
Moral em
acção
e um escriptor francez para mim desconhecido,
o Sr. Arthur Levy, acaba de publicar um
grande volume com o fim de contrapôr o verdadeiro
Napoleão, o que elle chama
Napoleon
intime, ao terrivel grande homem descripto por
Taine, e de contradizer o critico francez em todas
as suas asserções ácerca do caracter
pessoal
do Imperador.
Ora, o
Napoleon intime do Sr. Arthur
Lévy é a
mais falsa personagem historica que póde imaginar-se,
embora seja todo elle composto,
como um mosaico laboriosissimo, de pedacinhos
de cartas escriptas por Napoleão, e de pedacinhos
de documentos de uma authenticidade incontestavel.
O que mais irrita o auctor do
Napoleon
intime
é a hereditariedade italiana, que Taine tão
logicamente lhe attribue.
Um burguez
francez
[133]
dos quatro costados e com todas as virtudes
médias e as qualidades mediocres da burguezia
francesa eis o que o Sr. Levy pretende
fazer do heroe das Pyramides e de Austerlitz
e de Arcole e de Wagram!...
Sobre o tumulo de soberba pedra moscovita,
que a piedade de nacionaes e estrangeiros
visita quotidianamente em veneravel recolhimento,
poder-se-hia escrever segundo o
criterio do Sr. Arthur Levy, o que sobre a sepultura
de um burguez de 1830 mandou gravar
a familia consternada:
Bom esposo, bom pae, bom filho e bom
guarda nacional.
Napoleon intime está
escripto, é verdade, com
grande copia de referencias, de citações e
documentos.
Em primeiro logar, documentos e citações
truncadas nada significam. Depois, quando
muito, elles poderiam provar que uma das faces
do multiplo caracter de Napoleão era essa que
o Sr. Arthur Levy quer apresentar como predominante:
isto é, uma certa fraqueza, que é frequente
nos seres superiores para o seu
entourage
mais intimo, para a familia, para a mulher,
para os amigos, sempre que os amigos
lhe não resistiam.
[134]
O heróe de mil batalhas desde as campanhas
da Italia e do Egypto até essa admiravel campanha
de França, a de mais superior estrategia,
segundo asseveram entendidos; o organisador,
o administrador, o general extraordinario
em cuja visão se gravava toda a topographia
de um paiz, com os seus accidentes
de terreno, os seus valles, e montanhas, os seus
recessos, as suas planicies, os seus pontos mais
fracos e os mais fortes, e que fazia d'essa
sciencia rara a applicação mais genial e
a mais pratica; o homem de mil occupações
simultaneas, que deslumbrava, pasmava, esfalfava
os seus collaboradores subalternos; o
violento, o apaixonado, o teimoso, o tyranno;
o organismo de uma delicadeza de impressões,
de uma violencia de impulsos, de um apuro de
sensibilidade excepcionaes; o que suggeria milagres
e os fazia; o que subjugou e seduziu uma
nação inteira; a figura, emfim,
unica! em toda
a Historia moderna, que foi Napoleão, nem
por um momento transparece nas paginas de
uniforme e banal elogio que o Sr. Arthur Levy
lhe consagra laboriosamente.
Napoleão antes queria, de certo, esse retrato
ás vezes de um crú realismo de toques, que Taine
[135]
lhe consagrou, do que o monotono panegyrico
d'este seu incommodo admirador.
Aquelle que eu fui ver aos
Invalidos
é talvez
o Napoleão de Taine, o do Sr. Levy, oh! esse
é que affirmo com a infallibilidade da minha
intuição de mulher, que não
é de modo algum.
Segunda parte
O fim do Paganismo
(gastão de boissier)
A litteratura franceza da actualidade é pouco
abundante em obras fundamentaes de sciencia
ou de historia, embora conte no seu seio dois
dos historiadores mais brilhantes dos modernos
tempos Renan e Taine. Á excepção,
porém,
d'estes dous grandes espiritos, que devem as linhas
principaes da sua educação intellectual
á
Allemanha e á Inglaterra e nos quaes são
profundamente
sensiveis essas influencias estranhas―póde
dizer-se que a grande geração dos
Michelet, dos Quinet, dos Auguste Comte não
deixou herdeiros capazes de nobremente a representarem.
[140]
Continúa, porém, a escrever-se muito em
França, e como as qualidades eminentemente
sociaveis d'esta nação privilegiada a tornam apta
para o seu grande papel de propagadora, de
educadora dos espiritos, póde bem accrescentar-se
que nós os europêus do Occidente quasi
tudo que sabemos, o sabemos passado pelos livros
da França.
Ou traduzidos para francez ou assimilados
pelo espirito da França, é por esse caminho que
nos chegam todas as grandes idéas mais ou menos
novas, elaboradas ou transformadas pela
raça anglo-saxonia, pela raça germanica, ou
pela raça slava.
Eu por mim lamento infinitamente que em
Portugal a litteratura ingleza por exemplo seja
tão incompletamente conhecida. Tenho achado
tantas vezes um gozo incomparavel na leitura
de escriptores inglezes, que não posso deixar de
sentir que esse intenso prazer intellectual não
seja mais universalmente partilhado. E é-o tão
pouco que ha tempos uma amiga minha―muito
instruida e
grã ledora
por signal―me affirmava
ter ouvido a um
homem de Estado
portuguez,
ministro, e não sei que mais, se mais
alguma cousa póde haver que ministro, na opinião
[141]
imparcial de quem o
é,―affirmar audaciosamente
que para provar a inferioridade
mental da Inglaterra bastava dizer isto:
é
que
a Inglaterra não tinha uma litteratura!
Que a patria que viu nascer desde Chaucer e
Spencer, até Shakespeare, Milton e Byron, desde
Bacon até Herbert Spencer, desde Addisson
até Macaulay, desde Richardson até Georges
Elliot, desde Bunyan o inspirado da Religião
até Carlyle o inspirado da Historia―perdôe
as heresias do joven estadista, meu compatriota,
cuja ignorancia me parece o estar realmente
predestinando para governar e dirigir a
nossa metaphorica Náu do Estado, por muitos
annos e bons.
Vinha tudo isto a proposito de eu ter hoje,
contra o meu costume, de apresentar um livro
francez tão erudito, tão profundamente e
facilmente
elaborado, tão cuidadosamente feito sobre
documentos authenticos, como se o firmasse o
nome de um inglez estudioso, ou de um sabio
allemão.
O livro, chama-se
O fim do paganismo
e deve-se
á penna autorisada e seria de Gaston Boissier
da Academia Franceza, grande e sincero
cultor da antiguidade latina e autor de obras
[142]
muito importantes sobre a historia das lettras
classicas.
A obra é enorme. Tem dous volumes macissos
que tratam unicamente de assumptos estreitamente
ligados ao seu titulo, mas apezar d'isso
lê-se com immenso agrado, porque é profundo
sem ser pedante, é vivo sem ser desordenado
e está escripto com um sentimento intenso e
profundo da época que o inspirou.
Essa época é aquella em que as ultimas luctas
religiosas se travaram no Occidente entre o
Paganismo que expirava e o Christianismo que
irrompia ardente, impetuoso, tumido de seiva,
cheio de um longo futuro das
entranhas
fecundas
da humanidade.
Abre com o seculo IV pela conversão de Constantino,
isto é, pela christianisação do
Imperio
Romano, e fecha com a invasão dos barbaros e
com a destruição d'esse Imperio assombroso,
que até ás vesperas da sua completa
anniquilação
fez o espanto até d'aquelles mesmos que
mais soffreram d'elle, e que não podiam crêr
que elle fosse destruido!
Ja se vê que nos é impossivel em um artigo,
ou mesmo em uma série de artigos, resumir
este trabalho que representa longos annos de
[143]
estudo e de paciente investigação; que reflecte
a leitura aturada do mais enfadonho e difficil
de todas as litteraturas, a da egreja primitiva e
a de Roma decadente.
Não queremos, porém, deixar de anunciar
este livro áquella classe de leitores que amam
sinceramente o estudo, e principalmente o estudo
da historia, um dos mais attractivos, um
dos mais interessantes que existem no mundo,
porque é um d'aquelles que suggerem mais variedade
de pensamentos e mais extensa série
de impressões intellectuaes.
A que logo se destaca d'esta obra monumental
de que tivemos a paciencia de lêr attentamente
as mil e tantas paginas é esta: Como
nas mais diversas épocas, os homens, tendo
attingido um certo gráu de
civilisação, se parecem
entre si!...
Quantas similhanças frisantes, que identidade
de pontos de vista encontramos entre os homens
que figuraram no IV seculo da nossa éra
e os homens de hoje!
Não admira, porém, isso tanto, logo que pensarmos
que ha bastantes similhanças entre a
phase de civilisação que atravessamos e a d'esse
seculo que assistiu ao esphacelar de um immenso
[144]
imperio, ao fim tragicamente melancolico
de uma religião, á
transição violenta e brutal
na distancia, mas menos violenta de facto
do que a imaginámos, de um regimen para outro
que lhe era totalmente opposto.
Não é por uma historia systematicamente escripta,
chronologicamente ligada pelos factos,
que Gaston Boissier nos inicia n'essa quadra
tão afastada de nós.
O auctor preferiu um methodo muito mais
captivante e talvez um pouco menos difficil.
Traça quadros differentes e livros completos
em si. Fórma como que uma galeria de figuras
typicas, cuja influencia se tenha feito sentir
pela sua obra escripta ou pela sua acção directa
sobre os contemporaneos.
Escolhe aquelles que deixaram um nome celebre
e analysa-lhes os livros, as cartas, as poesias,
etc. etc. Pede á historia do tempo que lhe
forneça os seus documentos mais incontestaveis
e reconstrue com elles ou uma physionomia
de Imperador ou uma figura de Poeta, ou
uma veneravel e grandiosa imagem de Bispo
ou de Doutor da nascente egreja.
Constantino, o imperador convertido, Julião,
o imperador apostata, são dois estudos de alto
[145]
interesse historico e psychologico. Em ambos,
o auctor vê dois convertidos, dois fanaticos,
um do christianismo que se apossa da sua alma
e a transporta em allucinações supremas, outro
dos velhos deuses, abandonados, cuja restauração
prepara com paixão fogosa e arrebatamento
devoto.
Nem Constantino é o ambicioso que muitos
historiadores têem imaginado e descripto, nem
Julião é o livre-pensador que Voltaire
enthusiasticamente
applaudia.
São duas almas sinceras que usáram do poder
illimitado que possuiam, para imporem ás
almas dos outros a fé que os transportava. Julião
vingava-se assim da oppressão em que o
tinham tido longos annos e associava á causa
dos deuses vencidos a sua propria causa de
opprimido e de victima.
No livro intitulado
O Christianismo e a
Educação Romana, Geston
Boissier, o erudito
escriptor, traça o mais brilhante quadro
d'essa educação antiga, cujo poderoso encanto
é tão penetrante, é tão
subtil que nunca mais
[146]
ella deixou de ser a base da instrucção que o
mundo tem dado aos seus modernos filhos.
Foi por meio da educação, dada publicamente
por mestres pagãos á mocidade christã,
que
os dois cultos inimigos se fundiram no coração
e na imaginação da humanidade. Sem
darem por isso, os christãos receberam a influencia
do paganismo expirante, por meio
dos livros dos seus poetas sublimes e dos seus
admiraveis prosadores.
Quem bebera com o leite as inspirações de
Homero e de Virgilio; quem aprendera a bem
pensar com Platão e a bem dizer com Cicero;
quem recebera a magistral lição da Philosophia
e do Direito antigo; quem formára o
seu espirito por esses moldes incomparaveis,
não podia mais esquecer o mel de tão doce
eloquencia, a graça de tão perfeita poesia e
a lição viril de tão alta sciencia
philosophica!
S. Jeronymo, Santo Antonio,
Santo
Agostinho,
os grandes doutores, os grandes luminares
do christianismo, estão todos penetrados,
até á medulla, d'essa influencia suprema e
invencivel.
Foi, portanto, por meio da educação, que os
[147]
dois elementos, o pagão e o christão, se fundiram
harmoniosamente.
É de um interesse profundo o quadro que
Gaston Boissier desenha d'essa educação romana,
tão propria para formar chefes politicos
e chefes militares incomparaveis. Mas no seculo
IV da éra christã essa
educação modificara-se
muito, a ponto de já não parecer a
mesma, nem ser capaz de produzir os mesmos
fructos. Um romano de grande familia
não conhecia, nos tempos aureos da vida d'esse
imperio, senão dois officios: a guerra e a politica.
Aprendia no campo a guerra; a politica
aprendia-a, não, lendo Aristoteles ou Platão,
mas assistindo diariamente ás sessões do
Senado.
Esta educação pratica de uma efficacia admiravel
fazia então os valentes capitães e os
famosos dominadores politicos.
A Inglaterra contemporanea, de todos os
paizes modernos o que mais se parece com a
Antiga Roma imperial, tambem cultiva a força
viril dos seus filhos nos mais variados
sports
que a desenvolvam; na natação, na nautica,
nas corridas de cavallos, na lucta athletica,
nos jogos da gymnastica moderna,―mais
[148]
sabia, embora menos esthetica do que a antiga,―e
tambem começa, de muito moços, a
exercital-os na arte da palavra, na educação
que forma os oradores, os
debaters,
os grandes
parlamentares da eloquencia ou dos negocios.
Nas Universidades de Oxford e de Cambridge,
ha
clubs especialmente destinados
á discussão
dos negocios publicos, onde se propõem
e se debatem assumptos de interesse
nacional e de politica geral.
Mais tarde, quando os professores gregos
se estabeleceram em Roma, os
grammaticos
e os
rhetoricos tomaram conta da
mocidade,
ou nas escolas publicas, ou no seio das grandes
familias.
A Grecia cultivara com enthusiasmo a philosophia,
a musica, a rhetorica, etc. Os Romanos,
porém, de uma inaptidão esthetica tão
justamente reconhecida por Mommsen―não
acceitaram com prazer, de quantas artes e
sciencias lhes trouxeram os seus educadores
gregos, senão a grammatica e a rhetorica. A
philosophia affigurava-se-lhes um palavriado
vão e inutil; a geometria e as mathematicas
só os captivavam pelas suas
applicações de
[149]
utilidade pratica; eram para elles a arte de
contar e de medir.
A rhetorica, porém, essa arte de falar que
tanta influencia produzia na imaginação antiga,
impoz-se-lhes fatalmente após as primeiras
reluctancias do instincto conservador, que
detestava tudo que era innovação.
Foi então que a educação dividida em
dois
ramos, fez da leitura e explicação dos poetas,
da critica e analyse das suas obras, a sua base
fundamental.
Ainda hoje a Inglaterra, sob as suas apparencias
gothicas a mais
romana das
nações,
dá aos discipulos das suas universidades aquella
fórte educação classica que torna
tão substancial
e tão nobremente florida ao mesmo
tempo a eloquencia dos seus grandes oradores.
II
Sem podermos acompanhar o livro altamente
instructivo de Gaston Boissier, nos variados
assumptos que elle trata, sem tentarmos
resumir os quadros magistraes da vida da antiguidade
que elle traçou, n'essas paginas tão
ricas de informação e tão sobrias de
côr, escolhamos,
[150]
para d'elles dar conta aos leitores, a
quem este genero de trabalho interessa particularmente,
alguns dos seus capitulos mais notaveis.
A biographia de Tertuliano, um apologista
do christianismo, que o mundo moderno conhece
apenas de nome, apesar da sua celebridade
theologica não póde, por exemplo, interessar-nos
tanto como a
Conversão de Santo
Agostinho.
Este Santo que conheceu até á saciedade,
até
á nausea, todas as delicias da volupia pagã, este
joven elegante, que frequentou com tamanha
paixão litteraria as escolas de Carthago, este
christão que seguiu com enlevo as procissões
da
Mãe dos Deuses, e que
no theatro devorou
avidamente as peças ligeiras do reportorio
antigo―interessa-nos
pela violenta crise mortal
que determinou a sua conversão.
Elle mesmo nos confessou em um livro que
será sempre avidamente lido pelos prescrutadores
insaciaveis do eterno abysmo humano,
todas as gradações, todos os cambiantes por que
passou a sua alma sequiosa do Infinito e que
procurava estancar a sêde que tinha lá dentro
de verdade e de luz, correndo atraz de todas
[151]
as sensações acres e pungitivas, sondando com
curiosidade inquieta todos os segredos da Paixão
e do Prazer.
Tanto mais meritorio é o sacrificio feito por
Santo Agostinho, ao renunciar ás delicias da
litteratura pagã, ás graças da musa
classica,
aos encantos da sociedade polida e culta, quanto
era sincero e apaixonado o amor que ella
tinha por todos esses prazeres da intelligencia
e dos sentidos.
Admirador de Virgilio, discipulo de Cicero,
elle atirou-se porém, com ardente desejo de
achar n'ellas a verdade que lhe fugia, ao estudo
das Escripturas. Ao principio a barbaria
christã revoltou o seu puro gosto. Só mais tarde
é que, através da fórma incorrecta
d'essas
traducções hebraicas feitas por escrupulosos e
ignorantes christãos, elle poude perceber as correntes
puras e limpidas, os mananciaes de vida
interior, as preciosas riquezas d'alma, que
jorravam dos livros sagrados, e que vinham
renovar a alma humana, vazar em moldes novos
as suas aspirações e os seus sonhos, crear
uma nova fórma de civilisação
infinitamente
mais rica e mais complexa do que essa, que a
formidavel depravação romana tinha gasto
[152]
com os seus excessos orgiacos e os seus monstruosos
e nunca vistos crimes!
Todo o capitulo consagrado a essa bella figura
do christianismo primitivo, a esse grande
espirito que tanto concorreu para a organisação
definitiva dos seus dogmas, e em que
Gaston Boissier conta as suas luctas interiores
e, finalmente, o triumpho soberbo da sua conversão
é de um interesse palpitante.
Teem sempre actualidade para aquelles que
pensam os intimos combates de uma consciencia
sincera.
Aos que fôrem verdadeiramente
homens nada
do que é humano póde ser estranho; e onde
é que a maravilhosa planta dá a sua
flôr mais
desabrochada e mais perfeita do que n'esses
typos luminosos, nos quaes o genio concretisou
todos os seus esplendores, a vontade, todas
as suas sublimes energias, a consciencia, todas
as suas forças mysteriosas!...
Santo Agostinho é o homem que amou, que
aspirou, que conheceu a vida, que luctou e que
venceu por fim, sobrepondo a todas as contingencias
da existencia limitada e mesquinha
o que elle na sua alta consciencia julgou ser
a eterna verdade!
[153]
Subir tão alto pela acção do seu
proprio entendimento
é conter dentro de si, em um momento
cuja memoria não mais se anniquilla,
fecundando eternamente outras almas e outras
existencias;―aquella porção de
elemento divino
que é dado á frágil humanidade
realisar e encarnar
em si bem raras vezes.
São estas almas superiores as eternas bemfeitoras
da nossa raça imperfeita, tão grande
pelo que sonha, tão mesquinha pelo que consegue
executar.
As origens da poesia latina
christã, que
compõem o livro 4.º, no segundo volume,
são
tambem cheias de interesse e novidade para
quem não está costumado―e quem o está
hoje em dia?―a versar tão remotos assumptos!
A litteratura christã nasceu como já dissemos
da mistura que se fez durante tres seculos
da antiguidade profana e do christianismo.
Aos que conhecem e apreciam a litteratura
dos grandes seculos da Grecia e de Roma,
deve incontestavelmente parecer mediocre,
quasi insupportavel, essa rude e incorrecta litteratura,
onde o melhor era imitado ainda assim,
[154]
com inconsciente impudor, dos modelos
antigos.
Mas muito embora ella não tenha valor litterario,
ninguem póde negar-lhe um grande
valor historico.
O grande abalo moral que o Christianismo
imprimira ás almas não tem comtudo, um
éco
que lhe corresponda na poesia d'este tempo.
Era muito imperfeito o instrumento d'essa
lingua latina em dissolução na qual tantos
povos varios tinham introduzido as suas locuções
barbaras, e que manejada por humildes
artifices ignorantes as mais das vezes, perdera
o sabor e a graça ampla e perfeita da
aurea latinidade.
Não póde pois ser classificada como uma
obra de litteratura, a serie de escriptos, que
essa era,―no entretanto fecunda e na qual
se estavam surdamente e subterraneamente
elaborando tantos elementos novos―produziu
e nos legou.
N'esse tempo cumpria-se justamente um dos
maiores acontecimentos da Historia.
O mundo estava sendo revolvido até ás
suas entranhas mais profundas.
Havia dramas intimos em cada consciencia,
[155]
parecidos com esse, de que Santo Agostinho
nos representa o mais elevado typo; havia
luctas dolorosas em cada familia; em uns
a sêde do martyrio tinha voluptuosidades
violentas; em outros a plenitude da paz religiosa
attingia uma especie de beatifico esplendor.
Que novas sensações de uma intensidade
inultrapassavel conheceram então as almas!
Que fontes de graça mysteriosa jorraram
subitamente n'esses renovados corações!
Os crentes elevaram o espirito n'um extase até
alli desconhecido. A vida eterna abria as portas
resplandecentes aos sequiosos do eterno
au
de lá. Jesus Christo mostrava as chagas do
seu corpo, e os estygmas do seu martyrio affrontoso
aos que sentiam subir na alma como
uma maré mysteriosa, o novo sentimento do
amor, a divina emoção da piedade fraternal,
que subito fizera todos os homens irmãos, e
todos os irmãos soffrendo a partilha angustiosa
da mesma agonia!
O Evangelho revelava as suas lendas cheias
de graça, as suas parabolas de idyllica innocencia,
as suas lições de simples e ineffavel
bondade, aos saciados de uma civilisação
dissoluta
e abominavel!
[156]
Todos tinham um quinhão n'aquella herança
preciosa!
Para todos havia pão e vinho n'aquella ceia
symbolica, em que as almas rejuvenescidas por
um sopro de amor commungavam maravilhadas!
Não é, porém, na litteratura, mesmo
nos
mais rudes ensaios da litteratura christã do
tempo, que este mundo de emoções novas tem
o seu perduravel reflexo.
A alma do povo, na sua fecundidade prodigiosa,
desatou-se, abalada por este impulso
que a transfigurava e sacudia, em idéas, em
typos, em imagens, em lendas, que a Arte
Christã em todos os seus periodos tem largamente
aproveitado. Em dois seculos, do segundo
ao quarto seculo, a imaginação christã
elaborou e amontoou thesouros que enriqueceram
o mundo moderno.
Os evangelhos apocryphos gerados espontaneamente
pela alma popular, no tempo do
christianismo primitivo, são os thesouros mais
ricos em que essa imaginação se desentranhou.
A mais doce, a mais imaginosa poesia do
christianismo encontra-se alli. Todas as lendas
[157]
que fizeram o encanto da nossa infancia,
e que emballaram tambem com o seu rythmo
dulcissimo a risonha infancia da alma moderna,
são tiradas d'essa poesia anonyma, em
que todas os almas collaboraram em um enleio
religioso, e em uma fé palpitante e suggestiva,
inconsciente dos prodigios que creava.
Essa é que é a verdadeira litteratura
christã,
aquella em que as forças espontaneas que geram
os mythos e os adornam com todas as flores
da mais variada poesia, se revelam com
encantadora eloquencia.
Passando em claro os capitulos consagrados
a S. Paulino de Nola, um santo gaulez que
inspira uma sympathia patriotica a Gaston
Boissier; o capitulo que tracta da vida e das
obras do poeta Prudencio; e muitos outros
que estão cheios de revelações sobre a
quadra
que descrevem, e em que nós os leitores
podemos reconstituir com intenso colorido
esse seculo estranho, em que um periodo da
Historia da humanidade findava e outro principia
a destacar-se nitidamente―paremos
[158]
deante do
Livro quinto do 2.º vol.
que tem
este titulo que é só por si um regalo para os
gulosos de taes estudos:
A sociedade pagã nos
fins do seculo IV.
Mas percebo agora que cheguei ao fim do
espaço de que posso dispôr. E este capitulo de
costumes,―em que uma sociedade aristocrata,
culta, amiga das lettras, fastienta até ao requinte,
frivola até á dissipação,
muito occupada
de elegancias mundanas, de convenções e
de cerimonias, muito sceptica, separada por um
abysmo do mundo moderno cujos representantes
eram justamente os que compunham a seita
que ella teimava a desprezar como plebeia,
humilde e ignorante, mesmo depois de fazerem
parte d'ella homens de valor moral de
Agostinho,―este capitulo, digo em que uma
sociedade tão parecida com a nossa com os
mesmos preconceitos, com os mesmos vicios,
com a mesma despreoccupação do perigo
está
posta de pé, com admiravel vigor, precisa de
um artigo especial que muito proximamente
lhe consagrarei.
III
O methodo de Gaston de Boissier é, com algumas
[159]
modificações secundarias, o methodo de
Taine.
Para penetrar uma sociedade, o erudito escriptor
estudou a sua litteratura. Para comprehender
bem a litteratura de um dado periodo
elle procura conhecer e investigar cuidadosamente
a vida dos seus escriptores. Cada typo
representativo―
representative man,
dizem
os inglezes―dá-lhe o segredo das idéas, dos
sentimentos que predominavam em uma determinada
época.
Assim para dar a conhecer aos seus leitores a
alta sociedade romana do quarto seculo, Gaston
Boissier vae lêr e faz-nos lêr a nós as
cartas
de Aurelio Symmachus―personagem de que
muitos dos seus leitores e dos leitores benevolos
d'este estudo, encurralados na extrema
especialisação
da educação moderna, nunca de
certo ouviram falar.
Todos sabem, que as cartas de Plinio, o
moço, e as cartas de Cicero lançam uma grande
luz sobre a sociedade da sua época, e concorreram
como documentos admiraveis para que
a moderna critica, tão erudita e tão
comprehensiva,
reconstituisse através d'ellas a alma da
Antiguidade.
[160]
Pois Gaston Boissier pede ás cartas muito
menos caracteristicas de Symmachus o mesmo
impagavel serviço.
N'aquelle tempo, tão proximo da hora em
que Alarico viria bater ás portas de Roma,
ninguem percebe a imminencia do perigo que
ameaçava a sociedade antiga.
Symmachus occupa-se muito pouco dos negocios
publicos; acha-os, ou «nullos ou de pequena
importancia.»
Quem lê as correspondencias, aliás adoraveis
dos grandes amadores da
epistolographia
no seculo XVIII, tambem não percebe n'ellas
o minimo rebate dos perigos que ameaçam o
regimen que ia esboroar-se em sangue e em violencias
tremendas. Nem o proprio Voltaire, tão
agudo de intelligencia, tão perspicaz, tão
penetrante,
e que tão activamente collaborára na
propaganda a que se deveu a Revolução, percebe
levemente a responsabilidade que assumia,
e as tempestades que elle creára com a
sua palavra de fogo.
Nas vesperas das grandes crises que iam
transfigurar o mundo, occupam-se todos de galantarias,
de ditos graciosos, de versinhos bem
[161]
feitos, de anecdotas de velado escandalo, de intrigas
de amor ou de ambição.
Quem presente sequer que Danton vai trovejar
e que Robespierre vai sorrir sinistramente
e que d'esse trovão e d'esse sorriso vai
surgir um mundo novo?
Tambem hoje, um seculo depois da Revolução,
quando, feitas todas as conquistas politicas,
a alma inquieta, e nunca satisfeita, do homem
reclama imperiosamente a solução prompta, radical
do terrivel problema da miseria―quem
é que percebe nos salões de Paris, de Londres,
de Nova-York e de Berlim que a terrivel
liquidação está a chegar, e que uma
era
tenebrosa de anarchia e de lagrimas, de ruinas
e sangue espera porventura os que teimarem
em viver muito?
É da lei das sociedades não perceberem nunca
claramente as transformações que se
estão
elaborando no proprio seio d'ellas.
Como quer que seja, a verdade é que o
grande senhor romano, cujas cartas nos interessam
n'este momento, se não preoccupa absolutamente
[162]
nada com os negocios do Imperio.
Comquanto no seu tempo o Senado seja ainda
um corpo importante, elle perdeu comtudo o
seu antigo esplendor.
Os Senadores deixaram de ser grandes e
poderosos magistrados, mas conservam-se uma
classe activa, eminentemente aristocratica, impondo,
ja se vê, a moda e dominando os costumes.
É justamente a transformação que se
opera
na aristocracia europêa, entre o fim do seculo
XVII e o principio do seculo XVIII. Occupam grandes
cargos honorarios na côrte imperial, como
os fidalgos francezes de que nos fala Saint-Simon―e
dominam―o que tambem frequentemente
lhes succedia a elles―na administração
interna das provincias romanas.
Um dos encargos e das honras, que estes
ultimos teem e conservam zelosamente, consiste
no caro privilegio de dar jogos publicos
ao povo. O
pão e
espectaculos, de que fala Juvenal,
continuam a ser até á final
dissolução
do Imperio, as unicas necessidades da plebe romana.
Muitas cartas de Symmachus, que era
conservador das tradições antigas, tratam
exclusivamente
de encommendas de feras e de
[163]
animaes, feitas aos amigos que elle tinha em
todo o mundo.
Na occasião de investir da pretura o seu filho
primogenito gastou elle uma somma equivalente
a dois milhões de francos.
Para todos os lados manda emissarios encarregados
de lhe trazerem artistas de merito,
bichos raros, ornamentos estranhos, sumptuosos
e imprevistos, com que elle possa deslumbrar
os olhos da plebe e manter a sua popularidade.
N'este ponto não podemos accrescentar que
o mundo moderno tenha similhanças com a
sociedade antiga. Entre as nossas eleições
constitucionaes e estas festas populares com
que se comprava o affecto do povo, a differença
não é realmente tão pequena como isso.
Os modestos banquetes, com que entre nós
o eleito obsequeia os seus eleitores não se parecem
lá muito com esses prodigiosos espectaculos
em que sómente para lhe agradarem a
elle, ao povo-rei, senadores como Symmachus
mandavam vir ursos do norte, leões da Africa,
cães da Escocia, crocodilos do Nilo,―d'esse
verde Nilo, de que Cleopatra
fôra a serpente
lasciva,―cavallos de Hespanha, comicos da Grecia,
[164]
gladiadores saxões, mimicos, cocheiros,
de Byzancio, o inferno!... Todo o mundo, então
conhecido, contribuia para o prazer cruel
d'esse povo insolente!
Eis um traço de costumes que demonstra,
mais que mil dissertações a distancia moral
que nos separa dos homens d'esse tempo, ainda
mesmo dos melhores:
Symmachus, para essa festa monumental,
mandára vir como gladiadores os prisioneiros
saxonios, raça valente, sobre a qual contava
para o pleno successo do espectaculo. Pois na
vespera vinte e nove d'esses homens de bravo
coração, não querendo servir para os
prazeres
do povo romano, estrangularam-se uns aos
outros, no carcere em que os guardavam.
Symmachus, que era um bom homem, um
homem culto, que conhecia a philosophia e a
litteratura antiga, que sabia, emfim, tudo que
sabia o seu tempo, longe de perceber a selvagem
grandeza d'este acto heroico, enfureceu-se
contra os desgraçados, e exclamou de muito
boa fé: «Não quero que me falem mais
d'esses
miseraveis, que são ainda mais perversos que
Spartacus.»
E esta exclamação de ingenua crueldade,
[165]
vale mais que uma longa analyse do caracter
e da sensibilidade antigos.
O modo externo de viver em Roma differe
pouco do já conhecido pelas Cartas de Plinio.
As regras de civilidade social têem-se, porém,
complicado ainda mais. O tempo nas altas classes
passa-se a fazer e a receber visitas, a assistir
a cerimonias mundanas, taes como casamentos,
investidura da tunica viril, conselhos
de familia, etc., etc.
A paixão das lettras é universal na sociedade
elegante―tal como no nosso seculo XVIII.
Os grandes e graves personagens do tempo
passam a vida a trocar entre si versinhos mais
ou menos chôchos e a cumprimentarem-se com
effusão pelos seus talentos litterarios.
Roma acolhe os litteratos estrangeiros sob
o reinado de Theodosio, como o fazia no tempo
de Trajano. Os mais illustres escrevem e
applaudem quem escreve, e, como no tempo
dos Medicis em Florença―os quaes, já se
entende, tratavam de imitar a antiguidade―ha
[166]
banquetes em que se leva a noite a discutir
doutamente theorias scientificas e litterarias.
A classe alta possue grandes riquezas. O
nosso Symmachus, um dos menos ricos, tem
tres casas em Roma e quinze
villas
nas mais
bellas regiões da Italia. Não se excede em luxo,
em graça voluptuosa, em douta cultura, em
elegancia magnifica, a vida d'essa classe privilegiada,
cujos avós tinham conquistado o
mundo e que tratava agora de lhe gosar em
paz as infinitas delicias.
Não se imagine, porém, que só a
sociedade
pagã estava contaminada d'este egoismo, d'esta
preguiça epicurista, d'esta artistica e sumptuosa
indolencia. S. Jeronymo, que tambem, antes
de convertido, tinha saboreado o gosto d'esta
vida ostentosa e anesthesiante, que tambem conversára
com as mulheres de espirito, lêra avidamente
os deliciosos poetas pagãos, bebêra
emfim até á embriaguez essas «delicias
de Roma»
contra as quaes se revoltava depois, é o
[167]
proprio que nos conta o modo porque os ociosos
e os ricos de
ambos os cultos
passavam a
existencia.
«Em que se passa o tempo na grande cidade?
pergunta elle, em uma das suas cartas.
Em ver e ser visto, em receber visitas e fazêl-as.
Em louvar os presentes, e dizer mal
dos ausentes. Começa a conversação e
não ha
meios de acabar.
«Contam-se historias escandalosas. Morde-se
e é-se mordido. Dilacera-se quem não
está, e
adula-se quem ouve.»
Não parece a descripção de uma sala do
nosso tempo?
Querem vêr agora o retrato de um abbade
da Regencia?
«Levanta-se muito cedo e regula desde logo
a ordem das suas visitas. Procura o caminho
mais curto, e vai surprehender, ao sahir do
leito as damas que pretende visitar. Repara,
porventura, em uma almofada, em uma toalha
elegante, em algum objecto d'esta ordem. Apalpa-o,
admira-o, lamenta-se de não possuir
nada egual, e tanto faz, que acaba por conseguir
que lhe façam presente d'elle.
«Onde quer que a gente vá, é a primeira
[168]
pessoa que encontra; sabe todas as noticias;
corre a divulgal-as antes de ninguem; inventa-as
quando lhe faltam verdadeiras, e, em
todo o caso, aformosêa-as com incidentes novos
em cada vez que as conta.»
Pois este abbadesinho galante, este joven
padre parasita e lisongeiro, não é tal da
Regencia
como eu lhes disse. É de Roma no
tempo de S. Jeronymo e é elle quem o descreve,
com este ironico vigor, com esta agudeza
espirituosa em uma das suas
Epistolas!
A differença exterior entre esta
civilisação e
a nossa é bem grande; os caracteres divergem
extraordinariamente em resultado da distancia
que vai da moral antiga á moral moderna; o
elemento da
caridade, essa base
fundamental
do christianismo, ainda apezar de enunciado e
de prégado pelos seus apostolos não
penetrára
profundamente nas almas, que a religião
antiga affeiçoára e modelára―mas
apesar de
tudo isso, quantos quadros d'esse tempo que
parecem copiados do tempo actual; quantas
[169]
figuras d'essa época que vemos reproduzidas
na nossa; quantas paixões então dominantes,
que a moral da egreja, que o sentimento religioso
mais desenvolvido e mais educado, que
a philosophia moderna mais piedosa e mais
humana, não conseguiram ainda amordaçar.
Como essa sociedade que tripudiava no luxo
colossal e na ostentosa e deslumbrante magnificencia―esquecida
ou despreoccupada dos
perigos que a ameaçavam,―assim a nossa sociedade
de hoje, tendo attingido um gráu de
civilisação
e de riqueza material differente, mas
não inferior ás de Roma, se estonteia no gozo
egoista de todos os prazeres, e no estadear cynico
de todos os vicios, sem presentir que uma
seita, tão tenaz como a christã, e menos pacifica
e menos espiritualista do que ella, tão capaz
de abnegações heroicas e de sacrificios sublimes,
e não tendo como ella o seu fim exclusivo
no Reino dos Céos, no Reino que não
é d'este mundo, avança subterraneamente,
recrutando-se nas minas onde não ha luz, nas
fabricas onde não ha Deus, nas officinas onde
o trabalho é uma ignominia, nas trapeiras miseraveis
onde as creanças agonisam com fome
entre as blasphemias desesperadas dos pais,
[170]
nas enxovias immundas onde o ar falta e onde
a desesperança brama sinistramente―e se prepara
energica e sombria para o definitivo assalto
que ha de render a velha sociedade apodrecida!
O que queriam―não esses christãos degenerados
e contagiados pelo paganismo de que
fala com amargo despreso S. Jeronymo―mas
os grandes christãos que sacrificavam e oravam
nas catacumbas, que morriam nos amphiteatros
e que escreviam com o sangue do
coração os seus rudes hymnos de
adoração e
de fé?
Queriam o desmoronamento total d'esse imperio
que era a somma do todas as iniquidades
pagãs, que era a escravidão do miseravel
e a apotheose do mau rico!
O que quer hoje o socialismo triumphante?
A morte d'esta sociedade, cujo esplendor maravilhoso
se faz com o sangue, e as lagrimas do
miseravel, do, como nunca, miseravel proletario!
Não é verdade que esta similhança
basta para
dar ao livro um intenso e profundo interesse?
Anthero de Quental
a obra e a sua morte
I
Hesito em falar ainda de Anthero de Quental!
Succedeu um tão silencioso esquecimento
ao pasmo, ao sobresalto da primeira
noticia do seu suicidio!... E no emtanto, se
havia physionomia complexa, suggestiva, capaz
de interessar e de captivar o nosso espirito
era a d'este poeta de tão requintada e
extrema delicadeza de inspiração e de
pensamentos.
A primeira impressão que recebi da sua
morte, foi tão violenta e dolorosa que em vão
tentei traduzil-a em palavras, ou mettel-a no
[172]
molde imperfeito e rude de uma apreciação
critica qualquer.
É hoje sómente, depois de volvido um mez
ou mais sobre esse suicidio, que devia enluctar
as lettras portuguezas, que eu me atrevo a
conversar com os leitores a respeito d'elle.
O livro dos
Sonetos, saudado na sua
primeira
apparição com sincero e quasi religioso
enthusiasmo, póde considerar-se como a completa
confissão d'aquella alma combalida, que
procurou na Morte o extremo refugio contra
as luctas asperas do Pensamento, contra as
chimeras perseguidoras da Imaginação.
Se o considerarmos do ponto de vista pratico
e material, d'onde a maior parte da gente
se colloca para julgar os homens e as cousas,
Anthero não era realmente um infeliz.
Tinha, pelo contrario, mil predicados, mil
qualidades invejaveis.
Tinha, primeiro de tudo, um superior e bello
talento incontestado; tinha a sufficiente abastança
para
não precisar viver
d'elle―o que
eu pelo menos considero o maior dos bens―tinha
a adoração dos amigos (que lhe chamavam
Santo Anthero), o respeito dos
estranhos,
a par de uma consciencia immaculada
[173]
que no exercicio do bem encontrava permanente
e ineffavel consolo; tivera até na mocidade
o raro dom de uma belleza de Christo,
espiritual, meiga e serena.
E, comtudo, apezar de tantas circumstancias
que se reuniam para dever tornar-lhe doce a
vida, depois da leitura d'aquelles
sonetos magistraes,
em que tão requintadas amarguras e
tão estranhos supplicios se crystallisavam, por
assim dizer, em perolas maravilhosas, não havia
leitor que não sentisse esta
interrogação
desabrochar-lhe nos labios: onde é que este
homem tão tranquillamente e tão lucidamente
desesperado encontra a força de continuar a
viver?
O suicidio do grande poeta responde agora,
lugubre, mas coherente, terrivel mas logico,
á irresistivel pergunta.
O pessimismo de Anthero não era, como
a maior parte dos que nós por ahi conhecemos,
um pessimismo pessoal, egoista, limitado
ás contradicções e ás
tristezas do seu proprio
destino.
Era um pessimismo philosophico, como o de
Leopardi, como o de Schopenhauer, como o
de Leconte de Lisle.
[174]
A sua concepção da vida, tão triste
que faz
horror e espanto, traduz-se no soneto:
A Divina
Comedia, em que elle figura os homens
erguendo para os remotos céus os braços
desesperados
e apostrophando esses deuses que
só produziram a Dôr, a Paixão, o
Peccado,
as Illusões, as luctas fratricidas.
«Pois não era
melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe
Ter ficado a dormir eternamente?
Porque é que para a dôr nos evocastes?»
Mas os deuses com voz ainda mais triste,
Dizem:―«Homens! porque é que nos
criastes?»
A Morte, não sob uma fórma repellente e
odiosa, mas attrahente como esphynge, perturbante
e voluptuosa como sereia que vem
cantar a sua cantilena de seducção á
flôr das
aguas de um verde glauco, a Morte, revestida
de um mysterioso encanto subjugador e estranho,
paira por sobre todas os paginas d'este
livro, impregnando-as de subtil e contagiosa
tristeza.
Dir-se-hia que os
sonetos lhe
são quasi inteiramente
consagrados. É a
ella que
elle vê
[175]
sempre, chamando-o, chamando-o baixinho,
entontecendo-o com as promessas do seu silencio
eterno, da sua paz profunda e vasta, do
seu mysterio que ninguem soube ainda violar.
Anthero pensára tanto que o cérebro esgotado
pedia emfim misericordia. A sua ambição
não fôra de vãs glorias, nem
vãos triumphos;
quizera levantar uma ponta d'esse véo que
esconde a eterna Verdade, além da qual tantas
gerações humanas têem sonhado com
alguma cousa de inextinguivel e de eterno.
E essa agonia intellectual que o dilacerou
exprime-se em todos os seus versos, com uma
potencia maravilhosa, e uma energia devoradora
que acabou por consumil-o!
A illusão, o vasio
universal, que encarava
ao sahir das suas vertiginosas contemplações
metaphysicas, faziam-n'o recuar pavido e tremente.
A vida não lhe dava o que elle queria;
para áquem d'esse vasto mundo invisivel que
a sua alma de sonhador presentia e pelo qual
ella anciava, nada havia que lhe satisfizesse a
sêde ideal. Por isso Anthero, fugindo voluntariamente
d'elle, foi buscar a sua amiga de
todas as horas, aquella que podia entregar-lhe
[176]
a chave do eterno enygma que o desesperava; a
«Morte!
irmã do Amor e da
Verdade»
A proposito do suicidio de Anthero, falou-se
muito de tres suicidios tambem famosos que
o precederam; mas realmente, a não ser pela
notoriedade que os assignala, eu não sei que
elles tenham comparação com o d'este poeta.
Nem Camillo, nem Julio Cesar Machado
nem Soares dos Reis se mataram pelos motivos
transcendentes que actuáram no animo
de Anthero de Quental.
Os tres mataram-se porque soffriam mais
do que é dado aos seres humanos soffrer sem
procurarem no anniquilamento a paz invocada
entre supplicios.
Um d'elles, Camillo, artista de nervos exasperados
pela cegueira, temperamento de hysterico
para o qual a resignação era uma virtude
impossivel, matou-se para fugir ás trevas
densas de uma lobrega morte em que se sentia
perdido!
Julio Cesar Machado matou-se porque, no
[177]
meio do mundo hostil que não satisfizera nenhuma
das ambições da sua pobre alma delicada
e sonhadora, elle concentrava as affeições
todas do seu coração, os ultimos sonhos
da sua phantasia, a esperança, a suprema gloria,
no amor de um filho que se suicidára
com 19 annos!―deixando-o só. O infeliz enlouqueceu
e matou-se tambem...
Sobre a morte de Soares dos Reis paira
uma sombra de mysterio. Quem sabe que luctas
intimas, que drama de paixão intensa e
dolorosa esse suicidio não veio rematar!
A morte de Anthero obedeceu a outro genero
de impulsos. Não digo que para ella não
concorresse tambem o estado de miseria moral
e de anarchia mental em que via a sua
patria (da qual havia pouco elle tinha porventura
esperado qualquer acto de energica reacção
contra o destino), mas a sua dôr era uma
d'estas dôres de ordem aristocratica e rara,
que não se originam como as da maioria dos
homens no coração, mas que emanam do espirito
cançado de cogitar em vão no mysterio
impenetravel das cousas...
Querem vêr os espectros que enchiam de pavor
sagrado as suas noites? Ouvi este
soneto
[178]
que é, como todos os outros, pagina solta de
uma confissão intellectual complicada e dolorosa,
tal como um Pascal ou um Amiel a escreveram
tambem cada um, já se vê, na sua
respectiva esphera, um nos seus immortaes
Pensamentos, outro no seu
jornal tão caracteristico
e tão pouco comprehendido:
Espectros que velais emquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus somnos curtos e cançados
Me encheis as noites de agonia e susto!...
De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados,
Disputar dia a dia á mão dos fados
Uma parcella do saber augusto.
Se a minh'alma ha de vêr sobre si fitos
Sempre esses olhos tragicos, malditos!
Se até dormindo, com angustia immensa
Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma, verter sobre o meu peito
As lagrimas geladas da descrença!
Foram estas as dôres que o mataram. A sua
consciencia não achava repouso em nenhuma
das concepções do Universo em que
alternativamente
tentava acolher-se.
Ora, dirigindo-se á meiga Virgem do Catholicismo
[179]
elle a invocava com infantil simplicidade;
ora punha na
mão direita
de Deus o
seu coração cançado, e lhe ordenava
que alli
dormisse eternamente; ora achava que
a Duvida
tinha soprado sobre o mundo
um vento
de ruina e de morte, que tudo emmurchecêra,
que tudo apagára, deixando apenas uma humilde
e mysteriosa flôr desabrochar a medo no
fundo da consciencia humana.
Aspirava ao
nirvâna,
á paz inconsciente;
queria cahir n'aquelle
vacuo
tenebroso onde na
immobilidade indefinida termina o ser inerte,
ocioso; e ao mesmo tempo a comprehensão
atavica da eternidade catholica torturava-lhe
em horas de lucta o inquieto espirito.
Que aspiração intensa ao ideal, a d'este formoso
espirito alado! Que sublimes tormentos
os seus, procurando sem descanço a verdade
e a luz!...
Mas sempre, em todas as phases d'esta interna
lucta que talvez fizesse sorrir alguns dos
leitores dos
sonetos emquanto o
suicidio do
poeta lhe não deu o seu fundo de lugubre realidade,―Anthero
chamou pela Morte, a invocou,
lhe sorriu, lhe deu os nomes mais bellos,
os mais doces, os mais apaixonados!
[180]
D'elle se pôde dizer que foi
um amante da
Morte, amante austero e triste, mas nem por
isso menos fervoroso e ardente
Por motivos inteiramente diversos dos seus,
tambem Santa Thereza, a apaixonada castelhana,
chamou a Morte com aquelles mesmos
arroubos de extase que nos surprehendem e nos
fazem estremecer a nós, pobres creaturas feitas
de carne melindrosa e fragil, a quem o
soffrimento repugna, e a sepultura com a
sua podridão infecta repelle formidavelmente.
Digam-me se ha em lingua alguma expressão
de dôr mais completa do que a d'este
soneto
a que Anthero pôz o titulo de
Despondency
por não achar em portuguez um termo
que rigorosamente correspondesse ao estado
de resignada e tranquilla desesperança que
elle traduz:
Deixal-a ir, a ave, a quem roubáram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as azas partidas a levaram...
Deixal-a ir, á vella que arrojaram
Os tufões pelo mar na escuridade,
Quando a noite surgiu na immensidade,
Quando os ventos do Sul se levantaram...
[181]
Deixal-a ir a alma lastimosa,
Que perdeu a paz e fé e confiança
Á morte quêda, á morte silenciosa...
Deixal-a ir a nota desprendida
De um canto extremo e a ultima esperança...
E a vida... e o amor... deixal-a ir a vida!
Não ha por tudo isto motivos para espanto
no suicidio de Anthero. Elle não era, como já
dissémos, um escriptor de officio, que de proposito
exacerbasse e cultivasse em si proprio
o desespero e as lagrimas, para as transformar
em rhetorica
livresca;
não tinha tambem
um vão amor de gloria indesculpavel em quem
sondava com tão penetrante e lucido olhar o
vasio de todas essas chimeras, a ephemera
duração de tudo que é da terra...
Era uma alma sincera e torturada, que naturalmente
desafogava o seu sentir tanta vez
contradictorio e doentio, em versos de uma
magia dolorosa, de uma graça delicada e triste,
de uma profundidade de expressão inegualavel,
e n'esses versos só uma nota era
constante:
o elogio da Morte.
[182]
Invocou-a sempre, chamou por ella, coroou-a
de funebres flôres, supplicou-lhe que o accolhesse
no seu regaço frio, achando emfim que
depois do
mal de haver nascido
não havia senão
um bem: tornar ao Nada.
II
Quando o livro dos
Sonetos appareceu
escrevi
eu um estudo sobre elles, que não
tinha, já se vê, outro merecimento além
de
uma sinceridade absoluta e de uma immensa
sympathia.
Lembra-me de que lamentava do fundo da alma
que o auctor d'essas bellas poesias tão raras
na nossa litteratura,―a qual como todas
as litteraturas meridionaes não pecca pelo
excesso
de pensamento―tivesse consummido a
vida, que tão bellas cousas podia dar-lhe, mettido
em si mesmo, n'aquella especie de meditação
[184]
allucinada que se traduzia, é verdade,
em versos magnificos, mas versos que eram,
como as perolas, productos de uma dôr mortal.
E revoltava-me contra a solidão mental em
que Anthero se concentrára, contra as
hesitações
do seu querer, contra as fluctuações do
seu pensamento, contra o pessimismo bhuddico
da sua doutrina, contra tudo que fizera
d'elle um philosopho germanico, ou um sonhador
nebuloso e doente, e o separava da
vida, da vida que tem tantos risos no meio
das suas charnecas desoladas, ou dos seus
sarçaes cheios de espinhos e de reptis....
Mesmo com o risco de parecer vaidosa, não
quero deixar de offerecer aos meus leitores, a
carta, até hoje
absolutamente
inedita, que Anthero
de Quental me escreveu então, depois de
ter lido os meus artigos que se publicaram
primitivamente no
Jornal do
Commercio de
Lisboa, e que hoje estão incluidos no volume
intitulado
Alguns homens do meu
tempo.
Ahi vae a formosa e eloquente carta:
«Porto, 24 de dezembro.
Minha Senhora
Agradeço-lhe muito os seus artigos no
Jornal
[185]
do Commercio, e creia V. que o
não
faço só por civilidade, ainda que não
é cousa
que se deva desdenhar
par le temps qui
court.
Não lhe direi que me agradaram os seus artigos,
porque isso é o menos; dir-lhe-hei que
me commoveram. Ha n'elles uma sinceridade,
que me encantou, e um tom fraternal que me
foi direito ao coração, onde quero que
não
morra nunca a vibração d'essas palavras amigas.
Creio que V. se engana na apreciação que
fez das doutrinas chamadas (quanto a mim
impropriamente)
pessimistas e nos
receios que
lhe inspiram as tendencias bhuddicas que começam
a manifestar-se por todos os lados,
em sociedades que attingiram o
nec plus
ultra
da civilisação, ou em individuos que attingiram
o
nec plus ultra do pensamento.
Tudo isso, é verdade, está ainda bastante
obscuro e confundido com elementos estranhos
e até contradictorios, e por isso me não admira
que não possa ainda ser apreciado sem grandes
apprehensões. O meu livrinho, apenas aqui
ou alli em meia duzia dos ultimos sonetos, fere
a nota exacta e sã, porque infelizmente morreu-me
o dom dos versos, precisamente quando
[186]
começava a pensar e a sentir alguma cousa
que realmente merecesse ser posta em verso.
Não podia elle, tão incompleto e obscuro,
justamente
onde mais cumpria que fosse claro e
amplo, dissipar aquellas apprehensões, antes
era natural que contribuisse para as radicar.
Mas a minha convicção é que taes
apprehensões
não são fundadas e que entre os sentimentos
naturaes e espontaneos do coração humano,
entre o seu ideal de justiça, de harmonia
e de belleza, e o ponto de vista ascetico do
Bhuddismo, não só não ha
contradicção verdadeira,
mas que, pelo contrario, é só n'essa esphera
que elles encontram a sua mais perfeita
expressão, libertos de muitas illusões e de
muitas imperfeições que lhe andam
forçosamente
misturadas, e attingem a plena consciencia do
que
são e para que são. E seria singular
com effeito que a doutrina, que entre todas, faz
consistir no Bem a verdade suprema da existencia
humana, pudesse collidir com aquelles
espontaneos impulsos da nossa natureza, que
não são, no fundo, senão
fórmas e momentos,
mais ou menos obscuros, mais ou menos incompletos
da nossa fundamental aspiração a
esse mesmo Bem!
[187]
A, verdade é que a civilisação moderna
chegou,
no seculo actual, como a civilisação antiga,
no periodo do
Imperio Romano,
a um ponto
em que, sob pena de completa ruina, o problema
metaphysico-psychologico tem de ser
sondado a uma profundidade desusada e proporcional
ao gráu superior da mesma civilisação.
Hoje, como então, as questões
metaphysico-psychologicas
são a chave de todas as outras
questões porque, tendo o proprio progresso
das instituições e das idéas arruinado
os antigos
alicerces moraes da sociedade, a grande
questão, a questão vital e inadiavel
não é já a
do aperfeiçoamento das instituições
nem do
augmento dos conhecimentos, mas a da organisação
theorica e pratica da vida moral, a
creação da ordem nas consciencias, em uma
palavra a remodelação do
homem
interior, sem
o qual o outro homem, da sociedada e da vida
pratica, por forte e sabio que pareça é mais
miseravel que o escravo mais embrutecido.
O progresso gigantesco do naturalismo, filho
de uma civilisação poderosa e complexa como
nenhuma, só poderá ser equilibrado por um
progresso equivalente do ascetismo. Sem esse
[188]
equilibrio a sociedade moderna, que já hoje
nos causa mais terror do que admiração,
poderá
continuar ainda por algum tempo de poderosa,
tornada formidavel, e, de formidavel,
bestial: mas o homem, o verdadeiro homem,
isto é, o homem moral, terá morrido: e morto
elle, tudo cahirá, por que só elle sustenta a
grande mólle social. A sociedade é, antes de
tudo, um facto de ordem moral.
Mas não continuo com estas reflexões, porque
desejo fazer d'ellas o assumpto de um escripto,
até a certo ponto em resposta aos artigos
de V. e que publicarei em fórma de carta,
se V. levar isso a bem.
E termino, minha senhora, pedindo a V,
que me consinta assignar-me d'aqui em diante,
como realmente sou, seu muito amigo.―
Anthero
de Quental»
Esta carta tão bella na fórma, e tão
profunda
no pensamento, apresenta porém a
contradicção
fundamental a que Anthero succumbiu.
[189]
O ascetismo é a contemplação mais
inerte:
o Bem demanda a actividade mais incansavel,
o esforço mais tenaz.
Como conciliar estes dois termos oppostos?
Se para o extatico e contemplativo pensador
a quem o
nirvana sorri como o
supremo fim
da sua ascensão ideal, cada homem não
é
mais do que um momento que toma consciencia
de si e logo passa, aquelle que na terra
procura o Bem e tenta pelo seu esforço creal-o,
sabe que se dissolvem as fórmas em que a
consciencia se encarna, mas que ella, a sublime
chamma não se apaga jámais... Nós os
passageiros de um dia que conseguimos por
instantes guardal-a no nosso seio mortal, passamos
rapidos sim, mas não antes de a transmittirmos
áquelles que nos succedem sempre
mais pura, e sempre mais intensa...
O patrimonio real da humanidade é este:
por este lhe vale a pena padecer e luctar. Este
não morre com as pobres gerações que
se succedem
como as folhas das arvores, como as
ondas do mar...
Não é pelo Buddhismo antigo, ou pela ascetica
renuncia aos bens reaes da vida que a sociedade
tem de salvar-se. É pelo exercicio
[190]
activo das suas energias espontaneas, é pela fé
na sua missão do bem, na sua ascensão a qualquer
eminencia moral, que ella ainda não antevê
de longe, mas que existe decerto, mas que
deve existir, ou este instincto de progresso a
que obedecemos, seria mais uma ironia atroz
entre outras tantas!...
A prova de que esse ascetismo a que Anthero
recorre na sua bella carta é esteril, é
que elle, querendo salvar por este modo a sua
clara consciencia e o seu espirito genial, veiu
acabar na morte voluntaria, no suicidio banal
dos vencidos e dos fracos!
Infelizmente era eu, tão mesquinha, e não
elle, tão grande, que tinha razão, e essa
razão,
foi o seu acto extremo que m'a veiu dar.
Ninguem pensára mais alto e mais justo que
esse homem de uma consciencia tão delicada,
de uma penetração philosophica tão
subtil, e cujo
entendimento parecia talhado para as mais elevadas
especulações da metaphysica e da psychologia.
E no emtanto elle não
achou
outra
resolução
ao problema que está presentemente posto
deante dos olhos das sociedades extra-civilisadas
[191]
e dos individuos que pensam intensamente,
senão a do suicidio silencioso.
É profundamente desoladora a phase do espirito
humano que, de vez em quando, se manifesta
em factos como este.
Como escapar a este estado de descrença
absoluta em qualquer destino ulterior da nossa
especie? Retroceder á boa Natureza, á primitiva
ignorancia dos simples, como manda
Tolstoi? Mas em primeiro logar a natureza
não é boa, depois, quem
sabe póde porventura,
e só por effeito da sua vontade começar
de um dia para o outro a
ignorar?...
Cada sociedade que chega ao extremo da sua
civilisação particular, o que, exaltando de um
lado o orgulho natural do homem, produz por
outro, no espirito d'elle, uma irritação doentia,
uma penosa desesperação resultante dos limites
que este acha sempre á sua curiosidade
transcendente―cada sociedade que attinge esta
perigosa eminencia, está por esse mesmo
facto, muito proxima da sua fatal degeneração.
Nenhuma civilisação se elevou mais alto nas
abstracções do pensamento, nos arrojos da
metaphysica do que esse Bhuddismo em que
[192]
Anthero de Quental tentava encontrar a suprema
paz da consciencia humana. E o que
tem elle produzido senão resultados negativos,
e allucinações doentias? A
civilisação antiga,
grega e romana, procurou resolver o problema
do destino do homem divinisando-lhe as paixões,
e fazendo a permanente apotheose da
força. E todos sabem em que agonia vasquejante
o mundo antigo se diluiu. A Edade Media
teve uma comprehensão harmonica e grandiosa
da vida e do destino humano, mas tanto
exigiu do espirito e tão pouco pensou na fatal
realidade, que fez de cada organismo de homem
um anjo e um animal perpetuamente
identificados, e ao cabo do sublime esforço,
respondeu-lhe o retrocesso pagão da Renascença.
O mundo moderno quer achar na sciencia
a chave do todo o eterno enygma que até hoje
se conserva inviolado, a explicação do universal
mysterio que o envolve e penetra, a resolução
de todos os problemas complexos que se
têem accumulado deante do seu espirito em
dois ou tres mil annos de pensamento―e a
sciencia impotente, incompleta, desconsoladora
[193]
não tem agua que sacie a nossa sêde,
não
tem piedade que unja a nossa lenta agonia!
Os melhores abdicam ou pelo indifferentismo
inerte, ou pelo suicidio; que é ainda uma victoria
do espirito ultrajado sobre si mesmo!
E um véo de tristeza densa e plumbea envolve
este mundo enorme, agitado, convulso,
atravessado de fios electricos que em minutos
transmittem de um ao outro dos seus extremos
o pensamento e a palavra; cortado de
locomotivas vertiginosas; abarrotado de riquezas
brutas; ebrio de orgulho material, de luxo
e de vaidade; persuadido de que é a
realisação
mais completa da felicidade e do triumpho
moral do homem; mas tremendo a cada abalo
subterraneo que revele quão minados estão
os seus alicerces e em que movediça areia assentam
os seus edificios de Babel!
Comtudo ha uma affirmação, no meio de
tantas duvidas e de tanta desordem mental,
que póde ser feita sem medo!
O Bem existe! A consciencia humana conhece-o
mesmo quando o atraiçôa ou o desdenha.
É ella que o tem creado em seculos
de lucta sublime! Os humildes de coração
são
talvez os que estão mais perto das fontes vivas
[194]
d'onde elle promana, e é pela humildade e
pela acceitação resignada do seu destino
incompleto
e triste e eternamente obscuro, que a
pobre humanidade definitivamente se salvará!
Por mais que amenos e veneremos a memoria
de Anthero, não podemos pois achar
justo o seu suicidio.
Contentamo-nos em achal-o explicavel.
Anatole France
I
Conhece porventura o leitor este mestre do
estylo, que é francez e moderno, e podia
ser grego e antigo?...
Conhece este discipulo de Renan, discipulo que
dispõe de mais liberdade moral e de mais fogo
juvenil que
o seu
querido e respeitado mestre?
Anatole France é, como Renan, um
charmeur,
mas é mais do que elle―um voluptuoso.
A sua philosophia, mais
Renanesca do
que
Hegeliana, move-se phantasiosamente
em um
universo de illusões.
[196]
E as fulgidas imagens, sempre renovadas,
da sua esplendida imaginação, reveste-as uma
melancolia deliciosa e morbida, como se elle
as evocasse com a consciencia de que lhe mentiam,
e as adorasse perdidamente, mesmo depois
de as saber fugitivas, falsas, ephemeras...
Um dos melhores livros que elle tem escripto,
e cujas edições se multiplicam com espantosa
rapidez―apezar d'elle o ter no pensamento
dedicado aos delicados, aos
happy
few
de que fala desdenhosamente Stendhal―chama-se
Thaïs.
Thaïs é uma
lenda
dourada dos primeiros
seculos christãos, que entre parenthesis estão
sendo apetecivel mina de estudos litterarios,
de poesias, de erudição e de arte.
Tem o livro como personagens principaes
Paphnucio, um anachoreta da Thebaida, de
carne mortificada pelos longos jejuns, flagellada
pelos duros cilicios, curtida pelos sóes
causticantes do deserto, amachucada nas caminhadas
extenuantes por sobre as penhas
bravas e os quentes areaes―e Thaïs, uma gloriosa
e applaudida actriz de Alexandria, bella
como Venus, e intelligente como Aspasia, e
prodiga de affagos como as duas, em que esplendidamente
[197]
se encarnára para enlouquecer
e perder os homens.
Paphnucio construira nas margens do verde
Nilo uma pobre cabana feita de ramos de arvores
e de lodo amassado.
Vivia alli na penitencia e na castidade; na
contemplação e no ascetismo. Obedeciam-lhe
e amavam-no as feras do deserto; legiões de
anjos, bellos como adolescentes gregos, visitavam-no
de vez em quando na sua Thebaida
escondida; os demonios, com figuras de animaes
immundos, vagavam uivando em torno
d'elle e dos solitarios que aqui e ali tinham
escolhido para morada o deserto―e tentavam
em vão os santos ascetas.
Quando elles iam de manhã encher as suas
bilhas do barro ao poço que os dessedentava,
viam as patas dos satyros e dos faunos travessos
impressas na movediça areia.
Considerada sob o seu verdadeiro aspecto, a
Thebaida era um campo de batalha, onde se travavam
a toda a hora, e especialmente de noite,
os maravilhosos combates do inferno e do céu.
Mas tão profunda era a virtude d'esses santos
cenobitas que submettia ao seu poder as
proprias féras.
[198]
Quando um solitario estava para morrer,
vinha um leão abrir-lhe a cova com as garras.
O santo homem, logo que conhecia por
este signal que Deus o chamava a si, ia beijar
uma por uma as faces de todos os seus
irmãos espirituaes.
Depois deitava-se sereno e calmo e adormecia
no seio do Senhor.
Esta descripção do Deserto e das suas maravilhas,
do ascetismo e das suas visões, da
Thebaida e dos allucinados combates que ahi
as paixões humanas travavam com a
perfeição
ideal, todo este symbolismo
humano e
comprehensivel está traçado com mão de
mestre.
Parece nos seus lineamentos visiveis a pintura
de um
primitivo, tanto é
certo que só o
extremo requinte na Arte sabe traduzir bem
a ineffavel simplicidade.
Paphnucio nascera em Alexandria, de paes
nobres, e fôra por elles instruido na delicia
das profanas lettras. Era de muito longe que
elle tivera de partir, para chegar á
perfeição
santissima da sua vida de anachoreta christão.
Um dia, porém, lembrou-se por sua desgraça
espiritual, ou por seu aperfeiçoamento
[199]
superior, que tinha conhecido em Alexandria
uma formosa actriz chamada Thaïs.
Tão bella como a mais bella das suas visões
esplendidas do Paraizo e condemnada á eternidade
das penas, á perdição infernal,
á ignorancia
absoluta do bem!...
Conhecel-a, lembrar-se nitidamente d'ella
e não a salvar, não tentar salval-a ao menos!...
Paphnucio não pôde submetter-se a esta dura
lei.
Deixa, pois, o deserto, procura a cidade
faustosa e tentadora onde Thaïs fazia as delicias
e a admiração do povo, e vae arrancar
ao inferno a sua presa deslumbrante.
É necessario fazer notar que ainda bem
Paphnucio não começára a premeditar
esta
santa empreza, já os demonios que em figuras
de chacaes costumavam uivar lamentosamente
em torno de sua cabana, sem comtudo
lhe penetrarem pela porta sempre aberta, se
permittiram entrar por ella dentro, deitando-se
perto d'elle, familiarmente, como amigos
velhos. Que encontrariam os demonios na alma
do velho cenobita para assim procederem?...
A graça ironica, a commoção subtil com
[200]
que estes quadros são traçados, podem ser
indicados pelo commentador, mas não podem
ser fielmente traduzidos por elle.
Ao pé do altivo asceta, que julga ter dentro
de si força que baste a dominar as indominaveis,
as omnipotentes paixões humanas,
e se considera com direito de desafiar o Peccado
e de o vencer, ha uma encantadora figura
de frade laborioso e simples, que nem
chega a odiar o Mal, porque lhe ignora os
requintes tentadores, e que cultiva no deserto
um pequenino jardim e uma horta em miniatura,
aceitando o amavel convivio dos bichos
e dos passarinhos, envolvendo no mesmo amor
humilde e doce a vasta natureza cheia de graças
e de assombros.
As gazellas vêm apoiar a fina cabeça inquieta
nos joelhos do santo: as figueiras que
elle trata dão grandes figos cheios de nectar
cuja contemplação é para elle um
regalo innocente.
Este bom homem dá de conselho ao orgulhoso
apostolo que se deixe de tanto zêlo, pois
que, vista a impossibilidade em que a gente
está de emendar o mundo, mais vale emendar-se
a si proprio de todos os peccados até
[201]
d'aquelle que consiste em se julgar impeccavel.
Mas Paphnucio não o quer de fórma alguma
attender; isto, seja dito de passagem, com
alegria dos chacaes seus inimigos antigos e
agora seus inopportunos familiares.
Põe-se, portanto, a caminho. Vestido tão
sómente de um longo cilicio, ei-lo que se dirige
para o Nilo―no designio de seguir a
pé a margem lybica até á cidade
fundada por
Alexandre.
Que deliciosa a narração d'esta romaria,
feita pela lingua de ouro de Anatole France!
Ha phrases que cantam no ouvido como uma
flauta da Jonia!... ha imagens que se desdobram
deante de nós como uma evocação de
magia!
Nem a traducção litteral poderia fazer presentir
o encanto rythmico, emballador, quasi
morbido, de requintado que é, d'este estylo
em que as palavras se harmonisam em um
concerto ideal, para formarem a mais suave,
e subtil, e suggestiva das musicas.
[202]
E emquanto assim se encaminha para Alexandria,
Paphnucio foge das cidades e das
aldeias; tem medo de encontrar creanças a
brincar na soleira das portas, mulheres paradas
á beira das cisternas, sorrindo cariciosamente
ao peregrino que passava, como
a Nosso Senhor a Samaritana já sorrira.
Quando, ao entardecer, a aragem passava nos
tamarindos em flôr, o sombrio apostolo puxava
para o rosto o seu capuz escuro, tal era
o receio que sentia de enternecer-se deante
da belleza ineffavel, do divino mysterio das
cousas...
Viu uma enorme sphinge egypcia talhada
no rochedo de granito e obrigou-a a confessar
o Santo Nome de Jesus Christo. Encontrou
um eremita bhuddico, todo nú, de barba
branca a fluctuar-lhe em ondas no peito curtido
ao sol, e, depois de lhe ouvir a confissão
do seu
nihilismo absoluto, depois de
lhe escutar
as blasphemias de um scepticismo sem
fim, ainda tentou convertel-o à fé profunda
que lhe abrazava o coração.
A paizagem luminosa e estranha desentranhava-se
em maravilhas; o
ibis mysterioso
e hieratico retratava no liquido espelho do rio
[203]
o seu longo pescoço côr de rosa pallido; os
salgueiros agitavam a múrmura folhagem argentea;
as cegonhas voavam no céu claro; e
nos cannaviaes da margem escutava-se o grito
de outras aves aquaticas.
O valle perdia-se ao longe em ondulações
verdes; as aguas palpitavam como um seio
de virgem; a seiva, a vida, a fecundidade, o
amor fremente e creador parecia pullular em
tudo, em tudo...
Paphnucio, porém, só pensava na
cortezã
esbelta e branca, de braços côr de lyrio e
olhos côr de violeta, que em Alexandria representava
as traições de Helena, os delirios
de Phédra, o sacrificio da candida Ephigenia,
ante uma turba delirante, que a sua belleza
embriagava e perdia...
II
A primeira vez que, em Alexandria, Paphnucio
avista Thaïs é no theatro em
que ella representava a immolação de Polyxena.
Tal contra a linda moça Polyxena
Consolação extrema da mãi velha
Porque a sombra de Achilles a condemna
Co'o ferro o duro Phyrro se apparelha...
Não se lembram do nosso Camões? Era justamente
esse lance da epopéa homerica que
Thaïs traduzia pela mimica expressiva e perfeita,
a qual, na decadencia da Arte antiga,
suppria agora na scena, viuva dos seus grandes
[205]
mestres de outr'ora, a alada, a divina poesia
de Euripedes e de Menandro. Thaïs altiva
e doce appareceu ao austero monge dando-lhe,
como dava a todos que a contemplavam «o tragico
estremecimento da sua fatal belleza.»
Segue-se então a lucta travada entre o asceta
e todas as seducções pagãs que
circumdavam a
cortezã esplendida, para converter esta á
religião
dos pobres, dos miseraveis e dos simples.
Thaïs fôra iniciada em pequenina por um
escravo negro da Nubia, chamado Ahmés,
n'essa religião que reveste de tão voluptuosas
delicias o sacrificio e a dôr.
Tinha-a mesmo baptisado, em uma época de
perseguições e de angustias, o bispo proscripto
de Cyreno, que pela Egreja soffrêra os mais
horrendos martyrios.
E toda a dulcissima e piedosa lenda evangelica
lhe fôra contada baixinho, pela voz queixosa
e cantante do misero escravo negro, quando
Thaïs, maltratada pelos paes, sem tecto carinhoso
que lhe abrigasse o corpinho infantil,
torturado de açoites, ia deitar-se á noite a um
canto do estabulo, entre animaes domesticos,
com Ahmés perto d'ella―sentado sobre os calcanhares,
[206]
as pernas dobradas, o busto direito
na altitude hereditaria da sua raça, e o rosto
negro banhado n'aquella divina luz de esperança
e de misericordia com que a estrella de
Bethlem tem, durante dezenove seculos, inundado,
casta e divina, os desherdados de todo o
bem terrestre.
Portanto, não a espantou em excesso a
apparição
do monge, depois de uma vida consagrada
ao prazer, que lhe dera o tédio sem lhe
dar a felicidade.
Só um momento, durante esses vinte annos
de embriaguez hyper-aguda, ella conhecêra a
ephemera felicidade de amar. As lagrimas que
chorou tinham tido para a pobre um sabor acre
e doce ao mesmo tempo. Nesse amor encontrára
tudo―até a perdida innocencia e a divina
puerilidade da sua fé. A bella cortezã de
Alexandria realizára o delicioso pensamento do
poeta, e tambem ella, como a Marion dos perdidos
amores, podia repetir exultante:
Et l'amour m'a refait une
virginité
Mas subito esse homem, que de todos lhe
parecêra diverso, appareceu-lhe tal como os
[207]
outros todos, e ella fugiu espavorida, para não
vêr mais a imagem da sua illusão que se partira.
Conheceu depois a gloria, os applausos, os
enthusiasmos, as adorações febris, que duravam
uma hora e que se tinham julgado eternas.
Por ella os philosophos se fizeram crianças
credulas; os voluptuosos tiveram a coragem do
suicidio; deram-lhe thesouros os avarentos; lagrimas,
os egoistas; os poetas chamaram-lhe a
sua Musa; os politicos esqueceram, para se
demorarem aos seus pés, o bem dos Estados e
os requintes que ha no prazer do mando.
E Thaïs, indifferente a todos e com todos
brincando cruelmente, conservava no fundo da
sua alma a recordação indistincta e vaga d'esse
mundo mysterioso de que lhe tinham revelado
o encanto.
Supersticiosa e cheia de ancia indefinida, tinha
a sêde atormentadora do desconhecido, a
que faz as santas, as arrependidas sublimes, e
as loucas...
Quando Paphnucio lhe appareceu, cedeu quasi
que sem resistencia á rude voz que a chamava
para o aspero caminho dos penitentes. Para seguir
o seu implacavel mestre deixou os banquetes
[208]
em que a acclamavam, sob os bellos e
poeticos nomes da poesia antiga, os homens
mais opulentos e considerados da Alexandria,
os poetas, os rhetoricos, os sacerdotes de Serapis,
os dandys do tempo, preoccupados como
os de hoje, com a arte de amestrar bellos cavallos
e de enamorar bellas mulheres.
Para o seguir, deu ordem aos numerosos escravos
que a serviam, que queimassem os seus
thesouros de arte: os cofres de marfim, de
ebano e cedro, que, entreabrindo-se, deixavam
cahir corôas, grinaldas, collares esplendidos; e
os seus ricos tapetes, os seus bordados de prata,
as tapeçarias floridas, os leitos faustosos, os
coxins macios: e as estatuas de nymphas que
pareciam animadas como mortaes: e o Eros
eburneo a quem se attribuiam maravilhosas e
não sabidas virtudes, e que valia o seu peso
centuplicado em ouro.
Para o seguir, desprezou os seus vestidos
brilhantes; os mantos de purpura; as sandalias
de ouro; os pentes, os espelhos, as lampadas
cinzeladas por industriosas mãos de escravos
artistas; as theorbas, as lyras:―todos os instrumentos
da sua seducção complicada e subtil,
todas as bellas cousas que representavam as
[209]
recordações de uma vida de luxo, de opulencia
e de amor... Não a prendeu a gloria de actriz
estremecida; chamavam-lhe a clara estrella, a
doce lua do céu alexandrino, e o rude solitario
arrebatou-a falando-lhe em penitencias duras
e em flagelladores cilicios, em lagrimas de vergonha
e de amargura choradas ao pé da Cruz.
―Mulher, dizia-lhe o monge com voz colerica,
arrastando-a comsigo ao longo da costa―vê
esse enorme mar azul. Nem toda a agua
que elle tem póde lavar as tuas manchas asquerosas!
E emquanto elle a apostrophava com a eloquencia
do mais impetuoso e ardente horror,
relembrando-lhe uma por uma, com minuciosidades
de confessor, as ignominias em que se
perdera o seu corpo, que Deus fizera tão bello,
Thaïs seguia-o docilmente sob o sol abrazador,
e por cima dos penhascosos caminhos, onde os
seus pés nús, tão lindos, tantas vezes
cobertos
de beijos, se desfaziam em sangue.
[210]
Todas estas paginas que contam o piedoso
furor do apostolo, e a humildade ineffavel da
peccadora arrependida, estão escriptas com uma
paixão acre e flammejante.
Vê-se bem que o inferno e todas as suas furias
estão dentro d'esse orgulhoso coração
de
monge, que se julga acima do Peccado e que
é vencido pela força irreductivel de um Poder
que elle negou.
Thaïs, não; essa arrependida e submissa
é
em Christo que pensa e a sua alma anceia por
desprender-se do impuro corpo, para subir,
lavada em lagrimas, ao seio eternamente misericordioso
do Homem Divino que perdoou á
Magdalena, e que não consentiu que fosse lapidada
a mulher adultera pelos que não tinham
direito de a julgar.
A ultima parte do livro está impregnada de
uma ironia, delicada como tudo que sae da
penna de Anatole France, mas destoante da
opulencia da côr e de estylo que inspiram as
duas primeiras partes.
Consiste toda ella na narração das penitencias
a que Paphnucio se entrega logo que percebe
nitidamente que o zelo que o levou a
salvar Thaïs conduzida por elle a um convento
[211]
de mulheres―não é tão puro nem
tão desinteressado
como na sua illusão a respeito de si
proprio elle suppuzera até alli.
As penitencias ás vezes chegam a ser de um
comico
voltaireano. Exemplo: a
columna no
alto da qual, mystico acrobata, elle se encarapitou
um tão longo espaço de tempo, que em
volta d'este novo Simão o
Stylita construiu-se
uma grande cidade com todas as abominações
mais ou menos legalisadas, que ha sempre nos
centros populosos.
Paphnucio dizia, porém, aos bispos e á brilhante
clerezia, que attrahidos pela fama da sua
virtude rara, e dos milagres que ella operava
sobre enfermos epilepticos, coxos, cégos, manetas
etc., etc., vinham cumprimental-o e visital-o
de muito longe:
―«Meus irmãos, a penitencia que me imponho
é nada em comparação das
tentações
que tenho, e cujo numero e força me espantam.
Um homem visto de fóra é pequeno, e do
alto da columna a que Deus me elevou, vejo
os seres humanos agitarem-se como formigas.
Mas considerado interiormente, o homem é immenso;
é grande como o mundo porque o contém
em si... Tudo que se extende ante os
[212]
meus olhos, esses mosteiros, essas casas, essas
barcas sobre o rio, essas aldêas, e o que descubro
ao longo de campos, de canaes, de areias,
de montanhas, tudo isso é
nada ao pé do que
eu tenho aqui dentro! Ha no meu coração cidades
innumeras e desertos sem fim. E o mal,
o mal e a morte extendidos por sobre essa immensidade,
cobrem-na, como a noite cobre a
terra. Eu sósinho contenho um Universo de
pensamentos máus.»
Falava assim, accrescenta Anatole France,
porque o
amor da mulher, como uma
serpente,
se lhe enroscára no seio.
O final do livro, ou antes, a moral do livro
é esta: Presente-se a salvação da
cortezã arrependida
que trouxera sempre, dentro do seu
corpo manchado, a saudade nostalgica do ignoto
bem, a chaga aberta e sangrenta de uma
aspiração insaciada―e a
perdição do apostolo
orgulhoso, que déra ao seu desejo, á sua
paixão
terrena, a fórma de um fanatico proselytismo,
e que tão rudemente falava ás gentes
do Peccado e da Virtude.
[213]
Que quer Anatole France provar? pergunta
a critica conspicua, um pouco escandalisada
d'esta orgia de estylo, de descripções, de
paizagens,
de
dilettantismo artistico.
Cá por mim imagino que elle não quiz provar
nada.
Quiz fazer divagar a sua imaginação de poeta
pelos desertos onde os monges vivem penitentes
e castos, e pelas cidades douradas e
luxuosas onde as actrizes bebem em taças de
crystal as perolas diluidas de uma adoração
voluptuosa.
Quiz levar-nos ao banquete do opulento pagador
das esquadras de Alexandria, onde philosophos
e poetas discreteiam com a elegancia e
o requinte da civilisação de Bysancio. Quiz
fazer-nos penetrar na alma de uma louca mulher
d'aquelle tempo, tão bella que, em ella
entrando na sala do festim, coberta de flôres
naturaes, parecia emprestar a estas a sua vida
e receber d'ellas o mimo, a frescura o encanto
virginal.
Quiz―é este o sentido profundo e philosophico
do seu livro―dizer-nos que ás vezes os
que apresentam mais austera virtude são os
que trazem mais serpentes venenosas no coração
[214]
pharisaico, incapaz de indulgencia e de
perdão, e que o arrependimento, quando é sincero,
humilde, e parte de uma alma sedenta
do infinito e capaz de o conter em si, póde
resgatar grandes erros e lavar na fonte crystallina
das suas lagrimas, muita nodoa de que
o mundo, o impeccavel mundo, costuma fugir
enojado e austero...
Ernesto Renan
sua obra, o seu
espirito, a sua philosophia
I
Venho tarde para accrescentar qualquer
cousa ao que n'este jornal de certo se
tem dito a esta hora da vida de Renan, e da
sua morte. Venho tarde para ajuntar, qualquer
dado biographico, qualquer inedito incidente
aos já citados aqui por informadores
habeis e intelligentes.
Mas venho cedo, talvez, para conversar com
os leitores ácerca d'esse espirito encantador,
que desapparecendo d'entre os vivos, deixa na
Europa culta uma lacuna imprehenchivel.
Não é, porém, meu intento fazer
obra de
[216]
critico, o que além de
mais, seria prematuro
ainda. Tentarei apenas dar a impressão, que
a minha sensibilidade recebeu da leitura d'esse
fino artista, d'esse poeta, que tão bem se
conhecia a si mesmo, que um dia, figurando-se
a si sob o nome
Léolin,
nos
Dramas Philosophicos,
dava do seu genio esta adoravelmente
exacta definição:
«O que é que eu faço no mundo?
Contemplo
e goso. Vou a toda a parte; entro em todos
os lugares e em todos comprehendo alguma
cousa. Eis a minha profissão. Procuro o
Bello, devorado de sêde, que jámais saciei. A
verdade demanda maior dose de perseverança
nos que a buscam; é por isso que ella me
foge, talvez.»
Não ha convivencia mais estreita, que a que
tem largos annos existido, entre mim, obscura
e pobre mulher, e essa deliciosa intelligencia
de artista, um dos mais requintadamente
perfeitos que a litteratura tem possuido em
todo o mundo.
É fóra de duvida que, para mim, o
hebraisante,
o erudito, o epigraphista sagaz, o archeologo
[217]
meticuloso, o decifrador de textos assyrios,
o
sabio, emfim, que era Renan, me
interessava mediocremente. Admirava que um
tão grande poeta tivesse a humilde
ambição
de ser apenas um grande erudito; ambição
que lhe era de resto cruelmente contestada
por terriveis homens calvos, de oculos azues
com aros de ouro e nomes impronunciaveis
de terminações barbaras, que eu nunca tinha
lido, e julgo aqui entre nós, que sómente se
tinham lido a si mesmos...
Esses, escreviam volumes
in folio
para provarem
que o
Sr. Renan não conhecia os
textos,
e o divino celta que tanta vez me fizera
vibrar até ás lagrimas com as notas da sua
harpa mysteriosa―desesperava-se com a incredulidade
d'aquelles medonhos eruditos allemães,
de que toda a gente que se presa ignora
a existencia, não atinando sequer com a
arrevesada pronuncia dos seus respectivos nomes...
O
hebraisante era-me pois
indifferente, mas
o historiador ficava de pé, com a sua
intuição
extraordinaria da alma religiosa das multidões
extinctas; com a vida intensa que elle sabia
dar aos personagens do passado; com a sua
[218]
visão clara e profunda das cousas que já foram;
com o magico poder de evocação que
elle possuia, como Carlyle o possuiu, como o
possuiram Michelet e Victor Hugo, mas de
um modo inteiramente diverso d'aquelles todos.
Um Michelet resuscitando periodos historicos
de enthusiasmo fremente e de doentia exaltação,
saberá dar vida ás
perturbações nervosas,
aos desfallecimentos e aos extases dos
seus congeneres do passado.
Um Victor Hugo dará o nitido contorno das
cousas, e até para o mundo da
allucinação levará
o seu poder de descrever o incommensuravel,
de figurar o impossivel...
Um Carlyle tera a visão ardente de um
mundo como foi o puritano, capaz de produzir
Cromwell; e saberá―desmontando peça a
peça o machinismo complicado d'esse caracter
de allucinado e de batalhador, de perfido
conductor de homens, e de crente quasi
fanatico―revelar-nos o segredo da quadra estranha
de que elle é o producto natural, a resultante
logica...
Renan saberá principalmente interpretar e
traduzir problemas e sentimentos moraes, estados
[219]
de consciencia. Para elle, como para o
grande inglez que escreveu o
Culto dos
heroes,
a historia,
é uma cousa viva, uma cousa
ineffavel e divina, destinada a resuscitar
diante dos olhos do nosso espirito, os soffrimentos,
as emoções violentas ou delicadas, as
luctas, as tristezas, as fraquezas e heroicidades,
dos nossos irmãos que morreram, das
gerações que modelaram fatalmente a nossa,
e ás quaes devemos o que somos em bom e
em mau.
Quando a noticia da morte de Renan nos
veio sorprehender dolorosamente a todos, acabava
eu de passar dois mezes no campo, em
uma solidão quasi absoluta, em uma
isolação
moral quasi selvagem, lendo apenas com intima
delicia, o mais arido talvez, por ser o
mais erudito, de todos os livros do grande
exegeta: a sua longa
Historia do Povo de
Israel,
cujo 4.º e 5.º volumes elle deixou para
serem posthumamente publicados.
E depois de ter vencido aquelle primeiro
impulso de preguiça, que um espirito de mulher
indolente não podia deixar de experimentar
[220]
ante um trabalho d'esta ordem―eu
acabára por sentir-me irresistivelmente e deliciosamente
transportada áquelles tempos obscuros
em que o semita nomada, o soberbo
vagabundo da Historia, enriqueceu o thesouro
humano, com a mais alta noção religiosa a que
á nossa especie foi dado ainda attingir, a
noção
de um
deus unico, cujo espirito
está em
tudo, e ao qual o vasto Universo obedece submisso!...
Assim como a Grecia creou a alta cultura
intellectual, a philosophia, a poesia, as artes
plasticas; assim como Roma creou as fortes
instituições politicas, tendo o Direito por base;
o semita creou a religião de que a nossa alma
se tem alimentado longos seculos, e que tão
profundo cunho lhe imprimiu, que ainda hoje
o mais sceptico de entre os scepticos demolidores
do passado se não póde libertar da sua
poderosa e absorvente influencia!
Essa genese de monotheismo, que Renan
intitulou a
Historia do Povo de
Israel, é talvez
de todas as suas obras aquella em que as
soberbas e multiplas faculdades do seu grande
espirito tiveram melhor espaço para se desenvolverem.
[221]
Nada mais bello, nada mais profundamente
interessante para um espirito que pensa, do
que a evolução da idéa religiosa,
seguida passo
a passo, com os seus periodos de impetuosa
florescencia, com os seus desfallecimentos e os
seus eclypses, com os desdobramentos subitos
de sua apaixonada energia, com as acquisições
moraes, tão laboriosamente e dolorosamente
feitas atravez de violencias spasmodicas
e de paroxysmos convulsionarios.
Sendo a civilisação moderna uma resultante
da collaboração alternativa da Grecia, da
Judéa
e de Roma, as origens da historia d'essa
raça mysteriosa, em cujo seio havia virtualmente
Jahvê e
Jesus não podem deixar de
produzir uma ardente curiosidade em todo o
espirito avido de conhecimento e de luz moral.
Eu tinha-me pois, n'essa reclusão completa
em que vivera, embriagado longamente, voluptuosamente,
da prosa, de Renan, capitosa
e perturbadora.
E quem como elle sabia, da lingua
que
fallava,
extrahir effeitos de harmonia, ao pé dos
quaes, os das outras artes me pareciam absolutamente
secundarios?
[222]
Falando do idioma hebraico, Renan diz em
uma das bellas paginas da sua
Historia do
Povo de Israel:
«Uma aljava de flechas de ouro, um grosso
cabo de potentes contorsões, um trombone de
bronze, dilacerando o espaço com duas ou
tres agudas notas: eis o hebraico.
«Uma lingua d'estas não pode exprimir nem
um pensamento philosophico, nem um resultado
scientifico, nem uma duvida, nem uma
percepção do infinito.
«As lettras dos seus livros serão contadas
como numeros, mas serão feitas de fogo como
a chamma. Dirá poucas cousas essa lingua,
mas as que disser, serão martelladas sobre
uma bigorna.
«Derramará ondas de colera, terá gritos
de
raiva contra os abusos do mundo; clamará
pelos quatro ventos do céo para que acudam
ao assalto das cidadellas do Mal. Como os
instrumentos rituaes do santuario não servirá
para uso algum profano; nunca lhe será dado
exprimir a alegria innata da consciencia, a luminosa
serenidade da Natureza; mas clamará
a guerra santa contra a injustiça, e o appello
[223]
dos grandes panegyricos; será o clarão das
neomenias e a trombeta do Juizo final. Felizmente
que o genio hellenico comporá, para a
expressão das alegrias e das tristezas da nossa
alma um alaúde de sete cordas, o qual saberá
vibrar unisono com tudo que é humano, um
grande orgão de mil teclas igual ás multiplas
alegrias da vida.
«A Grecia conhecerá toda as delicias, desde
as dansas em côro nos pincaros do Taygeto
até ao banquete de Aspasia; desde o sorriso
de Alcibiades até á austeridade do Portico;
desde a canção de Anacreonte até ao
drama
philosophico de Eschylo e aos sonhos dialogados
de Platão.»
Este admiravel, este soberbo trecho, que
acabamos de traduzir integralmente, em que o
genio das duas linguas toma forma, em uma
outra lingua, nunca fallada com tal melodia
e tal poder, quizera eu que fosse posto como
epigraphe á
Historia do Povo de
Israel, em
que Renan traduziu genialmente sob a divina
inspiração do genio Grego, a alma tumultuosa
e sombria, agitada e sequiosa de justiça, dos
prophetas da raça semitica.
[224]
Oh! como elles renascem alli nas paginas
do grande escriptor, os fundadores de quanto
ha de tremendo e de sombrio na religião que
veio depois a dominar o mundo!
Como alli se reflecte igualmente, na prosa
divina do Mestre, a Grecia que
sobre a
Acropole
lhe revelou o segredo dos seus primores!
O assumpto é o semita, mas a lingua em que
essa sublime evocação se fez, o magico
instrumento,
atravez do qual nós communicamos
com o arido e difficil assumpto, a inspiração
adoravel, que presidiu a este trabalho de
reconstituição
historico-religiosa, a arte plastica,
com que elle é genialmente modelado, tudo
isso foi colhido pela alma de Renan, abelha
ébria de luz e de perfume e de succos balsamicos,
no coração da Grecia!
É só ahi que a Belleza e a Razão
têem a
mesma fórma e a mesma essencia; é só
ahi
que a Venus Amphytrite sorri á musa de Socrates
e que a Poesia e a Religião enredam
voluptuosamente a fantasia e a sensibilidade
do homem na mesma rede azul e ouro tecida
de sonhos, que são symbolos e de chimeras entontecedoras,
que sao divinas verdades.
Mas quem leu sómente de Renan a
Historia
[225]
do Povo de Israel ficará
conhecendo todo
o genio complexo do escriptor?
Decerto que não. Elle é um grego pelo amor
da belleza plastica, mas é um celta pela sensibilidade
doentia, pela delicadeza concentrada
do seu genio.
Os que desejarem conhecel-o, precisam de
ler tudo que elle escreveu.
Precisam de seguil-o atravez dos meandros,
alguns quasi inaccessiveis, da sua
Historia das
origens do Christianismo.
Precisam de penetrar bem no estranho mysticismo
que ha no fundo d'este temperamento
de sceptico; precisam de interrogar os escaninhos
inesperados d'esta imaginação de poeta,
que em certas paginas,―como por exemplo, no
sonho de Leolino, na
Eau de
Jouvence, invocando
a alma da adorada irmã morta; nas paginas
dulcissimas dos
Souvenirs de
Jeunesse; na
symphonia esplendida que se chama
La Prière
sur l'acropole; na dedicatoria de um dos
seus livros celebres; em trechos dos seus estudos
de
Historia Religiosa;―attinge uma
virtuosidade,
um poder de harmonia, excita uma
emoção, faz vibrar tão intensamente os
nervos
do leitor, que póde bem dizer-se que a lingua
[226]
falada e escripta se transforma sob os seus
dedos de magico em musica transcendente que
parece vir d'além da terra, em musica que penetra
no coração e o desfallece de delicioso extase.
II
Este conhecimento da obra total do grande
escriptor, que eu considero imprescindivel
em quem, com acerto e justiça, quizer
falar d'elle, não o tinham, estranho é dizel-o,
senão com rarissimas excepções, os que
em
França, no jornalismo, commemoraram luctuosamente
o
passamento de Renan. A
accusação
que eu aqui deixo, fêl-a, com a sua graça
incomparavel Julio Lemaître no artigo que ao
seu querido philosopho consagrou no
Jornal
dos Debates. Porque Renan escreveu muito,
escreveu immenso. Durante cincoenta annos
trabalhou dez horas por dia, o que é extraordinario.
[228]
E além das monographias scientificas e dos
estudos especiaes que publicára nas
Revistas
e nos Jornaes de Sciencias, além da
Historia
das Origens do Christianismo, que vae de
Jesus a
Marco
Aurelio, e que se compõe de
sete grossos volumes, além da
Historia do
Povo de Israel de que ha publicados tres volumes
e para publicar dois, elle passou as horas
que não consagrava á sua principal tarefa,
a escrever toda a especie de artigos litterarios:
ensaios criticos;
dialogos philosophicos á
maneira
de Platão, como os que publicou em volume
com o titulo que acima démos; comedias
e dramas á moda e na tradição de
Shakespeare
como o
Prêtre de Nemi,
L'eau de Jouvence,
Caliban, etc. etc.; cartas que
são celebres
como aquella escripta
à un ami
d'Allemagne,
e outra a
Mr. Berthelot; fragmentos
de historia religiosa; estudos de moral; trechos
adoraveis como o consagrado a Francisco
d'Assis, o santo que teve a adoração de Michelet
e de Renan, etc. etc.
As mil faces do talento de Renan só as conhece
o que leu essa obra vastissima atravessada
por uma flecha ideal de encanto e de magia;
para a saber apreciar devidamente, é comtudo,
[229]
necessario mais do que havel-a lido, porque
então, n'esse caso estava a minha humilde
pessoa, a qual se recusa a tão elevada empreza.
Uma das accusações feitas a Renan, até
pelos
seus criticos mais benevolos, é a de contradictorio
e a de incoherente.
Baptisáram de
renanismo
uma certa qualidade
requintada e subtil de duvida amavel, que
acolhe todas as idéas, que acha em todas alguma
cousa de verdadeiro e muito de falso,
que se balouça voluptuosamente entre doutrinas
adversas, que se inclina ora para uma ora
para outra das mil fórmas da vida sem se dar
completamente a nenhuma d'ellas, que em cada
chimera acha um fundo de verdade, e em cada
verdade acceita e indiscutida um fundo de inanidade
e de illusão, que ante a Natureza,―Isis
de mil faces,―se limita a comprehender e
acceitar as contradicções do Universo,
explicando-as
se póde, e admittindo a legitimidade
absoluta dos mais variados pontos de vista,
sem ter nenhuma das qualidades estreitas e
limitadas do sectario ou do fanatico.
Ora esse modo de ser intellectual é tanto da
nossa época, que Renan, professando-o, não fez
[230]
mais do que representar em uma condensação
superior de pensamento e de critica, a
philosophia do seu tempo.
Que culpa teve elle de nascer justamente em
um periodo da civilisação em que estes caracteres
da intelligencia são justamente os que
assignalam o
homem superior, o
artista consciente,
o
representative man de uma phase
do pensamento humano.
De resto, querendo dizer a verdade toda, esse
estado de espirito de Renan, é-lhe commum
com as intelligencias mais altas de todos os
tempos. Shakespeare, que foi tambem um
dilectando
genial não dizia já que o
homem
è talvez
feito do mesmo estofo que os seus sonhos?
A interpretação dos phenomenos visiveis do
mundo é feita por esses espiritos, não de um
modo racionalista e logico, mas consoante a
fugitiva inspiração do momento que passa.
A raiz de toda a realidade mergulha em um
abysmo insondavel e obscuro, em que elles gostam
de debruçar-se, ora trementes de pavor,
ora gelados pela duvida...
Mas a justiça, que nem sempre fazem a
Renan e que é necessaria fazer-lhe, exige que
se accrescente a esses traços por assim dizer
[231]
exteriores de seu talento esta qualidade fundamental
que resalva o que elles podiam ter
de perigoso para os discipulos de sua philosophia.
Ha uma cousa em que elle acreditou sempre,
da qual não negou nunca a existencia
necessaria, embora lhe contestasse
ás vezes
nos caprichos da sua ondeante palavra, cariciosa
e triste, os resultados uteis, ou as compensações
interesseiras; essa cousa é a
moral!
«A moral é a cousa séria e verdadeira
por
excellencia; basta ella para dar um sentido e
um fim á vida humana, diz elle no prologo
dos seus
Ensaios de Moral e de
Critica.
«Escondem-nos véos impenetraveis o segredo
d'este mundo estranho, cuja realidade se
impõe a nós e nos esmaga; a philosophia e a
sciencia procuram eternamente, sem jámais a
encontrarem, a fórmula d'esse Proteu que a
razão não limita e que a linguagem
não
exprime.
Mas ha uma base indubitavel que o
scepticismo por mais completo não póde abalar,
onde o homem achará até ao termo dos
seus dias o ponto fixo de todas as incertezas;
o bem é o bem; o mal é o mal. Para odiar
um e amar outro, não é necessario qualquer
[232]
systema, e é n'este sentido que a fé e o amor,
que na apparencia não têem
ligação alguma
com a intelligencia, são o verdadeiro fundamento
da certeza moral e o unico meio que
o homem possue para comprehender alguma
cousa do problema da sua origem e do seu
destino.»
Por estas palavras sinceras e que Renan
honrou tão nobremente, em uma longa existencia
laboriosa, honesta e casta, consagrada
ao trabalho incessante, á desinteressada
investigação
da verdade, ás sondagens tão
difficeis
da Historia,―por estas palavras se percebe
bem claro, que o renanismo não significa
indifferença
moral, mas sim benevola sympathia
por ideaes diversos, contemplação amorosa
dos phenomenos que se succedem em perpetua
fluidez, em perpetua transformação, embevecimento
perante as mil fórmas alliciadoras
com que a eterna illusão nos tenta, nos
seduz, nos anesthesia, para nos fazer aceitar
o pesado encargo da vida...
A riqueza extraordinaria d'esta intelligencia
consiste na quantidade de contrastes, de
aspectos e de
nuances que n'ella se
conciliam
e n'ella se contém. Os contrastes de um caracter
[233]
são o sêllo da sua individualidade, da
sua vida exuberante e intensa. Os contrastes
de idéas cabendo em uma intelligencia dão a
medida do seu grande valor.
As contradições que desnorteiam uma logica
vulgar, não assustam por exemplo o pensamento
allemão de uma tão extraordinaria
complexidade. A concepção, a synthese magnifica
de um Hegel envolve e concilia os mais
contrarios termos no seu vastissimo seio. Ora,
em Renan, além da influencia da Biblia, tão
accentuada no seu modo dizer e de sentir,
além da influencia grega tão esplendidamente
demonstrada na
oração sobre a
acropole, que
vem inserta nos adoraveis
Souvenirs de
jeunesse,
actuou de um modo profundo, decisivo
a influencia da Allemanha.
Na sua moral Renan obedece á
inspiração
de Kant, na sua concepção do Universo, Renan
é Hegeliano. E senão vejamos esta phrase
caracteristica:
«Deus é immanente no conjunto do Universo,
e em cada um dos seres que o compõem.
Não se reconhece, porém, egualmente em todos.
Reconhece-se mais na planta que no rochedo,
mais no animal que na planta, mais no
[234]
homem que no animal, mais no homem intelligente
que no cerebro limitado, mais em
Socrates que no homem de genio, mais em
Buddha que em Socrates, mais em Christo
que em Buddha.»
Eis o resumo de toda a theologia hegelina
e
renanesca.
Se accrescentarmos a isto a affirmação de
que nenhuma vontade particular se tem manifestado
até hoje, nem poderá jámais
manifestar-se
na evolução do Universo, ou na marcha
da humanidade, mas que esse Deus, de
que elle nega a existencia pessoal, está por
assim dizer em formação no tempo e no
espaço,
á proporção que o mundo vai attingindo
a consciencia sempre mais perfeita de si
proprio, e que o homem vai descobrindo as
eternas leis da verdade, da belleza, da virtude
e do bem; de que o Universo tem um fim
idéal, aspira a um divino objectivo e não
é
nem póde ser a resultante de uma
agitação
inane, inutil e vã; que a razão, reinando mais
e mais sobre a humanidade, acabará por
crear
Deus, creando o bem absoluto, e a divina harmonia
das cousas;―nós teremos completado
a philosophia de Renan, nem sempre original,
[235]
e em todo caso pouco consoladora para os humildes
e para os pobres de espirito que em
nada collaboram para a formação definitiva
d'esse Deus, que está em via de apparecer vizivel
aos homens que hajam attingido o mais
alto ponto da consciencia...
Esta philosophia reveste-se porém, das mais
deliciosas fórmas, ella tem para se desenvolver
e para se reduzir a preceitos geraes, um
instrumento incomparavel, de uma graça que
nenhum artista ainda egualou.
Esse instrumento, que é a prosa de Renan,
é que o torna principalmente querido entre os
que lêem...
A sua melancolia de celta, a sua sensibilidade
doentia, a doçura estranha, inspirada de
algumas das suas phrases, tem tido sobre a
minha alma de mulher o poder inexplicavel
de um sortilegio.
III
O desinteresse levado quasi a um extremo
irritante para os praticos homens de hoje,
a fidelidade tocante a todas as causas vencidas;
um amor das tradições da raça, que se
exalta até á poesia, uma fórma de
imaginação
absolutamente singular e inconfundivel caracterisam
os Celtas, a cuja raça Renan tanto se
orgulhava de pertencer.
«Em parte alguma, diz elle, a eterna illusão
se adornou de mais seductoras côres, e no
grande concerto da especie humana nenhuma
familia egualou esta, nos sons penetrantes, que
vão até o coração. Os seus
cantos de alegria
acabam em tom elegiaco; nada eguala a deliciosa
[237]
tristeza das suas melodias nacionaes;
dir-se-hiam emanações do céu, que,
deslisando
gotta a gotta dentro d'alma, a penetram,
como reminiscencias de outro mundo.
«Ninguem, como ella, saboreou jámais
tão
longamente essas volupias solitarias da consciencia,
essas reminiscencias poeticas, em que
se cruzam simultaneamente todas as sensações
da vida, tão vagas, e profundas e penetrantes,
que, a prolongarem-se muito, fariam
morrer, sem que pudesse dizer-se se era de
delicia ou de amargura.
A infinita delicadeza de sentimento que caracterisa
a raça celtica está estreitamente ligada
á sua necessidade de concentração...
D'ahi esse pudor delicioso, esse
não sei
quê
de velado, de requintado, de sobrio, a egual
distancia da rhetorica do sentimento tão familiar
aos povos latinos e da ingenuidade reflectida
que tanto se faz sentir nos allemães.
«Essa raça quer o infinito; tem sêde
d'elle;
procura-o a todo o preço, para além da tumba,
para além do inferno...»
Estas phrases de Renan, colhidas no seu esplendido
estudo sobre a
poesia das raças
celticas
[238]
são o segredo de mil particularidades
d'aquella fina sensibilidade de artista.
O que elle diz dos cantos nacionaes da sua
raça, podia egualmente applicar-se ao genero
indefinivel de encanto quasi physico que a sua
prosa exerce em temperamentos accessiveis a
certa ordem de emoções.
A estranha combinação que n'elle se fez de
duas inspirações tão oppostas e ambas
tão
pronunciadas no seu espirito, a da poesia biblica
e a da poesia dos Celtas; a alta cultura
complexa que o seu entendimento assimilou
de um modo tão feliz; o dom irresistivel da
ironia que a fada que presidiu ao seu nascimento
lhe trouxe occulto entre as mais finas
flores de uma sensibilidade morbida; o optimismo
de um temperamento são e de uma
calma existencia, luctando com a noção pessimista
que a sciencia lhe deu do Universo e
da vida; as suas tendencias de
dilettante e de
aristocrata, desenvolvido em um meio de brutal
democracia e de
lucta pela vida
phrenetica;
a hereditariedade de uma mãe da Gasconha e
de um pae bretão; até a estranha circumstancia
de elle ter ouvido―nos braços maternos
e dos labios queridos de onde lhe escorria o
[239]
mel dos unicos beijos que não mentem,―contados
com a mais graciosa florescencia de
incidentes e detalhes, todas as nebulosas
tradicções
do Cyclo de Arthur, todas as lendas poeticas
de Bretanha, isto por uma deliciosa voz ironica,
que não acreditava n'ellas, e que era como
o acompanhamento musical da serenata
de D. Juan, o risonho desmentido áquella poesia
tecida em sonhos;―todos estes contrastes,
todas estas influencias contradictorias, composeram
em não sei que mysterioso laboratorio,
a essencia rara que era o genio de Renan.
Esse philtro capitoso, inebriante, seria salutar?
Parece-me, receio bem que não! Renan
era muito do seu tempo para não ter d'elle a
pontinha de corrupção intellectual, que, em
temperamento physico menos equilibrado, levaria
ao scepticismo dissolvente, á egoistica
indisciplina que se traduz pela satisfação de
todas
as paixões, ainda as mais funestas.
Elle, que era um santo na pratica da vida,
e que, sahindo do seminario, quiz trazer para
o trato social as virtudes, a castidade, a serena
despreoccupação de sentimentos que o agitassem,
que lhe haviam sido recommendadas pelos
padres que o creáram; elle, que era um santo
[240]
na moral, podia na vida intellectual ser esse
delicioso
diletante que se comprazia
em perder-se
nos complicados meandros do pensamento,
amando como Socrates a virtude e
chamando-lhe como Bruto um
nome
vão!
glorificando o martyrio e notando ao mesmo
tempo a impossibilidade que ha para o homem
superior em morrer por
uma
idéa, necessariamente
falsa, pois que nunca a verdade póde
estar em uma só face de qualquer doutrina;
recommendando a
moral como
«a cousa por
excellencia verdadeira e séria» e dizendo aos
homens, aos fracos mortaes a quem o desinteresse
custa tanto, que nenhuma recompensa
lhes advirá dos sacrificios feitos a essa
abstracção
sublime; negando a intervenção de
Deus na obra universal e affirmando que o
Universo tem um fim divino; sentindo e communicando
aos que o lêem, as sensações mais
dubias e as mais contradictorias; vibrando ao
influxo das idéas mais diversas, desde o mysticismo
até a transcendente ironia, tendo feito
a viagem á roda do mundo do pensamento,
e vindo de lá, da sua longa e laboriosa romaria,
egualmente indifferente ou egualmente benevolo
para todas as doutrinas, para todos os
[241]
estados da alma, menos para o fanatismo dos
sectarios, que lhe inspirava um desdem piedoso,
e que ainda assim comprehende, porque
ninguem entendeu melhor Jeremias e Ezéchias,
os prophetas da feroz Jerusalem!
Elle podia ser essa encarnação suprema do
genio da critica moderna. Mas os que não
têem o mesmo dom feliz de separar a vida da
intelligencia da vida dos sentidos? Mas os
que vivem a sua philosophia e traduzem em
actos as suas theorias?...
Oh! para esses, a doutrina d'esse santo será
o mais corrosivo dos venenos; o encanto miraculoso
d'aquelle genio ondeante, cujo pessimismo
desabrochava na flor de um sorriso e
cuja esperança se afundava, mysteriosa e lugubre
nymphéa, no pantano glauco de uma
negação sombria,―seria a mais desorganisadora
e a mais corruptôra das lições!
Mas esquecemos o que houve de triste
e de negativo n'essa philosophia, cujas raizes
mergulham no complicado e sceptico pensamento
germanico!
Nós, as mulheres, amemo-lo pela graça―esse
[242]
dom feminino, que elle possuiu como ninguem
mais, pela linguagem divina, de que elle
revestiu as suas idéas, por milhares de trechos
verdadeiramente impeccaveis, de uma unctuosidade
evangelica, de uma pureza transcendente,
de uma poesia ineffavel, com que elle
enriqueceu a litteratura universal.
Como havia em Rénan de tudo,―e é este
o seu caracteristico mais singular, e é este, em
face da estricta logica, o defeito mais reprehensivel
da sua intelligencia―podia um admirador
consciencioso e delicado extrahir, dos
seus livros innumeros, um livro piedoso, especie
de
Imitação,
menos ascetico, porém,
mais perfumado das flôres do Evangelho primitivo;
livro para ser lido em hora de crise
d'alma, livro para ser decorado pelos delicados,
pelos contemplativos, pelos tristes...
No prefacio dos seus
Estudos de Historia
religiosa, diz Renan pouco mais ou menos
isto mesmo.
Formúla o voto de que alguem, das perolas
soltas do seu escrinio, que sabemos ser
de millionario, compozesse uma especie de
livro d'horas, para ser folheado
depois da sua
morte, por finas, esguias e brancas mãos patricias,
[243]
na paz obscura e calmante das cathedraes.
Oh! Como a subtil ironia que atravessa,
flecha de luz aeria, este voto estranho, é bem
d'elle! D'esse aristocrata, que deveu á democracia
a liberdade que amplamente gozou; d'esse
dilettante, d'esse mystico que
desejaria ser
enterrado na nave lateral de uma sombria egreja
catholica; d'esse ironista que manejou tanta
vez o arco de Voltaire com settas mais finas,
settas feitas de ouro; d'esse philosopho que
prégou a inanidade da sabedoria; d'esse sabio
que se ria da sciencia; d'esse iconoclasta dos
templos que ungiu de balsamos tão inneffavelmente
doces os pés de Jesus Christo, e que
achou na piedade da sua alma uma fórmula
de scepticismo mais respeitosa que muitas
orações,
de um realismo por assim dizer concreto
e material...
Se eu pude traduzir a impressão que elle me
dava, impressão confusa e deliciosa, indefinivel
e querida, impressão que era ao mesmo tempo
receio de me deixar seduzir, encanto ao sentir-me
arrastada na corrente d'aquelle feiticeiro
[244]
perigoso; se eu pude dizer todo o amor com
que lhe quiz, e todas as restricções com que
este sentir me subjugára, dou-me por feliz,
porque a fazer a critica da obra de Renan, a
isso nunca eu ousaria aspirar.
Oliveira Martins
I
Tres mezes decorreram já desde que a negra
terra do cemiterio o encobriu aos olhos
dos que o amavam, e não está de molde o mundo
moderno, que tumultua desvairadamente
anarchico para chorar os seus mortos ou para
commemorar os seus heróes!
Desde que elle morreu, esta pobre nacionalidade
portugueza que a sua alma soube tão
bem estudar, comprehender, amar nos momentos
typicos da sua grandeza, chorar nos espasmos
convulsivos ou no torpôr comatoso da
sua longa agonia, desde que elle morreu, já
[246]
esta pobre patria, tão sua amada, se tem deixado
afundar mais alguns gráos no abysmo de
uma decadencia para que não ha cura.
[1]
Quasi
todos o esqueceram, a elle, ao grande melancolico
que, durante mais de vinte annos, se
não cansou de avisar os despreoccupados, de
accusar os cynicos, de analysar cruamente ou
desalentadamente o lento processo por que uma
nação se desagrega e esphacella e para quem
a historia foi mais uma obra de moralista do
que um trabalho de laboriosa e minuciosa
erudição.
Quasi todos o esqueceram, ou se recordam
apenas do que mais ephemero e contingente
houve no seu espirito, e uma das coisas que
mais dóe é este silencio, mortalha peior que
todas as mortalhas, que na hora seguinte ao
desapparecimento de um grande espirito lhe
envolve nas funerarias dobras o nome que parecia
tão brilhante em vida!
[247]
Depois, mais tarde, é certo que a posteridade
vinga esse nome da indifferença da
geração
a que elle devia ser mais querido, mas
isso não impede que a impressão geladora de
tão duro esquecimento faça soffrer algumas almas
raras que não esquecem o que amaram...
Para mim, a morte de Oliveira Martins foi
um golpe dolorosissimo...
Feridos os dous por uma doença traiçoeira
que se apresentava no empobrecido organismo
de ambos, egualmente ameaçadora de morte
proxima e que para elle tão cedo realizou a
negra ameaça, ambos tinhamos partido com
differença de dias apenas para Cascaes.
Eram contiguas as casas que habitavamos,
davam ambas para o lindo parque que o fallecido
Visconde de Gandarinha alli plantou
luxuosamente.
A primavera tinha desdobrado pelo parque
todo em viço e pela extensão dos campos um
enorme estendal das flôres mais frescas, mais
vivas, mais cheias de mimo e côr. Inundavam-nos
as salas os lyrios amarellos, as rubras
papoulas, os malmequeres brancos e dourados,
as verdes espigas, toda essa divina e
[248]
inoffensiva flóra dos campos que consola os
doentes sem os envenenar.
Através das rendas transparentes do arvoredo
em que todos os tons, todas as
nuances
do verde se casavam em uma gamma opulenta
e maravilhosa, avistava-se, das janellas
dos dous convalescentes, o mar, o grande mar
azul, em que Oliveira Martins lêra tão
commovedoramente
a lenda do nosso destino nacional,
a historia gloriosa e tragica da vida e
da morte da Patria Portugueza.
Barcos de véla passavam a cada instante,
e elle sabia conhecer cada typo de embarcação.
Cada véla que atravessava o mar longinquo,
palpitando ao vento fresco de abril, tinha
para elle uma suggestão viva, uma lembrança
saudosa ou pittoresca.
A luz, a luz embriagante da primavera de
Portugal, derramada em caudaes da concava
saphyra dos Céus, reanimava-o dia a dia, dava-lhe
aspirações frementes de vida, de alegria,
de trabalho, de actividade mental.
Ouvi-lo era um encanto.
Menos abatido de espirito, e mesmo de corpo,
que eu, era elle quem, descendo a escada
[249]
da sua casa e subindo a da minha, vinha sentar-se
na pequenina sala onde eu quotidianamente
esperava aquella visita deliciosa.
E de sua voz lenta, cheia de pausas, de
uma doçura como que abafada, modulando-se
em tons de intima melancholia, de acre desprezo,
de tolerante e passivo desdem, e ás vezes,
raras vezes, de alegre e despreoccupada
ironia, ia preguiçosamente escorrendo toda
uma philosophia da Vida, triste sim, mas não
desesperada nem crúa...
Mystico de temperamento, mystico de sentir,
o seu scepticisrno das coisas era temperado
sempre por aquelle instincto tão raro na
alma penisular, positiva até na sua fé,
o instincto
do mysterio ambiante, o presentimento
de alguma coisa ignorada que nos cerca, acompanha,
domina, nunca revelada, nunca explicada,
nunca tangivel, mas tão impossivel de
definir como de eliminar...
«There are more things in heaven and earth,
Horatio.
Than are dreamt of in your philosophy.»
Estas palavras do Hamlet lembravam-me
quando o ouvia discorrer de vagar, sempre
muito de vagar, olhos de sonho fitos vagamente
[250]
no espaço, como que vendo n'elle
coisas
que nós lá não viamos...
Falávamos de tudo. Mais, no emtanto, do
presente que do passado. Era nobre, glorioso,
épico o passado? De certo!
Mas que importava, se estava inteiramente
extincto para nós. O presente causava á grande
alma especulativa e triste de Oliveira Martins
um tedio inenarravel. Esta agonia sem grandeza;
esta lucta de mesquinhos, de baixos interesses,
lembrando a germinação e o fervilhar
de vermes na putrefacção de um cadaver querido;
esta inconsciencia de perigos imminentes;
esta ignorancia universal de todas as forças
e elementos que, ou conjugados ou antagonicos,
hão de fatalmente ter uma influencia
capital no modo de ser organico da sociedade
portugueza; este risonho cynismo que anima
as classes dirigentes e lhes inspira todas as
manifestações da sua actividade ou da sua
inercia; este quadro desolador de um paiz que
lucta pela vida, é verdade, mas que perdeu
todas as energias materiaes ou ideaes, por
meio das quaes uma vida se conserva―arrancava-lhe
expressões de uma tão inconsolada
[251]
tristeza, como eu me não recordo de as ter
ouvido a mais ninguem.
II
Outras vezes, nas horas mais calmas, mais
doces da conversação, quando o crepusculo ia
envolvendo a paizagem maritima, tão doce,
suggestiva e melancolica, em uma especie de
ideal neblina azul―era pelo seu trabalho passado
que os olhos do grande morto se espraiavam.
Dizia-me então a commoção intensa,
dolorosa,
extenuadora, com que elle
vivera,
por
assim dizer, algumas scenas da sua Historia,
revelando essa profunda e hyper-aguda sensibilidade
intellectual que é talvez a feição
predominante,
a
faculté maitresse do
seu genio...
Em momentos sagrados, d'estes que serão
um eterno segredo entre o artista que
sente e
o Deus que o inspira, ou antes em momentos
em que o artista se sente um deus, isto é, um
Creador, e em que o elemento divino, de que
o seu genio é a revelação suprema, o
levanta
[252]
acima de si proprio e da sua pobre existencia
ephemera, fugitiva, mortal, o grande artista,
que havia em Oliveira Martins, vivia seculos
de gozo extenuante, de volupia ideal incomparavel...
―«Sahía d'esses momentos alagado em lagrimas
e como que exhausto, envelhecido»―contava
elle, deixando transparecer na palavra
e no gesto um vago assombro.
É por isto que o trabalho lhe exhauriu a
mais pura seiva do seu sangue, não porque
fosse
nem excessivo, nem brutalmente
aturado,
como por exemplo o de Balzac.
Outras vezes ainda a saudade levava-o docemente,
talvez sem dar por isso, a evocar a
memoria do querido amigo morto, de Anthero
de Quental. Oliveira Martins fôra o companheiro,
o confidente, o amigo dilecto do poeta
dos
Sonetos, em quem Souza Martins,
n'um
magistral estudo psychico-pathologico, acaba
de descobrir uma ascendencia scandinava, que
explica e justifica a essencia de sonho nebuloso
e mystico de que o seu talento parece haver
sido elaborado.
Falando de Anthero, era inexgotavel a memoria
de Oliveira Martins. O intimo drama
[253]
d'aquelle coração e d'aquelle espirito ninguem
melhor o conheceu e interpretou.
A excessiva idealisação na esphera sentimental,
o abuso do pensamento, a acceitação
simultanea das mais contrarias, das mais oppostas,
das mais irreductiveis theorias, a multipla
concepção da vida que n'esse desequilibrado
de genio se transformou na loucura e
na morte: tudo elle analysava, estudava, esclarecia
com aquella attenção paciente, com
aquella agudeza de intelligencia, com aquelle
estranho dom de penetrar e comprehender as
almas mais diversas,―e até uma alma diversa
segundo os momentos, a influencia exterior,
as crises morbidas, a propria temperatura
physica,―com aquella extraordinaria
lucidez critica, serena, impessoal que assignala
os homens verdadeiramente superiores.
Para elle proprio―deixem me este orgulho
de que aliás tenho recordação escripta
pela
sua propria mão e confirmado pela sua sublime
e dedicada e heroica enfermeira, amiga e
esposa―para elle proprio estas conversações
que o capricho de cada momento ia inspirando
e movendo, se tinham tornado um prazer
subtil e delicado. Eu ouvia, sem muitas vezes
[254]
fazer mais que suggerir, excitar, conduzir um
pouco ao sabor da minha curiosidade intellectual
o rumo errante da sua palavra fascinadora...
Elle pensava alto, e gosava talvez de dar
fórma concreta ás visões fugitivas da
imaginação,
de prender o peso de uma definição
verbal, á aza subtil de uma idéa que ia esmaecer,
volatilisar-se, fugir espaço em fóra...
O ardente desejo de Oliveira Martins, sedento
de vida, como todos os feridos por
aquella doença atroz que escolhe os melhores
e os mais delicados organismos, para os fulminar
em plena flôr de intelligencia e vida―o
ardente desejo de Oliveira Martins era partir
para Castella e estudar de perto o theatro
de scenas que a sua mão magistral ainda deixou
esboçadas em rapidas notas. Escrever o
seu livro sobre D. João II e depois terminar
por D. Sebastião,―o querido heroe lendario, o
nosso rei Arthur fielmente esperado durante
seculos por tantas almas de fé,―o cyclo da
nossa vida nacional; que depois não tem
feito mais que arrastar-se, desprestigiada, desformisada,
pervertida na fórma e na essencia,
até esta tristeza de hoje amorpha e gelatinosa:
[255]
eis o sonho concebido pelo escriptor glorioso
e admiravel.
Foi com o fito de visitar a Hespanha e depois
de ir trabalhar em algum eremiterio bem
recolhido, bem arejado e fresco, bem afastado
de todo o movimento social, que Oliveira Martins
mais robustecido, e na apparencia melhorado,
deixou Cascaes.
Ha uma carta sua de Salamanca em que
transparece do novo aquella tristeza que na
doença o acompanhou como um presentimento
funereo. Não resisto ao desejo de copiar alguns
trechos d'ella:―«Ahi vão duas linhas
do viajante que pisa agora as terras de Santa
Thereza.
«Em Alba de Tormes esteve ella; aqui na cathedral
tem um dedo que eu hontem tive a
honra de tocar.
«Dizia a Santa, ardendo em divino amor:
muero porque no muero. Eu
não digo outro
tanto, mas, em verdade, a vida não é realmente
senão o desdem de viver e de morrer.
Morrer para quê? Para quê viver? Os hespanhoes
têem uma locução muito frequente e
muito
expressiva. É uma phrase, na qual, como
succede com a musica, cada um mette o que
[256]
tem na idéa.
Quien sabe?
Quem sabe o que é
viver? Quem sabe o que é morrer?»
N'esta fluctuação vaga do pensamento que
se comprazia em ver sempre de cada problema
as duas faces contrarias, está em
raccourci muito
do que foi a philosophia particular de Oliveira
Martins!
Da viagem a Hespanha voltou elle já ferido
sem apello e sem possivel cura pelo punhal
traiçoeiro da Morte!
Ainda esperou contra todas as esperanças,
ainda a paizagem agreste e idyllica a um tempo
do convento de Brancanes e cercanias o
embriagou como a ultima estrophe deliciosa
d'esse poema da Natureza, que para a alma
d'elle, como para poucas almas, tinha harmonias,
côres, visões divinas, philtros alucinantes
e poderosissimos. E ainda como ultima exhalação
do seu querido espirito para o meu,
algumas palavras me vieram provar a força
pertinaz da sua illusão e os extremos da sua
delicada e preciosa amizade.
«―Hontem, para provar a mão, comecei a
trabalhar no meu
Principe Perfeito.
Não imagina
a alegria que me deu vêr que não tinha
morrido ainda. Ainda escrevo. Ainda vivo.
[257]
Cumpra depressa a promessa da sua visita...
«―Não ha calmante como a paizagem e os
rumores do campo. Sente-se a gente arvore.
Aqui ha tudo. Solidão no meio de um campo
habitado, pomares nos valles, montes em volta,
em frente o mar. Que mais se quer? O
convento onde estou é enorme; cabe aqui
tudo. Ha terraços delirantes. Ha arvores verdadeiras;
uma matta a valer; pinheiros, sobreiros,
medronheiros. Venha depressa...»
É a ultima vez que a sua mão traçou
linhas
que me fossem dirigidas e eu propria infelizmente,
preza pela doença em Cascaes que
nunca deixei, não o tornei mais a ver.
Mas publiquei trechos d'estas duas cartinhas
preciosas, porque duas faces bem caracteristicas
do espirito complexo de Oliveira Martins
estão aqui adoravelmente retratados. N'uma a
ondulação melancholica e vaga do seu sonho
ante o mysterio da vida e o mysterio da morte.
N'outra, na ultima, o seu ardente amor
pantheista da natureza viva, aquella paixão
fremente que o fazia dar uma alma á
paizagem,
communicar a sua fecunda emoção ás
arvores e ás cousas, sentir no seio d'ellas a
communhão mysteriosa que prende em uma
[258]
cadeia de infinitos élos sem quebra, a pedra á
planta, a planta ao animal, o animal sem alma
á alma infinita, á alma Universal!
III
Deante da obra tão vasta e variada de Oliveira
Martins não póde ainda a critica lavrar
qualquer juizo definitivo. É cedo de mais para
que esse tribunal pronuncie a sentença decisiva
que tem de ficar gravada no Pantheon
das glorias portuguezas. Mas se a critica impassivel
e austera tem de addiar ainda o resultado
da sua investigação, é licito a cada
um
de nós dar a impressão intima que recebeu
do trabalho devéras extraordinario do escriptor
que se finou.
Em primeiro logar a dualidade de aspectos
que essa obra apresenta, transforma-a em
uma especie de problema altamente interessante
para a psychologia.
Em Oliveira Martins, a par do mystico contemplativo,
do sonhador philosopho, do moralista
desdenhoso, havia―estranha coisa, tão
[259]
rara na nossa raça simplista―um ser inteiramente
contrario a esse, um espirito positivo
na analyse dos factos, rigoroso nas deducções
do pensamento, pratico na administração dos
negocios, e em que uma rara sagacidade das
coisas se alliava a um methodo maravilhoso
na classificação dos conhecimentos positivos.
Estes dois homens tão diversos formaram
um só, ás vezes coutradictorio até ao
enigma
irritante, incomprehensivel ao entendimento
médio, illogico perante a opinião do vulgo.
Separados, cada um d'elles formava um conjuncto
completo de qualidades harmonicas,
uma força intellectual de primeira grandeza.
Juntos, havia momentos em que eram capazes
de desnortear, de entontecer até o espirito
mais perspicaz e mais aberto ao feliz dom da
sympathia intelligente. Assim como o seu talento
tinha estas duas faces distinctas quasi
inconciliaveis, pois que presuppõem qualidades
em absoluto antagonismo e temperamentos
em radical opposição, assim tambem a sua
obra parece dividir-se em dois ramos diversissimos.
A um d'esses ramos, o mais arido
para mim, o que nada admira―pertencem
os seus tão notaveis artigos jornalisticos, quasi
[260]
todos compilados nos volumes
Politica e economia
nacional e
Carteira de um
jornalista,
os seus opusculos e livros sobre o
Regimen
das riquezas, o
Socialismo, as
Eleições e
até
o seu magnífico projecto de
Lei de fomento
rural, que póde bem chamar-se um programma
completo de restauração patriotica, uma
especie de systema de hygiene applicado ao
organismo exangue de um paiz que, primitivamente
destinado a uma existencia modesta
e rudemente tonica de trabalho rural, de obscura
felicidade sem historia, se gastou nos
excessos e nas aventuras d'esse sonho ultramarino
que o fez viver, é certo, e que lhe deu
renome, mas que o condemnou á longa e incuravel
anemia de que todos morremos hoje
aos poucos...
É como um homem verdadeiramente pratico
que apparece aos nossos olhos, o publicista,
o deputado, o politico nem sempre feliz,
embora sempre perfeitamente intencionado
do periodo que talvez mais do que nenhum
outro, elle quereria ter riscado da historia,
aliás tão nobre da sua vida. É sob
essa face
que elle assombrou muitas vezes não sómente
os espiritos da nossa terra mais chãos e mais
[261]
positivos, mas ainda os
homens de
negocio
estrangeiros com quem teve de tratar tantos
assumptos de importancia e que ficavam falando
d'elle como de uma intelligencia rapida,
aguda e fria, absolutamente rara nas nações
peninsulares.
Se essas faculdades sem o auxilio de outras
já são sufficientes para assignalar o alto valor
de um homem, o que fará quando a essas se
ajuntam em rarissimo connubio outras, mais
altas, mais nobres, mais reveladoras de uma
grandeza ingenita e de um valor moral amplissimo?!...
Quando o mesmo homem,
que ha pouco parecia versar, com tanta
segurança e tão fino criterio,
questões de que
dependem o bem estar material e a ordem
administrativa e economica das nações, se revela
de repente um delicado artista vibrante
e creador, um entendimento alado, capaz de
erguer-se ás cumiadas mais altas do Pensamento,
um vidente para quem a historia é
uma continua revelação de reconditos segredos
da alma, uma evocação magica de figuras
vivas, uma palpitante suggestão de moral
e de justiça?!...
Os que tiverem de pôr de pé deante da
[262]
posteridade a figura inteira de Oliveira Martins,
têem de evocal-o sob estes dois aspectos
e fundir ambos na culminação intellectual a
que elle attingiu.
Outros fizeram a historia com mais exactidão
e mais verdade―se a verdade historica
é apenas a verificação rigorosa das
datas e a
decifração lenta dos documentos coevos; outros
fundiram em mais bronzeo estylo as cogitacões
do seu vasto pensamento; outros interrogaram
com mais paciente e minucioso escrupulo
os monumentos do passado, legados
sob multiplas fórmas materiaes ou moraes, artisticas
ou religiosas, á geração sua
contemporanea:
poucos têem possuido, mais ardente
e mais vivo esse poder estranho de penetrar
na alma de uma raça e de lhe traduzir as
aspirações
occultas ou os sonhos realisados; de
lêr a summula completa dos destinos de uma
nação na obra truncada que ella tentou em
vão consummar; de evocar em plena
vibração
de vida, em plena intensidade de emoção
communicativa
os typos representativos de uma
época remota e finda; de emprestar a sua
propria alma á alma dos mortos e de os fazer
resurgir do sepulchro, onde pareciam para
[263]
sempre esquecidos, á luz fremente do mais
bello e claro dia.
Accusam-n'o com razão de
contradicções, de
inexactidões e erros de facto, que um espirito
inferior meticuloso podia facilmente corrigir
ou evitar. Sim. Tudo isso é verdade.
Mas escrevam, se são capazes, a Historia
que elle escreveu, interessem-nos apaixonadamente
como elle nos interessou, dêem o vigor,
o relevo, a vida que elle deu aos personagens
que evocava, façam de cada um dos seus livros
o drama agitado que elle fez, transformem
a Historia como elle a transformou, em
uma prophecia, em um lamento, em uma licção,
em uma suggestão ardente, em uma
saudade inconsolada do que foi e não póde
tornar a ser.
Outros narram precisamente os factos, elle
commentou-os, esclareceu-os, deu-lhes o sentido
occulto, a amarga e profunda philosophia.
O nosso destino historico; o papel particular
que aos portuguezes foi distribuido n'essa tragedia
épica da peninsula iberica, que deu
mundos ao mundo inconsciente; o preço atroz
por que nós pagamos a posse d'esse ideal que
foi nosso um momento e que perdemos justamente
[264]
por tel-o realisado completo;―quem
melhor o soube explicar, tornar claro aos olhos
ainda os menos penetrantes, tornar palpavel
aos entendimentos ainda os mais obtusos?
IV
Na obra que elle deixa tão grande, que revela
uma capacidade e um methodo de trabalho
assombrosos, pois só assim se poderia escrever
tanto, longe de tudo ser perfeito ha
muita coisa desegual, muita coisa que elle não
teria escripto se a necessidade quotidiana o
não houvesse por largos annos espicaçado,―porque
é preciso que se saiba lá fóra que
este
trabalhador incansavel foi um chefe de familia
exemplar, e que, ficando na quasi infancia
orphão de pae, foi elle quem auxiliou nobremente
sua mãe a educar e formar uma familia
numerosa de que até ao ultimo instante
foi desvelado amigo.
Deve tambem confessar-se que ha muito de
injusto e de cruel nos juizos que na, temeraria
mocidade, isolado, e inexperiente elle formulou
[265]
a respeito dos homens e das cousas. O seu
Portugal Contemporaneo foi mais
escripto sobre
pamphletos e artigos de jornal, sempre
suspeitos, do que sobre documentos authenticos
completados pelo austero e profundo estudo
do movimento liberal que iniciou para nós
a éra moderna. Ha capitulos na
Historia de
Portugal que os seus livros posteriores, ungidos
tão docemente pelo amor dos heroes patrios,
parecem negar, contrariar, annullar inteiramente.
Elle proprio teve de contradizer,
na maturidade do seu grande espirito, no qual
um incessante progresso se faz sentir, grande
parte das theorias que primeiro enunciara e
que tão profundo ecco tiveram na sociedade
portugueza e tão irremediavel influencia exerceram
no espirito pessimista e desenganado da
contemporanea geração. O culto dos heroes
que elle acabou pregando e exemplificando da
maneira mais irresistivel, mais poderosa e
mais bella, foi elle―força é dizel-o, porque
deante das cinzas de um grande morto, a verdade
impõe-se como um dever sagrado―foi
elle quem quasi completamente o destruiu na
nossa alma, aliás disposta a derrubar todos os
idolos, a escarnecer todas as religiões!
[266]
Mas como estas maculas parciaes, mas como
estes mesmos enganos do seu entendimento
que lentamente se foi formando, aperfeiçoando,
cultivando e depurando, desapparecem
no conjuncto da sua obra! Mas como resgatam
amplamente e soberbamente esses senões
secundarios, livros como a sua
Civilisação
Iberica tão admiravelmente
traçada por um
pincel de artista e de pensador, como o seu
volume
Os Filhos de D. João
I, feito todo elle
sob uma inspiração soberba da epopéa,
como
o seu
Condestavel tão
bello, tão puro, em que
a sua alma parece entender tão bem os mais
intimos segredos d'uma alma de extase e de
fé, prenunciando d'este modo a
resignação
ineffavel, a pacificação serena e alta, a
submissa
doçura ao mysterio supremo, no qual
todas as contradicções se conciliam, a humilde
piedade unctuosa da sua morte edificante,
d'essa morte que tantos balsamos verteu no
dilacerado coração da esposa, que n'ella teve
a sua crucificação e a sua corôa, a sua
maior
dôr e o seu consolo mais sublime!
Como em Nuno Alvares o interessa mais
ainda que o guerreiro audaz o asceta e o santo!
Que trechos aquelles em que elle, subindo
[267]
a uma altura onde não tinha subido ainda e
que representa a culminação suprema a que o
seu engenho chegou, nos conta os arrebatamentos,
as visões, as asceticas delicias em que
a alma do santo Condestavel se dilata até aos
céus!
N'este livro, mais que em nenhum outro, o
estylo de Oliveira Martins póde ser apreciado
na sua complexidade e nas suas modalidades
tão varias!
É um estylo unico, inconfundivel, atormentado,
desegual, feito de imagens propriamente
suas, de torneios de phrase inimitaveis e que
o põem a cem leguas do classicismo acceito e
consagrado. Ora se levanta em uma especie
de somnambulismo vago a alturas ennevoadas
e insondaveis, ora cahe de chofre na vulgaridade
de um realismo voluntariamente plebeu;
á ironia trascendente de umas paginas oppõe
o amargo pessimismo de outras; á colera convulsa
que o espectaculo das cousas lhe acorda
no coração, segue-se o desdem benevolo e superior
de quem julga este mundo todo illusorias
apparencias, que umas nas outras se esvaem
e se transfiguram; o seu grande poder
de suggestão vem menos dos vocabulos empregados,
[268]
menos dos epithetos escolhidos, do
que da repercussão indefinida e infinita que
certas phrases que elle emprega nos accordam
na alma. Ás vezes, ha uma limpidez serena
e correntia n'este estylo magico; outras
vezes, é obscuro erriçado de symbolos, enredado
em labyrinthos em que a mente se perde
e desnorteia!
Se o estylo deve traduzir todas as
nuances
de uma dada individualidade e ser o transumpto
claro e fiel de um temperamento artistico
nunca houve ninguem que tivesse um mais
accentuado estylo do que Oliveira Martins!
De cada uma das
maneiras do
escriptor eu
queria dar idéa, transcrevendo um trecho que
lhe correspondesse, mas não será melhor que
cada leitor procure na obra tão complexa e
tão variada, aquillo que melhor quadre ao seu
gosto especial, á sua concepção
artistica, á indole
do seu espirito...
Recommendo-lhe, porém, as ultimas paginas
da mais transcendente e ideal belleza da
Historia de Nun'Alvares, as
descripções que
esmaltam ora com o colorido brilhante de uma
téla de Veroneze, ora com a melancolia pungitiva
de uma paizagem de Ruysdael, ora com
[269]
a luz aeria, docemente
unreal de um
trecho de
floresta pintado por Corot, esse livro de todos
o mais admiravelmente escripto que o historiador
nos legou.
Recommendo-lhe a analyse do caracter de
Nuno Alvares, de João I, dos
Inclytos
Infantes,
principalmente de D. Pedro, paginas de
uma psychologia tão delicada, penetrante e
subtil, em que o fundo mystico da imaginação
de Oliveira Martins se allia á sua profunda
intuição dos segredos da alma humana! E
o quadro magistral feito a duas pinceladas rapidas
da Côrte de D. Fernando, ai de nós!
tão parecida com a sociedade de hoje que não
sei mesmo dizer se não foi ella que serviu de
modelo ao artista para chegar a conseguir
taes effeitos de realismo brutal e de frisante e
juvenalesca ironia!
Não farei comparações sempre inexactas
entre
Oliveira Martins e outros escriptores que
o precederam. Acho que essas comparações
não são em alguns casos mais do que erros
palmares de critica que desconcertam e irritam!
Um escriptor que se parece com outro,
é raras vezes um artista de raça. Não
póde
um talento grande deixar de suppor uma personalidade
[270]
accentuada, forte, isto é,
differente.
De resto não conheço em Portugal escriptor
algum, cuja indole, cujas tendencias, cuja comprehensão
das cousas se possa comparar com
as de Oliveira Martins.
Elle nunca poderá ser considerado como um
representative man, nem do tempo nem
da
raça a que pertenceu. D'aqui a sua originalidade
viva e talvez o principal caracteristico do
seu talento.
Á viveza, á meiguice, á sensibilidade
vibrante
do meridional, elle juntava a profunda
melancolia, o symbolismo vago, a fluctuação
de sonho do germano, e como elle tantas vezes
se comprazia em lêr os vestigios de antigas
influencias ethnicas, no caracter dos seus
personagens historicos mais dilectos, póde tambem
dizer-se que no seu genio tão complexo,
tão estranho, tão cheio de meandros,
complicações
e antagonismos inconciliaveis se casam
o poetico elemento celta, o positivismo calculista
do phenicio, a profundidade e o pessimismo
semita, a viva paixão do arabe, e o sentimento
da Natureza que o barbaro do Norte
primeiro suggeriu ao coração seco do civilisado
latino!
FIM
Antonio Maria PEREIRA―Editor
OBRAS
de
Maria Amalia Vaz de Carvalho
A arte de viver na sociedade, 1 vol.
br, 1$000 réis. Ricamente encadernado 1$400.
Pelo mundo fóra, 1 vol.
broch. 500 rs Encad. 700 rs.
A aventura d'um polaco, romance,
traduzido de V. Cherbuliez, 2 vols. broch. 400 rs. Encad. 600
rs.
Raphael, traduzido de Lamartine; 1
vol., edição de luxo illustrada e
ricamente encad. 3$200 réis.
OBRAS DE TEIXEIRA DE QUEIROZ
(BENTO MORENO)
Comedia do Campo, 4 volumes, broch.
2$000 rs.
Os noivos, 2.ª
edição, com o retrato do auctor (no
prélo).
O Sallustio Nogueira, 1 vol. br.
1$000.
Novos contos, 1 vol. br. 600 rs.
D. Agostinho, 1 vol. br. 600.
Morte de D. Agostinho, 1 vol. br.
600 réis. Encad. 800 rs.
Arvoredos, contos escolhidos, 1
volume illustrado, lindissima edição em formato
diamante,
br. 800 rs. Encadernado em percalina, folhas douradas, 1$100 rs.
Amores, amores... 1 vol. (no
prélo).
Collecção Antonio Maria PEREIRA
A 200 RÉIS O VOLUME
VULGARISAÇÃO DOS MELHORES LIVROS
DAS
LITTERATURAS PORTUGUEZA E ESTRANGEIRAS
Volumes in-8.º de 160 a 200 paginas, em corpo 8 ou 10,
excellente
edição
em optimo papel. Preço de cada volume 200 réis
brochado,
ou 300 réis elegantemente encadernado em percalina. Para as
provincias
accresce o porte do correio
Volumes publicados
N.º 1―
Tristezas á
Beira-Mar, romance de Pinheiro Chagas, 1 vol.
N.º 2―
Contos ao Luar, por Julio
Cezar Machado, 1 vol.
N.º 3―
Carmen, romance de
Merimée, traducção de Mariano Level, 1
vol.
N.º 4―
A Feira de Paris, por Iriel,
1 vol.
N.º 5―
A Mascara Vermelha, romance
historico de Pinheiro Chagas, 1 vol.
N.º 6―
John Bull e a sua ilha,
traducção de Pinheiro Chagas, 1 vol.
N.º 7―
O juramento da duqueza,
romance historico por P. Chagas, 1 vol.
N.º 8―
A lenda da meia-noite,
romance phantastico, por P. Chagas, 1 vol.
N.º 9―
A joia do vice-rei, romance
historico, por Pinheiro Chagas, 1 vol.
N.º 10―
Vinte annos de vida
litteraria, por Alberto Pimentel, 1 vol.
N.º 11―
Honra d'artista, romance de
Octavio Feuillet, traducção de Pinheiro
Chagas, 1 vol.
N.º 12―
Os meus amores, contos e
balladas, por Trindade Coelho, 1 vol.
N.º 13 e 14―
A aventura d'um
polaco, por Victor Cherbuliez, traducçao
de
Maria Amalia Vaz de Carvalho, 2 vol.
N.º 15―
Os contos do tio Joaquim,
por R. Paganino, 1 vol.
N.º 16―
As batalhas da vida, contos
por Guiomar Torrezão, 1 vol.
N.º 17―
Noites de Cintra, romance
por Alberto Pimentel, 1 vol.
N.º 18 e 19―
Em segredo, romance
traducção de Margarida de Sequeira, 2 vol.
N.º 20 e 21―
A Irmã da
Caridade, por Emilio Castellar,
traducção de L.
Q. Chaves, 2 vol.
N.º 22―
Migalhas de historia
portugueza, por Pinheiro Chagas, 1 vol.
N.º 23―
A Cruz de Brilhantes, por
A. Campos, 1 vol.
N.º 24―
Contos, do Affonso Botelho,
1 vol.
N.º 25―
Contos phantasticos, por
Theophilo Braga, 1 vol.
N.º 26―
O mysterio da estrada de
Cintra, por Eça de Queiroz e Ramalho
Ortigão, 1 vol.
N.º 27―
O naufragio de Vicente
Sodré, romance historico de P. Chagas, 1
vol.
N.º 28―
Vid'airada, por Alfredo
Mesquita, 1 vol.
N.º 29―
O Bacharel Ramires, por
Candido Figueiredo, 1 vol.
N.º 30 e 31―
Amor á
antiga, romance de Caiel, 2 vol.
N.º 32―
As Netas do Padre Eterno,
por Alberto Pimentel
N.º 33―
Contos, de Pedro Ivo, 1
vol.
Requisições
á Livraria do editor
Antonio Maria PEREIRA
50, 52―Rua Augusta―52, 54, LISBOA
Antonio Maria
PEREIRA―Editor
Rua Augusta, 50
a 54―Lisboa
Maria Amalia Vaz
de Carvalho
Pelo mundo
fóra |
500 |
A arte de viver na
sociedade,
br. |
1$000 |
A aventura d'um polaco
(trad.),
br. |
400 |
Raphael, de Lamartine
(trad.),
enc. |
3$200 |
Teixeira de
Queiroz
Os noivos, 2.ª
edição (com o retrato do
auctor) |
1$000 |
O
Sallustio Nogueira |
1$000 |
Morte
de D. Agostinho,
br. |
600 |
Arvoredos,
contos, 1 vol.
illustrado |
800 |
Comedia
do campo, 4
vol. |
2$100 |
Amores,
amores... (no prelo) |
|
Wenceslau de
Moraes
Traços do Extremo
Oriente |
500 |
Ramalho
Ortigão
A Hollanda, 2.ª
edição |
1$000 |
O culto da arte em
Portugal |
600 |
A
instrucção
secundaria |
240 |
Hygiene da alma
(trad.) |
500 |
Eça
de Queiroz e Ramalho
Ortigão
O Mysterio da estrada de Cintra, 3.ª
edição |
200 |
Silva Pinto
Philosophia de
João
Braz |
500 |
N'este valle de
lagrimas |
500 |
A queimar cartuxos (no
prélo) |
|
Santos portuguezes |
500 |
Oliveira Martins
Historia
de Portugal, 2
vol. |
1$400 |
Portugal
contemporaneo, 2
vol. |
2$000 |
Portugal
nos mares |
700 |
Historia
da civilisação
iberica |
700 |
Historia
da Republica
Romana |
2$000 |
Taboas
de chronologia e geographia
historica |
1$000 |
A
Inglaterra de hoje |
600 |
Cartas
peninsulares |
600 |
Systhema
dos mythos
religiosos |
800 |
A
vida de Nun'Alvares |
2$000 |
O
Principe perfeito |
2$000 |
Notas:
[1]
Isto foi escripto como se vê tres mezes depois da morte
de O. Martins, n'um dos momentos mais deploraveis sob o
ponto de vista politico, que o Portugal moderno tem atravessado.
As victorias de Africa vieram n'esta hora como que alliviar
o nosso espirito do pezo esmagador que o opprimia, e
desmentir, sob determinados aspectos, o pessimismo absoluto
que n'esta phase transluz. (Fevereiro, 1896).
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
Variantes dos nomes próprios (à
excepção dos indicados anteriormente)
foram
mantidas de acordo com o original.