Nota de editor:
Devido à
quantidade de erros tipográficos existentes neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Abril 2010)
O CRIME
DO
PADRE AMARO
Obras do mesmo auctor:
Os Maias. 2
grossos
volumes. |
2$000 |
O
Crime do Padre Amaro. Terceira
edição inteiramente
refundida, recomposta, e differente na fórma
e na acção da edição
primitiva. 1 grosso
volume. |
1$200 |
O
Primo Bazilio. Segunda
edição. 1 grosso
volume. |
1$000 |
A
Reliquia. 1 grosso
volume. |
1$000 |
O
Mandarim. Segunda
edição. 1
volume. |
500 |
No prelo:
Correspondencia de Fradique Mendes.
1 volume.
EÇA DE QUEIROZ
O CRIME
DO
PADRE AMARO
SCENAS DA VIDA DEVOTA
TERCEIRA
EDIÇÃO
Inteiramente refundida,
recomposta, e differente na fórma
e na acção da edição
primitiva
PORTO
LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON
Casa editora
LUGAN & GEMELIOUX,
Successores
1889
Todos os direitos reservados
Porto: Typ. de
A. J. da
Silva Teixeira, Cancella Velha, 70
NOTA
(DA 2.ª EDIÇÃO)
O Crime do Padre Amaro recebeu no
Brazil e em Portugal alguma attenção
da Critica, quando foi publicado
ulteriormente um romance intitulado—
O
Primo Bazilio. E no Brazil e
em Portugal escreveu-se (sem todavia se adduzir
nenhuma prova effectiva) que
O
Crime do
Padre Amaro era uma imitação
do romance do
snr. E. Zola—
La Faute de
l'Abbé
Mouret;
ou que este livro do auctor do
Assomoir e de
outros magistraes estudos sociaes suggerira a
idéa, os personagens, a intenção do
Crime do
Padre Amaro.
[VI]
Eu tenho algumas razões para crêr que
isto não é correcto.
O
Crime do
Padre Amaro
foi escripto em 1871, lido a alguns amigos em
1872, e publicado em 1874. O livro do snr.
Zola,
La Faute de
l'Abbé
Mouret (que é o
quinto volume da série
Rougon
Macquart), foi
escripto e publicado em 1875.
Mas (ainda que isto pareça sobrenatural)
eu considero esta razão apenas como subalterna
e insufficiente. Eu podia, emfim, ter penetrado
no cerebro, no pensamento do snr.
Zola, e ter avistado, entre as fórmas ainda
indecisas das suas creações futuras, a figura
do abbade Mouret,—exactamente como o veneravel
Anchises no valle dos Elyseos podia
vêr, entre as sombras das raças vindouras
fluctuando
na nevoa luminosa do Lethes, aquelle
que um dia devia ser Marcellus. Taes coisas
são possiveis. Nem o homem prudente as deve
considerar mais extraordinarias que o carro
de fogo que arrebatou Elias aos céos—e outros
prodigios provados.
O que, segundo penso, mostra melhor que
a accusação carece de exactidão,
é a simples
comparação dos dois romances.
La Faute de
[VII]
l'Abbé Mouret
é, no seu episodio central, o
quadro allegorico da iniciação do primeiro homem
e da primeira mulher no amor. O abbade
Mouret (Sergio), tendo sido atacado d'uma febre
cerebral, trazida principalmente pela sua
exaltação mystica no culto da Virgem, na
solidão
d'um valle abrazado da Provença (primeira
parte do livro), é levado para convalescer
ao
Paradou, antigo parque do seculo
XVII
a que o abandono refez uma virgindade selvagem,
e que é a representação allegorica do
Paraiso. Ahi, tendo perdido na febre a consciencia
de si mesmo a ponto de se esquecer
do seu sacerdocio e da existencia da aldeia, e
a consciencia do universo a ponto de ter medo
do sol e das arvores do
Paradou como
de
monstros estranhos—erra, durante mezes,
pelas profundidades do bosque inculto, com
Albina que é o genio, a Eva d'esse logar de
legenda; Albina e Sergio, semi-nús como no
Paraiso, procuram sem cessar, por um instincto
que os impelle, uma arvore mysteriosa, da
rama da qual cae a influencia aphrodisiaca da
materia procreadora; sob este symbolo da Arvore
da Sciencia se possuem, depois de dias
[VIII]
angustiosos em que tentam descobrir, na sua
innocencia paradisiaca, o meio physico de realisar
o amor; depois, n'uma mutua vergonha
subita, notando a sua nudez, cobrem-se de folhagens;
e d'ahi os expulsa, os arranca o padre
Archangins, que é a personificação
theocratica
do antigo Archanjo. Na ultima parte do livro
o abbade Mouret recupera a consciencia de si
mesmo, subtrae-se á influencia dissolvente da
adoração da Virgem, obtem por um
esforço da
oração e um privilegio da graça a
extincção
da sua virilidade, e torna-se um asceta sem
nada d'humano, uma sombra cahida aos pés
da cruz; e, é sem que lhe mude a côr ao rosto
que asperge e responsa o esquife de Albina,
que se asphyxiou no
Paradou sob um
montão
de flôres de perfumes fortes.
Os criticos intelligentes que accusaram
O
Crime do Padre Amaro de ser apenas uma
imitação da
Faute
de
l'Abbé Mouret não tinham
infelizmente lido o romance maravilhoso
do snr. Zola que foi talvez a origem de toda a
sua gloria. A semelhança casual dos dois titulos
induziu-os em erro.
Com conhecimento dos dois livros, só uma
[IX]
obtusidade cornea ou má fé cynica poderia
assemelhar
esta bella allegoria idyllica, a que
está misturado o pathetico drama d'uma alma
mystica, ao
Crime do Padre Amaro
que, como
podem vêr n'este novo trabalho, é apenas, no
fundo, uma intriga de clerigos e de beatas tramada
e murmurada á sombra d'uma velha Sé
de provincia portugueza.
Aproveito este momento para agradecer á
Critica do Brazil e de Portugal a attenção que
ella tem dado aos meus trabalhos.
Bristol, 1 de janeiro de 1880.
Eça do Queiroz.
O CRIME
DO
PADRE AMARO
I
Foi no domingo de Paschoa que se soube em
Leiria que o parocho da Sé, José Migueis, tinha
morrido de madrugada com uma apoplexia. O parocho
era um homem sanguineo e nutrido, que passava
entre o clero diocesano pelo
comilão dos
comilões.
Contavam-se historias singulares da sua voracidade.
O Carlos da Botica—que o detestava—costumava
dizer, sempre que o via sahir depois da sésta, com
a face afogueada de sangue, muito enfartado:
—Lá vai a giboia esmoer. Um dia estoura!
Com effeito estourou, depois d'uma ceia de peixe—á
hora em que defronte, na casa do dr. Godinho
que fazia annos, se polkava com alarido. Ninguem
o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em
[2]
geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os
modos e os pulsos d'um cavador, a voz rouca, cabellos
nos ouvidos, palavras muito rudes.
Nunca fôra querido das devotas: arrotava no confessionario;
e, tendo vivido sempre em freguezias da
aldeia ou da serra, não comprehendia certas sensibilidades
requintadas da devoção: perdera por isso,
logo ao principio, quasi todas as confessadas, que tinham
passado para o polido padre Gusmão, tão
cheio de
labia!
E quando as beatas, que lhe eram fieis, lhe iam
fallar de escrupulos, de visões, José Migueis
escandalisava-as,
rosnando:
—Ora historias, santinha! Peça juizo a Deus!
Mais miôlo na bola!
As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:
—Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe
e beba-lhe, creatura!
Era miguelista—e os partidos liberaes, as suas
opiniões, os seus jornaes enchiam-no d'uma cólera
irracionavel:
—Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu
enorme guardasol vermelho.
Nos ultimos annos tomára habitos sedentarios e
vivia isolado—com uma criada velha e um cão, o
Joli. O seu unico amigo era o
chantre Valladares
que governava então o bispado, porque o senhor
bispo D. Joaquim gemia, havia dois annos, o seu
rheumatismo n'uma quinta do alto Minho. O parocho
tinha um grande respeito pelo chantre, homem sêcco,
[3]
de grande nariz, muito curto de vista, admirador
d'Ovidio—que fallava fazendo sempre boquinhas
e com allusões mythologicas.
O chantre estimava-o. Chamava-lhe
Frei
Hercules.
—
Hercules pela força,
explicava sorrindo,
Frei
pela gula.
No seu enterro elle mesmo lhe foi aspergir a cova;
e, como costumava offerecer-lhe todos os dias
rapé da sua caixa d'ouro, disse aos outros conegos,
baixinho, ao deixar-lhe cahir sobre o caixão, segundo
o ritual, o primeiro torrão de terra:
—É a ultima pitada que lhe dou!
Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor
governador do bispado; o conego Campos contou-a
á noite ao chá em casa do deputado Novaes;
foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram
as virtudes do chantre, e affirmou-se com
respeito—
que
sua excellencia tinha muita pilheria!
Dias depois do enterro appareceu, errando pela
Praça, o cão do parocho, o
Joli. A criada entrára
com sezões no hospital; a casa fôra fechada; o
cão,
abandonado, gemia a sua fome pelos portaes. Era
um gôso pequeno, extremamente gordo,—que tinha
vagas semelhanças com o parocho. Com o habito
das batinas, avido d'um dono, apenas via um
padre punha-se a seguil-o, ganindo baixo. Mas nenhum
queria o infeliz
Joli; enxotavam-no
com as
ponteiras dos guardasoes; o cão, repellido como
um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma
[4]
manhã appareceu morto ao pé da Misericordia; a
carroça
do estrume levou-o e, como ninguem tornou a
vêr o cão na Praça, o parocho
José Migueis foi definitivamente
esquecido.
Dois mezes depois soube-se em Leiria que estava
nomeado outro parocho. Dizia-se que era um homem
muito novo, sahido apenas do seminario. O seu
nome era Amaro Vieira. Attribuia-se a sua escolha a
influencias politicas, e o jornal de Leiria,
A Voz do
Districto, que estava na
opposição, fallou com amargura,
citando o Golgotha, no
favoritismo da
côrte e
na
reacção
clerical. Alguns padres tinham-se escandalisado
com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente,
diante do senhor chantre.
—Não, não, lá que ha favor, ha; e que
o homem
tem padrinhos, tem, disse o chantre. A mim quem
me escreveu para a confirmação foi o Brito
Correia
(Brito Correia era então ministro da justiça).
Até
me diz na carta que o parocho é um bello rapagão.
De sorte que—acrescentou sorrindo com
satisfação—depois
de
Frei Hercules vamos talvez ter
Frei
Apollo.
Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o
parocho novo: era o conego Dias que fôra, nos primeiros
annos do seminario, seu mestre de Moral. No
seu tempo, dizia o conego, o parocho era um rapaz
franzino, acanhado, cheio de espinhas carnaes...
—Parece que o estou a vêr com a batina muito
coçada e cara de quem tem lombrigas!... De resto
bom rapaz. E espertote...
[5]
O conego Dias era muito conhecido em Leiria.
Ultimamente engordára, o ventre saliente enchia-lhe
a batina; e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas,
o beiço espesso faziam lembrar velhas anecdotas
de frades lascivos e glotões.
O tio Patricio, o
antigo, negociante
da Praça,
muito liberal, e que quando passava pelos padres
rosnava como um velho cão de fila, dizia ás vezes
ao vêl-o atravessar a Praça, pesado, ruminando a
digestão, encostado ao guardachuva:
—Que maroto! Parece mesmo D. João VI!
O conego vivia só com uma irmã velha, a snr.
a
D. Josepha Dias, e uma criada, que todos conheciam
tambem em Leiria, sempre na rua, entrouxada n'um
chale tingido de negro e arrastando pesadamente as
suas chinelas de ourelo. O conego Dias passava por
ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas,
dava jantares com perú, e tinha
reputação o
seu vinho
duque de 1815. Mas o facto
saliente da
sua vida—o facto commentado e murmurado—era
a sua antiga amizade com a snr.
a Augusta
Caminha,
a quem chamavam a S. Joanneira, por ser natural
de S. João da Foz. A S. Joanneira morava na rua da
Misericordia e recebia hospedes. Tinha uma filha, a
Ameliasinha, rapariga de vinte e tres annos, bonita,
forte, muito desejada.
O conego Dias mostrára um grande contentamento
com a nomeação de Amaro Vieira. Na botica
do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé exaltou
os
seus bons estudos no seminario, a sua prudencia de
[6]
costumes, a sua obediencia: gabava-lhe mesmo a
voz: «
um timbre que é um
regalo!»
—Para um bocado de sentimento nos sermões
da Semana Santa está a calhar!
Predizia-lhe com emphase um destino feliz, uma
conesia decerto, talvez a gloria d'um bispado!
E um dia, emfim, mostrou com satisfação ao
coadjutor
da Sé, creatura servil e calada, uma carta que
recebera de Lisboa de Amaro Vieira.
Era uma tarde de agosto e passeavam ambos
para os lados da Ponte Nova. Andava então a construir-se
a estrada da Figueira: o velho passadiço
de pau sobre a ribeira do Liz tinha sido destruido,
já se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada,
com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e
atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas
por questões de expropriação; ainda se
via o
lodoso caminho da freguezia de Marrazes, que a estrada
nova devia desbastar e encorporar; camadas
de cascalho cobriam o chão; e os grossos cylindros
de pedra, que acalcam e recamam os macadams, enterravam-se
na terra negra e humida das chuvas.
Em roda da Ponte a paizagem é larga e tranquilla.
Para o lado d'onde o rio vem são collinas
baixas, de fórmas arredondadas, cobertas da rama
verde-negra dos pinheiros novos; em baixo, na espessura
dos arvoredos, estão os casaes que dão
áquelles logares melancolicos uma
feição mais viva
e humana—com as suas alegres paredes caiadas
que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela
[7]
tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados.
Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas
terras baixas entre dois renques de salgueiros pallidos,
estende-se até os primeiros areaes o campo de
Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de aguas abundantes,
cheio de luz. Da Ponte pouco se vê da cidade;
apenas uma esquina das cantarias pesadas e
jesuiticas da Sé, um canto do muro do cemiterio
coberto de parietarias, e pontas agudas e negras dos
cyprestes; o resto está escondido pelo duro monte
ouriçado de vegetações rebeldes, onde
destacam as
ruinas do Castello, todas envolvidas á tarde nos largos
vôos circulares dos mochos, desmanteladas e com
um grande ar historico.
Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda
que se estende um pouco á beira do rio. É
um logar recolhido, coberto de arvores antigas. Chamam-lhe
a Alameda Velha. Alli, caminhando devagar,
fallando baixo, o conego consultava o coadjutor
sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre «uma idéa
que ella lhe dera, que lhe parecia de mestre! De
mestre!» Amaro pedia-lhe com urgencia que lhe arranjasse
uma casa de aluguel, barata, bem situada,
e se fosse possivel mobilada; fallava sobretudo de
quartos n'uma casa de hospedes respeitavel. «Bem
vê o meu caro Padre-Mestre, dizia Amaro, que era
isto o que verdadeiramente me convinha; eu não
quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria
o bastante. O que é necessario é que a casa seja
respeitavel, socegada, central; que a patrôa tenha
[8]
bom genio e que não peça mundos e fundos; deixo
tudo isto á sua prudencia e capacidade, e creia que
todos estes favores não cahirão em terreno
ingrato.
Sobretudo que a patrôa seja pessoa accommodada e
de boa lingua.»
Ora a minha idéa, amigo Mendes, é esta:
mettêl-o
em casa da S. Joanneira! resumiu o conego
com um grande contentamento. É rica idéa, hein?
—Soberba idéa! disse o coadjutor com a sua voz
servil.
—Ella tem o quarto de baixo, a saleta pegada
e o outro quarto que póde servir de escriptorio. Tem
boa mobilia, boas roupas...
—Ricas roupas, disse o coadjutor com respeito.
O conego continuou:
—É um bello negocio para a S. Joanneira: dando
os quartos, roupas, comida, criada, póde muito
bem pedir os seus seis tostões por dia. E depois
sempre tem o parocho de casa.
—Por causa da Ameliasinha é que eu não sei,
considerou timidamente o coadjutor. Sim, póde ser
reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor
parocho é ainda novo... Vossa senhoria sabe o que
são linguas do mundo.
O conego tinha parado:
—Ora historias! Então o padre Joaquim não vive
debaixo das mesmas telhas com a afilhada da mãi?
E o conego Pedroso não vive com a cunhada, e uma
irmã da cunhada, que é uma rapariga de dezenove
annos? Ora essa!
[9]
—Eu dizia... attenuou o coadjutor.
—Não, não vejo mal nenhum. A S. Joanneira
aluga os seus quartos, é como se fosse uma hospedaria.
Então o secretario geral não esteve lá
uns
poucos de mezes?
—Mas um ecclesiastico... insinuou o coadjutor.
—Mais garantias, snr. Mendes, mais garantias!
exclamou o conego. E parando, com uma attitude
confidencial:—E depois a mim é que me convinha,
Mendes! A mim é que me convinha, meu amigo!
Houve um pequeno silencio. O coadjutor disse,
baixando a voz:
—Sim, vossa senhoria faz muito bem á S. Joanneira...
—Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que
posso, disse o conego. E com uma entonação terna,
risonhamente paternal:—que ella é merecedora, é
merecedora. Boa até alli, meu amigo!—Parou, esgazeando
os olhos:—Olhe que dia em que eu não
lhe appareça pela manhã ás nove em
ponto, está
n'um phrenesi! «Oh creatura! digo-lhe eu, a senhora
rala-se sem razão.» Mas então,
é aquillo! Pois quando
eu tive a colica o anno passado! Emmagreceu, snr.
Mendes! E depois não ha lembrança que
não tenha!
Agora, pela matança do porco, o melhor do animal
é para o
padre santo,
vossê sabe? é como ella
me chama.
Fallava com os olhos luzidios, uma satisfação
babosa:
—Ah, Mendes! acrescentou, é uma rica mulher!
[10]
—E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.
—Lá isso! exclamou o conego parando outra
vez. Lá isso! Bem conservada até alli! Pois olhe
que já não é criança! Mas
nem um cabello branco,
nem um, nem um só! E então que côr de
pelle!—E
mais baixo, com um sorriso guloso:—E isto
aqui! ó Mendes, e isto aqui!—Indicava o lado do
pescoço debaixo do queixo, passando-lhe devagar
por cima a sua mão papuda:—É uma
perfeição! E
depois mulher de aceio, muitissimo aceio! E que
lembrançasinhas! Não ha dia que me não
mande o
seu presente! é o covilhete de geleia, é o
pratinho
d'arroz dôce, é a bella murcella d'Arouca! Hontem
me mandou ella uma torta de maçã. Ora havia
de vossê vêr aquillo! A maçã
parecia um creme! Até
a mana Josepha disse: «Está tão boa que
parece
que foi cozida em agua benta!»—E pondo a mão
espalmada sobre o peito:—São coisas que tocam a
gente cá por dentro, Mendes! Não, não
é lá por dizer,
mas não ha outra.
O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.
—Eu bem sei, disse o conego parando de novo
e tirando lentamente as palavras, eu bem sei que
por ahi rosnam, rosnam... Pois é uma grandissima
calumnia! O que é, é que eu tenho muito
apêgo
áquella gente. Já o tinha em tempo do marido.
Vossê
bem o sabe, Mendes.
O coadjutor teve um gesto affirmativo.
[11]
—A S. Joanneira é uma pessoa de bem! olhe
que é uma pessoa de bem, Mendes! exclamava o
conego batendo no chão fortemente com a ponteira
do guardasol.
—As linguas do mundo são venenosas, senhor
conego, disse o coadjutor com uma voz chorosa. E
depois d'um silencio acrescentou baixo:—Mas aquillo
a vossa senhoria deve-lhe sahir caro!
—Pois ahi está, meu amigo! Imagine vossê que
desde que o secretario geral se foi embora a pobre
da mulher tem tido a casa vazia: eu é que tenho
dado para a panella, Mendes!
—Que ella tem uma fazendita, considerou o
coadjutor.
—Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma
nesga de terra! E depois as decimas, os jornaes!
Por isso digo eu, o parocho é uma mina. Com os
seis tostões que elle der, com o que eu ajudar, com
alguma coisa que ella tire da hortaliça que vende
da fazenda, já se governa. E para mim é um
allivio,
Mendes.
—É um allivio, senhor conego! repetiu o coadjutor.
Ficaram calados. A tarde descahia muito limpida;
o alto céo tinha uma pallida côr azul; o ar estava
immovel. N'aquelle tempo o rio ia muito vazio; pedaços
de areia reluziam em sêcco; e a agua baixa
arrastava-se com um marulho brando, toda enrugada
do roçar dos seixos.
Duas vaccas, guardadas por uma rapariga, appareceram
[12]
então pelo caminho lodoso que do outro lado
do rio, defronte da alameda, corre junto d'um silvado;
entraram no rio devagar, e estendendo o pescoço
pellado da canga, bebiam de leve, sem ruido;
a espaços erguiam a cabeça bondosa, olhavam em
redor com a passiva tranquillidade dos sêres fartos—e
fios de agua, babados, luzidios á luz, pendiam-lhes
dos cantos do focinho. Com a inclinação do sol
a agua perdia a sua claridade espelhada, estendiam-se
as sombras dos arcos da ponte. Do lado das colinas
ia subindo um crepusculo esfumado, e as nuvens
côr de sanguinea e côr de laranja que annunciam
o calor faziam, sobre os lados do mar, uma
decoração
muito rica.
—Bonita tarde! disse o coadjutor.
O conego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o
bocejo:
—Vamo-nos chegando ás Ave-Marias, hein?
Quando, d'ahi a pouco, iam subindo as escadarias
da Sé, o conego parou, e voltando-se para o
coadjutor:
—Pois está decidido, amigo Mendes, ferro o
Amaro na casa da S. Joanneira! É uma pechincha
para todos.
—Uma grande pechincha! disse respeitosamente
o coadjutor. Uma grande pechincha!
E entraram na igreja, persignando-se.
II
Uma semana depois soube-se que o novo parocho
devia chegar pela diligencia de Chão de
Maçãs,
que traz o correio á tarde; e desde as seis horas o
conego Dias e o coadjutor passeavam no largo do
Chafariz, á espera de Amaro.
Era então nos fins de agosto. Na longa alameda
macadamisada que vai junto do rio, entre os dois
renques de velhos choupos, entreviam-se vestidos
claros de senhoras passeando. Do lado do Arco, na
correnteza de casebres pobres, velhas fiavam á porta;
crianças sujas brincavam pelo chão, mostrando
os seus enormes ventres nús; e gallinhas em redor
iam picando vorazmente as immundicies esquecidas.
Em redor do chafariz cheio de ruido, onde os cantaros
[14]
arrastam sobre a pedra, criadas ralham, soldados, com
a sua fardeta suja, enormes botas cambadas, namoravam,
meneando a chibata de junco; com o seu cantaro
bojudo de barro equilibrado á cabeça sobre a
rodilha, raparigas iam-se aos pares, meneando os
quadris; e dois officiaes ociosos, com a farda desapertada
sobre o estomago, conversavam, esperando,
a vêr quem viria. A
diligencia tardava. Quando o
crepusculo desceu, uma lamparina luziu no nicho do
santo, por cima do Arco; e defronte iam-se alumiando
uma a uma, com uma luz soturna, as janellas
do hospital.
Já tinha anoitecido quando a diligencia, com as
lanternas accesas, entrou na Ponte ao trote esgalgado
dos seus magros cavallos brancos, e veio parar
ao pé do chafariz, por baixo da estalagem do Cruz;
o caixeiro do tio Patricio partiu logo a correr para
a Praça com o maço dos
Diarios
Populares; o tio
Baptista, o patrão, com o cachimbo negro ao canto
da boca, desatrellava, praguejando tranquillamente;
e um homem que vinha na almofada, ao pé do cocheiro,
de chapéo alto e comprido capote ecclesiastico,
desceu cautelosamente, agarrando-se ás guardas de
ferro dos assentos, bateu com os pés no chão para
os desentorpecer, e olhou em redor.
—Oh, Amaro! gritou o conego que se tinha aproximado,
oh, ladrão!
—Oh, Padre-Mestre! disse o outro com alegria.
E abraçaram-se, emquanto o coadjutor, todo curvado,
tinha o barrete na mão.
[15]
D'ahi a pouco as pessoas que estavam nas lojas
viram atravessar a Praça, entre a corpulencia vagarosa
do conego Dias e a figura esguia do coadjutor,
um homem um pouco curvado, com um capote de padre.
Soube-se que era o parocho novo; e disse-se logo
na botica que era
uma boa figura de
homem. O João
Bicha levava adiante um bahú e um sacco de chita;
e como áquella hora já estava bebedo, ia
resmungando
o
Bemdito.
Eram quasi nove horas, a noite cerrára. Em redor
da Praça as casas estavam já adormecidas: das
lojas debaixo da arcada sahia a luz triste dos candieiros
de petroleo, entreviam-se dentro figuras somnolentas,
caturrando em cavaqueira, ao balcão. As
ruas que vinham dar á Praça, tortuosas,
tenebrosas,
com um lampeão mortiço, pareciam deshabitadas. E
no silencio o sino da Sé dava vagarosamente o toque
das almas.
O conego Dias ia explicando pachorrentamente
ao parocho «o que lhe arranjára».
Não lhe tinha
procurado casa: seria necessario comprar mobilia,
buscar criada, despezas innumeraveis! Parecera-lhe
melhor tomar-lhe quartos n'uma casa de hospedes
respeitavel, de muito conchego—e n'essas
condições
(e alli estava o amigo coadjutor que o podia
dizer), não havia como a da S. Joanneira. Era bem
arejada, muito aceio, a cozinha não deitava cheiro;
tinha lá estado o secretario geral e o inspector dos
estudos; e a S. Joanneira (o Mendes amigo conhecia-a
bem) era uma mulher temente a Deus, de boas
[16]
contas, muito economica e cheia de condescendencias...
—Vossê está alli como em sua casa! Tem o seu
cozido, prato de meio,
café...
—Vamos a saber, Padre-Mestre: preço? disse o
parocho.
—Seis tostões. Que diabo, é de graça!
Tem um
quarto, tem uma saleta...
—Uma rica saleta, commentou o coadjutor respeitosamente.
—E é longe da Sé? perguntou Amaro.
—Dois passos. Póde-se ir dizer missa de chinelos.
Na casa ha uma rapariga, continuou com a sua
voz pausada o conego Dias. É a filha da S. Joanneira.
Rapariga de vinte e dois annos. Bonita. Sua pontinha
de genio, mas bom fundo... Aqui tem vôsse a
sua rua.
Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada
pelas altas paredes da velha Misericordia, com um
lampeão lugubre ao fundo.
—E aqui tem vossê o seu palacio! disse o conego,
batendo na aldraba de uma porta esguia.
No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto
antigo, faziam saliencia, com os seus arbustos
de alecrim, que se arredondavam aos cantos em caixas
de madeira; as janellas de cima, pequeninas,
eram de peitoril; e a parede, pelas suas irregularidades,
fazia lembrar uma lata amolgada.
A S. Joanneira esperava no alto da escada; uma
criada, enfezada e sardenta, alumiava com um candieiro
[17]
de petroleo; e a figura da S. Joanneira destacava
plenamente na luz sobre a parede caiada. Era
gorda, alta, muito branca, d'aspecto pachorrento.
Os seus olhos pretos tinham já em redor a pelle engelhada;
os cabellos arripiados, com um enfeite escarlate,
eram já raros aos cantos da testa e no começo
da risca; mas percebiam-se uns braços rechonchudos,
um collo copioso e roupas aceadas.
—Aqui tem a senhora o seu hospede, disse o conego
subindo.
—Muita honra em receber o senhor parocho!
muita honra! Ha de vir muito cansado! por força!
Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrausinho.
Levou-o para uma sala pequena pintada de amarello,
com um vasto canapé de palhinha encostado à
parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de baeta
verde.
—É a sua sala, senhor parocho, disse a S. Joanneira.
Para receber, para espairecer... Aqui—acrescentou
abrindo uma porta—é o seu quarto de dormir.
Tem a sua commoda, o seu guarda-roupa...—Abriu
os gavetões, gabou a cama batendo a elasticidade
dos colxões—Uma campainha para chamar
sempre que queira... As chavinhas da commoda estão
aqui... Se gosta de travesseirinho mais alto...
Tem um cobertor só, mas querendo...
—Está bem, está tudo muito bem, minha senhora,
disse o parocho com a sua voz baixa e suave.
—É pedir! O que ha, da melhor vontade...
[18]
—Oh creatura de Deus! interrompeu o conego
jovialmente, o que elle quer agora é cear!
—Tambem tem a ceiasinha prompta. Desde as
seis que está o caldo a apurar...
E sahiu, para apressar a criada, dizendo logo do
fundo da escada:
—Vá,
Ruça,
mexe-te, mexe-te!...
O conego sentou-se pesadamente no canapé, e sorvendo
a sua pitada:
—É contentar, meu rico. Foi o que se pôde
arranjar.
—Eu estou bem em toda a parte, Padre-Mestre,
disse o parocho, calçando os seus chinelos de ourelo.
Olha o seminario!... E em Feirão! Cahia-me a
chuva na cama.
Para o lado da Praça, então, sentiu-se o toque
de cornetas.
—Que é aquillo? perguntou Amaro, indo á janella.
—Ás nove e meia, o toque de recolher.
Amaro abriu a vidraça. Ao fim da rua um candieiro
esmorecia. A noite estava muito negra. E havia
sobre a cidade um silencio concavo, de abobada.
Depois das cornetas, um rufar lento de tambores
afastou-se para o lado do quartel; por baixo da janella
um soldado, que se demorára n'alguma viella
do castello, passou correndo; e das paredes da Misericordia
sahia constantemente o agudo piar das
corujas.
[19]
—É triste isto, disse Amaro.
Mas a S. Joanneira gritou de cima:
—Póde subir, senhor conego! Está o caldo na
mesa!
—Ora vá, vá, que vossê deve estar a
cahir de
fome, Amaro!—disse o conego, erguendo-se muito
pesado.
E detendo um momento o parocho pela manga
do casaco:
—Vai vossê vêr o que é um caldo de
gallinha
feito cá pela senhora! Da gente se babar!...
No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro,
a claridade da mesa alegrava, com a sua toalha
muito branca, a louça, os copos reluzindo á luz
forte d'um candieiro d'
abat-jour
verde. Da terrina
subia o vapor cheiroso do caldo, e na larga travessa
a gallinha gorda, afogada n'um arroz humido e
branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma
apparencia succulenta de prato morgado. No armario
envidraçado, um pouco na sombra, viam-se côres
claras de porcelana; a um canto, ao pé da janella,
estava o piano, coberto com uma colcha de setim desbotado.
Na cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro
fresco que vinha d'um taboleiro de roupa lavada, o
parocho esfregou as mãos, regalado.
—Para aqui, senhor parocho, para aqui, disse a
[20]
S. Joanneira. D'ahi póde-lhe vir frio.—Foi fechar
as portadas das janellas; chegou-lhe um caixão de
areia para as pontas dos cigarros.—E o senhor conego
toma um copinho de geleia, sim?
—Vá lá, para fazer companhia, disse jovialmente
o conego, sentando-se e desdobrando o guardanapo.
A S. Joanneira, no emtanto, mexendo-se pela sala,
ia admirando o parocho que, com a cabeça sobre o
prato, comia em silencio o seu caldo, soprando a
colhér. Parecia bem feito: tinha um cabello muito
preto, levemente annelado. O rosto era oval, de pelle
trigueira e fina, os olhos negros e grandes, com pestanas
compridas.
O conego, que não o via desde o seminario, achava-o
mais forte, mais viril.
—Vossê era enfezadito...
—Foi o ar da serra, dizia o parocho, fez-me
bem.—Contou então a sua triste existencia em
Feirão,
na alta Beira, durante a aspereza do inverno, só,
com pastores. O conego deitava-lhe o vinho de alto,
fazendo-o espumar.
—Pois é beber-lhe, homem! é beber-lhe! D'esta
gota não pilhava vossê no seminario.
Fallaram do seminario.
—Que será feito do Rabicho, o despenseiro? disse
o conego.
—E do Carôcho, que roubava as batatas?
Riram; e bebendo, na alegria das reminiscencias,
recordavam as historias de então, o catarrho do reitor,
[21]
e o mestre de canto-chão que deixára um dia
cahir do bolso as poesias obscenas de Bocage.
—Como o tempo passa, como o tempo passa!
diziam.
A S. Joanneira então poz na mesa um prato covo
com maçãs assadas.
—Viva! Não, lá n'isso tambem eu entro! exclamou
logo o conego. A bella maçã assada! nunca
me escapa! Grande dona de casa, meu amigo, rica
dona de casa, cá a nossa S. Joanneira! Grande dona
de casa!
Ella ria; viam-se os seus dois dentes de diante,
grandes e chumbados. Foi buscar uma garrafa de
vinho do Porto; poz no prato do conego, com requintes
devotos, uma maçã desfeita polvilhada de
assucar; e batendo-lhe nas costas com a mão papuda
e molle:
—Isto é um santo, senhor parocho, isto é um
santo!
Ai, devo-lhe muitos favores!
—Deixe fallar, deixe fallar..., dizia o conego.—Espalhava-se-lhe
no rosto um contentamento baboso.—Boa
gota! acrescentou, saboreando o seu calix
de
porto. Boa gota!
—Olhe que ainda é dos annos da Amelia, senhor
conego.
—E onde está ella, a pequena?
—Foi ao
Morenal com a D. Maria.
Aquillo naturalmente
foram para casa das Gansosos passar a
noite.
—Cá esta senhora é proprietaria, explicou o
conego,
[22]
fallando do
Morenal. É um
condado!—Ria
com bonhomia, e os seus olhos luzidios percorriam
ternamente a corpulencia da S. Joanneira.
—Ah, senhor parocho, deixe fallar, é uma nesga
de terra..., disse ella.
Mas vendo a criada encostada á parede, sacudida
com afflicções de tosse:
—Ó mulher, vai tossir lá p'ra dentro! credo!
A moça sahiu, pondo o avental sobre a boca.
—Parece doente, coitada, observou o parocho.
Muito achacada, muito!... A
pobre de
Christo era
sua afilhada, orphã, e estava quasi tisica. Tinha-a
tomado por piedade...
—E tambem porque a criada que cá tinha foi para
o hospital, a desavergonhada... Metteu-se ahi
com um soldado!...
O padre Amaro baixou devagar os olhos—e trincando
migalhas perguntou se havia muitas doenças
n'aquelle verão.
—Cholerinas, das fructas verdes, rosnou o conego.
Mettem-se pelas melancias, depois tarraçadas de
agua... E suas febritas...
Fallaram então das sezões do campo, dos ares
de Leiria.
—Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando
mais forte. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo,
tenho saude, tenho!
—Ai, Nosso Senhor lh'a conserve, que nem sabe
o bem que é! exclamou a S. Joanneira.—Contou immediatamente
a grande desgraça que tinha em casa,
[23]
uma irmã meia idiota entrevada havia dez annos!
Ia fazer sessenta annos... No inverno viera-lhe um
catarrho, e desde então, coitadinha, definhava, definhava...
—Ha bocado, ao fim da tarde, teve ella um ataque
de tosse! Pensei que se ia embora. Agora descansou
mais...
Continuou a fallar «d'aquella tristeza», depois
da sua Ameliasinha, das Gansosos, do antigo chantre,
da carestia de tudo—sentada, com o gato no
collo, rolando com os dois dedos, monotonamente,
bolinhas de pão. O conego, pesado, cerrava as palpebras;
tudo na sala parecia ir gradualmente adormecendo;
a luz do candieiro esmorecia.
—Pois senhores, disse por fim o conego mexendo-se,
isto são horas!
O padre Amaro ergueu-se, e com os olhos baixos
deu as
graças.
—O senhor parocho quer lamparina? perguntou
cuidadosamente a S. Joanneira.
—Não, minha senhora. Não uso. Boas noites!
E desceu devagar, palitando os dentes.
A S. Joanneira alumiava no patamar, com o candieiro.
Mas nos primeiros degraus o parocho parou,
e voltando-se, affectuosamente:
—É verdade, minha senhora, ámanhã
é sexta-feira,
é jejum...
—Não, não, acudiu o conego que se embrulhava
na capa de lustrina, bocejando, vossê
ámanhã
janta commigo. Eu venho por cá, vamos ao chantre,
[24]
á Sé, e por ahi... E olhe que tenho lulas.
É um milagre,
que isto aqui nunca ha peixe.
A S. Joanneira tranquillisou logo o parocho:
—Ai, é escusado lembrar os jejuns, senhor parocho.
Tenho o maior escrupulo!
—Eu dizia, explicou o parocho, porque infelizmente
hoje em dia ninguem cumpre...
—Tem vossa senhoria muita razão, atalhou ella.
Mas eu! credo!... A salvação da minha alma antes
de tudo!
A campainha em baixo, então, retiniu fortemente.
—Ha de ser a pequena, disse a S. Joanneira.
Abre,
Ruça!
A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.
-És tu, Amelia?
Uma voz disse
adeusinho! adeusinho!
E appareceu,
subindo quasi a correr, com os vestidos um
pouco apanhados adiante, uma bella rapariga, forte,
alta, bem feita, com uma manta branca pela cabeça
e na mão um ramo de alecrim.
—Sobe, filha. Aqui está o senhor parocho. Chegou
agora á noitinha, sobe!
Amelia tinha parado um pouco embaraçada,
olhando para os degraus de cima, onde o parocho
ficára, encostado ao corrimão. Respirava
fortemente
de ter corrido; vinha córada; os seus olhos vivos
e negros luziam; e sahia d'ella uma sensação de
frescura e de prados atravessados.
O parocho desceu, cingido ao corrimão, para a
deixar passar, murmurando
boas
noites! com a cabeça
[25]
baixa. O conego, que descia atraz, pesadamente,
tomou o meio da escada, diante de Amelia:
—Então isto são horas, sua bréjeira!
Ella teve um risinho, encolheu-se.
—Ora vá-se encommendar a Deus, vá! disse
batendo-lhe
no rosto devagarinho com a sua mão grossa
e cabelluda.
Ella subiu a correr, emquanto o conego, depois
d'ir buscar o guardasol á saleta, sahia, dizendo
á
criada, que erguia o candieiro sobre a escada:
—Está bom, eu vejo, não apanhes frio, rapariga.
Então ás oito, Amaro! Esteja a pé!
Vai-te, rapariga,
adeus! Reza á Senhora da Piedade que te seque
essa catarrheira.
O parocho fechou a porta do quarto. A roupa da
cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho
lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura
antiga d'um Christo crucificado. Amaro abriu o seu
Breviario, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se;
mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e
então por cima, sobre o tecto, através das
orações
rituaes que machinalmente ia lendo, começou a sentir
o
tic-tic das botinas de Amelia e o
ruido das
saias engommadas que ella sacudia ao despir-se.
III
Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora
marqueza d'Alegros. Seu pai era criado do
marquez; a mãi era criada de quarto, quasi uma amiga
da senhora marqueza. Amaro conservava ainda um
livro, o
Menino das selvas, com
barbaras imagens
coloridas, que tinha escripto na primeira pagina
branca:
Á minha muito estimada criada
Joanna
Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido,—Marqueza
d'Alegros. Possuia tambem um daguerreotypo
de sua mãi: era uma mulher forte, de sobrancelhas
cerradas, a boca larga e sensualmente
fendida, e uma côr ardente. O pai de Amaro tinha
morrido de apoplexia; e a mãi, que fôra sempre
tão
sã, succumbiu, d'ahi a um anno, a uma tisica de larynge.
Amaro completára então seis annos. Tinha
[28]
uma irmã mais velha que desde pequena vivia com
a avó em Coimbra, e um tio, mercieiro abastado do
bairro da Estrella. Mas a senhora marqueza ganhára
amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por
uma adopção tacita; e começou, com
grandes escrupulos,
a vigiar a sua educação.
A marqueza d'Alegros ficára viuva aos quarenta
e tres annos e passava a maior parte do anno retirada
na sua quinta de Carcavellos. Era uma pessoa
passiva, de bondade indolente, com capella em casa,
um respeito devoto pelos padres de S. Luiz, sempre
preoccupada dos interesses da Igreja. As suas
duas filhas, educadas no receio do Céo e nas
preoccupações
da Moda, eram beatas e faziam o
chic
fallando
com igual fervor da humildade christã e do
ultimo figurino de Bruxellas. Um jornalista de então
dissera d'ellas:—Pensam todos os dias na
toilette
com que hão de entrar no paraiso.
No isolamento de Carcavellos, n'aquella quinta
de alamedas aristocraticas onde os pavões gritavam,
as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade
eram então occupações avidamente
aproveitadas:
cosiam vestidos para os pobres da freguezia,
bordavam frontaes para os altares da igreja. De maio
a outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho
de
salvar a sua alma; liam os livros
beatos
e dôces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a
Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a
virtude dos santos. Deus era o seu luxo de verão.
A senhora marqueza resolvera desde logo fazer
[29]
entrar Amaro na vida ecclesiastica. A sua figura amarellada
e magrita pedia aquelle destino recolhido:
era já affeiçoado ás coisas de
capella, e o seu encanto
era estar aninhado ao pé de mulheres, no calor
das saias unidas, ouvindo fallar de santas. A senhora
marqueza não o quiz mandar ao collegio porque receava
a impiedade dos tempos e as camaradagens
immoraes. O capellão da casa ensinava-lhe o latim, e
a filha mais velha, a snr.
a D. Luiza, que tinha
um
nariz de cavallete e lia Chateaubriand, dava-lhe
lições
de francez e de geographia.
Amaro era, como diziam os criados,
um mosquinha
morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se
á tarde acompanhava a senhora marqueza ás
alamedas
da quinta quando ella descia pelo braço do padre
Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia
a seu lado, môno, muito encolhido, torcendo com as
mãos humidas o forro das algibeiras—vagamente
assustado das espessuras d'arvoredos e do vigor das
relvas altas.
Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina,
ao pé d'uma ama velha. As criadas de resto
feminisavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no
no meio d'ellas, beijocavam-no, faziam-lhe cocegas,
e elle rolava por entre as saias, em contacto com
os corpos, com gritinhos de contentamento. Ás vezes,
quando a senhora marqueza sahia, vestiam-no
de mulher, entre grandes risadas: elle abandonava-se,
meio nú, com os seus modos languidos, os olhos
quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas,
[30]
além d'isso, utilisavam-no nas suas intrigas
umas com as outras: era Amaro o que
fazia as
queixas.
Tornou-se enredador, muito mentiroso.
Aos onze annos, ajudava á missa, e aos sabbados
limpava a capella. Era o seu melhor dia; fechava-se
por dentro, collocava os santos em plena luz em
cima d'uma mesa, beijando-os com ternuras devotas
e satisfações gulosas; e toda a manhã,
muito atarefado,
cantarolando o Santissimo, ia tirando a traça
dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e
cré as auréolas dos Martyres.
No emtanto crescia; o seu aspecto era o mesmo,
miudo e amarellado; nunca dava uma boa risada,
trazia sempre as mãos dos bolsos. Estava constantemente
mettido nos quartos das criadas, remexendo
as gavetas; bolia nas saias sujas, cheirava os algodões
postiços. Era extremamente preguiçoso, e custava
de manhã arrancal-o a uma somnolencia doentia
em que ficava amollecido, todo embrulhado nos
cobertores e abraçado ao travesseiro. Já
corcovava
um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca.
N'um domingo gordo, uma manhã, depois da
missa, ao chegar-se ao terraço, a senhora marqueza
de repente cahiu morta com uma apoplexia. Deixava
no seu testamento um legado para que Amaro, o filho
da sua criada Joanna, entrasse aos quinze annos no
seminario e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado
[31]
de realisar esta disposição piedosa. Amaro
tinha então treze annos.
As filhas da senhora marqueza deixaram logo
Carcavellos e foram para Lisboa, para casa da snr.
a
D. Barbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi
mandado para casa do tio, para a Estrella. O mercieiro
era um homem obeso, casado com a filha d'um
pobre empregado publico, que o aceitára para sahir
da casa do pai, onde a mesa era escassa, ella devia
fazer as camas e nunca ia ao theatro. Mas odiava o
marido, as suas mãos cabelludas, a loja, o bairro e
o seu apellido de snr.
a Gonçalves. O
marido esse
adorava-a como a delicia da sua vida, o seu luxo;
carregava-a de joias e chamava-lhe
a sua
duqueza.
Amaro não encontrou alli o elemento feminino e
carinhoso em que estivera tepidamente envolvido
em Carcavellos. A tia quasi não reparava n'elle; passava
os seus dias lendo romances, as analyses dos
theatros nos jornaes, vestida de sêda, coberta de
pó
d'arroz, o cabello em cachos, esperando a hora em
que passava debaixo das janellas, puxando os punhos,
o Cardoso, galan da Trindade. O mercieiro
apropriou-se então de Amaro como d'uma utilidade
imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer
logo ás cinco horas da manhã; e o rapaz tremia
na sua jaqueta de pano azul, molhando á pressa
o pão na chavena de café, ao canto da mesa da
cozinha.
De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe
o
cebola e o tio chamava-lhe o
burro. Pesava-lhes
até o magro pedaço de vacca que elle comia ao
jantar.
[32]
Amaro emmagrecia e todas as noites chorava.
Sabia já que aos quinze annos devia entrar no
seminario. O tio todos os dias lh'o lembrava:
—Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem,
burro! Em tendo quinze annos é para o
seminario. Não tenho obrigação de
carregar comtigo!
Besta na argola, não está nos meus principios!
E o rapaz desejava o seminario, como um libertamento.
Nunca ninguem consultára as suas tendencias ou
a sua vocação. Impunham-lhe uma sobrepelliz; a
sua
natureza passiva, facilmente dominavel, aceitava-a,
como aceitaria uma farda. De resto não lhe desagradava
ser padre. Desde que sahira das
rezas perpetuas
de Carcavellos conservára o seu medo do inferno,
mas perdera o fervor dos santos; lembravam-lhe
porém os padres que vira em casa da senhora
marqueza, pessoas brancas e bem tratadas que comiam
ao lado das fidalgas e tomavam rapé em caixas
d'ouro; e convinha-lhe aquella profissão em que se
falla baixo com as mulheres,—vivendo entre ellas,
cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante,—e
se recebem presentes em bandejas de prata. Recordava
o padre Liset com um annel de rubi no dedo
minimo; monsenhor Sávedra com os seus bellos oculos
d'ouro, bebendo aos goles o seu copo de
madeira.
As filhas da senhora marqueza bordavam-lhes
chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fôra padre
na Bahia, viajára, estivera em Roma, era muito
[33]
jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas que cheiravam
a agua de colonia apoiadas ao castão d'ouro
da bengala, todo rodeado de senhoras em extase e
cheias d'um riso beato, cantava, para as entreter,
com a sua bella voz:
Mulatinha da Bahia,
Nascida no Capujá...
Um anno antes de entrar para o seminario o tio
fel-o ir a um mestre para se affirmar mais no latim,
e dispensou-o de estar ao balcão. Pela primeira
vez na sua existencia Amaro possuiu liberdade. Ia só
á escóla, passeava pelas ruas. Viu a cidade, o
exercicio
de infanteria, espreitou ás portas dos cafés, leu
os cartazes dos theatros. Sobretudo começára a
reparar
muito nas mulheres—e vinham-lhe, de tudo
o que via, grandes melancolias. A sua hora triste
era ao anoitecer, quando voltava da escóla, ou aos
domingos depois de ter ido passear com o caixeiro
ao jardim da Estrella. O seu quarto ficava em cima,
na trapeira, com uma janellinha n'um vão sobre os
telhados. Encostava-se alli olhando, e via parte da
cidade baixa que a pouco e pouco se alumiava de
pontos de gaz: parecia-lhe perceber, vindo de lá,
um rumor indefinido: era a vida que não conhecia
e que julgava maravilhosa, com cafés abrazados de
luz e mulheres que arrastam ruge-ruges de sêdas
pelos perystillos dos theatros; perdia-se em
imaginações
vagas, e de repente appareciam-lhe no fundo
negro da noite fórmas femininas, por fragmentos,
[34]
uma perna com botinas de duraque e a meia muito
branca, ou um braço roliço arregaçado
até ao hombro...
Mas em baixo, na cozinha, a criada começava
a lavar a louça, cantando: era uma rapariga gorda,
muito sardenta; e vinham-lhe então desejos de descer,
ir roçar-se por ella, ou estar a um canto a vêl-a
escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres
que vira nas viellas, de saias engommadas e ruidosas,
passeando em cabello, com botinas cambadas:
e, da profundidade do seu sêr, subia-lhe uma
preguiça,
como que a vontade de abraçar alguem, de não
se sentir só. Julgava-se infeliz, pensava em matar-se.
Mas o tio chamava-o de baixo:
—Então tu não estudas, mariola?
E d'ahi a pouco, sobre o
Tito-Livio,
cabeceando
de somno, sentindo-se desgraçado, roçando os
joelhos
um contra o outro, torturava o diccionario.
Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento
pela vida de padre,
porque não poderia
casar.
Já as convivencias da escóla tinham introduzido
na sua natureza effeminada curiosidades,
corrupções.
Ás escondidas fumava cigarros: emmagrecia e andava
mais amarello.
Entrou no seminario. Nos primeiros dias os longos
corredores de pedra um pouco humidos, as lampadas
tristes, os quartos estreitos e gradeados, as
batinas negras, o silencio regulamentado, o toque
[35]
das sinetas—deram-lhe uma tristeza lugubre, aterrada.
Mas achou logo amizades; o seu rosto bonito
agradou. Começaram a tratal-o por
tu, a admittil-o,
durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo,
ás conversas em que se contavam anecdotas
dos mestres, se calumniava o reitor, e perpetuamente
se lamentavam as melancolias da clausura: porque
quasi todos fallavam com saudade das existencias livres
que tinham deixado: os da aldeia não podiam
esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas
cheias de cantigas e de abraços, as filas da boiada
que recolhe, emquanto um vapor se exhala dos prados;
os que vinham das pequenas villas lamentavam
as ruas tortuosas e tranquillas d'onde se namoram
as visinhas, os alegres dias de mercado, as grandes
aventuras do tempo em que se estuda latim. Não
lhes bastava o pateo do recreio lageado, com as suas
arvores definhadas, os altos muros somnolentos, o
monotono jogo da bola: abafavam na estreiteza dos
corredores, na sala de Santo Ignacio, onde se faziam
as meditações da manhã e se estudavam
á noite
as lições; e invejavam todos os destinos livres
ainda
os mais humildes—o almocreve que viam passar na
estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia
cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os
mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o
seu alforge escuro.
Da janella d'um corredor via-se uma volta de estrada;
á tardinha uma diligencia costumava passar,
levantando a poeira, entre os estalidos do chicote, ao
[36]
trote das tres eguas, carregada de bagagens; passageiros
alegres, que levavam os joelhos bem embrulhados,
sopravam o fumo dos charutos; quantos
olhares os seguiam! quantos desejos iam viajando
com elles para as alegres villas e para as cidades,
pela frescura das madrugadas ou sob a claridade
das estrellas!
E no refeitorio, diante do escasso caldo de hortaliça,
quando o regente de voz grossa começava a
lêr monotonamente as cartas d'algum missionario da
China ou as Pastoraes do senhor Bispo, quantas saudades
dos jantares de familia! As boas postas de peixe!
o tempo da matança! os rojões quentes que chiam
no prato! os sarrabulhos cheirosos!
Amaro não deixava coisas queridas: vinha da brutalidade
do tio, do rosto enfastiado da tia coberto de
pó d'arroz; mas insensivelmente poz-se tambem a
ter saudades dos seus passeios aos domingos, da
claridade do gaz e das voltas da escóla com os livros
n'uma correia, quando parava encostado á vitrina
das lojas a contemplar a nudez das bonecas!
Lentamente, porém, com a sua natureza incaracteristica,
foi entrando como uma ovelha indolente na regra do
seminario. Decorava com regularidade os
seus compendios; tinha uma exactidão prudente nos
serviços ecclesiasticos; e calado, encolhido, curvando-se
muito baixo diante dos lentes—chegou a ter
boas notas.
Nunca pudera comprehender os que pareciam gozar
o seminario com beatitude e maceravam os joelhos,
[37]
ruminando, com a cabeça baixa, textos da
Imitação
ou de Santo Ignacio; na capella, com os olhos
em alvo, empallideciam d'extase; mesmo no recréio,
ou nos passeios, iam lendo algum volumesinho de
Louvores a Maria; e cumpriam com
delicia as regras
mais miudas—até subir só um degrau de cada vez,
como recommenda S. Boaventura. A esses o seminario
dava um ante-gosto do céo: a elle só lhe
offerecia
as humilhações d'uma prisão, com os
tedios
d'uma escóla.
Não comprehendia tambem os ambiciosos: os que
queriam ser caudatarios d'um bispo, e nas altas salas
dos paços episcopaes erguer os reposteiros de
velho damasco; os que desejavam viver nas cidades
depois de ordenados, servir uma igreja aristocratica,
e, diante das devotas ricas que se accumulam no
frou-frou
das sêdas sobre o tapete do altar-mór, cantar
com voz sonora. Outros sonhavam até destinos fóra
da Igreja: ambicionavam ser militares e arrastar nas
ruas lageadas o
tlim-tlim d'um
sabre; ou a farta vida
da lavoura, e desde a madrugada, com um chapéo
desabado e bem montados, trotar pelos caminhos,
dar ordens nas largas eiras cheias de medas, apear
á porta das adegas. E, a não ser alguns devotos,
todos,
ou aspirando ao sacerdocio ou aos destinos seculares,
queriam deixar a estreiteza do seminario para
comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.
Amaro não desejava nada:
—Eu nem sei..., dizia elle melancolicamente.
[38]
No entretanto, escutando por sympathia aquelles
para quem o seminario era o «tempo das
galés», sahia
muito perturbado d'aquellas conversas cheias de
impaciente ambição da vida livre. Ás
vezes fallavam
de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janellas,
as peripecias da noite negra pelos negros caminhos:
anteviam balcões de tabernas onde se bebe, salas
de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava
todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se
sem dormir e, no fundo das suas imaginações
e dos seus sonhos, ardia, como uma braza silenciosa,
o desejo da Mulher.
Na sua cella havia uma imagem da Virgem coroada
de estrellas, pousada sobre a esphera, com o
olhar errante pela luz immortal, calcando aos pés a
serpente. Amaro voltava-se para ella como para um
refugio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a
contemplar a lithographia, esquecia a santidade da
Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura;
amava-a; suspirava; despindo-se olhava-a de revez
lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava
erguer as pregas castas da tunica azul da imagem
e suppôr fórmas, redondezas, uma carne branca...
Julgava então vêr os olhos do Tentador luzir na
escuridão
do quarto; aspergia a cama d'agua benta;
mas não se atrevia a revelar estes delirios, no
confessionario,
ao domingo.
Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de
Moral fallar, com a sua voz roufenha, do Peccado,
comparal-o á serpente e, com palavras unctuosas e
[39]
gestos arqueados, deixando cahir vagarosamente a
pompa mellíflua dos seus periodos, aconselhar os
seminaristas
a que, imitando a Virgem, calcassem aos
pés a
serpente ominosa! E
depois era o mestre de
Theologia mystica que fallava, sorvendo o seu rapé,
no dever de
vencer a Natureza! E
citando S. João de
Damasco e S. Chrysologo, S. Cypriano e S. Jeronymo,
explicava os anathemas dos santos contra a Mulher,
a quem chamava, segundo as expressões da
Igreja, Serpente, Dardo, Filha da mentira, Porta do
inferno, Cabeça do crime, Escorpião...
—E como disse o nosso padre S. Jeronymo,—e
assoava-se estrondosamente—Caminho de iniquidades,
iniquitas via!
Até nos compendios encontrava a
preoccupação da
Mulher! Que sêr era esse, pois, que através de
toda
a theologia ora era collocada sobre o altar como a
Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apostrophes
barbaras? Que poder era o seu, que a legião dos
santos ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão
extatica, dando-lhe por acclamação o profundo
reino dos céos,—ora vai fugindo diante d'ella como
do Universal Inimigo, com soluços de terror e
gritos d'odio, e escondendo-se, para a não vêr,
nas
thebaidas e nos claustros, vai alli morrendo do mal
de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas
perturbações!
ellas renasciam, desmoralisavam-no perpetuamente:
e já antes de fazer os seus votos desfallecia
no desejo de os quebrar.
E em redor d'elle sentia iguaes rebelliões da
[40]
natureza: os estudos, os jejuns, as penitencias podiam
domar o corpo, dar-lhe habitos machinaes, mas dentro
os desejos moviam-se silenciosamente, como n'um
ninho serpentes imperturbadas. Os que mais soffriam
eram os sanguineos, tão doloridamente apertados na
Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos
das camisas. Assim, quando estavam sós, o
temperamento irrompia: luctavam, faziam forças,
provocavam desordens. Nos lymphaticos a natureza
comprimida produzia as grandes tristezas, os silencios
molles: desforravam-se então no amor dos pequenos
vícios: jogar com um velho baralho, lêr um
romance, obter de intrigas demoradas um maço de
cigarros—quantos encantos do peccado!
Amaro por fim quasi invejava os estudiosos; ao
menos esses estavam contentes, estudavam perpetuamente,
escrevinhavam notas no silencio da alta livraria,
eram respeitados, usavam oculos, tomavam
rapé. Elle mesmo tinha ás vezes
ambições repentinas
da sciencia; mas diante dos vastos
in-folios vinha-lhe
um tedio insuperavel. Era no emtanto devoto:
rezava, tinha fé illimitada em certos santos, um
terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do
seminario! A capella, os chorões do pateo, as comidas
monotonas do longo refeitorio lageado, os cheiros
dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada:
parecia-lhe que seria bom, puro, crente, se estivesse
na liberdade d'uma rua ou na paz d'um quintal,
fóra d'aquellas negras paredes. Emmagrecia, tinha
suores eticos: e mesmo no ultimo anno, depois
[41]
do serviço pesado da Semana Santa, como começavam
os calores, entrou na enfermaria com uma febre
nervosa.
Ordenou-se emfim pelas temporas de S. Matheus;
e pouco tempo depois recebeu, ainda no seminario,
esta carta do snr. padre Liset:
«Meu querido filho e novo collega.—Agora que
está ordenado, entendo em minha consciencia que
devo dar-lhe conta do estado dos seus negocios,
pois quero cumprir até ao fim o encargo com que
carregou os meus hombros debeis a nossa chorada
marqueza, attribuindo-me a honra de administrar o
legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens
mundanos pouco deviam importar a uma alma votada
ao sacerdocio, são sempre as boas contas que fazem
os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho,
que o legado da querida marqueza—para quem deve
erguer em sua alma uma gratidão eterna—está
inteiramente exhausto. Aproveito esta occasião para
lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia,
tendo liquidado o estabelecimento, se entregou a um
caminho que o respeito me impede de qualificar:
cahiu sob o imperio das paixões, e tendo-se ligado
illegitimamente,
viu os seus bens perdidos juntamente
com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa de
hospedes na rua dos Calafates n.º 53. Se toco n'estas
impurezas, tão improprias de que um tenro levita
[42]
como o meu querido filho tenha d'ellas conhecimento,
é porque lhe quero dar cabal relação
da sua
respeitavel familia. Sua irmã, como decerto sabe,
casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento
não é o ouro que devemos apreciar, é
todavia importante,
para futuras circumstancias, que o meu querido
filho esteja de posse d'este facto. Do que me escreveu
o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos
para a freguezia de Feirão, na Gralheira,
vou fallar com algumas pessoas importantes que têm
a extrema bondade de attender um pobre padre que
só pede a Deus misericordia. Espero, todavia, conseguir.
Persevere, meu querido filho, nos caminhos
da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta,
e creia que se encontra a felicidade n'este nosso
santo ministerio quando sabemos comprehender
quantos são os balsamos que derrama no peito e quantos
os refrigerios que dá—o serviço de Deus! Adeus,
meu querido filho e novo collega. Creia que sempre
o meu pensamento estará com o pupillo da nossa
chorada marqueza, que decerto do céo, onde a elevaram
as suas virtudes, supplica á Virgem, que ella
tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupillo.»
Liset.
«P. S.—O appellido do marido de sua irmã
é
Trigoso.»
Liset.
Dois mezes depois Amaro foi nomeado parocho
de Feirão, na Gralheira, serra da Beira-Alta. Esteve
alli desde outubro até ao fim das neves.
Feirão é uma parochia pobre de pastores e
[43]
n'aquella época quasi deshabitada. Amaro passou o
tempo muito ocioso, ruminando o seu tedio á lareira,
ouvindo fóra o inverno bramir na serra. Pela primavera
vagaram nos districtos de Santarem e de Leiria
parochias populosas, com boas congruas. Amaro
escreveu logo á irmã contando a sua pobreza em
Feirão; ella mandou-lhe, com
recommendações de
economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer.
Amaro partiu immediatamente. Os ares lavados e vivos
da serra tinham-lhe fortificado o sangue; voltava
robusto, direito, sympathico, com uma boa côr na
pelle trigueira.
Logo que chegou a Lisboa foi á rua dos Calafates
n.º 53, a casa da tia: achou-a velha, com laços
vermelhos n'uma cuia enorme, toda coberta de pó
d'arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria
piedosa que abriu os seus magros braços a Amaro.
-Como estás bonito! Ora não ha! Quem te viu!
Ih, Jesus! que mudança!
Admirava-lhe a batina, a corôa: e contando-lhe
as suas desgraças, com exclamações
sobre a salvação
da sua alma e sobre a carestia dos generos, foi-o
levando para o terceiro andar, a um quarto que dava
para o saguão.
—Ficas aqui como um abbade, disse-lhe ella. E
baratinho!... Ai! ter-te de graça queria eu, mas...
Tenho sido muito infeliz, Joãosinho!... Ai! desculpa,
Amaro! Estou sempre com o Joãosinho na cabeça...
Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset
em S. Luiz. Tinha ido para França. Lembrou-se
então
[44]
da filha mais nova da senhora marqueza d'Alegros,
a snr.
a D. Luiza, que estava casada com o conde
de Ribamar, conselheiro d'Estado, com influencia,
regenerador fiel desde cincoenta e um e duas
vezes ministro do reino.
E, por conselho da tia, Amaro, logo que metteu o
seu requerimento, foi uma manhã a casa da snr.
a
condessa de Ribamar, a Buenos-Ayres. Á porta um
coupé esperava.
—A senhora condessa vai sahir, disse um criado
de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado
á hombreira do pateo, de cigarro na boca.
N'esse momento, d'uma porta de batentes de baena
verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do
pateo lageado, uma senhora sahia, vestida de claro.
Era alta, magra, loura, com pequeninos cabellos frisados
sobre a testa, lunetas d'ouro n'um nariz comprido
e agudo, e no queixo um signalzinho de cabellos
claros.
—A senhora condessa já me não conhece..., disse
Amaro com o chapéo na mão, adiantando-se curvado.
Sou o Amaro.
—O Amaro!? disse ella como estranha ao nome.
Ah! bom Jesus, quem elle é! Ora não ha!
Está um
homem! Quem diria!
Amaro sorria-se.
—Eu podia lá esperar! continuou ella admirada.
E está agora em Lisboa?
Amaro contou a sua nomeação para
Feirão, a pobreza
da parochia...
[45]
—De maneira que vim requerer, senhora condessa.
Ella escutava-o com as mãos apoiadas n'uma alta
sombrinha de sêda clara, e Amaro sentia vir d'ella
um perfume de pó d'arroz e uma frescura de cambraias.
—Pois deixe estar, disse ella, fique descansado.
Meu marido ha de fallar. Eu me encarrego d'isso.
Olhe, venha por cá.—E com o dedo sobre o canto
da boca:—Espere, ámanhã vou para Cintra.
Domingo,
não. O melhor é d'aqui a quinze dias. D'aqui
a quinze dias pela manhã, sou certa.—E rindo com
os seus largos dentes frescos:—Parece que o estou
a vêr traduzir Chateaubriand com a mana Luiza!
Como o tempo passa!
—Passa bem a senhora sua mana? perguntou
Amaro.
—Sim, bem. Está n'uma quinta em Santarem.
Deu-lhe a mão, calçada de
peau
de suède, n'um
aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes
d'ouro, e saltou para o
coupé, magra e ligeira,
com um movimento que levantou brancuras de
saias.
Amaro começou então a esperar. Era em julho,
no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos,
e durante o dia, de chinelos e casaco de
ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Ás vezes
ia conversar com a tia para a sala de jantar; as
janellas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monotona
susurração das moscas; a tia a um canto do
[46]
velho canapé de palhinha fazia
crochet, com a luneta
encavallada na ponta do nariz; Amaro, bocejando,
folheava um antigo volume do
Panorama.
Á noitinha sahia, a dar duas voltas no Rocio. Abafava-se,
no ar pesado e immovel: a todos os cantos se
apregoava monotonamente
agua fresca!
Pelos bancos,
debaixo das arvores, vadios remendados dormitavam;
em redor da praça, sem cessar, caleches de
aluguel vazias rodavam vagarosamente; as claridades
dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem destino,
movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das
ruas.
Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a
janella aberta ao calor da noite, estirado em cima da
cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros,
ruminava as suas esperanças. A cada momento
lhe acudiam, com rebates de alegria, as palavras
da senhora condessa:
fique descansado, meu
marido ha de fallar! E via-se já parocho
n'uma bonita
villa, n'uma casa com quintal cheio de couves
e de saladas frescas, tranquillo e importante, recebendo
bandejas de dôce das devotas ricas.
Vivia então n'um estado de espirito muito repousado.
As exaltações, que no seminario lhe causava
a continencia, tinham-se acalmado com as
satisfações
que lhe dera em Feirão uma grossa pastora,
que elle gostava de vêr ao domingo tocar á missa,
dependurada da corda do sino, rolando nas saias de
saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno,
pagava pontualmente ao céo as orações
que manda
[47]
o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava
estabelecer-se regaladamente.
No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.
—Não está, disse-lhe um criado da
cavallariça.
Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes
estavam abertos; e Amaro subiu devagar, pisando,
muito acanhado, o largo tapete vermelho fixado
com varões de metal. Da alta claraboia cahia
uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar,
sentado n'uma banqueta de marroquim escarlate,
um criado encostado á parede branca envernizada,
com a cabeça pendente e o beiço cahido, dormia.
Fazia um grande calor; aquelle alto silencio
aristocratico aterrava Amaro; esteve um momento
com o seu guardasol pendente do dedo minimo, hesitando;
tossiu devagarinho, para acordar o criado
que lhe pareceia terrivel com a sua bella suiça preta,
o seu rico grilhão d'ouro; e ia descer quando
ouviu por detraz d'um reposteiro um riso grosso de
homem. Sacudiu com o lenço o pó
esbranquiçado
dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho
n'uma larga sala com estofos de damasco
amarello; uma grande luz entrava das varandas
abertas, e viam-se arvoredos de jardim. No meio da
sala tres homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se,
balbuciou:
—Não sei se incommódo...
Um homem alto, de bigode grisalho e oculos de
ouro, voltou-se surprehendido, com o charuto ao canto
[48]
da boca e as mãos nos bolsos. Era o senhor
conde.
—Sou Amaro...
—Ah, disse o conde, o senhor padre Amaro! Conheço
muito bem! Tem a bondade... Minha mulher
fallou-me. Tem a bondade...
E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quasi
calvo, de calças brancas muito curtas:
—É a pessoa de quem lhe fallei.—Voltou-se
para Amaro:—É o senhor ministro.
Amaro curvou-se, servilmente.
—O senhor padre Amaro, disse o conde de Ribamar,
foi creado de pequeno em casa de minha sogra.
Nasceu lá, creio eu...
—Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro
que se conservava afastado, com o guardasol na
mão.
—Minha sogra, que era toda devota e uma completa
senhora,—já não ha d'isso!—fel-o padre.
Houve até um legado, creio eu... Emfim, aqui o temos
parocho... Onde, senhor padre Amaro?
—Feirão, excellentissimo senhor.
—Feirão!?... disse o ministro estranhando o
nome.
—Na serra da Gralheira, informou logo o outro
sujeito, ao lado. Era um homem magro, entalado
n'uma sobrecasaca azul, muito branco de pelle, com
soberbas suiças d'um negro de tinta e um admiravel
cabello lustroso de pomada, apartado até ao
cachaço
n'uma risca perfeita.
[49]
—Emfim, resumiu o conde, um horror! Na serra,
uma freguezia pobre, sem distracções, com um
clima horrivel...
—Eu metti já requerimento, excellentissimo senhor,
arriscou Amaro timidamente.
—Bem, bem, affirmou o ministro. Ha de arranjar-se.—E
mascava o seu charuto.
—É uma justiça, disse o conde. Mais,
é uma necessidade!
Os homens novos e activos devem estar
nas parochias difficeis, nas cidades... É claro! Mas
não: olhe, lá ao pé da minha quinta,
em Alcobaça,
ha um velho, um gottoso, um padre-mestre antigo,
um imbecil!... Assim perde-se a fé.
—É verdade, disse o ministro, mas essas
collocações
nas boas parochias devem naturalmente ser
recompensas dos bons serviços. É necessario o
estimulo...
—Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços
religiosos, profissionaes, serviços á Igreja,
não
serviços aos governos.
O homem das soberbas suiças negras teve um
gesto d'objecção.
—Não acha? perguntou-lhe o conde.
—Respeito muito a opinião de vossa excellencia,
mas se me permitte... Sim, digo eu, os parochos
na cidade são-nos d'um grande serviço nas crises
eleitoraes. D'um grande serviço!
—Pois sim. Mas...
—Olhe vossa excellencia, continuou elle, sôfrego
da palavra. Olhe vossa excellencia em Thomar.
[50]
Porque perdemos? Pela attitude dos parochos. Nada
mais.
O conde acudiu:
—Mas perdão, não deve ser assim; a
religião,
o clero não são agentes eleitoraes.
—Perdão... queria interromper o outro.
O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e
gravemente, em palavras pausadas, cheias da auctoridade
d'um vasto entendimento:
—A religião, disse elle, póde, deve mesmo
auxiliar
os governos no seu estabelecimento, operando,
por assim dizer, como freio...
—Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro,
cuspindo pelliculas mascadas de charuto.
—Mas descer ás intrigas, continuou o conde devagar,
aos
imbroglios...
Perdôe-me, meu caro amigo,
mas não é d'um christão.
—Pois sou-o, senhor conde! exclamou o homem
das suiças soberbas. Sou-o a valer! Mas tambem sou
liberal. E entendo que no governo representativo...
Sim, digo eu... com as garantias mais solidas...
—Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso
faz? desacredita o clero e desacredita a politica.
—Mas são ou não as maiorias um principio
sagrado?
gritava rubro o das suiças, accentuando o
adjectivo.
—São um principio
respeitavel.
—Upa! upa, excellentissimo senhor! upa!
O padre Amaro escutava, immovel.
—Minha mulher ha de querer vêl-o, disse-lhe
[51]
então o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que
levantou:—Entre. É o senhor padre Amaro, Joanna!
Era uma sala forrada de papel branco assetinado,
com moveis estofados de casimira clara. Nos
vãos das janellas, entre as cortinas de pregas largas
d'uma fazenda adamascada côr de leite, apanhadas
quasi junto do chão por faxas de sêda, arbustos
delgados, sem flôr, erguiam em vasos brancos
a sua folhagem fina. Uma meia luz fresca dava
a todas aquellas alvuras um tom delicado de nuvem.
Nas costas d'uma cadeira uma arara empoleirada,
firme n'um só pé negro, coçava
vagarosamente,
com contracções aduncas, a sua cabeça
verde. Amaro,
embaraçado, curvou-se logo para um canto do
sofá, onde viu os cabellinhos louros e frisados da
senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a
testa, e os aros de ouro da sua luneta reluzindo. Um
rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante
d'ella n'uma cadeira baixa, com os cotovêlos sobre
os joelhos abertos, occupava-se em balançar, como
um pendulo, um
pince-nez de
tartaruga. A condessa
tinha no regaço uma cadellinha, e com a sua mão
sêcca e fina, cheia de veias, acamava-lhe o pêllo
branco como algodão.
—Como está, snr. Amaro?—A cadella rosnou.—Quieta,
Joia... Sabe que já
fallei no seu negocio?
Quieta,
Joia... O ministro
está alli.
—Sim, minha senhora, disse Amaro, de pé.
—Sente-se aqui, senhor padre Amaro.
Amaro pousou-se á beira d'um
fauteil, com o
[52]
seu guardasol na mão—e reparou então n'uma
senhora
alta que estava de pé, junto do piano, fallando
com um rapaz louro.
—Que tem feito estes dias, snr. Amaro? disse
a condessa. Diga-me uma coisa: sua irmã?
—Está em Coimbra, casou.
—Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar
os seus anneis.
Houve um silencio. Amaro, d'olhos baixos, passava,
com um gesto embaraçado e errante, os dedos
pelos beiços.
—O senhor padre Liset está para fóra? perguntou.
—Está em Nantes. Tinha uma irmã a morrer,
disse a condessa. Está o mesmo sempre; muito amavel,
muito dôce. É a alma mais virtuosa!...
—Eu prefiro o padre Felix, disse o rapaz gordo
estirando as pernas.
—Não diga isso, primo! Jesus, brada aos céos!
Pois então o padre Liset, tão respeitavel!... E
depois
outras maneiras de dizer as coisas, com uma
bondade... Vê-se que é um
coração delicado...
—Pois sim, mas o padre Felix...
—Ai, nem diga isso! Que o padre Felix é uma
pessoa de muita virtude, decerto; mas o padre Liset
tem uma religião mais...—E com um gesto delicado
procurava a palavra:—mais fina, mais distincta...
Emfim, vive com outra gente.—E sorrindo
para Amaro:—Pois não acha?
Amaro não conhecia o padre Felix, não se
recordava
do padre Liset.
[53]
—Já é velho o senhor padre Liset, observou ao
acaso.
—Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado!
E que vivacidade, que enthusiasmo!... Ai,
é outra coisa!—E voltando-se para a senhora que
estava junto do piano:—Pois não achas, Thereza?
—Já vou, respondeu Thereza, toda absorvida.
Amaro afirmou-se então n'ella. Pareceu-lhe uma
rainha, ou uma deusa, com a sua alta e forte estatura,
uma linha de hombros e de seio magnifica; os
cabellos pretos um pouco ondeados destacavam sobre
a pallidez do rosto aquilino semelhante ao perfil
dominador de Marie Antoinette; o seu vestido preto,
de mangas curtas e decote quadrado, quebrava,
com as pregas da cauda muito longa toda adornada
de rendas negras, o tom monotono das alvuras
da sala; o collo, os braços estavam cobertos por uma
gaze preta, que fazia apparecer através a brancura
da carne; e sentia-se nas suas fórmas a firmeza
dos marmores antigos, com o calor d'um sangue
rico.
Fallava baixo, sorrindo, n'uma lingua aspera que
Amaro não comprehendia, cerrando e abrindo o seu
leque preto—e o rapaz louro, bonito, escutava-a
retorcendo a ponta d'um bigode fino, com um quadrado
de vidro entalado no olho.
—Havia muita devoção na sua parochia, snr.
Amaro? perguntava no emtanto a condessa.
—Muita, muito boa gente.
—É onde ainda se encontra alguma fé,
é nas aldeias,
[54]
considerou ella com um tom piedoso.—Queixou-se
da obrigação de viver na cidade, nos captiveiros
do luxo: desejaria habitar sempre na sua
quinta de Carcavellos, rezar na pequena capella antiga,
conversar com as boas almas da aldeia!—e a
sua voz tornára-se terna.
O rapaz rechonchudo ria-se:
—Ora, prima! dizia; ora, prima!—Não, elle,
se o obrigassem a ouvir missa n'uma capellinha de
aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!...
Não comprehendia,
por exemplo, a religião sem musica...
Era lá possivel uma festa religiosa sem uma boa
voz de contralto!?
—Sempre é mais bonito, disse Amaro.
—Está claro que é. É outra coisa! Tem
cachet!
Ó prima, lembra-se d'aquelle tenor... como se chamava
elle? O Vidalti. Lembra-se do Vidalti, na quinta-feira
de Endoenças, nos Inglezinhos? O
tantum
ergo?
—Eu preferia-o no
Baile de
mascaras, disse a
condessa.
—Olhe que não sei, prima, olhe que não sei!
No emtanto o rapaz louro viera apertar a mão á
senhora condessa, fallando-lhe baixo, muito risonho.
Amaro admirava a nobreza da sua estatura, a doçura
do seu olhar azul; reparou que lhe cahira uma
luva, e apanhou-lh'a servilmente. Quando elle sahiu
Thereza, depois de se ter aproximado vagarosamente
da janella e olhado para a rua—foi sentar-se n'uma
causeuse com um abandono que punha
em relêvo a
[55]
magnifica esculptura do seu corpo; e voltando-se
preguiçosamente
para o rapaz rechonchudo:
—Vamo-nos, João?
A condessa disse-lhe então:
—Sabes que o senhor padre Amaro foi creado
commigo em Bemfica?
Amaro fez-se vermelho: sentia que Thereza pousava
sobre elle os seus bellos olhos d'um negro
humido como o setim preto coberto de agua.
—Está na provincia agora? perguntou ella, bocejando
um pouco.
—Sim, minha senhora, vim ha dias.
—Na aldeia? continuou ella, abrindo e cerrando
vagarosamente o seu leque.
Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus
dedos finos; disse, acariciando o cabo do guardasol:
—Na serra, minha senhora.
—Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror!
Ha sempre neve, diz que a igreja não tem telhado,
são tudo pastores. Uma desgraça! Eu pedi ao
ministro
a vêr se o mudavamos. Pede-lhe tu tambem...
—O quê? disse Thereza.
A condessa contou que Amaro requerera para
uma parochia melhor. Fallou de sua mãi, da amizade
que ella tinha a Amaro...
—Morria-se por elle. Ora um nome que ella lhe
dava... Não se lembra?
—Não sei, minha senhora.
—Frei
Maleitas!... Tem
graça! Como o snr.
Amaro era amarellito, sempre mettido na capella...
[56]
Mas Thereza, dirigindo-se á condessa:
—Sabes com que se parece este senhor?
A condessa affirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou
a luneta.
—Não se parece com aquelle pianista do anno
passado? continuou Thereza. Não me lembra agora
o nome...
—Bem sei, o Jalette, disse a condessa. Bastante.
No cabello, não.
—Está visto, o outro não tinha corôa!
Amaro fez-se escarlate. Thereza ergueu-se arrastando
a sua soberba cauda, sentou-se ao piano.
—Sabe musica? perguntou, voltando-se para
Amaro.
—A gente aprende no seminario, minha senhora.
Ella correu a mão, um momento, sobre o teclado
de sonoridades profundas, e tocou a phrase do
Rigoleto,
parecida com o
Minuete de Mozart,
que diz
Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro
acto, da senhora de Crécy—e cujo rhythmo desolado
tem a abandonada tristeza de amores que findam,
e de braços que se desenlaçam em despedidas
supremas.
Amaro estava enlevado. Aquella sala rica com as
suas alvuras de nuvem, o piano apaixonado, o collo
de Thereza que elle via sob a negra transparencia
da gaze, as suas tranças de deusa, os tranquillos arvoredos
de jardim fidalgo davam-lhe vagamente a
idéa d'uma existencia superior, de romance, passada
[57]
sobre alcatifas preciosas, em
coupés acolchoados,
com arias de operas, melancolias de bom gosto
e amores d'um gozo raro. Enterrado na elasticidade
da
causeuse, sentindo a musica
chorar aristocraticamente,
lembrava-lhe a sala de jantar da tia
e o seu cheiro de refogado: e era como o mendigo
que prova um creme fino, e, assustado, demora o seu
prazer—pensando que vai voltar á dureza das
côdeas
sêccas e á poeira dos caminhos.
No emtanto Thereza, mudando bruscamente de
melodia, cantou a antiga aria inglesa de Haydn, que
diz tão finamente as melancolias da
separação:
The village seems dead and asleep
When Lubin is away!...
—Bravo! bravo! exclamou o ministro da justiça
apparecendo á porta, batendo dôcemente as palmas.
Muito bem, muito bem! Deliciosamente!
—Tenho um pedido a fazer-lhe, snr. Correia,
disse Thereza erguendo-se logo.
O ministro veio, com uma pressa galante:
—Que é, minha senhora? que é?
O conde e o sujeito de magnificas suiças tinham
entrado discutindo ainda.
—A Joanna e eu temos que lhe pedir, disse
Thereza ao ministro.
—Eu já pedi! já pedi mesmo duas vezes! acudiu
a condessa.
—Mas, minhas senhoras, disse o ministro sentando-se
confortavelmente, com as pernas muito estiradas,
[58]
a face satisfeita: de que se trata? É uma
coisa grave? meu Deus! prometto, prometto solemnemente...
—Bem, disse Thereza batendo-lhe com o leque
no braço. Então qual é a melhor
parochia vaga?
—Ah! disse o ministro comprehendendo e olhando
para Amaro, que vergou os hombros, córado.
O homem das suiças, que estava de pé fazendo
saltar circumspectamente os berloques, adiantou-se,
cheio de informações:
—Das vagas, minha senhora, é Leiria, capital
do districto e séde do bispado.
—Leiria? disse Thereza. Bem sei, é onde ha
umas ruinas?
—Um castello, minha senhora, edificado por D.
Diniz.
—Leiria é excellente!
—Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria,
séde do bispado, uma cidade... O senhor padre Amaro
é um ecclesiastico novo...
—Ora, snr. Correia! exclamou Thereza, e o senhor
não é novo?
O ministro sorriu, curvando-se.
—Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu
marido, que coçava ternamente a cabeça da arara.
—Parece-me inutil, o pobre Correia está vencido!
A prima Thereza chamou-lhe novo!
—Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece
que seja uma lisonja excepcional; eu não sou
tambem tão antigo...
[59]
—Oh, desgraçado! gritou o conde, lembra-te
que já conspiravas em 1820!
—Era meu pai, calumniador, era meu pai!
Todos riram.
—Snr. Correia, disse Thereza, está entendido. O
senhor padre Amaro vai para Leiria!
—Bem, bem, succumbo, disse o ministro com
gesto resignado. Mas é uma tyrannia!
—
Thank you, fez Thereza,
estendendo-lhe a
mão.
—Mas, minha senhora, estou a estranhal-a, disse
o ministro fixando-a.
—Estou contente hoje, disse ella. Olhou um momento
para o chão, distrahida, dando pequeninas
pancadas no vestido de sêda, levantou-se, foi sentar-se
ao piano bruscamente, e recomeçou a dôce
aria ingleza:
The village seems dead and asleep
When Lubin is away!...
Entretanto o conde tinha-se aproximado de Amaro,
que se erguera.
—É negocio feito, disse-lhe elle. O Correia entende-se
com o bispo. D'aqui a uma semana está
nomeado. Póde ir descansado.
Amaro fez uma cortezia e, servil, foi dizer ao ministro
que estava junto do piano:
—Senhor ministro, eu agradeço...
—Á senhora condessa, á senhora condessa, disse
o ministro sorrindo.
[60]
—Minha senhora, eu agradeço, veio elle dizer á
condessa, todo curvado.
—Ai, agradeça a Thereza! Ella quer ganhar indulgencias,
parece.
—Minha senhora... foi elle dizer a Thereza.
—Lembre-me nas suas orações, senhor padre
Amaro, disse ella. E continuou, com a sua voz magoada,
dizendo ao piano—as tristezas da aldeia
quando Lubin esta ausente!
Amaro d'ahi a uma semana soube o seu despacho.
Mas não tornára a esquecer aquella
manhã em
casa da senhora condessa de Ribamar,—o ministro
de calças muito curtas, enterrado na poltrona, promettendo
o seu despacho; a luz clara e calma do
jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia
yes...Cantava-lhe sempre no cerebro
aquella aria
triste do
Rigoleto; e perseguia-o a
brancura dos
braços de Thereza sob a gaze negra! Instinctivamente
via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em
torno do pescoço airoso do rapaz louro:—detestava-o
então, e a língua barbara que fallava, e a terra
heretica d'onde viera; e latejavam-lhe as fontes á
idéa de que um dia poderia confessar aquella mulher
divina e sentir o seu vestido de sêda preta roçar
pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade
do confessionario.
Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços
[61]
da tia, partiu para Santa Apolonia, com um gallego
que lhe levava o bahú. A madrugada rompia.
A cidade estava silenciosa, os candieiros apagavam-se.
Ás vezes uma carroça passava rolando, abalando
a calçada; as ruas pareciam-lhe interminaveis; saloios
começavam a chegar montados nos seus burros,
com as pernas balouçadas, cobertas de altas botas
enlameadas; n'uma ou n'outra rua uma voz aguda
já apregoava os jornaes; e os moços dos theatros
corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas
os cartazes.
Quando chegou a Santa Apolonia a claridade do
sol alaranjava o ar por detraz dos montes da Outra-Banda:
o rio estendia-se, immovel, riscado de correntes
de côr de aço sem lustre; e já alguma
vela
de falua passava, vagarosa e branca.
IV
Ao outro dia, na cidade, fallava-se da chegada
do parocho novo, e todos sabiam já que tinha trazido
um bahú de lata, que era magro e alto, e que
chamava
Padre-Mestre ao conego Dias.
As amigas da S. Joanneira,—as intimas—a D.
Maria da Assumpção, as Gansosos, tinham ido logo
pela manhã a casa d'ella
para se
pôrem ao facto...
Eram nove horas; Amaro sahira com o conego. A
S. Joanneira, radiosa, importante, recebeu-as no alto
da escada, de mangas arregaçadas, nos arranjos da
manhã; e immediatamente, com animação,
contou
a chegada do parocho, as suas boas maneiras, o
que tinha dito...
—Mas venham vossês cá abaixo, sempre quero
que vejam.
[64]
Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o bahú de
lata, uma prateleira que lhe arranjára para os livros.
—Está muito bem, está tudo muito bem, diziam
as velhas andando pelo quarto, devagar, com respeito,
como n'uma igreja.
—Rico capote! observou D. Joaquina Gansoso
apalpando o panno das largas bandas que pendiam
ao comprido do cabide.—É obra para um par de
moedas!
—E a boa roupa branca! disse a S. Joanneira
erguendo a tampa do bahú.
O grupo das velhas curvou-se com admiração.
—A mim o que me consola é que elle seja um
rapaz novo, disse D. Maria da Assumpção,
piedosamente.
—Tambem a mim, disse com auctoridade a D.
Joaquina Gansoso. Estar a gente a confessar-se e a
vêr o pingo do rapé, como era com o Raposo, credo!
até se perde a devoção! E o bruto do
José Migueis!
Não, lá isso Deus me mate com gente nova!
A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas
do parocho,—um crucifixo que estava ainda embrulhado
n'um jornal velho, o album de retratos, onde
o primeiro cartão era uma photographia do Papa
abençoando a christandade. Todas se extasiaram.
—É o mais que se póde, diziam, é o
mais que
se póde!
Ao sahir, beijando muito a S. Joanneira, felicitaram-na
porque adquirira, hospedando o parocho,
uma auctoridade quasi ecclesiastica.
—Vossês apparecem á noite, disse ella do alto
da escada.
—Pudera!... gritou D. Maria da Assumpção,
já
á porta da rua, traçando o seu
mantelete.—Pudera!...
Para o vermos á vontade!
Ao meio dia veio o Libaninho, o beato mais activo
de Leiria; e subindo a correr os degraus, já gritava
com a sua voz fina:
—Ó S. Joanneira!
—Sobe, Libaninho, sobe, disse ella, que costurava
á janella.
—Então o senhor parocho veio, hein? perguntou
o Libaninho, mostrando á porta da sala de jantar o
seu rosto gordinho côr de limão, a calva luzidia;
e
vindo para ella com o passinho miudo, um gingar
de quadris:
—Então que tal, que tal? tem bom feitio?
A S. Joaneira recomeçou a glorificação
de Amaro:
a sua mocidade, o seu ar piedoso, a brancura
dos seus dentes...
—Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se
de ternura devota.—Mas não se podia
demorar, ia para a repartição!—Adeus, filhinha,
adeus!—E batia com a sua mão papuda no hombro
da S. Joanneira.—Estás cada vez mais gordinha!
Olha que rezei hontem a Salve-Rainha que tu me
pediste, ingrata!
A criada tinha entrado.
—Adeus,
Ruça!
Estás magrinha: pega-te com
a Senhora Mãi dos Homens.—E avistando Amelia
[66]
pela porta do quarto entreaberta:—Ai, que estás
mesmo uma flôr, Mélinha! Quem se salvava na tua
graça bem eu sei!
E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho
agudo, desceu a escada rapidamente, ganindo:
—Adeusinho! adeusinho, pequenas!
—Ó Libaninho, vens á noite?
—Ai, não posso, filha, não posso!—E a sua
vozinha era quasi chorosa.—Olha que ámanhã
é
Santa Barbara: tem seis Padre-Nossos de direito!
Amaro fôra visitar o chantre com o conego Dias,
e tinha-lhe entregado uma carta de recommendação
do senhor conde de Ribamar.
—Conheci muito o senhor conde de Ribamar,
disse o chantre. Em quarenta e seis, no Porto. Somos
amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso:
ha que annos isso vai!
E, reclinando-se na velha poltrona de damasco,
fallou com satisfação do seu tempo: contou
anecdotas
da Junta, apreciou os homens de então, imitou-lhes
a voz (era uma especialidade de sua excellencia),
os
tics, as caturrices—sobretudo
Manoel Passos,
que elle descrevia passeando na Praça Nova,
com o comprido casaco pardo e o chapéo de grandes
abas, dizendo:
—
Animo, patriotas! o Xavier
aguenta-se!
[67]
Os senhores ecclesiasticos da camara riram com
gozo. Houve uma grande cordialidade. Amaro sahiu
muito lisonjeado.
Depois jantou em casa do conego Dias, e foram
passear ambos pela estrada de Marrazes. Uma luz
dôce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia
nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso,
de meiga tranquilidade; fumos esbranquiçados
sahiam dos casaes, e sentiam-se os chocalhos
melancolicos dos gados que recolhem. Amaro parou
junto da ponte, e disse, olhando em redor a paizagem
suave:
—Pois senhores, parece-me que me hei de dar
bem aqui!
—Ha de se dar regaladamente, affirmou o conego,
sorvendo o seu rapé.
Eram oito horas quando recolheram a casa da
S. Joanneira.
As velhas amigas estavam já na sala de jantar.
Ao pé do candieiro de petroleo, Amelia costurava.
A snr.
a D. Maria da
Assumpção vestira-se, como
nos domingos, de sêda preta: o seu
chinó, d'um louro
avermelhado, estava coberto com as rendas d'um
enfeite negro; as mãos
descarnadas, calçadas de mitenes,
solemnemente pousadas no regaço, reluziam
de anneis; do broche sobre o pescoço até ao
cinto,
um grosso grilhão d'ouro cahia com passadores lavrados.
Conservava-se direita e ceremoniosa, com a
cabeça um pouco de lado, os oculos d'ouro assentes
sobre o nariz acavallado: tinha no queixo um grande
[68]
signal cabelludo; e quando se fallava de devoções
ou de milagres dava um geito ao pescoço, e abria
um sorriso mudo que descobria os seus enormes dentes
esverdeados, cravados nas gengivas como cunhas.
Era viuva e rica, e soffria d'um catarrho chronico.
—Aqui tem o senhor parocho novo, D. Maria,
disse-lhe a S. Joanneira.
Ella ergueu-se, fez uma mesura com um movimento
de quadris, commovida.
—Estas são as senhoras Gansosos, ha de ter ouvido...,
disse a S. Joanneira ao parocho.
Amaro comprimentou timidamente. Eram duas
irmãs. Passavam por ter algum dinheiro, mas costumavam
receber hospedes. A mais velha, a snr.
a D.
Joaquina Gansoso, era uma pessoa sêcca, com uma
testa enorme e larga, dois olhinhos vivos, o nariz
arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no
seu chale, direita, com os braços cruzados, fallava
perpetuamente, n'uma voz dominante e aguda, cheia
de opiniões. Dizia mal dos homens e dava-se toda
á
Igreja.
A irmã, a snr.
a D. Anna, era
extremamente surda.
Nunca fallava, e com os dedos cruzados sobre o
regaço, os olhos baixos, fazia girar tranquillamente
os dois pollegares. Nutrida, com o seu perpetuo vestido
preto de riscas amarellas, um rolo de arminho
ao pescoço, dormitava toda a noite, e só
accentuava a
sua presença de vez em quando por suspiros agudos:
dizia-se que tinha uma paixão funesta pelo recebedor
do correio. Todos a lastimavam, e admirava-se a sua
[69]
habilidade em recortar papeis para caixas de dôce.
Estava tambem a snr.
a D. Josepha, a
irmã do conego
Dias. Tinha a alcunha de
castanha
pilada. Era
uma creaturinha mirrada, de linhas aduncas, pelle
engelhada e côr de cidra, voz sibilante; vivia n'um
perpetuo estado de irritação, os olhinhos sempre
assanhados, contracções nervosas de birra, toda
saturada
de fel. Era temida. O maligno doutor Godinho
chamava-lhe a
estação
central das intrigas de
Leiria.
—Então passeou muito, senhor parocho? perguntou
ella logo impertigando-se.
—Fomos quasi até lá ao fim da estrada de
Marrazes,
disse o conego, sentando-se pesadamente por
detraz da S. Joanneira.
—Não achou bonito, senhor parocho? acudiu
snr.
a D. Joaquina Gansoso.
—Muito bonito.
Fallaram das lindas paizagens de Leiria, das boas
vistas: a snr.
a D. Josepha gostava muito do
passeio
ao pé do rio; até já ouvira dizer que
nem em Lisboa
havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso preferia a
igreja da Encarnação, no alto.
—Desfruta-se muito d'alli.
Amelia disse sorrindo:
—Eu por mim gósto d'aquelle bocado ao pé da
ponte, debaixo dos chorões.—E partindo com os
dentes o fio da costura:—É tão triste!
Amaro olhou para ella, então, pela primeira vez.
Tinha um vestido azul muito justo ao seio bonito;
[70]
pescoço branco e cheio sahia d'um collarinho voltado;
entre os beiços vermelhos e frescos o esmalte
dos dentes brilhava; e pareceu ao parocho que um
buçosinho lhe punha aos cantos da boca uma sombra
subtil e dôce.
Houve um pequeno silencio—o conego Dias
com o beiço descahido ia já cerrando as
palpebras.
—Que será feito do senhor padre Brito? perguntou
D. Joaquina Gansoso.
—Está talvez com a enxaqueca, pobre de Christo!
lembrou piedosamente a snr.
a D. Maria da
Assumpção.
Um rapaz que estava junto do aparador disse
então:
—Eu vi-o hoje a cavallo, ia para os lados da
Barrosa.
—Homem! disse logo com azedume a irmã do
conego, a snr.
a D. Josepha Dias, é
milagre ter o
senhor reparado!
—Porquê, minha senhora? disse elle erguendo-se
e chegando-se ao grupo das velhas.
Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de
pelle branca, regular, um pouco fatigado, destacava
bem um bigode pequeno muito negro, cahido aos
cantos, que elle costumava mordicar com os dentes.
—Ainda elle o pergunta! exclamou a snr.
a D.
Josepha Dias. O senhor, que nem lhe tira o chapéo!
—Eu!?
—Disse-m'o elle, affirmou ella com uma voz cortante.
[71]
E acrescentou: Ai, senhor parocho, bem póde
chamar o snr. João Eduardo para o bom caminho!—E
teve um risinho maligno.
—Mas eu parece-me que não ando no mau caminho,
disse elle rindo, com as mãos nos bolsos. E
a cada momento os seus olhos se voltavam para
Amelia.
—É uma graça! exclamou a snr.
a
D. Joaquina
Gansoso. Olhe, com o que o senhor disse hoje lá em
casa, de tarde, da Santa da Arregassa, não ha de ganhar
o céo!
—Ora essa! gritou a irmã do conego voltando-se
bruscamente para João Eduardo. Então o que tem
o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que é uma
impostora?
—Credo, Jesus! disse a snr.
a D. Maria da
Assumpção
apertando as mãos e fitando João Eduardo
com um terror piedoso. Pois elle havia de dizer
isso? Cruzes!
—Não, o snr. João Eduardo, affirmou gravemente
o conego, que espertára, desdobrando o seu lenço
vermelho—não era capaz de dizer uma d'essas.
Amaro perguntou então:
—Quem é a Santa da Arregassa?
—Credo! Pois não tem ouvido fallar, senhor parocho?
exclamou n'uma admiração a snr.
a
D. Maria
da Assumpção.
—Ha de ter ouvido, affirmava a snr.
a D. Josepha
Dias com auctoridade. Diz que os jornaes de Lisboa
vem cheios d'isso!
[72]
—É com effeito uma coisa bem extraordinaria,
ponderou com um tom profundo o conego.
A S. Joanneira interrompeu a meia, e tirando a
luneta:
—Ai, não imagina, senhor parocho, é o milagre
dos milagres!
—Se é! se é! disseram.
Houve um recolhimento devoto.
—Mas então...? perguntou Amaro, todo curioso.
—Olhe, senhor parocho, começou a snr.
a
D. Joaquina
Gansoso endireitando-se no chale, fallando com
solemnidade: a Santa é uma mulher que aqui ha
n'uma freguezia perto, que está ha vinte annos na
cama...
—Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da
Assumpção, tocando-lhe com o leque no
braço.
—Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre
ouvi eu dizer vinte.
—Vinte e cinco, vinte e cinco, affirmou a S.
Joanneira. E o conego apoiou-a, oscillando gravemente
a cabeça.
—Está entrevadinha de todo, senhor parocho!
rompeu a irmã do conego, avida de fallar. Parece
uma alminha de Deus! Os bracinhos são isto!—E
mostrava o dedo minimo.—Para a gente a ouvir é
necessario pôr-lhe a orelha ao pé da boca!
—Pois se ella se sustenta da graça de Deus!
disse lamentosamente a snr.
a D. Maria da
Assumpção.
Coitadinha! que até a gente lembrar-se...
Houve entre as velhas um silencio commovido.
[73]
João Eduardo, que por traz das velhas, de pé, com
as mãos nos bolsos, sorria mordicando o bigode,
disse então:
—Olhe, senhor parocho, a coisa é o que os medicos
dizem: é que aquillo é uma doença
nervosa.
Aquella irreverencia fez, entre as velhas devotas,
um escandalo; a snr.
a D. Maria da
Assumpção
persignou-se logo «á cautela».
—Pelo amor de Deus! gritou a snr.
a D. Josepha
Dias, o senhor diga isso diante de quem quizer, menos
de mim! É uma affronta!
—É que até póde cahir um raio, dizia
para os
lados, baixo, a snr.
a D. Maria da
Assumpção,
muito
aterrada.
—Olhe, tambem lh'o digo, exclamou a snr.
a D.
Josepha Dias, o senhor é um homem sem religião
e sem respeito pelas coisas santas.—E voltando-se
para o lado de Amelia, muito azeda:—Olhe, filha
minha é que eu lhe não dava!
Amelia córou; e João Eduardo, fazendo-se vermelho
tambem, curvou-se sarcasticamente:
—Eu digo o que dizem os medicos. E de resto,
acredite que não tenho prentenções a
casar com pessoa
da sua familia! Nem mesmo comsigo, snr.
a D.
Josepha!
O conego deu uma risada muito pesada.
—Arreda! Cruzes! gritou ella, furiosa.
—Mas que faz então a Santa? perguntou o padre
Amaro, para pacificar.
—Tudo, senhor parocho, disse a snr.
a D.
Joaquina
[74]
Gansoso: está sempre de cama, sabe rezas
para tudo; pessoa por quem ella peça tem a graça
do Senhor; é a gente apegar-se com ella e cura-se
de toda a molestia. E depois, quando communga,
começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no ar,
com os olhos erguidos para o céo, que até chega a
fazer terror.
Mas n'este momento uma voz disse á porta da
sala:
—Ora viva a sociedade! Isto hoje está de truz!
Era um rapaz extremamente alto, amarello, com
as faces cavadas, uma grenha riçada, um bigode á
D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca,
porque lhe faltavam quasi todos os dentes de diante;
e nos seus olhos encovados, de grandes olheiras,
errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra
na mão.
—Então como vai isso hoje? perguntaram-lhe
logo.
—Mal, respondeu elle com voz triste, sentando-se.
Sempre as dôres no peito, a tossesita ...
Então não se dava bem com o oleo de figados
de bacalhau?
—Qual! fez elle desconsoladamente.
—Uma viagem á Madeira, isso é que era, isso
é
que era! disse a snr.
a D. Joaquina Gansoso com
auctoridade.
Elle riu, com uma jovialidade subita:
—Uma viagem á Madeira! Não está
má! A D.
Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um pobre amanuense
[75]
de administração com dezoito vintens por dia,
mulher
e quatro filhos... Para a Madeira!
—E como vai ella, a Joannita?
—Coitadita, lá vai! Tem saude, graças a Deus!
Gorda, sempre com bom appetite. Os pequenos, os
dois mais velhos é que estão doentes; de mais a
mais agora a criada tambem cahiu de cama! É o diacho!
Paciencia! paciencia!—E encolhia os hombros.
Mas voltando-se para a S. Joanneira, dando-lhe
uma palmada no joelho:
—E como vai a nossa Madre-Abbadessa?
Todos riram: e a snr.
a D. Joaquina Gansoso
informou
o parocho que aquelle rapaz, o Arthur Couceiro,
era muito engraçado e tinha uma bella voz. Era
a melhor da cidade para modinhas.
A
Ruça tinha
então entrado com o chá; a S.
Joanneira, enchendo as chavenas d'alto, dizia:
—Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este é
do bom! É da loja do Sousa...
E Arthur offerecia assucar com o seu antigo gracejo:
—Se está azedinho é carregar-lhe no sal!
As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires,
escolhiam cuidadosamente as torradas, sentia-se o
mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos
pingos da manteiga e das nodoas do chá estendiam
prudentemente os lenços sobre o regaço.
—Vai um docinho, senhor parocho? disse Amelia,
apresentando-lhe o prato. São da
Encarnação,
muito fresquinhos.
[76]
—Obrigado.
—Aquelle alli. É toucinho do céo.
—Ah! se é do céo... disse elle todo risonho. E
olhou para ella, tomando o bolo com a ponta dos
dedos.
O snr. Arthur costumava cantar depois do chá.
Sobre o piano uma vela alumiava o caderno de musica;
e Amelia, logo que a
Ruça
levou a bandeja,
accommodou-se, correu os dedos sobre o teclado
amarello.
—Então hoje que ha de ser? perguntou Arthur.
Os pedidos cruzaram-se:
—
O guerrilheiro! O noivado do sepulchro! O
descrido! o Nunca mais!
O conego Dias disse do seu canto, pesadamente:
—Ó Couceiro, vá lá aquella do
Tio Cosme, meu
bréjeiro!
As mulheres reprovaram:
—Credo! por quem é, senhor conego! Que
lembrança!
E a snr.
a D. Joaquina Gansoso resumiu:
—Nada: uma coisa de sentimento para o senhor
parocho fazer idéa.
—Isso, isso! disseram: uma coisa de sentimento,
ó Arthur, uma coisa de sentimento!
Arthur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente
á face uma expressão dolorosa, ergueu a voz,
cantou lugubremente:
Adeus, meu anjo! eu vou
partir sem ti!
[77]
Era uma canção dos tempos romanticos de 51, o
Adeus! Dizia uma suprema despedida,
n'um bosque,
por uma tarde pallida d'outono; depois, o homem
solitario e precito, que inspirára um amor funesto,
ia errar desgrenhado á beira do mar; havia uma
sepultura esquecida n'um valle distante, brancas
virgens vinham chorar á claridade do luar!
—Muito bonito, muito bonito! murmuravam.
Arthur cantava enternecido, o olhar vago; mas
nos intervallos, durante o acompanhamento, sorria
em redor—e na sua boca cheia de sombra viam-se
os restos de dentes pôdres. O padre Amaro, ao pé
da janella, fumando, contemplava Amelia, enlevado
n'aquella melodia sentimental e morbida: o seu perfil
fino, de encontro á luz, tinha uma linha luminosa;
destacava harmoniosamente a curva do seu peito;
e elle seguia as suas palpebras de grandes pestanas,
que do teclado para a musica se erguiam e
se abaixavam com um movimento dôce. João Eduardo,
junto d'ella, voltava-lhe as folhas da musica.
Mas Arthur, com a mão sobre o peito, a outra
erguida no ar, n'um gesto desolado e vehemente,
soltou a ultima estrophe:
E um dia, emfim, d'este viver fatal,
Repousarei na escuridão da campa!
—Bravo! bravo! exclamaram.
E o conego Dias commentou baixo ao parocho:
—Ah! para coisas de sentimento não ha outro.—E
[78]
bocejando enormemente: Pois menino, tenho
tido toda a noite as lulas a conversar cá por dentro.
Mas chegára a hora do loto. Cada um escolhia
os seus cartões habituaes; e a snr.
a
D. Josepha Dias,
com o seu olho d'avara a luzir, chocalhava já vivamente
o grosso sacco dos numeros.
—Aqui tem um logar, senhor parocho, disse
Amelia.
Era junto d'ella. Elle hesitou; mas tinham aberto
espaço, e veio sentar-se um pouco córado,
ageitando
timidamente a
volta.
Fez-se logo um grande silencio; e, com a voz
dormente, o conego começou a tirar os numeros. A
snr.
a D. Anna Gansoso dormitava ao seu canto,
resonando
ligeiramente.
Com o
abat-jour as
cabeças estavam na penumbra;
e a luz crua, cahindo sobre o chale escuro que
cobria a mesa, fazia destacar os cartões ennegrecidos
do uso e as mãos sêccas das velhas, pousadas
em attitudes aduncas, remexendo as marcas de vidro.
Sobre o piano aberto a vela derretia-se com
uma chamma alta e direita.
O conego rosnava os numeros com as pilherias
veneraveis da tradição: 1, cabeça de
porco!—3,
figura de entremez!
—Precisa-se o vinte e um, dizia uma voz.
—Ternei, murmurava outra com gozo.
E a irmã do conego, sôfrega:
—Chocalhe esses numeros, mano Placido! Vá!
[79]
—E traga-me esse quarenta e sete ainda que
seja de rastos, dizia o Arthur Couceiro, com a cabeça
entre os punhos.
Emfim o conego
quinou. E Amelia
olhando em
redor pela sala:
—Então não joga, snr. João Eduardo?
disse
ella. Onde está?
João Eduardo sahiu da sombra da janella, por
traz da cortina.
—Tome lá este cartão, ande, jogue.
—E receba as entradas, já que está de
pé, disse
a S. Joanneira. Seja o senhor recebedor!
João Eduardo foi em roda com o pires de porcelana.
No fim faltavam dez reis.
—Eu já dei, eu já dei! exclamavam todos,
excitados.
Fôra a irmã do conego que não
tocára no seu
cobre acastellado. João Eduardo disse, curvando-se:
—Parece-me que a snr.
a D. Josepha
não entrou.
—Eu!? gritou ella, furiosa. Olha uma d'estas!
Até fui a primeira! Credo! Duas moedas de cinco
reis, por signal! Que tal está o homem!
—Ah! bem, disse elle então, fui eu que me esqueci!
Cá ponho.—E rosnou: Beata e ladra!
E a irmã do conego dizia no emtanto baixo á
snr.
a D. Maria da
Assumpção:
—Queria vêr se escapava, o melro! Falta de temor
a Deus!
—Só quem não está feliz é
o senhor parocho,
observaram.
[80]
Amaro sorriu. Estava distrahido, e fatigado; ás
vezes mesmo esquecia-se de marcar, e Amelia dizia-lhe,
tocando-lhe no cotovêlo:
—Olhe que não marcou, senhor parocho!
Tinham já apostado dois ternos: ella ganhára;
depois faltou a ambos para
quinarem
o numero
trinta e seis.
Em roda repararam.
—Ora vamos a vêr se
quinam ambos, disse a
snr.
a D. Maria da
Assumpção, envolvendo-os no
mesmo
olhar baboso.
Mas o trinta e seis não sahía; havia outras
quadras
nos cartões alheios; Amelia receava que
quinasse
a snr.
a D. Joaquina Gansoso, que se mexia
muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro
ria, involuntariamente interessado.
O conego tirava os numeros com uma pachorra
maliciosa.
—Vá! vá! ande com isso, senhor conego!
diziam-lhe.
Amelia, debruçada, os olhos vivos, murmurou:
—Dava tudo para que sahisse o trinta e seis!
—Sim? Ahi o tem... Trinta e seis! disse o conego.
—
Quinamos! gritou ella,
triumphante; e tomando
o cartão do parocho e o seu mostrava-os,
para conferirem, orgulhosa, muito córada.
—Ora Deus os abençôe, disse o conego, jovial,
entornando-lhes diante o pires cheio de moedas de
dez reis.
[81]
—Parece milagre! considerou a snr.
a D. Maria
da Assumpção, piedosamente.
Mas tinham dado onze horas; e depois da
tumba
final as velhas começaram a agasalhar-se. Amelia
sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polka.
João Eduardo aproximou-se d'ella, e baixando a voz:
—Muitos parabens por ter
quinado
com o senhor
parocho. Que enthusiasmo!—E como ella ia responder:—Boa
noite! disse elle sêccamente, embrulhando-se
no seu chale-manta com despeito.
A
Ruça alumiava. As
velhas, pela escada, empacotadas
nos abafos, iam ganindo
adeusinhos.
O
snr. Arthur harpejava a guitarra, cantarolando o
Descrido.
Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no
Breviario; mas distrahia-se, lembravam-lhe as figuras
das velhas, os dentes pôdres de Arthur, sobretudo
o perfil de Amelia. Sentado á beira da cama,
com o Breviario aberto, fitando a luz, via o seu penteado,
as suas mãos pequenas com os dedos um
pouco trigueiros picados da agulha, o seu buçosinho
gracioso...
Sentia a cabeça pesada do jantar do conego e da
monotonia do
quino, com uma grande
sêde além
d'isso das lulas e do vinhito do Porto. Quiz beber,
mas não tinha agua no quarto. Lembrou-se então
que na sala de jantar havia uma bilha d'Extremoz
com agua fresca, muito boa, da nascente do Morenal.
Calçou as chinelas, tomou o castiçal, subiu
devagarinho. Havia
luz na sala,
estava o reposteiro
[82]
corrido: ergueu-o e recuou com um
ah! Vira n'um
relance Amelia, em saia branca, a desfazer o atacador
do collete: estava junto do candieiro e as mangas
curtas, o decote da camisa deixavam vêr os seus
braços brancos, o seio delicioso. Ella deu um pequeno
grito, correu para o quarto.
Amaro ficou immovel, com um suor á raiz dos
cabellos. Poderiam suspeitar uma offensa! Palavras
indignadas iam sahir decerto através do reposteiro
do quarto, que ainda se balouçava agitado!
Mas a voz de Amelia, serena, perguntou de dentro:
—Que queria, senhor parocho?
—Vinha buscar agua... balbuciou elle.
—Aquella
Ruça! aquella
desleixada! Desculpe,
senhor parocho, desculpe. Olhe ahi ao pé da mesa,
a bilha. Achou?
—Achei! achei!
Desceu devagar com o copo cheio: a mão tremia-lhe,
a agua escorria-lhe pelos dedos.
Deitou-se sem rezar. Alta noite Amelia sentiu por
baixo passos nervosos pisarem o soalho: era Amaro
que, com o capote aos hombros e em chinelas, fumava,
excitado, pelo quarto.
V
Ella, em cima, não dormia tambem. Sobre a commoda,
dentro de uma bacia, a lamparina extinguia-se,
com um mau cheiro de murrão de azeite; brancuras
de saias cahidas no chão destacavam; e os
olhos do gato, que não socegava, reluziam pela
escuridão
do quarto com uma claridade phosphorica
verde.
Na casa visinha uma criança chorava sem cessar,
Amelia sentia a mãi embalar-lhe o berço,
cantar-lhe
baixo:
Dorme, dorme, meu menino,
Que a tua mãi foi á fonte!
Era a pobre Catharina engommadeira, que o tenente
Sousa deixára com um filho no berço, e gravida
[84]
d'outro—para ir casar a Extremoz! Tão bonita era,
tão loura—e mirrada agora, tão chupada!
Dorme, dorme, meu menino.
Que a tua mãi foi á fonte!
Como ella conhecia aquella cantiga! Quando tinha
sete annos sua mãi dizia-a, nas longas noites
de inverno, ao irmãosinho que morrera!
Lembrava-se bem! Moravam então n'outra casa,
ao pé da estrada de Lisboa; á janella do seu
quarto
havia um limoeiro e a mãi punha, na sua ramagem
luzidia, os coeiros do Joãosinho a seccarem ao
sol. Não conhecera o papá. Fôra
militar, morrera
novo; e a mãi ainda suspirava ao fallar da sua bella
figura com o uniforme de cavallaria. Aos oito annos
ella foi para a mestra. Como se lembrava! A
mestra era uma velhita roliça e branca, que fôra
tacho
das freiras de Santa Joanna d'Aveiro; com os
seus oculos redondos, junto á janella, empurrando a
agulha, morria-se por contar historias do convento:
as perrices da escrivã, sempre a escabichar os dentes
furados; a madre rodeira, preguiçosa e pacata,
com uma pronuncia minhota; a mestra de cantochão,
admiradora de Bocage e que se dizia descendente
dos Tavoras; e a legenda de uma freira que
morrera de amor, e cuja alma ainda em certas noites
percorria os corredores, soltando gemidos dolorosos
e clamando:—Augusto! Augusto!
Amelia ouvia aquellas historias, encantada. Gostava
então tanto de festas d'igreja e da convivencia
[85]
dos santos, que desejava ser uma «freirinha,
muito bonita, com um véosinho muito branco.» A
mamã era muito visitada por padres. O chantre Carvalhosa,
um homem velho e robusto, que soprava
de asthma ao subir a escada e tinha uma voz fanhosa,
vinha todos os dias, como amigo da casa. Amelia
chamava-lhe
padrinho. Quando ella
voltava da
mestra, á tarde, encontrava-o sempre a palestrar
com a mãi, na sala, de batina desabotoada, deixando
vêr o longo collete de velludo preto com raminhos
bordados a amarello. O senhor chantre perguntava-lhe
pelas lições e fazia-a dizer a taboada.
Á noite havia reuniões: vinha o padre Valente;
o conego Cruz; e um velhito calvo, de perfil de passaro,
com oculos azues, que fôra frade franciscano
e a quem chamavam frei André. Vinham as amigas
da mãi, com as suas
meias; e um capitão
Couceiro,
de caçadores, que tinha os dedos negros do cigarro
e trazia sempre a sua viola. Mas ás nove horas mandavam-na
deitar; pela frincha do quarto ella via a
luz, ouvia as vozes; depois fazia-se um silencio, e o
capitão, repenicando a guitarra, cantava o
lundum
da Figueira.
Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns
eram-lhe antipathicos: sobretudo o padre Valente,
tão gordo, tão suado, com umas mãos
papudas e
molles, d'unhas pequenas! Gostava de a ter entre os
joelhos, torcer-lhe devagarinho a orelha, e ella sentia
o seu halito impregnado de cebola e de cigarro.
O seu amiguinho era o conego Cruz, magro, com o
[86]
cabello todo branco, a volta sempre aceada, as fivelas
luzidias; entrava devagarinho, comprimentando
com a mão sobre o peito e uma voz suave cheia
de ss. Já então sabia o catecismo e a doutrina:
na
mestra, em casa, por qualquer «bagatella»
fallavam-lhe
sempre dos castigos do céo; de tal sorte
que Deus apparecia-lhe como um sêr que só sabe
dar o soffrimento e a morte e que é necessario abrandar,
rezando e jejuando, ouvindo novenas, amimando
os padres. Por isso, se ás vezes ao deitar lhe esquecia
uma Salve-Rainha, fazia penitencia no outro
dia, porque temia que Deus lhe mandasse sezões ou
a fizesse cahir na escada.
Mas o seu melhor tempo foi quando começou a
tomar lições de musica. A mãi tinha na
sala de jantar,
ao canto, um velho piano, coberto com um pano
verde, tão desafinado, que servia de aparador!
Amelia costumava cantarolar pela casa; a sua voz fina
e fresca agradava ao senhor chantre, e as amigas
da mãi diziam-lhe:
—Tu tens ahi um piano, porque não mandas
ensinar a rapariga? Sempre é uma prenda! olha
que lhe póde servir de muito!
O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista
da Sé d'Evora, extremamente infeliz: a filha
unica, muito linda, fugira-lhe com um alferes
para Lisboa; e, passados dois annos, o Silvestre da
Praça, que ia muito á capital, vira-a descer a
rua do
Norte, de
garibaldi escarlate e
alvaiade n'um olho,
com um marinheiro inglez. O velho cahira em grande
[87]
melancolia e grande miseria; e por piedade tinham-lhe
dado um emprego no cartorio da camara
ecclesiastica. Era uma figura triste de romance picaresco.
Muito magro, alto como um pinheiro, deixava
crescer até aos hombros os seus cabellos brancos
e finos; os olhos, cansados, lagrimejavam-lhe
sempre; mas o seu sorriso resignado e bom enternecia:
e parecia muito transido, no seu capote côr
de vinho que só lhe chegava á cintura e que tinha
uma gola d'astrakan. Chamavam-lhe o
Tio
Cegonha
pela sua alta magreza e o seu ar solitario. Amelia
um dia tinha-lhe chamado
Tio
Cegonha; mas mordeu
logo o beiço, toda envergonhada.
O velho poz-se a sorrir:
—Ai, chame, minha rica menina, chame!
Tio
Cegonha?... ora, que tem? Cegonha sou eu, e bem
cegonha!
Era então no inverno. As grandes chuvas com
os sudoestes não cessavam; a aspera
estação opprimia
os pobres. Viam-se n'aquelle anno familias esfomeadas
indo á camara pedir pão. O
Tio
Cegonha
vinha sempre ao meio-dia dar a lição; o seu
guardachuva
azul deixava um ribeiro na escada; tiritava;
e quando se sentava escondia, na sua vergonha
de velho, as botas encharcadas com a sola aberta.
Queixava-se sobretudo do frio das mãos, que o impedia
de ferir com justeza o teclado e não o deixava
escrever no cartorio.
—Prendem-se-me os dedos... dizia tristemente.
Mas quando a S. Joanneira lhe pagou o primeiro
[88]
mez das lições, o velho appareceu muito contente,
com umas grossas luvas de lã.
—Ah,
Tio Cegonha, como vem
quentinho! disse-lhe
Amelia.
—Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora
ando a juntar para umas meias de lã. Deus a
abençôe, minha menina, Deus a
abençôe!
E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lagrimas.
Amelia tornára-se a «sua rica
amiguinha». Já lhe
fazia confidencias: contava-lhe as suas necessidades,
as saudades da filha, as suas glorias na Sé d'Evora,
quando diante do senhor
arcebispo,
vistoso na sua
sobrepelliz escarlate, acompanhava o
Lausperenne.
Amelia não se esqueceu das meias de lã do
Tio
Cegonha. Pediu ao chantre que lhe désse
umas
meias de lã.
—Ora essa! para quê? para ti? disse elle com
o seu riso grosso.
—Para mim, sim senhor.
—Deixe fallar, senhor chantre! disse a S. Joanneira.
Olha a idéa!
—Não deixe fallar, não! dê, sim?
Lançou-lhe os braços ao pescoço,
fez-lhe olhinhos
dôces.
—Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperanças!
ha de ser o diabo!... Pois sim, ahi tens.—E
deu-lhe dois pintos para umas meias de lã.
No dia seguinte tinha-os ella embrulhados n'um
papel, que dizia por fóra em letras garrafaes:
Ao
meu rico amigo Tio Cegonha, a sua discipula.
[89]
Uma manhã, depois, viu-o mais amarello, mais
chupado:
—Ó
Tio Cegonha, disse de
repente, quanto lhe
dão lá no cartorio?
O velho sorriu-se:
—Ora, minha rica menina, quanto me hão de
dar? uma bagatella. Quatro vintens por dia. Mas o
snr. Netto faz-me algum bem...
—E chegam-lhe, quatro vintens?
—Ora! como hão de chegar!
Sentiram-se os passos da mãi; e Amelia, retomando
gravemente a attitude de lição,
começou a
solfejar alto, com um ar profundo.
E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou,
que levou a mãi a dar de almoçar e de jantar ao
Tio Cegonha nos dias de
lição. Assim se estabeleceu
entre ella e o velho uma grande intimidade. E o pobre
Tio Cegonha, sahindo do seu frio
isolamento,
acolhia-se áquella amizade inesperada, como a um
conchego tepido. Encontrava n'ella o elemento feminino
que amam os velhos, com as caricias, as suavidades
de voz, as delicadezas de enfermeira; achava
n'ella a unica admiradora da sua musica; e
via-a sempre attenta ás historias do seu tempo,
ás
recordações da velha Sé d'Evora que
elle amava
tanto, e que lhe fazia dizer, quando se fallava de
procissões ou de festas de igreja:
—Para isso Evora! em Evora é que é!
Amelia applicava-se muito ao piano: era a coisa
boa e delicada da sua vida: já tocava contradansas
[90]
e antigas arias de velhos compositores; a
snr.
a D. Maria da
Assumpção estranhava que o
mestre lhe não ensinasse o
Trovador.
—Coisa mais linda! dizia.
Mas o
Tio Cegonha só
conhecia a musica classica,
arias ingenuas e dôces de Lully, motivos de minuetes,
motetes floridos e piedosos dos dôces tempos
freiraticos.
Uma manhã o
Tio Cegonha
encontrou Amelia
muito amarella e triste. Desde a vespera queixava-se
de «mal-estar». Era um dia nublado, muito
frio. O velho queria ir-se embora.
—Não, não,
Tio
Cegonha, disse ella, toque alguma
coisa para eu me entreter.
Elle tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma
melodia simples, mas extremamente melancolica.
—Que lindo! que lindo! dizia Amelia, de pé
junto ao piano.
E quando o velho deu as ultimas notas:
—O que é? perguntou ella.
O
Tio Cegonha contou-lhe que era o
começo de
uma
Meditação
feita por um frade seu amigo.
—Coitado, disse, teve bem o seu tormento!
Amelia quiz logo saber a historia; e sentando-se
no mocho do piano, embrulhando-se no seu chale:
—Diga,
Tio Cegonha, diga!
Era um homem que tivera em novo uma grande
paixão por uma freira; ella morrera no convento
d'aquelle amor infeliz; e elle, de dôr e de saudade,
fizera-se frade franciscano...
[91]
—Parece que o estou a vêr...
—Era bonito?
—Se era! Um rapaz na flôr da vida, rico... Um
dia veio ter commigo ao orgão: «Olha o que eu
fiz»,
disse-me elle. Era um papel de musica. Abria em ré
menor. Poz-se a tocar, a tocar... Ai, minha rica menina,
que musica! Mas não me lembra o resto!
E o velho, commovido, repetiu no piano as notas
plangentes da
Meditação em
ré menor.
Amelia todo o dia pensou n'aquella historia. De
noite veio-lhe uma grande febre, com sonhos espessos,
em que dominava a figura do frade frasciscano,
na sombra do orgão da Sé d'Evora. Via os seus
olhos profundos reluzirem n'uma face encovada: e,
longe, a freira pallida, nos seus habitos brancos, encostada
ás grades negras do mosteiro, sacudida pelos
prantos do amor! Depois, no longo claustro, a
ala dos frades franciscanos caminhava para o côro:
elle ia no fim de todos, curvado, com o capuz sobre
o rosto, arrastando as sandalias, emquanto um grande
sino, no ar nublado, tocava o dobre dos finados.
Então o sonho mudava: era um vasto céo negro,
onde duas almas enlaçadas e amantes, com habitos
de convento e um ruido ineffavel de beijos insaciaveis,
giravam, levadas por um vento mystico; mas
desvaneciam-se como nevoas, e na vasta escuridão
ella via apparecer um grande coração em carne
viva,
todo trespassado de espadas—e as gotas de
sangue que cahiam d'elle enchiam o céo d'uma chuva
escarlate.
[92]
Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouvêa
tranquillisou a S. Joanneira com uma simples palavra:
—Nada de sustos, minha rica senhora, são os
quinze annos da rapariga. Hão de lhe vir
ámanhã
as vertigens e os enjôos... Depois acabou-se. Temol-a
mulher.
A S. Joanneira comprehendeu.
—Esta rapariga tem o sangue vivo e ha de ter
as paixões fortes! acrescentou o velho pratico, sorrindo
e sorvendo a sua pitada.
Por esse tempo o senhor chantre, uma manhã,
depois do seu almoço d'açorda, cahiu de repente
morto
com uma apoplexia. Que consternação inesperada
para a S. Joanneira! Durante dois dias, esguedelhada,
em saias brancas, chorou, gemeu pelos quartos.
D. Maria da Assumpção, as snr.
as
Gansosos
vieram
acalmar, amansar a sua dôr: e a snr.
a
D. Josepha
Dias resumiu as consolações de todas, dizendo:
—Deixa, filha, que te não ha de faltar quem te
ampare!
Era então no começo de setembro; a snr.
a
D.
Maria da Assumpção, que tinha uma casa na praia
da Vieira, propôz levar a S. Joanneira e Amelia para
a estação dos banhos, para ella espalhar, nos
bons
ares saudaveis, em logar differente, aquella dôr.
—É uma esmola que me fazes, dissera a S.
Joanneira. Sempre me lembra que era alli que elle
punha o guardachuva... Alli que elle se sentava a
vêr-me costurar!
—Está bom, está bom, deixa-te d'isso. Come e
[93]
bebe, toma os teus banhos, e o que lá vai lá vai.
Olha que elle tinha bem os seus sessenta.
—Ah, minha rica! a gente é pela amizade que
lhes ganha!
Amelia tinha então quinze annos, mas era já alta
e de bonitas fórmas. Foi uma alegria para ella a
estação
na Vieira! Nunca vira o mar; e não se fartava
de estar sentada na areia, fascinada pela vasta
agua azul, muito mansa, cheia de sol; ás vezes no
horisonte passava um fumo delgado de paquete; a
monotona e gemente cadencia da vaga adormentava-a;
e em redor o areal faiscava, a perder de vista,
sob o céo azul-ferrete.
Como se lembrava bem! Logo pela manhã estava
a pé. Era a hora do banho: as barracas de lona
alinhavam-se ao comprido da praia; as senhoras,
sentadas em cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas,
olhavam o mar, palrando; os homens, de sapatos
brancos, estendidos em esteiras, chupavam o cigarro,
riscavam emblemas na areia; emquanto o poeta Carlos
Alcoforado, muito fatal, muito olhado, passeava
só, soturno, junto da vaga, seguido do seu Terra-Nova.
Ella sahia então da barraca com o seu vestido
de flanella azul, a toalha no braço, tiritando de
susto e de frio: tinha-se persignado ás escondidas e
toda tremula, agarrada á mão do banheiro,
escorregando
na areia, entrava na agua, rompendo a custo
a maresia esverdeada que fervia em redor. A onda
vinha espumando, ella mergulhava, e ficava aos
saltos, suffocada e nervosa, cuspindo a agua salgada.
[94]
Mas, quando sahia do mar, como vinha satisfeita!
Arfava, com a toalha pela cabeça, arrastando-se
para a barraca, mal podendo com o peso do vestido
encharcado, risonha, cheia de reacção; e em redor
vozes amigas perguntavam:
—Então que tal, que tal? Mais fresquinha, hein?
Depois, de tarde, eram os passeios à beira-mar,
a apanhar conchinhas; o recolher das redes, onde a
sardinha toda viva ferve aos milheiros, luzidia sobre
a areia molhada; e que longas perspectivas de
occasos ricamente dourados, sobre a vastidão do
mar triste, que escurece e geme!
D. Maria da Assumpção tinha sido visitada, logo
ao chegar, por um rapaz, filho do snr. Brito de Alcobaça,
seu parente. Chamava-se Agostinho, ia frequentar
o quinto anno de direito na Universidade.
Era um moço delgado, de bigode castanho, pera,
cabello comprido deitado para traz, e luneta: recitava
versos, sabia tocar guitarra, contava anecdotas de
caloiros, fazia
partidas, e era
famoso na Vieira, entre
os homens, «por saber conversar com senhoras».
—O Agostinho, patife! diziam. É chalaça a esta,
chalaça áquella. Lá para sociedade
não ha outro!
Logo desde os primeiros dias Amelia reparou que
os olhos do snr. Agostinho Brito se fitavam constantemente
n'ella, «p'ra namoro». Amelia córava
muito,
sentia o seio alargar-se-lhe dentro do vestido;
e admirava-o, achava-o muito «dengueiro».
Um dia em casa da snr.
a D. Maria da
Assumpção
pediram a Agostinho para recitar.
[95]
—Oh, minhas senhoras, isto aqui não é forja de
ferreiro! exclamou elle, jovial.
—Ora vá! não se faça rogado,
disseram, insistindo.
—Bem, bem, por isso não nos havemos de zangar.
—A
Judia, Brito, lembrou o
recebedor de Alcobaça.
—Qual
Judia! disse elle, ha de ser
mas ha do
ser a
Morena!—E olhou para
Amelia.—Foi uma
poesia que fiz hontem.
—Valeu, valeu!
—E cá o rapaz acompanha, disse um sargento
do 6 de caçadores, tomando logo a guitarra.
Fez-se um silencio: o snr. Agostinho deitou o
cabello para traz, fincou a luneta, apoiou as duas
mãos ás costas d'uma cadeira, e fitando Amelia:
—Á
Morena de Leiria!
disse.
Nasceste nos verdes campos
Onde Leiria é famosa,
Tens a frescura da rosa,
E o teu nome sabe a mel...
—Perdão! exclamou o recebedor, a snr.
a
D.
Juliana não está boa...
Era a filha do escrivão de direito de Alcobaça;
tinha-se feito muito pallida, e, lentamente, desmaiava
na cadeira, com os
braços
pendentes, o queixo
sobre o peito. Borrifaram-na de agua, levaram-n'a
para o quarto de Amelia; quando lhe desapertaram
[96]
o vestido e lhe deram vinagre a respirar, ergueu-se
sobre o cotovêlo, olhou em redor, começaram a
tremer-lhe os beiços e rompeu a chorar. Fóra, os
homens em grupo, commentavam:
—Foi o calor, diziam.
—O calor que ella tinha sei eu... rosnou o sargento
de caçadores.
O snr. Agostinho torcia o bigode, contrariado.
Algumas senhoras foram a casa acompanhar a snr.
a
D. Juliana. D. Maria da Assumpção e a S.
Joanneira,
atabafadas nos seus chales, iam tambem. Havia
vento, um criado levava um lampeão, e todos caminhavam
na areia, calados.
—Tudo isto é teu proveito, disse a snr.
a
D. Maria
da Assumpção baixo á S. Joanneira,
demorando-se
um pouco atraz.
—Meu!?
—Teu. Pois tu não percebeste? A Juliana, em
Alcobaça, era namoro do Agostinho. Mas o rapaz aqui
anda pelo beiço pela Amelia. A Juliana percebeu,
viu-o recitar aquelles versos, olhar para ella, zás!
—Ora essa!... disse a S. Joanneira.
—Deixa lá, o Agostinho tem um par de mil cruzados
que lhe deixam as tias. É um partidão!
Ao outro dia, á hora do banho, a S. Joanneira
vestia-se na sua barraca, e Amelia, sentada na areia,
esperava, pasmada para o mar.
—Olá! sósinha! disse uma voz por detraz.
Era Agostinho. Amelia, calada, começou a riscar
a areia com a sombrinha. O snr. Agostinho suspirou,
[97]
alisou outro pedaço d'areia com o pé,
escreveu—
Amelia.
Ella, muito vermelha, quiz apagar com a
mão.
—Então! disse elle. E debruçando-se,
baixo:—É
o nome da
Morena, bem vê.
O seu nome sabe a
mel!...
Ella sorriu:
—Ande que fez hontem desmaiar aquella pobre
Juliana, disse.
—Ora! importa-me a mim bem com ella! Estou
farto d'aquelle estafermo! Então que quer? Eu cá
sou assim. Tanto digo que me não importo com ella,
como digo que ha uma pessoa por quem dava
tudo... Eu sei...
—Quem é? É a snr.
a D.
Bernarda?
Era uma velha hedionda, viuva de um coronel.
—É, disse elle rindo. É justamente por quem eu
ando apaixonado, é pela D. Bernarda.
—Ah! o senhor anda apaixonado! disse ella devagar,
com os olhos baixos, riscando a areia.
—Diga-me uma coisa, está a mangar commigo?
exclamou Agostinho puxando uma cadeirinha, sentando-se
junto d'ella.
Amelia pôz-se de pé.
—Não quer que eu me sente ao pé de si? perguntou
elle offendido.
—Eu é que estava cansada de estar sentada.
Calaram-se um momento.
—Já tomou banho? disse ella.
—Já.
[98]
—Estava frio hoje?
—Estava.
As palavras de Agostinho eram agora muito sêccas.
—Zangou-se? disse ella dôcemente, pondo-lhe
de leve a mão no hombro.
Agostinho ergueu os olhos, e vendo o bonito rosto
trigueiro, todo risonho, exclamou com vehemencia:
—Estou mesmo doido por si!
—Chut!... disse ella.
A mãi de Amelia, levantando o pano da barraca,
sahia, muito abafada, de lenço amarrado na
cabeça.
—Mais fresquinha, hein? perguntou logo Agostinho,
tirando o chapéo de palha.
—Estava por aqui?
—Vim dar uma vista d'olhos. E agora toca ao
almocinho, hein?
—Se é servido... disse a S. Joanneira.
Agostinho, muito galante, offereceu o braço á
mamã.
E desde então seguia sempre Amelia, de manhã
no banho, de tarde á beira-mar; apanhava-lhe conchas;
e tinha-lhe feito outros versos—o
Sonho. Uma
estrophe era violenta:
Senti-te contra o meu peito
Tremer, palpitar, ceder...
Ella murmurava-os com grande commoção, de
noite, suspirando, abraçando o travesseiro.
[99]
Outubro findava, as férias tinham acabado. Uma
noite o alegre rancho da snr.
a D. Maria da
Assumpção
e das amigas fôra dar um passeio ao luar. Á
volta, porém, erguera-se vento, nuvens pesadas empastaram
o céo, cahíram gotas d'agua. Estavam
então
junto a um pequeno pinheiral, e as senhoras, aos
gritinhos, quizeram abrigar-se. Agostinho, com Amelia
pelo braço, rindo alto, foi penetrando longe dos outros
na espessura; e então, sob o monotono e gemente rumor
das ramas, disse-lhe baixo, cerrando os dentes:
—Estou doido por ti, filha!
—Creio lá n'isso! murmurou ella.
Mas Agostinho, tomando subitamente um tom
grave:
—Sabes? talvez eu tenha de me ir ámanhã embora.
—Vai-se?
—Talvez; não sei ainda. Além
d'ámanhã é a
matricula.
—Vai-se... suspirou Amelia.
Elle então tomou-lhe a mão, apertou-lh'a com
furor:
—Escreve-me! disse.
—E a mim escreve-me? disse ella.
Agostinho agarrou-a pelos hombros e machucou-lhe
a boca de beijos vorazes.
—Deixe-me! deixe-me! dizia ella suffocada.
De repente teve um gemido dôce como um arrulho
de ave, e abandonava-se—quando a voz aguda
de D. Joaquina Gansoso gritou:
[100]
—Ha uma aberta. É andar! é andar!
E Amelia, desprendendo-se, atarantada, correu
a agachar-se sob o guardachuva da mamã.
Ao outro dia, com effeito, o snr. Agostinho partiu.
Vieram as primeiras chuvas, e dentro em pouco
tambem Amelia, a mãi, a snr.
a D.
Maria da
Assumpção
voltaram para Leiria.
Passou o inverno.
E um dia, em casa da S. Joanneira, D. Maria da
Assumpção deu parte que o Agostinho Brito,
segundo
lhe escreviam de Alcobaça, tinha o casamento
justo com a menina do Vimeiro.
—Caspitè! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha
nada menos que os seus trinta contos! Olha o
méco!
E diante de todos Amelia rompeu a chorar.
Amava Agostinho; e não podia esquecer aquelles
beijos de noite no pinheiral cerrado. Pareceu-lhe então
que não tornaria a ter alegria! Ainda lembrada
d'aquelle moço da historia do
Tio
Cegonha, que
por amor se escondera na solidão de um convento,
começou a pensar em ser freira: deu-se a uma forte
devoção, manifestação
exagerada das tendencias
que desde pequenina as convivencias de padres tinham
lentamente creado na sua natureza sensivel;
lia todo o dia livros de rezas; encheu as paredes do
quarto de lithographias coloridas de santos; passava
longas horas na igreja, accumulando Salve-Rainhas
á Senhora da Encarnação. Ouvia todos
os dias missa,
quiz commungar todas as semanas—e as amigas
[101]
da mãi achavam-na «um modêlo, de dar
virtude
a incredulos»!
Foi por esse tempo que o conego Dias e sua
irmã, a snr.
a D. Josepha Dias,
começaram a
frequentar
a casa da S. Joanneira. Dentro em pouco o conego
tornou-se o «amigo da familia». Depois do
almoço
era certo com a sua cadellinha, como outr'ora
o chantre com o seu guardachuva.
—Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem,
dizia a S. Joanneira. Mas o senhor chantre não ha
dia nenhum que me não lembre d'elle!
A irmã do conego tinha então organisado com a
S. Joanneira a
Associação das
Servas da Senhora da
Piedade. A snr.
a D. Maria da
Assumpção, as Gansosos
«filiaram-se»; e a casa da S. Joanneira tornou-se
um centro ecclesiastico. Foi esse o momento melhor
da vida da S. Joanneira; «a Sé, como dizia com
tedio o Carlos da botica, era agora na rua da Misericordia».
Parte dos conegos, o novo chantre vinham
todas as sextas-feiras. Havia imagens de santos na
sala de jantar e na cozinha. As criadas, por escrupulo,
eram examinadas em doutrina antes de serem
aceitas. Alli muito tempo fizeram-se as
reputações:
se se dizia de um homem—
não é
temente a Deus,
havia o dever de o desacreditar santamente. As
nomeações
de sineiros, coveiros, serventes de sacristia
arranjavam-se alli por intrigas subtis e palavras
piedosas. Tinham tomado um certo vestuario entre o
preto e o rôxo: toda a casa cheirava a cera e a incenso;
[102]
e a S. Joanneira, mesmo, monopolisára o
commercio das hostias.
Assim passaram annos. Pouco a pouco, porém, o
grupo devoto dispersou-se: a ligação do conego
Dias
e da S. Joanneira, muito commentada, afastou os
padres do cabido; o novo chantre morrera de apoplexia
tambem—como era de tradição n'aquella
diocese, fatal aos chantres; e já não eram
divertidos
os quinos das sextas-feiras. Amelia mudára muito;
crescera: fizera-se uma bella moça de vinte e dois
annos, d'olhar avelludado, beiços muito frescos—e
achava a sua paixão pelo Agostinho uma «tontice
de criança». A sua devoção
subsistia, mas alterada:
o que amava agora na religião e na igreja era
o apparato, a festa—as bellas missas cantadas ao
orgão, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre
os tocheiros, o altar-mór na gloria das flôres
cheirosas,
o roçar das correntes dos incensadores de prata,
os unisonos que rompem briosamente no côro das
alleluias. Tomava a Sé como a sua Opera: Deus era
o seu luxo. Nos domingos de missa gostava de se vestir,
de se perfumar com agua de colonia, de se ir aninhar
sobre o tapete do altar-mór, sorrindo ao padre
Brito ou ao conego Saldanha.—Mas em certos dias,
como dizia a mãi, «murchava»: voltavam
então os
abatimentos d'outr'ora, que a amarellavam, lhe punham
duas rugas velhas ao canto dos labios: tinha
n'essas occasiões horas d'uma vaga saudade parva e
morbida, em que só a consolava cantar pela casa o
[103]
Santissimo ou as notas lugubres do toque da Agonia.
Com a alegria voltava-lhe o gosto do culto alegre—e
lamentava então que a Sé fosse uma ampla
estructura
de pedra d'um estylo frio e jesuitico: quereria
uma igreja pequenina, muito dourada, tapetada,
forrada de papel, illuminada a gaz; e padres
bonitos officiando a um altar ornado como uma
étagère.
Fizera vinte e tres annos quando conheceu João
Eduardo, no dia da procissão de
Corpus-Christi, em
casa do tabellião Nunes Ferral, onde elle era escrevente.
Amelia, a mãi, a snr.
a D. Josepha
Dias tinham
ido vêr a procissão da bella varanda do
tabellião,
guarnecida de colchas de damasco amarello.
João Eduardo estava lá, modesto,
sério, todo vestido
de preto. Havia muito que Amelia o conhecia;
mas n'aquella tarde, reparando na brancura da sua
pelle e na gravidade com que ajoelhava, pareceu-lhe
«muito bom rapaz».
Á noite, depois do chá, o gordalhufo Nunes, de
collete branco, foi pela sala exclamando, enthusiasmado,
com a sua voz de grillo:—É tirar pares, é
tirar pares!—emquanto a filha mais velha ao piano
tocava com brio estridente uma mazurka franceza.
João Eduardo aproximou-se de Amelia:
—Ai, eu não danso!... disse ella logo com ar
sêcco.
João Eduardo não dansou tambem, foi encostar-se
a uma hombreira com a mão na abertura do collete,
os olhos fitos em Amelia. Ella percebia, desviava
[104]
o rosto, mas estava contente; e quando João
Eduardo, vendo uma cadeira vazia, veio sentar-se
ao pé d'ella, Amelia fez-lhe logo logar accommodando
os folhos de sêda, agradada. O escrevente,
embaraçado,
torcia o bigode com a mão tremula. Por
fim Amelia voltando-se para elle:
—Então o senhor não dansa tambem?
—E a snr.
a D. Amelia? disse elle baixo.
Ella inclinou-se para traz, e batendo nas pregas
do vestido:
—Ai! eu estou velha para estes divertimentos,
sou uma pessoa séria.
—Nunca se ri? perguntou elle, pondo na voz
uma intenção fina.
—Ás vezes rio quando ha de quê, disse ella
olhando-o de lado.
—De mim, por exemplo.
—De si!? ora essa! Está a caçoar commigo? Porque
me hei de eu rir do senhor? Boa!... Então o
senhor que tem que faça rir?—E agitava o seu leque
de sêda preta.
Elle calou-se, procurando as idéas, as delicadezas.
—Então sério, sério, não
dansa?
—Já lhe disse que não. Ai, que é
tão perguntador!
—É porque me interesso por si.
—Ora, deixe lá! disse ella fazendo um indolente
gesto de negativa.
—Palavra!
Mas a snr.
a D. Josepha Dias, que os vigiava,
[105]
aproximou-se, de testa muito franzida—e João
Eduardo levantou-se, intimidado.
Á sahida, quando Amelia no corredor punha os
seus agasalhos, João Eduardo veio dizer-lhe, de
chapéo
na mão:
—Cubra-se bem, não apanhe frio!
—Então continúa a interessar-se por mim? disse
ella apertando em redor do pescoço as pontas
da sua manta de lã.
—O mais possivel, creia.
Duas semanas depois veio a Leiria uma companhia
ambulante de
zarzuela. Fallava-se
muito da
contralto, a
Gamacho. A snr.
a
D.
Maria da Assumpção
tinha um camarote, levou a S. Joanneira e Amelia—que
duas noites antes estivera costurando, com
uma pressa commovida, um vestido de cassa todo
florido de laços de sêda azul. João
Eduardo na platéa—emquanto
a Gamacho, empastada de pó de
arroz sob a sua mantilha valenciana, vibrando com
uma graça decrepita o leque de lentejoulas, garganteava
malaguenhas agudas—não se fartou de contemplar,
de desejar Amelia. Á sahida veio comprimental-a,
offerecer-lhe o braço até á rua da
Misericordia:
a S. Joanneira, a snr.
a D. Maria da
Assumpção
seguiam atraz com o tabellião Nunes.
—Então gostou da Gamacho, snr. João Eduardo?
—A fallar-lhe a verdade nem sequer reparei
n'ella.
—Então que fez?
—Olhei para si, respondeu elle resolutamente.
[106]
Ella parou immediatamente, disse com a voz
um pouco alterada:
—Onde vem a mamã?
—Deixe lá a mamã!
E João Eduardo, então, fallando-lhe junto do
rosto,
disse-lhe «a sua grande paixão».
Tomou-lhe a
mão, repetia todo perturbado:
—Gósto tanto de si! Gósto tanto de si!
Amelia estava nervosa da musica do theatro;
a noite quente de verão, com a sua vasta
scintillação
de estrellas, tornava-a toda languida. Abandonou
a mão, suspirou baixinho.
—Gosta de mim, não é verdade? perguntou elle.
—Sim, respondeu ella—e apertou os dedos de
João Eduardo, com paixão.
Mas, como ella pensou, «fôra decerto um
fogacho»—porque,
dias depois, quando conheceu mais
João Eduardo, quando pôde fallar livremente com
elle, reconheceu que «não tinha nenhuma
inclinação
pelo rapaz». Estimava-o, achava-o sympathico, bom
moço; poderia ser um bom marido; mas sentia
dentro em si o coração adormecido.
O escrevente porém começou a ir á rua
da Misericordia
quasi todas as noites. A S. Joanneira estimava-o
pelo seu «proposito» e pela sua honradez.
Mas Amelia ia-se mostrando «fria»: esperava-o
á janella
pela manhã quando elle passava para o cartorio,
fazia-lhe olhos dôces á noite,—mas só
para
o não descontentar, para ter na sua existencia desoccupada
um interessesinho amoroso.
[107]
João Eduardo um dia fallou à mãi em
casamento:
—Como a Amelia quizer, eu por mim... disse
a S. Joanneira.
E Amelia, consultada, respondeu ambiguamente:
—Mais tarde, por ora não me parece, veremos.
Emfim accordou-se tacitamente em esperar, até
que elle obtivesse o lugar de amanuense do governo
civil, rasgadamente promettido pelo doutor Godinho—o
temido doutor Godinho!
Assim vivera Amelia até à chegada d'Amaro: e,
durante a noite, estas recordações vinham-lhe por
fragmentos, como pedaços de nuvens que o vento
vai trazendo e desmanchando. Adormeceu tarde,
acordou já o sol ia alto: e espreguiçava-se,
quando
ouviu dizer a
Ruça na
sala de jantar:
—É o senhor parocho que vai sahir com o senhor
conego; vão á Sé.
Amelia saltou da cama, correu á janella em camisa,
ergueu uma pontinha da cortina de cassa,
olhou. A manhã resplandecia: e o padre Amaro pelo
meio da rua conversando com o conego, assoava-se
ao seu lenço branco, muito airoso na sua batina
de pano fino.
VI
Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente
em commodidades, Amaro sentiu-se feliz. A
S. Joanneira, muito maternal, tomava um grande cuidado
na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos,
e o «quarto do senhor parocho andava que nem um
brinco»! Amelia tinha com elle uma familiaridade picante
de parenta bonita: «tinham calhado um com
outro», como dissera, encantada, D. Maria da
Assumpção.
Os dias iam assim passando para Amaro,
faceis, com boa mesa, colchões macios e a convivencia
meiga de mulheres. A estação ia tão
linda que
até as tilias floresceram no jardim do Paço:
«quasi
milagre»! disse-se: o senhor chantre, contemplando-as
todas as manhãs da janella do seu quarto,
em robe-de-chambre, citava versos das
Eclogas. E
depois das longas tristezas da casa do tio da Estrella,
[110]
dos desconsolos do seminario e do aspero inverno
na Gralheira—aquella vida em Leiria era para
Amaro como uma casa sêcca e abrigada onde o alegre
lume estala e a sôpa cheirosa fumega, depois
d'uma noite de jornada na serra, sob trovões e chuveiros.
Ia cedo dizer missa à Sé, bem embrulhado no
seu grande capote, com luvas de casimira, meias de
lã por baixo das botas de alto cano vermelho. As
manhãs
estavam frias: e àquella hora só algumas devotas,
com o mantéo escuro pela cabeça, rezavam
aqui e além, ao pé d'um altar envernizado de
branco.
Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa
batendo os pés no lagedo, emquanto o sacristão,
pachorrento, contava «as novidades do dia».
Depois, com o calice na mão, d'olhos baixos, passava
á igreja; e tendo dobrado o joelho rapidamente
diante do Santissimo Sacramento, subia devagar
ao altar onde as duas velas de cera esmoreciam
com uma claridade pallida na larga luz da manhã,
juntava as mãos, murmurava, curvado:
—
Introibo ad altare Dei.
—
Ad Deum qui lætificat juventutem
meam, resmungava,
n'um latim syllabado, o sacristão.
Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros
tempos, com uma devoção enternecida.
«Estava
agora habituado», dizia. E como não ceava, e
áquella
hora, em jejum, com a frescura cortante do ar, já
sentia appetite, engorolava depressa, monotonamente,
as santas leituras da Epístola e dos Evangelhos.
[111]
Por traz o sacristão, com os braços cruzados,
passava
vagarosamente a mão pela sua espessa barba
bem rapada, olhando de revez para a Casimira França,
mulher do carpinteiro da Sé, muito devota, que
elle «trazía d'olho» desde a Paschoa.
Largas resteas
de sol cahiam das janellas lateraes. Um vago
aroma de junquilhos sêccos adocicava o ar.
Amaro, depois de recitar rapidamente o Offertorio,
limpava o calice com o purificador; o sacristão,
um pouco vergado dos rins, ia buscar as galhetas,
apresentava-as, curvado—e Amaro sentia o cheiro
do oleo rançoso que lhe reluzia no cabello. N'aquella
parte da missa, por um antigo habito de emoção
mystica, Amaro tinha um recolhimento sentido: com
os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava,
com largueza, a exhortação universal á
oração—
Orate,
fratres! E as velhas encostadas aos pilares
de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa,
apertavam mais as mãos contra o peito, d'onde
pendiam grandes rosarios negros. Então o
sacristão
ia ajoelhar-se por traz d'elle, sustentando ligeiramente
com uma das mãos a capa, erguendo na outra
a sineta. Amaro consagrava o vinho, levantava a
hostia—
Hoc est enim corpus
meum!—elevando
alto os braços para o Christo cheio de chagas
rôxas
sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava
devagar; as mãos batiam concavamente nos peitos;
e no silencio sentiam-se os carros de bois rolando,
com solavancos, sobre o largo lageado da Sé, à
volta
do mercado.
[112]
—
Ite, missa est! dizia Amaro emfim.
—
Deo gratias! respondia o
sacristão respirando
alto, com o allivio da obrigação finda.
E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro
vinha do alto dos degraus dar a benção, era
já pensando
na alegria do almoço, na clara sala de jantar
da S. Joanneira e nas boas torradas. Áquella hora
já Amelia o esperava com o cabello cahido sobre o
penteador, tendo na pelle fresca um bom cheiro de
sabão d'amendoas.
Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à
sala de jantar onde a S. Joanneira e Amelia costuravam.
«Estava aborrecido em baixo, vinha um bocado
para o cavaco», dizia. A S. Joanneira, n'uma cadeira
pequena, ao pé da janella, com o gato aninhado
na roda do vestido de merino, cosia de luneta na
ponta do nariz. Amelia, junto da mesa, trabalhava
com o cesto da costura ao lado: a cabeça inclinada
sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, nitida,
um pouco afogada na abundancia do cabello; os
seus grandes brincos de ouro, em fórma de pingos
de cera, oscillavam, faziam tremer e crescer sobre a
finura do pescoço uma pequenina sombra; as olheiras
leves côr de
bistre
esbatiam-se delicadamente sobre
a pelle de um trigueiro mimoso, que um sangue
forte aviventava; e o seu peito cheio respirava
devagar. Ás vezes, cravando a agulha na fazenda,
[113]
espreguiçava-se devagarinho, sorria, cansada.
Então
Amaro gracejava:
—Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher
de casa!
Ella ria; conversavam. A S. Joanneira sabia as
coisas interessantes do dia: o major despedira a
criada; ou havia quem offerecesse dez moedas pelo
porco do Carlos do correio. De vez em quando a
Ruça vinha ao armario
buscar um prato ou uma
colhér: então fallava-se do preço dos
generos, do
que havia para o jantar. A S. Joanneira tirava as
lunetas, traçava a perna e, balouçando o
pé calçado
n'uma chinela d'ourelo, punha-se a dizer os pratos:
—Hoje temos grão de bico. Não sei se o senhor
parocho gostará, foi para variar...
Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas
comidas descobria affinidade de gostos com Amelia.
Depois, animando-se, bolia-lhe no cesto da costura.
Um dia encontrára uma carta; perguntou-lhe
pelo
derriço; ella
respondeu, picando vivamente o
posponto:
—Ai! a mim ninguem me quer, senhor parocho...
—Não é tanto assim, acudiu elle.—Mas
suspendeu-se,
muito vermelho, affectando tossir.
Amelia ás vezes fazia-se muito familiar; um dia
mesmo pediu-lhe para sustentar nas mãos uma meadinha
de retroz que ella ia dobar.
—Deixe fallar, senhor parocho! exclamou a S.
[114]
Joanneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe dando confiança!...
Mas Amaro promptificou-se, rindo, todo contente:—elle
estava alli para o que quizessem, até para dobadoura!
Era mandarem, era mandarem! E as duas
mulheres riam, d'um riso calido, enlevadas n'aquellas
maneiras do senhor parocho, «que até tocavam
o coração»! Ás vezes Amelia
pousava a costura
e tomava o gato no collo; Amaro chegava-se,
corria a mão pela espinha do
Maltez que se arredondava,
fazendo um
ron-ron de gozo.
—Gostas? dizia ella ao gato, um pouco córada,
com os olhos muito ternos.
E a voz de Amaro murmurava, perturbada:
—Bichaninho gato! bichaninho gato!
Depois a S. Joanneira erguia-se para dar o remedio
á idiota ou ir palrar á cozinha. Elles ficavam
sós; não fallavam, mas os seus olhos tinham um
longo dialogo mudo, que os ia penetrando da mesma
languidez dormente. Então Amelia cantarolava
baixo o
Adeus ou o
Descrente: Amaro accendia o
seu cigarro, e escutava bamboleando a perna.
—É tão bonito isso! dizia.
Amelia cantava mais accentuadamente, cosendo
depressa; e a espaços, erguendo o busto, mirava o
alinhavado ou o posponto, passando-lhe por cima,
para o assentar, a sua unha polida e larga.
Amaro achava aquellas unhas admiraveis, porque
tudo que era
ella ou vinha
d'
ella lhe parecia perfeito:
gostava da côr dos seus vestidos, do seu andar,
[115]
do modo de passar os dedos pelos cabellos, e
olhava até com ternura para as saias brancas que
ella punha a seccar á janella do seu quarto, enfiadas
n'uma cana. Nunca estivera assim na intimidade
d'uma mulher. Quando percebia a porta do quarto
d'ella entreaberta, ia resvalar para dentro olhares
gulosos, como para perspectivas d'um paraiso:
um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga
que ficára sobre o bahú, eram como
revelações da
sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo
pallido. E não se saciava de a vêr fallar, rir,
andar
com as saias muito engommadas que batiam as hombreiras
das portas estreitas. Ao pé d'ella, muito fraco,
muito langoroso, não lhe lembrava que era padre:
o Sacerdocio, Deus, a Sé, o Peccado ficavam em
baixo, longe; via-os muito esbatidos do alto do seu
enlevo, como d'um monte se vêem as casas desapparecer
no nevoeiro dos valles; e só pensava então
na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura
do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.
Ás vezes revoltava-se contra estes desfallecimentos,
batia o pé:
—Que diabo, é necessario ter juizo! é necessario
ser homem!
Descia, ia folhear o seu Breviario; mas a voz de
Amelia fallava em cima, o
tic-tic
das suas botinas batia
o soalho... Adeus! a devoção cahia como uma
vela a que falta o vento; as boas resoluções
fugiam,
e lá voltavam as tentações em bando a
apoderar-se do
seu cerebro, frementes, arrulhando, roçando-se umas
[116]
pelas outras como um bando de pombas que recolhem
ao pombal. Ficava todo subjugado, soffria. E lamentava
então a sua liberdade perdida: como desejaria
não a vêr, estar longe de Leiria, n'uma aldeia
solitaria, entre gente pacifica, com uma criada velha
cheia de proverbios e de economia, e passear pela
sua horta quando as alfaces verdejam e os gallos cacarejam
ao sol! Mas Amelia, de cima, chamava-o—e
o encanto recomeçava, mais penetrante.
A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa
e feliz, a melhor do dia. A S. Joanneira trinchava,
emquanto Amaro conversava cuspindo os caroços
das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os
sobre a toalha. A
Ruça,
cada dia mais etica,
servia mal, sempre a tossir: Amelia ás vezes erguia-se
para ir buscar uma faca, um prato ao aparador.
Amaro queria levantar-se logo, attencioso.
—Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor parocho!
dizia ella. E punha-lhe a mão no hombro, e os
seus olhos encontravam-se.
Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo
sobre o estomago, sentia-se regalado, gozava muito
no bom calor da sala; depois do segundo copo
da Bairrada tornava-se expansivo, tinha gracinhas;
ás vezes mesmo, com um brilho terno no olho, tocava
fugitivamente o pé de Amelia debaixo da mesa;
ou, fazendo um ar sentido, dizia «que muito lhe pezava
não ter uma irmãzinha assim»!
[117]
Amelia gostava de ensopar o miolo de pão no
môlho do guisado; a mãi dizia-lhe sempre:
—Embirro que faças isso diante do senhor parocho.
E elle então rindo:
—Pois olhe, também eu gósto. Sympathia!
magnetismo!
E molhavam ambos o pão, e sem razão davam
grandes risadas. Mas o crepusculo crescia, a
Ruça
trazia o candieiro. O brilho dos copos e das louças
alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava á S.
Joanneira
mamã; Amelia
sorria, d'olhos baixos, trincando
com a ponta dos dentes cascas de tangerina.
D'ahi a pouco vinha o café; o o padre Amaro ficava
muito tempo partindo nozes com as costas da faca
e quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.
Áquella hora apparecia sempre o conego Dias;
sentiam-no subir pesadamente, dizendo da escada:
—Licença para dois!
Era elle e a cadella, a
Trigueira.
—Ora Nosso Senhor nos dê muito boas noites!
dizia assomando á porta.
—Vai a gotinha de café, senhor conego? perguntava
logo a S. Joanneira.
Elle sentava-se, exhalando um profundo
uff!—Vá
lá a gotinha do café! E batendo no hombro do
parocho, olhando para a S. Joanneira:
—Então como vai cá o seu menino?
Riam; vinham as historias do dia. O conego costumava
trazer no bolso o
Diario Popular;
Amelia
[118]
interessava-se pelo romance, a S. Joanneira pelas
correspondencias amorosas nos annuncios.
—Ora vejam que pouca vergonha!... dizia ella,
deliciando-se.
Amaro então fallava de Lisboa, de escandalos
que lhe contára a tia, dos fidalgos que conhecera
«em casa do senhor conde de Ribamar». Amelia,
enlevada, escutava-o com os cotovêlos sobre a mesa,
roendo vagarosamente a ponta do palito.
Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina
esmorecia à cabeceira da cama: e a pobre velha,
com uma medonha touca de rendas negras que
tornava mais lívida a sua carinha engelhada como
uma maçã raineta, fazendo debaixo da roupa uma
saliencia quasí imperceptivel, fixava em todos, com
custo, os seus olhinhos concavos e chorosos.
—É o senhor parocho, tia Gertrudes! gritava-lhe
Amelia ao ouvido. Vem vêr como está.
A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:
—Ah! é o menino!
—É o menino, é, diziam rindo.
E a velha ficava a murmurar, espantada:
—É o menino, é o menino!
—Pobre de Christo! dizia Amaro. Pobre de Christo!
Deus lhe dê uma boa morte!
E voltavam para a sala de jantar onde o conego
Dias, todo enterrado na velha poltrona de chita verde,
com as mãos cruzadas sobre o ventre, dizia logo:
—Ora vá um bocadinho de musica, pequena!
[119]
Amelia ia sentar-se ao piano.
—Ó filha, toca o
Adeus!
recommendava a S.
Joanneira começando a sua meia.
E Amelia, ferindo o teclado:
Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado...
A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro,
soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo enleado
n'um sentimentalismo agradavel.
Quando descia para o seu quarto, à noite, ia
sempre exaltado. Punha-se então a lêr os
Canticos a
Jesus, traducção do francez
publicada pela sociedade
das
Escravas de Jesus. É
uma obrasinha beata, escripta
com um lyrismo equivoco, quasi torpe—que
dá á oração a linguagem da
luxuria: Jesus é invocado,
reclamado com as sofreguidões balbuciantes
d'uma concupiscencia allucinada: «Oh! vem, amado
do meu coração, corpo adoravel, minha alma
impaciente
quer-te! Amo-te com paixão e desespero!
Abraza-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possue-me!»
E um amor divino, ora grotesco pela intenção,
ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama
assim em cem paginas inflammadas onde as
palavras
gozo,
delicia,
delírio,
extase, voltam a cada
momento, com uma persistencia hysterica. E depois
de monologos phreneticos d'onde se exhala um bafo
de cio mystico, vêm então imbecilidades de
sacristia,
[120]
notasinhas beatas resolvendo casos difficeis de
jejuns, e orações para as dôres de
parto! Um bispo
approvou aquelle livrinho bem impresso; as educandas
lêem-n'o no convento. É beato e excitante; tem
as eloquencias do erotismo, todas as pieguices da
devoção; encaderna-se em marroquim e
dá-se ás confessadas:
é a cantharida canonica!
Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por
aquelles periodos sonoros, tumidos de desejo; e no
silencio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de
Amelia: o livro escorregava-lhe das mãos, encostava
a cabeça ás costas da poltrona, cerrava os olhos,
e
parecia-lhe vêl-a em collete diante do toucador desfazendo
as trancas; ou, curvada, desapertando as ligas,
e o decote da sua camisa entreaberta descobria
os dois seios muito brancos. Erguia-se, cerrando os
dentes, com uma decisão brutal de a possuir.
Começára então a recommendar-lhe a
leitura dos
Canticos a Jesus.
—Verá, é muito bonito, de muita
devoção! disse
elle, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto
da costura.
Ao outro dia, ao almoço, Amelia estava pallida,
com as olheiras até ao meio da face. Queixou-se de
insomnia, de palpitações.
—E então, gostou dos
Canticos?
—Muito. Orações lindas! respondeu.
Durante lodo esse dia não ergueu os olhos para
Amaro. Parecia triste—e sem razão, ás vezes, o
rosto abrazava-se-lhe de sangue.
[121]
Os peores momentos para Amaro eram as segundas
e quartas-feiras, quando João Eduardo vinha
passar as noites «em familia». Até
ás nove horas o
parocho não sahia do quarto; e quando subia para
o chá desesperava-se de vêr o escrevente
embrulhado
no seu chale-manta, sentado junto de Amelia.
—Ai o que estes dois têm para ahi palrado, senhor
parocho! dizia a S. Joanneira.
Amaro tinha um sorriso livido, partindo devagar
a sua torrada, com os olhos fitos na chavena.
Amelia, na presença de João Eduardo, agora,
não
tinha com o parocho a mesma familiaridade alegre,
mal levantava os olhos da costura; o escrevente calado
chupava o cigarro; e havia grandes silencios
em que se sentia o vento uivar, encanado na rua.
—Olha quem andar agora nas aguas do mar!
dizia a S. Joanneira fazendo devagar a sua meia.
—Safa!... acrescentava João Eduardo.
As suas palavras, os seus modos irritavam o padre
Amaro: detestava-o pela sua pouca devoção,
pelo seu bonito bigode preto. E diante d'elle sentia-se
mais enleado no seu acanhamento de padre.
—Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joanneira.
—Estou tão cansada! respondia Amelia apoiando-se
nas costas da cadeira, com um suspirosinho
de fadiga.
A S. Joanneira, então, que não gostava de
«vêr
[122]
gente mona», propunha uma
bisca de
tres; e o padre
Amaro, tomando o seu candieiro de latão, descia
para o quarto, muito infeliz.
N'essas noites quasi detestava Amelia; achava-a
casmurra. A intimidade do escrevente
na casa parecia-lhe
escandalosa: decidia mesmo fallar á S. Joanneira,
dizer-lhe «que aquelle namoro de portas a
dentro não podia ser agradavel a Deus». Depois,
mais razoavel, resolvia esquecel-a, pensava em sahir
da casa, da parochia. Representava-se então
Amelia com a sua corôa de flôres de laranjeira, e
João Eduardo, muito vermelho, de casaca, voltando
da Sé, casados... Via a cama de noivado com
os seus lençoes de renda... e todas as provas, as
certezas do amor d'ella pelo «idiota do escrevente»
cravavam-se-lhe no peito como punhaes...
—Pois que casem, e que os leve o diabo!...
Odiava-a então. Fechava violentamente a porta
à chave como para impedir que lhe penetrasse no
quarto o rumor da sua voz ou o
frou-frou das suas
saias. Mas d'ahi a pouco, como todas as noites, escutava
com o coração aos saltos, immovel e ancioso,
os ruidos que ella fazia em cima ao despir-se,
palrando ainda com a mãi.
Um dia Amaro jantára em casa da snr.
a
D. Maria
da Assumpção; fôra depois passear pela
estrada de
Marrases, e á volta, ao fim da tarde, encontrou, ao
[123]
entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho,
no patamar, estavam os chinelos de ourelo
da
Ruça.
—Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi á fonte
e esqueceu-se de fechar a porta.
Lembrou-se que Amelia tinha ido passar a tarde
com a snr.
a D. Joaquina Gansoso, n'uma fazenda
ao
pé da Piedade, e que a S. Joanneira fallára em ir
á
irmã do conego. Fechou devagar a cancella, subiu
á cozinha a accender o seu candieiro; como as ruas
estavam molhadas da chuva da manhã, trazia ainda
galochas de borracha; os seus passos não faziam
rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar
sentiu no quarto da S. Joanneira, através do reposteiro
de chita, uma tosse grossa; surprehendido,
afastou subtilmente um lado do reposteiro, e pela
porta entreaberta espreitou.—Oh Deus de Misericordia!
a S. Joanneira, em saia branca, atacava o collete;
e, sentado á beira da cama, em mangas de camisa,
o conego Dias resfolegava grosso!
Amaro desceu, collado ao corrimão, fechou muito
devagarinho a porta, e foi ao acaso para os lados
da Sé. O céo ennevoára-se, leves gotas
de chuva
cahiam.
—E esta! E esta! dizia elle assombrado.
Nunca suspeitára um tal escandalo! A S. Joanneira,
a pachorrenta S. Joanneira! O conego, seu
mestre de Moral! E era um velho, sem os impetos
do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado
a idade, a nutrição, as dignidades
ecclesiasticas!
[124]
Que faria então um homem novo e forte, que sente
uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar
e arder!... Era, pois, verdade o que se cochichava
no seminario, o que lhe dizia o velho padre
Sequeira, cincoenta annos parocho da Gralheira:—«Todos
são do mesmo barro!» Todos são do mesmo
barro,—sobem em dignidades, entram nos cabidos,
regem os seminarios, dirigem as consciencias
envoltos em Deus como n'uma absolvição
permanente,
e têm no emtanto, n'uma viella, uma mulher
pacata e gorda, em casa de quem vão repousar
das attitudes devotas e da austeridade do officio,
fumando cigarros de estanco e palpando uns braços
rechonchudos!
Vinham-lhe então outras reflexões: que gente
era aquella, a S. Joanneira e a filha, que viviam assim
sustentadas pela lubricidade tardia de um velho
conego? A S. Joanneira fora decerto bonita, bem
feita, desejavel—outr'ora! Por quantos braços teria
passado até chegar, pelos declives da idade,
áquelles amores senis e mal pagos? As duas mulherinhas,
que diabo, não eram honestas! Recebiam
hospedes, viviam da concubinagem. Amelia ia sósinha
á igreja, ás compras, á fazenda; e com
aquelles
olhos tão negros, talvez já tivesse tido um
amante!—Resumia,
filiava certas recordações: um dia
que ella lhe estivera mostrando na janella da cozinha
um vaso de rainunculos, tinham ficado sós, e
ella, muito córada, puzera-lhe a mão sobre o
hombro
e os seus olhos reluziam e pediam; outra occasião
[125]
ella roçára-lhe o peito pelo braço! A
noite cahira,
com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando
depressa, cheio de uma só idéa deliciosa que
o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o
conego era o amante da mãi! Imaginava já a boa
vida escandalosa e regalada; emquanto em cima a
grossa S. Joanneira beijocasse o seu conego cheio
de difficuldades asthmaticas,—Amelia desceria ao
seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias
brancas,
com um chale sobre os hombros nús... Com
que phrenesi a esperaria! E já não sentia por
ella o
mesmo amor sentimental, quasi doloroso: agora a
idéa muito magana dos dois padres e as duas concubinas,
de panellinha, dava áquelle homem amarrado
pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos
pulinhos pela rua.—Que pechincha de casa!
A chuva cahía, grossa. Quando entrou havia já
luz na sala de jantar. Subiu.
—Ih, como vem frio! disse-lhe Amelia sentindo,
ao apertar-lhe a mão, a humidade da nevoa.
Sentada á mesa, costurava com um chale-manta
pelos hombros: João Eduardo, ao pé, jogava a
bisca
com a S. Joanneira.
Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença
do escrevente dera-lhe de repente, sem saber
porque, o duro choque d'uma realidade antipathica:
e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a
dansar uma sarabanda na imaginação, encolhiam-se
uma a uma, murchavam—vendo alli Amelia ao pé
[126]
do noivo, curvada sobre uma costura honesta, com
o seu escuro vestido afogado, junto do candieiro de
familia!
E tudo em redor lhe apparecia como mais recatado,
as paredes com o seu papel de ramagens verdes,
o armario cheio de louça luzidia da Vista-Alegre,
o sympathico e bojudo pote d'agua, o velho
piano mal firme nos seus tres pés torneados; o paliteiro
tão querido de todos—um Cupido rechonchudo
com um guardachuva aberto erriçado de palitos,
e aquella tranquilla bisca jogada com os dichotes
classicos. Tudo tão decente!
Affirmava-se então nas grossas roscas do pescoço
da S. Joanneira, como para descobrir n'ellas as
marcas das beijocas do conego: ah! tu, não ha duvida,
és «uma barregã de clerigo ».
Mas Amelia!
com aquellas longas pestanas descidas, o beiço
tão
fresco!... Ignorava decerto as libertinagens da mãi;
ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se
solidamente na segurança d'um amor legal!—E
Amaro, da sombra, examinava-a longamente como
para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade
do seu passado.
—Cansadinho, senhor parocho, hein? disse a S.
Joanneira. E para João Eduardo:—Trunfo, faz favor,
seu cabeça no ar?
O escrevente, namorado, distrahia-se.
—É o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joanneira a
cada momento.
Depois elle esquecia-se de
comprar
cartas.
[127]
—Ah menino, menino! dizia ella com a sua
voz pachorrenta, que lhe puxo essas orelhas!
Amelia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha
um pequeno casabeque preto com botões de vidro,
que lhe disfarçava a fórma do seio.
E Amaro irritava-se d'aquelles olhos fixos na costura,
d'aquelle casaco amplo escondendo a belleza
que mais appetecia n'ella! E nada a esperar! Nada
d'ella lhe pertenceria, nem a luz d'aquellas pupillas,
nem a brancura d'aquelles peitos! Queria casar—e
guardava
tudo para o outro, o
idiota, que sorria
baboso, jogando paus! Odiou-o então, d'um odio
complicado d'inveja ao seu bigode negro e ao seu
direito d'amar...
—Está incommodado, senhor parocho? perguntou
Amelia, vendo-o mexer-se bruscamente na cadeira.
—Não, disse elle sêccamente.
—Ah! fez ella com um leve suspiro, picando
rapidamente o posponto.
O escrevente, baralhando as cartas, começára a
fallar de uma casa que queria alugar; a conversa
cahiu sobre arranjos domesticos.
—Traze-me luz! gritou Amaro à
Ruça.
Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôz a
vela sobre a commoda; o espelho estava defronte,
e a sua imagem appareceu-lhe; sentiu-se feio, ridiculo
com a sua cara rapada, a volta hirta como uma
colleira, e por traz a corôa hedionda. Comparou-se
instinctivamente com o outro que tinha um bigode,
[128]
o seu cabello todo, a sua liberdade! Para que hei de
eu estar a ralar-me? pensou. O outro era um marido;
podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade;
elle só poderia dar-lhe sensações
criminosas,
depois os terrores do peccado! Ella sympathisava
talvez com elle, apesar de padre; mas antes de tudo,
acima de tudo, queria casar; nada mais natural!
Via-se pobre, bonita, só: cubiçava uma
situação legitima
e duradoura, o respeito das visinhas, a
consideração
dos lojistas, todos os proveitos da honra!
Odiou-a então, e o seu vestido afogado, e a sua
honestidade! A estupida, que não percebia que ao
pé d'ella, sob uma negra batina, uma paixão
devota
a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciencia!
Desejou que ella fosse como a mãi,—ou
peor, toda livre, com vestidos garridos, uma cuia
impudente, traçando a perna e fitando os homens,
uma femea facil como uma porta aberta ...
—Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse
uma desavergonhada!—pensou, recahíndo em si
um pouco envergonhado. Está claro: não podemos
pensar em mulheres decentes, temos que reclamar
prostitutas! Bonito dogma!
Abafava. Abriu a janella. O céo estava tenebroso;
a chuva cessára; o piar das corujas na Misericordia
cortava só o silencio.
Enterneceu-se, então, com aquella escuridão,
aquella mudez de villa adormecida. E sentiu subir
outra vez, das profundidades do seu sêr, o amor que
sentira ao principio por ella, muito puro, d'um sentimentalismo
[129]
devoto: via a sua linda cabeça, d'uma
belleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura
espessa do ar; e toda a sua alma foi para ella
n'um desfallecimento d'adoração, como no culto a
Maria
e na Saudação Angelica; pediu-lhe
perdão anciosamente
de a ter offendido; disse-lhe alto: És uma
santa! perdôa!—Foi um momento muito dôce, de
renunciamento carnal...
E, espantado quasi d'aquellas delicadezas de sensibilidade
que descobria subitamente em si, pôz-se
a pensar com saudade—que se fosse um homem livre
seria um marido tão bom! Amoravel, dedicado,
dengueiro, sempre de joelhos, todo d'adorações!
Como amaria o
seu filho, muito
pequerruchinho, a
puxar-lhe as barbas! Á idéa d'aquellas
felicidades
inaccessiveis, os olhos arrazaram-se-lhe de lagrimas.
Amaldiçoou, n'um desespero, «a pêga da
marqueza
que o fizera padre», e o bispo que o confirmára!
—Perderam-me! perderam-me! diria, um pouco
desvairado.
Sentiu então os passos de João Eduardo que
descia,
e o rumor das saias de Amelia. Correu a espreitar
pela fechadura, cravando os dentes no beiço, de ciume.
A cancella bateu, Amelia subiu cantarolando baixo.—Mas
a sensação d'amor mystico que o
penetrára
um momento, olhando a noite, passára; e deitou-se,
com um desejo furioso d'ella e dos seus beijos.
VII
Dias depois o padre Amaro e o conego Dias tinham
ido jantar com o abbade da Cortegassa.—Era
um velho jovial, muito caridoso, que vivia ha trinta
annos n'aquella freguezia e passava por ser o melhor
cozinheiro da diocese. Todo o clero das visinhanças
conhecia a sua famosa
cabedella de
caça.
O abbade fazia annos, havia outros convidados—o
padre Natario e o padre Brito: o padre Natario era
uma creaturinha biliosa, sêcca, com dois olhos encovados,
muito malignos, a pelle picada das bexigas
e extremamente irritavel. Chamavam-lhe o
Furão.
Era esperto e questionador; tinha fama de ser grande
latinista, e ter uma logica de ferro; e dizia-se d'elle:
é uma lingua de vibora!
Vivia com duas sobrinhas
orphãs, declarava-se extremoso por ellas, gabava-lhes
[132]
sempre a virtude, e costumava chamar-lhes
as
duas rosas do seu canteiro. O
padre Brito era o
padre mais estupido e mais forte da diocese; tinha
o aspecto, os modos, a forte vida de um robusto
beirão que maneja bem o cajado, emborca um almude
de vinho, péga alegremente á rabiça do
arado,
serve de trolha nos arranjos de um alpendre, e
nas séstas quentes de junho atira brutalmente as
raparigas para cima das medas de milho. O senhor
chantre, sempre correcto nas suas comparações
mythologicas,
chamava-lhe—o
leão de
Nemeia.
A sua cabeça era enorme, de cabello lanigero
que lhe descia até ás sobrancelhas: a pelle
cortida
tinha um tom azulado, do esforço da navalha de barba;
e, nas suas risadas bestiaes, mostrava dentinhos
muito miudos e muito brancos do uso da brôa.
Quando iam sentar-se á mesa chegou o Libaninho
todo azafamado, gingando muito, com a calva suada,
exclamando logo em tons agudos:
—Ai, filhos! desculpem-me, demorei-me mais
um bocadinho. Passei pela igreja de Nossa Senhora
da Ermida, estava o padre Nunes a dizer uma missa
de intenção. Ai, filhos! papei-a logo, venho
mesmo
consoladinho!
A Gertrudes, a velha e possante ama do abbade,
entrou então com a vasta terrina do caldo de gallinha;
e o Libaninho, saltitando em roda d'ella, começou
os seus gracejos:
—Ai, Gertrudinhas! quem tu fazias feliz bem
eu sei!
[133]
A velha aldeã ria com o seu espesso riso bondoso,
que lhe sacudia a massa do seio.
—Olhe que arranjo me apparece agora pela tarde!...
—Ai, filha! as mulheres querem-se como as
peras, maduras e de sete cotovêlos. Então
é que é
chupal-as!
Os padres gargalharam; e, alegremente, accommodaram-se
á mesa.
O jantar fôra todo cozinhado pelo abbade: logo á
sopa as exclamações começaram:
—Sim, senhor, famoso! D'isto nem no céo! Bella
coisa!
O excellente abbade estava escarlate de
satisfação.
Era, como dizia o senhor chantre, «um divino
artista»! Lera todos os
Cozinheiros
completos, sabia
innumeras receitas: era inventivo—e, como elle
affirmava dando martelladinhas no craneo, «tinha-lhe
sahido muito petisco d'aquella cachimonia»! Vivia
tão absorvido pela sua «arte» que lhe
acontecia,
nos sermões de domingo, dar aos fieis ajoelhados
para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre
o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do
sarrabulho. E alli vivia feliz, com a sua velha Gertrudes,
de muito bom paladar tambem, com o seu
quintal de ricos legumes, sentindo uma só
ambição
na vida—ter um dia a jantar o bispo!
—Oh, senhor parocho! dizia elle a Amaro, por
quem é! mais um bocadinho de cabedella, faça
favor!
Essas côdeasinhas de pão ensopadas no
môlho!
[134]
Isso! isso! Que tal, hein?—E com um aspecto modesto:—Não
é lá por dizer, mas a cabedella hoje
sahiu-me boa!
Estava com effeito, como disse o conego Dias,
de tentar Santo Antonio no deserto! Todos tinham
tirado as capas, e, só com as batinas, as voltas alargadas,
comiam devagar, fallando pouco. Como no dia
seguinte era a festa da Senhora da Alegria, os sinos
na capella, ao lado, repicavam; e o bom sol do meio-dia
dava tons muito alegres á louça, ás
bojudas canecas
azues com vinho da Bairrada, aos pires de pimentões
escarlates, ás frescas malgas de azeitonas
pretas—emquanto o bom abbade, d'olho arregalado,
mordendo o beiço, ia cortando com cuidado nacos
brancos do peito do capão recheado.
As janellas abriam para o quintal. Viam-se dois
largos pés de camelias vermelhas crescendo junto
ao peitoril, e para além das copas das macieiras um
pedaço muito vivo de céo azul-ferrete. Uma nora
chiava ao longe, lavadeiras batiam a roupa.
Sobre a commoda, entre
in-folios, na
sua peanha
um Christo perfilava tristemente contra a parede o
seu corpo amarello, coberto de chagas escarlates:
e, aos lados, sympathicos santos sob redomas de
vidro, lembravam legendas mais dôces de religião
amavel: o bom gigante S. Christovão atravessando
o rio com o divino pequerrucho que sorri, e faz
saltar o mundo sobre a sua mãosinha como uma
pella; o dôce pastor S. Joãosinho coberto com uma
pelle de ovelha, e guardando os seus rebanhos, não
[135]
com um cajado, mas com uma cruz; o bom porteiro
S. Pedro, tendo na sua mão de barro as duas
santas chaves que servem nas fechaduras do céo!
Nas paredes, em lithographias de coloridos crueis, o
patriarcha S. José apoiava-se ao seu cajado onde
florescem lirios brancos; o cavallo empinado do bravo
S. Jorge pisava o ventre d'um dragão surprehendido;
e o bom Santo Antonio, á beira d'um regato,
sorria, fallando a um tubarão. O
tlim-tlim dos copos,
o ruido das facas animavam a velha sala de tecto
de carvalho defumado, d'uma alegria desusada. E
Libaninho devorava, dizendo pilherias:
—Gertrudinhas, flôr do caniço, passa-me as
vagens.
Não me olhes assim, magana, que me fazes
revolver os intestinos!
—O diabo é o homem! dizia a velha. Olha p'r'ó
que lhe deu! Fallasse-me aqui ha trinta annos,
seu perdido!
—Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem
me digas isso que sinto coisas pela espinha acima!
Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas
de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoára
a batina, deixando vêr a sua grossa camisola
de lã da Covilhã, onde a marca da fabrica, feita
de linha azul, era uma cruz sobre um coração.
Um pobre então viera á porta rosnar
lamentosamente
Padre-Nossos; e emquanto Gertrudes lhe mettia
no alforge metade d'uma brôa, os padres fallaram
dos bandos de mendigos que agora percorriam
as freguezias.
[136]
—Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia
o bom abbade. Ó Dias, mais este bocadinho da aza?
—Muita pobreza, mas muita preguiça, considerou
duramente o padre Natario.—Em muitas fazendas
sabia elle que havia falta de jornaleiros, e viam-se
marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar
Padre-Nossos pelas portas.—Sucia de mariolas! resumiu.
—Deixe lá, padre Natario, deixe lá! disse o
abbade.
Olhe que ha pobreza devéras. Por aqui ha familias,
homem, mulher e cinco filhos, que dormem
no chão como porcos e não comem senão
hervas.
—Então que diabo querias tu que elles comessem?
exclamou o conego Dias lambendo os dedos
depois de ter esburgado a aza do capão. Querias
que comessem perú? Cada um como quem é!
O bom abbade puxou, repoltreando-se, o guardanapo
para o estomago, e disse com affecto:
—A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.
—Ai, filhos! acudiu o Libaninho n'um tom choroso,
se houvesse só pobresinhos isto era o reininho
dos céos!
O padre Amaro considerou com gravidade:
—É bom que haja quem tenha cabedaes para
legados pios, edificações de capellas...
—A propriedade devia estar na mão da Igreja,
interrompeu Natario com auctoridade.
O conego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:
—Para o esplendor do culto e propagação da
fé.
[137]
Mas a grande causa da miseria, dizia Natario
com uma voz pedante, era a grande immoralidade.
—Ah! lá isso não fallemos! exclamou o abbade
com desgosto. N'este momento ha só aqui na freguezia
mais de doze raparigas solteiras gravidas!
Pois senhores, se as chamo, se as reprehendo, põem-se-me
a fungar de riso!
—Lá nos meus sitios, disse o padre Brito, quando
foi pela apanha da azeitona, como ha falta de
braços, vieram as
maltas
trabalhar. Pois agora o verás!
Que desafôro!—Contou a historia das
maltas,
trabalhadores errantes, homens e mulheres, que andam
offerecendo os braços pelas fazendas, vivem
na promiscuidade e morrem na miseria.—Era necessario
andar sempre de cajado em cima d'elles!
—Ai! disse o Libaninho para os lados apertando
as mãos na cabeça. Ai, o peccado que vai pelo
mundo! Até se me estão a erriçar os
cabellos!
Mas a freguezia de Santa Catharina era a peor!
As mulheres casadas tinham perdido todo o escrupulo.
—Peores que cabras, dizia o padre Natario alargando
a fivela do collete.
E o padre Brito fallou de um caso na freguezia
de Amor: raparigas de dezeseis e dezoito annos que
costumavam reunir-se n'um palheiro—o palheiro
do Silverio—e passavam lá a noite com um bando
de marmanjos!
Então o padre Natario, que já tinha os olhos
luzidios,
a língua solta, disse, repoltreando-se na cadeira
e espaçando as palavras:
[138]
—Eu não sei o que se passa lá na tua freguezia,
Brito; mas se ha alguma coisa o exemplo vem
de alto... A mim têm-me dito que tu e a mulher
do regedor...
—É mentira! exclamou o Brito fazendo-se todo
escarlate.
—Oh, Brito! oh, Brito! disseram em redor, reprehendendo-o
com bondade.
—É mentira! berrou elle.
—E aqui para nós, meus ricos, disse o conego
Dias baixando a voz, com o olhinho acceso n'uma
malicia confidencial, sempre lhes digo que é uma
mulher de mão cheia!
—É mentira! clamou o Brito. E fallando de um
jacto:—Quem anda a espalhar isso é o morgado da
Cumiada, porque o regedor não votou com elle na
eleição... Mas tão certo como eu estar
aqui, quebro-lhe
os ossos!—Tinha os olhos injectados, brandia
o punho:—Quebro-lhe os ossos!
—O caso não é para tanto, homem, considerou
Natario.
—Quebro-lhe os ossos! Não lhe deixo um inteiro!
—Ai, socega, leãosinho! disse o Libaninho com
ternura. Não te percas, filhinho!
Mas recordando a influencia do morgado da Cumiada,
que era então opposição e que levava
duzentos
votos á urna, os padres fallaram de
eleições e
dos seus episodios. Todos alli, a não ser o padre
Amaro, sabiam, como disse Natario, «cozinhar um
deputadosinho».
[139]
Vieram anecdotas; cada um celebrou
as suas façanhas.
O padre Natario na ultima eleição tinha arranjado
oitenta votos!
—Caspitè! disseram.
—Imaginam vossês como? Com um milagre!
—Com um milagre!? repetiram espantados.
—Sim, senhores.
Tinha-se entendido com um missionario, e na vespera
da eleição receberam-se na freguezia cartas
vindas
do céo e assignadas pela Virgem Maria, pedindo,
com promessas de salvação e ameaças do
inferno,
voto para o candidato do governo. De chupeta, hein?
—De mão cheia! disseram todos.
Só Amaro parecia surprehendido.
—Homem! disse o abbade com ingenuidade,
d'isso é que eu cá precisava. Eu então
tenho de andar
ahi a estafar-me de porta em porta.—E sorrindo
bondosamente:—Com o que se faz ainda alguma
coisita é com o relaxe da congrua!
—E com a confissão, disse o padre Natario. A
coisa então vai pelas mulheres, mas vai segura! Da
confissão tira-se grande partido.
O padre Amaro, que estivera calado, disse gravemente:
—Mas emfim a confissão é um acto muito
sério,
e servir assim para eleições...
O padre Natario, que tinha duas rosetas escarlates
na face e gestos excitados, soltou uma palavra
imprudente:
[140]
—Pois o senhor toma a confissão a sério?
Houve uma grande surpreza.
—Se tomo a confissão a serio!? gritou o padre
Amaro recuando a cadeira, com os olhos arregalados.
—Ora essa! exclamaram. Oh, Natario! Oh, menino!
O padre Natario exaltado queria explicar, attenuar:
—Escutem, creaturas de Deus! Eu não quero
dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra!
Eu não sou pedreiro-livre! O que eu quero dizer é
que é um meio de persuasão, de saber o que se
passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para alli...
E quando é para o serviço de Deus, é
uma arma.
Ahi está o que é—a
absolvição é uma arma!
—Uma arma! exclamaram.
O abbade protestava, dizendo:
-Oh, Natario! oh, filho! isso não!
O Libaninho tinha-se benzido; e, dizia, «tinha
já um tal terror que até lhe tremiam as
pernas»!
Natario irritou-se:
—Então talvez me queiram dizer, gritou, que
qualquer de nós, pelo facto de ser padre, porque o
bispo lhe impoz tres vezes as mãos e porque lhe
disse o
accipe, tem
missão directa de Deus,—é
Deus mesmo para absolver?!
—Decerto! exclamaram, decerto!
E o conego Dias disse, meneando uma garfada
de vagens:
[141]
—
Quorum remiseris peccata, remittuntur
eis.
É a fórmula. A fórmula é
tudo, menino...
—A confissão é a essencia mesma do sacerdocio,
soltou o padre Amaro com gestos escolares, fulminando
Natario. Leia Santo Ignacio! leia S. Thomaz!
—Anda-me com elle! gritava o Libaninho pulando
na cadeira, apoiando Amaro.—Anda-me com
elle, amigo parocho! Salta-me no cachaço do impio!
—Oh, senhores! berrou Natario furioso com a
contradicção, o que eu quero é que me
respondam
a isto. E voltando-se para Amaro:—O senhor, por
exemplo, que acaba de almoçar, que comeu o seu
pão torrado, tomou o seu café, fumou o seu
cigarro,
e que depois se vai sentar no confessionario, ás vezes
preoccupado com negocios de familia ou com
faltas de dinheiro, ou com dôres de cabeça ou com
dôres de barriga, imagina o senhor que está alli
como
um Deus para absolver?
O argumento surprehendeu.
O conego Dias, pousando o talher, ergueu os
braços, e com uma solemnidade comica exclamou:
—
Hereticus est! É
hereje!
—
Hereticus est! tambem eu digo,
rosnou o padre
Amaro.
Mas a Gertrudes entrava com a larga travessa do
arroz dôce.
—Não fallemos n'essas coisas, não fallemos
n'essas coisas, disse logo prudentemente o abbade.
Vamos ao arrozinho. Gertrudes, dá cá a garrafinha
do Porto!
[142]
Natario, debruçado sobre a mesa, ainda arremessava
argumentos a Amaro:
—Absolver é exercer a graça. A graça
só é attributo
de Deus: em nenhum auctor encontra que
a graça seja transmissivel. Logo...
—Ponho duas objecções... gritou Amaro com
o dedo em riste, em attitude de polemica.
—Oh, filhos! oh, filhos! acudiu o bom abbade
afflicto. Deixem a sabbatina, que até nem lhes sabe
o arrozinho!
Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo
os copos devagar, com as precauções classicas:
—Mil oitocentos e quinze! dizia. D'isto não se
bebe todos os dias.
Para o saborear, depois de o fazer reluzir á luz
na transparencia dos copos, repoltreavam-se nas velhas
cadeiras de couro; começaram as
saudes! A
primeira foi ao abbade, que murmurava:—Muita
honra... muita honra... Tinha os olhos chorosos de
satisfação.
—A sua santidade Pio IX! gritou então o Libaninho
brandindo o calix. Ao martyr!
Todos beberam commovidos. Libaninho entoou
em voz de falsete o hymno de Pio IX: o abbade,
prudente, fêl-o calar por causa do hortelão que no
quintal aparava o buxo.
A sobremesa foi longa, muito saboreada. Natario
tornára-se terno, fallava das suas sobrinhas, «as
suas
duas rosas», e citava Virgilio, molhando as castanhas
em vinho. Amaro, todo deitado para traz na cadeira,
[143]
as mãos nos bolsos, olhava machinalmente as
arvores do jardim, pensando vagamente em Amelia,
nas suas fórmas: suspirou mesmo com um desejo
d'ella—emquanto o padre Brito, rubro, queria convencer
os republicanos a
marmeleiro.
—Viva o marmeleiro do padre Brito! gritou enthusiasmado
o Libaninho.
Mas Natario começára a discutir com o conego
historia ecclesiastica: e, muito questionador, voltou
aos seus argumentos vagos sobre a doutrina da Graça:
affirmava que um assassino, um parricida poderia
ser canonisado—se se tivesse revelado o
estado de Graça! Divagava, com phrases d'escóla
em que se lhe pegava a lingua. Citou santos que
tinham sido escandalosos; outros que pela sua profissão
deviam ter conhecido, praticado, amado o vicio.
Exclamou com as mãos na cinta:
—Santo Ignacio foi militar!
—Militar!? gritou o Libaninho.—E erguendo-se
correndo a Natario, lançando-lhe um braço ao
pescoço
com uma ternura pueril e avinhada:—Militar!?
E que era elle? Que era elle, o meu devoto Santo
Ignacio?
Natario repelliu-o:
—Deixa-me, homem! Era sargento de caçadores.
Houve uma enorme risada.
O Libaninho ficára extatico.
—Sargento de caçadores! dizia erguendo as
mãos n'um impeto beato. Meu rico Santo Ignacio!
Bemdito e louvado seja elle por toda a eternidade!
[144]
E então o abbade propôz que fossem tomar
café
para debaixo da parreira.
Eram tres horas. Ao erguer-se todos cambaleavam
um pouco, arrotando formidavelmente, com risadas
espessas; só Amaro tinha a cabeça lucida, as
pernas firmes—e sentia-se muito terno.
—Pois agora, collegas, disse o abbade sorvendo
o ultimo gole de café, o que está a calhar
é um
passeio à fazenda.
—Para esmoer, rosnou o conego erguendo-se
com difficuldade. Vamos lá á fazenda do abbade!
Foram pelo atalho da Barroca, um caminho estreito
de carros. O dia estava muito azul, d'um sol
tepido. A vereda seguia entre vallados erriçados de
silvas; para além as terras lisas estendiam-se cobertas
de rastolho; a espaços as oliveiras destacavam,
com grande nitidez, na sua folhagem fina; para o
horisonte arredondavam-se collinas cobertas da rama
verde-negra dos pinheiros; havia um grande silencio;
só ás vezes, ao longe, n'um caminho, um carro
chiava. E n'aquella serenidade da paizagem e da
luz, os padres iam caminhando devagar, tropeçando
um pouco, d'olho acceso, estomago enfartado, chacoteando
e achando a vida boa.
O conego Dias e o abbade, de braço dado, caturravam.
O Brito, ao lado de Amaro, jurava que
havia de beber o sangue ao morgado da Cumiada.
—Prudencia, collega Brito, prudencia, dizia Amaro
chupando o cigarro.
E o Brito, com passadas de carretão, rosnava:
[145]
—Hei de comer-lhe os figados!
O Libaninho atraz, só, cantarolava em falsete:
—Passarinho trigueiro,
Salta cá fóra...
Adiante de todos ia o padre Natario: levava a
capa no braço, arrastando pelo chão; a batina
desabotoada
por traz deixava vêr o forro immundo do
collete; e as suas pernas escanifradas, com as meias
pretas de lã cheias de passagens, faziam bordos que
o atiravam contra o silvado.
E no emtanto Brito, com grandes bafos de vinho,
roncava:
—Eu só me contentava em agarrar n'um cajado
e correr tudo! tudo!—E gesticulava com um
gesto immenso que abrangia o mundo.
—Tem as azas quebradas,
Não póde agora...
gania atraz o Libaninho.
Mas pararam de repente: Natario adiante gritava
com uma voz furiosa:
—Seu burro, vossê não vê? Sua
bêsta!
Era á volta do atalho. Tropeçára com
um velho
que conduzia uma ovelha; ia cahindo; e ameaçava-o
com o punho fechado n'uma raiva avinhada.
—Queira vossa senhoria perdoar, dizia humildemente
o homem.
—Sua bêsta! berrava Natario com os olhos
chammejantes. Que o racho!
O homem balbuciava, tinha tirado o chapéo;
[146]
viam-se os seus cabellos brancos; parecia ser um
antigo criado de lavoura envelhecido no trabalho;
era talvez avô—e curvado, vermelho de vergonha,
encolhia-se com as sebes para deixar passar
no estreito caminho de carros os senhores padres
joviaes e excitados da vinhaça!
Amaro não os quiz acompanhar até á
fazenda.
Ao fim da aldeia, no cruzeiro, tomou pelo caminho
de Sobros, voltou para Leiria.
—Olhe que é uma legoa á cidade, dizia o abbade.
Eu mando-lhe apparelhar a egoa, collega.
—Qual historia, abbade, a perninha é rija!—E,
traçando alegremente a capa, partiu cantarolando o
Adeus.
Ao pé da Cortegassa o atalho de Sobros alarga-se,
ao comprido d'um muro de quinta coberto de
musgos e erriçado no alto de luzidios fundos de garrafas.
Quando Amaro chegou proximo ao portão de
carros, baixo e pintado de vermelho, encontrou no
meio do caminho, parada, uma grande vacca malhada;
Amaro divertido espicaçou-a com o guarda-chuva;
a vacca trotou balouçando a papeira—e
Amaro ao voltar-se viu Amelia, ao portão, que saudava,
dizendo toda risonha:
—Então está-me a espantar o gado, senhor
parocho?
—É a menina! Que milagre é este?
[147]
Ella fez-se um pouco vermelha:
—Vim á quinta com a D. Maria da
Assumpção.
Vim dar uma vista d'olhos á fazenda.
Ao pé de Amelia uma rapariga acamava couves
n'uma canastra.
—Então esta é que é a quinta da D.
Maria?
E Amaro deu um passo para dentro do portão.
Uma rua larga de velhos sobreiros, dando uma
sombra dôce, estendia-se até á casa que
se entrevia
no fundo, branquejando ao sol.
—É. A nossa fazenda fica do outro lado, mas
entra-se tambem por aqui. Vá, Joanna, avia-te!
A rapariga pôz a canastra á cabeça, deu
as boas
tardes, metteu pelo caminho de Sobros, batendo
muito os quadris.
—Sim, senhor! sim, senhor! Parece uma boa
propriedade... considerava o parocho.
—Venha vêr a nossa fazenda! disse Amelia. É
uma migalhinha de terra, mas para fazer uma idéa.
Vai-se por aqui mesmo... Olhe, vamos ter lá baixo
com a D. Maria, quer?
—Valeu. Vamos lá á D. Maria, disse Amaro.
Foram subindo a rua dos sobreiros, calados. O
chão estava cheio de folhas sêccas, e, entre os
troncos
espaçados, moitas de hortensias pendiam abatidas,
amarelladas dos chuveiros; ao fundo a casa
baixa, velha, de um andar só, assentava pesadamente.
Ao longo da parede grandes aboboras amadureciam
ao sol, e no telhado, todo negro do inverno,
esvoaçavam pombos. Por traz o laranjal formava
[148]
uma massa de folhagens verde-escuras; uma
nora chiava monotonamente.
Um rapazito passou com um balde de lavagem.
—Para onde foi a senhora, João? perguntou
Amelia.
—Foi p'r'ó olival, disse o rapaz com a sua vozinha
arrastada.
O olival era longe, no fundo da quinta: havia
ainda grandes lamas, não se podia ir lá sem
tamancos.
—Vai-se a gente sujar toda, disse Amelia. Deixar
lá a D. Maria, hein? Vamos nós vêr a
quinta...
Por aqui, senhor parocho...
Estavam defronte d'um velho muro onde cresciam
clematites. Amelia abriu uma porta verde; e
por tres degraus de pedra desconjuntados desceram
a uma rua toldada por uma larga parreira. Junto do
muro cresciam rosas de todo o anno; do outro lado,
por entre os pilares de pedra que sustentavam a latada
e os pés torcidos das cepas, via-se, batido de
luz, com tons amarellados, um grande campo de herva;
os tectos baixos do curral coberto de colmo destacavam
ao longe em escuro, e d'esse lado um fumosinho
leve e branco perdia-se no ar muito azul.
Amelia a cada momento parava, explicava a
quinta:—Alli ia semear-se cevada; além havia de
vêr o cebolinho, estava muito bonito...
—Ah! a D. Maria da Assumpção traz isto muito
bem tratado!
Amaro ouvia-a fallar, com a cabeça baixa, olhando-a
[149]
de lado; a sua voz n'aquelle silencio dos campos
parecia-lhe mais rica, mais dôce; o grande ar
dava-lhe uma côr mais picante ás faces; o seu
olhar
rebrilhava. Para saltar umas lamas tinha apanhado
o vestido; e a brancura da meia, que elle entreviu,
perturbou-o como um começo da sua nudez.
Ao fundo da parreira atravessaram um campo ao
comprido d'um regueiro. Amelia riu muito do parocho,
que tinha medo de sapos. Elle então exagerou
os seus sustos. Ó menina Amelia, haveria viboras?
E roçava-se por ella, afastando-se das hervas altas.
—Vê aquelle vallado? Pois para o lado de lá
é
a nossa fazenda. Entra-se pela cancella, vê? Mas veja
lá se está cansado! Que o senhor parece-me que
não é grande caminhador... Ai, um sapo!
Amaro deu um pulinho, tocou-lhe o hombro.
Ella empurrou-o dôcemente, e com um riso calido:
—Seu medroso! seu medroso!
Estava toda contente, toda viva. Fallava na
sua
fazenda com uma vaidadesinha satisfeita de entender
da lavoura, de ser proprietaria.
—A cancella está fechada, parece, disse Amaro.
—Está? fez ella.—Apanhou as saias, deu uma
carreirinha. Estava fechada! Que pena! E abalava,
impaciente, as grades estreitas, entre as duas fortes
hombreiras de madeira encravadas na espessura do
silvado.
—Foi o caseiro que levou a chave!
Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando
muito tempo a voz:—Antonio! Antonio!
[150]
Ninguem respondeu.
—Anda lá para o fundo da quinta! disse ella.
Que sécca! Se o senhor parocho quizesse, aqui adiante
póde-se passar. Ha uma abertura no vallado, chamam-lhe
o
salto da cabra. Póde a
gente saltar para
o outro lado.
E caminhando rente ao silvado, chapinhando a
lama, toda alegre:
—Quando eu era pequena nunca passava pela
cancella, saltava sempre por alli. E cada trambolhão
quando o chão estava resvaladiço com a chuva!
Era um vivo demonio, aqui onde me vê! Ninguém
ha de dizer, senhor parocho, hein? Ai! vou-me
a fazer velha!—E voltando-se para elle, com
um risinho onde luzia o esmalte dos dentes:—Não
é verdade? Estou-me a fazer velha, hein?
Elle sorria. Custava-lhe fallar. O sol, batendo-lhe
nas costas, depois do vinho do abbade, amollecia-o:
e a figura d'ella, os seus hombros, os seus encontros
davam-lhe um desejo continuo e intenso.
—Aqui está o
salto da
cabra, disse Amelia parando.
Era uma abertura estreita no vallado: a terra do
outro lado, mais baixa, estava toda lamacenta. Via-se
d'alli a fazenda da S. Joanneira: o campo plano
estendia-se até um olival, com a herva fina muito
estrellada de pequenos malmequeres brancos; uma
vacca preta, de grandes malhas, pastava; e para
além viam-se tectos aguçados de casaes onde
voavam
revoadas de pardaes.
[151]
—E agora? perguntou Amaro.
—Agora saltar, disse ella rindo.
—Cá vai! exclamou elle.
Traçou a capa, saltou; mas escorregou nas hervas
humidas—e immediatamente Amelia, debruçando-se,
rindo muito, com grandes acenos de mãos:
—E agora adeus, senhor parocho, que eu vou
ter com a D. Maria. Ahi fica preso na fazenda. Para
cima não póde o senhor pular, pela cancella
não póde
o senhor passar! É o senhor parocho que está
preso...
—Ó menina Amelia! ó menina Amelia!
Ella cantarolava-lhe, escarnecendo:
Fico sósinha á varanda
Que o meu bem está na prisão!
Aquellas maneirinhas excitavam o padre—e com
os braços erguidos, a voz calida:
—Salte, salte!
Ella então fez voz de mimo:
—Ai, tenho medinho! tenho medinho...
—Salte, menina!
—Lá vai! gritou ella bruscamente.
Saltou, foi cahir-lhe sobre o peito com um gritinho.
Amaro resvalou, firmou-se—e, sentindo entre
os braços o corpo d'ella, apertou-a brutalmente
e beijou-a com furor no pescoço.
Amelia desprendeu-se, ficou diante d'elle, suffocada,
com a face em braza, compondo na cabeça e
em roda do pescoço, com as mãos tremulas, as
pregas
da manta de lã. Amaro disse-lhe:
[152]
—Ameliasinha!
Mas ella de repente apanhou os vestidos, correu
ao comprido do vallado. Amaro, com grandes passadas,
seguiu-a atarantado. Quando chegou á cancella,
Amelia fallava ao caseiro, que apparecia com
a chave.
Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois
a rua coberta com a parreira. Amelia adiante palrava
com o caseiro; e atraz Amaro, de cabeça baixa,
seguia muito murcho. Ao pé da casa Amelia parou,
fazendo-se vermelha, compondo sempre a manta em
redor do pescoço:
—Ó Antonio, disse, ensine o portão ao senhor
parocho. Muito boas tardes, senhor parocho.
E através das terras humidas correu para o fundo
da quinta, para os lados do olival.
A snr.
a D. Maria da
Assumpção ainda
lá estava,
sentada n'uma pedra, tagarellando com o tio Patricio;
um bando de mulheres, com grandes varas, batiam
em redor a ramagem das oliveiras.
—Que é isso, tonta? D'onde vens tu a correr,
rapariga? Credo, que doida!
—Vim a correr, disse
ella toda
vermelha, suffocada.
Sentou-se ao pé da velha; e ficou immovel, com
as mãos cahídas no regaço, respirando
fortemente, os
beiços entreabertos, os olhos fixos n'uma
abstracção.
Todo o seu sêr se abysmava n'uma só
sensação:
—Gosta de mim! Gosta de mim!
[153]
Estava ha muito namorada do padre Amaro—e
ás vezes, só, no seu quarto, desesperava-se por
imaginar
que elle não percebia nos seus olhos a confissão
do seu amor! Desde os primeiros dias, apenas
o ouvia pela manhã pedir de baixo o almoço,
sentia uma alegria penetrar todo o seu sêr sem
razão,
punha-se a cantarolar com uma volubilidade de
passaro. Depois via-o um pouco triste. Porquê? Não
conhecia o seu passado; e, lembrada do frade d'Evora,
pensou que elle se fizera padre por um desgosto
d'amor. Idealisou-o então: suppunha-lhe uma natureza
muito terna, parecia-lhe que da sua pessoa airosa
e pallida se desprendia uma fascinação. Desejou
tel-o por confessor: como seria bom estar ajoelhada
aos pés d'elle, no confessionario, vendo de perto os
seus olhos negros, sentindo a sua voz suave fallar
do paraiso! Gostava muito da frescura da sua boca;
fazia-se pallida à idéa de o poder
abraçar na sua
longa batina preta! Quando Amaro sahia, ia ao quarto
d'elle, beijava a travesseirinha, guardava os cabellos
curtos que tinham ficado nos dentes do pente.
As faces abrazavam-se-lhe quando o ouvia tocar a
campainha.
Se Amaro jantava fóra com o conego Dias estava
todo o dia impertinente, ralhava com a
Ruça,
ás vezes mesmo dizia mal d'elle, «que era
casmurro,
que era tão novo que nem inspirava respeito».
[154]
Quando elle fallava d'alguma nova confessada, amuava,
com um ciume pueril. A sua antiga devoção
renascia,
cheia de um fervor sentimental: sentia um
vago amor physico pela Igreja; desejaria abraçar,
com pequeninos beijos demorados, o altar, o orgão,
o missal, os santos, o céo, porque não os
distinguia
bem d'Amaro, e pareciam-lhe dependencias da sua
pessoa. Lia o seu livro de missa pensando n'elle como
no seu Deus particular. E Amaro não sabia, quando
passeava agitado pelo quarto, que ella em cima
o escutava, regulando as palpitações do seu
coração
pelas passadas d'elle, abraçando o travesseiro, toda
desfallecida de desejos, dando beijos no ar, onde se
lhe representavam os labios do parocho!
A tarde cahia quando D. Maria e Amelia voltaram
para a cidade. Amelia adiante, calada, chibatava
a sua burrinha, emquanto D. Maria da Assumpção
vinha palrando com o moço da quinta, que segurava
a arreata. Ao passar junto á Sé tocou a
Ave-Marias. E Amelia, rezando, não podia destacar
os olhos das cantarias da igreja tão grandiosamente
erguidas, decerto para que elle alli celebrasse! Lembravam-lhe
então domingos em que o vira, ao repicar
dos sinos, dar a benção dos degraus do
altar-mór;
e todos se curvavam, mesmo as senhoras do
morgado Carreiro, mesmo a senhora baroneza de
Via-Clara e a mulher do governador civil, tão orgulhosa,
[155]
com o seu nariz de cavallete! Dobravam-se sob
os seus dedos erguidos, e achavam decerto tambem
bonitos os seus olhos negros! E era elle que a
tinha apertado nos braços, ao pé do vallado!
Sentia
ainda no pescoço a pressão calida dos seus
beiços:
uma paixão flammejou como uma chamma por todo
o seu sêr: largou a arreata do burrinho, apertou as
mãos contra o peito, e cerrando os olhos,
lançando
toda a sua alma n'uma devoção:
—Ó Nossa Senhora das Dôres, minha madrinha,
faze que elle goste de mim!
No adro lageado conegos passeavam, conversando.
A botica defronte já tinha luz, os bocaes reluziam;
e por detraz da balança a figura do pharmaceutico
Carlos, com o seu boné bordado a missanga,
movia-se magestosamente.
VIII
O padre Amaro voltára para casa aterrado.
—E agora? E agora? dizia elle encostado ao
canto da janella, sentindo o coração encolhido.
Devia sahir immediatamente da casa da S. Joanneira!
Não podia continuar alli, na mesma familiaridade,
depois de ter tido «aquelle atrevimento com
a pequena».
Que ella não ficára muito indignada—apenas
atordoada; contivera-a talvez o respeito ecclesiastico,
a delicadeza para com o hospede, a attenção
para com o amigo do conego. Mas podia contar á
mãi, ao escrevente... Que escandalo! E via já o
senhor
chantre, traçando a perna e fitando-o,—que
era a sua attitude de reprehensão—dizer-lhe com
pompa:—«São esses desregramentos que deshonram
o sacerdocio. Não se comportaria d'outro modo
[158]
um Satyro no monte Olympo!»—Poderiam desterral-o
outra vez para alguma freguezia da serra!...
Que diria a senhora condessa de Ribamar?
E depois, se persistisse em vêl-a na intimidade,
ter constantemente presentes aquelles olhos negros,
o sorriso calido que lhe fazia uma covinha no queixo,
a curva d'aquelle peito—a sua paixão, crescendo
surdamente, irritada a toda a hora, recalcada
para dentro, tornal-o-hia doido, «podia fazer alguma
asneira»!
Decidiu-se então a ir fallar ao conego Dias: a
sua natureza fraca necessitava sempre receber forças
d'uma razão, d'uma experiencia alheia: costumava
consultar ordinariamente o conego que, pelo
habito da disciplina ecclesiastica, elle julgava mais
intelligente por ser seu superior na hierarchia; e
não perdera, desde o seminario, a sua dependencia
de discipulo. Depois, se quizesse arranjar uma casa
e uma criada para ir viver só, necessitava o auxilio
do conego, que conhecia Leiria como se a tivesse
edificado.
Encontrou-o na sala de jantar. O candieiro de
azeite esmorecia com um murrão avermelhado. Os
tições da brazeira, cobertos d'uma
pulverisação de
cinza, revermelhavam vagamente. E o conego, sentado
n'uma cadeira de braços, com o capote pelos
hombros, os pés embrulhados n'um cobertor, amodorrado
no calor do lume, com o Breviario sobre os
joelhos, dormitava. Na dobra do cobertor, a
Trigueira
estirada dormitava como elle.
[159]
Aos passos de Amaro o conego abriu muito devagar
os olhos, rosnou:
—Ia adormecendo, hein!
—É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou
a recolher. Então que preguiça é essa?
—Ah! é vossê? disse o conego com um enorme
bocejo. Cheguei tarde de casa do abbade, tomei uma
gota de chá, veio o quebranto... Então que
é feito?
—Vim por aqui.
—Pois o abbade deu-nos um rico jantar. A cabedella
estava de mão cheia! Eu carreguei-me um
bocado, disse o conego rufando com os dedos na
capa do Breviario.
Amaro, sentado ao pé d'elle, remexia devagar o
brazido:
—Sabe vossê, padre-mestre? disse elle de repente.
Ia acrescentar:—Aconteceu-me um caso!—Mas
reteve-se, murmurou:—Estou hoje exquisito;
tenho andado ultimamente fóra dos eixos...
-Vossê com effeito anda amarello, disse o conego,
considerando-o. Purgue-se, homem!
Amaro esteve um momento calado, a olhar o
lume.
—Sabe? estou com idéa de mudar de casa.
O conego ergueu a cabeça, arregalou os olhinhos
somnolentos:
—Mudar de casa! Ora essa! Porquê?
O padre Amaro chegou a cadeira para elle, e fallando
baixo:
—Vossê percebe... Tenho estado a pensar, é
[160]
assim exquisito estar em casa de duas mulheres,
com uma rapariga...
—Ora, historias! Que me vem vossê contar?
Vossê é hospede... Deixe-se d'isso, homem!
É como
quem está na hospedaria.
—Não, não, padre-mestre, eu cá me
entendo...
E suspirou; desejava que o conego o interrogasse,
facilitasse as confidencias.
—Então só hoje é que pensa n'isso,
Amaro?!
—É verdade, tenho estado a pensar hoje n'isto.
Tenho minhas razões.—Ia a dizer:—Fiz uma tolice,—mas
acanhou-se.
O conego olhou para elle um momento:
—Homem, seja franco!
—Sou.
—Vossê acha aquillo caro?
—Não! disse o outro com uma negação
impaciente.
—Bem, então é outra coisa...
—É. Vossê que quer?—E n'um tom magano,
com que julgou agradar ao conego:—A gente tambem
gosta do que é bom...
—Bem, bem, disse o conego rindo, percebo.
Vossê, como eu sou amigo da casa, quer-me dizer
por bons modos que tem nojo de tudo aquillo!
—Tolice! disse Amaro erguendo-se, irritado de
tanta obtusidade.
—Oh, homem! exclamou o conego abrindo os
braços. Vossê quer sahir da casa? Por alguma
é!
Ora a mim parece-me que melhor...
[161]
—É verdade, é verdade, dizia Amaro que dava
agora grandes passadas pela sala. Mas estou com esta
ferrada! Veja vossê se me arranja uma casita barata
com alguma mobilia... Vossê entende melhor
d'essas coisas...
O conego ficou calado, muito enterrado na poltrona,
coçando devagar o queixo.
—Uma casita barata... rosnou por fim. Eu verei,
eu verei... Talvez.
—Vossê comprehende, acudiu vivamente Amaro,
chegando-se ao conego. A casa da S. Joanneira...
Mas a porta rangeu, D. Josepha Dias entrou: e
depois de conversarem sobre o jantar do abbade, o
catarrho da pobre D. Maria da Assumpção, a
doença
de figado que ia minando o engraçado conego Sanches—Amaro
sahiu, quasi contente agora de se não
«ter desabotoado com o padre-mestre».
O conego ficou ainda ao pé do lume, ruminando.
Aquella resolução d'Amaro de deixar a casa da S.
Joanneira era bem vinda; quando elle o trouxera
d'hospede para a rua da Misericordia, combinára com
a S. Joanneira diminuir-lhe a mezada que havia annos
lhe dava, regularmente, no dia 30. Mas arrependeu-se
logo; a S. Joanneira, se não tinha hospede,
dormia só no primeiro andar: o conego podia então
saborear livremente os carinhos da sua velhota,—e
Amelia, na sua alcova, em cima, era alheia a este
«conchêgosinho». Quando veio o padre
Amaro, a
S. Joanneira cedeu-lhe o quarto e dormia n'uma cama
de ferro ao pé da filha: e o conego então
reconheceu,
[162]
como elle disse, desconsolado—«que aquelle
arranjo tinha estragado tudo». Para gozar as
doçuras
da sésta com a sua S. Joanneira era necessario
que Amelia jantasse fóra, que a
Ruça estivesse
na fonte, outras combinações importunas; e elle,
conego
do cabido, na egoista velhice, quando precisava
ter recato com a sua saude, via-se obrigado a esperar,
a espreitar, a ter nos seus prazeres regulares
e hygienicos as difficuldades d'um collegial que ama
a senhora professora. Ora se Amaro sahisse, a S.
Joanneira descia ao seu quarto, no primeiro andar;
vinham as antigas commodidades, as tranquillas séstas.
É verdade que tinha de dar a antiga mezada...
Daria a mezada!
—Que diabo! ao menos está um homem á sua
vontade, resumiu elle.
—Que está para ahi o mano a fallar só? perguntou
a snr.
a D. Josepha despertando do quebranto
em que ia cahindo, ao pé do lume.
—Estava cá a malucar como hei de castigar a
carne na quaresma...—disse o conego com um
riso grosso.
A essa hora a
Ruça
chamava o padre Amaro para
o chá: e elle subia devagar, com o
coração pequenino,
receando encontrar a S. Joanneira muito
carrancuda, já informada do insulto. Achou só
Amelia—que
[163]
tendo-lhe sentido os passos na escada tomára
rapidamente a costura e, com a cabeça muito
baixa, dava grandes agulhadas, vermelha como o lenço
que abainhava para o conego.
—Muito boa noite, menina Amelia.
—Muito boa noite, senhor parocho.
Amelia costumava sempre ter um
olá! ou um
ora viva! muito amavel; aquella
seccura aterrou-o;
disse-lhe logo muito perturbado:
—Menina Amelia, eu peço-lhe que me perdôe...
Foi um atrevimento... Eu nem soube o que fiz...
Mas acredite... Estou resolvido a sahir d'aqui. Até
já pedi ao senhor conego Dias que me arranjasse casa...
Fallava com o rosto baixo—e não via Amelia
erguer os olhos para elle, surprehendida e toda desconsolada.
N'este momento a S. Joanneira entrou, e logo da
porta, abrindo os braços:
—Viva! Então já sei, já sei! Disse-me
o senhor
padre Natario: grande jantar! Conte lá, conte lá!
Amaro teve de dizer os pratos, as pilherias do
Libaninho, a discussão theologica; depois fallaram
da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido a
dizer á S. Joanneira que ia deixar a casa,—o que
era, coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis
tostões por dia!
Na manhã seguinte o conego foi a casa d'Amaro,
pela manhã, antes d'ir ao côro. O parocho fazia
a barba á janella:
[164]
—Ólá, padre-mestre! Que ha de novo?
—Parece-me que se arranja a coisa! E foi por
acaso, esta manhã... Ha uma casita lá para os
meus
lados, que é um achado. Era do major Nunes, que
vai mudado para o 5.
Aquella precipitação desagradou a Amaro:
perguntou,
dando desconsoladamente o fio á navalha:
—Tem mobilia?
—Tem mobilia, tem louças, tem roupas, tem
tudo.
—Então...
—Então é entrar e começar a gozar. E
aqui para
nós, Amaro, vossê tem razão. Estive a
pensar no
caso... É melhor para vossê viver só.
De modo
que vista-se, e vamos vêr a casita.
Amaro, calado, rapava a cara com desespero.
A casa era na rua das Sousas, d'um andar, muito
velha, com a madeira carunchosa: a mobilia, como
disse o conego, «podia passar a veteranos»; algumas
lithographias desbotadas pendiam lugubremente
de grandes prégos negros; e o immundo major
Nunes deixára os vidros quebrados, os soalhos todos
escarrados, as paredes riscadas de phosphoros, e até
sobre um poial da janella duas piugas quasi negras.
Amaro aceitou a casa. E n'essa mesma manhã o
conego ajustou-lhe uma criada, a snr.
a Maria
Vicencia,
pessoa muito devota, alta e magra como um pinheiro,
antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como
considerou o conego Dias) era a propria irmã da
famosa Dionysia!
[165]
A Dionysia fôra outr'ora a
Dama das
Camelias,
a Ninon de Lenclos, a Manon de Leiria: gozára a honra
de ser concubina de dois governadores civis e do
terrivel morgado da Sertejeira; e as paixões phreneticas
que inspirára tinham sido para quasi todas as
mães de familia de Leiria causa de lagrimas e de fanicos.
Agora engommava para fóra, encarregava-se
de empenhar objectos, entendia muito de partos,
protegia «o rico adulteriosinho» segundo a singular
expressão do velho D. Luiz da Barrosa cognominado
o
infame, fornecia lavradeirinhas
aos senhores empregados
publicos, sabia toda a historia amorosa do
districto. E via-se sempre na rua a Dionysia com o
seu chale de xadrez traçado, o pesado seio tremendo
dentro d'um chambre sujo, o passinho discreto e
os antigos sorrisos—mas a que faltavam já os dois
dentes de diante.
O conego logo n'essa tarde deu parte á S. Joanneira
da resolução d'Amaro. Foi um grande espanto
para a excellente senhora! Queixou-se, com amargura,
da ingratidão do senhor parocho.
O conego tossiu grosso e disse:
—Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa.
E eu lhe digo porquê: é que este arranjo de quarto
em cima, etc., está-me a arrazar a saude.
Deu outras razões de prudencia hygienica e
acrescentou, passando-lhe com bondade os dedos
pelo pescoço:
—E o que é perder a conveniencia, não se afflija
a senhora! Eu darei p'r'á panella como d'antes;
[166]
e como a colheita foi boa porei mais meia moeda
para os arrebiques da pequena. Ora venha de lá
uma beijoca, Augustinha, sua bréjeira! E ouça,
hoje
como-lhe cá as sopas.
Amaro no emtanto em baixo ia emmalando a sua
roupa. Mas a cada momento parava, dava um
ai
triste, ficava a olhar em redor o quarto, a cama
fôfa, a mesa com a sua toalha branca, a larga cadeira
forrada de chita onde elle lia o Breviario, ouvindo,
por cima, cantarolar Amelia.
—Nunca mais! pensava. Nunca mais!
Adeus as boas manhãs passadas ao pé d'ella,
vendo-a costurar! Adeus as alegres sobremesas, que
se prolongavam á luz do candieiro! Adeus os chás,
ao pé da brazeira, quando o vento uivava fóra e
cantavam as frias goteiras! Tudo tinha acabado!
A S. Joanneira e o conego appareceram então á
porta do quarto. O conego resplandecia; e a S. Joanneira
disse, muito magoada:
—Já sei, já sei, seu ingrato!
—É verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo
os hombros tristemente. Mas ha razões... Eu
sinto...
—Olhe, senhor parocho, disse a S. Joanneira,
não se offenda com o que lhe vou dizer, mas eu já
lhe queria como filho...—E levou o lenço aos olhos.
—Tolices! exclamou o conego. Pois então elle
não póde vir aqui em amizade, passar as noites
para o cavaco, tomar o seu café?... O homem não
vai para o Brazil, senhora!
[167]
—Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada,
mas sempre era tel-o de portas a dentro!
Emfim, ella bem sabia que a gente na sua casa
está muito melhor... Fez-lhe então grandes
recommendações
sobre a lavadeira, que mandasse buscar
o que quizesse, louças, lençoes...
—E veja lá não lhe esqueça alguma
coisa, senhor
parocho!
—Muito obrigado, minha senhora, muito obrigado...
E, continuando a arrumar a sua roupa, o parocho
desesperava-se agora contra a resolução que
tomára.
A pequena evidentemente não tinha aberto bico!
Para que sahiria então d'aquella casa tão barata,
tão
confortavel, tão amiga? E odiava o conego pelo seu
zelo tão precipitado.
O jantar foi triste. Amelia, decerto para explicar
a sua pallidez, queixava-se de dôres na cabeça. Ao
café o conego quiz a sua «dóse de
musica»; e
Amelia, ou machinalmente ou com intenção, disse a
canção querida:
Ai! adeos! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado!
Sôa a hora, o momento fadado,
É forçoso deixar-te e partir!
Então, áquella chorosa melodia repassada das
tristezas da separação, Amaro sentiu-se
tão perturbado
que teve de se erguer bruscamente, ir encostar
o rosto á vidraça, esconder as duas lagrimas que
[168]
irreprimivelmente lhe saltavam das palpebras. Os
dedos d'Amelia embrulhavam-se tambem no teclado;
até a mesma S. Joanneira disse:
—Oh filha, toca outra coisa, credo!
Mas o conego erguendo-se pesadamente:
—Pois senhores, vão sendo horas. Vamos lá,
Amaro. Eu vou comsigo até a rua das Sousas...
Amaro então quiz dizer adeus á idiota; mas,
depois
d'um forte accesso de tosse, a velha dormia,
muito fraca.
—Deixal-a socegada, disse Amaro. E apertando
a mão á S. Joanneira:—Muito obrigado por tudo,
minha senhora, acredite...
Calou-se, com um soluço na garganta.
A S. Joanneira tinha levado aos olhos a ponta do
seu avental branco.
—Oh, senhora! disse o conego rindo-se, já ha
bocado lhe disse, o homem não vai p'r'ás Indias!
—A gente é pela amizade que lhes ganha...
choramingou a S. Joanneira.
Amaro tentou gracejar. Amelia, muito branca,
mordia o beicinho.
Emfim Amaro desceu: e o João Ruço que na sua
chegada a Leiria lhe trouxera o bahú para a rua da
Misericordia, muito bebedo, cantarolando o
Bemdito,—levava-lh'o
agora para a rua das Sousas, bebedo
tambem, mas trauteando o
Rei-chegou.
[169]
Quando Amaro, n'essa noite, se viu só n'aquella
casa tristonha, sentiu uma melancolia tão pungente
e um tedio tão negro da vida, que, com a sua natureza
lassa, teve vontade de se encolher a um canto
e ficar alli a morrer!
Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em
redor: a cama era de ferro, pequena, com um colchão
duro e uma coberta vermelha; o espelho com
o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia
lavatorio,
a bacia e o jarro, com um bocadinho de
sabonete, estavam sobre o poial da janella; tudo
alli cheirava a môfo; e fóra, na rua negra, cahia
sem cessar a chuva triste. Que existencia! E seria
sempre assim!...
Desesperou-se então contra Amelia: accusou-a,
com o punho fechado, das commodidades que perdera,
da falta de mobilia, da despeza que ia ter, da
solidão que o regelava! Se fosse mulher de
coração
devia ter vindo ao seu quarto e dizer-lhe: «Senhor
padre Amaro, para que sae de casa? Eu não estou
zangada!» Porque emfim quem irritára o seu desejo?
Ella, com as suas maneirinhas ternas, os seus
olhinhos adocicados! Mas não, deixára-o emmalar a
roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga,
indo tocar com estrondo a valsa do
Beijo!
Jurou então não voltar a casa da S. Joanneira. E,
a grandes passadas pelo quarto, pensara no que
havia de fazer para humilhar Amelia. O quê? Desprezal-a
[170]
como uma cadella! Ganhar influencia na sociedade
devota de Leiria, ser muito do senhor chantre;
afastar da rua da Misericordia o conego e as Gansosos;
intrigar com as senhoras da boa roda para
que se afastassem d'ella, com seccura, no altar-mór,
á missa do domingo; dar a entender que a mãi era
uma prostituta... Enterral-a! cobril-a de lama! E na
Sé, ao sahir da missa, regalar-se de a vêr passar
encolhida
no seu mantelete preto, escorraçada de todos,
emquanto elle, á porta, de proposito, conversaria
com a mulher do senhor governador civil e seria
galante com a baroneza de Via-Clara!... Depois
prégaria um grande sermão, na quaresma, e ella
ouviria
dizer, na arcada, nas lojas: «Grande homem,
o padre Amaro!» Tornar-se-hia ambicioso, intrigaria
e, protegido pela senhora condessa de Ribamar,
subiria nas dignidades ecclesiasticas: e o que pensaria
ella quando o visse um dia bispo de Leiria, pallido
e interessante na sua mitra toda dourada, passando,
seguido dos incensadores, ao longo da nave
da Sé, entre um povo ajoelhado e penitente, sob os
roucos cantos do orgão? E ella o que seria então?
Uma magra creatura murcha, embrulhada n'um chale
barato! E o snr. João Eduardo, o escolhido d'agora,
o esposo? Seria um pobre amanuense mal pago,
com uma quinzena roçada, os dedos queimados do
cigarro, curvado sobre o seu papel almasso, imperceptivel
na terra, adulando alto e invejando baixo!
E elle, bispo, na vasta escadaria hierarchica que
sobe até ao céo, estaria já muito para
cima dos homens,
[171]
na zona de luz que faz a face de Deus-Padre!—E
seria par do reino, e os padres da sua
diocese tremeriam de o vêr franzir a testa!
Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.
Que faria ella áquella hora? pensava. Costurava
decerto, na sala de jantar: estava o escrevente: jogavam
a bisca, riam—ella roçava-lhe talvez com o
pé, no escuro, debaixo da mesa! Recordou o seu
pé,
o bocadinho da meia que vira quando ella saltava
as lamas na quinta; e essa curiosidade inflammada
subia pela curva da perna até ao seio, percorrendo
bellezas que suspeitava... O que elle gostava
d'aquella maldita! E era impossivel obtel-a! E todo
o homem feio e estupido podia ir á rua da Misericordia
pedil-a á mãi, vir á Sé
dizer-lhe: «Senhor
parocho, case-me com esta mulher», e beijar, sob
a protecção da Igreja e do Estado, aquelles
braços
e aquelle peito! Elle não. Era padre! Fôra aquella
infernal pêga da marqueza d'Alegros!...
Abominava então todo o mundo secular—por
lhe ter perdido para sempre os privilegios: e, como
o sacerdocio o excluia da participação nos
prazeres
humanos e sociaes, refugiava-se, em compensação,
na idéa da superioridade espiritual que elle lhe dava
sobre os homens. Aquelle miseravel escrevente podia
casar e possuir a rapariga—mas que era elle
em comparação d'um parocho a quem Deus conferira
o poder supremo de distribuir o céo e o inferno?...—E
repastava-se d'este sentimento, enchendo
o espirito d'orgulhos sacerdotaes. Mas vinha-lhe
[172]
bem depressa a desconsoladora idéa que esse dominio
só era valido na região abstracta das almas;
nunca o poderia manifestar, por actos triumphantes,
em plena sociedade. Era um Deus dentro da Sé—mas,
apenas sahia para o largo, era apenas um plebeu
obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a
acção sacerdotal a uma mesquinha influencia sobre
almas de beatas... E era isto que lamentava, esta
diminuição
social da Igreja, esta mutilação do poder
ecclesiastico, limitado ao espiritual, sem direito sobre
o corpo, a vida e a riqueza dos homens... O que
lhe faltava era a auctoridade dos tempos em que a
Igreja era a nação e o parocho dono temporal do
rebanho.
Que lhe importava, no seu caso, o direito mystico
d'abrir ou fechar as portas do céo? O que elle
queria era o velho direito d'abrir ou fechar a porta
das masmorras! Necessitava que os escreventes e as
Amelias tremessem da sombra da sua batina... Desejaria
ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar das
vantagens que dá a denuncia e dos terrores que inspira
o carrasco, e alli n'aquella villa, sob a
jurisdicção
da sua Sé, fazer estremecer, á idéa de
castigos torturantes,
aquelles que aspirassem a realisar felicidades—que
lhe eram a elle interdictas: e pensando em
João Eduardo e em Amelia, lamentava não poder
accender
as fogueiras da Inquisição!—Assim aquelle
inoffensivo moço tinha durante horas, sob a
excitação
colerica d'uma paixão contrariada,
ambições
grandiosas de tyrannia catholica:—porque todo o
padre, o mais boçal, tem um momento em que é
penetrado
[173]
pelo espirito da Igreja ou nos seus lances
de renunciamento mystico ou nas suas ambições de
dominação universal: todo o sub-diacono se julga
uma hora capaz de ser santo ou de ser Papa: não
ha seminarista que não tenha, durante um instante,
aspirado com ternura á caverna no deserto em que
S. Jeronymo, olhando o céo estrellado, sentia descer-lhe
sobre o peito a Graça como um abundante
rio de leite: e o abbade pansudo que á tardinha,
á
varanda, palita o dente furado saboreando o seu
café com um ar paterno, traz dentro em si os indistinctos
restos d'um Torquemada.
A vida d'Amaro tornou-se monotona. Março ia
muito molhado, muito frio; e, depois do serviço na
Sé, Amaro entrava em casa, tirava as botas enlameadas,
ficava em chinelas a aborrecer-se. Ás tres
horas jantava; e nunca levantava a tampa rachada
da terrina sem se lembrar, com uma saudade pungente,
do jantarinho na rua da Misericordia, quando
Amelia, com o seu collar muito branco, lhe passava
a sopa de grãos de bico, sorrindo, toda carinhosa.
Ao lado a Vicencia servia, têsa e enorme,
com o seu corpo de soldado vestido de saias, sempre
constipada; e de vez em quando, desviando a
cabeça, assoava-se ao avental com ruido. Era muito
suja: as facas tinham o cabo humido da agua gordurosa
das lavagens. Amaro, desgostoso e indifferente,
[174]
não se queixava; comia mal, á pressa; mandava
vir o café, e ficava horas esquecidas sentado
á mesa, quebrando a cinza do cigarro na borda do
prato, perdido n'um tedio mudo, sentindo os pés e
os joelhos frios do vento que entrava pelas frinchas
da sala desabrigada.
Ás vezes o coadjutor, que nunca o visitára na
rua da Misericordia, apparecia ao fim do jantar: sentava-se
arredado da mesa, e ficava calado, com o
seu guardachuva entre os joelhos. Depois, julgando
agradar ao parocho, repetia, invariavelmente:
—Vossa senhoria aqui está melhor, sempre é
estar em sua casa.
—Está claro... rosnava Amaro.
Ao principio, para consolar o seu despeito, dizia
ligeiramente mal da S. Joanneira, provocando, animando
o coadjutor (que era de Leiria) a contar os
escandalos da rua da Misericordia. O coadjutor, por
servilismo, tinha sorrisos mudos, repassados de perfidia.
—Alli ha pôdres, hein? dizia o parocho.
O outro encolhia os hombros, com as mãos muito
espalmadas ao pé das orelhas, n'uma expressão
de malicia; mas não pronunciava um som, receando
que as suas palavras, repetidas, escandalisassem o
senhor conego. Ficavam então soturnos, trocando, a
espaços, phrases molles: um baptisado que havia; o
que dissera o conego Campos; um frontal do altar
que era necessario limpar. Aquella conversa enfastiava
Amaro: sentia-se muito pouco padre, muito
[175]
distante da panellinha ecclesiastica: não o interessavam
as intriguinhas do cabido, as parcialidades
tão commentadas do senhor chantre, os roubos da
Misericordia, as turras da camara ecclesiastica com
o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal informado,
nas palestras ecclesiasticas em que tão femininamente
se deleitam os padres, e que têm a
puerilidade d'uma caturrice e a tortuosidade d'uma
conspiração.
—O vento está sul? perguntava elle emfim, bocejando.
—Sempre! respondia o coadjutor.
Accendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia
o guardachuva, e sahia com um olhar de revez
á Vicencia.
Era aquella a peor hora, a da noite, quando ficava
só. Procurava lêr, mas os livros enfastiavam-n'o:
deshabituado da leitura não comprehendia «o
sentido». Ia olhar á vidraça: a noite
estava tenebrosa,
o lagedo reluzia vagamente. Quando acabaria
aquella vida? Accendia o cigarro, e do lavatorio para
a janella recomeçava os seus passeios, com as
mãos atraz das costas. Deitava-se sem rezar ás
vezes:
e não tinha escrupulos: julgava que ter renunciado
a Amelia era já uma penitencia, não necessitava
cansar-se a lêr orações no livro;
celebrára o «seu
sacrificio»—sentia-se vagamente quite com o céo!
E continuava a viver só: o conego nunca vinha
á rua das Sousas, «porque, dizia, era casa que
só o
entrar n'ella até se lhe agoniava o estomago». E
[176]
Amaro, cada dia mais amuado, não voltára a casa
da
S. Joanneira. Escandalisára-se muito que ella não
lhe
tivesse mandado pedir para ir ás partidas da sexta-feira;
attribuira «a desfeita» á hostilidade
d'Amelia;
e, mesmo para a não vêr, trocára com o
padre Silveira
a missa do meio-dia onde ella costumava ir,
e dizia a das nove horas, furioso com aquelle novo
sacrificio!
Todas as noites Amelia, ao ouvir tocar a campainha,
tinha uma palpitação tão forte no
coração que
ficava como suffocada um momento. Depois os botins
de João Eduardo rangiam na escada, ou ella conhecia
os passos fôfos das galochas das Gansosos: apoiava-se
então às costas da cadeira, cerrando os olhos,
como na fadiga d'uma desesperança repetida. Esperava
o padre Amaro; e ás vezes, pelas dez horas,
quando já não era possível que elle
viesse, a sua
melancolia era tão pungente que se lhe entumecia a
garganta de soluços, tinha de pousar a costura, dizer:
—Vou-me deitar, estou com umas dôres de cabeça
que não paro!
Atirava-se para a cama de bruços, murmurava
n'uma agonia:
—Oh Senhora das Dôres, minha madrinha! porque
não vem elle, porque não vem elle?
Nos primeiros dias, apenas elle se fôra embora,
[177]
toda a casa lhe pareceu deshabitada e lugubre! Quando
vira no quarto d'elle os cabides sem a sua roupa,
a commoda sem os seus livros, rompeu a chorar.
Foi beijar a travesseirinha onde elle dormia,
apertou ao peito com delirio a ultima toalha a que
elle limpára as mãos! Tinha constantemente o seu
rosto presente, elle entrava sempre nos seus sonhos.
E com a separação o seu amor ardia mais forte e
mais alto, como uma fogueira que se isola.
Uma tarde, que fôra visitar uma prima enfermeira
no hospital, viu ao chegar á ponte gente parada,
embasbacada com gozo para uma rapariga de
cuia á banda e
garibaldi
escarlate, que, de punho
no ar, já rouca, praguejava contra um soldado: o
rapazola, um beirão de cara redonda e lorpa coberta
de pennugem loura, virava-lhe as costas, encolhendo
os hombros, as mãos muito enterradas nos
bolsos, rosnando:
—Não lhe fez mal, não lhe fez mal...
O snr. Vasques, com loja de panos na Arcada,
parára a olhar, descontente d'aquella «falta
d'ordem
publica».
—Algum barulho? perguntou-lhe Amelia.
—Olá, menina Amelia! Não, uma brincadeira do
soldado. Atirou-lhe um rato morto á cara, e a mulher
está a fazer aquelle espalhafato. Bebedas!
Mas a rapariga de
garibaldi vermelha
voltára-se—e
Amelia aterrada reconheceu a Joanninha Gomes,
sua amiga da mestra, que fôra amante do padre Abilio!
O padre fôra suspenso, deixára-a; ella partira
[178]
para Pombal, depois para o Porto; de miseria em
miseria voltára a Leiria, e ahi vivia n'alguma viella
ao pé do quartel, entisicando, gasta por todo um
regimento!—Que
exemplo, santo Deus, que exemplo!
E tambem ella gostava d'um padre! Tambem
ella, como outr'ora a Joanninha, chorava sobre a
sua costura quando o senhor padre Amaro não vinha!
Onde a levava aquella paixão? Á sorte da
Joanninha!
A ser a
amiga do parocho! E via-se
já apontada
a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada
por elle, com um filho nas entranhas, sem
um pedaço de pão!... E, como uma rajada de vento
que limpa n'um momento um céo ennevoado, o
terror agudo que lhe dera o encontro de Joanninha
varreu-lhe do espirito as nevoas amorosas e morbidas
em que ella se ia perdendo. Decidiu aproveitar
a separação, esquecer Amaro: lembrou-se mesmo
de apressar o seu casamento com João Eduardo para
se refugiar n'um dever dominante; durante alguns
dias forçou-se a interessar-se por elle; começou
mesmo
a bordar-lhe umas chinelas...
Mas pouco a pouco a
idéa
má que, atacada, se
encolhera e se fingira morta,—principiou lentamente
a desenroscar-se, a subir, a invadil-a! De dia, de
noite, costurando e rezando, a idéa do padre Amaro,
os seus olhos, a sua voz appareciam-lhe,
tentações
teimosas! com um encanto crescente. Que faria
elle? porque não vinha? gostava d'outra? Tinha ciumes
indefinidos, mas mordentes, que a queimavam.
E aquella paixão ia-a envolvendo como uma atmosphera
[179]
d'onde não podia sahir, que a seguia se ella
fugia, e que a fazia viver! As suas resoluções
honestas
resequiam-se, morriam como debeis florinhas
n'aquelle fogo que a percorria. Se ás vezes a
lembrança
de Joanninha ainda voltava, repellia-a com
irritação; e acolhia alvoroçadamente
todas as razões
insensatas que lhe vinham de amar o padre
Amaro! Tinha agora só uma idéa:—atirar-lhe os
braços ao pescoço e beijal-o... oh! beijal-o!
Depois,
se fosse necessario, morrer!
Começou então a impacientar-se com o amor de
João Eduardo. Achava-o «palerma».
—Que massada! pensava quando lhe sentia os
passos na escada, á noite.
Não o supportava com os seus olhos voltados
sempre para ella, a sua quinzena preta, as suas monotonas
conversas sobre o governo civil.
E idealisava Amaro! As suas noites eram sacudidas
de sonhos lubricos; de dia vivia n'uma
inquietação
de ciumes, com melancolias lugubres, que
a tornavam, como dizia a mãi, «uma môna,
que
até enraivece»!
O genio azedava-se-lhe.
—Credo, rapariga! que tens tu? exclamava a mãi.
—Não me sinto boa. Estou para ter alguma!
Andava, com effeito, amarella, perdera o appetite.
E emfim uma manhã ficou de cama com febre.
A mãi, assustada, chamou o doutor Gouvêa. O velho
pratico, depois de vêr Amelia, veio à sala de
jantar sorvendo com satisfação a sua pitada.
[180]
—Então, senhor doutor? disse a S. Joanneira.
—Case-me esta rapariga, S. Joanneira, case-me
esta rapariga. Tenho-lh'o dito tantas vezes, creatura!
—Mas, senhor doutor...
—Mas case-a por uma vez, S. Joanneira, case-a
por uma vez! repetia elle pelas escadas, arrastando
um pouco a perna direita que um rheumatismo teimoso
encolhia.
Amelia emfim melhorou—com grande alegria
de João Eduardo, que emquanto ella estivera doente
vivera n'uma afflicção, lamentando não
poder ser
seu enfermeiro, e derramando ás vezes no cartorio
uma lagrima triste sobre os papeis sellados do severo
Nunes Ferral.
No domingo seguinte, á missa das nove horas
na Sé, Amaro, ao subir para o altar, entre as devotas
que se arredavam viu de relance Amelia ao pé
da mãi, com o seu vestido de sêda preta de largos
folhos. Cerrou um momento os olhos; e mal podia
sustentar o calix com as mãos tremulas.
Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro
fez uma cruz sobre o missal, se persignou e se
voltou para a igreja dizendo
Dominus
vobiscum—a
mulher do Carlos da botica disse baixo a Amelia
«que o senhor parocho estava tão amarello, que
devia
ter alguma dôr». Amelia não respondeu,
curvada
sobre o livro, com todo o sangue nas faces. E
[181]
durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta,
a face banhada n'um extase baboso, gozou a sua
presença, as suas mãos magras erguendo a hostia,
a sua cabeça bem feita curvando-se na
adoração ritual;
uma doçura corria-lhe na pelle quando a voz
d'elle, apressada, dizia mais alto algum latim: e
quando Amaro, tendo a mão esquerda no peito e
a direita estendida, disse para a igreja o
Benedicat
vos, ella, com os olhos muito abertos, arremessou
toda a sua alma para o altar, como se elle fosse o
proprio Deus a cuja benção as cabeças
se curvavam
ao comprido da Sé, até ao fundo, onde os homens
do campo com os seus varapaus pasmavam para os
dourados do sacrario.
Á sahida da missa começára a chover; e
Amelia
e a mãi, á porta com outras senhoras, esperavam
uma «aberta».
—Ólá! por aqui!? disse de repente Amaro,
chegando-se,
muito branco.
—Estamos á espera que passe a chuva, senhor
parocho, disse a S. Joanneira voltando-se. E immediatamente,
muito reprehensiva:—E porque não tem
apparecido, senhor parocho? Realmente! Que lhe fizemos
nós? Credo, até dá que fallar...
—Muito occupado, muito occupado... balbuciou
o parocho.
—Mas um bocadinho á noite. Olhe, póde
crêr,
tem-me causado desgosto... E todos têm reparado.
Não, lá isso, senhor parocho, tem sido
ingratidão!
Amaro disse, córando:
[182]
—Pois acabou-se. Hoje á noite lá
appareço, e
estão as pazes feitas ...
Amelia, muito vermelha, para encobrir a sua
perturbação
olhava para todos os pontos o céo carregado,
como assustada do temporal.
Amaro então offereceu-lhe o seu guardachuva.
E emquanto a S. Joanneira o abria, apanhando com
cuidado o vestido de sêda, Amelia disse ao parocho:
—Até á noite, sim?—E mais baixo, olhando
em redor, com medo:—Oh, vá! Tenho estado tão
triste! tenho estado como doida! Vá, peço-lh'o
eu!
Amaro, voltando para casa, continha-se para não
correr de batina pelas ruas. Entrou no quarto, sentou-se
aos pés da cama, e alli ficou saturado de felicidade,
como um pardal muito farto n'um raio de
sol muito quente: recordava o rosto d'Amelia, a redondeza
dos seus hombros, a belleza dos encontros,
as palavras que lhe dissera:—
Tenho estado como
doida! A certeza de que «a rapariga gostava
d'elle»
entrou-lhe então na alma com a violencia de
uma rajada, e ficou a susurrar por todos os recantos
do seu sêr com um murmurio melodioso de felicidades
agitadas. E passeava pelo quarto com passadas
de covado, estendendo os braços, desejando a
posse immediata do seu corpo: sentia um orgulho
prodigioso: ia defronte do espelho altear a arca
do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso
que só o sustentasse a elle! Mal pôde jantar.
Com que impaciencia desejava a noite! A tarde clareára;
[183]
a cada momento tirava o seu «cebolão» de
prata, indo olhar á janella, com
irritação, a claridade
do dia que se arrastava devagar no horisonte.
Engraxou elle mesmo os seus sapatos, lustrou o
cabello de banha. E antes de sahir rezou cuidadosamente
o seu Breviario—porque, em presença
d'aquelle amor adquirido, viera-lhe um susto supersticioso
que Deus ou os santos escandalisados o
viessem perturbar: e não queria, com desleixos de
devoção,
dar-lhes
razão de queixa.
Ao entrar na rua d'Amelia o coração bateu-lhe
tão forte que teve de parar, suffocado; e pareceu-lhe
melodioso o piar das corujas na velha Misericordia,
que ha tantas semanas não ouvia.
Que admiração quando elle appareceu na sala de
jantar!
—Ditosos olhos que o vêem! Pensavamos que
tinha morrido! Grande milagre!...
Estava a snr.
a D. Maria da
Assumpção, as
Gansosos.
Arredaram as cadeiras com enthusiasmo para
lhe dar logar, admiral-o.
—Então que tem feito, que tem feito? E olhe
que está mais magro!
O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes
subindo ao ar. O snr. Arthur Couceiro improvisou-lhe
um
fadinho á viola:
Ora já cá temos o senhor parocho
Nos chás da S. Joanneira.
Isto já parece outra coisa,
Volta a bella cavaqueira!
[184]
Houve palmas. E a S. Joanneira, toda banhada de
riso:
—Ai, tem sido uma ingratidão d'elle!
—Uma ingratidão, diz a senhora? rosnou o conego.
Uma casmurrice, digo eu!
Amelia não fallava, com as faces abrazadas, os
olhos humidos pasmados para o padre Amaro—a
quem tinham dado a poltrona do conego, e que se
repoltreava n'ella, tumido de gozo, fazendo rir as senhoras
pelas pilherias com que contava os desleixos
da Vicencia.
João Eduardo, isolado a um canto, ia folheando
o velho album.
IX
Assim recomeçou a intimidade de Amaro na rua
da Misericordia. Jantava cedo, depois lia o seu Breviario;
e apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhava-se
no seu capote e dava volta pela Praça
passando rente da botica, onde os frequentadores
caturravam, com as mãos molles apoiadas ao cabo
dos guardachuvas. Mal avistava a janella da sala de
jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam;
mas ao toque agudo da campainha sentia ás vezes
um susto indefinido d'achar a mãi já desconfiada
ou
Amelia mais fria!... Mesmo por superstição
entrava
sempre com o pé direito.
Encontrava já as Gansosos, a D. Josepha Dias; e
o conego, que jantava agora muito com a S. Joanneira,
e que áquella hora, estirado na poltrona, findava
a sua somneca, dizia-lhe bocejando:
[186]
—Ora viva o menino bonito!
Amaro ia sentar-se ao pé d'Amelia que costurava
á mesa; o olhar penetrante que se trocavam era
todos os dias como o mutuo juramento mudo que o
seu amor crescera desde a vespera; e ás vezes mesmo,
debaixo da mesa, roçavam os joelhos com furor.
Começava então a
«cavaqueira». Eram sempre
os mesmos interessesinhos, as questões que iam na
Misericordia, o que dissera o senhor chantre, o conego
Campos que despedira a criada, o que se rosnava
da mulher do Novaes...
—Mais amor do proximo! resmungava o conego
mexendo-se na poltrona. E com um arrôto curto
tornava a cerrar as palpebras.
Então as botas de João Eduardo rangiam na escada,
e Amelia immediatamente abria a mesinha para
a partida de
manilha: os parceiros
eram a Gansoso,
D. Josepha, o parocho: e como Amaro jogava
mal, Amelia, que era
mestra,
sentava-se por detraz
d'elle para o «guiar». Logo ás primeiras
vasas havia
altercações. Então Amaro voltava o
rosto para
Amelia, tão perto que confundiam os seus halitos.
—Esta? perguntava, indicando a carta com o
olho languido.
—Não! não! espere, deixe vêr, dizia
ella, vermelha.
O seu braço roçava o hombro do parocho: Amaro
sentia o cheiro da agua de colonia que ella usava
com exagero.
Defronte, ao pé de Joaquina Gansoso, João
Eduardo,
[187]
mordicando o bigode, contemplava-a com paixão;
Amelia, para se desembaraçar d'aquelles dois
olhos langorosos fitos n'ella, tinha-lhe dito por fim
«que até era indecente, diante do parocho que era
de ceremonia, estar assim a cocal-a toda a noite».
Ás vezes mesmo dizia-lhe, rindo:
—Ó snr. João Eduardo, vá conversar
com a
mamã, senão têmol-a aqui
têmol-a a dormir.
E João Eduardo ia sentar-se ao pé da S.
Joanneira,
que, de lunetas na ponta do nariz, fazia somnolentamente
a sua meia.
Depois do chá Amelia sentava-se ao piano. Causava
então enthusiasmo em Leiria uma velha
canção
mexicana, a
Chiquita. Amaro achava-a
de appetite;
e sorria de gozo, com os seus dentes muito brancos,
apenas Amelia começava com muita languidez tropical:
Quando sali de la Habana
Valga-me Dios!...
Mas Amaro amava sobretudo a outra estrophe,
quando Amelia, com os dedos frouxos no teclado, o
busto deitado para traz, rolando os olhos ternos,
em movimentos dôces de cabeça, dizia toda
voluptuosa,
syllabando o hespanhol:
Si á tua ventana llega
Una paloma,
Trata-la com cariño,
Que es mi persona.
E como a achava graciosa, creoula, quando ella
gorgeava:
[188]
Ay chiquita que si,
Ay chiquita que no-o-o-o!
Mas as velhas reclamavam-o para continuar a
manilha, e elle ia sentar-se,
cantarolando as ultimas
notas, com o cigarro ao canto da boca, os olhos
humidos de felicidade.
Ás sextas-feiras era a grande partida. A snr.
a
D.
Maria da Assumpção apparecia sempre com o seu
bello vestido de sêda preta: e como era rica e tinha
parentela fidalga davam-lhe com deferencia o melhor
logar ao pé da mesa—que ella ia occupar, meneando
pretenciosamente os quadris, com
ruge-ruges
de sêda. Antes do chá a S. Joanneira levava-a
sempre ao seu quarto, onde guardava para ella uma
garrafa de geropiga velha: e alli as duas amigas tagarellavam
muito tempo, sentadas em cadeirinhas
baixas. Depois Arthur Couceiro, cada dia mais chupado
e mais tisico, cantava o
fado novo
que compuzera,
chamado o
Fado da
Confissão; eram quadras
feitas para regalar aquella piedosa reunião de saias
e de batinas:
Na capellinha do amor,
No fundo da sacristia,
Ao senhor padre Cupido
Confessei-me n'outro dia...
Vinha depois a confissão de peccadinhos dôces,
um acto de contrição de amor, uma penitencia
terna:
Seis beijinhos de manhã,
De tarde um abraço só...
E p'ra acalmar dôces chammas
Jejuar a pão de ló.
[189]
Aquella composição galante e devota
fôra muito
apreciada na sociedade ecclesiastica de Leiria. O senhor
chantre pedira uma cópia, e perguntára,
referindo-se
ao poeta:
—Quem é o habil Anacreonte?
E informado que era o escrevente da
administração,
fallou d'elle com tanto apreço á esposa do senhor
governador civil, que Arthur obteve a
gratificação
de oito mil reis, que havia annos implorava.
Áquellas reuniões nunca faltava o Libaninho. A
sua ultima pilheria era furtar beijos á snr.
a
D. Maria
da Assumpção; a velha escandalisava-se muito
alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revez
um olhar guloso. Depois o Libaninho desapparecia
um momento, e entrava com uma saia d'Amelia vestida,
uma touca da S. Joanneira, fingindo uma chamma
lubrica por João Eduardo—que, entre as risadas
agudas das velhas, recuava, muito escarlate. Brito e
Natario vinham ás vezes: formava-se então um
grande
quino. Amaro e Amelia ficavam sempre
juntos;
e toda a noite, com os joelhos collados, ambos vermelhos,
permaneciam vagamente entorpecidos no
mesmo desejo intenso.
Amaro sahia sempre de casa da S. Joanneira
mais apaixonado por Amelia. Ia pela rua devagar,
ruminando com gozo a sensação deliciosa que lhe
dava aquelle amor—uns certos olhares d'ella, o arfar
desejoso do seu peito, os contactos lascivos dos
joelhos e das mãos. Em casa despia-se depressa, porque
gostava de pensar n'ella, ás escuras, atabafado
[190]
nos cobertores; e ia percorrendo em imaginação,
uma a uma, as provas successivas que ella lhe dera
do seu amor, como quem vai aspirando uma e outra
flôr, até que ficava como embriagado d'orgulho:
era a rapariga mais bonita da cidade! e escolhera-o
a elle, a elle padre, o eterno excluido dos sonhos
femininos, o sêr melancollico e neutro que ronda
como um sêr suspeito á beira do sentimento!
Á sua
paixão misturava-se então um reconhecimento por
ella; e com as palpebras cerradas murmurava:
—Tão boa, coitadinha, tão boa!
Mas na sua paixão havia ás vezes grandes
impaciencias,
Quanto tinha estado, durante tres horas da
noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a voluptuosidade
que se exhalava de todos os seus movimentos,—ficava
tão carregado de desejos que necessitava
conter-se «para não fazer um disparate alli
mesmo na sala, ao pé da mãi». Mas
depois, em casa,
só, torcia os braços de desespero: queria-a alli
de repente, offerecendo-se ao seu desejo: fazia então
combinações—escrever-lhe-hia, arranjariam uma
casita
discreta para se amarem, planeariam um passeio
a alguma quinta! Mas todos aquelles meios lhe
pareciam incompletos e perigosos, ao recordar o olho
finorio da irmã do conego, as Gansosos tão
mexeriqueiras!
E diante d'aquellas difficuldades que se erguiam
como as muralhas successivas d'uma cidadella,
[191]
voltavam as antigas lamentações: não
ser livre!
não poder entrar claramente n'aquella casa, pedil-a
á mãi, possuil-a sem peccado, commodamente!
Porque
o tinham feito padre? Fôra «a velha
pêga» da
marqueza de Alegros! Elle não abdicára
voluntariamente
a virilidade do seu peito! Tinham-o impellido
para o sacerdocio como um boi para o curral!
Então, passeando excitado pelo quarto, levava as
suas accusações mais longe, contra o Celibato e a
Igreja: porque prohibia ella aos seus sacerdotes, homens
vivendo entre homens, a satisfação mais natural,
que até têm os animaes? Quem imagina que
desde que um velho bispo diz—
serás
casto—a
um homem novo e forte, o seu sangue vai subitamente
esfriar-se? e que uma palavra
latina—
accedo—dita
a tremer pelo seminarista assustado, será
o bastante para conter para sempre a rebellião formidavel
do corpo? E quem inventou isso? Um concilio
de bispos decrepitos, vindos do fundo dos seus
claustros, da paz das suas escólas, mirrados como
pergaminhos, inuteis como eunucos! Que sabiam elles
da Natureza e das suas tentações? Que viessem
alli duas, tres horas para o pé da Ameliasinha, e veriam,
sob a sua capa de santidade, começar a revoltar-se-lhe
o desejo! Tudo se illude e se evita, menos
o amor! E se elle é fatal, porque impediram
então que o padre o sinta, o realise com pureza e
com dignidade? É melhor talvez que o vá procurar
pelas viellas obscenas!—Porque a carne é fraca!
A carne! Punha-se então a pensar nos tres inimigos
[192]
da alma—
Mundo,
Diabo e
Carne. E appareciam
á sua imaginação em tres figuras
vivas: uma
mulher muito formosa; uma figura negra d'olho de
braza e pé de cabra; e o
mundo, coisa vaga e maravilhosa
(riquezas, cavallos, palacetes)—de que lhe
parecia uma personificação sufficiente o senhor
conde
de Ribamar! Mas que mal tinham elles feito á
sua alma? O diabo nunca o vira; a mulher formosa
amava-o e era a unica consolação da sua
existencia;
e do mundo, do senhor conde, só recebera
protecção,
benevolencia, tocantes apertos de mão... E como
poderia elle evitar as influencias da Carne e do
Mundo? A não ser que fugisse, como os santos d'outr'ora,
para os areaes do deserto e para a companhia
das feras! Mas não lhe diziam os seus mestres no seminario
que elle pertencia a uma Igreja militante?
O ascetismo era culpado, sendo a deserção d'um
serviço
santo.—Não comprehendia, não comprehendia!
Procurava então justificar o seu amor com exemplos
dos livros divinos. A Biblia está cheia de nupcias!
Rainhas amorosas adiantam-se nos seus vestidos recamados
de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro,
com a cabeça coberta de faxas de linho puro, arrastando
pelas pontas um cordeiro branco; os levitas
batem em discos de prata, gritam o nome de Deus;
abrem-se as portas de ferro da cidade para deixar
passar a caravana que leva os bem esposados; e as
arcas de sandalo onde vão os thesouros do dote rangem,
amarradas com cordas de purpura, sobre o dorso
dos camêlos! Os martyres no circo casam-se n'um
[193]
beijo, sob o bafo dos leões, ás
acclamações da plebe!
Jesus mesmo não vivêra sempre na sua santidade
inhumana; era frio e abstracto nas ruas de Jerusalem,
nos mercados do Bairro de David; mas lá
tinha o seu logar de ternura e de abandono em Bethania,
sob os sycomoros do Jardim de Lazaro; alli,
emquanto os magros nazarenos seus amigos bebem
o leite e conspiram á parte, elle olha defronte os
tectos dourados do templo, os soldados romanos que
jogam o disco ao pé da Porta de Ouro, os pares
amorosos que passam sob os arvoredos de Gethesemani—e
pousa a mão sobre os cabellos louros de
Martha, que ama e fia a seus pés!
O seu amor era pois uma infracção canonica,
não um peccado da alma: podia desagradar ao senhor
chantre, não a Deus: seria legitimo n'um sacerdocio
de regra mais humana. Lembrava-se de se
fazer protestante: mas onde, como? Parecia-lhe mais
extraordinariamente impossivel que transportar a velha
Sé para cima do monte do Castello.
Encolhia então os hombros, escarnecendo toda
aquella vaga argumentação interior.
«Philosophia e
palhada»! Estava doido pela rapariga,—era o positivo.
Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe
a alma... E o senhor bispo se não fosse velho
faria o mesmo, e o Papa faria o mesmo!
Eram ás vezes tres horas da manhã, e ainda
passeava no quarto, fallando só.
[194]
Quantas vezes João Eduardo, passando alta noite
pela rua das Sousas, tinha visto na janella do parocho
uma luz amortecida! Porque ultimamente João
Eduardo, como todos que têm um desgosto amoroso,
tomára o habito triste de andar até tarde pelas
ruas.
O escrevente, logo desde os primeiros tempos,
percebêra a sympathia de Amelia pelo parocho. Mas
conhecendo a sua educação e os habitos devotos da
casa, attribuia aquellas attenções quasi humildes
com Amaro ao respeito beato pela sua batina de
padre, pelos seus privilegios de confessor.
Instinctivamente porém começou a detestar Amaro.
Sempre fôra inimigo de padres! achava-os um
«perigo para a civilisação e para a
liberdade»; suppunha-os
intrigantes, com habitos de luxuria, e conspirando
sempre para restabelecer «as trevas da
meia idade»; odiava a confissão que julgava uma
arma terrivel contra a paz do lar; e tinha uma religião
vaga—hostil ao culto, ás rezas, aos jejuns,
cheia de admiração pelo Jesus poetico,
revolucionario,
amigo dos pobres, e «pelo sublime espirito de
Deus que enche todo o Universo»! Só desde que
amava Amelia é que ouvia missa, para agradar á
S. Joanneira.
E desejaria sobretudo apressar o casamento para
tirar Amelia d'aquella sociedade de beatas e padres,
[195]
receando ter mais tarde uma mulher que tremesse
do inferno, passasse horas a rezar estações na
Sé, e
se confessasse aos padres «que arrancam ás
confessadas
os segredos d'alcova»!
Quando Amaro voltára a frequentar a rua da Misericordia,
ficou contrariado. «Cá temos outra vez o
marmanjo»! pensou. Mas que desgosto, quando reparou
que Amelia tratava agora o parocho com uma
familiaridade mais terna, que a presença d'elle lhe
dava visivelmente uma animação singular,
«e que
havia uma especie de namoro»! Como ella se fazia
vermelha, mal elle entrava! Como o escutava, com
uma admiração babosa! Como arranjava sempre a
ficar ao pé d'elle nas partidas de
quino!
Uma manhã, mais inquieto, veio á rua da
Misericordia,—e
emquanto a S. Joanneira tagarellava
na cozinha, disse bruscamente a Amelia:
—Menina Amelia, sabe? Está-me a dar um grande
desgosto com essas maneiras com que trata o senhor
padre Amaro.
Ella ergueu os olhos muito espantados:
—Que maneiras?! Ora essa! então como quer
que o trate? É um amigo da casa, esteve aqui
d'hospede...
—Pois sim, pois sim...
—Ah! mas socegue. Se isso o quezila, verá. Não
me torno a chegar ao pé do homem.
João Eduardo, tranquillisado, raciocinou—que
«não havia nada». Aquelles modos eram
excessos
de beaterio. Enthusiasmo pela padraria!
[196]
Amelia decidiu então disfarçar o que lhe ia no
coração: sempre considerára o
escrevente um pouco
tapado—e se elle percebêra, que fariam as Gansosos
tão finas, e a irmã do conego que era cortida
em malicia! Por isso mal sentia Amaro na escada,
d'ahi por diante, tomava uma attitude distrahida,
muito artificial: mas, ai! apenas elle lhe fallava com
a sua voz suave ou voltava para ella aquelles olhos
negros que lhe faziam correr estremeções nos
nervos,—como
uma ligeira camada de neve que se
derrete a um sol muito forte a sua attitude fria desapparecia,
e toda a sua pessoa era uma expressão
continua de paixão. Ás vezes, absorvida no seu
enlevo,
esquecia que João Eduardo estava alli; e ficava
toda surprehendida quando ouvia a um canto da
sala a sua voz melancolica.
Ella sentia de resto que as amigas da mãi envolviam
a sua «inclinação» pelo
parocho n'uma
approvação muda e affavel. Elle era, como dizia o
conego, o menino bonito: e das maneirinhas e dos
olhares das velhas exhalava-se uma admiração por
elle que fazia ao desenvolvimento da paixão d'Amelia
uma atmosphera favoravel. D. Maria da Assumpção
dizia-lhe ás vezes ao ouvido:
—Olha para elle! É d'inspirar fervor. É a honra
do clero. Não ha outro!...
E todas ellas achavam João Eduardo «um
presta-p'ra-nada»!
Amelia então já não
disfarçava a
sua indifferença por elle: as chinelas que lhe andava
a bordar tinham ha muito desapparecido do cesto
[197]
do trabalho, e já não vinha á janella
vel-o passar
para o cartorio.
A certeza agora tinha-se estabelecido na alma
de João Eduardo—na alma, que, como elle dizia,
lhe andava mais negra que a noite.
—A rapariga gosta do padre, tinha elle concluido.
E á dôr da sua felicidade destruida juntava-se
a afflicção pela honra d'ella
ameaçada.
Uma tarde, tendo-a visto sahir da Sé, esperou-a
adiante da botica, e muito decidido:
—Eu quero-lhe fallar, menina Amelia... Isto
não póde continuar assim... Eu não
posso... A menina
traz namoro com o parocho!
Ella mordeu o beiço, toda branca:
—O senhor está a insultar-me!—E queria seguir,
indignada.
Elle reteve-a pela manga do casabeque:
—Ouça, menina Amelia. Eu não a quero insultar,
mas é que não sabe... Tenho andado, que
até
se me parte o coração!—E perdeu a voz, de
commovido.
—Não tem razão... Não tem
razão... balbuciava
ella.
—Jure-me então que não ha nada com o padre!
—Pela minha salvação!...
Não ha nada!...
Mas tambem lhe digo, se torna a fallar em tal, ou
a insultar-me, conto tudo á mamã, e o senhor
escusa
de nos voltar a casa.
—Oh, menina Amelia...
[198]
—Não podemos continuar aqui a fallar... Está
alli já a D. Michaela a cocar...
Era uma velha, que levantára a cortina de cassa
n'uma janella baixa, e espreitava com olhinhos
reluzentes e gulosos, a face toda resequida encostada
sôfregamente á vidraça. Separaram-se
então—e
a velha desconsolada deixou cahir a cortina.
Amelia n'essa noite—emquanto as senhoras discutiam
com algazarra os missionarios que então prégavam
na Barrosa—disse baixo a Amaro, picando
vivamente a costura:
—Precisamos ter cautela... Não olhe tanto para
mim nem esteja tão chegado... Já houve quem
reparasse.
Amaro recuou logo a cadeira para junto de D.
Maria da Assumpção; e, apesar da
recommendação
d'Amelia, os seus olhos não se despregavam d'ella,
n'uma interrogação muda e anciosa, já
assustado
que as desconfianças da mãi ou a malicia das
velhas
«andassem armando escandalo». Depois do
chá, no rumor das cadeiras que se accommodavam
ao
quino, perguntou-lhe rapidamente:
—Quem reparou?
—Ninguem. Eu é que tenho medo. É preciso
disfarçar.
Desde então cessaram as olhadellas dôces, os
logares
chegadinhos á mesa, os segredos; e sentiam
um gozo picante em affectar maneiras frias, tendo a
certeza vaidosa da paixão que os inflammava. Era
para Amelia delicioso—emquanto o padre Amaro
[199]
afastado tagarellava com as senhoras—adorar a sua
presença, a sua voz, as suas graças, com os olhos
castamente applicados ás chinelas do João Eduardo
que muito astutamente recomeçára a bordar.
Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o
encontrar o parocho installado alli todas as
noites, com a face próspera, a perna traçada,
gozando
a veneração das velhas. «A Ameliasinha,
sim,
agora portava-se bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel...»:
mas elle sabia que o parocho a desejava, a
«cocava»;
e apesar do juramento d'ella
pela sua
salvação,
da certeza
que não havia
nada—temia que
ella fosse lentamente penetrada por aquella
admiração
caturra das velhas, para quem o senhor parocho
era um anjo: só se
contentaria em arrancar
Amelia (já empregado no governo civil) áquella
casa
beata: mas essa felicidade tardava a chegar—e sahia
todas as noites da rua da Misericordia mais apaixonado,
com a vida estragada de ciumes, odiando
os padres, sem coragem para desistir. Era então que
se punha a andar pelas ruas até tarde; ás vezes
voltava
ainda vêr as janellas fechadas da casa d'ella;
ia depois á alameda ao pé do rio, mas o frio
ramalhar
das arvores sobre a agua negra entristecia-o
mais; vinha então ao bilhar, olhava um momento os
parceiros carambolando, o marcador, muito esguedelhado,
que bocejava encostado ao
reste. Um
cheiro
de mau petroleo suffocava. Sahia; e dirigia-se,
devagar, á redacção da
Voz do Districto.
X
O redactor da
Voz do Districto, o
Agostinho Pinheiro,
era ainda seu parente. Chamavam-lhe geralmente
o
Rachitico, por ter uma forte
corcunda no
hombro e uma figurinha enfezada d'hectico. Era extremamente
sujo; e a sua carita de femea, amarellada,
d'olhos depravados, revelava vícios antigos,
muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a
sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar:
«Se vossê não fosse um rachitico,
quebrava-lhe os
ossos»—que, vendo na sua corcunda uma
protecção
sufficiente, ganhára um descaro sereno. Era de
Lisboa, o que o tornava mais suspeito aos burguezes
sérios: attribuia-se a sua voz rouca e acre «a
fartar-lhe as campainhas»: e os seus dedos queimados
[202]
terminavam em unhas muito compridas—porque
tocava guitarra.
A
Voz do Districto fôra
creada por alguns homens,
a quem chamavam em Leiria o
grupo da
Maia, particularmente hostis ao senhor governador
civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato
do
grupo, tinha encontrado em
Agostinho, como
elle dizia, o
homem que se precisa:
o que o
grupo
precisava era um patife com orthographia, sem escrupulos,
que redigisse em linguagem sonora os insultos,
as calumnias, as allusões que elles traziam
informemente á redacção, em
apontamentos. Agostinho
era um estylista de vilezas. Davam-lhe quinze
mil reis por mez e casa de habitação na
redacção—um
terceiro andar desmantelado n'uma viella ao
pé da Praça.
Agostinho fazia o artigo de fundo, as locaes, a
Correspondencia de Lisboa; e o
bacharel Prudencio
escrevia o folhetim litterario sob o titulo de
Palestras
Leirienses: era um moço muito honrado, a
quem o snr. Agostinho era repulsivo; mas tinha
uma tal gula de publicidade, que se sujeitava a sentar-se
todos os sabbados fraternalmente á mesma
banca, a revêr as provas da sua prosa—prosa tão
florida de imagens, que se murmurava na cidade,
ao lêl-a: «
Que opulencia! Que
opulencia, Jesus!»
João Eduardo reconhecia tambem que o Agostinho
era «um trastesito»; não se atreveria a
passear
com elle de dia nas ruas; mas gostava de ir para
a redacção, alta noite, fumar cigarros, ouvir o
Agostinho
[203]
fallar de Lisboa, do tempo que lá vivêra empregado
na redacção de dois jornaes, no theatro da
rua dos Condes, n'uma casa de penhores, e em outras
instituições. Estas visitas eram
segredos!
Áquella hora da noite a sala da typographia no
primeiro andar estava fechada (o jornal tirava-se
aos sabbados); e João Eduardo encontrava em cima
Agostinho abancado, com uma velha jaqueta de
pelles cujos colchetes de prata tinham sido empenhados—ruminando,
curvado, á luz d'um medonho
candieiro de petroleo, sobre longas tiras de papel:
estava fazendo o jornal, e a sala escura em redor
tinha o aspecto d'uma caverna. João Eduardo
estirava-se no canapé de palhinha, ou indo buscar
a um canto a velha guitarra de Agostinho repenicava
o
fado corrido. O jornalista no
emtanto, com a
testa apoiada a um punho, produzia laboriosamente:
«a coisa não lhe sahia catita»: e como
nem o
fadinho o inspirava, erguia-se, ia a
um armario engulir
um copinho de genebra que gargarejava nas
fauces estanhadas, espreguiçava-se escancaradamente,
accendia o cigarro, e aproveitando o acompanhamento
cantarolava roucamente:
Ora foi o fado tyranno
Que me levou á má vida,
E a guitarra: dir-lin, din, din, dir-lin, din, don.
Na vida do negro fado
Ai!
Que me traz assim perdida...
[204]
Isto trazia-lhe sempre as recordações de Lisboa,
porque terminava por dizer, com odio:
—Que possilga de terra esta!
Não se podia consolar de viver em Leiria, de
não poder beber o seu quartilho na taberna do tio
João, á Mouraria, com a Anna alfaiata ou com o
Bigodinho—ouvindo
o João das Biscas de cigarro ao
canto da boca, o olho choroso meio fechado pelo
fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra dizendo a
morte da Sophia!
Depois, para se reconfortar com a certeza do seu
talento, lia a João Eduardo os seus artigos, muito
alto. E João interessava-se—porque essas
«producções»,
sendo ultimamente sempre «desandas ao
clero», correspondiam ás suas
preoccupações.
Era por esse tempo que, em virtude da famosa
questão da Misericordia, o doutor Godinho se
tornára
muito hostil ao cabido e «á padraria».
Sempre detestára
padres; tinha uma má doença de figado, e
como a Igreja o fazia pensar no cemiterio, odiava a
sotaina, porque lhe parecia uma ameaça da mortalha.
E Agostinho, que tinha um profundo deposito
de fel a derramar, instigado pelo doutor Godinho,
exagerava as suas verrínas: mas, com o seu fraco
litterario, cobria o vituperio de tão espessas camadas
de rhetorica que, como dizia o conego Dias,
«aquillo era ladrar, não era morder»!
Uma d'essas noites João Eduardo encontrou Agostinho
todo enthusiasmado com um artigo que compuzera
[205]
de tarde, e que lhe «sahira cheio de piadas
á Victor Hugo»!
—Tu verás! Coisa de sensação!
Como sempre, era uma declamação contra o clero
e o elogio do doutor Godinho. Depois de celebrar
as virtudes do doutor, «
esse tão
respeitavel chefe de
familia» e a sua eloquencia no tribunal que
«
arrancára
tantos desventurados ao cutelo da lei», o
artigo, tomando um tom roncante, apostrophava
Christo:—«Quem te diria a ti (bradava Agostinho),
ó immortal Crucificado! quem te diria, quando
no alto do Golgotha expiravas exangue, quem te diria
que um dia, em teu nome, á tua sombra, seria
expulso d'um estabelecimento de caridade o doutor
Godinho,—a alma mais pura, o talento mais robusto...»—E
as virtudes do doutor Godinho voltavam,
em passo de procissão, solemnes e sublimadas,
arrastando caudas de adjectivos nobres.
Depois, deixando por um momento de contemplar
o doutor Godinho, Agostinho dirigia-se directamente
a Roma:—«É no seculo XIX que vindes atirar
á face de Leiria liberal os dictames do
Syllabus!
Pois bem. Quereis a guerra? Tel-a-heis!»
—Hein, João?! dizia. Está forte! Está
philosophico!
E retomando a leitura:—«Quereis a guerra?
Tel-a-heis! Levantaremos bem alto o nosso estandarte,
que não é o da demagogia, comprehendei-o
bem! e arvorando-o, com braço firme, no mais alto
baluarte das liberdades publicas, gritaremos á face
[206]
de Leiria, á face da Europa: Filhos do seculo XIX!
ás armas! Ás armas pelo progresso!»
—Hein? Está de os enterrar!
João Eduardo, que ficára um momento calado,
disse então, levantando as suas expressões em
harmonia
com a prosa sonora de Agostinho:
—O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos
do obscurantismo!
Uma phrase tão litteraria surprehendeu o jornalista:
fitou João Eduardo, disse:
—Porque não escreves tu alguma coisa, tambem?
O escrevente respondeu, sorrindo:
—E eu, Agostinho, eu é que te escrevia uma
desanda aos padres... E eu tocava-lhes os pôdres.
Eu é que os conheço!...
Agostinho instou logo com elle para que escrevesse
a
desanda.
—Vem a calhar, menino!
O doutor Godinho ainda na vespera lhe
recommendára:—«Em
tudo que cheirar a padre, para
baixo! Havendo escandalo, conta-se! não havendo,
inventa-se!»
E Agostinho acrescentou, com benevolencia:
—E não te dê cuidado o estylo, que eu
cá o
florearei!
—Veremos, veremos, murmurou João Eduardo.
Mas d'ahi por diante Agostinho perguntava-lhe
sempre:
—E o artigo, homem? Traze-me o artigo.
[207]
Tinha avidez d'elle, porque sabendo como João
Eduardo vivia na intimidade da «panellinha canonica
da S. Joanneira» suppunha-o no segredo de infamias
especiaes.
João Eduardo, porém, hesitava. Se se viesse a
saber...?
—Qual! affirmava Agostinho. A coisa publica-se
como minha. É artigo da redacção. Quem
diabo
vai saber?
Succedeu na noite seguinte que João Eduardo
surprehendeu o padre Amaro resvalando sorrateiramente
um segredinho a Amelia—e ao outro dia appareceu
de tarde na redacção com a pallidez d'uma
noite velada, trazendo cinco largas tiras de papel,
miudamente escriptas n'uma letra de cartorio. Era
o artigo, e intitulava-se:
Os modernos
phariseus!—Depois
de algumas considerações, cheias de
flôres,
sobre Jesus e o Golgotha, o artigo de João
Eduardo era, sob allusões tão diaphanas como
teias
d'aranha, um vingativo ataque ao conego Dias, ao
padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natario!...
Todos tinham a sua
dóse,
como exclamou cheio de
jubilo o Agostinho.
—E quando sae? perguntou João Eduardo.
O Agostinho esfregou as mãos, reflectiu, disse:
—É que está forte, diabo! É como se
tivesse
os nomes proprios! Mas descansa, eu arranjarei.
Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor
Godinho—que o achou «uma catilinaria atroz». Entre
o doutor Godinho e a Igreja havia apenas um arrufo:
[208]
elle reconhecia em geral a necessidade da religião
entre as massas; sua esposa, a bella D. Candida,
era além d'isso d'inclinações devotas,
e começava
a dizer que aquella guerra do jornal ao clero
lhe causava grandes escrupulos: e o doutor Godinho
não queria provocar odios desnecessarios entre os
padres, prevendo que o seu amor da paz domestica,
os interesses da ordem e o seu dever de christão
o forçariam bem cedo a uma
reconciliação,—«muito
contra as suas opiniões, mas...»
Disse por isso a Agostinho sêccamente:
—Isto não póde ir como artigo da
redacção,
deve apparecer como communicado. Cumpra estas
ordens.
E Agostinho declarou ao escrevente—que a coisa
publicava-se como um
Communicado,
assignado:
Um liberal. Sómente
João Eduardo terminava o artigo
exclamando:—
Álerta, mães de
familia! O
Agostinho suggeriu que este final
álerta podia dar
logar á réplica
jocosa—
Álerta
está! E depois de
largas combinações decidiram-se por este
fecho:—
Cuidado,
sotainas negras!
No domingo seguinte appareceu o communicado
assignado:
Um liberal.
Durante toda essa manhã de domingo, o padre
Amaro, á volta da Sé, estivera occupado em
compôr
laboriosamente uma carta a Amelia. Impaciente,
como elle dizia, «com aquellas relações
que não andavam
[209]
nem desandavam, que era olhar e apertos de
mão e d'alli não passava»—tinha-lhe
dado uma
noite, á mesa do quino, um bilhetinho onde escrevera
com boa letra, a tinta azul:—
Desejo encontral-a
só, porque tenho muito que lhe fallar. Onde
póde ser sem inconveniente? Deus proteja o nosso
affecto. Ella não respondera:—E Amaro
despeitado,
descontente tambem por não a ter visto n'essa
manhã
á missa das nove, resolveu «pôr tudo a
claro
n'uma carta de sentimento»: e preparava os periodos
sentidos que lhe deviam ir revolver o coração,
passeando pela casa, juncando o chão de pontas de
cigarro, a cada momento curvado sobre o
Diccionario
de synonymos.
«Ameliasinha do meu coração: (escrevia
elle)
Não posso atinar com as razões maiores que a
não
deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em casa
da senhora sua mamã; pois que era pela muita
necessidade que tinha de lhe fallar a sós, e as minhas
intenções eram puras, e na innocencia d'esta alma
que tanto lhe quer e que não medita o peccado.
«Deve ter comprehendido que lhe voto um fervente
affecto, e pela sua parte me parece, (se não
me enganam esses olhos que são os pharoes da
minha vida, e como a estrella do navegante) que
tambem tu, minha Ameliasinha, tens inclinação por
quem tanto te adora; pois que até outro dia, quando
o Libano quinou com os seis primeiros numeros,
e que todos fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me
[210]
a mão por baixo da mesa com tanta ternura,
que até me pareceu que o céo se abria e
que eu sentia os anjos entoarem o Hossana! Porque
não respondeste pois? Se pensas que o nosso
affecto póde ser desagradavel aos nossos anjos da
guarda, então te direi que maior peccado commettes
trazendo-me n'esta incerteza e tortura, que até
na celebração da missa estou sempre com o pensar
em ti, e nem me deixa elevar a minha alma
no divino sacrificio. Se eu visse que este mutuo
affecto era obra do tentador, eu mesmo te diria:
oh minha bem amada filha, façamos o sacrificio a
Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou
por nós! Mas eu tenho interrogado a minha
alma e vejo n'ella a brancura dos lirios. E o teu
amor tambem é puro como a tua alma, que um
dia se unirá á minha, entre os córos
celestes, na
bemaventurança. Se tu soubesses como eu te quero,
querida Ameliasinha, que até às vezes me parece
que te podia comer aos bocadinhos! Responde
pois, e dize se não te parece que poderia arranjar-se
a vermo-nos no Morenal, pela tarde. Pois
eu anceio por te exprimir todo o fogo que me
abraza, bem como fallar-te de coisas importantes,
e sentir na minha mão a tua que eu desejo que
me guie pelo caminho do amor, até aos extases
d'uma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro,
recebe a offerta do coração do teu amante e pai
espiritual
«Amaro».
[211]
Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul,
e com ella bem dobrada no bolso da batina foi á
rua da Misericordia. Logo da escada sentiu em cima
a voz aguda de Natario, discutindo.
—Quem está por cá?—perguntou á
Ruça, que
alumiava, encolhida no seu chale.
—As senhoras todas. Está o senhor padre Brito.
—Ólá! Bella sociedade!
Galgou os degraus, e á porta da sala, com o seu
capote ainda pelos hombros, tirando alto o chapéo:
—Muito boas noites a todos, começando pelas
senhoras.
Natario, immediatamente, plantou-se diante d'elle
e exclamou:
—Então que lhe parece?
—O quê? perguntou Amaro. E reparando no silencio,
nos olhos cravados n'elle:—O que é? Alguma
coisa de novo?
—Pois não leu, senhor parocho!? exclamaram.
Não leu o
Districto!?
Era papel em que elle não puzera os olhos, disse.
Então as senhoras indignadas romperam:
—Ai! é um desafôro!
—Ai! é um escandalo, senhor parocho!
Natario, com as mãos enterradas nas algibeiras,
contemplava o parocho com um sorrisinho sarcastico,
soltando d'entre os dentes:
—Não leu! Não leu! Então que fez?
Amaro reparava, já aterrado, na pallidez d'Amelia,
[212]
nos seus olhos muito vermelhos. E emfim o conego
erguendo-se pesadamente:
—Amigo parocho, dão-nos uma desanda!...
—Ora essa! exclamou Amaro.
—Têsa!
O senhor conego, que trouxera o jornal, devia
ler alto—lembraram.
—Leia, Dias, leia, acudiu Natario. Leia, para saborearmos!
A S. Joanneira deu mais luz ao candieiro: o conego
Dias accommodou-se á mesa, desdobrou o jornal,
pôz os oculos cuidadosamente, e, com o lenço
do rapé nos joelhos, começou a leitura do
Communicado
na sua voz pachorrenta.
O principio não interessava: eram periodos enternecidos
em que o
liberal exprobrava aos
phariseus
a crucifixão de Jesus:—«Por que o matasteis?
(exclamava elle). Respondei!» E os phariseus
respondiam:—«Matamol-o porque elle era a liberdade,
a emancipação, a aurora de uma nova
era»,
etc. O
liberal então
esboçava, a largos traços, a
noite do Calvario:—«Eil-o pendente da cruz, traspassado
de lanças, a sua tunica jogada aos dados, a
plebe infrene», etc. E, voltando a dirigir-se aos
phariseus infelizes, o
liberal
gritava-lhes com ironia:—«Contemplai
a vossa bella obra!» Depois, por
uma gradação habil, o
liberal descia de Jerusalem a
Leiria:—«Mas pensam os leitores que os phariseus
morreram? Como se enganam! Vivem! conhecemol-os
[213]
nós; Leiria está cheia d'elles, e vamos
apresental-os
aos leitores...»
—Agora é que ellas começam, disse o conego
olhando para todos em redor, por cima dos oculos.
Com effeito «ellas começavam»; era,
n'uma fórma
brutal, uma galeria de photographias ecclesiasticas:
a primeira era a do padre Brito:—«Vêde-o,
(exclamava o
liberal) grosso como um
touro, montado
na sua egua castanha...»
—Até a côr da egua! murmurou com uma
indignação
piedosa a snr.
a D. Maria da
Assumpção.
«...Estupido como um melão, sem sequer saber
latim...»
O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o
padre Brito, escarlate, mexia-se na cadeira, esfregando
devagar os joelhos.
«...Especie de caceteiro», continuava o conego
que lia aquellas phrases crueis com uma tranquillidade
dôce, «desabrido de maneiras, mas que
não desgosta de se dar á ternura, e, segundo
dizem
os bem informados, escolheu para Dulcinêa a propria
e legitima esposa do seu regedor...»
O padre Brito não se dominou:
—Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se
e recahindo pesadamente na cadeira.
—Escute, homem! disse Natario.
—Qual escute! O que é, é que o racho!
Mas se elle não sabia quem era o
liberal!
—Qual
liberal! Quem eu racho
é o doutor Godinho.
[214]
O doutor Godinho é que é o dono do jornal.
O doutor Godinho é que eu racho!
A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso
grandes palmadas á côxa.
Lembraram-lhe o dever christão de perdoar as
injurias. A S. Joanneira com unção citou a
bofetada
que Jesus Christo supportou. Devia imitar Christo.
—Qual Christo, qual cabaça! gritou Brito apopletico.
Aquella impiedade creou um terror.
—Credo, senhor padre Brito, credo! exclamou
a irmã do conego recuando a cadeira.
O Libaninho, com as mãos na cabeça, vergado
sob o desastre, murmurava:
—Nossa Senhora das Dôres, que até póde
cahir
um raio!
E, vendo mesmo Amelia indignada, o padre Amaro
disse gravemente:
—Brito, realmente vossê excedeu-se.
—Pois se estão a puxar por mim!...
—Homem, ninguem puxou por vossê, disse severamente
Amaro. E com um tom pedagogo:—Apenas
lhe lembrarei, como devo, que em taes casos,
quando se diz a
blasphemia
má, o reverendo padre
Scomelli recommenda confissão geral e dois dias de
recolhimento a pão e agua.
O padre Brito resmungava.
—Bem, bem, resumiu Natario. O Brito commetteu
uma grande falta, mas saberá pedir perdão a
Deus, e a misericordia de Deus é infinita!
[215]
Houve uma pausa commovida em que se ouviu
a snr.
a D. Maria da
Assumpção murmurar
«que ficára
sem pinga de sangue»; e o conego, que durante
a catastrophe pousára os oculos sobre a mesa,
retomou-os, e continuou serenamente a leitura:
«...Conheceis um outro com cara de
furão?...»
Olhares de lado fixaram o padre Natario.
«...Desconfiai d'elle: se puder trahir-vos, não
hesita; se puder prejudicar-vos, folga: as suas intrigas
trazem o cabido n'uma confusão porque é a vibora
mais damninha da diocese, mas com tudo isso
muito dado á jardinagem, porque cultiva com cuidado
duas rosas do seu
canteiro.»
—Homem, essa! exclamou Amaro.
—É para que vossê veja, disse Natario erguendo-se
lívido. Que lhe parece? Vossê sabe que eu,
quando fallo das minhas sobrinhas, costumo dizer
as duas rosas do meu canteiro.
É um gracejo. Pois
senhores, até vem com isto!—E com um sorriso
macilento, de fel:—mas ámanhã hei de saber quem
é! Ólaré! Eu hei de saber quem
é!
—Deite ao desprezo, senhor padre Natario, deite
ao desprezo, disse a S. Joanneira pacificadora.
—Obrigado, minha senhora, acudiu Natario curvando-se
com uma ironia rancorosa—obrigado! Cá
recebi!
Mas a voz imperturbavel do conego retomára a
leitura. Agora era o retrato d'elle, traçado com odio:
«...Conego bojudo e glutão, antigo caceteiro
do senhor D. Miguel, que foi expulso da freguezia
[216]
de Ourem, outr'ora mestre de Moral n'um seminario
e hoje mestre de immoralidade em Leiria...»
—Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.
O conego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
—Vossê pensa que me dá isto cuidado? disse
elle. Boa! Tenho que comer e que beber, graças a
Deus! Deixar rosnar quem rosna!
—Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente
sempre tem o seu bocadinho de brio!
—Ora, mana! replicou o conego Dias com um
azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguem
lhe pede a sua opinião!
—Nem preciso que m'a peçam! gritou ella impertigando-se.
Sei-a dar muito bem quando quero e
como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!
—Então! então!... disseram em roda, acalmando-a.
—Menos lingua, mana, menos lingua! disse o
conego fechando os seus oculos. Olhe não lhe
cáiam
os dentes postiços!
—Seu malcriado!
Ia fallar, mas suffocou-se; e começou subitamente
a soltar
ais.
Recearam logo que lhe désse o
flato: a S. Joanneira
e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o
quarto, em baixo, amparando-a, com palavras brandas:
—Estás doida! Por quem és, filha! Olha que
escandalo!
Nossa Senhora te valha!
[217]
Amelia mandava buscar agua de flôr de laranja.
—Deixe-a lá, rosnou o conego, deixe-a lá!
Aquillo
passa-lhe. São calores!
Amelia deu um olhar triste ao padre Amaro, e
desceu ao quarto com a snr.
a D. Maria da
Assumpção
e a Gansoso surda, que iam tambem «socegar
a D. Josepha, coitadita»! Os padres agora estavam
sós; e o conego voltando-se para Amaro:—Ouça
vossê, que é a sua vez—disse retomando o jornal.
—E verá que dóse! disse Natario.
O conego escarrou, aproximou mais o candieiro,
e declamou:
«...Mas o perigo são certos padres novos e
ajanotados, parochos por influencias de condes da
capital, vivendo na intimidade das familias de bem
onde ha donzellas inexperientes, e aproveitando-se
da influencia do seu sagrado ministerio para lançar
na alma da innocente a semente de chammas criminosas!»
—Pouca vergonha! murmurou Amaro livido.
«...Dize, sacerdote de Christo, onde queres arrastar
a impolluta virgem? Queres arrastal-a aos lodaçaes
do vicio? Que vens fazer aqui ao seio d'esta
respeitavel familia? Porque rondas em volta da tua
prêsa como o milhafre em torno da innocente pomba?
Para traz, sacrilego! Murmuras-lhe seductoras
phrases, para a desviares do caminho da honra;
condemnas á desgraça e á viuvez algum
honrado
moço que lhe queira offerecer sua mão
trabalhadora;
[218]
e vaes-lhe preparando um horroroso futuro de
lagrimas. E tudo para quê? Para saciares os torpes
impulsos de tua criminosa lascivia!...»
—Que infame! rosnou com os dentes cerrados
o padre Amaro.
«...Mas acautela-te, presbytero perverso!» E
a voz do conego tinha tons cavos ao soltar aquellas
apostrophes. «Já o archanjo levanta a espada da
justiça. E sobre ti, e teus cumplices, já a
opinião
da illustrada Leiria fita seu olho imparcial. E nós
cá estamos, nós, filhos do trabalho, para vos
marcar
na fronte o estigma da infamia. Tremei, sectarios
do
Syllabus! Cuidado, sotainas
negras!»
—D'escacha! fez o conego suado, dobrando a
Voz do Districto.
O padre Amaro tinha os olhos ennevoados de
duas lagrimas de raiva: passou devagar o lenço
pela testa, soprou, disse com os beiços a tremer:
—Eu, collegas, nem sei o que hei de dizer! Pelo
Deus que me ouve, isto é a calumnia das calumnias.
—Uma calumnia infame... rosnaram.
-E a mim o que me parece, continuou Amaro,
é que nos dirijamos á auctoridade!
—É o que eu tinha dito, acudiu Natario, é
necessario
fallar ao secretario geral...
—Um cacete é que é! rugiu o padre Brito.
Auctoridade!
O que é, é rachal-o! Eu bebia-lhe o sangue!...
O conego, que meditava coçando o queixo, disse
então:
[219]
—E vossê, Natario, é que deve ir ao secretario
geral. Vossê tem lingua, tem logica.
—Se os collegas decidem, disse Natario curvando-se,
vou. E hei de lh'as cantar, á auctoridade!
Amaro ficára junto da mesa com a cabeça entre
as mãos, aniquilado. E o Libaninho murmurava:
—Ai, filhos, eu não é nada commigo, mas
só
de ouvir todo esse aranzel, até se me estão a
vergar
as pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...
Mas sentiram a voz da snr.
a Joaquina Gansoso
subindo a escada; e o conego immediatamente com
uma voz prudente:
—Collegas, o melhor, diante das senhoras, é
não se fallar mais n'isto. Bem basta o que basta.
D'ahi a momentos, apenas Amelia entrou, Amaro
ergueu-se, declarou que estava com uma forte dôr
de cabeça, e despediu-se das senhoras.
—E sem tomar chá? acudiu a S. Joanneira.
—Sim, minha senhora, disse elle embrulhando-se
no seu capote, não me estou a sentir bem. Boas
noites... E vossê, Natario, appareça
ámanhã pela Sé
á uma hora.
Apertou a mão de Amelia, que se lhe abandonou
entre os dedos passiva e molle,—e sahiu com
os hombros vergados.
A S. Joanneira notou, desconsolada:
—O senhor parocho ia muito pallido...
O conego levantou-se, e com um tom impaciente
e quezilado:
—Se ia pallido, ámanhã estará
córado. E agora
[220]
quero dizer uma coisa: esse aranzel do jornal é a
calumnia das calumnias! Eu não sei quem o escreveu,
nem para que o escreveu. Mas são tolices e
são infamias. É pateta e maroto, quem quer que
seja. O que devemos fazer já o sabemos, e como já
se tagarellou bastante sobre o caso, a senhora mande
vir o chá. E o que lá vai, lá vai,
não se falla
mais na questão.
As faces em roda continuavam contristadas.—E
então o conego acrescentou:
—Ah! e quero dizer outra coisa: como não
morreu ninguem, não ha necessidade de estar aqui
com cara de pezames. E tu, pequena, senta-te ao
instrumento e repenica-me essa
Chiquita!
O secretario geral, o snr. Gouvêa Ledesma, antigo
jornalista, e, em annos mais expansivos, auctor
do livro sentimental
Devaneios de um
sonhador, estava
então dirigindo o districto na ausencia do governador
civil.
Era um moço bacharel que passava por ter talento.
Representára de galan no theatro academico,
em Coimbra, com muito applauso; e tomára a esse
tempo o habito de passear á tarde na Sophia, com o
ar fatal com que no palco arrepellava os cabellos, ou
levava, nos transes d'amor, o lenço aos olhos. Depois
em Lisboa arruinára um pequeno patrimonio
com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Matta,
[221]
muita calça no Xafredo e perniciosas convivencias
litterarias: aos trinta annos estava pobre, saturado
de mercurio e auctor de vinte folhetins romanticos
na
Civilisação:
mas tornára-se tão popular, que era
conhecido nos lupanares e nos cafés por um cognome
carinhoso—era o
Bibi. Julgando
então que conhecia
a fundo a existencia, deixou crescer as suiças,
começou a citar Bastiat, frequentou as camaras e entrou
na carreira administrativa; chamava agora á
republica que tanto exaltára em Coimbra
uma
absurda
chimera; e Bibi era um pilar das
instituições.
Detestava Leiria, onde passava por espirituoso;
e dizia ás senhoras, nas
soirées do deputado
Novaes,—«que
estava cansado da vida». Rosnava-se
que a esposa do bom Novaes andava doida por elle:
e em verdade Bibi escrevêra a um amigo da
capital:—«emquanto
a conquistas, pouco por ora; tenho
apenas no papo a Novaesitos».
Levantava-se tarde; e n'essa manhã, de robe-de-chambre
á mesa do almoço, partia os seus ovos
quentes, lendo com saudade no jornal a narração
apaixonada d'uma pateada em S. Carlos, quando o
criado,—um gallego que trouxera de Lisboa—veio
dizer que «estava alli um cura».
—Um cura? Que entre para aqui!—E murmurou
para sua satisfação pessoal:—O Estado
não
deve fazer esperar a Igreja.
Ergueu-se, e estendeu as duas mãos ao padre
Natario que entrava, muito composto, na sua longa
batina de lustrina.
[222]
—Uma cadeira, Trindade! Toma uma chavena
de chá, senhor cura? Soberba manhã, hein? Estava
justamente pensando em v. s.
a—isto
é, estava pensando
no clero em geral... Acabava de lêr as
peregrinações
que se estão fazendo a Nossa Senhora do
Lourdes... Grande exemplo! Milhares de pessoas da
melhor roda... É realmente consolador vêr renascer
a fé... Ainda hontem eu disse em casa do Novaes:
«no fim de tudo a fé é a mola real da
sociedade».
Tome uma chavena de chá... Ah! é um grande
balsamo!...
—Não, obrigado, almocei já.
—Mas não! Quando digo um grande balsamo
refiro-me á fé, não ao chá!
Ah! ah! É boa, não?
E prolongou a sua risadinha com complacencia.
Queria agradar a Natario, pelo principio que repetia
muito, com um sorriso astuto—«que quem está
mettido na politica deve ter por si a padraria».
—E depois, acrescentou, como eu dizia hontem
em casa do Novaes, que vantagem para as localidades!
Lourdes, por exemplo, era uma aldeola; pois
com a affluencia dos devotos está uma cidade...
Grandes hoteis,
boulevards, bellas
lojas... É por
assim dizer o desenvolvimento economico, correndo
parelhas com o renascimento religioso.
E deu com satisfação um puxãosinho
grave ao
collarinho.
—Pois eu vinha aqui fallar a v. exc.
a a
respeito
d'um communicado na
Voz do
Districto.
—Ah! interrompeu o secretario geral, perfeitamente,
[223]
li! Uma famosa verrina... Mas litterariamente,
como estylo e como imagens, que miseria!
—E que tenciona v. exc.
a fazer, senhor
secretario
geral?
O snr. Gouvéa Ledesma apoiou-se nas costas da
cadeira, perguntou pasmado:
—Eu!?
Natario disse, distillando as palavras:
—A auctoridade tem o dever de proteger a religião
do Estado, e implicitamente os seus sacerdotes...
Que tenha v. exc.
a em vista, eu não
venho
aqui em nome do clero...
E acrescentou com a mão sobre o peito:
—Sou apenas um pobre padre sem influencia...
Venho, como particular, perguntar ao senhor secretario
geral se se póde permittir que caracteres respeitaveis
da Igreja diocesana sejam assim diffamados...
—É certamente lamentavel que um jornal...
Natario interrompeu, impertigando o busto com
indignação:
—Jornal que já devia estar suspenso, senhor secretario
geral!
—Suspenso!? Por quem é, senhor cura! Mas
v. s.
a decerto não quer que eu volte
aos tempos
dos corregedores-móres! Suspender o jornal! Mas
a liberdade de imprensa é um principio sagrado!
Nem as leis de imprensa o permittem... Mesmo querelar
pelo ministerio publico porque um periodico
diz duas ou tres pilherias sobre o cabido, impossivel!
[224]
Tínhamos de querelar de toda imprensa de Portugal,
com excepção da
Nação e do
Bem Publico!
Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta
annos de progresso, a propria idéa governamental?
Mas nós não somos os Cabraes, meu caro senhor!
Nós queremos luz, muitissima luz! Justamente o que
nós queremos é luz!
Natario tossiu devagarinho, disse:
—Perfeitamente. Mas então quando, pelas
eleições,
a auctoridade nos vier pedir o nosso auxilio,
nós, vendo que não encontramos n'ella
protecção,
diremos simplesmente:
Non possumus!
—E pensa o senhor cura, que por amor de alguns
votos que dão os senhores abbades, nós vamos
trahir a civilisação?
E o antigo
Bibi, tomando uma grande
attitude,
soltou esta phrase:
—Somos filhos da liberdade, não renegaremos
nossa mãi!
—Mas o doutor Godinho, que é a alma do jornal,
é opposição, observou então
Natario; proteger-lhe o
jornal é implicitamente proteger-lhe as manobras...
O secretario geral teve um sorriso:
—Meu caro senhor cura, v. s.
a não
está no
segredo
da politica. Entre o doutor Godinho e o governo
civil não ha inimizade, ha apenas um arrufo...
O doutor Godinho é uma intelligencia... Vai
reconhecendo que o
grupo da Maia
não produz
nada... O doutor Godinho aprecia a politica do governo,
e o governo aprecia o doutor Godinho.
[225]
E, rebuçando-se todo n'um mysterio d'Estado,
acrescentou:
—Coisas d'alta política, meu caro senhor.
Natario ergueu-se:
—De modo que...
—
Impossibilis est, disse o
secretario. De resto
acredite, senhor cura, que como particular revolto-me
contra o
Communicado; mas como
auctoridade
devo respeitar a expressão do pensamento...
Mas creia, e póde dizel-o a todo o clero diocesano,
a Igreja catholica não tem um filho mais fervente que
eu, Gouvêa Ledesma... Quero porém uma
religião
liberal, de harmonia com o progresso, com a sciencia...
Foram sempre as minhas idéas; préguei-as
bem alto, na imprensa, na universidade e no gremio...
Assim, por exemplo, não acho que haja poesia
maior que a poesia do christianismo! E admiro
Pio IX, uma grande figura! Sómente lamento que
elle não arvore a bandeira da
civilisação!—E o antigo
Bibi, contente da sua phrase, repetia:—Sim, lamento
que elle não arvore a bandeira da
civilisação...
O
Syllabus é impossivel
n'este seculo de electricidade,
senhor cura! E a verdade é que nós não
podemos querelar d'um jornal porque elle diz duas
ou tres pilherias sobre o sacerdocio, nem nos convém,
por altas razões de política, escandalisar o
doutor Godinho. Aqui tem o meu pensamento.
—Senhor secretario geral... disse Natario curvando-se.
—Um criado de v. s.
a Sinto que não
tome uma
[226]
chavena de chá... E como vai o nosso chantre?
—S. exc.
a n'estes ultimos dias, segundo creio,
tem tornado a soffrer de tonturas.
—Sinto. Uma intelligencia tambem! Grande latinista...
Tenha cuidado com o degrau!...
Natario correu á Sé, com um passo nervoso,
resmungando
alto de cólera. Amaro passeava devagar
no terraço, com as mãos atraz das costas: tinha
as
olheiras batidas e a face envelhecida.
—Então? disse elle, indo rapidamente ao encontro
de Natario.
—Nada!
Amaro mordeu o beiço: e emquanto Natario lhe
contava, excitado, a conversação com o secretario
geral, «e como argumentára com elle, e como o
homem tagarellára, tagarellára»,—a
face do parocho
cobria-se d'uma sombra desconsolada, e ia arrancando
raivosamente, com a ponta do guardasol,
a herva que crescia nas fendas do terraço.
—Um patarata! resumiu o padre Natario com
um grande gesto. Pela auctoridade não se faz nada.
É escusado... Mas a questão agora é
entre mim e
o
liberal, padre Amaro! Eu hei de
saber quem é,
padre Amaro! E quem o esmaga sou eu, padre Amaro,
sou eu!...
No emtanto João Eduardo desde o domingo triumphava:
o artigo fizera escandalo: tinham-se vendido
[227]oitenta numeros
avulsos do jornal, e o Agostinho
affirmára-lhe que na botica da Praça a
opinião era
«que o
liberal conhecia a
padraria a fundo e tinha
cabeça»!
—És um genio, rapaz! disse o Agostinho. É
trazer-me
outro, é trazer-me outro!
João Eduardo gozava prodigiosamente «d'aquelle
fallatorio que ia pela cidade».
Relia então o artigo com uma
deleitação paternal;
se não receasse escandalisar a S. Joanneira,
desejaria ir pelas lojas dizer bem alto—
fui eu,
eu é que o escrevi!—E já
ruminava outro, mais
terrivel, que se deveria intitular:
O diabo feito
ermita, ou
O sacerdocio de Leiria
perante o seculo
XIX!
O doutor Godinho encontrára-o na Praça, e
parára
com condescendencia, para lhe dizer:
—A coisa tem feito barulho. Vossê é o diabo!
E a piada ao padre Brito é bem jogada. Que eu não
sabia... E diz que é bonita, a mulher do regedor...
—V. exc.
a não sabia?
—Não sabia, e saboreei. Vossê é o
diabo! Eu
fui que disse ao Agostinho que publicasse a coisa
como um communicado. Vossê comprehende... Eu
não me convém ter turras de mais com o clero...
E depois lá minha esposa tem seus escrupulos...
Emfim é mulher, e é conveniente que as mulheres
tenham religião... Mas no meu fôro interior
saboreei...
Sobretudo a piada ao Brito. O patife fez-me
[228]
uma guerra dos diabos na eleição passada... Ah!
e outra coisa, o seu negocio arranja-se. Lá para o
mez que vem tem vossê o seu emprego no governo
civil.
—Oh, snr. doutor... v. exc.
a...
—Qual historia! vossê é um benemerito!
João Eduardo foi para o cartorio, tremulo d'alegria.
O snr. Nunes Ferral sahira: o escrevente aparou
devagar uma penna, começou a cópia d'uma
procuração—e de repente, agarrando o
chapéo,
correu á rua da Misericordia.
A S. Joanneira costurava só á janella; Amelia
fôra ao Morenal; e João Eduardo, logo da porta:
—Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor
Godinho. Diz que lá para o mez que vem tenho o
meu emprego...
A S. Joanneira tirou a luneta, deixou cahir as
mãos no regaço:
—Que me diz?...
—É verdade, é verdade...
E o escrevente esfregava as palmas, com risinhos
nervosos de jubilo.
—Que pechincha! exclamou. De modo que agora,
se a Ameliasinha estiver d'accordo...
—Ai, João Eduardo! fez a S. Joanneira com
um grande suspiro, que me tira um peso do
coração...
Que tenho estado... Olhe, nem tenho dormido!...
João Eduardo presentiu que ella ia fallar do
Communicado.
Foi pôr o chapéo n'uma cadeira ao canto;
[229]
e voltando á janella, com as mãos nos bolsos:
—Então porquê, porquê?
—Aquella pouca vergonha no
Districto! Que
diz vossê? Aquella calumnia! Ai! tenho-me feito
velha!
João Eduardo escrevera o artigo sob as
solicitações
do ciume, só para «enterrar» o padre
Amaro;
não previra o desgosto das duas senhoras; e
vendo agora a S. Joanneira com duas lagrimas no
branco dos olhos, sentia-se
quasi
arrependido. Disse
ambíguamente:
—Eu li, é o diabo...
Mas aproveitando o sentimento da S. Joanneira
para servir a sua paixão, acrescentou sentando-se,
chegando a cadeira para ao pé d'ella:
—Eu nunca lhe quiz fallar d'isso, D. Augusta,
mas... olhe que a Ameliasinha tratava o parocho
com muita familiaridade... E pelas Gansosos, pelo
Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo,
ia-se rosnando... Eu bem sei que ella, coitada,
não via o mal, mas... a D. Augusta sabe o
que é Leiria. Que linguas, hein!
A S. Joanneira então declarou que lhe ia fallar
como a um filho: o artigo affligira-a, sobretudo por
causa d'elle, João Eduardo. Porque emfim elle podia
acreditar tambem, desfazer o casamento, e que
desgosto! E ella podia dizer-lhe, como mulher de
bem, como mãi, que não havia entre a pequena e o
senhor parocho nada, nada, nada! Era a rapariga
que tinha aquelle genio communicativo! E o parocho
[230]
tinha boas palavras, sempre muito delicado...
Que ella sempre o dissera, o senhor padre Amaro
tinha maneiras que tocavam o coração...
—Decerto, disse João Eduardo mordendo o bigode,
com a cabeça baixa.
A S. Joanneira então poz a mão de leve sobre o
joelho do escrevente, e fitando-o:
—E olhe, não sei se me fica mal dizer-lh'o, mas
a rapariga quer-lhe devéras, João Eduardo.
O coração do escrevente teve uma
palpitação
commovida.
—E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixão que
eu tenho por ella... E lá do artigo que me importa
a mim!
Então a S. Joanneira limpou os olhos ao avental
branco. Ai! era uma alegria para ella! Ella sempre
o dissera, como rapaz de bem, não havia outro na
cidade de Leiria!
—Vossê sabe, quero-lhe como filho!
O escrevente enterneceu-se:
—Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do
mundo...
E erguendo-se, com uma solemnidade engraçada:
—snr.
a D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir
a mão...
Ella riu-se—e na sua alegria João Eduardo
beijou-a na testa, filialmente.
—E falle á noite á Ameliasinha, disse ao sahir.
Eu venho ámanhã, e felicidade não ha
de faltar...
[231]
—Louvado seja Nosso Senhor! acrescentou a
S. Joanneira retomando a sua costura, com um suspiro
de muito allivio.
Apenas n'essa tarde Amelia voltou do Morenal,
a S. Joanneira, que estava pondo a mesa, disse-lhe:
—Esteve ahi o João Eduardo...
—Ah!...
—Ahi esteve a fallar, coitado...
Amelia, calada, dobrava a sua manta de lã.
—Ahi esteve a queixar-se... continuou a mãi.
—Mas de quê? perguntou ella muito vermelha.
—Ora de quê! Que se fallava muito na cidade
do artigo do
Districto; que se
perguntava a quem
alludia o periodico com as
donzellas
inexperientes,
e que a resposta era: «Quem ha de ser? a Amelia
da S. Joanneira, da rua da Misericordia!» O pobre
João diz que tem andado tão desgostoso!...
Não se
atrevia, por delicadeza, a fallar-te... Emfim...
—Mas que hei de eu fazer, minha mãi? exclamou
Amelia com os olhos subitamente cheios de lagrimas
áquellas palavras que cahiam sobre os seus
tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.
—Eu digo-te isto para teu governo. Faze o que
quizeres, filha. Eu bem sei que são calumnias! Mas
tu sabes o que são linguas do mundo... O que te
posso dizer é que o rapaz não acreditou no
periodico.
Que era isso que me dava cuidado!... Credo!
tirou-me o somno... Mas não, diz que não lhe
importa
o artigo, que te quer da mesma maneira, e está
a arder por que se faça o casamento... E eu por
[232]
mim o que fazia, para calar toda essa gente, era
casar-me já. Eu bem sei que tu não morres por
elle,
bem sei. Deixa lá! Isso vem depois. O João
é bom
rapaz, vai ter o emprego...
—Vai ter o emprego!?
—Pois foi o que elle me veio dizer tambem...
Esteve com o doutor Godinho, diz que lá para o fim
do mez está empregado... Emfim tu fazes o que
entenderes... Que olha que eu estou velha, filha,
posso faltar-te d'um momento para o outro...
Amelia não respondeu, olhando de frente no telhado
voarem os pardaes—menos desassocegados,
n'aquelle instante, que os seus pensamentos.
Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a
donzella inexperiente a que alludia
o
Communicado
era ella, Amelia, e torturava-a o vexame de vêr assim
o seu amor publicado no jornal. Depois (como
ella pensava, mordendo o beiço n'uma raiva muda,
com os olhos afogados de lagrimas), aquillo vinha
estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria
com
risinhos perversos:—«Então a Ameliasita da S.
Joanneira mettida com o parocho, hein?» Decerto o
senhor chantre, tão severo em «coisas de
mulheres,»
reprehenderia o padre Amaro... E por alguns
olhares, alguns apertos de mão, ahi estava a sua
reputação estragada, estragado o seu amor!
[233]
Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe
sentir pelas costas risinhos a escarnecel-a; no aceno
que lhe fez da porta da botica o respeitavel Carlos
julgou vêr uma seccura reprehensível; á
volta
encontrára o Marques da loja de ferragens, que
não
lhe tirou o chapéo, e ao entrar em casa julgava-se
desacreditada—esquecendo que o bom Marques era
tão curto da vista que usava na loja duas lunetas
sobrepostas.
—Que hei de eu fazer? que hei de eu fazer?
murmurava, às vezes, com as mãos apertadas na
cabeça. O seu cerebro de devota apenas lhe fornecia
soluções devotas—entrar n'um recolhimento, fazer
uma promessa a Nossa Senhora das Dôres «para
que a livrasse d'aquelle apuro», ir confessar-se ao
padre Silverio... E terminava por se vir sentar resignadamente
ao pé da mãi com a sua costura, considerando,
muito enternecida, que desde pequena
fôra sempre bem infeliz!
A mãi não lhe fallára claramente sobre
o
Communicado;
tivera apenas palavras ambíguas:
—É uma pouca vergonha... É deitar ao desprezo...
Quando a gente tem a sua consciencia socegada,
o mais historias...
Mas Amelia via-lhe bem o desgosto—na face
envelhecida, nos tristes silencios, nos suspiros repentinos
quando fazia meia á janella com a luneta
na ponta do nariz: e então mais se convencia que
havia «grande fallatorio na cidade», de que a
mãi,
coitada, estava informada pelas Gansosos e pela D.
[234]
Josepha Dias—cuja boca produzia o mexerico mais
naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!
E então o seu amor pelo parocho, que até ahi,
n'aquella reunião de saias e batinas da rua da Misericordia
se lhe afigurára natural, agora, julgando-o
reprovado pelas pessoas que desde pequena
fora acostumada a respeitar—os Guedes, os Marques,
os Vazes,—apparecia-lhe já monstruoso: assim
as côres d'um retrato pintado á luz d'azeite, e
que á luz d'azeite parecem justas, tomam tons falsos
e disformes quando lhes cae em cima a luz do
sol. E quasi estimava que o padre Amaro não tivesse
voltado á rua da Misericordia.
No emtanto, com que anciedade esperava todas
as noites o seu toque de campainha! Mas elle não
vinha; e aquella ausencia, que a sua razão julgava
prudente, dava ao seu coração o desespero d'uma
traição. Na quarta-feira á noite
não se conteve, disse,
córando sobre a sua costura:
—Que será feito do senhor parocho?
O conego, que na sua poltrona parecia dormitar,
tossiu grosso, mexeu-se, rosnou:
—Mais que fazer... E escusam de esperar por
elle tão cedo!...
E Amelia, que ficára branca como a cal, teve
immediatamente a certeza que o parocho, aterrado
com o escandalo do jornal, aconselhado pelos padres
timoratos zelosos «do bom nome do clero»—tratava
de se descartar d'ella! Mas, cautelosa, diante
das amigas da mãi, escondeu o seu desespero: foi
[235]
mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurkas tão
estrondosas—que
o conego, tornando a mexer-se na
poltrona, grunhiu:
—Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!
Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A
sua paixão pelo parocho flammejava mais irritada; e
todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal uma allusão
n'um jornal o picára, ficára a tremer na sua
batina, apavorado, não se atrevendo sequer a visital-a—sem
se lembrar que tambem ella se via diminuida
na sua reputação, sem ser satisfeita no seu
amor! E fôra elle que a tentára com as suas
palavrinhas
dôces, as suas denguices! Infame!... Desejava
violentamente apertal-o ao coração—e
esbofeteal-o.
Teve a idéa insensata de ir ao outro dia
à rua das Sousas atirar-se-lhe aos braços,
installar-se-lhe
no quarto, fazer um escandalo que o obrigasse
a fugir da diocese... Porque não? Eram novos,
eram robustos, poderiam viver longe, n'outra
cidade—e a sua imaginação começou a
repastar-se
logo hystericamente nas perspectivas deliciosas d'essa
existencia, em que se figurava constantemente
a dar-lhe beijos! Através da sua intensa
excitação,
aquelle plano parecia-lhe muito pratico, muito facil:
fugiriam para o Algarve; lá, elle deixaria crescer o
cabello (que mais bonito seria então!) e ninguem saberia
que era um padre; poderia ensinar latim, ella
coseria para fóra; e viveriam n'uma casinha—onde
o que mais a attrahia era o leito com as duas travesseirinhas
[236]
chegadas... E a unica difficuldade que
via em todo este plano radiante era fazer sahir de
casa, às escondidas da mãi, o bahú com
a sua roupa!—Mas
quando acordou, essas resoluções morbidas,
á luz clara do dia, desfizeram-se como sombras:
tudo aquillo lhe parecia agora tão impraticavel,
e elle tão separado d'ella, como se entre
a rua da Misericordia e a rua das Sousas se erguessem
inaccessivelmente todas as montanhas da terra.
Ai, o senhor parocho abandonára-a, era certo! Não
queria perder os lucros da sua parochia nem a estima
dos seus superiores!... Pobre d'ella! Considerou-se
então para sempre infeliz e desinteressada
da vida. Guardou, todavia, muito intenso o desejo
de se vingar do padre Amaro.
Foi então que reflectiu, pela primeira vez, que
João Eduardo desde a publicação do
Communicado
não apparecera na rua da Misericordia. Tambem
me volta as costas—pensou com amargura. Mas
que lhe importava! No meio da afflicção que lhe
dava
o abandono do padre Amaro, a perda do amor do
escrevente, piegas e pesado, que lhe não trazia utilidade
nem prazer, era uma contrariedade imperceptivel:
uma infelicidade viera que lhe arrebatava
bruscamente todas as affeições—a que lhe enchia
a alma e a que apenas lhe acariciava a vaidadesinha:
e irritava-a, sim, não sentir já o amor do
escrevente collado a suas saias, com a docilidade
d'um cão—mas todas as suas lagrimas eram para o
senhor parocho, «que já não queria
saber d'ella»!
[237]
Só lamentava a deserção de
João Eduardo, porque
perdia assim um meio sempre prompto de fazer enraivecer
o padre Amaro...
Por isso n'essa tarde á janella, calada, olhando
no telhado defronte voarem os pardaes—depois de
saber que João Eduardo, certo do emprego, viera
fallar emfim á mãi,—pensava com
satisfação no desespero
do parocho ao vêr publicados na Sé os banhos
do seu casamento. Depois as palavras muito
praticas da S. Joanneira trabalhavam-lhe silenciosamente
n'alma: o emprego do governo civil rendia
25$000 reis mensaes; casando, reentrava logo na
sua respeitabilidade de senhora; e se a mãi morresse,
com o ordenado do homem e com o rendimento
do Morenal, podia viver com decencia, ir mesmo no
verão aos banhos... E via-se já na Vieira, muito
comprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez
a do governador civil.
—Que lhe parece, minha mãi?—perguntou
bruscamente. Estava decidida pelas vantagens que
entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava
ser persuadida e forçada.
—Eu ia pelo seguro, filha—foi a resposta da
S. Joanneira.
—É sempre o melhor—murmurou Amelia entrando
no quarto. E sentou-se muito triste aos pés
da cama, porque a melancolia que lhe dava o crepusculo
[238]
tornava-lhe agora mais pungente a saudade
«dos seus bons tempos com o senhor parocho».
N'essa noite choveu muito, as duas senhoras
passaram sós. A S. Joanneira, repousada agora das
suas inquietações, estava muito somnolenta, a
cada
momento cabeceava com a meia cahida no regaço.
Amelia então pousava a costura, e com o cotovêlo
sobre a mesa, fazendo girar o
abat-jour verde do
candieiro, pensava no seu casamento: o João Eduardo
era bom rapaz, coitado; realisava o typo de marido
tão estimado na pequena burguezia—não era
feio e tinha um emprego; decerto o offerecimento
da sua mão, apesar das infamias do jornal, não
lhe
parecia, como a mãi dissera, «um rasgo de
mão
cheia»; mas a sua dedicação
lisonjeava-a, depois
do abandono tão cobarde de Amaro: e havia dois
annos que o pobre João gostava d'ella... Começou
então laboriosamente a lembrar tudo o que n'elle
lhe agradava—o seu ar sério, os seus dentes muito
brancos, a sua roupa aceada.
Fóra ventava forte, e a chuva, fustigando friamente
as vidraças, dava-lhe appetites de confortos,
um bom lume, o marido ao lado, o pequerrucho a
dormir no berço—porque seria um rapaz, chamar-se-hia
Carlos e teria os olhos negros do padre
Amaro. O padre Amaro!... Depois de casada, decerto,
tornaria a encontrar o senhor padre Amaro...
E então uma idéa atravessou todo o seu
sêr, fêl-a
erguer bruscamente, ir por instincto procurar a escuridão
da janella para occultar a vermelhidão do
[239]
rosto. Oh! isso não, isso não! Era
horrível!... Mas
a idéa implacavelmente apoderára-se d'ella como
um braço muito forte que a suffocava e lhe dava
uma agonia deliciosa. E então o antigo amor, que o
despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo
da_sua alma, rompeu, inundou-a: murmurou repetidamente,
com paixão, torcendo as mãos, o nome
d'Amaro: desejou avidamente os seus beijos—oh!
adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo tinha acabado!
E devia casar, pobre d'ella!... Então á janella,
com a face contra a escuridão da noite, choramingou
baixinho.
Ao chá a S. Joanneira disse-lhe, de repente:
-Pois a coisa a fazer-se, filha, devia ser já...
Era começar o enxoval, e se fosse possivel casar-te
para o fim do mez.
Ella não respondeu—mas a sua
imaginação alvoroçou-se
áquellas palavras. Casada d'ahi a um
mez, ella! Apesar de João Eduardo lhe ser indifferente,
a idéa d'aquelle rapaz, novo e apaixonado,
que ia viver com ella, dormir com ella, deu uma
perturbação a todo o seu sêr.
E quando a mãi ia descer ao quarto disse-lhe:
—Que lhe parece, minha mãi? Eu está-me a
custar entrar em explicações com o
João Eduardo,
dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...
—Tambem acho, filha, escreve-lhe... A
Ruça
leva a carta pela manhã... Uma carta bonita, e que
agrade ao rapaz.
[240]
Amelia ficou na sala de jantar até tarde fazendo
o rascunho da carta. Dizia:
«Snr. João Eduardo,
«A mamã cá me pôz ao facto da
conversação
que teve comsigo. E se a sua affeição
é verdadeira,
como creio e me tem dado muitas provas, eu
estou pelo que se decidiu com muito boa vontade,
pois conhece os meus sentimentos. E a respeito
d'enxoval e papeis, ámanhã se fallará,
pois que o
esperamos para o chá. A mamã está
muito contente
e eu desejo que tudo seja para nossa felicidade,
como espero ha de ser, com a ajuda de
Deus. A mamã recommenda-se e eu sou
a que muito lhe quer,
«Amelia
Caminha».
Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco
espalhadas diante d'ella deram-lhe o desejo d'escrever
ao padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe o
seu amor, com a mesma penna, molhada na mesma
tinta, com que aceitava por marido o
outro?...
Accusal-o da sua cobardia, mostrar o seu desgosto—era
humilhar-se! E, apesar de não ter motivo
para lhe escrever, a sua mão ia traçando com gozo
as primeiras palavras
«Meu adorado
Amaro...»
Deteve-se, considerando que não tinha por quem
[241]
mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em
silencio, para sempre!... Separarem-se porquê?—pensou.
Depois de casada podia bem vêr o senhor
padre Amaro. E a mesma idéa voltava, subtilmente,
mas n'uma fórma tão honesta agora, que a
não repellia:
decerto, o senhor padre Amaro podia ser o
seu confessor; era em toda a christandade a pessoa
que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a
sua consciencia; haveria então entre elles uma troca
deliciosa e constante de confidencias, de dôces
admoestações; todos os sabbados iria receber ao
confessionario, na luz dos seus olhos e no som das
suas palavras, uma provisão de felicidade; e aquillo
seria casto, muito picante, e para gloria de Deus.
Sentiu-se quasi satisfeita com a impressão, que
não definia bem, d'uma existencia em que a carne
estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria
os encantos d'uma devoção amorosa. Tudo vinha
a calhar bem, por fim... E d'ahi a pouco dormia
serenamente, sonhando que estava na
sua casa, com
o
seu marido, e que jogava a manilha
com as velhas
amigas, no meio do contentamento de toda a
Sé, sentada nos joelhos do senhor parocho.
Ao outro dia a
Ruça levou
a carta a João Eduardo,
e toda a manhã as duas senhoras, costurando á
janella, fallaram do casamento. Amelia não se queria
separar da mãi, e, como a casa tinha
accommodações,
os noivos viveriam no primeiro andar, e a
S. Joanneira dormiria no quarto em cima; decerto
o senhor conego ajudaria para o enxoval; podiam
[242]
ir passar a lua de mel para a fazenda da D. Maria.
E Amelia áquellas perspectivas felizes fazia-se toda
escarlate, sob o olhar da mãi que, de luneta na
ponta do nariz, a admirava babosa.
Ás Ave-Marias a S. Joanneira fechou-se em baixo
no seu quarto a rezar a sua corôa, e deixou Amelia
só «para se entender com o
rapaz».—D'ahi
a pouco, com effeito, João Eduardo bateu á
campainha.
Vinha muito nervoso, de luvas pretas, enfrascado
em agua de colonia. Quando chegou á porta
da sala de jantar não havia luz, e a bonita fórma
d'Amelia destacava de pé, junto á claridade da
vidraça.
Elle pôz o chale-manta a um canto como costumava,
e vindo para ella que ficára immovel, disse-lhe,
esfregando muito as mãos:
—Lá recebi a cartinha, menina Amelia...
—Eu mandei-a pela
Ruça
logo pela manhã para
o pilhar em casa, disse ella immediatamente com
as faces a arder.
—Eu ia para o cartorio, até já ia na escada...
Haviam de ser nove horas...
—Haviam de ser... disse ella.
Calaram-se, muito perturbados. Elle então tomou-lhe
delicadamente os pulsos, e baixo:
—Então sempre quer?
—Quero, murmurou Amelia.
—E o mais depressa possivel, hein?
—Pois sim...
Elle suspirou, muito feliz.
—Havemos de nos dar muito bem, havemos de
[243]
nos dar muito bem! dizia. E as suas mãos, com
pressões
ternas, iam-se apoderando dos braços d'ella,
dos pulsos aos cotovêlos.
—A mamã diz que podemos viver juntos, disse
ella, esforçando-se por fallar tranquillamente.
—Está claro, e eu vou mandar fazer lençoes,
acudiu elle, todo alterado.
Attrahiu-a então a si, subitamente, beijou-lhe os
labios; ella teve um soluçosinho, abandonou-se-lhe
entre os braços, toda fraca, toda languida.
—Oh, filha! murmurava o escrevente.
Mas os sapatos da mãi rangeram na escada, e
Amelia foi vivamente para o aparador accender o
candieiro.
A S. Joanneira parou á porta; e para dar a sua
primeira approvação maternal, disse, com
bonhomia:
—Então vossês estão aqui ás
escuras, filhos?
Foi o conego Dias que participou ao padre Amaro
o casamento d'Amelia, uma manhã, na Sé. Fallou
no «a proposito do enlace», e acrescentou:
—Eu estimo, porque é a contento da rapariga,
e é um descanso para a pobre velha...
—Está claro, está claro...—murmurou Amaro
que se fizera muito branco.
O conego pigarreou grosso, e ajuntou:
—E vossê agora appareça por lá, agora
está
[244]
tudo na ordem... A patifaria do jornal isso pertence
á historia... O que lá vai, lá vai!
—Está claro, está claro...—rosnou Amaro.
Traçou bruscamente a capa, sahiu da igreja.
Ia indignado; e continha-se, para não praguejar
alto, pelas ruas. Á esquina da viella das Sousas quasi
esbarrou com Natario, que o agarrou logo pela
manga, para lhe soprar ao ouvido:
—Ainda não sei nada!
—De quê?
—Do
liberal, do
Communicado. Mas trabalho,
trabalho!
Amaro, que anciava por desabafar, disse logo:
—Então ouviu a novidade? O casamento d'Amelia...
Que lhe parece?
—Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz
apanhou o emprego... Foi o doutor Godinho...
É outro que tal!... Veja vossê esta corja: o
doutor
Godinho no jornal ás bulhas com o governo civil, e
o governo civil a atirar postas aos afilhados do doutor
Godinho... Vá lá entendel-os! Isto é
um paiz de
biltres!
—Diz que grande alegrão na casa da S. Joanneira!—disse
o parocho, com um azedume negro.
—Que se divirtam! Eu não tenho tempo de lá
ir... Eu não tenho tempo para nada!... Eu cá ando
no meu fito, saber quem é o
liberal e escachal-o!
Não posso vêr esta gente que leva a chicotada,
coça-se,
e curva a orelha. Eu cá não! eu guardo-as!—E,
[245]
com uma contracção de rancor que lhe curvou
os dedos em garra e lhe encolheu o peito magro.
disse por entre os dentes cerrados:—Eu, quando
odeio, odeio bem!
Esteve um momento calado, gozando o sabôr do
seu fel.
—Vossê se fôr á rua da Misericordia
dê lá os
parabens a essa gente...—E acrescentou com os
olhinhos em Amaro:—O palerma do escrevente
leva a rapariga mais bonita da cidade! Vai encher
o papo!
—Até á vista! exclamou bruscamente Amaro,
abalando pela rua furioso.
Depois d'aquelle terrivel domingo em que apparecera
o
Communicado, o padre Amaro, ao
principio,
muito egoistamente, apenas se preoccupára
com as consequências—«consequencias fataes, santo
Deus!»—que lhe podia trazer o escandalo. Hein!
se pela cidade se espalhasse que era elle o
padre
ajanotado
que o
liberal apostrophava! Viveu
dois dias
aterrado, tremendo de vêr apparecer o padre Saldanha,
com a sua cara ameninada e voz melliflua,
a dizer-lhe «que sua excellencia o senhor chantre
reclamava a sua presença»! Passava já o
tempo preparando
explicações, respostas habeis, lisonjas a sua
excellencia.—Mas quando viu que, apesar da violencia
do artigo, sua excellencia parecia disposto «a
fazer a vista grossa», occupou-se então, mais
tranquillo,
dos interesses do seu amor tão violentamente
perturbados. O medo tornava-o astucioso; e
[246]
decidiu não voltar algum tempo á rua da
Misericordia.
—Deixar passar o aguaceiro, pensou.
Ao fim de quinze dias, tres semanas, quando o
artigo estivesse esquecido, appareceria de novo em
casa da S. Joanneira: deixaria vêr bem á rapariga
que a adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade,
as conversasinhas baixas, os logarzinhos
chegados ao quino; depois, pela D. Maria da
Assumpção,
pela D. Josepha Dias, obteria que Amelia deixasse
o padre Silverio, e se confessasse a elle: poderiam
então entender-se, no segredo do confessionario:
combinariam uma conducta discreta, encontros cautelosos
aqui e além, cartinhas pela criada: e aquelle
amor assim conduzido, com prudenciasinha, não
teria o perigo de apparecer uma manhã annunciado
no periodico! E regosijava-se já da habilidade d'esta
combinação, quando lhe vinha o grande
choque—casava-se
a rapariga!
Depois dos primeiros desesperos, desabafados em
patadas no soalho e blasphemias de que pedia logo
perdão a Nosso Senhor Jesus Christo, quiz serenar,
estabelecer a razão das coisas. Aonde o levava aquella
paixão? Ao escandalo. E assim, casada ella, cada
um entrava no seu destino legitimo e sensato—ella
na sua familia, elle na sua parochia. Depois, quando
se encontrassem, um comprimento amavel; e elle
poderia passear a cidade com a sua cabeça bem direita,
sem medo dos ápartes da Arcada, das
insinuações
da gazeta, das severidades de sua excellencia
[247]
e das picadinhas da consciencia! E a sua vida seria
feliz.—Não, por Deus! a sua vida não poderia ser
feliz sem ella! Tirado á sua existencia aquelle interesse
das visitas à rua da Misericordia, os apertosinhos
de mão, a esperança de delicias melhores—que
lhe restava a elle? Vegetar, como um dos tortolhos
nos cantos humidos do adro da Sé! E ella,
ella que o entontecera com os seus olhinhos e as suas
maneirinhas, voltava-lhe as costas mal lhe apparecia
outro, bom para marido, com 25$000 reis por mez!
Todos aquelles suspiros, aquellas mudanças de
côr—chalaça!
Mangára com o senhor parocho!...
O que a odiava!—menos que o outro porém,
o outro que triumphava porque era um homem, tinha
a sua liberdade, o seu cabello todo, o seu bigode,
um braço livre para lhe dar na rua! Repastava
então a imaginação rancorosamente nas
visões
de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a da
igreja triumphantemente; via-o beijando-lhe o pescoço
e o peito... E a estas idéas dava patadas furiosas
no soalho—que assustavam a Vicencia na cozinha.
Depois procurava socegar, retomar a direcção das
suas faculdades, applical-as todas a achar uma vingança,
uma boa vingança! E voltava então o antigo
desespero de não viver no tempo da
inquisição, e
com uma denuncia de irreligião ou de feiticeria,
mandal-os ambos para um carcere. Ah! n'esse tempo
um padre gozava! Mas agora, com os senhores
liberaes, tinha de vêr aquelle miseravel escrevente a
[248]
seis vintens por dia apoderar-se-lhe da rapariga—e
elle, sacerdote instruido, que podia ser bispo, que
podia ser Papa, tinha de vergar os hombros e ruminar
solitariamente o seu despeito! Ah! se as
maldições
de Deus tinham algum valor—malditos fossem
elles! Quereria vêl-os cheios de filhos, sem pão
na
prateleira, com o ultimo cobertor empenhado, resequidos
de fome, injuriando-se,—e elle a rir-se, elle
a regalar-se!...
Na segunda-feira não se conteve, foi á rua da
Misericordia. A S. Joanneira estava em baixo na saleta
com o conego Dias. E apenas viu Amaro:
—Oh, senhor parocho! bem apparecido! Estava
a fallar em v. s.
a! Já estranhava
não o vermos,
agora que ha alegria em casa.
—Já sei, já sei, murmurou Amaro pallido.
—Alguma vez havia de ser, disse o conego jovialmente.
Deus os faça felizes e lhes dê poucos filhos,
que a carne está cara.
Amaro sorriu—escutando em cima o piano.
Era Amelia que tocava como outr'ora a valsa
dos
Dois Mundos; e João
Eduardo, muito chegado
a ella, voltava as folhas da musica.
—Quem entrou,
Ruça?
gritou ella sentindo os
passos da rapariga nas escadas.
—O senhor padre Amaro.
Um fluxo de sangue abrazou-lhe o rosto—e o
[249]
coração batia-lhe tão forte, que ficou
um momento
com os dedos immoveis sobre o teclado.
—Não se precisava cá do senhor padre Amaro,
rosnou João Eduardo por entre dentes.
Amelia mordeu o beiço. Teve odio ao escrevente:
n'um instante repugnou-lhe a sua voz, os seus
modos, a sua figura de pé junto d'ella: pensou com
deleite como depois de casada (já que tinha de casar)
se confessaria toda ao padre Amaro, e não deixaria
de o amar! Não sentia n'aquelle momento escrupulos;
e quasi desejava que o escrevente lhe
visse no rosto a paixão que a revolvia.
—Credo, creatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco
mais para lá, que nem me deixa os braços livres
para tocar!
Terminou bruscamente a valsa dos
Dois
Mundos,
começou a cantar o
Adeus:
Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditosa vivi a teu lado!
A sua voz elevava-se, com uma modulação
ardente,—dirigindo
o canto, através do soalho, ao
coração do parocho, em baixo.
E o parocho, com a sua bengala entre os joelhos,
sentado no canapé, devorava todos os tons da
voz d'ella—emquanto a S. Joanneira tagarellava,
contando as peças de algodão que
comprára para
lençoes, os arranjos que ia fazer no quarto dos noivos,
e as vantagens de viverem juntos...
—Uma felicidade por ahi além, interrompeu o
[250]
conego erguendo-se pesadamente. E vamos lá para
cima, que isto de noivos não se querem sós...
—Ah, lá n'isso, disse a S. Joanneira rindo, fio-me
n'elle, que é homem de bem ás direitas.
Amaro, ao subir a escada, tremia—e, mal entrou
na sala, o rosto d'Amelia, alumiado pelas luzes
do piano, deu-lhe um deslumbramento, como se as
vesperas do noivado a tivessem embellezado e a
separação lh'a tornasse mais appetitosa. Foi
dar-lhe
gravemente um aperto de mão, outro ao escrevente,
disse baixo, sem os olhar:
—Os meus parabens... Os meus parabens...
Voltou as costas, e foi conversar com o conego
que se enterrára na sua poltrona queixando-se
d'enfastiamento
e reclamando o chá.
Amelia ficára como abstracta, correndo inconscientemente
os dedos pelo teclado. Aquelle modo
do padre Amaro confirmava a sua idéa: queria a todo
o custo descartar-se d'ella, o ingrato! fazia «como
se nada tivesse havido», o villão! Na sua cobardia
de padre, com o terror do senhor chantre, do jornal,
da Arcada, de tudo,—sacudia-a da sua imaginação,
do seu coração, da sua vida, como se sacode
um insecto que tem peçonha!... Então, para o
enraivecer,
começou a cochichar ternamente com o escrevente;
roçava-se-lhe pelo hombro, rendida, com
risinhos, segredinhos; tentaram, em alarido jovial,
tocar uma peça a quatro mãos; depois ella
beliscou-o,
elle deu um gritinho exagerado.—E a S. Joanneira
contemplava-os babosa, emquanto o conego dormitava
[251]
já, e o padre Amaro, abandonado a um canto
como outr'ora o escrevente, ia folheando o velho album.
Mas um brusco repique da campainha veio sobresaltal-os
todos: passos rapidos galgaram a escada,
pararam em baixo na saleta: e a
Ruça appareceu
dizendo «que era o senhor padre Natario, que
não desejava subir, e queria dar uma palavra ao
senhor conego».
—Fracas horas para embaixadas, rosnou o conego,
arrancando-se com custo ao fundo confortavel
da poltrona.
Amelia fechou logo o piano—e a S. Joanneira
pousando a meia foi em bicos de pés escutar ao alto
da escada: fóra ventava forte, e para os lados da
Praça afastava-se o toque de retreta.
Emfim a voz do conego chamou, de baixo, da
porta da saleta:
—Ó Amaro!
—Padre-Mestre?
—Venha cá, homem. E diga á senhora que
póde
vir tambem.
A S. Joanneira desceu logo, muito assustada:
Amaro imaginava que o padre Natario emfim descobrira
o
liberal!
A saleta parecia muito fria com a luz pequenina
da vela sobre a mesa: e na parede, n'um velho
painel muito escuro—que ultimamente o conego
dera á S. Joanneira—destacava uma face livida de
monge e um osso frontal de caveira.
[252]
O conego Dias accommodára-se ao canto do canapé,
sorvendo reflectidamente a pitada; e Natario,
que se agitava pela sala, exclamou logo:
—Boas noites, senhora! Olá, Amaro! Trago novidades!...
Não quiz subir porque imaginei que estaria
o escrevente, e estas coisas são cá para
nós.
Estava a começar a dizer ao collega Dias... Tive
lá
em casa o padre Saldanha. Temol-as boas!
O padre Saldanha era o confidente do senhor
chantre. E o padre Amaro, já inquieto, perguntou:
—Coisa que nos toca?
Natario começou com solemnidade erguendo alto
o braço:
—
Primo: o collega Brito mudado da
freguezia
d'Amor para ao pé d'Alcobaça, para a serra, para
o
inferno...
—Que me diz!? exclamou a S. Joanneira.
—Obras do
liberal, minha senhora! O
nosso digno
chantre levou-lhe tempo a meditar o
Communicado
do
Districto, mas por fim sahiu-se!
O pobre
Brito lá vai esfogueteado!...
—Sempre é o que se dizia da mulher do regedor...
murmurou a boa senhora.
—Ólá! interrompeu severamente o conego.
Então,
senhora, então! Isto aqui não é casa
de murmuração!...
Siga com o seu recado, collega Natario.
—
Secundo, continuou Natario:
é o que eu ia
dizer ao collega Dias... O senhor chantre, em vista
do
Communicado e d'outros ataques da
imprensa,
está decidido a «reformar os costumes do clero
diocesano»,
[253]
palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam
summamente os conciliabulos de ecclesiasticos
e de senhoras... Que quer saber o que é isso
de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas...
Emfim, palavras textuaes de sua
excellencia—
está
decidido a limpar as cavalhariças
d'Augias!...—o
que quer dizer em bom portuguez, minha senhora,
que vai andar tudo n'uma roda-viva.
Houve uma pausa consternada. E Natario, plantado
no meio da saleta com as mãos enterradas nas
algibeiras, exclamou:
—Que lhes parece esta á ultima hora, hein?
O conego ergueu-se pachorrentamente:
—Olhe, collega, disse, entre mortos e feridos ha
de escapar alguem... E a senhora não se fique ahi
com essa cara de
Mater-dolorosa, e
mande servir o
chá, que é o importante.
—Eu lá disse ao padre Saldanha...—começou
Natario perorando.
Mas o conego interrompeu-o com força:
—O padre Saldanha é um patarata!... Vamos
nós ás torradinhas, e lá em cima,
diante dos rapazes,
caluda.
O chá foi silencioso. O conego, a cada bocado
de torrada, respirava affrontado, franzia muito o sobr'olho;
a S. Joanneira, depois de fallar da D. Maria
da Assumpção que estava mal do catarrho, ficou
toda murcha, com a testa sobre o punho; Natario,
a grandes passadas, fazia uma ventania na sala
com as abas do casacão.
[254]
—E quando vem essa boda? exclamou elle, estacando
subitamente diante d'Amelia e do escrevente;
que tomavam o chá sobre o piano.
—Um dia cedo, respondeu ella sorrindo.
Amaro então ergueu-se devagar, e tirando o seu
cebolão:
—São horas de me ir chegando á rua das Sousas,
minhas senhoras, disse com uma voz desalentada.
Mas a S. Joanneira não consentiu. Credo, estavam
todos mônos como se estivessem de pêzames!...
Que fizessem um quino para espairecer...—O
conego porém, sahindo do seu torpor, disse
com severidade:
—Está a senhora muito enganada, ninguem está
môno. Não ha razões senão
para estar alegre. Pois
não é verdade, senhor noivo?
João Eduardo mexeu-se, sorriu:
—Eu cá por mim, senhor conego, não tenho
razão
senão para estar feliz.
—Pois está claro, disse o conego. E agora Deus
lhes dê boas noites a todos, que eu vou
quinar para
valle de lençoes. E o Amaro tambem.
Amaro foi apertar silenciosamente a mão d'Amelia,—e
os tres padres desceram calados.
Na saleta a vela ainda ardia com um murrão. O
conego entrou a buscar o seu guardachuva; e então,
chamando os outros, cerrando devagarinho a
porta, disse-lhes baixo:
—Eu, collegas, não quiz assustar ha pouco a
[255]
pobre senhora, mas essas coisas do chantre, esses
fallatorios... É o diabo!
—É ter cautelinha, meninos! aconselhou Natario,
abafando a voz.
—É sério, é sério,
murmurou lugubremente o
padre Amaro.
Estavam de pé no meio da saleta. Fóra o vento
uivava: a luz da vela agitada fazia alternadamente
destacar e reentrar na sombra do quadro o osso
frontal da caveira: e em cima Amelia cantarolava a
Chiquita.
Amaro recordava outras noites felizes em que
elle, triumphante e sem cuidados, fazia rir as senhoras,—e
Amelia, gorgeando
Ai chiquita que
si,
revirava-lhe olhares rendidos...
—Eu, disse o conego, os collegas sabem, tenho
que comer e beber, não me importa... Mas é
necessario
manter a honra da classe!
—E não carece duvida, acrescentou Natario, que
se ha outro artigo e mais fallatorios, estala com certeza
o raio...
—Olha o pobre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado
para a serra!...
Em cima decerto houve alguma graça, porque
sentiram as risadas do escrevente.
Amaro rosnou com rancor:
—Grande galhofa, lá em cima!...
Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento
bateu a face de Natario d'uma chuva miudinha.
—Olha que noite! exclamou furioso.
[256]
Só o conego tinha guardachuva; e abrindo-o devagar:
—Pois meninos, não ha que vêr, estamos em
calças pardas...
Da janella de cima, alumiada, sahiam os sons do
piano, nos acompanhamentos da
Chiquita. O conego
soprava, agarrando fortemente o guardachuva contra
o vento; ao lado Natario, cheio de fel, rilhava
os dentes, encolhido no seu casacão; Amaro caminhava
de cabeça cahida, n'um abatimento de derrota;
e emquanto os tres padres, assim agachados
sob o guardachuva do conego, iam chapinhando as
poças pela rua tenebrosa, por traz a chuva penetrante
e sonora ia-os ironicamente fustigando!
XII
D'ahi a dias, os frequentadores da botica, na
Praça, viram com espanto o padre Natario e o doutor
Godinho conversando em harmonia, á porta da
loja de ferragens do Guedes. O recebedor,—que
era escutado com deferencia em questões de politica
estrangeira—observou-os com attenção
através
da porta vidrada da pharmacia, e declarou com um
tom profundo «que não se admiraria mais se visse
Victor Manoel e Pio IX passearem de braço dado»!
O cirurgião da camara porém não
estranhava
aquelle «commercio d'amizade».—Segundo elle o
ultimo artigo da
Voz do Districto,
evidentemente escripto
pelo doutor Godinho, (era o seu estylo incisivo,
[258]
cheio de logica, atulhado d'erudição!) mostrava
que a gente da Maia se queria ir aproximando da
gente da Misericordia. O doutor Godinho (na expressão
do cirurgião da camara) fazia tagatés ao governo
civil e ao clero diocesano: a ultima phrase do
artigo era significativa—«não seremos
nós que regatearemos
ao clero os meios de exercer proficuamente
a sua divina missão!»
A verdade era (como observou um individuo
obeso, o amigo Pimenta) que, se não havia ainda
paz, já havia negociações—porque na
vespera elle
vira, com aquelles seus olhos que a terra tinha de
comer, o padre Natario sahindo de manhã muito cedo
da redacção da
Voz do
Districto!
—Oh, amigo Pimenta, essa é fabricada!
O amigo Pimenta ergueu-se com magestade, deu
um puxão grave ao cós das calças, e ia
indignar-se—quando
o recebedor acudiu:
—Não, não, o amigo Pimenta tem razão.
A verdade
é que eu n'outro dia vi o patife do Agostinho
fazer grande barretada ao padre Natario. E que o
Natario traz intriga na mão, isso é seguro! Eu
gósto
d'observar as pessoas... Pois senhores, o Natario, que
nunca apparecia aqui na Arcada, agora vejo-o sempre
ahi com o nariz pelas lojas... Depois a grande
amizade com o padre Silverio... Hão de reparar que
são ambos certos ahi na Praça ás
Ave-Marias... E é
negocio com a gente do doutor Godinho... O padre
Silverio é o confessor da mulher do Godinho... Umas
coisas pegam com as outras!
[259]
Era muito commentada, com effeito, a nova amizade
do padre Natario com o padre Silverio. Havia
cinco annos tinha occorrido na sacristia da Sé, entre
os dois ecclesiasticos, uma questão escandalosa:
Natario correra até de guardachuva erguido para o
padre Silverio, quando o bom conego Sarmento, banhado
em lagrimas, o reteve pela batina, gritando:—«Oh,
collega, que é a perdição da
religião»! Desde
então Natario e Silverio não fallavam—com
desgosto de Silverio, um bonacheirão, d'uma obesidade
hydropica, que, segundo diziam as suas confessadas,
«era todo affeição e
perdão». Mas Natario,
sêcco e pequeno, tinha tenacidade no rancor. Quando
o snr. chantre Valladares começou a governar o
bispado, chamou-os, e, depois de lhes lembrar com
eloquencia a necessidade «de manter a paz na
Igreja»,
de lhes recordar o exemplo tocante de Castor e
Pollux, empurrou Natario com uma brandura grave
para os braços do padre Silverio—que o teve um
momento sepultado na vastidão do peito e do estomago,
murmurando todo commovido:
—Todos somos irmãos, todos somos irmãos!
Mas Natario, cuja natureza dura e grosseira nunca
perdia, como o papelão, as dobras que tomava,
conservou com o padre Silverio um tom amuado:
na Sé ou na rua, resvalando junto d'elle com um
geito brusco do pescoço, rosnava apenas:
Senhor
padre Silverio, ás ordens!
Havia porém duas semanas, uma tarde de chuva
Natario fizera repentinamente uma visita ao padre
[260]
Silverio—sob pretexto que «o pilhàra alli uma
pancada d'agua, e que se vinha recolher um instante».
—E tambem, acrescentou, para lhe pedir a sua
receita para a dôr d'ouvidos, que uma das minhas
sobrinhas, coitada, está como doida, collega!
O bom Silverio, esquecendo decerto que ainda
n'essa manhã vira as duas sobrinhas de Natario
sãs
e satisfeitas como dois pardaes, apressou-se a escrever
a receita, todo feliz de utilisar os seus queridos
estudos de medicina caseira; e murmurava, banhado
de riso:
—Ora que alegria, collega, vêl-o aqui de novo
n'esta sua casa!
A reconciliação foi tão publica—que o
cunhado
do senhor barão de Via-Clara, bacharel de grandes
dotes poeticos, lhe dedicou uma d'aquellas satyras
que elle intitulava
Ferrões, que iam
manuscriptas de
casa em casa, muito saboreadas e muito temidas;
e chamára a composição, tendo presente
decerto a
figura dos dois sacerdotes:
Famosa
reconciliação
do Macaco e da Baleia! Era com effeito frequente,
agora, vêr a pequena figura de Natario gesticulando
e saltitando ao lado do vulto enorme e pachorrento
do padre Silverio.
Uma manhã mesmo os empregados da
administração
(que era então no largo da Sé) gozaram muito,
observando da sacada os dois padres que passeavam
no terraço, ao tepido sol de maio. O senhor
administrador,—que passáva as horas da
repartição
[261]
namorando com um binoculo, por traz da vidraça
do seu gabinete, a esposa do Telles
alfaiate—começára
subitamente a dar gargalhadas á janella:
o escrivão Borges correu logo, de penna na mão,
á varanda, a vêr de que ria sua senhoria, e, muito
divertido, a fungar, chamou á pressa o Arthur Couceiro
que estava copiando, para estudar á guitarra,
uma canção da
Grinalda: o amanuense Pires, severo
e digno, aproximou-se, carregando para a orelha
o seu barretinho de sêda, com horror ás correntes
d'ar; e em grupo, d'olho arregalado, observavam
os dois padres, que tinham parado á esquina da
igreja. Natario parecia excitado: procurava decerto
persuadir, abalar o padre Silverio; e em bicos de
pés, plantado diante d'elle, agitava phreneticamente
as mãos muito magras. Depois, subitamente, apoderou-se-lhe
do braço, arrastou-o ao comprido do terraço
lageado: ao fundo parou, recuou, fez um gesto
largo e desolado, como attestando a perdição
possivel
d'elle, da Sé ao lado, da cidade, do universo
em redor; o bom Silverio, com os olhos muito abertos,
parecia apavorado. E recomeçaram a passear.
Mas Natario exaltava-se: dava recuões bruscos, atirava
estocadas com um longo dedo ao vasto estomago
de Silverio, batia patadas furiosas nas lages
polidas; e de repente, de braços pendentes, mostrava-se
acabrunhado. Então o bom Silverio fallou um
momento com a mão espalmada sobre o peito; immediatamente,
a face biliosa de Natario illuminou-se;
pulou, bateu no hombro do collega palmadinhas
[262]
de muito jubilo,—e os dois sacerdotes entraram na
Sé, chegados e rindo baixinho.
—Que patuscos! disse o escrivão Borges, que
detestava sotainas.
—Aquillo tudo é a respeito do jornal, disse Arthur
Couceiro, vindo retomar o seu trabalho lyrico.
O Natario não socega emquanto não souber quem
escreveu o
Communicado; disse-o elle
em casa da
S. Joanneira... E a coisa pelo Silverio vai bem, que
é o confessor da mulher do Godinho.
—Corja! rosnou o Borges com nojo. E continuou
pachorrentamente o officio que compunha, remettendo
para Alcobaça um preso—que ao fundo da saleta,
entre dois soldados, esperava sobre um banco,
prostrado e embrutecido, com uma face de fome e
as mãos em ferros.
D'ahi a dias tinha havido na Sé o Officio de corpo
presente pelo rico proprietario Moraes, que morrera
d'um aneurisma, e a quem sua esposa (em penitencia
decerto dos desgostos que lhe dera com a
sua affeição desordenada por tenentes
d'infanteria)
estava fazendo, como se disse, «exequias de pessoa
real».—Amaro desvestira-se, e na sacristia, á luz
d'um velho candieiro de latão, escrevia assentos
atrazados, quando a porta de carvalho rangeu, e a
voz agitada de Natario disse:
—Ó Amaro, vossê está ahi?
[263]
—Que temos?
O padre Natario fechou a porta, e atirando os
braços para o ar:
—Grande novidade, é o escrevente!
—Que escrevente?
—O João Eduardo! É elle! É o
liberal! Foi elle
que escreveu o
Communicado!
—Que me diz vossê!?—fez Amaro attonito.
—Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escripto
pela letra d'elle. O que se chama
vêr! Cinco
tiras de papel!
Amaro, com os olhos esgazeados, fitava Natario.
—Custou! exclamou Natario. Custou, mas soube-se
tudo! Cinco tiras de papel! E quer escrever
outro! O senhor João Eduardo! O nosso rico amigo
senhor João Eduardo!
—Vossê está certo d'isso?
—Se estou certo!... Estou a dizer-lhe que vi,
homem!
—E como soube vossê, Natario?
Natario dobrou-se; e com a cabeça enterrada
nos hombros, arrastando as palavras:
—Ah, collega, lá isso... Os
comos e os
porquês...
Vossê comprehende...
Sigillus
magnus!
E com uma voz aguda de triumpho, a largos
passos pela sacristia:
—Mas ainda isto não é nada! O senhor Eduardo
que nós viamos alli na casa da S. Joanneira, tão
bom
mocinho, é um patife antigo! É o intimo do
Agostinho,
o bandido da
Voz do Districto!
Está mettido na
[264]
redacção até altas horas da noite...
Uma orgia, vinhaça,
mulheres... E gaba-se de ser atheu... Ha
seis annos que se não confessa... Chama-nos a
canalha
canonica... É republicano... Uma fera, meu
caro senhor, uma fera!
Amaro, escutando Natario, arrumava atarantadamente,
com as mãos tremulas, papeis no gavetão da
escrivaninha.
—E agora?... perguntou.
—Agora? exclamou Natario. Agora é esmagal-o!
Amaro fechou o gavetão, e muito nervoso, passando
o lenço pelos labios seccos:
—Uma assim, uma assim! E a pobre rapariga,
coitada... Casar agora com um homem d'esses... Um
perdido!
Os dois padres, então, olharam-se fixamente. No
silencio, o velho relogio da sacristia punha o seu
tic-tac plangente. Natario tirou da
algibeira dos calções
a caixa do rapé, e com os olhos ainda fixos em
Amaro, a pitada nos dedos, disse sorrindo friamente:
—Desmanchar-lhe o casamentosinho, hein?
—Vossê acha? perguntou sôffregamente Amaro.
—Caro collega, é uma questão de consciencia...
Para mim era uma questão de dever! Não se
póde
deixar casar a pobre pequena com um bréjeiro, um
pedreiro-livre, um atheu...
—Com effeito! com effeito! murmurava Amaro.
—Vem a calhar, hein? fez Natario; e sorveu
com gozo a pitada.
Mas o sacristão entrou; eram as horas de fechar
[265]
a igreja; vinha perguntar se suas senhorias se demoravam.
—Um instante, snr. Domingos.
E, emquanto o sacristão corria os pesados ferrolhos
da porta interior do pateo, os dois padres muito
chegados fallavam baixo.
—Vossê vai ter com a S. Joanneira, dizia Natario.
Não, escute, é melhor que lhe falle o Dias; o
Dias
é que deve fallar á S. Joanneira. Vamos pelo
seguro.
Vossê falle á pequena e diga-lhe simplesmente
que o ponha fóra de casa!—E ao ouvido de Amaro:—Diga
á rapariga que elle vive ahi de casa e
pucarinho com uma desavergonhada!
—Homem! disse Amaro recuando, não sei se
isso é verdade!
—Ha de ser. Elle é capaz de tudo. E depois é
um meio de levar a pequena...
E foram descendo a igreja atraz do sacristão,
que fazia tilintar o seu mólho de chaves, pigarreando
grosso.
Nas capellas pendiam as armações de paninho negro
agaloadas de prata; ao centro, entre quatro fortes
tocheiras de grosso murrão, estava a eça, com o
largo pano de velludilho cobrindo o caixão do Moraes,
recahindo em pregas franjadas; á cabeceira tinha
uma larga corôa de perpetuas; e aos pés pendia,
d'um grande laço de fita escarlate, o seu habito
de cavalleiro de Christo.
O padre Natario então parou; e tomando o braço
d'Amaro com satisfação:
[266]
—E depois, meu caro amigo, tenho outra preparada
ao cavalheiro...
—O quê?
—Cortar-lhe os víveres!
—Cortar-lhe os víveres!?
—O pateta estava para ser empregado no governo
civil, primeiro amanuense, hein? Pois vou-lhe
desmanchar o arranjinho!... E o Nunes Ferral que é
dos meus, homem de boas idéas, vai pôl-o
fóra do
cartorio... E que escreva então
Communicados!
Amaro teve horror áquella intriga rancorosa:
—Deus me perdôe, Natario, mas isso é perder
o rapaz...
—Emquanto o não vir por essas ruas a pedir
um bocado de pão, não o largo, padre Amaro,
não
o largo!
—Oh, Natario! oh, collega! Isso é de pouca caridade...
Isso não é de christão... E
então aqui que
Deus está a ouvil-o...
—Não lhe dê isso cuidado, meu caro amigo...
Deus serve-se assim, não é a resmungar
Padre-nossos.
Para impíos não ha caridade! A
inquisição
atacava-os pelo fogo, não me parece mau atacal-os
pela fome. Tudo é permittido a quem serve uma
causa santa... Que se não mettesse commigo!
Iam a sahir; mas Natario deitou um olhar para o
caixão do morto, e apontando com o guarda-chuva:
—Quem está alli?
—O Moraes, disse Amaro.
—O gordo, picado das bexigas?
[267]
—Sim.
—Boa bêsta!
E depois d'um silencio:
—Foram os Officios do Moraes... Eu nem dei
por isso, occupado cá na minha campanha... E a
viuva fica rica. É generosa, é presenteadora...
Quem
a confessa é o Silverio, hein? Tem as melhores pechinchas
de Leiria, aquelle elephante!
Sahíram. A botica do Carlos estava fechada, o
céo muito escuro.
No largo, Natario parou:
—Resumindo: o Dias falla á S. Joanneira, e
vossê falla á pequena. Eu por mim me entenderei
com a gente do governo civil e com o Nunes Ferral.
Encarreguem-se vossês do casamento, que eu
me encarrego do emprego!—E batendo no hombro
do parocho jovialmente:—É o que se póde dizer
atacal-o pelo coração e pelo estomago! E
adeusinho,
que as pequenas estão á espera para a ceia!
Coitadita, a Rosa tem estado com um defluxo!... É
fraquita, aquella rapariga, dá-me muito cuidado...
Que eu em a vendo murcha até perco logo o somno.
Que quer vossê? Quando se tem bom
coração...—Até
ámanhã, Amaro.
—Até ámanhã, Natario.
E os dois padres separaram-se, quando davam
nove horas na Sé.
[268]
Amaro entrou em casa ainda um pouco tremulo,
mas muito decidido, muito feliz: tinha um dever
delicioso a cumprir! E dizia alto, com passos graves
pela casa, para se compenetrar bem d'essa responsabilidade
estimada:
—É do meu dever! É do meu dever!
Como christão, como parocho, como amigo da
S. Joanneira o
seu dever era
procurar Amelia, e,
com simplicidade, sem paixão interessada, contar-lhe
que fôra João Eduardo, o seu noivo, que escrevera
o
Communicado.
Foi elle! Diffamou os íntimos da casa, sacerdotes
de sciencia e de posição; desacreditou-a a ella;
passa as noites em deboche na possilga do Agostinho;
insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligião;
ha seis annos que se não confessa! Como
diz o collega Natario, é uma fera! Pobre menina!
Não, não podia casar com um homem que lhe
impediria
a
vida perfeita, lhe achincalharia
as boas
crenças! Não a deixaria rezar, nem jejuar, nem
procurar
no confessor a direcção salutar, e, como diz o
santo padre Chrysostomo, «amadureceria a sua alma
para o inferno»! Elle não era seu pai, nem seu
tutor;
mas era parocho, era pastor:—e se a não
subtrahisse áquelle destino heretico pelos seus conselhos
graves, pela influencia da mãi e das amigas,—seria
[269]
como aquelle que tem a guarda d'um rebanho
n'uma herdade, e abre indignamente a cancella
ao lobo! Não, a Ameliasinha não havia de casar
com o
atheu!
E o seu coração então batia forte sob
a effusão
d'aquella esperança. Não, o outro não
a possuiria!
Quando viesse a apoderar-se legalmente d'aquella
cinta, d'aquelles peitos, d'aquelles olhos, d'aquella
Ameliasinha,—elle, parocho, lá estava para lhe dizer
alto:
Para traz, seu canalha! isto aqui é
de Deus!
E tomaria então bem cuidado em guiar a pequena
á salvação! Agora o
Communicado estava esquecido,
o senhor chantre tranquillisado: d'ahi a dias
poderia voltar sem susto á rua da Misericordia,
recomeçar
os deliciosos serões—apoderar-se de novo
d'aquella alma, formal-a para o paraiso...
E aquillo, Jesus! não era uma intriga para a arrancar
ao noivo: os seus motivos (e dizia-o alto,
para se convencer melhor) eram muito rectos, muito
puros: aquillo era um trabalho santo para a arrancar
ao inferno: elle não a queria para si, queria-a
para Deus!...
Casualmente, sim, os
seus interesses
de amante coincidiam com os seus deveres de sacerdote.
Mas se ella fosse vesga e feia e tola, elle iria
igualmente à rua da Misericordia, em serviço do
céo,
desmascarar o snr. João Eduardo, diffamador e atheu!
E, socegado por esta argumentação, deitou-se
tranquillamente.
Mas toda a noite sonhou com Amelia. Tinha fugido
com ella: e ia-a levando por uma estrada que
[270]
conduzia ao céo! O diabo perseguia-o; elle via-o,
com as feições de João Eduardo,
soprando e rasgando
com os cornos os delicados seios das nuvens. E
elle escondia Amelia no seu capote de padre, devorando-a
por baixo de beijos! Mas a estrada do céo não
findava.—«Onde é a porta do paraiso?»
perguntava
elle a anjos de cabelleiras d'ouro que passavam,
n'um dôce rumor de azas, levando almas nos braços.
E todos lhe respondiam:—«Na rua da Misericordia,
na rua da Misericordia numero nove!» Amaro sentia-se
perdido: um vasto ether côr de leite, penetravel
e macio como uma pennugem d'ave, envolvia-o,
e elle procurava debalde uma taboleta de hospedaria!
Por vezes resvalava junto d'elle um globo reluzente
d'onde sahia o rumor d'uma creação; ou um
esquadrão d'archanjos, com couraças de diamantes,
erguendo alto espadas de fogo, galopavam n'um
rhythmo nobre...
Amelia tinha fome, tinha frio. «Paciencia, paciencia,
meu amor!» dizia-lhe elle. Caminhando, vieram
a encontrar uma figura branca, que tinha na
mão uma palma verde. «Onde está Deus,
nosso pai?»
perguntou-lhe Amaro, com Amelia conchegada ao
peito. A figura disse:—«Eu fui um confessor, e sou
um santo: os seculos passam, e immutavelmente,
sempiternamente sustento na mão esta palma e banha-me
um extase igual! Nenhuma tinta modifica
esta luz para sempre branca; nenhuma sensação
sacode
o meu sêr para sempre immaculado; e immobilisado
na bemaventurança, sinto a monotonia do
[271]
céo pesar-me como uma capa de bronze. Oh! pudesse
eu caminhar a passos largos nas torpezas differentes
da terra—ou bracejar, sob as variedades da dôr,
nas chammas do purgatorio!»
Amaro murmurou: «Bem fazemos nós em
peccar!»—Mas
Amelia desfallecia fatigada. «Durmamos,
meu amor!» E, deitados, viam estrellas fluctuando
n'uma poeirada como o joio sacudido vivamente do
crivo. Então nuvens começaram a
dispôr-se em torno
d'elles, em pregas de cortinados, dando um perfume
de
sachets; Amaro pousou a sua
mão sobre o
peito d'Amelia: um enleio muito dôce enervava-os:
enlaçaram-se, os seus labios pegavam-se humidos e
quentes:—«Oh, Ameliasinha!» murmurava
elle.—«Amo-te,
Amaro, amo-te!» suspirava ella.—Mas de
repente as nuvens afastaram-se como os cortinados
d'um leito; e Amaro viu diante o diabo que os alcançara,
e que, com as garras na cinta, esgaçava a
boca n'uma risada muda. Com elle estava outro
personagem: era velho como a substancia; nos anneis
dos seus cabellos vegetavam florestas; a sua
pupilla tinha a vastidão azul d'um oceano; e nos dedos
abertos, com que cofiava a barba infindavel, caminhavam,
como em estradas, filas de raças humanas.—«Aqui
estão os dois sujeitos», dizia-lhe o diabo
retorcendo a cauda.—E por traz Amaro via agglomerarem-se
legiões de santos e de santas. Reconheceu
S. Sebastião com as suas settas cravadas; Santa
Cecilia trazendo na mão o seu orgão; por entre
elles
sentia balarem os rebanhos de S. João; e no meio
[272]
erguia-se o bom gigante S. Christovão apoiado ao
seu pinheiro. Espreitavam, cochichavam! Amaro não
se podia desenlaçar de Amelia, que chorava muito
baixo; os seus corpos estavam sobrenaturalmente
collados; e Amaro, afflicto, via que as saias d'ella
levantadas descobriam os seus joelhos brancos.—«Aqui
estão os dois sujeitos», dizia o diabo ao
velho personagem, «e repare o meu prezado amigo,
porque todos aqui somos apreciadores, que a pequena
tem bonitas pernas!» Santos vetustos alçaram-se
sôfregamente em bicos de pés, estendendo
pescoços
onde se viam cicatrizes de martyrios: e as onze
mil virgens bateram o vôo como pombas espavoridas!
Então o personagem, esfregando as mãos d'onde
se esfarelavam universos, disse grave: «Fico inteirado,
meu caro amigo, fico inteirado! Com que,
senhor parocho, vai-se á rua da Misericordia, arruina-se
a felicidade do snr. João Eduardo (um cavalheiro),
arranca-se a Ameliasinha á mamã, e vem-se saciar
concupiscencias reprimidas a um cantinho da
Eternidade? Eu estou velho—está rouca esta voz
que outr'ora tão sabiamente discursava pelos valles.
Mas pensa que me assombra o senhor conde de Ribamar,
seu protector, apesar de ser um pilar da Igreja
e uma columna da Ordem? Pharaó era um grande rei—e
eu afoguei-o, e os seus principes captivos, os
seus thesouros, os seus carros de guerra, e as manadas
dos seus escravos! Eu cá sou assim! E se os
senhores ecclesiasticos continuarem a escandalisar
Leiria—eu ainda sei queimar uma cidade como um
[273]
papel inutil, e ainda me resta agua para diluvios!»
E voltando-se para dois anjos armados de espadas e
lanças, o personagem bradou: «Chumbem uma grilheta
aos pés do padre, e levem-no ao abysmo numero
sete!» E o diabo gania: «Ahi estão as
consequencias,
senhor padre Amaro!» Elle sentiu-se arrebatado
de sobre o seio d'Amelia por mãos de braza;
e ia luctar, bradar contra o juiz que o julgava—quando
um sol prodigioso que vinha nascendo do
Oriente bateu no rosto do personagem, e Amaro,
com um grito, reconheceu o Padre Eterno!
Acordou banhado em suor. Um raio de sol entrava
pela janella.
N'essa noite João Eduardo, indo da Praça para
casa da S. Joanneira, ficou assombrado, ao vêr apparecer
á outra boca da rua, do lado da Sé, o Santissimo
em procissão.
E vinha para casa das senhoras! Por entre as velhas
de mantéo pela cabeça, as tochas faziam destacar
opas de paninho escarlate; sob o pallio os dourados
da estola do parocho reluziam; uma campainha
tocava adiante, ás vidraças appareciam luzes;—e
na noite escura o sino da Sé repicava, sem
descontinuar.
João Eduardo correu aterrado—e soube logo
que era a extrema-unção á entrevada.
Tinham posto na escada um candieiro de petroleo
[274]
sobre uma cadeira. Os serventes encostaram á
parede da rua os varaes do pallio, e o parocho entrou.
João Eduardo, muito nervoso, subiu tambem:
ia pensando que a morte da entrevada, o luto retardariam
o seu casamento; contrariava-o a presença
do parocho e a influencia que elle adquiria n'aquelle
momento; e foi quasi quezilado que perguntou á
Ruça na saleta:
—Então como foi isto?
—Foi a pobre de Christo que esta tarde começou
a esmorecer, o senhor doutor veio, diz que estava
a acabar, e a senhora mandou pelos sacramentos.
João Eduardo, então, julgou delicado ir assistir
«á ceremonia».
O quarto da velha era junto á cozinha, e tinha
n'aquelle momento uma solemnidade lugubre.
Sobre uma mesa coberta de toalha de folhos, estava
um prato com cinco bolinhas de algodão entre
duas velas de cera. A cabeça da entrevada, toda
branca, a sua face côr de cera mal se distinguiam
do linho do travesseiro; tinha os olhos estupidamente
dilatados; e ia apanhando incessantemente com
um gesto lento a dobra do lençol bordado.
A S. Joanneira e Amelia rezavam ajoelhadas á
beira da cama: a snr.
a D. Maria da
Assumpção
(que
casualmente entrára, ao voltar da fazenda) ficára
á
porta do quarto aterrada, agachada sobre os calcanhares,
murmurando Salve-Rainhas. João Eduardo,
sem ruido, dobrou o joelho junto d'ella.
[275]
O padre Amaro, curvado quasi ao ouvido da entrevada,
exhortava-a a que se abandonasse á Misericordia
divina; mas, vendo que ella não comprehendia,
ajoelhou, recitou rapidamente o
Misereatur; e
no silencio, a sua voz erguendo-se nas syllabas latinas
mais agudas, dava uma sensação de enterro que
enternecia, fazia soluçar as duas senhoras. Depois
ergueu-se, molhou o dedo nos santos oleos: murmurando
as expressões penitentes do ritual ungiu os
olhos, o peito, a boca, as mãos—que ha dez annos
só se moviam para chegar a escarradeira, e as plantas
dos pés que ha dez annos só se applicavam a
buscar o calor da botija. E depois de queimar as bolinhas
de algodão humidas de oleo, ajoelhou-se, ficou
immovel, com os olhos postos no Breviario.
João Eduardo voltou em pontas de pés á
sala,
sentou-se no mocho do piano: agora decerto, durante
quatro ou cinco semanas. Amelia não tornaria
a tocar... E uma melancolia amolleceu-o, vendo no
dôce progresso do seu amor aquella brusca
interrupção
da morte e dos seus ceremoniaes.
A snr.
a D. Maria entrou então, toda
transtornada
d'aquella scena—e seguida d'Amelia que trazia os
olhos muito vermelhos.
—Ah! ainda bem que aqui está, João Eduardo!
disse logo a velha. Que quero que me faça um favor,
que é acompanhar-me a casa... Estou toda a
tremer... Estava desprevenida, e com perdão de
Deus seja dito, não posso ver gente na agonia... Que
ella, coitadinha, vai-se como um passarinho... E peccados
[276]
não os tem... Olhe, vamos pela Praça que
é
mais perto. E desculpe... Tu, filha, dispensa, mas
não posso ficar... É que me dava a
dôr... Ai, que
desgosto!... Que para ella até é melhor... Pois
olhem, sinto-me a desfallecer...
Foi mesmo necessario que Amelia a levasse a
baixo, ao quarto da S. Joanneira, a reconfortal-a caridosamente
com um calix de geropiga.
—Ameliasinha, disse então João Eduardo, se eu
sou cá necessario para alguma coisa...
—Não, obrigada. Ella está por instantes,
coitadinha.
—Não te esqueças, filha, recommendou descendo
a snr.
a D. Maria da
Assumpção,
põe-lhe as duas velas
bentas á cabeceira... Allivia muito na agonia...
E se tiver muitos arrancos, põe outras duas apagadas,
em cruz... Boas noites... Ai, que nem me sinto!
Á porta, mal viu o pallio, os homens com as tochas,
apoderou-se do braço de João Eduardo, collou-se
toda a elle com terror—um pouco tambem,
com o accesso de ternura que lhe dava sempre a
geropiga.
Amaro promettera voltar mais tarde, para «as
acompanhar, como amigo, n'aquelle transe». E o conego
(que chegára, quando a procissão com o pallio
dobrava a esquina para o lado da Sé), informado
d'esta delicadeza do senhor parocho, declarou logo
[277]
que visto que o collega Amaro vinha fazer a noitada,
elle ia descansar o corpo porque, Deus bem o
sabia, aquellas commoções arrazavam-lhe a saude.
—E a senhora não havia de querer que eu apanhasse
alguma e me visse nos mesmos assados...
—Credo, senhor conego! exclamou a S. Joanneira,
nem diga isso!...—E começou a choramingar,
muito abalada.
—Pois então boas noites, disse o conego, e nada
de affligir. Olhe, a pobre creatura, alegria não a
tinha: e como não tem peccados não lhe importa
achar-se na presença de Deus. Tudo bem considerado,
senhora, é uma pechincha! E adeusinho, que
me não estou a sentir bem...
Tambem a S. Joanneira não se sentia bem. O
choque, logo depois de jantar, dera-lhe ameaças de
enxaqueca:—e quando Amaro voltou, ás onze,
Amelia que fôra abrir a porta, disse-lhe, ao subir
á
sala de jantar:
—O senhor parocho desculpe... A mamã veio-lhe
a enxaqueca, coitada... Estava que nem via...
Deitou-se, pôz agua sedativa e adormeceu...
—Ah! Deixal-a dormir!
Entraram no quarto da entrevada. Tinha a cabeça
virada para a parede; dos seus beiços abertos
sahia um gemido muito debil e continuo. Sobre a
mesa agora, uma grossa vela benta, de murrão negro,
erguia uma luz triste; e ao canto, transida de
medo, a
Ruça, segundo as
recommendações da S.
Joanneira, ia rezando a corôa.
[278]
—O senhor doutor, disse Amelia baixo, diz que
morre sem o sentir... Diz que ha de gemer, gemer,
e de repente acabar como um passarinho...
—Seja feita a vontade de Deus, murmurou gravemente
o padre Amaro.
Voltaram á sala de jantar. Toda a casa estava
silenciosa: fóra ventava forte. Havia muitas semanas
que não se encontravam assim sós. Muito
embaraçado,
Amaro aproximou-se da janella: Amelia
encostou-se ao aparador.
—Vamos ter uma noite d'agua, disse o parocho.
—E está frio, disse ella, encolhendo-se no chale.
Eu tenho estado passada de medo...
—Nunca viu morrer ninguem?
—Nunca.
Calaram-se—elle immovel ao pé da janella, ella
encostada ao aparador, de olhos baixos.
—Pois está frio, disse Amaro, com a voz alterada
da perturbação que lhe ia dando a
presença d'ella
áquella hora da noite.
—Na cozinha está a brazeira accêsa, disse Amelia.
É melhor irmos para lá.
—É melhor.
Foram. Amelia levou o candieiro de latão: e
Amaro, indo remexer com as tenazes o brazido vermelho,
disse:
—Ha que tempo que eu não entro aqui na cozinha!...
Ainda tem os vasos com os raminhos fóra
da janella?
[279]
—Ainda, e um craveiro...
Sentaram-se em cadeirinhas baixas, ao lado da
brazeira.—Amelia, inclinada para o lume, sentia os
olhos do padre Amaro devora-la silenciosamente.
Elle ia fallar-lhe, decerto! Tinha as mãos a tremer;
não ousava mover-se, erguer as palpebras, com
medo que lhe rompessem as lagrimas; mas anciava
pelas suas palavras, ou amargas ou dôces...
Ellas vieram emfim, muito graves.
—Menina Amelia, disse, eu não esperava poder
assim fallar-lhe a sós. Mas as coisas arranjaram-se...
É decerto a vontade de Nosso Senhor! E depois,
como as suas maneiras mudaram tanto...
Ella voltou-se bruscamente, toda escarlate, o beicinho
tremulo:
—Mas bem sabe porquê! exclamou quasi chorando.
—Sei. Se não fosse aquelle infame
Communicado,
e as calumnias... nada se tinha passado, e a
nossa amizade seria a mesma, e tudo iria bem... É
justamente a esse respeito que eu lhe quero fallar.
Chegou a cadeira mais para junto d'ella, e muito
suave, muito tranquillo:
—Lembra-se d'esse artigo em que todos os amigos
da casa eram insultados? em que eu era arrastado
pela rua da amargura? em que a menina mesma,
a sua honra era offendida?... Lembra-se, hein?
Sabe quem o escreveu?
—Quem? perguntou Amelia toda surprehendida.
—O snr. João Eduardo! disse o parocho muito
[280]
tranquillamente, cruzando os braços diante d'ella.
—Não póde ser!
Tinha-se erguido. Amaro puxou-lhe devagarinho
pelas saias para a fazer sentar; e a sua voz continuou
paciente e suave:
—Ouça. Sente-se. Foi elle que o escreveu. Soube
hontem tudo. O Natario viu o original escripto
pela letra d'elle. Foi elle que descobriu. Por meios
dignos decerto... e porque era a vontade de Deus
que a verdade apparecesse. Agora escute. A menina
não conhece esse homem.—Então, baixo, contou-lhe
o que sabia de João Eduardo, por Natario; as suas
noitadas com o Agostinho, as suas injurias contra os
padres, a sua irreligião...
—Pergunte-lhe se elle se confessa ha seis annos,
e peça-lhe os bilhetes da confissão!
Ella murmurava, com as mãos cahidas no regaço:
—Jesus... Jesus!...
—Eu então entendi que como intimo da casa,
como parocho, como christão, como seu amigo, menina
Amelia... porque acredite que lhe quero...
emfim, entendi que era o meu dever avisal-a! Se
eu fosse seu irmão, dizia-lhe simplesmente:
«Amelia,
esse homem fóra de casa!» Não o sou,
infelizmente.
Mas venho, com dedicação d'alma, dizer-lhe:
«O homem com quem quer casar surprehendeu a
sua boa fé e de sua mamã; vem aqui, sim senhor,
com apparencias de bom moço, e no fundo
é...»
Ergueu-se, como ferido d'uma indignação
irreprimivel:
[281]
—Menina Amelia, é o homem que escreveu esse
Communicado! que fez ir o pobre
Brito para a
serra de Alcobaça! que me chamou a mim
seductor!
que chamou devasso ao senhor conego Dias!
Devasso!
Que lançou veneno nas relações de sua
mamã
com o conego! e que a accusou á menina, em bom
portuguez, de se deixar seduzir! Diga, quer casar
com esse homem?
Ella não respondeu, com os olhos cravados no
lume, duas lagrimas mudas sobre as faces.
Amaro deu passos irritados pela cozinha; e voltando
ao pé d'ella, com a voz abrandada, gestos
muito amigos:
—Mas supponhamos que não era elle o auctor
do
Communicado, que não
tinha insultado em letra
redonda a sua mamã, o senhor conego, os seus
amigos: resta ainda a sua impiedade! Veja que destino
o seu se casasse com elle! Ou teria de condescender
com as opiniões do homem, abandonar as
suas devoções, romper com os amigos de sua
mãi,
não pôr os pés na igreja, dar escandalo
a toda a
gente honesta, ou teria de se pôr em
opposição com
elle, e a sua casa seria um inferno! Por tudo uma
questão! Por jejuar á sexta-feira, por ir
á exposição
do Santíssimo, por cumprir o domingo... Se se quizesse
confessar, que desavenças! Um horror! E sujeitar-se
a ouvil-o escarnecer os mysterios da fé! Ainda
me lembro, na primeira noite que aqui passei,
com que desacato elle fallou da santa da Arregassa!...
E ainda me lembro uma noite que o padre Natario
[282]
aqui fallava dos soffrimentos do nosso santo padre
Pio IX, que seria preso, se os liberaes entrassem
em Roma... Como elle tinha risinhos de escarneo,
como disse que eram exagerações!... Como se
não
fosse perfeitamente certo que por vontade dos liberaes
veriamos o chefe da Igreja, o vigario de Christo,
dormir n'um calabouço em cima d'umas poucas
de palhas! São as opiniões d'elle, que elle
apregôa
por toda a parte! O padre Natario diz que elle e o
Agostinho estavam no café ao pé do Terreiro a
dizer
que o baptismo era um abuso, porque cada um devia
escolher a religião que quizesse, e não ser
forçado,
de pequeno, a ser christão! Hein, que lhe parece?
Como seu amigo lh'o digo... Para bem de sua alma
antes a queria vêr morta do que ligada a esse
homem! Case com elle, e perde para sempre a graça
de Deus!
Amelia levou as mãos ás fontes, e deixando-se
cahir para as costas da cadeira, murmurou, muito
desgraçada:
—Oh, meu Deus, meu Deus!
Amaro então sentou-se ao pé d'ella, tocando-lhe
quasi o vestido com o joelho, pondo na voz uma
bondade paternal:
—E depois, minha filha, pensa que um homem
assim póde ter bom coração, apreciar a
sua virtude,
querer-lhe como um marido christão? Quem não tem
religião não tem moral. Quem não
crê não ama, diz
um dos nossos santos padres. Depois de lhe passar
o fogacho da paixão, começaria a ser duro
comsigo,
[283]
mal humorado, voltaria a frequentar o Agostinho e
as mulheres da vida, e maltrata-la-hia talvez... E
que susto constante para si! Quem não respeita a
religião
não tem escrupulos: mente, rouba, calumnia...
Veja o
Communicado. Vir aqui apertar
a mão
ao senhor conego, e ir para o jornal chamar-lhe devasso!
Que remorsos não sentiria a menina, mais
tarde, á hora da morte! É muito bom emquanto se
tem saude e se é nova; mas quando chegasse a sua
ultima hora, quando se achasse, como aquella pobre
creatura que está alli, nos ultimos arrancos, que terror
não sentiria de ter de apparecer diante de Jesus
Christo, depois de ter vivido em peccado ao lado
d'esse homem! Quem sabe se elle não recusaria que
lhe dessem a extrema-unção! Morrer sem
sacramentos,
morrer como um animal!...
—Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus, senhor
parocho! exclamou Amelia rompendo n'um chôro
nervoso.
—Não chore, disse elle tomando-lhe suavemente
a mão entre as suas, muito tremulas. Escute,
abra-se commigo... Vá, esteja socegada, tudo se remedeia.
Não ha banhos publicados... Diga-lhe que
não quer casar, que sabe tudo, que o odeia...
Esfregava, apertava devagarinho a mão d'Amelia.
E subitamente, com voz d'um ardor brusco:
—Não se importa com elle, não é
verdade?
Ella respondeu muito baixo, com a cabeça cahida
sobre o peito:
—Não.
[284]
—Então, ahi tem! fez excitado. E diga-me, gosta
d'outro?
Ella não respondeu, com o peito a arfar fortemente,
os olhos dilatados para o lume.
—Gosta? diga, diga!
Passou-lhe o braço sobre o hombro, attrahindo-a
dôcemente. Ella tinha as mãos abandonadas no
regaço;
sem se mover voltou devagar para elle os
olhos resplandecentes sob uma nevoa de lagrimas,
e entreabriu devagar os labios, pallida, toda desfallecida.
Elle estendeu os beiços a tremer—e ficaram
immoveis, collados n'um só beijo, muito longo, profundo,
os dentes contra os dentes.
—Minha senhora! minha senhora! gritou de repente,
n'um terror, a voz da
Ruça, dentro.
Amaro ergueu-se d'um salto, correu ao quarto
da entrevada. Amelia estava tão tremula, que precisou
encostar-se á porta da cozinha um momento,
com as pernas vergadas, a mão sobre o
coração. Recuperou-se,
desceu a acordar a mãe.
Quando entraram no quarto da idiota, Amaro
ajoelhado, com a face quasi sobre o leito, rezava:
as duas senhoras rojaram-se no chão; uma
respiração
accelerada sacudia o peito, as ilhargas da velha;
e á medida que o arquejo se tornava mais rouco, o
parocho precipitava as suas orações. Subitamente
o
som agonisante cessou: ergueram-se: a velha estava
immovel, com os bugalhos dos olhos sahidos e
baços. Expirára.
O padre Amaro trouxe logo as senhoras para a
[285]
sala;—e ahi a S. Joanneira, curada, pelo choque,
da sua enxaqueca, desabafou, em accessos de chôro,
recordando o tempo em que a pobre mana era
nova, e que bonita era! e que bom casamento estivera
para fazer com o morgado da Vigareira!...
—E o genio mais dado, senhor parocho! Uma
santa! E quando a Amelia nasceu, e que eu estive
tão mal, que não se tirou de ao pé de
mim, noite e
dia!... E alegre, não havia outra... Ai, Deus da minha
alma, Deus da minha alma!
Amelia, encostada á vidraça na sombra da janella,
olhava entorpecida a noite negra.
Bateram então á campainha. Amaro desceu, com
uma vela. Era João Eduardo, que ao vêr o parocho
áquella hora na casa,—ficou petrificado, junto da
porta aberta; emfim balbuciou:
—Eu vinha saber se havia novidade...
—A pobre senhora expirou agora mesmo...
—Ah!
Os dois homens olharam-se um instante fixamente.
—Se eu sou preciso para alguma coisa... disse
João Eduardo.
—Não, obrigado. As senhoras vão-se deitar.
João Eduardo fez-se pallido da coléra que lhe
davam aquelles modos de dono da casa. Esteve ainda
um momento, hesitando—mas vendo o parocho
abrigar a luz, com a mão, contra o vento da rua:
—Bem, boa noite, disse.
—Boa noite.
[286]
O padre Amaro subiu:—e depois de deixar as
duas senhoras no quarto da S. Joanneira (porque,
cheias de terror, queriam dormir juntas), voltou ao
quarto da morta, despertou a vela sobre a mesa,
accommodou-se n'uma cadeira, e começou a lêr o
Breviario.
Mais tarde, quando toda a casa estava silenciosa,
o parocho, sentindo o somno entorpecel-o, veio
á sala de jantar; reconfortou-se com um calix de vinho
do Porto que achára no aparador; e saboreava
regaladamente o cigarro, quando ouviu na rua passos
de botas fortes que iam, vinham, por baixo das
janellas. Como a noite estava escura não pôde
distinguir
«o passeante».—Era João Eduardo que
rondava
a casa, furioso.
XIII
Ao outro dia cedo, a snr.
a D. Josepha Dias que
entrára, havia pouco, da missa, ficou muito surprehendida,
ouvindo a criada que lavava as escadas dizer
de baixo:
—Está aqui o senhor padre Amaro, snr.
a
D. Josepha!
O parocho ultimamente raras vezes vinha a casa
do conego; e D. Josepha gritou logo lisonjeada e já
curiosa:
—Que suba para aqui, não é de ceremonia!
É
como de familia. Que suba!
Estava na sala de jantar, arranjando n'uma travessa
ladrilhos de marmelada, com um vestido de
hareje preto esgaçado na ilharga e arqueado em redor
dos tornozelos por uma
crinoline
d'um só arco;
[288]
trazia n'essa manhã oculos azues; e foi logo ao patamar,
arrastando os seus medonhos chinelos d'ourêlo,
e preparando, por debaixo do lenço preto repuxado
sobre a testa, um ar agradavel para o senhor
parocho.
—Ora ditosos olhos! exclamou. Eu entrei ha bocadinho,
e já cá tenho a primeira missinha. Fui hoje
á capella de Nossa Senhora do Rosario... Disse-a
o padre Vicente. Ai! e que virtude que me fez hoje,
senhor parocho! Sente-se. Ahi não, que lhe vem
ar da porta... E então a pobre entrevada lá se
foi...
Conte lá, senhor parocho...
O parocho teve de descrever a agonia da entrevada,
a dôr da S. Joanneira; como depois de morta
a face da velha parecera remoçar; o que as senhoras
tinham decidido a respeito da mortalha...
—Aqui para nós, D. Josepha, é um grande allivio
para a S. Joanneira...—E de repente, puxando-se
para a beira da cadeira, assentando as mãos nos
joelhos:—E que me diz á do senhor João Eduardo?
Já sabe? Foi elle que escreveu o artigo!
A velha exclamou, levando as mãos á
cabeça:
—Ai! nem me falle n'isso, senhor parocho!
Nem me falle n'isso, que até tenho estado doente!
—Ah, já sabe?
—E mais que sei, senhor parocho! O senhor
padre Natario, devo-lhe esse favor, esteve aqui hontem
e contou-me tudo! Ai, que maroto! Ai, que alma
perdida!
—E sabe que é o intimo do Agostinho, que são
[289]
bebedeiras na redacção até de
madrugada, que vai
para o bilhar do Terreiro achincalhar a religião...
—Ai, por quem é, senhor parocho, nem me
diga, nem me diga! Que hontem, quando o senhor
padre Natario esteve ahi, até tive escrupulos d'ouvir
tanto peccado... Que lhe devo esse favor, ao senhor
padre Natario, logo que soube veio-me contar...
É de muito delicado... E olhe, senhor parocho, a
mim sempre me quiz parecer isso mesmo do homem.
Eu nunca o disse, nunca o disse! Que lá isso, esta
boquinha nunca se pôz em vidas alheias... Mas tinha
cá dentro um palpite. Elle ia á missa, cumpria
o jejum; mas eu cá tinha a desconfiança que
aquillo
era para enganar a S. Joanneira e a pequena.
Agora se vê! Eu foi creatura que nunca me cahiu
em graça! Nunca, senhor parocho!—E de repente,
com os olhinhos luzidios d'uma alegria perversa:—E
agora, já se sabe, o casamento desmancha-se?
O padre Amaro recostou-se na cadeira, e muito
pausadamente:
—Elle, minha senhora, seria notorio que uma
rapariga de bons principios fosse casar com um pedreiro-livre,
que não se confessa ha seis annos!
—Credo, senhor parocho! antes vêl-a morta! É
necessario dizer tudo á rapariga...
O padre Amaro interrompeu, chegando rapidamente
a cadeira para ao pé d'ella:
—Pois foi justamente para isso que eu a vim
procurar, minha senhora. Eu hontem já fallei com
a pequena... Mas comprehende, no meio d'aquelle
[290]
desgosto, com a pobre senhora a expirar ao lado,
não pude insistir muito. Emfim disse-lhe o que havia,
aconselhei-a por bons modos, expuz-lhe que ia
perder a sua alma, ter uma vida desgraçada, etc.
Fiz o que pude, minha senhora, como amigo e como
parocho. E como era o meu dever (ainda que
me custou, realmente custou-me), lembrei-lhe que,
como christã e como senhora, tinha
obrigação de
romper com o escrevente.
—E ella?
O padre Amaro fez uma visagem descontente:
—Não disse que
sim nem
que
não. Pôz-se
a
fazer biquinho, a choramingar. É verdade que estava
muito alterada com a morte em casa. Que a rapariga
não morre por elle, isso é claro; mas quer
casar, tem medo que a mãi morra, que se veja
só...
Emfim sabe o que são raparigas! Que as minhas palavras
fizeram-lhe effeito, ficou muito indignada,
etc... Mas emfim, eu pensei que o melhor era a senhora
fallar-lhe. A senhora é a amiga da casa, é
madrinha,
conheceu-a de pequena... Estou certo que
no seu testamento havia de lhe deixar uma boa
lembrança... Tudo isto são
considerações...
—Ai, fica por minha conta, senhor parocho! exclamou
a velha; hei de lh'as cantar!...
—A rapariga o que precisa é quem a dirija.
Aqui para nós, precisa quem a confesse! Ella confessa-se
ao padre Silverio; mas, sem querer dizer
mal, o padre Silverio, coitado, pouco vale. Muito caridoso,
muita virtude; mas o que se chama
geito
[291]
não tem. Para elle a confissão é a
desobriga. Pergunta
doutrina, depois faz o exame pelos mandamentos
da lei de Deus... Veja a senhora!... Está
claro que a rapariga não furta, nem mata, nem deseja
a mulher do seu proximo! A confissão assim
não lhe aproveita: o que ella precisa é um
confessor
têso, que lhe
diga—
para alli! e sem
réplica. A rapariga
é um espirito fraco; como a maior parte das
mulheres não se sabe dirigir por si; necessita por
isso um confessor que a governe com uma vara de
ferro, a quem ella obedeça, a quem conte tudo, de
quem tenha medo... É como deve ser um confessor.
—O senhor parocho é que lhe servia...
Amaro sorriu modestamente:
—Não digo que não. Havia de aconselhal-a bem;
sou amigo da mãi, acho que ella é boa rapariga e
digna da graça de Deus. Que eu, sempre que converso
com ella, todos os conselhos que posso, em
tudo, dou-lh'os... Mas a senhora comprehende, ha
coisas em que se não póde estar a fallar na sala,
com gente á volta... Só se está
á vontade no confessionario.
E é o que me falta, são as occasiões
de
lhe fallar só. Mas emfim eu não posso ir
dizer-lhe:
«a menina agora ha de se confessar commigo»! Eu
n'isso sou muito escrupuloso...
—Mas digo-lh'o eu, senhor parocho! Ah, digo-lh'o eu!...
—Ora isso é que era um grande favor! Era um
bem que fazia áquella alma! Porque se a rapariga
me entrega a direcção da sua alma,
então podemos
[292]
dizer que lhe acabaram as difficuldades, e temol-a
no caminho da graça... E quando lhe vai fallar, D.
Josepha?
D. Josepha, «como julgava peccado adiar», estava
decidida a fallar-lhe essa mesma noite.
—Não me parece, D. Josepha. Hoje é noite de
pezames... O escrevente naturalmente está lá...
—Credo, senhor parocho! Pois eu e as outras
pequenas havemos de passar a noite debaixo das
mesmas telhas com o hereje?
—Tem de ser. Emfim o rapaz por ora é considerado
da familia... Além d'isso, D. Josepha, a senhora,
a D. Maria e as Gansosinhos são pessoas da
maior virtude... Mas nós não devemos ter orgulho
da nossa virtude. Arriscamo-nos a perder-lhe todos
os fructos. E é um acto de humildade, que agrada
muito a Deus, o misturar-nos ás vezes com os maus;
é como quando um grande fidalgo tem de estar lado
a lado com um trabalhador d'enxada... É como
se dissessemos: «eu sou-te superior em virtude,
mas comparado com o que devia ser para entrar
na gloria, quem sabe se não sou tão peccador como
tu!...» E esta humilhação da alma
é a melhor
offerta que podemos fazer a Jesus.
D. Josepha escutava-o, babosa; e n'uma admiração:
—Ai, senhor parocho, que até dá virtude ouvil-o!
Amaro curvou-se:
—Deus ás vezes, na sua bondade, inspira-me
[293]
justas palavras... Pois minha senhora, eu não quero
massar mais. Ficamos entendidos. A senhora falla
á pequena ámanhã; e se, como
é de crêr, ella
consentir em escutar os meus conselhos, traz-m'a á
Sé no sabbado, ás oito horas. E falle-lhe
têso, D. Josepha!
—Deixe-a commigo, senhor parocho!... Então
não quer provar da minha marmelada?
—Provarei, disse Amaro tomando um ladrilho
em que cravou os dentes com dignidade.
—É dos marmelos da D. Maria. Sahiu-me melhor
que a das Gangosinhos...
—Pois adeus, D. Josepha... Ah, é verdade, que
diz o nosso conego d'este caso do escrevente?
—O mano?...
N'este momento a campainha em baixo repicou
com furor.
—Ha de ser elle, disse logo D. Josepha. E vem
zangado!
Vinha, com effeito, da fazenda—furioso com o
caseiro, o regedor, o governo e a perversidade dos
homens. Tinham-lhe roubado uma porção de
cebolinho;
e, abafado de cólera, alliviava-se repetindo
com gozo o nome do Inimigo.
—Credo, mano, que até lhe fica mal!—exclamou
D. Josepha tomada d'escrupulos.
—Ora mana, deixemos essas pieguices para a
quaresma! Digo
co'os diabos! e
repito
co'os diabos!
Mas eu lá disse ao caseiro, que se sentir gente na
fazenda, carregue a espingarda e faça fogo!
[294]
—Ha uma falta de respeito pela propriedade...
disse Amaro.
—Ha uma falta de respeito por tudo! exclamou
o conego. Um cebolinho que dava saude só olhar
para elle! Pois senhores, lá vai! Isto é o que eu
chamo um sacrilegio!... Um desaforado sacrilegio!—acrescentou
convictamente; porque o roubo do
seu cebolinho, o cebolinho d'um conego, parecia-lhe
um acto tão negro d'impiedade como se tivessem
sido furtados os vasos santos da Sé.
—Falta de temor a Deus, falta de religião, observou
D. Josepha.
—Qual falta de religião! replicou o conego exasperado.
Falta de cabos de policia, é o que é!—E
voltando-se para Amaro:—Hoje é o enterro da velha,
hein? Inda mais essa! Vá, mana, mande-me lá
dentro uma volta lavada e os sapatos de fivela!
O padre Amaro então, retomado pela sua
preoccupação:
—Estavamos cá a fallar do caso do João Eduardo:
o
Communicado!
—Isso é outra maroteira que tal! fez logo o conego.
Vejam essa, tambem! Que quadrilha vai pelo
mundo, que quadrilha!—E ficou de braços cruzados,
com os olhos arregalados, como contemplando
uma legião de monstros, soltos pelo universo, e
arremessando-se
com impudencia contra as reputações,
os principios da Igreja, a honra das familias e o cebolinho
do clero.
Ao sahir, o padre Amaro renovou ainda as suas
[295]
recommendações a D. Josepha, que o
acompanhára
ao patamar:
—Então hoje, noite de pezames, não se faz nada.
Ámanhã falla á rapariga, e
lá para o fim da semana
leva-m'a á Sé. Bem. E convença a
rapariga,
D. Josepha, trate de salvar aquella alma! Olhe que
Deus tem os olhos em si. Falle-lhe têso, falle-lhe
têso!... E o nosso conego que se entenda com a S.
Joanneira.
—Póde ir descansado, senhor parocho. Sou madrinha,
e, quer ella queira quer não, hei de pôl-a
no caminho da salvação...
—Amen, disse o padre Amaro.
N'essa noite, com effeito, D. Josepha «não fez
nada». Eram os pezames na rua da Misericordia.
Estavam em baixo, na saleta, alumiada lugubremente
por uma só vela com um
abat-jour verde-escuro.
A S. Joanneira e Amelia, de luto, occupavam tristemente
o canapé ao centro; e em redor, nas fileiras
de cadeiras apoiadas á parede, as amigas, cobertas
de negro pesado, conservavam-se funebremente immoveis,
de faces contristadas, n'um torpôr mudo:
ás vezes duas vozes ciciavam, ou d'um canto, na
sombra, sahia um suspiro: depois o Libaninho, ou
Arthur Couceiro, ia em bicos de pés espevitar o
murrão da véla: a snr.
a D.
Maria da
Assumpção expectorava
o seu catarrho com um som choroso: e
no silencio ouviam tamancos bater o lagedo da rua,
ou os quartos d'hora no relogio da Misericordia.
A intervallos a
Ruça,
toda de negro, entrava
[296]
com o taboleiro de dôces e copos de chasada; levantava-se
então o
abat-jour; e as
velhas, que já
iam cerrando as palpebras, sentindo a sala mais clara,
levavam logo os lenços aos olhos, e, com ais,
serviam-se de bolinhos da Encarnação.
João Eduardo lá estava, a um canto, ignorado,
ao pé da Gansoso surda que dormia com a boca
aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde
o olhar d'Amelia, que não se movia, com o rosto sobre
o peito, as mãos no regaço, torcendo e
destorcendo
o seu lenço de cambraiela. O padre Amaro
e o conego Dias vieram ás nove horas: o parocho
com passos graves foi dizer á S. Joanneira:
—Minha senhora, o golpe é grande. Mas consolemo-nos,
pensando que sua excellentissima mana
está a esta hora gozando a companhia de Jesus
Christo.
Houve em redor uma murmuração de
soluços;
e como não restavam cadeiras, os dois ecclesiasticos
sentaram-se aos dois cantos do canapé, tendo no
meio a S. Joanneira e Amelia em lagrimas. Eram
assim reconhecidos pessoas de familia; a snr.
a
D. Maria
da Assumpção notou baixinho a D. Joaquina
Gansoso:
—Ai, até dá gosto vêl-os assim todos
quatro!
E até ás dez horas a noite de pezames continuou
soturna e somnolenta, perturbada apenas pela
tosse constante de João Eduardo que estava constipado,
e que—na opinião da snr.
a D. Josepha
Dias
que o disse a todos, depois—«tossia só para fazer
[297]
troça e para achincalhar o respeito aos mortos».
D'ahi a dois dias, ás oito horas da manhã, a
snr.
a D. Josepha Dias e Amelia entraram na
Sé—depois
de terem fallado no terraço á Amparo, mulher
do boticario, que tinha uma criança com sarampo,
e, apesar de não ser coisa de cuidado, «viera
á cautela fazer uma promessa».
O dia estava ennevoado, a igreja tinha uma luz
parda. Amelia, pallida sob a sua mantilha de renda,
parou defronte do altar de Nossa Senhora das Dôres,
deixou-se cahir de joelhos, e ficou immovel, com o
rosto sobre o livro de missa. A snr.
a D. Josepha
Dias, com passos fôfos, depois de se ter prostrado
diante da capella do Santíssimo e do altar-mór,
foi
empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre
Amaro lá passeava, com os hombros vergados, as
mãos atraz das costas:
—Então? perguntou logo, erguendo para D. Josepha
a sua face muito barbeada, onde os olhos reluziam
inquietos.
—Está alli, disse a velha baixinho, n'uma
expressão
de triumpho. Fui eu mesmo buscal-a! Ai,
fallei-lhe têso, senhor parocho, não lh'as poupei!
Agora é comsigo!
—Obrigado, obrigado, D. Josepha! disse o padre,
apertando-lhe as mãos ambas com força. Deus
ha de lh'o levar em conta.
[298]
Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir
o lenço, a carteira dos papeis; e, cerrando devagarinho
a porta da sacristia, desceu á igreja. Amelia
ainda estava ajoelhada, fazendo um vulto negro immovel
contra o pilar branco.
—Pst, fez-lhe D. Josepha.
Ella ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo
tremulamente com as mãos as pregas da mantilha
em roda do pescoço.
—Aqui lh'a deixo, senhor parocho, disse a velha.
Vou á Amparo da botica, e venho depois por
ella... Ora vai, filha, vai, Deus t'alumie essa alma!
E sahiu, com mesuras a todos os altares.
O Carlos da botica—que era inquilino do conego
e um pouco ronceiro na renda—desbarretou-se
com espalhafato apenas D. Josepha appareceu á porta,
e conduziu-a logo acima, á sala de cortinas de
cassa, onde a Amparo costurava á janella.
—Ai, não se prenda, snr. Carlos, dizia-lhe a
velha. Não largue os seus afazeres. Eu deixei a afilhada
na Sé, e venho aqui descansar um bocadinho.
—Então, se me dá licença... E como
vai o nosso
conego?
—Não tornou a ter a dôr. Mas tem soffrido de
tonturas.
—Começos da primavera, disse o Carlos que
retomára
o seu ar magestoso, de pé no meio da sala,
com os dedos nas aberturas do collete. Tambem eu
me tenho sentido perturbado... Nós, as pessoas
sanguíneas,
soffremos sempre d'isto que se póde chamar
[299]
o renascimento da seiva... Ha uma abundancia
d'humores no sangue, que, não sendo eliminados
pelos canaes proprios, vão, por assim dizer,
abrir caminho, aqui e além, pelo corpo, sob a
fórma
de furunculo, espinha, nascida, ás vezes em logares
bem incommodos, e, ainda que em si insignificantes,
acompanhados sempre, por assim dizer, d'um cortejo...
Perdão, sinto o praticante a palrar... Se me
dá licença... Respeitos ao nosso conego. Que use
a
magnesia de James!
D. Josepha então quiz vêr a menina com o sarampo.
Mas não passou da porta do quarto, recommendando
á pequena, que arregalava uns olhos de
febre, muito abafada na roupa, «não se descuidasse
das suas oraçõesinhas de manhã e
á noite». Aconselhou
á Amparo alguns remedios, que eram milagrosos
no sarampo; mas se a promessa fôra feita com
fé, a menina podia-se considerar curada... Ai, todos
os dias dava graças a Deus de se não ter casado!
Que filhos eram só para trabalho e canceiras; e
com as quezilias que traziam e o tempo que tomavam,
eram até causa d'uma mulher se descuidar das
suas praticas e metter a alma no inferno...
—Tem razão, D. Josepha, disse a Amparo, é um
castigo... E eu com cinco! Ás vezes fazem-me tão
doida, que me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me
a chorar só commigo...
Tinham voltado para junto da janella, e gozaram
muito, espreitando o senhor administrador do concelho,
que, por traz da vidraça da
repartição, namorava
[300]
de binoculo a do Telles alfaiate.—Aí, era um
escandalo! Que nunca houvera em Leiria auctoridades
assim! O secretario geral em um desafôro com
a Novaes... Que se podia esperar de homens sem
religião, educados em Lisboa, que, segundo D. Josepha,
estava predestinada a parecer como Gomorrha
pelo fogo do céo?—A Amparo cosia com a cabeça
baixa, envergonhada talvez diante d'aquella
indignação
piedosa, dos desejos culpados que a roiam
de vêr o Passeio Publico e de ouvir os cantores em
S. Carlos.
Mas bem depressa a snr.
a D. Josepha
começou a
fallar do escrevente. A Amparo não sabia nada; e a
velha teve a satisfação de contar prolixamente,
«tim-tim
por tim-tim», a historia do
Communicado, o desgosto
na rua da Misericordia, e a campanha de
Natario para descobrir o
liberal.
Alargou-se principalmente
sobre o caracter de João Eduardo, a sua
impiedade, as suas orgias... E, considerando um
dever de christã aniquilar o atheu, deu mesmo a
entender que alguns roubos, ultimamente commettidos
em Leiria, eram «obra de João Eduardo».
A Amparo declarou-se «banzada». O casamento
então, com a Ameliasinha...
—Isso pertence á historia, declarou com jubilo
D. Josepha Dias. Vão pôl-o fóra de
casa! E por muito
feliz se deve o homem dar em não ir parar ao
banco dos réos... Que a mim o deve, e á prudencia
do mano e do senhor padre Amaro. Que havia motivos
para o ferrar na cadeia!
[301]
—Mas a pequena gostava d'elle, ao que parece.
D. Josepha indignou-se. Credo, a Amelia era uma
rapariga de juízo, de muita virtude! Apenas conheceu
os desafôros, foi a primeira a dizer que não, e
que não! Ai! detestava-o...—E D. Josepha, baixando
a voz em confidencia, contou «que era positivo
que elle vivia com uma desgraçada para os lados
do quartel».
—Disse-m'o o senhor padre Natario, affirmou. E
aquillo é homem que da sua boca nunca sae senão
a verdade pura... Foi muito delicado commigo,
devo-lhe esse favor. Apenas soube, veio-m'o logo
dizer a casa, pedir-me conselhos... Emfim, muito
attencioso.
Mas o Carlos appareceu de novo. Tinha a botica
desembaraçada um momento (que não o tinham
deixado
respirar toda a manhã!) e vinha fazer companhia
ás senhoras.
—Então já sabe, snr. Carlos, exclamou logo D.
Josepha, o caso do
Communicado e do
João Eduardo?
O pharmaceutico arregalou os seus olhos redondos.
Que relação havia entre um artigo tão
indigno
e esse mancebo que lhe parecia honesto?
—Honesto!? ganiu a snr.
a D. Josepha Dias. Foi
elle que o escreveu, snr. Carlos!
E vendo o Carlos morder o beiço de surpreza,
D. Josepha, enthusiasmada, repetiu a historia da
«maroteira».
—Que lhe parece, snr. Carlos, que lhe parece?
[302]
O pharmaceutico deu a sua opinião, n'uma voz
vagarosa, sobrecarregada da auctoridade d'um vasto
entendimento:
—N'esse caso digo, e todas as pessoas de bem
o dirão commigo, é uma vergonha para Leiria. Eu
já tinha observado, quando li o
Communicado: a religião
é a base da sociedade, e minal-a é, por assim
dizer, querer aluir o edificio... É uma desgraça
que haja na cidade d'esses sectarios do materialismo
e da republica, que, como é sabido, querem
destruir tudo o que existe: proclamam que os homens
e as mulheres se devem unir com a promiscuidade
de cães e cadellas... (Desculpem exprimir-me
assim, mas a sciencia é a sciencia). Querem ter
o direito de entrar em minha casa, levar-me as pratas
e o suor do meu rosto; não admittem que haja
auctoridades, e se os deixassem seriam capazes de
cuspir na sagrada hostia...
D. Josepha encolheu-se com um gritinho, muito
arripiada.
—E ousa esta seita fallar em liberdade! Eu tambem
sou liberal... Que, francamente o digo, eu não
sou fanatico... Nem pelo facto d'um homem pertencer
ao sacerdocio, o julgo um santo, não... Por
exemplo, sempre embirrei com o parocho Migueis...
Era uma giboia! Desculpe-me a senhora, mas era
uma giboia. Disse-lh'o na cara, porque a lei das rolhas
já lá vai... Derramamos o nosso sangue nas
trincheiras do Porto, justamente para não haver lei
das rolhas... Disse-lh'o na cara: «v. s.
a
é uma
giboia!»
[303]
Mas, emfim, quando um homem veste uma
batina deve ser respeitado... E o
Communicado, repito,
é um vergonha para Leiria... E tambem lhe
digo, com esses atheus, esses republicanos, não deve
haver consideração!... Eu sou homem pacifico,
aqui a Amparosinho conhece-me bem; pois se eu tivesse
d'aviar uma receita para um republicano declarado,
não tinha duvida, em logar de lhe dar uma
d'essas composições beneficas que são
o orgulho de
nossa sciencia, de lhe mandar uma dóse d'acido
prussico... Não, não direi que lhe mandasse acido
prussico... mas se estivesse no banco dos jurados
havia de lhe fazer cahir em cima todo o peso da lei!
E balançou-se um momento sobre a ponta das
chinelas, lançando um grande gesto em redor, como
se esperasse os applausos d'um conselho de districto
ou d'uma municipalidade em sessão.
Mas na Sé bateram então devagar as onze; e D.
Josepha embrulhou-se á pressa no seu mantelete para
ir buscar a pequena, coitada, que havia d'estar
farta d'esperar.
O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe
(como um mimo que remettia ao seu senhorio):
—Repita ao nosso conego quaes são as minhas
opiniões... Que n'essa questão do
Communicado e
d'ataques ao clero, estou d'alma e coração com
suas
senhorias... Criado seu, minha senhora... O tempo
vai-se a embrulhar.
Quando D. Josepha entrou na igreja, Amelia estava
[304]
ainda no confessionario. A velha tossiu alto,
ajoelhou, e, com as mãos sobre a face, abysmou-se
n'uma devoção á Senhora do Rosario. A
igreja ficou
n'uma immobilidade e n'um silencio. Depois D. Josepha,
voltando-se para o confessionario, espreitou por
entre os dedos; Amelia conservava-se immovel, com
a mantilha muito puxada para o rosto, a roda do vestido
negro espalhada em redor; e D. Josepha recahiu
na sua reza. Uma chuva fina fustigava agora os
vidros d'uma janella ao lado. Emfim houve no confessionario
um rangido da madeira, um frou-frou de
vestidos nas lages,—e D. Josepha, voltando-se, viu
de pé diante d'ella Amelia com a face escarlate e o
olhar reluzindo muito.
—Está ha muito tempo á espera, madrinha!
—Um bocadinho. Estás promptinha, hein?
Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras sahiram
da Sé. Ainda cahia uma chuva fina; mas o
snr. Arthur Couceiro, que passava no largo com officios
para o governo civil, foi leval-as á rua da Misericordia
debaixo do seu guardachuva.
XIV
João Eduardo, á noitinha, ia sahir de casa para
a rua da Misericordia, levando debaixo do braço um
rolo de amostras de papel de parede para Amelia
escolher, quando á porta encontrou a
Ruça que ia
puxar a campainha.
—Que é,
Ruça?
—As senhoras foram passar a noite fóra de casa,
e aqui está esta carta que manda a menina.
João Eduardo sentiu apertar-se-lhe o
coração, e
seguia com o olhar pasmado a
Ruça, que descia a
rua, batendo os tamancos. Foi ao pé do candieiro,
defronte, abriu a carta:
«Snr. João
Eduardo.
«O que estava decidido a respeito do nosso casamento
era na persuasão que era v. s.
a uma
pessoa
[306]
de bem e que me poderia fazer feliz; mas como
se sabe tudo, e que foi o senhor que escreveu
o artigo do
Districto, e calumniou
os amigos da casa
e me insultou a mim, e como os seus costumes
não me dão garantia de felicidade na vida de
casada,
deve desde hoje considerar tudo acabado entre
nós, pois não ha banhos publicados nem despezas
feitas. E eu espero, bem como a mamã, que o senhor
seja bastante delicado para não nos voltar a
casa, nem perseguir-nos na rua. O que tudo lhe
communico por ordem da mamã, e sou
«criada de v. s.a
«Amelia
Caminha».
João Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede
defronte onde batia a claridade do candieiro,
immovel como uma pedra, com o seu rolo de papeis
pintados debaixo do braço. Machinalmente voltou a
casa. As mãos tremiam-lhe tanto, que mal podia
accender o candieiro. De pé, junto da mesa, releu
a carta. Depois ficou alli, fatigando a vista contra a
chamma da torcida, com uma sensação arrefecedora
de Immobilidade e de Silencio, como se subitamente,
sem choque, toda a vida universal tivesse emmudecido
e parado. Pensou onde teriam
ellas
ido passar
a noite. Lembranças de serões felizes na rua da
Misericordia atravessaram-lhe devagar na memoria:
Amelia trabalhava, com a cabeça baixa, e entre o
[307]
cabello muito preto e o collar muito branco o seu
pescoço tinha uma pallidez que a luz amaciava...
Então a idéa de que a perdera para sempre
varou-lhe
o coração com um frio de punhalada. Apertou
as fontes entre as mãos, tonto. Que havia de fazer?
que havia de fazer? Resoluções bruscas
relampejavam-lhe
um momento no espirito, esvaiam-se. Queria
escrever-lhe! tiral-a por justiça! ir para o Brazil!
saber quem descobrira que elle era o auctor do
artigo!—E como isto era o mais practicavel áquella
hora, correu á redacção da
Voz do Districto.
Agostinho, estirado no canapé, com a véla ao
pé
sobre uma cadeira, saboreava os jornaes de Lisboa.
A face decomposta de João Eduardo assustou-o.
—Que é?
—É que me perdeste, maroto!
E d'um só fôlego accusou furiosamente o corcunda
de o ter trahido.
Agostinho erguera-se devagar, procurando imperturbavel
a bolsa do tabaco na algibeira da jaqueta.
—Homem, disse, nada d'espalhafatos... Eu dou-te
a minha palavra d'honra que não disse a ninguem
do
Communicado. É verdade
que ninguem
me perguntou...
—Mas quem foi, então? gritou o escrevente.
Agostinho enterrou a cabeça nos hombros.
—Eu o que sei é que os padres andavam n'uma
azafama para saber quem era. O Natario esteve ahi
uma manhã, por causa do annuncio de uma viuva
que recorre á caridade publica, mas do
Communicado
[308]
não se disse nem palavra... O doutor Godinho
é que sabia, entende-te com elle! Mas então
fizeram-te
alguma?
—Mataram-me! disse João Eduardo lugubremente.
Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado,
e sahiu arremessando a porta. Passeou na Praça;
foi ao acaso pelas ruas; depois, attrahido pela obscuridade,
á estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma
intoleravel palpitação surda latejar-lhe
interiormente
contra as fontes; apesar de ventar forte nos campos,
parecia-lhe seguir n'um silencio universal; por
vezes a idéa da sua desgraça rasgava-lhe
subitamente
o coração, e então imaginava
vêr toda a paizagem
oscillar e o chão da estrada afigurava-se-lhe
molle como um lamaçal. Voltou pela Sé quando
batiam
onze horas; e achou-se na rua da Misericordia,
com o olhar cravado para a janella da sala de jantar,
onde havia ainda luz; a vidraça do quarto
d'Amelia alumiou-se tambem; ella ia deitar-se, decerto...
Veio-lhe um desejo furioso da sua belleza,
do seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para casa:
uma fadiga intoleravel prostrou-o sobre a cama; depois
uma saudade indefinida, profunda, foi-o amollecendo,
e chorou muito tempo, enternecendo-se mais
com o som dos seus proprios soluços,—até que
ficou
adormecido, de bruços, n'uma massa inerte.
Ao outro dia, cedo, Amelia vinha da rua da Misericordia
[309]
para a Praça, quando ao pé do Arco
João
Eduardo lhe sahiu d'emboscada.
—Quero-lhe fallar, menina Amelia.
Ella recuou assustada, disse a tremer:
—Não tem que me fallar...
Mas elle plantára-se diante d'ella, muito decidido,
com os olhos vermelhos como carvões:
—Quero-lhe dizer... Lá do artigo, é verdade,
fui eu que o escrevi, foi uma desgraça; mas a menina
tinha-me ralado de ciumes... Mas o que a menina
diz de maus costumes é uma calumnia. Eu
sempre fui um homem de bem...
—O senhor padre Amaro é que o conhece! Faz
favor de me deixar passar...
Ao nome do parocho, João Eduardo fez-se livido
de raiva:
—Ah! é o senhor padre Amaro! É o maroto do
padre! Pois veremos! Ouça...
—Faz favor de me deixar passar! disse ella irritada,
tão alto, que um sujeito gordo de chale-manta
parou olhando.
João Eduardo recuou, tirando o chapéo; e ella,
immediatamente, refugiou-se na loja do Fernandes.
Então, n'um desespero, correu a casa do doutor
Godinho. Já na vespera, por entre os seus-accessos
de chôro, sentindo-se tão abandonado, se
lembrára
do doutor Godinho. Fôra outr'ora seu escrevente; e
[310]
como por pedido d'elle entrára no cartorio do Nunes
Ferral, e por sua influencia ia ser accommodado
no governo civil, julgava-o uma Providencia prodiga
e inesgotavel! Demais, desde que escrevera o
Communicado considerava-se da
redacção da
Voz do
Districto, do grupo da Maia; agora, que era atacado
pelos padres, devia claramente ir acolher-se á forte
protecção do seu chefe, do doutor Godinho, do
inimigo
da reacção, o «Cavour de
Leiria», como dizia,
arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, auctor
dos
Ferrões.—E
João Eduardo, dirigindo-se ao casarão
amarello, ao pé do Terreiro onde o doutor vivia,
ia n'um alvoroço d'esperanças, contente com se
refugiar, como um cão escorraçado, entre as
pernas
d'aquelle colosso.
O doutor Godinho descera já ao escriptorio, e repoltreado
na sua poltrona abbacial de prégos amarellos,
com os olhos no tecto de carvalho escuro,
acabava com beatitude o charuto do almoço. Recebeu
com magestade os «bons dias» de João
Eduardo.
—Então que temos, amigo?
As altas estantes d'in-folios graves, as resmas
d'autos, o apparatoso painel representando o marquez
de Pombal, de pé n'um terraço sobre o Tejo,
expulsando
com o dedo a esquadra ingleza—acanharam
como sempre João Eduardo; e foi com voz
embaraçada
que disse vinha alli para que sua excellencia
lhe désse remedio n'uma desgraça que lhe
succedia.
—Desordens, bordoada?
—Não, senhor, negocios de familia.
[311]
Contou então, prolixamente, a sua historia desde
a publicação do
Communicado: leu muito commovido,
a carta d'Amelia; descreveu a scena ao pé do
Arco... Alli estava agora, escorraçado da rua da
Misericordia
por obras do senhor parocho! E parecia-lhe
a elle, apesar de não ser formado em Coimbra,
que contra um padre que se introduzia n'uma familia,
desinquietava uma menina simples, a levava por
intrigas a romper com o noivo e ficava de portas a
dentro senhor d'ella—devia haver leis!
—Eu não sei, senhor doutor, mas deve haver
leis!
O doutor Godinho parecia contrariado.
—Leis!? exclamou traçando vivamente a perna.
Que leis quer vossê que haja? Quer querelar do parocho?...
Porque? Elle bateu-lhe? roubou-lhe o relogio?
insultou-o pela imprensa? Não. Então?...
—Oh, senhor doutor! mas intrigou-me com as
senhoras! Eu nunca fui homem de maus costumes,
senhor doutor! Calumniou-me!
—Tem testemunhas?
—Não, senhor.
—Então?
E o doutor Godinho, assentando os cotovêlos sobre
a banca, declarou que como advogado não tinha
nada a fazer. Os tribunaes não tomavam conhecimento
d'essas questões, d'esses dramas moraes por
assim dizer, que se passavam nas alcovas domesticas...
Como homem, como particular, como Alipio
de Vasconcellos Godinho tambem não podia intervir
[312]
porque não conhecia o senhor padre Amaro, nem
essas senhoras da rua da Misericordia... Lamentava
o facto, porque emfim fôra novo, sentira a poesia
da mocidade, e sabia (infelizmente sabia!) o
que eram esses transes do coração... E ahi
está tudo
o que elle podia fazer—lamentar! Tambem para
que tinha elle dado a sua affeição a uma
beata?...
João Eduardo interrompeu-o:
—A culpa não é d'ella, senhor doutor! A culpa
é do padre que a anda a desencaminhar! A culpa
é d'essa canalha do cabido!
O doutor Godinho estendeu com severidade a
mão, e aconselhou o snr. João Eduardo que tivesse
cuidado com semelhantes asserções! Nada provava
que o senhor parocho possuisse n'essa casa outra influencia
que não fosse a d'um habil director espiritual...
E recommendava ao snr. João Eduardo, com
a auctoridade que lhe davam os annos e a sua
posição
no paiz, que não fosse espalhar, por despeito,
accusações que só serviam para
destruir o prestigio
do sacerdocio, indispensavel n'uma sociedade bem
constituida!—Sem elle, tudo seria anarchia e orgia!
E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava
n'essa manhã com «o dom da palavra».
Mas a face consternada do escrevente, que não
se movia, de pé junto á banca, impacientava-o; e
disse com seccura, puxando para diante de si um
volume d'autos:
—Emfim, acabemos, que quer o amigo? Já vê,
eu não lhe posso dar remedio.
[313]
João Eduardo replicou, com um movimento de
coragem desesperada:
—Eu imaginei que o senhor doutor podia fazer
alguma coisa por mim... Porque emfim eu fui uma
victima... Tudo isto vem de se saber que eu escrevi
o
Communicado. E tinha-se combinado
que havia
de ser segredo. O Agostinho não o disse, só o
senhor doutor o sabia...
O doutor pulou de indignação na sua cadeira
abbacial:
—Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a
entender que fui eu que o disse? Não disse... Isto
é, disse; disse-o a minha mulher, porque n'uma
familia bem constituida não deve haver segredos
entre esposo e esposa. Ella perguntou-me, disse-lh'o...
Mas supponhamos que fui eu que o espalhei
pelas ruas. De duas uma: ou o
Communicado era
uma calumnia, e então sou eu que devo accusal-o
de ter polluido um jornal honrado com um acervo
de diffamaçães; ou era verdade, e
então que
homem é o senhor que se envergonha das verdades
que solta, e que não se atreve a manter á
luz do dia as opiniões que redigiu na escuridão
da
noite?
Duas lagrimas ennevoaram os olhos de João
Eduardo. Então, diante d'aquella expressão
esmorecida,
satisfeito de o ter esmagado com uma argumentação
tão logica e tão poderosa, o doutor Godinho
abrandou:
—Bem, não nos zanguemos, disse. Não se falla
[314]
mais era pontos d'honra... O que póde acreditar é
que lamento o seu desgosto.
Deu-lhe conselhos de uma solicitude paternal.
Que não succumbisse; havia mais meninas em Leiria
e meninas de bons principios que não viviam
sob a direcção da sotaina. Que fosse forte, e que
se consolasse pensando que elle, doutor Godinho—e
era elle!—tambem tivera em moço desgostos
do coração. Que evitasse o dominio das
paixões
que lhe seria prejudicial na carreira publica. E
que se o não fizesse por seu interesse proprio, o
fizesse ao menos em attenção a elle, doutor
Godinho!
João Eduardo sahiu do escriptorio, indignado,
julgando-se «trahido» pelo doutor.
—Isto succede-me a mim, resmungava, porque
sou um pobre diabo, não dou votos nas
eleições,
não vou ás
soirées do Novaes,
não subscrevo para
o club. Ah, que mundo! Se eu tivesse um par de
contos de reis!...
Veio-lhe então um desejo furioso de se vingar
dos padres, dos ricos, e da religião que os justifica.
Voltou muito decidido ao escriptorio, e entreabrindo
a porta:
—Vossa excellencia ao menos agora dá licença
que eu desabafe no jornal?... Queria contar esta
maroteira, cascar n'essa canalha...
Esta audacia do escrevente indignou o doutor.
Endireitou-se com severidade na poltrona, e cruzando
terrivelmente os braços:
[315]
—O snr. João Eduardo está realmente a abusar!
Pois o senhor vem-me pedir que transforme
um jornal d'idéas n'um jornal de
diffamações!? Vá,
não se prenda! Peça-me que insulte os principios
da
religião, que achincalhe o Redemptor, que repita as
babuseiras de Renan, que ataque as leis fundamentaes
do Estado, que injurie o rei, que vitupere a
instituição da familia! O senhor está
ebrio!
—Oh, senhor doutor!
—O senhor está ebrio! Cuidado, meu caro amigo,
cuidado, olhe que vai por um declive! É por
esse caminho que se chega a perder o respeito da
auctoridade, da lei, das coisas santas e do lar. É por
esse caminho que se vai ao crime! Escusa d'arregalar
os olhos... Ao crime, digo-lh'o eu! Tenho a
experiencia de vinte annos de fôro. Homem, detenha-se!
refreie essas paixões! Safa! Que idade tem
o senhor?
—Vinte e seis annos.
—Pois não ha desculpa para um homem de vinte
e seis annos ter essas idéas subversivas. Adeus,
feche a porta. E escute: escusa de pensar em mandar
outro
Communicado para outro
qualquer jornal.
Não lh'o consinto, eu que o tenho protegido
sempre! Havia de querer fazer espalhafato... Escusa
de negar, estou-lh'o a lêr nos olhos. Pois não
lh'o consinto! É para seu bem, para lhe poupar uma
má acção social!
Tomou uma grande attitude na poltrona, repetiu
com força:
[316]
—Uma pessima acção social! Aonde nos querem
os senhores levar com os seus materialismos,
os seus atheismos?! Quando tiverem dado cabo da
religião de nossos paes, que têm os senhores para
a substituir?! Que têm?! Mostre lá!
A expressão embaraçada de João Eduardo
(que
não tinha alli, para a mostrar, uma religião que
substituisse
a de nossos paes) fez triumphar o doutor.
—Não têm nada! Têm lama, quando muito
têm
palavriado! Mas emquanto eu fôr vivo, pelo menos
em Leiria, ha de ser respeitada a Fé e o principio
da Ordem! Podem pôr a Europa a fogo e sangue,
em Leiria não hão de erguer cabeça. Em
Leiria
estou eu álerta, e juro que lhes hei de ser funesto!
João Eduardo recebia d'hombros vergados estas
ameaças, sem as comprehender. Como podia o seu
Communicado e as intrigas da rua da
Misericordia
produzirem assim catastrophes sociaes e
revoluções
religiosas! Tanta severidade aniquilava-o. Ia perder
decerto a amizade do doutor, o emprego no governo
civil... Quiz abrandal-o:
—Oh, senhor doutor, mas vossa excellencia bem
vê...
O doutor interrompeu-o com um grande gesto:
—Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paixões,
a vingança o vão levando por um caminho fatal...
O que espero é que os meus conselhos o detenham.
Bem, adeus. Feche a porta. Feche a porta,
homem!
João Eduardo sahiu acabrunhado. Que havia de
[317]
fazer agora? O doutor Godinho, aquelle colosso, repellia-o
com palavras tremendas! E que podia elle,
pobre escrevente de cartorio, contra o padre Amaro
que tinha por si o clero, o chantre, o cabido, os bispos,
o Papa, classe solidaria e compacta que lhe apparecia
como uma medonha cidadella de bronze erguendo-se
até ao céo?! Eram elles que tinham causado
a resolução d'Amelia, a sua carta, a dureza das
suas palavras. Era uma intriga de parochos, conegos
e beatas. Se elle pudesse arrancal-a áquella influencia,
ella tornaria a ser bem depressa a sua Ameliasinha
que lhe bordava chinelas, e que vinha toda
córada vêl-o passar á janella! As
suspeitas que outr'ora
tivera tinham-se desvanecido n'aquelles serões
felizes, depois de decidido o casamento, quando ella,
costurando junto do candieiro, fallava da mobilia
que havia de comprar e dos arranjos da sua casinha.
Ella amava-o, decerto... Mas quê! tinham-lhe
dito que elle era o auctor do
Communicado, que era
hereje, que tinha costumes devassos; o parocho, na
sua voz pedante, ameaçára-a com o inferno; o
conego,
furioso, e todo poderoso na rua da Misericordia
porque dava para a panella, fallára têso—e a
pobre
menina, assustada, dominada, com aquelle bando
tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe
ao ouvido, coitada, cedera! Estava talvez persuadida,
de boa fé, que elle era uma fera! E áquella
hora, emquanto elle alli andava pelas ruas, escorraçado
e desgraçado, o padre Amaro, na saleta
da rua da Misericordia, enterrado na poltrona, senhor
[318]
da casa e senhor da rapariga, de perna traçada, palrava
d'alto! Canalha! E não haver leis que o vingassem!
e não poder sequer «fazer escandalo»,
agora
que a
Voz do Districto se lhe
tornava inaccessivel!
Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o
parocho aos murros, com a força do padre Brito.
Mas o que o satisfaria mais seriam artigos tremendos
n'um jornal que revelassem as intrigas da rua
da Misericordia, amotinassem a opinião, cahissem sobre
o padre como catastrophes, o forçassem a elle,
ao conego e aos outros a desapparecerem corridos
da casa da S. Joanneira! Ah! estava certo que a
Ameliasinha, livre d'aquelles galfarros, correria logo
aos seus braços, com lagrimas de
reconciliação...
Procurava assim á força convencer-se que
«a
culpa não era d'ella»; recordava os mezes de
felicidade
antes da chegada do parocho; arranjava
explicações
naturaes para aquellas maneirinhas ternas
que ella outr'ora tinha para o padre Amaro, e que
lhe tinham dado ciumes desesperados:—era o desejo,
coitada, de ser agradavel ao hospede, ao amigo
do senhor conego, de o reter para vantagem da
mãi e da casa! E além d'isso, como ella andava
contente depois de resolvido o casamento! A sua
indignação
contra o
Communicado, estava certo,
não
era natural d'ella—vinha-lhe soprada pelo parocho
e pelas beatas. E achava uma consolação n'esta
idéa
que não era repellido como namorado, como marido—mas
que era uma victima das intrigas do torpe
padre Amaro, que lhe desejava a noiva e que o
[319]
odiava como liberal! Isto accumulava-lhe na alma
um rancor desordenado contra o padre; descendo
a rua procurava anciosamente uma vingança, atirando
a imaginação aqui e além—mas
vinha-lhe
sempre a mesma idéa, o artigo de jornal, a verrina,
a imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida
revoltava-o. Ah, se tivesse por si um
«figurão»!
Um homem do campo, amarello como uma cidra,
que ia caminhando devagar, com o braço ao
peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor
Gouvêa.
—Na primeira rua, á esquerda, o portão verde
ao pé do lampeão, disse João Eduardo.
E uma esperança immensa alumiou-lhe bruscamente
a alma: o doutor Gouvêa é que o podia salvar!
O doutor era seu amigo: tratava-o por
tu desde
que o curára havia tres annos da pneumonia;
approvava muito o seu casamento com Amelia; havia
ainda semanas perguntára-lhe ao pé da
Praça:—«Então,
quando se faz essa rapariga feliz?» E que
respeitado, que temido na rua da Misericordia! Era
medico de todas as amigas da casa que, apesar de
se escandalisarem com a sua irreligião, dependiam
humildemente da sua sciencia para os achaques, os
flatos, os xaropes. Além d'isso, o doutor Gouvêa,
inimigo
decidido da «padraria», decerto se ia indignar
com aquella intriga beata: e João Eduardo
via-se já entrando na rua da Misericordia atraz do
doutor Gouvêa, que reprehendia a S. Joanneira, arrasava
[320]
o padre Amaro, convencia as velhas,—e a
sua felicidade recomeçava, inabalavel agora!
—O senhor doutor está? perguntou elle quasi
alegre, á criada que no pateo estendia a roupa ao
sol.
—Está na consulta, snr. Joãosinho,
faça favor
d'entrar.
Em dias de mercado os doentes do campo affluiam
sempre. Mas áquella hora—quando os visinhos das
freguezias se reunem nas tabernas—havia só um
velho, uma mulher com uma criança ao collo e o
homem do braço ao peito, esperando n'uma saleta
baixa com bancos, dois manjaricões na janella e uma
grande gravura da Coroação da Rainha Victoria.
Apesar
do sol claro que entrava do pateo, e de uma
fresca folhagem de tilia que roçava o peitoril da janella,
a saleta dava tristeza, como se as paredes, os
bancos, os mesmos manjaricões estivessem saturados
da melancolia das doenças que alli tinham passado.
João Eduardo entrou e sentou-se a um canto.
Tinha batido meio dia, e a mulher estava-se queixando
de ter esperado tanto: era de uma freguezia
distante, deixára no mercado a irmã, e havia uma
hora que o senhor doutor estava com duas senhoras!
A cada momento a criança rabujava, ella sacudia-a
nos braços: calavam-se depois: o velho arregaçava
a calça, contemplava com satisfação
uma
chaga na canella envolta em trapos: e o outro homem
dava bocejos desconsolados que tornavam mais
lugubre a sua longa face amarella. Aquella demora
[321]
enervava, amollecia o escrevente; sentia perder gradualmente
o animo de occupar o doutor Gouvêa;
preparava laboriosamente a sua historia, mas ella
parecia-lhe agora bem insufficiente para o interessar.
Vinha-lhe então um desalento, que as faces insipidas
dos doentes tornavam ainda mais intenso.
Positivamente era uma coisa bem triste esta vida,
cheia só de miserias, de sentimentos trahidos, de
afflicções, de doenças! Erguia-se; e
com as mãos
atraz das costas ia olhar desconsoladamente a
Coroação
da Rainha Victoria.
De vez em quando a mulher entreabria a porta,
a espreitar se as duas senhoras ainda lá estariam.
Lá estavam; e através do batente de baeta verde,
que fechava o gabinete do doutor, sentia-se as suas
vozes pachorrentas palrarem.
—Em cahindo aqui é dia perdido! rosnava o
velho.
Tambem elle deixára a cavalgadura á porta do
Fumaça, e a rapariga na praça... E o que teria a
esperar na botica, depois! Com tres legoas ainda a
fazer para voltar á freguezia!... Ser doente é
bom,
mas para quem é rico e tem vagares!
A idéa da doença, da solidão que ella
traz, faziam
agora parecer a João Eduardo mais amarga a
perda de Amelia. Se adoecesse teria de ir para o
hospital. O malvado do padre tirára-lhe tudo—mulher,
felicidade, confortos de familia, dôces companhias
da vida!
Emfim sentiram no corredor as duas senhoras
[322]
que sahiam. A mulher com a criança apanhou o
seu cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando-se
logo do banco junto da porta, disse com
satisfação:
—Agora cá o patrão!
—Vossemecê tem muito que consultar? perguntou-lhe
João Eduardo.
—Não senhor, é só receber a receita.
E immediatamente contou a historia da sua chaga:
fôra uma trave que lhe cahira em cima; não fizera
caso; depois a ferida assanhára-se; e agora alli
estava, manco e cortidinho de dôres.
—E vossa senhoria, é coisa de cuidado? perguntou
elle.
—Eu não estou doente, disse o escrevente. São
negocios com o senhor doutor.
Os dois homens olharam-n'o com inveja.
Emfim foi a vez do velho, depois a do homem
amarello de braço ao peito. João Eduardo,
só, passeava
nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito
difficil ir assim, sem ceremonia, pedir protecção
ao
doutor. Com que direito?... Lembrou-se de se queixar
primeiro de dôres do peito ou desarranjos de
estomago, e depois, incidentalmente, contar os seus
infortunios...
Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante
d'elle, com a sua longa barba grisalha que lhe cahia
sobre a quinzena de velludo preto, o largo chapéo
desabado na cabeça, calçando as luvas de fio
d'Escocia.
[323]
—Ólá! és tu, rapaz! Ha novidade na
rua da Misericordia?
João Eduardo córou.
—Não senhor, senhor doutor, queria-lhe fallar
em particular.
Seguiu-o ao gabinete—o conhecido gabinete do
doutor Gouvêa, que com o seu cahos de livros, o
seu tom poeirento, uma panoplia de flechas selvagens
e duas cegonhas empalhadas, tinha na cidade
a reputação d'uma «cella
d'alchimista».
O doutor puxou o seu
cebolão.
—Um quarto para as duas. Sê breve.
A face do escrevente exprimiu o embaraço de
condensar uma narração tão complicada.
—Está bom, disse o doutor, explica-te como puderes.
Não ha nada mais difficil que ser claro e breve;
é necessario ter genio. Que é?
João Eduardo então tartamudeou a sua historia,
insistindo sobretudo na perfidia do padre, exagerando
a innocencia de Amelia...
O doutor escutava-o, cofiando a barba.
—Vejo o que é. Tu e o padre, disse elle, quereis
ambos a rapariga. Como elle é o mais esperto
e o mais decidido, apanhou-a elle. É lei natural: o
mais forte despoja, elimina o mais fraco; a femea e
a prêsa pertencem-lhe.
Aquillo pareceu a João Eduardo um gracejo. Disse
com a voz perturbada:
—Vossa excellencia está a caçoar, senhor doutor,
mas a mim retalha-se-me o coração!
[324]
—Homem, acudiu o doutor com bondade, estou
a philosophar, não estou a caçoar... Mas emfim,
que
queres tu que eu te faça?
Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, tambem,
com mais pompa!
—Eu tenho a certeza que se vossa excellencia
lhe fallasse...
O doutor sorriu:
—Eu posso receitar á rapariga
este ou
aquelle
xarope, mas não lhe posso impôr
este ou aquelle homem!
Queres que lhe vá dizer: «A menina ha de
preferir aqui o snr. João Eduardo?» Queres que
vá
dizer ao padre, um maganão que eu nunca vi: «O
senhor faz favor de não seduzir esta menina?»
—Mas calumniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me
como um homem de maus costumes, um
patife...
—Não, não te calumniaram. Sob o ponto de vista
do padre e d'aquellas senhoras que jogam á noite
o quino na rua da Misericordia tu és um patife:
um christão que nos periodicos vitupera abbades, conegos,
curas, personagens tão importantes para se
communicar com Deus e para se salvar a alma, é
um patife. Não te calumniaram, amigo!
—Mas, senhor doutor...
—Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em
obediencia ás instrucções do senhor
padre fulano ou
sicrano, comporta-se como uma boa catholica. É o
que te digo. Toda a vida do bom catholico, os seus
pensamentos, as suas idéas, os seus sentimentos, as
[325]
suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas
noites, as suas relações de familia e de
visinhança,
os pratos do seu jantar, o seu vestuario e os seus
divertimentos—tudo isto é regulado pela auctoridade
ecclesiastica (abbade, bispo ou conego), approvado
ou censurado pelo confessor, aconselhado e ordenado
pelo
director da consciencia. O bom
catholico,
como a tua pequena, não se pertence; não tem
razão, nem vontade, nem arbitrio, nem sentir proprio;
o seu cura pensa, quer, determina, sente por
ella. O seu unico trabalho n'este mundo, que é ao
mesmo tempo o seu unico direito e o seu unico dever,
é aceitar esta direcção; aceital-a sem
a discutir;
obedecer-lhe, dê por onde der; se ella contraria
as suas idéas, deve pensar que as suas idéas
são
falsas; se ella fere as suas affeições, deve
pensar
que as suas affeições são culpadas.
Dado isto, se o
padre disse á pequena que não devia nem casar,
nem sequer fallar comtigo, a creatura prova, obedecendo-lhe,
que é uma boa catholica, uma devota consequente,
e que segue na vida, logicamente, a regra
moral que escolheu. Aqui está, e desculpa o
sermão.
João Eduardo ouvia com respeito, com espanto
estas phrases, a que a face placida, a bella barba grisalha
do doutor davam uma auctoridade maior. Parecia-lhe
agora quasi impossivel recuperar Amelia,
se ella pertencia assim tão absolutamente, alma e
sentidos, ao padre que a confessava. Mas emfim,
porque era elle considerado um marido prejudicial?
—Eu comprehenderia, disse, se fosse um homem
[326]
de maus costumes, senhor doutor. Mas eu porto-me
bem; eu não faço senão trabalhar; eu
não frequento
tabernas nem troças; eu não bebo, eu
não
jógo; as minhas noites passo-as na rua da Misericordia,
ou em casa a fazer serão para o cartorio...
—Meu rapaz, tu pódes ter socialmente todas as
virtudes; mas, segundo a religião de nossos paes,
todas as virtudes que não são catholicas
são inuteis
e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo,
verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres
e para a Igreja não contam. Se tu fôres um
modelo de bondade mas não fôres á
missa, não jejuares,
não te confessares, não te desbarretares para
o senhor cura—és simplesmente um maroto. Outros
personagens maiores que tu, cuja alma foi perfeita
e cuja regra de vida foi impeccavel, têm sido
julgados verdadeiros canalhas porque não foram
baptisados antes de ter sido perfeitos. Has de ter
ouvido fallar de Socrates, d'um outro chamado Platão,
de Catão, etc... Foram sujeitos famosos pelas
suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que é o grande
chavão da doutrina, disse que das virtudes d'esses
homens estava cheio o inferno... Isto prova que
a moral catholica é differente da moral natural e da
moral social... Mas são coisas que tu comprehendes
mal... Queres tu um exemplo? Eu sou, segundo a
doutrina catholica, um dos grandes desavergonhados
que passeiam as ruas da cidade; e o meu visinho
Peixoto, que matou a mulher com pancadas e
que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma
[327]
filhita de dez annos, é entre o clero um homem excellente
porque cumpre os seus deveres de devoto
e toca figle nas missas cantadas. Emfim, amigo, estas
coisas são assim. E parece que são boas, porque
ha milhares de pessoas respeitaveis que as consideram
boas, o Estado mantem-as, gasta até um dinheirão
para as manter, obriga-nos mesmo a respeital-as—e
eu, que estou aqui a fallar, pago todos
os annos um quartinho para que ellas continuem a
ser assim. Tu naturalmente pagas menos...
—Pago sete vintens, senhor doutor.
—Mas emfim vaes ás festas, ouves musica, sermão,
desforras-te dos teus sete vintens. Eu, o meu
quartinho perco-o; consolo-me apenas com a idéa
de que vai ajudar a manter o esplendor da Igreja—da
Igreja que em vida me considera um bandido, e
que para depois de morto me tem preparado um inferno
de primeira classe. Emfim, parece-me que temos
cavaqueando bastante... Que queres mais?
João Eduardo estava acabrunhado. Agora que escutava
o doutor, parecia-lhe, mais que nunca, que
se um homem de palavras tão sabias, de tantas
idéas, se interessasse por elle, toda a intriga seria
facilmente desfeita e a sua felicidade, o seu logar
na rua da Misericordia recobrados para sempre.
—Então vossa excellencia não póde
fazer nada
por mim? disse muito desconsolado.
—Eu posso talvez curar-te d'outra pneumonia.
Tens outra pneumonia a curar? Não? Então...
João Eduardo suspirou:
[328]
—Sou uma victima, senhor doutor!
—Fazes mal. Não deve haver victimas, quando
não seja senão para impedir que haja
tyrannos—disse
o doutor, pondo o seu largo chapéo desabado.
—Porque no fim de tudo, exclamou ainda João
Eduardo que se prendia ao doutor com uma sofreguidão
d'afogado, no fim de tudo o que o patife do
parocho quer, com todos os seus pretextos, é a rapariga!
Se ella fosse um camafeu, bem se importava
o maroto que eu fosse um impio ou não! O que
elle quer é a rapariga!
O doutor encolheu os hombros.
—É natural, coitado—disse, já com a
mão no
fecho da porta. Que queres tu? Elle tem para as
mulheres, como homem, paixões e orgãos; como
confessor, a importancia d'um Deus. É evidente que
ha de utilisar essa importancia para satisfazer essas
paixões; e que ha de cobrir essa
satisfação natural
com as apparencias e com os pretextos do serviço
divino... É natural.
João Eduardo então, vendo-o abrir a porta,
desvanecer-se
a esperança que o trouxera alli, disse,
furioso, vergastando o ar com o chapéo:
—Canalha de padres! Foi raça que sempre detestei!
Queria-a vêr varrida da face da terra, senhor
doutor!
—Isso é outra tolice, disse o doutor, resignando-se
a escutal-o ainda, e parando á porta do quarto.
Ouve lá. Tu crês em Deus? no Deus do
céo, no Deus
[329]
que lá está no alto do céo, e que
é lá de cima o
principio de toda a justiça e de toda a verdade?
João Eduardo, surprehendido, disse:
—Eu creio, sim senhor.
—E no peccado original?
—Tambem...
—Na vida futura, na redempção, etc?
—Fui educado n'essas crenças...
—Então para que queres varrer os padres da
face da terra? Deves pelo contrario ainda achar que
são poucos. És um liberal racionalista nos
limites da
Carta, ao que vejo... Mas se crês no Deus do céo,
que nos dirige lá de cima, e no peccado original, e
na vida futura, precisas d'uma classe de sacerdotes
que te expliquem a doutrina e a moral revelada de
Deus, que te ajudem a purificar da macula original
e te preparem o teu logar no paraiso! Tu necessitas
dos padres. E parece-me mesmo uma terrivel falta
de logica que os desacredites pela imprensa...
João Eduardo, attonito, balbuciou:
—Mas vossa excellencia, senhor doutor... Desculpe-me
vossa excellencia, mas...
—Dize, homem. Eu quê?
—Vossa excellencia não precisa dos padres n'este
mundo...
—Nem no outro. Eu não preciso dos padres no
mundo, porque não preciso do Deus do céo. Isto
quer dizer, meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro
em mim, isto é, o principio que dirige as minhas
acções e os meus juizos. Vulgo Consciencia...
Talvez
[330]
não comprehendas bem... O facto é que estou
aqui a expôr doutrinas subversivas... E realmente
são tres horas...
E mostrou-lhe o
cebolão.
Á porta do pateo, João Eduardo disse-lhe ainda:
—Vossa excellencia então desculpe, senhor doutor...
—Não ha de quê... Manda a rua da Misericordia
ao diabo!
João Eduardo interrompeu com calor:
—Isso é bom de dizer, senhor doutor, mas
quando a paixão está a roer cá por
dentro!...
—Ah! fez o doutor, é uma bella e grande coisa
a paixão! O amor é uma das grandes
forças da
civilisação. Bem dirigida levanta um mundo e
bastava
para nos fazer a revolução moral...—E mudando
de tom:—Mas escuta. Olha que isso ás vezes
não é paixão, não
está no coração... O
coração
é ordinariamente um termo de que nos servimos,
por decencia, para designar outro orgão. É
precisamente
esse orgão o unico que está interessado, a
maior parte das vezes, em questões de sentimento.
E n'esses casos o desgosto não dura. Adeus, estimo
que seja isso!
XV
João Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro.
Sentia-se enervado, todo cansado da noite
desesperada que passára, d'aquella manhã cheia de
passos inuteis, das conversas do doutor Godinho e
do doutor Gouvêa.
—Acabou-se, pensava, não posso fazer mais nada!
É aguentar.
Tinha a alma extenuada de tantos esforços de
paixão, d'esperança e de cólera.
Desejaria ir estirar-se
ao comprido, n'um sitio isolado, longe de advogados,
de mulheres e de padres, e dormir durante
mezes. Mas como já passava das tres horas, apressava-se
para o cartorio do Nunes. Teria talvez ainda
de ouvir um sermão por ter chegado tão tarde!
Triste
vida a sua!
Dobrára a esquina no Terreiro, quando ao pé da
[332]
casa de pasto do Osorio se encontrou com um moço
de quinzena clara, debruada de uma fita negra muito
larga, e com um bigodinho tão preto que parecia
postiço sobre as suas feições
extremamente pallidas.
—Ólé! Que é feito, João
Eduardo?
Era um Gustavo, typographo da
Voz do
Districto,
que havia dois mezes fôra para Lisboa. Segundo dizia
o Agostinho, era «rapaz de cabeça e instruidote,
mas d'idéas do diabo». Escrevia ás
vezes artigos de
Politica Estrangeira, onde introduzia phrases poeticas
e retumbantes, amaldiçoando Napoleão III, o czar
e os oppressores do povo, chorando a escravidão da
Polonia e a miseria do proletario. A sympathia entre
elle e João Eduardo proviera de conversas sobre
religião,
em que ambos exhalavam o seu odio ao clero
e a sua admiração por Jesus Christo. A
revolução
d'Hespanha enthusiasmára-o tanto que aspirára
a pertencer á Internacional; e o desejo de viver
n'um centro operario, onde houvesse associações,
discursos e fraternidade, levára-o a Lisboa.
Encontrára
lá bom trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava
a mãi, velha e doente, e como era mais economico
viverem juntos, voltára a Leiria. O
Districto,
além d'isso, na perspectiva
d'eleições, prosperava a
ponto de augmentar o salario aos tres typographos.
—De modo que lá estou outra vez com o rachitico...
Vinha jantar, e convidou logo João Eduardo a
que lhe fizesse companhia. Não havia d'acabar o
mundo, que diabo, por elle faltar um dia ao cartorio!
[333]
João Eduardo então lembrou-se que desde a vespera
não tinha comido. Era talvez a debilidade que
o trouxera assim estonteado, tão prompto a desanimar...
Decidiu-se logo—contente, depois das emoções
e das fadigas da manhã, de se estirar no banco
da taberna, diante d'um prato cheio, na intimidade
com um camarada d'odios iguaes aos seus. Demais,
os repellões que soffrera davam-lhe uma necessidade,
uma avidez de sympathia; e foi com calor
que disse:
—Homem, valeu! Caes-me do céo! Este mundo
é uma choldra. Se não fosse por alguma hora
que se passa em amizade, caramba, não valia a pena
andar por cá!
Este modo, tão novo no João Eduardo, no
Pâcatinho,
espantou Gustavo.
—Porquê? As coisas não correm bem? Turras
com a besta do Nunes, hein? perguntou-lhe.
—Não. Um bocado de
spleen.
—Isso de
spleen é
d'inglez! Oh menino, havias
de vêr o Taborda no
Amor
londrino!... Deixa lá o
spleen. É deitar lastro
para dentro e carregar no liquido!
Travou-lhe do braço, metteu-o pela porta da taberna.
—Viva o tio Osorio! Saude e fraternidade!
O dono da casa de pasto, o tio Osorio, personagem
obeso e contente da vida, com as mangas da
camisa arregaçadas até aos hombros, os
braços nús
muito brancos apoiados sobre o balcão, a face balofa
[334]
e finoria, felicitou logo Gustavo de o vêr de novo em
Leiria. Achava-o mais magrito... Havia de ser das
más aguas de Lisboa e do muito
pau
campeche nos
vinhos... E que havia d'elle servir aos cavalheiros?
Gustavo, plantando-se diante do contador, de chapéo
para a nuca, apressou-se a soltar o gracejo, que
tanto o enthusiasmára em Lisboa:
—Tio Osorio, sirva-nos figado de rei, com rim
grelhado de padre!
O tio Osorio, prompto á réplica, disse logo,
dando
um raspão de rodilha sobre o zinco do contador:
—Não temos cá d'isso, snr. Gustavo. Isso
é petisco
da capital.
—Então estão vossês muito atrazados!
Em Lisboa
era todos os dias o meu almoço... Bem, acabou-se,
dê-nos duas iscas com batatas... E bem saltadinho,
isso!
—Hão de ser servidos como amigos.
Accommodaram-se á «mesa dos
envergonhados»,
entre dois tabiques de pinho fechados por uma cortina
de chita. O tio Osorio, que apreciava Gustavo,
«moço instruido e de pouca
troça», veio elle mesmo
trazer a garrafa do tinto e as azeitonas; e limpando
os copos ao avental enxovalhado:
—Então que ha de novo pela capital, snr. Gustavo?
Como vai por lá aquillo?
O typographo deu immediatamente seriedade ao
rosto; passou a mão pelos cabellos, e deixou cahir
algumas phrases enigmaticas:
—Tremidito... Muito pouca vergonha em politica...
[335]
A classe operaria começa a mexer-se... Falta
d'união, por ora... Está-se á espera
de vêr como as
coisas correm em Hespanha... Ha de havel-as bonitas!
Tudo depende d'Hespanha ...
Mas o tio Osorio, que juntára alguns vintens e
comprára uma fazenda, tinha horror a tumultos...
O que se queria no paiz era paz... Sobretudo o que
lhe desagradava era contar-se com hespanhoes...
De Hespanha, deviam os cavalheiros sabel-o, «nem
bom vento nem bom casamento»!
—Os povos são todos irmãos! exclamou Gustavo.
Quando se tratar d'atirar abaixo Bourbons e imperadores,
camarilhas e fidalguia, não ha portuguezes
nem hespanhoes, todos são irmãos! Tudo
é fraternidade,
tio Osorio!
—Pois então é beber-lhe á saude, e
beber-lhe
rijo, que isso é que faz andar o negocio, disse o tio
Osorio tranquillamente, rolando a sua obesidade para
fóra do cubiculo.
—Elephante! rosnou o typographo, chocado
com aquella indifferença pela Fraternidade dos Povos.
Que se podia esperar, de resto, d'um proprietario
e d'um agente d'eleições?
Trauteou a
Marselheza, enchendo os
copos d'alto,
e quiz saber o que tinha feito o amigo João
Eduardo... Já se não ia pelo
Districto? O rachitico
dissera-lhe que não havia despegal-o da rua da
Misericordia...
—E quando é esse casamento, por fim?
João Eduardo córou, disse vagamente:
[336]
—Nada decidido... Tem havido difficuldades.—E
acrescentou com um sorriso desconsolado:—Temos
tido arrufos.
—Pieguices! soltou o typographo, com um movimento
d'hombros, que exprimia um desdem de
revolucionario pelas frivolidades do sentimento.
—Pieguices... Não sei se são pieguices, disse
João Eduardo. O que sei é que dão
desgostos... Arrasam
um homem, Gustavo...
Calou-se, mordendo o beiço, para recalcar a
emoção que o revolvia.
Mas o typographo achava todas essas historias de
mulheres ridiculas. O tempo não estava para amores...
O homem do povo, o operario que se agarrava
a uma saia para não despegar, era um inutil...
era um vendido! Em que se devia pensar não era
em namoros: era em dar a liberdade ao povo, livrar
o trabalho das garras do capital, acabar com os
monopolios, trabalhar para a republica! Não se queria
lamuria, queria-se acção, queria-se a
força!—E
carregava furiosamente no
r da
palavra—a forrrça!—agitando
os seus pulsos magrissimos de tisico sobre
o grande prato d'iscas que o moço trouxera.
João Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo
em que o typographo, doido pela Julia padeira,
apparecia sempre com os olhos vermelhos como carvões,
e atroava a typographia com suspiros medonhos.
A cada
ai os camaradas,
troçando, davam
uma tossesinha de garganta. Um dia mesmo, Gustavo
e o Medeiros tinham-se esmurrado no pateo...
[337]
—Olha quem falla! disse por fim. És como os
outros... Estás ahi a palrar, e quando te chega
és
como os outros.
O typographo então—que, desde que em Lisboa
frequentára um Club democratico d'Alcantara e
ajudára
a redigir um manifesto aos irmãos cigarreiros
em
grève, se considerava
exclusivamente votado ao
serviço do Proletariado e da Republica—escandalisou-se.
Elle? Elle como os outros? Perder o seu tempo
com saias?...
—Está vossa senhoria muito enganado!—E recolheu-se
a um silencio chocado, partindo com furor
a sua isca.
João Eduardo receou tel-o offendido.
—Ó Gustavo, sejamos razoaveis: um homem
póde ter os seus principios, trabalhar pela sua causa,
mas casar, arranjar o seu conchego, ter uma família.
—Nunca! exclamou o typographo exaltado. O
homem que casa está perdido! D'ahi por diante é
ganhar a papa, não se mexer do buraco, não ter um
momento para os amigos, passear de noite os marmanjos
quando elles berram com os dentes... É um
inutil! é um vendido! As mulheres não entendem
nada de politica. Têm medo que o homem se metta
em barulhos, tenha turras com a policia... Está um
patriota atado de pés e mãos! E quando ha um
segredo
a guardar? O homem casado não póde guardar
um segredo!... E ahi está ás vezes uma
revolução
compremettida... Sêbo p'r'á familia! Outra de
azeitonas, tio Osorio!
[338]
A pansa do tio Osorio appareceu entre os tabiques.
—Então que estão os senhores aqui a questionar,
que parece que entraram os da
Maia
no conselho
de districto?
Gustavo atirou-se para o fundo do banco, de perna
estirada, e interpellando-o d'alto:
—O tio Osorio é que vai dizer. Diga lá o amigo.
Vossemecê era homem de mudar as suas opiniões
politicas para fazer a vontade á sua patrôa?
O tio Osorio acariciou o cachaço e disse com
um tom finorio:
—Eu lhe respondo, senhor Gustavo. Mulheres
são mais espertas que nós... E em politica, como
em negocio, quem fôr com o que ellas dizem vai
pelo seguro... Eu sempre consulto a minha, e se
quer que lhe diga, já vai em vinte annos e não me
tenho achado mal.
Gustavo pulou no banco:
—Vossê é um vendido! gritou.
O tio Osorio, acostumado áquella expressão
querida
do typographo, não se escandilisou; gracejou
até, com o seu amor ás boas réplicas:
—Vendido não direi, mas vendedor p'r'ó que
quizer... Pois é o que lhe digo, snr. Gustavo. O senhor
casará, e depois m'as contará.
—O que lhe hei de contar, é quando houver
uma revolução, entrar-lhe por aqui d'espingarda
ao
hombro, e mettel-o em conselho de guerra, seu capitalista!
[339]
—Pois emquanto isso não chega é beber-lhe e
beber-lhe rijo, disse o tio Osorio retirando-se com
pachorra.
—Hippopotamo! resmungou o typographo.
E, como adorava discussões, recomeçou
logo—sustentando
que o homem, embeiçado por uma saia,
não tem firmeza nas suas convicções
politicas...
João Eduardo sorria tristemente, n'uma
negação
muda, pensando comsigo que, apesar da sua paixão
por Amelia, não se tinha confessado nos dois ultimos
annos!
—Tenho provas! berrava Gustavo.
Citou um livre-pensador das suas relações que,
para manter a paz domestica, se sujeitava a jejuar
ás sextas-feiras, e a palmilhar aos domingos o caminho
da capella de ripanço debaixo do braço...
—E é o que te ha de succeder!... Tu tens idéas
menos más a respeito de religião, mas ainda te
hei
de vêr d'opa vermelha e cirio na mão na
procissão
do Senhor dos Passos... Philosophia e atheismo não
custam nada quando se conversa no bilhar entre rapazes...
Mas pratical-os em familia, quando se tem
uma mulher bonita e devota, é o diabo! É o que te
ha de succeder, se é que te não vai succedendo
já:
has de atirar as tuas convicções liberaes para o
caixão
do cisco, e fazer barretadas ao confessor da casa!
João Eduardo fazia-se escarlate de
indignação.
Mesmo nos tempos da sua felicidade, quando tinha
Amelia certa, aquella accusação (que o typographo
fazia só para questionar, para palrar) tel-o-hia
escandalisado.
[340]
Mas hoje! Justamente quando elle perdera
Amelia por ter dito d'alto, n'um jornal, o seu
horror a beatos! Hoje que se achava alli, com o
coração
partido, roubado de toda a alegria, exactamente
pelas suas opiniões liberaes!...
—Isso dito a mim tem graça! disse com uma
amargura sombria.
O typographo galhofou:
—Homem, não me constou ainda que fosses um
martyr da liberdade!
—Por quem és não me apoquentes, Gustavo, disse
o escrevente muito chocado. Tu não sabes o que
se tem passado. Se soubesses não me dizias isso...
Contou-lhe então a historia do
Communicado—calando
todavia que o escrevera n'um fogo de ciumes,
e apresentando-o como uma pura affirmação
de principios... E que notasse esta circumstancia,
ia então casar com uma rapariga devota, n'uma casa
que era mais frequentada por padres que a sacristia
da Sé...
—E assignaste? perguntou Gustavo, espantado
da revelação.
—O doutor Godinho não quiz, disse o escrevente
córando um pouco.
—E déste-lhes uma desanda, hein?
—A todos, de rachar!
O typographo, enthusiasmado, berrou por «outra
de tinto»!
Encheu os copos com transporte, bebeu uma
grande saude a João Eduardo.
[341]
—Caramba, quero vêr isso! Quero mandal-o á
rapaziada em Lisboa!... E que effeito fez?
—Um escandalo mestre.
—E os padrecas?
—Em braza!
—Mas como souberam que eras tu?
João Eduardo encolheu os hombros. O Agostinho
não o dissera. Desconfiava da mulher do Godinho,
que o sabia pelo marido, e que o fôra metter no bico
do padre Silverio, seu confessor, o padre Silverio
da rua das Therezas...
—Um gordo, que parece hydropico?
—Sim.
—Que bêsta! rugiu o typographo com rancor.
Olhava agora João Eduardo com respeito, aquelle
João Eduardo que se lhe revelava inesperadamente
um paladino do livre-pensamento.
—Bebe, amigo, bebe!—dizia-lhe, enchendo-lhe
o copo com affecto, como se aquelle esforço heroico
de liberalismo necessitasse ainda, depois de
tantos dias, reconfortos excepcionaes.
E que se tinha passado? Que tinha dito a gente
da rua da Misericordia?
Tanto interesse commoveu João Eduardo: e d'um
fôlego fez a sua confidencia. Mostrou-lhe mesmo a
carta d'Amelia que ella decerto, coitada, fôra levada
a escrever n'um terror do inferno, sob a pressão dos
padres furiosos...
—E aqui tens a victima que eu sou, Gustavo!
Era-o com effeito; e o typographo considerava-o
[342]
com uma admiração crescente. Já
não era o
Pacatinho,
o escrevente do Nunes, o chichisbéo da rua
da Misericordia—era uma
victima das
perseguições
religiosas. Era a primeira que o typographo via; e,
apesar de não lhe apparecer na attitude tradicional
das estampas de propaganda, amarrado a um poste
de fogueira ou fugindo com a familia espavorida a
soldados que galopam da sombra do ultimo plano,
achava-o interessante. Invejava-lhe secretamente
aquella honra social. Que
chic que
lhe daria a elle
entre a rapaziada d'Alcantara! Famosa pechincha, ser
uma
victima da
reacção sem perder o conforto
das
iscas do tio Osorio e os salarios inteiros ao sabbado!—Mas
sobretudo o procedimento dos padres enfurecia-o!
Para se vingarem d'um liberal, intrigarem-no,
tiraram-lhe a noiva!—Oh, que canalha!... E
esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e á
Familia, trovejou d'alto contra o clero, que é quem
sempre destroe essa instituição social, perfeita,
d'origem
divina!
—Isso precisa uma vingança medonha, menino!
É necessario arrasal-os!
Uma vingança? João Eduardo desejava-a,
vorazmente!
Mas qual?
—Qual? Contar tudo no
Districto,
n'um artigo
tremendo!
João Eduardo citou-lhe as palavras do doutor Godinho:
d'alli por diante o
Districto estava
fechado
aos senhores livre-pensadores!
—Cavalgadura! rugiu o typographo.
[343]
Mas tinha uma idéa, caramba! Publicar um folheto!
Um folheto de vinte paginas, o que se chama
no Brazil uma
mofina, mas n'um
estylo floreado
(elle se encarregava d'isso), cahindo sobre o clero
com um desabamento de verdades mortaes!
João Eduardo enthusiasmou-se. E diante d'aquella
sympathia activa de Gustavo, vendo n'elle um irmão,
soltou as ultimas confidencias, as mais dolorosas.
O que havia no fundo da intriga era a paixão
do padre Amaro pela pequena, e era para se apoderar
d'ella que o escorraçava a elle... O inimigo,
o malvado, o carrasco—era o parocho!
O typographo apertou as mãos na cabeça:
semelhante
caso (que todavia era para elle trivial, nas locaes
que compunha) succedido a um amigo seu que
estava alli bebendo com elle, a um democrata, parecia-lhe
monstruoso, alguma coisa semelhante aos furores
de Tiberio na velhice, violando, em banhos perfumados,
as carnes delicadas de mancebos patricios.
Não queria acreditar. João Eduardo accumulou
as provas. E então Gustavo, que tinha molhado vastamente
de tinta as iscas de figado, ergueu os punhos
fechados, e com a face entumecida, dente rilhado,
berrou em rouco:
—Abaixo a religião!
Do outro lado do tabique uma voz trocista grasnou
em réplica:
—Viva Pio Nono!
Gustavo ergueu-se para ir esbofetear o entremettido.
Mas João Eduardo socegou-o. E o typographo,
[344]
sentando-se tranquillamente, rechupou o fundo
do copo.
Então, com os cotovêlos sobre a mesa, a garrafa
entre elles, conversaram baixo, de rosto a rosto,
sobre o plano do folheto. A coisa era facil: escrevel-o-hiam
ambos. João Eduardo queria-o em fórma
de romance, d'enredo negro, dando ao personagem
do parocho os vicios e as perversidades de Caligula
e d'Hellogabalo. O typographo porém queria um livro
philosophico, de estylo e de principios, que
demolisse
d'uma vez para sempre o Ultramontanismo!
Elle mesmo se encarregava de imprimir a obra aos
serões,
gratis,
já se sabe.—Mas appareceu-lhes então,
bruscamente, uma difficuldade.
—O papel? Como se ha de arranjar o papel?
Era uma despeza de nove ou dez mil reis; nenhum
os tinha—nem um amigo que, por dedicação
aos principios, lh'os adiantasse.
—Pede-os ao Nunes por conta do teu ordenado!
lembrou vivamente o typographo.
João Eduardo coçou desconsoladamente a
cabeça.
Estava justamente pensando no Nunes e na sua
indignação de devoto, de membro da junta de
parochia,
d'amigo do chantre, apenas lêsse o pamphleto!
E se soubesse que era o seu escrevente que o
compuzera, com as pennas do cartorio, no papel almaço
do cartorio... Via-o já rôxo de cólera,
alçando
sobre o bico dos sapatos brancos a sua pessoa
gordalhufa, e gritando na voz de grillo:—«Fóra
d'aqui, pedreiro-livre, fóra d'aqui!»
[345]
—Ficava eu bem arranjado, disse João Eduardo
muito sério, nem mulher nem pão!
Isto fez lembrar tambem a Gustavo a cólera provavel
do doutor Godinho, dono da typographia. O
doutor Godinho, que depois da reconciliação com a
gente da rua da Misericordia, retomára publicamente
a sua consideravel posição de pilar da Igreja e
esteio da Fé...
—É o diabo, póde-nos sahir caro, disse elle.
—É impossivel! disse o escrevente.
Então praguejaram de raiva. Perder uma occasião
d'aquellas para pôr a calva á mostra ao clero!
O plano do folheto, como uma columna tombada
que parece maior, afigurava-se-lhes, agora que
estava derrubado, d'uma altura, d'uma importancia
colossal. Não era já a
demolição local d'um parocho
scelerado, era a ruina, ao longe e ao largo, de todo
o clero, dos jesuitas, do poder temporal, de outras
coisas funestas...—Maldição! se não
fosse o Nunes,
se não fosse o Godinho, se não fossem os nove
mil reis do papel...
Aquelle perpetuo obstaculo do pobre, falta de dinheiro
e dependencia do patrão, que até para um
folheto era estorvo, revoltou-os contra a sociedade.
—Positivamente é necessario uma
revolução!
affirmou o typographo. É necessario arrasar tudo,
tudo!—E o seu largo gesto sobre a mesa indicava,
n'um formidavel nivelamento social, uma demolição
de igrejas, palacios, bancos, quarteis e predios de
Godinhos!—Outra do tinto, tio Osorio!...
[346]
Mas o tio Osorio não apparecia. Gustavo martellou
a mesa a toda a força com o cabo da faca. E
emfim, furioso, sahiu fóra ao contador «para
arrebentar
a pansa áquelle vendido que fazia assim esperar
um cidadão».
Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando
com o barão de Via-Clara, que, em vesperas
d'eleições,
vinha pelas casas de pasto apertar a mão aos
compadres. E alli na taberna, parecia magnifico o
barão, com a sua luneta d'ouro, os botins de verniz
sobre o sólo terreo, tossicando ao cheiro acre do
azeite fervido e das emanações das borras de
vinho.
Gustavo, avistando-o, recolheu discretamente ao
cubiculo.
—Está com o barão, disse n'uma surdina
respeitosa.
Mas vendo João Eduardo aniquilado, com a cabeça
entre os punhos, o typographo exhortou-o a
não esmorecer. Que diabo! No fim, livrava-se de casar
com uma beata...
—Não me poder vingar d'aquelle maroto! interrompeu
João Eduardo com um repellão no prato.
—Não te afflijas, prometteu o typographo com
solemnidade, que a vingança não vem longe!
Fez-lhe então, baixo, a confidencia «das coisas
que se preparavam em Lisboa». Tinham-lhe afiançado
que havia um club republicano a que até pertenciam
figurões—o que era para elle uma garantia
superior de triumpho. Além d'isso, a rapaziada
do trabalho mexia-se... Elle mesmo—e murmurava
[347]
quasi contra a face de João Eduardo, estirado sobre
a mesa—fôra fallado para pertencer a uma
secção
da Internacional, que devia organisar um hespanhol
de Madrid; nunca vira o hespanhol, que se disfarçava
por causa da policia; e a coisa falhára porque o
Comité tinha falta de
fundos... Mas era certo haver
um homem, que possuia um talho, que promettera
cem mil reis... O exercito, além d'isso, estava na
coisa: tinha visto n'uma reunião um sujeito barrigudo
que lhe tinham dito que era major, e que tinha
cara de major...—De modo que, com todos
estes elementos, a opinião d'elle Gustavo, era que
dentro de mezes, governo, rei, fidalgos, capitalistas,
bispos, todos esses monstros iam pelos ares!
—E então somos nós os reisinhos, menino!
Godinho,
Nunes, toda a cambada ferramol-a na enxovia
de S. Francisco. Eu a quem me atiro é ao Godinho...
Padres, derreamol-os á pancada! E o povo
respira, emfim!
—Mas d'aqui até lá! suspirou João
Eduardo, que
pensava com amargura que quando a revolução
viesse já seria tarde para recuperar a Ameliasinha...
O tio Osorio então appareceu com a garrafa.
—Ora até que emfim, «seu fidalgo»!
disse o
typographo a trasbordar de sarcasmo.
—Não se pertence á classe, mas é-se
tratado
por ella com consideração, replicou logo o tio
Osorio,
a quem a satisfação fazia parecer mais pansudo.
—Por causa de meia duzia de votos!
—Dezoito na freguezia, e esperanças de dezenove.
[348]
E que se ha de servir mais aos cavalheiros? Nada
mais? Pois é pena. Então é beber-lhe,
é beber-lhe!
E correu a cortina, deixando os dois amigos em
frente da garrafa cheia, aspirarem a uma
Revolução
que lhes permittisse—a um rehaver a menina Amelia,
a outro espancar o patrão Godinho.
Eram quasi cinco horas quando sahiram emfim
do cubiculo. O tio Osorio, que se interessava por elles
por serem rapazes d'instrucção, notou logo,
examinando-os
do canto do balcão onde saboreava o
seu
Popular, que «vinham
tocaditos». João Eduardo,
sobretudo, de chapéo carregado e beiço trombudo:
«pessoa de mau vinho», pensou o tio Osorio, que
o conhecia pouco. Mas o snr. Gustavo, como sempre,
depois dos seus tres litros, resplandecia de jubilo.
Grande rapaz! Era elle que pagava a conta; e
gingando para o balcão, batendo d'alto com as suas
duas placas:
—Encafua mais essas na burra, Osorio pipa!
—O que é pena é que sejam só duas,
snr. Gustavo.
—Ah bandido! imaginas que o suor do povo,
o dinheiro do trabalho é para encher a pansa dos
Philistinos? Mas não as perdes! Que no dia do ajuste
de contas quem ha de ter a honra de te furar
esse bandulho ha de ser cá o Bibi... E o Bibi sou
eu... Eu é que sou o Bibi! Não é
verdade, João,
quem é o Bibi?
João Eduardo não o escutava: muito carrancudo,
olhava com desconfiança um borracho, que na mesa
[349]
do fundo, diante do seu litro vazio, com o queixo
na palma da mão e o cachimbo nos dentes,
embasbacára,
maravilhado, para os dois amigos.
O typographo puxou-o para o balcão:
—Dize aqui ao tio Osorio quem é o Bibi! Quem é
o Bibi?... Olhe p'ra isto, tio Osorio! Rapaz de talento,
e dos bons! Veja-me isto! Com duas pennadas dá
cabo do ultramontanismo! É cá dos meus! Tambem
entre nós é p'r'á vida e
p'r'á morte. Deixa lá a conta,
Osorio barrigudo, ouve o que te digo! Este é dos
bons... E se elle aqui voltar e quizer dois litros a
credito, é dar-lh'os... Cá o Bibi responde por
tudo.
—Temos pois, começou o tio Osorio, iscas a dois,
salada a dois...
Mas o borracho arrancára-se com esforço ao seu
banco: de cachimbo espetado, arrotando forte, veio
plantar-se diante do typographo, e, tremeleando nas
pernas, estendeu-lhe a mão aberta.
Gustavo considerou-o d'alto, com nojo:
—Que quer vossê? Aposto que foi vossê que
berrou ha pouco «Viva Pio Nono»? Seu vendido...
Tire p'ra lá a pata!
O borracho, repellido, grunhiu; e, embicando
contra João Eduardo, offereceu-lhe a mão
espalmada.
—Arrede p'ra lá, seu animal! disse-lhe o escrevente
desabrido.
—Tudo amizade... Tudo amizade... resmungava
o borracho.
E não se arredava, com os cinco dedos muito
espetados, despedindo um halito fetido.
[350]
João Eduardo, furioso, atirou-o de repellão
contra
o contador.
—Brincadeiras de mãos, não! exclamou logo
severamente
o tio Osorio. Brutalidades, não!
—Que se não mettesse commigo, rosnou o escrevente.
E a vossê faço-lhe o mesmo...
—Quem não tem decencia vai p'r'á rua, disse
muito grave o tio Osorio.
—Quem vai p'r'á rua, quem vai p'r'á rua?
rugiu o escrevente, empinando-se, de punho fechado.
Repita lá isso d'ir p'r'á rua! Com quem
está
vossê a fallar?
O tio Osorio não replicava, apoiado sobre as
mãos ao balcão, patenteando os seus enormes
braços
que lhe faziam o estabelecimento respeitado.
Mas Gustavo, com auctoridade, poz-se entre os
dois, e declarou que era necessario ser-se cavalheiro!
Questões e más palavras, não! Podia-se
chalacear
e troçar os amigos, mas como cavalheiros! E
alli só havia cavalheiros!
Arrastou para um canto o escrevente, que resmungava
muito resentido.
—Oh, João! oh, João! dizia-lhe com grandes
gestos, isso não é d'um homem illustrado!
Que diabo! Era necessario ter-se boas maneiras!
Com repentes, com vinho desordeiro, não havia pandega,
nem sociedade, nem fraternidade!
Voltou ao tio Osorio, fallando-lhe sobre o hombro,
excitado:
—Eu respondo por elle, Osorio! É um cavalheiro!
[351]
Mas tem tido desgostos, e não está acostumado
a um litro de mais. É o que é! Mas é
dos bons...
Vossê desculpe, tio Osorio. Que eu respondo por
elle...
Foi buscar o escrevente, persuadiu-o a apertar a
mão ao tio Osorio. O taberneiro declarou com emphase
que não quizera insultar o cavalheiro. Os
shake-hands
então succederam-se com vehemencia. Para
consolidar a reconciliação, o typographo pagou
tres
«canas brancas». João Eduardo, por brio,
offereceu
tambem um «giro» de cognac. E com os copos em
fila sobre o balcão, trocavam boas palavras, tratavam-se
de cavalheiros—emquanto o borracho, esquecido
ao seu canto, derreado para cima da mesa, a cabeça
sobre os punhos e o nariz sobre o litro, se babava
silenciosamente, com o cachimbo cravado nos
dentes.
—D'isto é que eu gósto! dizia o typographo a
quem a aguardente augmentára a ternura. Harmonia!
Cá o meu fraco é a harmonia! Harmonia entre
a rapaziada e entre a humanidade... O que eu queria
era vêr uma grande mesa, e toda a humanidade
sentada n'um banquete, e fogo preso, e chalaça, e
decidirem-se as questões sociaes! E o dia não vem
longe em que vossê o ha de vêr, tio Osorio!... Em
Lisboa as coisas vão-se preparando p'ra isso. E o
tio Osorio é que ha de fornecer o vinho... Hein,
que negociosinho! Diga que não sou amigo!
—Obrigado, snr. Gustavo, obrigado...
—Isto aqui entre nós, hein, que somos todos
[352]
cavalheiros! E cá este—abraçava João
Eduardo—é
como se fosse irmão! Entre nós é
p'r'á vida e
p'r'á morte! E é mandar a tristeza ao diabo,
rapaz!
Toca a escrever o folheto... O Godinho, e o Nunes...
—O Nunes racho-o! soltou com força o escrevente,
que, depois das «saudes» com cana, parecia
mais sombrio.
Dois soldados entraram então na taberna—e
Gustavo julgou que eram horas d'ir para a typographia.
Senão, não se haviam de separar todo o dia,
não se haviam de separar toda a vida!... Mas o
trabalho é dever, o trabalho é virtude!
Sahiram, emfim, depois de mais
shake-hands
com o tio Osorio. Á porta, Gustavo jurou ainda ao
escrevente uma lealdade d'irmão; obrigou-o a aceitar
a sua bolsa de tabaco; e desappareceu á esquina
da rua, de chapéo para a nuca, trauteando o
Hymno
do trabalho.
João Eduardo, só, abalou logo para a rua da
Misericordia.
Ao chegar á porta da S. Joanneira, apagou
com cuidado o cigarro na sola do sapato, e deu
um puxão tremendo ao cordão da campainha.
A
Ruça veio, correndo.
—A Ameliasinha? Quero-lhe fallar!
—As senhoras sahiram, disse a
Ruça espantada
do modo do snr. Joãosinho.
[353]
—Mente, sua bebeda! berrou o escrevente.
A rapariga, aterrada, fechou a porta d'estalo.
João Eduardo foi-se encostar á parede defronte,
e ficou alli, de braços cruzados, observando a casa:
as janellas estavam fechadas, as cortinas de cassa
corridas: dois lenços de rapé do conego seccavam
em baixo na varanda.
Aproximou-se de novo e bateu devagarinho a
aldrava. Depois repicou com furor a campainha.
Ninguem appareceu: então, indignado, partiu para
os lados da Sé.
Ao desembocar no largo, diante da fachada da
igreja, parou, procurando em redor com o sobr'olho
carregado: mas o largo parecia deserto; á porta
da pharmacia do Carlos um rapazito, sentado no degrau,
guardava pela arreata um burro carregado de
herva; aqui e além, gallinhas iam picando o chão
vorazmente; o portão da igreja estava fechado; e
apenas se ouvia o ruido de martelladas n'uma casa
ao pé em que havia obras.
E João Eduardo ia seguir para os lados da Alameda—quando
appareceram no terraço da igreja,
da banda da sacristia, o padre Silverio e o padre
Amaro, conversando, devagar.
Batia então um quarto na torre, e o padre Silverio
parou a acertar o seu
cebolão. Depois os dois
padres observaram maliciosamente a janella da
administração,
de vidraças abertas, onde se via, no
escuro, o vulto do senhor administrador de binoculo
cravado para a casa do Telles alfaiate. E desceram
[354]
emfim a escadaria da Sé, rindo d'hombro a
hombro, divertidos com aquella paixão que escandalisava
Leiria.
Foi então que o parocho viu João Eduardo que
estacára no meio do largo. Parou para voltar á
Sé
decerto, evitar o encontro; mas viu o portão fechado,
e ia seguir d'olhos baixos, ao lado do bom Silverio
que tirava tranquillamente a sua caixa de rapé,—quando
João Eduardo, arremessando-se, sem
uma palavra, atirou a toda a força um murro ao
hombro d'Amaro.
O parocho, aturdido, ergueu frouxamente o guardachuva.
—Acudam! berrou logo o padre Silverio, recuando
de braços no ar. Acudam!
Da porta da administração um homem correu,
agarrou furiosamente o escrevente pela gola:
—Está preso! rugia. Está preso!
—Acudam, acudam! berrava Silverio a distancia.
Janellas no largo abriam-se á pressa. A Amparo
da botica, em saia branca, appareceu á varanda, espavorida;
o Carlos precipitára-se do laboratorio em
chinelas; e o senhor administrador, debruçado na
sacada, bracejava, com o binoculo na mão.
Emfim o escrivão da administração, o
Domingos,
compareceu, muito grave, de mangas de lustrina enfiadas:
e com o cabo de policia levou logo para a
administração o escrevente, que não
resistia, todo
pallido...
O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor
[355]
parocho para a botica; fez preparar, com estrepito,
flôr de laranja e ether; gritou pela esposa, para arranjar
uma cama... Queria examinar o hombro de
sua senhoria: haveria intumecencia?
—Obrigado, não é nada, dizia o parocho muito
branco. Não é nada. Foi um raspão.
Basta-me uma
gota d'agua...
Mas a Amparo achava melhor um calix de vinho
do Porto; e correu acima a buscar-lh'o, tropeçando
nos pequenos que se lhe penduravam das saias, dando
ais, explicando pela escada á criada que tinham
querido matar o senhor parocho!
Á porta da botica juntára-se gente, que embascava
para dentro; um dos carpinteiros que trabalhavam
nas obras affirmava que «fôra uma
facada»;
e uma velha por traz debatia-se, de pescoço esticado,
para vêr o
sangue. Emfim,
a pedido do parocho,
que receava escandalo, o Carlos veio magestosamente
declarar que não queria motim à porta! O
senhor parocho estava melhor. Fôra apenas um sôco,
um raspão de mão... Elle respondia por sua
senhoria.
E, como o burro ao lado começára a ornear, o
pharmaceutico voltando-se indignado para o rapazito
que o segurava pela arreata:
—E tu não tens vergonha, no meio d'um desgosto
d'estes, um desgosto para toda a cidade, de
ficar aqui com esse animal, que não faz senão
zurrar!
Para longe, insolente, para longe!
Aconselhou então os dois sacerdotes a que subissem
para a sala, para evitar a «curiosidade da
populaça».
[356]
E a boa Amparo appareceu logo com dois
calices do Porto, um para o senhor parocho, outro
para o senhor padre Silverio que se deixára cahir a
um canto do canapé, apavorado ainda, extenuado
d'emoção.
—Tenho cincoenta e cinco annos, disse elle depois
de ter chupado a ultima gota de
porto, e é a
primeira vez que me vejo n'um barulho!
O padre Amaro, mais socegado agora, affectando
bravura, chasqueou o padre Silverio:
—Vossê tomou o caso muito ao tragico, collega...
E lá ser a primeira, vamos lá... Todos sabem
que o collega esteve pegado com o Natario...
—Ah, sim, exclamou o Silverio, mas isso era
entre sacerdotes, amigo!
Mas a Amparo, ainda muito tremula, enchendo
outro calix ao senhor parocho, quiz saber «os particulares,
todos os particulares...»
—Não ha particulares, minha senhora, eu vinha
aqui com o collega... Vinhamos cavaqueando... O
homem chegou-se a mim, e, como eu estava desprevenido,
deu-me um raspão no hombro.
—Mas porquê? porquê? exclamou a boa senhora,
apertando as mãos, n'um assombro.
O Carlos então deu a sua opinião. Ainda havia
dias, elle dissera, diante da Amparosinho e de D.
Josepha, a irmã do respeitavel conego Dias, que estas
idéas de materialismo e atheismo estavam levando
a mocidade aos mais perniciosos excessos... E
mal sabia elle então que estava prophetisando!
[357]
—Vejam vossas senhorias este rapaz! Começa
por esquecer todos os deveres de christão (assim
nol-o affirmou D. Josepha), associa-se com bandidos,
achincalha os dogmas nos botequins... Depois (sigam
vossas senhorias a progressão), não contente
com estes extravios, publica nos periodicos ataques
abjectos contra a
religião...
E emfim, possuido de
uma vertigem d'atheismo, atira-se, diante mesmo
da cathedral, sobre um sacerdote exemplar (não é
por vossa senhoria estar presente) e tenta assassinal-o!
Ora, pergunto eu, o que ha no fundo de tudo
isto? Odio, puro odio á religião de nossos paes!
—
Infelizmente assim é,
suspirou o padre Silverio.
Mas a Amparo, indifferente ás causas philosophicas
do delicto, ardia na curiosidade de saber o que
se passaria na administração, o que diria o
escrevente,
se o teriam posto a ferros... O Carlos promptificou-se
logo a ir averiguar.
De resto, disse elle, era o seu dever, como homem
de sciencia, esclarecer a justiça sobre as consequencias
que
podia ter trazido um murro, a
força de braço, na região delicada da
clavicula...
(ainda que, louvado Deus, não havia fractura, nem
inchaço), e sobretudo queria revelar á
auctoridade,
para que ella tomasse as suas providencias, que
aquella tentativa d'espancamento não provinha de
vingança pessoal. Que podia ter feito o senhor parocho
da Sé ao escrevente do Nunes? Provinha
d'uma vasta conspiração d'atheus e republicanos
contra o sacerdocio de Christo!
[358]
—Apoiado, apoiado! disseram os dois sacerdotes
gravemente.
—E é o que eu vou provar cabalmente ao senhor
administrador do concelho!
Na sua precipitação zelosa de conservador
indignado,
ia mesmo de chinelas e quinzena de laboratorio:
mas Amparo alcançou-o no corredor:
—Oh, filho! a sobrecasaca, põe a sobrecasaca
ao menos, que o administrador é de ceremonia!
Ella mesmo lha ajudou a enfiar, emquanto o
Carlos, com a imaginação trabalhando viva
(aquella
desgraçada imaginação que, como elle
dizia, até ás
vezes lhe dava dôres de cabeça), ia preparando o
seu
depoimento, que faria ruido na cidade. Fallaria de
pé. Na saleta da administração seria
um apparato
judicial: á sua mesa, o senhor administrador, grave
como a personificação da Ordem; em redor os
amanuenses, activos sobre o seu papel sellado; e o
réo, defronte, na attitude tradicional dos criminosos
politicos, os braços cruzados sobre o peito, a
fronte alta desafiando a morte. Elle, Carlos, então,
entraria e diria:
Senhor administrador, aqui venho
espontaneamente pôr-me ao serviço da vindicta
social!
—Hei de lhes mostrar, com uma logica de ferro,
que é tudo resultado d'uma conspiração
do racionalismo.
Pódes estar certa, Amparosinho, é uma
conspiração do racionalismo! disse, puxando, com
um gemido d'esforço, as presilhas dos botins de
cano.
[359]
—E repara se elle falla da pequena, da S. Joanneira...
—Hei de tomar notas. Mas não se trata da S.
Joanneira. Isto é um processo politico!
Atravessou o largo magestosamente, certo que os
visinhos, pelas portas, murmuravam:
Lá vai
o Carlos
depôr... Ia depôr, sim, mas
não sobre o murro no
hombro de sua senhoria. Que importava o murro?
O grave era o que estava por traz do murro—uma
conspiração contra a Ordem, a Igreja, a Carta e a
Propriedade! É o que elle provaria d'alto ao senhor
administrador. Este murro, excellentissimo senhor,
é o primeiro excesso d'uma grande
revolução social!
E empurrando o batente de baeta que dava accesso
para a administração do concelho de Leiria, ficou
um momento com a mão no ferrolho, enchendo o
vão da porta da pompa da sua pessoa. Não,
não havia
o apparato judicial que elle concebera. O réo lá
estava, sim, pobre João Eduardo, mas sentado á
beira do banco, com as orelhas em braza, olhando
estupidamente o soalho. Arthur Couceiro, embaraçado
com a presença d'aquelle intimo dos serões da
S. Joanneira, alli no assento dos presos, para o não
olhar fixára o nariz sobre o immenso copiador d'officios,
onde desdobrára o
Popular
da vespera. O amanuense
Pires, de sobrancelhas muito erguidas e muito
sérias, embebia-se na ponta da penna de pato
que aparava sobre a unha. O escrivão Domingos,
esse, sim, vibrava d'actividade! O seu lapis rascunhava
com furor; o processo estava-se decerto apressando;
[360]
era tempo de trazer a sua idéa... E o Carlos
então adiantando-se:
—Meus senhores! O senhor administrador?
Justamente a voz de sua excellencia chamou de
dentro do seu gabinete:
—Ó snr. Domingos?
O escrivão perfilou-se, puxando os oculos para a
testa.
—Senhor administrador!
—O senhor tem phosphoros?
O Domingos procurou anciosamente pela algibeira,
na gaveta, entre os papeis...
—Algum dos senhores tem phosphoros?
Houve um rebuscar de mãos sobre a mesa...
Não, não havia phosphoros.
—Ó snr. Carlos, o senhor tem phosphoros?
—Não tenho, snr. Domingos. Sinto.
O senhor administrador appareceu então, ageitando
as suas lunetas de
tartaruga:
—Ninguem tem phosphoros, hein? É extraordinario
que não haja aqui nunca phosphoros! Uma
repartição
d'estas sem um phosphoro... Que fazem os
senhores aos phosphoros? Mande buscar por uma vez
meia duzia de caixas!
Os empregados olhavam-se consternados d'essa
falta flagrante no material do serviço administrativo.
E o Carlos, apoderando-se logo da presença e da
attenção de sua excellencia:
—Senhor administrador, eu aqui venho... Aqui
venho solicito e espontaneo, por assim dizer...
[361]
—Diga-me uma coisa, snr. Carlos, interrompeu
a auctoridade. O parocho e o outro ainda estão lá
na botica?
—O senhor parocho e o senhor padre Silverio
ficaram com minha esposa a repousar da commoção
que...
—Tem a bondade de lhes ir dizer que são cá
precisos...
—Eu estou á disposição da lei.
—Que venham quanto antes... São cinco horas
e meia, queremo-nos ir embora! Vejam que massada
tem sido esta aqui, todo o dia! A repartição
fecha-se
ás tres!
E sua excellencia, rodando sobre os tacões, foi
debruçar-se á sacada do seu
gabinete—áquella sacada
d'onde elle diariamente, das onze ás tres, retorcendo
o bigode louro e entesando o plastron azul,
depravava a mulher do Telles.
O Carlos abria já o batente verde, quando um
pst do Domingos o deteve.
—Ó amigo Carlos—e o sorrisinho do escrivão
tinha uma supplicação tocante—desculpe, hein?
Mas... Traz-me de lá uma caixita de phosphoros?
N'este momento à porta apparecia o padre Amaro;
e por traz a massa enorme do Silverio.
—Eu desejava fallar ao senhor administrador em
particular, disse Amaro.
Todos os empregados se ergueram; João Eduardo
tambem, branco como a cal do muro. O parocho,
com as suas passadas subtis d'ecclesiastico, atravessou
[362]
a repartição, seguido do bom Silverio que ao
passar diante do escrevente descreveu d'esguelha
um semi-circulo cauteloso, com terror ao réo; o senhor
administrador acudira a receber suas senhorias;
e a porta do gabinete fechou-se discretamente.
—Temos composição, rosnou o experiente Domingos,
piscando o olho aos collegas.
O Carlos sentára-se descontente. Viera alli para
esclarecer a auctoridade sobre os perigos sociaes
que ameaçavam Leiria, o Districto e a Sociedade,
para ter o seu papel n'aquelle processo, que, segundo
elle, era um processo politico—e alli estava
calado, esquecido, no mesmo banco ao lado do
réo! Nem lhe tinham offerecido uma cadeira! Seria
realmente intoleravel que as coisas se arranjassem
entre o parocho e o administrador sem o
consultarem a elle! Elle, o unico que percebera
n'aquelle murro dado no hombro do padre—não
o punho do escrevente, mas a mão do Racionalismo!
Aquelle desdem pelas suas luzes parecia-lhe
um erro funesto na administração do Estado.
Positivamente o administrador não tinha a capacidade
necessaria para salvar Leiria dos perigos da
revolução! Bem se dizia na Arcada—era uma
bambocha!
A porta do gabinete entreabriu-se, e as lunetas
do administrador reluziram.
—Ó snr. Domingos, faz favor, vem-nos fallar?
disse sua excellencia.
O escrivão apressou-se com importancia; e a
[363]
porta cerrou-se de novo, confidencialmente. Ah!
aquella porta, fechada diante d'elle, deixando-o de
fóra, indignava o Carlos. Alli ficava, com o Pires,
com o Arthur, entre as intelligencias subalternas, elle
que promettera á Amparosinho fallar d'alto ao administrador!
E quem era ouvido, e quem era chamado?
O Domingos, um animal notorio, que começava
satisfação com
um
c cedilhado! Que se podia
de resto esperar d'uma auctoridade que passava as
manhãs de binoculo a deshonrar uma familia? Pobre
Telles, seu visinho, seu amigo!... Não, realmente
devia fallar ao Telles!
Mas a sua indignação cresceu quando viu o Arthur
Couceiro, um empregado da repartição, na ausencia
do seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha,
vir familiarmente junto do réo, dizer-lhe com melancolia:
—Ah, João, que rapaziada, que rapaziada!...
Mas a coisa arranja-se, verás!
João tinha encolhido tristemente os hombros.
Havia meia hora que alli estava, sentado á beira
d'aquelle banco, sem se mexer, sem despregar os
olhos do soalho, sentindo-se interiormente tão vazio
de idéas, como se lhe tivessem tirado os miolos.
Todo o vinho, que na taberna do Osorio e no
largo da Sé lhe accendia na alma fogachos de
cólera,
lhe retesava os pulsos n'um desejo de desordem,
parecia subitamente eliminado do seu organismo.
Sentia-se agora tão inoffensivo como quando
no cartorio aparava cautelosamente a sua penna
[364]
de pato. Um grande cansaço entorpecia-o; e
alli esperava, sobre o banco, n'uma inercia de todo
o seu sêr, pensando estupidamente que ia viver
para uma enxovia em S. Francisco, dormir n'uma
palhoça, comer da Misericordia... Não tornaria a
passear na Alameda, não veria mais Amelia... A
casita em que vivia seria alugada a outro... Quem
tomaria conta do seu canario? Pobre animalzinho,
ia morrer de fome, decerto... A não ser que a Eugenia,
a visinha, o recolhesse...
O Domingos de repente sahiu do gabinete de sua
excellencia, e fechando vivamente a porta sobre si,
em triumpho:
—Que lhes dizia eu? Composição! Arranjou-se
tudo!
E para João Eduardo:
—Seu felizão! Parabens! parabens!
O Carlos pensou que era aquelle o maior escandalo
administrativo desde o tempo dos Cabraes! E ia
retirar-se enojado (como no quadro classico o Stoico
que se afasta d'uma orgia patricia) quando o senhor
administrador abriu a porta do seu gabinete. Todos
se ergueram.
Sua excellencia deu dois passos na repartição,
e revestido de gravidade, distillando as palavras,
com as lunetas cravadas no réo:
—O senhor padre Amaro, que é um sacerdote
todo caridade e bondade, veio-me expôr... Emfim,
veio-me supplicar que não désse mais andamento a
este negocio... Sua senhoria com razão não quer
[365]
vêr o seu nome arrastado nos tribunaes. Além
d'isso,
como sua senhoria disse muito bem, a religião,
de que elle é... de que elle é, posso dizel-o, a
honra
e o modêlo, impõe-lhe o perdão da
offensa... Sua
senhoria reconhece que o ataque foi brutal, mas
frustrado... Além d'isso parece que o senhor estava
bebedo...
Todos os olhos se fixaram em João Eduardo, que
se fez escarlate. Aquillo pareceu-lhe n'esse momento
peor que a prisão.
—Emfim, continuou o administrador, por altas
considerações que eu pesei devidamente, tomo a
responsabilidade
de o soltar. Veja agora como se porta.
A auctoridade não o perde d'olho... Bem, póde ir
com Deus!
E sua excellencia recolheu-se ao gabinete. João
Eduardo ficou immovel, como parvo.
—Posso ir, hein? balbuciou.
—P'r'á China, p'ra onde quizer!
Liberus,
libera,
liberum! exclamou o Domingos que, interiormente
detestando padres, jubilava com aquelle final.
João Eduardo olhou um momento em redor os
empregados, o carrancudo Carlos; duas lagrimas
bailavam-lhe nas palpebras; de repente agarrou o
chapéo e abalou.
—Poupa-se um rico trabalhinho! resumiu o Domingos,
esfregando vivamente as mãos.
Immediatamente a papelada foi arrumada, aqui
e além, á pressa. É que era tarde! O
Pires recolhia
as suas mangas de lustrina e a sua almofadinha de
[366]
vento. O Arthur enrolou os seus papeis de musica.
E no vão da janella, amuado, esperando ainda, o
Carlos olhava sombriamente o largo.
Emfim os dois padres sahiram acompanhados
até á porta pelo senhor administrador, que,
terminados
os deveres publicos, reapparecia homem de
sociedade.—Então porque não tinha o amigo
Silverio
vindo a casa da baroneza de Via-Clara? Houvera
um voltarete furibundo. O Peixoto levára dois codilhos.
Tinha dito blasphemias medonhas!... Criado
de suas senhorias. Estimava bem que tudo se tivesse
harmonisado. Cuidado com o degrau... Ás ordens
de suas senhorias...
Ao voltar porém ao seu gabinete dignou-se parar
diante da mesa do Domingos, e retomando alguma
solemnidade:
—A coisa passou-se bem. É um bocado irregular,
mas sensata! Bem basta já os ataques que ha
contra o clero nos jornaes... A coisa podia fazer
barulho. O rapaz era capaz de dizer que tinham sido
ciumes do padre, que queria desinquietar a rapariga,
etc. É mais prudente abafar a coisa... Quanto
mais que, segundo o parocho me provou, toda a
influencia que elle tem exercido na rua da Misericordia
ou onde diabo é, tem tido por fim livrar a
rapariga de casar com aquelle amigo, que, como se
vê, é um bebedo e uma fera!
O Carlos roia-se. Todas aquellas explicações eram
dadas ao Domingos! A elle, nada! Alli ficava, esquecido
no vão da janella!
[367]
Mas não! Sua excellencia, de dentro do seu gabinete,
chamou-o mysteriosamente com o dedo.
Emfim! Precipitou-se, radiante, subitamente reconciliado
com a auctoridade.
—Eu estava para passar pela botica—disse-lhe
o administrador baixo e sem transição, dando-lhe
um
papel dobrado—para que me mandasse isto a casa,
hoje. É uma receita do doutor Gouvêa... Mas
já que
o amigo aqui está...
—Eu tinha vindo para me pôr á
disposição da
vindicta...
—Isso está acabado! interrompeu vivamente sua
excellencia. Não se esqueça, mande-me isso antes
das seis. É para tomar ainda esta noite. Adeus.
Não
se esqueça!
—Não faltarei, disse sêccamente o Carlos.
Ao entrar na botica, a sua cólera flammejava. Ou
elle não se chamava Carlos, ou havia de mandar
uma correspondencia tremenda ao
Popular!... Mas
a Amparo, que lhe espreitára a volta da varanda,
correu, atirando-lhe as perguntas:
—Então? Que se passou? O rapaz foi p'r'á rua?
Que disse elle? Como foi?
O Carlos fixava-a, com as pupillas chammejantes.
—Não foi culpa minha, mas triumphou o materialismo!
Elles o pagarão!
—Mas tu que disseste?
Então, vendo os olhos da Amparo e os do praticante
abertos para devorar a citação do seu
depoimento—o
Carlos, tendo de resalvar a dignidade de
[368]
esposo e a superioridade de patrão, disse laconicamente:
—Dei a minha opinião, com firmeza!
—E elle que disse, o administrador?
Foi então que o Carlos, recordando-se, leu a receita
que amarrotára na mão. A
indignação emmudeceu-o—vendo
que era aquelle todo o resultado
da sua grande entrevista com a auctoridade!
—Que é? perguntou sôfregamente a Amparo.
O que era? E no seu furor, desdenhando o segredo
profissional e o bom renome da auctoridade,
o Carlos exclamou:
—É um frasco de xarope de Gibert para o senhor
administrador! Ahi tem a receita, snr. Augusto.
A Amparo, que, com alguma pratica de pharmacia,
conhecia os beneficios do mercurio, fez-se tão
escarlate como as fitas flammejantes que lhe enfeitavam
a cuia.
Toda essa tarde se fallou com excitação pela
cidade
«da tentativa d'assassinato de que estivera para
ser victima o senhor parocho». Algumas pessoas
censuravam o administrador por não ter procedido:
os cavalheiros da opposição sobretudo, que viram
na debilidade d'aquelle funccionario uma prova incontestavel
de que o governo ia, com os seus desperdicios
e as suas corrupções, levando o paiz a um
abysmo!
[369]
Mas o padre Amaro, esse, era admirado como
um santo. Que piedade! que mansidão! O senhor
chantre mandou-o chamar á noitinha, recebeu-o paternalmente
com um «viva o meu cordeiro paschal»!
E depois de escutar a historia do insulto, a generosa
intervenção...
—Filho, exclamou, isso é alliar a mocidade de
Telemacho á prudencia de Mentor! Padre Amaro,
vossê era digno de ser sacerdote de Minerva na cidade
de Salento!
Quando Amaro entrou á noite em casa da S.
Joanneira—foi como a apparição d'um santo escapo
ás feras do Circo ou á plebe de Diocleciano!
Amelia,
sem disfarçar a sua exaltação,
apertou-lhe ambas as
mãos, muito tempo, toda tremula, com os olhos humidos.
Deram-lhe, como nos grandes dias, a poltrona
verde do conego. A snr.
a D. Maria da
Assumpção
quiz mesmo que se lhe puzesse uma almofada para
elle apoiar o hombro dorido. Depois teve de
contar miudamente toda a scena, desde o momento
em que, conversando com o collega Silverio (que
se portára muito bem), avistára o escrevente no
meio do largo, de bengalão alçado e ar de
matamouros...
Aquelles detalhes indignavam as senhoras. O
escrevente apparecia-lhes peor que Longuinhos e
que Pilatos. Que malvado! O senhor parocho devia-o
ter calcado aos pés! Ah! era d'um santo, ter
perdoado!
—Fiz o que me inspirou o coração, disse elle
[370]
baixando os olhos. Lembrei-me das palavras de Nosso
Senhor Jesus Christo: elle manda offerecer a face
esquerda depois de se ter sido esbofeteado na face
direita...
O conego, a isto, escarrou grosso e observou:
—Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofetão
á face direita... Emfim, são ordens de Nosso
Senhor
Jesus Christo, offereço a face esquerda. São
ordens
de cima!... Mas depois de ter cumprido esse dever
de sacerdote, oh, senhoras, desanco o patife!
—E doeu-lhe muito, senhor parocho? perguntou
do canto uma vozinha expirante e desconhecida.
Acontecimento extraordinario! Era a snr.
a D.
Anna
Gansoso que fallára depois de dez longos annos
de taciturnidade somnolenta! Aquelle torpor que nada
sacudira, nem festas, nem lutos, tinha emfim,
sob um impulso de sympathia pelo senhor parocho,
uma vibração humana!—Todas as senhoras lhe
sorriram,
agradecidas, e Amaro, lisonjeado, respondeu
com bondade:
—Quasi nada, snr.
a D. Anna, quasi nada, minha
senhora... Que elle deu de rijo! Mas eu sou de boa
carnadura.
—Ai, que monstro! exclamou D. Josepha Dias,
furiosa á idéa do punho do escrevente
descarregado
sobre aquelle hombro santo. Que monstro!
Eu queria-o vêr com uma grilheta a trabalhar
na estrada! Que eu é que o conhecia! A mim nunca
elle me enganou... Sempre lhe achei cara d'assassino!
[371]
—Estava embriagado, homens com vinho... arriscou
timidamente a S. Joanneira.
Foi um clamor. Ai, que o não desculpasse! Parecia
até sacrilegio! Era uma fera, era uma fera!
E a exultação foi grande quando Arthur Couceiro,
apparecendo, deu logo da porta a novidade, a
ultima: o Nunes mandára chamar o João Eduardo e
dissera-lhe (palavras textuaes): «Eu, bandidos e
malfeitores não os quero no meu cartorio. Rua!»
A S. Joanneira então commoveu-se:
—Pobre rapaz, fica sem ter que comer...
—Que beba! que beba! gritou a snr.
a D. Maria
da Assumpção.
Todos riram. Só Amelia, curvada sobre a sua costura,
se fizera muito pallida, aterrada áquella idéa
que João Eduardo teria talvez fome...
—Pois olhem, não acho caso para rir! disse a
S. Joanneira. É até coisa que me vai tirar o
somno...
Pensar que o rapaz ha de querer um bocado
de pão e não ha de ter... Credo! Não,
isso não! E
o senhor padre Amaro desculpe...
Mas Amaro tambem não desejava que o rapaz
cahisse em miseria! Não era homem de rancor, elle!
E se o escrevente viesse á sua porta com necessidade,
duas ou tres placas (não era rico, não podia
mais), mas tres ou quatro placas dava-lh'as... Dava-lh'as
de coração.
Tanta santidade fanatisou as velhas. Que anjo!
Olhavam-n'o, babosas, com as mãos vagamente postas.
A sua presença, como a d'um S. Vicente de Paulo,
[372]
exhalando caridade, dava á sala uma suavidade
de capella: e a snr.
a D. Maria da
Assumpção
suspirou
de gozo devoto.
Mas Natario appareceu, radiante. Deu grandes
apertos de mãos em redor, rompeu em triumpho:
—Então já sabem? O
patife,
o assassino,
escorraçado
de toda a parte como um cão! O Nunes expulsou-o
do cartorio. O doutor Godinho disse-me agora
que no governo civil não punha elle os pés.
Enterrado,
demolido! É um allivio p'r'á gente de bem!
—E ao senhor padre Natario se deve! exclamou
D. Josepha Dias.
Todos o reconheciam. Fôra elle, com a sua habilidade,
a sua labia, que descobrira a perfidia de João
Eduardo, salvára a Ameliasinha, Leiria, a Sociedade.
—E em tudo o que pretender, o maroto, ha de
me encontrar pela frente. Emquanto elle estiver em
Leiria não o largo! Que lhes disse eu, minhas senhoras?...
«Eu é que o esmago!» Pois ahi o
têm esmagado!
A sua face biliosa resplandecia. Estirou-se na poltrona,
regaladamente, no repouso merecido de uma
victoria difficil. E voltando-se para Amelia:
—E agora, o que lá vai, lá vai! Livrou-se de
uma fera, é o que lhe posso dizer!
Então os louvores—que já lhe tinham repetido
prolixamente desde que ella rompera com a fera—recomeçaram,
mais vivos:
—Foi a coisa de mais virtude que tens feito em
toda a tua vida!
[373]
—É a graça de Deus que te tocou!
—Estás em graça, filha!
—Emfim é Santa Amelia, disse o conego erguendo-se,
enfastiado d'aquellas glorificações. Pois
parece-me que temos fallado bastante do patife...
Mande agora a senhora vir o chá, hein?
Amelia permanecia calada, cosendo á pressa; erguia
ás vezes rapidamente para Amaro um olhar desassocegado;
pensava em João Eduardo, nas ameaças
de Natario; e imaginava o escrevente com as faces
encovadas de fome, foragido, dormindo pelas portas
dos casaes... E emquanto as senhoras se accommodavam,
palrando, á mesa do chá, ella pôde
dizer
baixo a Amaro:
—Não posso socegar com a idéa que o rapaz
soffra necessidades... Eu bem sei que é um malvado,
mas... É como um espinho cá por dentro. Tira-me
toda a alegria.
O padre Amaro disse-lhe então, com muita bondade,
mostrando-se superior á injuria, n'um alto espirito
de caridade christã:
—Minha rica filha, são tolices... O homem não
morre de fome. Ninguem morre de fome em Portugal.
É novo, tem saude, não é tolo, ha de
se arranjar...
Não pense n'isso... Aquillo é palavriado do
padre Natario... O rapaz naturalmente sae de Leiria,
não tornamos a ouvir fallar d'elle... E em toda a
parte ha de ganhar a vida... Eu por mim perdoei-lhe,
e Deus ha de tomar isso em conta.
Estas palavras tão generosas, ditas baixo, com
[374]
um olhar amante, tranquillisaram-na inteiramente. A
clemencia, a caridade do senhor parocho pareceram-lhe
melhores que tudo o que ouvira ou lera de santos
e de monges piedosos.
Depois do chá, ao quino, ficou junto d'elle. Uma
alegria plena e suave penetrava-a deliciosamente.
Tudo o que até ahi a importunára e a
assustára,
João Eduardo, o casamento, os deveres, desapparecera
emfim da sua vida: o rapaz iria para longe,
empregar-se—e o senhor parocho alli estava, todo
d'ella, todo apaixonado! Por vezes, por baixo da mesa,
os seus joelhos tocavam-se, a tremer: n'um momento
em que todos faziam um alarido indignado
contra Arthur Couceiro que pela terceira vez quinára
e brandia o cartão triumphante, foram as mãos que
se encontraram, se acariciaram; um pequeno suspiro
simultaneo, perdido na gralhada das velhas, ergueu
o peito d'ambos; e até ao fim da noite foram marcando
os seus cartões, muito calados, com as faces
accêsas, sob a pressão brutal do mesmo desejo.
Emquanto as senhoras se agasalhavam, Amelia
aproximou-se do piano para correr uma escala, e
Amaro pôde murmurar-lhe ao ouvido:
—Oh, filhinha, que te quero tanto! E não podermos
estar sós...
Ella ia responder—quando a voz de Natario,
que se embrulhava no seu capote ao pé do aparador,
exclamou, muito severa:
—Então as senhoras deixam andar por aqui semelhante
livro?
[375]
Todos se voltaram, na surpreza que dava aquella
indignação, a olhar o largo volume encadernado
que Natario indicava com a ponta do guardachuva,
como um objecto abominavel. D. Maria da Assumpção
aproximou-se logo d'olho reluzente, imaginando
que seria alguma d'essas novellas, tão famosas, em
que se passam coisas immoraes. E Amelia chegando-se
tambem, disse, admirada de tal reprovação:
—Mas é o
Panorama...
É um volume do
Panorama...
—Que é o
Panorama vejo
eu, disse Natario com
seccura. Mas tambem vejo isto.—Abriu o volume
na primeira pagina branca, e leu
alto:—«
Pertence-me
este volume a mim, João Eduardo Barbosa, e
serve-me de recreio nos meus ocios.»
Não comprehendem,
hein? Pois é muito simples... Parece incrivel
que as senhoras não saibam que esse homem,
desde que poz as mãos n'um sacerdote, está
ipso facto
excommungado, e excommungados todos os objectos
que lhe pertencem!
Todas as senhoras, instinctivamente, afastaram-se
do aparador onde jazia aberto o
Panorama fatal,
arrebanhando-se, n'um arripiamento de medo, áquella
idéa da Excommunhão que se lhes representava
como um desabamento de catastrophes, um aguaceiro
de raios despedidos das mãos do Deus Vingador:
e alli ficaram mudas, n'um semi-circulo apavorado,
em torno de Natario, que, de capotão pelos hombros
e braços cruzados, gozava o effeito da sua
revelação.
[376]
Então a S. Joanneira, no seu assombro, arriscou-se
a perguntar:
—O senhor padre Natario está a fallar sério?
Natario indignou-se:
—Se estou a fallar sério!? Essa é forte! Pois eu
havia de gracejar sobre um caso d'excommunhão,
minha senhora? Pergunte ahi ao senhor conego se
eu estou a gracejar!
Todos os olhos se voltaram para o conego, essa
inesgotavel fonte de saber ecclesiastico.
Elle então, tomando logo o ar pedagogico que
lhe voltava dos seus antigos habitos do seminario
sempre que se tratava de doutrina, declarou que o
collega Natario tinha razão. Quem espanca um sacerdote,
sabendo que é um sacerdote, está
ipso facto
excommungado. É doutrina assente. É o que se
chama
a excommunhão latente; não necessita a
declaração
do pontifice ou do bispo, nem o ceremonial,
para ser valida, e para que todos os fieis considerem
o offensor como excommungado. Devem-no tratar portanto
como tal... Evital-o a elle, e ao que lhe pertence...
E este caso de pôr mãos sacrilegas n'um
sacerdote era tão especial, continuava o conego n'um
tom profundo, que a bulla do Papa Martinho V, limitando
os casos de excommunhão tacita, conserva-a
todavia para o que maltrata um sacerdote...—Citou
ainda mais bullas, as Constituições de Innocencio
IX e de Alexandre VII, a Constituição Apostolica,
outras legislações temerosas; rosnou latins,
aterrou
as senhoras.
[377]
—Esta é a doutrina, concluiu dizendo; mas a
mim parece-me melhor não se fazer d'isso espalhafato...
D. Josepha Dias acudiu logo:
—Mas nós é que não podemos arriscar a
nossa
alma a encontrar aqui por cima das mesas coisas
excommungadas.
—É destruir! exclamou D. Maria da
Assumpção.
É queimar! é queimar!
D. Joaquina Gansoso arrastára Amelia para o vão
da janella, perguntando-lhe se tinha outros objectos
pertencentes ao homem. Amelia, atarantada, confessou
que tinha algures, não sabia onde, um lenço,
uma luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha.
—É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso
excitada.
A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras,
arrebatadas n'um furor santo. D. Josepha Dias,
D. Maria da Assumpção fallavam com gozo do
fogo,
enchendo a boca com a palavra, n'uma delicia inquisitorial
de exterminação devota. Amelia e a Gansoso,
no quarto, rebuscavam pelas gavetas, por entre a
roupa branca, as fitas e as calcinhas, á caça dos
«objectos
excommungados». E a S. Joanneira assistia,
attonita e assustada, áquelle alarido
d'auto-de-fé que
atravessava bruscamente a sua sala pacata, refugiada
ao pé do conego, que depois de ter rosnado algumas
palavras sobre «a Inquisição em casas
particulares»,
se enterrára commodamente na poltrona.
—É para lhes fazer sentir que se não perde
impunemente
[378]
o respeito á batina, dizia Natario baixo
a Amaro.
O parocho assentiu, com um gesto mudo de cabeça,
contente d'aquellas cóleras beatas que eram
como a affirmação ruidosa do amor que lhe tinham
as senhoras.
Mas D. Josepha impacientava-se. Agarrára já o
Panorama com as pontas do chale,
para evitar o
contagio, e gritava para dentro, para o quarto, onde
continuava pelos gavetões uma rebusca furiosa:
—Então appareceu?
—Cá está, cá está!
Era a Gansoso que entrava triumphante com a
cigarreira, a velha luva e o lenço de algodão.
E as senhoras, em alarido, arremetteram para a
cozinha. A mesma S. Joanneira as seguiu, como boa
dona de casa, para fiscalisar a fogueira.
Os tres padres então, sós, olharam-se—e riram.
—As mulheres têm o diabo no corpo, disse o
conego philosophicamente.
—Não senhor, padre-mestre, não senhor, acudiu
logo Natario fazendo-se sério. Eu rio porque a coisa,
assim vista, parece patusca. Mas o sentimento é
bom. Prova a verdadeira devoção ao sacerdocio,
horror
á impiedade... Emfim o sentimento é excellente.
—O sentimento é excellente, confirmou Amaro,
tambem sério.
O conego ergueu-se:
—E é que se pilhassem o homem eram capazes
de o queimar... Não lh'o digo a brincar, que a mana
[379]
tem figados para isso... É um Torquemada de
saias...
—Está na verdade, está na verdade, affirmou
Natario.
—Eu não resisto a ir vêr a
execução! exclamou
o conego. Eu quero vêr com os meus olhos!
E os tres padres então foram até á
porta da cozinha.
As senhoras lá estavam, em pé diante da lareira,
batidas da luz violenta da fogueira que fazia
destacar estranhamente as mantas d'agasalho de que
já se tinham coberto. A
Ruça, de joelhos, soprava
esfalfada. Tinham cortado com o facão a
encardernação
do
Panorama; e as folhas retorcidas
e negras,
com um faiscar de fagulhas, voavam pela chaminé
nas linguas do fogo claro. Só a luva de pellica
não se consumia. Debalde com as tenazes a punham
no vivo da chamma: tisnava, reduzida a um
caroço engorolado; mas não ardia. E a sua
resistencia
aterrava as senhoras.
—É que é a da mão direita com que
commetteu
o desacato! dizia furiosa D. Maria da Assumpção.
—Bufa-lhe, rapariga, bufa-lhe! aconselhava da
porta o conego muito divertido.
—O mano faz favor de não troçar com coisas
sérias! gritou D. Josepha.
—Oh, mana! a senhora quer saber melhor que
um sacerdote como é que se queima um impio? A
pretenção não está
má! É bufar-lhe, é bufar-lhe!
Então, confiadas na sciencia do senhor conego, a
Gansoso e D. Maria da Assumpção, acocoradas,
bufaram
[380]
tambem. As outras olhavam, n'um sorriso mudo,
o olho brilhante e cruel, no gozo d'aquella
exterminação
grata a Nosso Senhor. O fogo estalava,
pulando com uma força galharda, na gloria da sua
antiga funcção de purificador dos peccados.—E
por
fim sobre as achas em braza, nada restou do
Panorama,
do lenço e da luva do impio.
A essa hora João Eduardo, o impio, no seu quarto,
sentado aos pés da cama, soluçava, com a face
banhada em lagrimas, pensando em Amelia, nos
bons serões da rua da Misericordia, na cidade para
onde iria, na roupa que empenharia, e perguntando
em vão a si mesmo porque o tratavam assim, elle
que era tão trabalhador, que não queria mal a
ninguem,
e que a adorava tanto, a ella?
XVI
No domingo seguinte havia missa cantada na Sé,
e a S. Joanneira e Amelia atravessaram a Praça para
ir buscar D. Maria da Assumpção, que em dias
de mercado e de «populacho» nunca sahia
só, receosa
que lhe roubassem as joias ou lhe insultassem
a castidade.
N'essa manhã, com effeito, a affluencia das freguezias
enchia a Praça: os homens em grupo, atravancando
a rua, muito sérios, muito barbeados, de
jaqueta ao hombro; as mulheres aos pares, com uma
fortuna de grilhões e de corações
d'ouro sobre peitos
pejados; nas lojas, os caixeiros azafamavam-se
por traz dos balcões alastrados de lençaria e de
chitas;
nas tabernas apinhadas gralhava-se alto; pelo
mercado, entre os saccos de farinha, os montões de
[382]
louça, os cestos de brôa, ia um regatear sem fim;
havia multidão ao pé das tendas onde reluzem os
espelhinhos
redondos e transbordam os mólhos de rosarios;
velhas faziam pregão por traz dos seus taboleiros
de cavacas; e os pobres, afreguezados á cidade,
choramingavam Padre-nossos pelas esquinas.
Já senhoras passavam para a missa, todas em
sêdas, de rostinho sisudo; e a Arcada estava cheia
de cavalheiros, têsos nos seus fatos de casimira nova,
fumando caro, gozando o domingo.
Amelia foi muito olhada: o filho do recebedor,
um atrevido, disse mesmo alto d'um grupo:
Ai, que
me leva o coração! E as duas
senhoras, apressando-se,
dobravam para a rua do Correio, quando lhes
appareceu o Libaninho de luvas pretas e cravo ao
peito. Não as tinha visto desde «o desacato do
largo
da Sé», e rompeu logo em
exclamações. Ai, filhas,
que desgosto aquelle! O malvado do escrevente!
Elle tinha tido tanto que fazer, que só n'essa
manhã
é que pudera ir ao senhor parocho dar-lhe os
sentimentos; o santinho recebera-o muito bem, estava-se
a vestir; elle quiz-lhe vêr o braço e felizmente,
louvores a Deus, nem uma pisadura... E se
ellas vissem, que carnadura tão delicada, que pelle
tão branca... Uma pellinha d'archanjo!
—Mas querem vossês saber, filhas? Encontrei-o
n'uma grande afflicção!
As duas senhoras assustaram-se. Porquê, Libaninho?
A criada, a Vicencia, que havia dias se queixava,
[383]
tinha ido n'essa madrugada para o hospital com
um febrão...
—E alli está o pobre santo sem criada, sem nada!
Vejam vossês! Para hoje bem, que vai jantar
com o nosso conego (tambem lá estive, ai, que santo!),
mas ámanhã, mas depois? Que elle já
tem em
casa a irmã da Vicencia, a Dionysia... Mas, oh, filhas,
a Dionysia! Foi o que eu lhe disse: a Dionysia póde
ser uma santa, mas que reputação!... É
que não
ha peor em Leiria... Uma perdida que não põe os
pés na igreja... Tenho a certeza que o senhor chantre
até havia de reprovar!
As duas senhoras concordaram logo que a Dionysia
(mulher que não cumpria os preceitos, que
representára
em theatros de curiosos) não convinha ao
senhor parocho...
—Olha, S. Joanneira, disse Libaninho, sabes o
que lhe convinha? Eu lá lh'o disse, lá lhe fiz a
proposta.
É ferrar-se outra vez em tua casa. Que é onde
está bem, com gente que o acarinha, que lhe trata
da roupa, que lhe sabe os gostos, e onde tudo é virtude!
Elle não disse que
não nem que
sim. Mas
olha que se lhe podia lêr na cara que está a
morrer
por isso... Tu é que lhe devias fallar, S. Joanneirinha!
Amelia fizera-se tão escarlate como a sua gravata
de sêda da India. E a S. Joanneira disse ambiguamente:
—Fallar-lhe não... Eu n'essas coisas sou muito
delicada... Bem comprehendes...
[384]
—Era como teres um santo de portas a dentro,
filha! disse com calor o Libaninho. Lembra-te d'isso!
E era um gosto para todos... Tenho a certeza que
até Nosso Senhor se havia d'alegrar... E agora
adeus, pequenas, que vou de fugida. Não vos demoreis,
que está a missinha a cahir.
As duas senhoras continuaram caladas até casa
de D. Maria da Assumpção. Nenhuma queria arriscar
primeiro uma palavra sobre aquella possibilidade
tão inesperada, tão grave, do senhor parocho
voltar
para a rua da Misericordia! Foi só quando pararam
que a S. Joanneira disse, ao puxar à campainha:
—Ai, o senhor parocho realmente não póde ter
a Dionysia de portas a dentro...
—Credo, até causa horror!
Foi tambem a expressão da snr.
a D.
Maria da
Assumpção
quando lhe contaram, em cima, a doença da
Vicencia e a installação da Dionysia: causava
horror!
—Que eu não a conheço, disse a excellente
senhora.
E tenho até vontade de a conhecer. Que me
dizem que é dos pés à
cabeça uma crosta de peccado!
A S. Joanneira então fallou da «proposta do
Libaninho».
D. Maria da Assumpção declarou logo com
ardor que era uma inspiração de Nosso Senhor. Que
nunca o senhor parocho devia ter sahido da rua da
Misericordia! Até parece que mal elle se fôra
embora,
Deus retirára a sua graça da casa...
Não houvera
senão desgostos—o
Communicado, a dôr de
estomago
do conego, a morte da entrevadinha, aquelle
[385]
desgraçado casamento (que estivera por um
triz, que
horror!), o escandalo do largo da Sé... A casa tinha
parecido enguiçada!... E era até peccado deixar
viver
o santinho n'aquelle desarranjo, com a suja da
Vicencia, que nem lhe sabia dar uma passagem nas
meias!
—Em parte nenhuma póde estar melhor que em
tua casa... Tem tudo o que necessita, de portas a
dentro... E para ti é uma honra, é estar em
graça.
Olha, filha, se eu não fosse só, sempre o digo,
quem
o hospedava era eu! Que aqui é que elle estava
bem... Que salinha para elle, hein?
Riam-se-lhe os olhos, contemplando em redor as
suas preciosidades.
A sala com effeito era toda ella uma immensa
armazenagem de santaria e de
bric-à-brac devoto:
sobre as duas commodas de pau preto com fechaduras
de cobre apinhavam-se, sob redomas, em peanhas,
as Nossas Senhoras vestidas de sêda azul, os
Meninos Jesus frizados com o ventresinho gordo e a
mão abençoadora, os Santo Antonios no seu burel,
os S. Sebastiões bem fréchados, os S.
Josés barbudos.
Havia santos exoticos, que eram o seu orgulho,
que lhe fabricavam em Alcobaça—S. Paschoal
Baylão,
S. Didacio, S. Chrisolo, S. Gorislano... Depois
eram os bentinhos, os rosarios de metal e de caroços
d'azeitonas, contas de côres, rendas amarellas
d'antigas alvas, corações de vidro escarlate,
almofadinhas
com J. M. entrelaçados a missanga, ramos
bentos, palmas de martyres, cartuchinhos d'incenso.
[386]
As paredes desappareciam forradas de estampas de
Virgens de todas as devoções,—equilibradas sobre
o orbe, enrodilhadas aos pés da cruz, trespassadas
d'espadas. Corações d'onde gotejava sangue,
corações
d'onde sahia uma fogueira, corações d'onde
dardejavam
raios: orações encaixilhadas para as festas
particularmente amadas—o
Casamento de Nossa
Senhora, a
Invenção da Santa
Cruz, os
Estigmas
de S. Francisco, sobretudo o
Parto
da Santa
Virgem, a mais devota, que vem pelas quatro
temporas. Sobre as mesas lamparinas accêsas, para
serem collocadas sem demora aos santos especiaes,
quando a boa senhora tivesse a sua sciatica,
ou que o catarrho se assanhasse, ou lhe viessem
as caimbras. Ella mesma, só ella, arrumava,
espanejava, lustrava toda aquella santa população
celeste, aquelle arsenal beato, que era apenas sufficiente
para a salvação da sua alma e o allivio
dos seus achaques. O seu grande cuidado era a
collocação dos santos; alterava-a constantemente,
porque ás vezes, por exemplo, sentia que Santo
Eleuterio não gostava d'estar ao pé de S.
Justino,
e ia então pendural-o a distancia, n'uma companhia
mais sympathica ao santo. E distinguia-os
(segundo os preceitos do ritual que o confessor lhe
explicava), dando-lhes uma devoção graduada, e
não
tendo por S. José de segunda classe o respeito que
sentia por S. José de primeira classe. Aquella riqueza
era a inveja das amigas, a edificação dos
curiosos,
e fazia sempre dizer ao Libaninho, quando a
[387]
vinha visitar, abrangendo a sala n'um olhar langoroso:—Ai,
filha, é o reininho dos céos!
—Não é verdade, continuava a excellente senhora
radiante, que elle aqui é que estava bem, o
santinho do parocho? É como ter o céo debaixo da
mão!
As duas senhoras concordaram. Ella podia ter a
sua casa arranjada com devoção, ella que era
rica...
—Não o nego, tenho aqui empregadinhos alguns
centos de mil reis. Sem contar o que está no relicario...
Ah, o famoso relicario de sandalo forrado de setim!
Tinha lá uma lascasinha da verdadeira Cruz,
um bocado quebrado do espinho da Corôa, um farrapinho
do cueiro do Menino Jesus. E murmurava-se
com azedume, entre as devotas, que coisas tão preciosas,
d'origem divina, deviam estar no sacrario da
Sé. D. Maria da Assumpção, temendo que
o senhor
chantre soubesse d'aquelle thesouro seraphico, só o
mostrava ás intimas, mysteriosamente. E o santo sacerdote,
que lh'o obtivera, fizera-a jurar sobre o
Evangelho de não revelar a procedencia «para
evitar
fallatorios».
A S. Joanneira, como sempre, admirou sobretudo
o farrapinho do cueiro.
—Que reliquia, que reliquia! murmurava.
E D. Maria da Assumpção muito baixo:
—Não ha melhor. Trinta mil reis me custou...
Mas dava sessenta, mas dava cem! mas dava tudo!—E
babando-se toda, diante do trapinho precioso:—O
[388]
cueirinho! dizia quasi a chorar. Meu rico Menino,
o seu cueirinho...
Deu-lhe um beijo muito repenicado, e foi fechar o
relicario no gavetão.
Mas o meio dia ia bater—e as tres senhoras
apressaram-se para a Sé, para pilhar logar no
altar-mór.
Já no largo encontraram D. Josepha Dias, que se
precipitava para a igreja, sôfrega da missa, com o
mantelete descahido sobre o hombro e uma pluma
do chapéo a despregar-se. Tinha estado toda a
manhã
n'um phrenesi com a criada! Fôra necessario
fazer ella todos os preparos para o jantar... Ai, tinha
medo que nem a missinha lhe dêsse virtude, de
nervosa que estava...
—Que temos lá o senhor parocho hoje... Vossês
sabem que adoeceu a criada... Ah, já me esquecia,
o mano quer que tu lá vás jantar tambem, Amelia.
Diz que é para haverem duas damas e dois cavalheiros...
Amelia riu d'alegria.
—E tu vai depois buscal-a, S. Joanneira, á noitinha...
Credo, vesti-me tanto á pressa, que até parece
que me está a cahir o saiote!
Quando as quatro senhoras entraram, a igreja
estava já cheia. Era uma missa cantada ao Santissimo.
E apesar de contrario ao rigor do ritual, por um
costume diocesano (que o bom Silverio, muito estricto
na liturgia, nunca cessava de reprovar) havia, estando
presente a Eucharistia, musica de rebeca, violoncello
[389]
e flauta. O altar, muito ornado, com as
reliquias expostas, destacava n'uma alvura festiva;
docel, frontal, paramentos dos missaes eram brancos,
com relevos d'ouro desmaiado; nos vasos erguiam-se
ramos pyramidaes de flôres e folhagens
brancas; os velludilhos decorativos, dispostos como
velarios, punham dos dois lados do tabernaculo a
brancura de duas vastas azas desdobradas, lembrando
a Pomba Espiritual; e os vinte castiçaes erguiam
as suas chammas amarellas em throno até ao sacrario
aberto, que mostrava d'alto, engastada n'um
rebrilhar d'ouros vivos, a hostia redonda e baça. Por
toda a igreja apinhada corria uma susurração
lenta;
aqui e além um catarrho expectorava, uma criança
choramigava; o ar adensava-se já dos halitos juntos
e d'um cheiro d'incenso; e do côro, onde as figuras
dos musicos se moviam por traz dos braços
dos rebecões e das estantes, vinha a cada momento
um afinar gemido de rebeca, ou um pio de flautim.
As quatro amigas tinham-se apenas accommodado
junto do altar-mór, quando os dois acolythos, um
têso como um pinheiro, o outro gordalhufo e enxovalhado,
entraram do lado da sacristia, sustentando
alto e direito nas mãos os dois castiçaes
consagrados;
atraz o Pimenta vesgo, com uma sobrepelliz
muito vasta para elle, lançando os seus sapatões
em
passadas pomposas, trazia o incensador de prata; depois
successivamente, durante o rumor do ajoelhar
pela nave e do folhear dos livrinhos, appareceram os
dois diaconos; e emfim, paramentado de branco,
[390]
d'olhos baixos e mãos postas, com aquelle recolhimento
humilde que pede o ritual e que exprime a
mansidão de Jesus marchando ao Calvario, entrou o
padre Amaro—ainda vermelho da questão furiosa
que tivera na sacristia, antes de se revestir, por causa
da lavagem das alvas.
E o côro immediatamente atacou o
Introito.
Amelia passou a sua missa embebecida, pasmada
para o parocho—que era, como dizia o conego,
«um grande artista para missas cantadas»; todo o
cabido, todas as senhoras o reconheciam. Que dignidade,
que cavalheirismo nas saudações ceremoniosas
aos diaconos! Como se prostrava bem diante do altar,
aniquilado e escravisado, sentindo-se cinza, sentindo-se
pó diante de Deus, que assiste de perto, cercado
da sua côrte e da sua familia celeste! Mas era
sobretudo admiravel nas bençãos; passava devagar
as mãos sobre o altar como para apanhar, recolher a
graça que alli cahia do Christo presente, e atirava-a
depois com um gesto largo de caridade por toda a
nave, por sobre o estendal de lenços brancos de
cabeça,
até ao fundo onde os homens do campo muito
apertados, de varapau na mão, pasmavam para
a scintillação do sacrario! Era então
que Amelia o
amava mais, pensando que aquellas mãos
abençoadoras
lh'as apertava ella com paixão por baixo da
mesa do quino: aquella voz, com que elle lhe chamava
[391]
filhinha, recitava agora as
orações ineffaveis,
e parecia-lhe melhor que o gemer das rebecas, revolvia-a
mais que os graves do orgão! Imaginava com
orgulho que todas as senhoras decerto o admiravam
tambem; mas só tinha ciumes, um ciume de devota
que sente os encantos do céo, quando elle ficava
diante do altar, na posição extatica que manda o
ritual,
tão immovel como se a sua alma se tivesse remontado
longe, para as alturas, para o Eterno e para
o Insensivel. Preferia-o, por o sentir mais humano
e mais accessivel, quando, durante o
Kirie ou a
leitura da Epistola, elle se sentava com os diaconos
no banco de damasco vermelho; ella queria então
attrahir-lhe um olhar; mas o senhor parocho permanecia
de olhos baixos n'uma compostura modesta.
Amelia, sentada sobre os calcanhares, com a face
banhada n'um sorriso, admirava-lhe o perfil, a cabeça
bem feita, os paramentos dourados—e lembrava-se
quando o vira a primeira vez descendo a escada
da rua da Misericordia, com o seu cigarro na mão.
Que romance se passára desde essa noite! Recordava
o Morenal, o salto do vallado, a scena da morte
da titi, aquelle beijo ao pé da lareira... Ai, como
acabaria tudo aquillo? Queria então rezar; folheava
o livro, mas vinha-lhe á idéa o que o Libaninho
n'essa
manhã dissera: «o senhor parocho tinha uma
pellesinha
tão branca como um archanjo...» Devia-a ter
decerto muito delicada, muito tenra... Um desejo
intenso queimava-a: imaginava que era uma tentadora
visitação do demonio,—e para a repellir
arregalava
[392]
os olhos para o sacrario e para o throno que
o padre Amaro, cercado dos diaconos, incensava em
semi-circulos significando a Eternidade dos Louvores,
emquanto o côro berrava o
Offertorio... Depois
elle mesmo, de pé, no segundo degrau do altar, de
mãos postas, foi incensado; o Pimenta vesgo fazia
ranger galhardamente as correntes de prata do thurifero;
um perfume d'incenso derramava-se, como
uma annunciação celeste; ennevoava-se o sacrario
sob os rolos alvos de fumo; e o parocho apparecia
a Amelia transfigurado, quasi divinisado!... Oh,
adorava-o então!
A igreja tremia ao clamor do orgão em pleno;
de bocas abertas, os coristas solfejavam a toda a força;
em cima, alçando-se entre os braços dos
rebecões,
o mestre da capella, no fogo da execução,
brandia desesperadamente a sua batuta feita d'um
rolo de canto-chão.
Amelia sahiu da igreja muito fatigada, muito
pallida.
Ao jantar, em casa do conego, a snr.
a D. Josepha
censurou-a repetidamente de «não dar
palavra».
Não fallava, mas debaixo da mesa o seu pésinho
não cessava de roçar, pisar o do padre Amaro.
Como escurecera cedo tinham accendido as velas; o
conego abrira uma garrafa, não do seu famoso
duque
de 1815, mas do «1847», para acompanhar a
[393]
travessa d'aletria, que enchia o centro da mesa, com
as iniciaes do parocho desenhadas a canella; era,
como explicára o conego, «uma galanteria da mana
ao convidado». Amaro fizera logo uma saude com
o 1847 «á digna dona da casa». Ella
resplandecia,
medonha no seu vestido de bareje verde. O que
sentia é que o jantar fosse tão mau... Que
aquella
Gertrudes estáva-se a fazer uma desleixada... Ia-lhe
deixando esturrar o pato com macarrão!
—Oh, minha senhora, estava delicioso! protestou
o parocho.
—São favores do senhor parocho. É porque eu
lhe acudi a tempo... Mais uma colhérzinha d'aletria,
senhor parocho.
—Nada mais, minha senhora, tenho a minha
conta.
—Então para desgastar, vá mais esse copito do
47, disse o conego.
Elle mesmo bebeu pausadamente um bom gole,
deu um
ah de
satisfação, e repoltreando-se:
—Boa gota! Assim póde-se viver!
Estava já rubro, e parecia mais obeso, com o
seu grosso jaquetão de flanella e o guardanapo atado
ao pescoço.
—Boa gota! repetiu, d'este não provou hoje vossê
nas galhetas...
—Credo, mano! exclamou D. Josepha com a
boca cheia de fios d'aletria, muito escandalisada da
irreverencia.
O conego encolheu os hombros com desprezo.
[394]
—O credo é p'r'á missa! Esta
pretenção de se
metter sempre em questões que não percebe! Pois
fique sabendo que é d'uma grande importancia a
questão da qualidade do vinho, na missa. É que
é
necessario que o vinho seja bom...
—Concorre para a dignidade do santo sacrificio,
disse o parocho muito sério, fazendo uma caricia de
joelho a Amelia.
—E não é só isso, disse o conego
tomando logo
o tom pedagogo. É que o vinho, quando não
é
bom e tem ingredientes, deixa um deposito nas galhetas;
e, se o sacristão não é cuidadoso e
não as
limpa, as galhetas ganham um cheiro pessimo. E sabe
a senhora o que acontece? Acontece que o sacerdote,
quando vai a beber o sangue de Nosso Senhor
Jesus Christo, não está prevenido e faz-lhe uma
careta.
Ora ahi tem a senhora!
E deu um forte chupão ao calix. Mas estava fallador
n'essa noite, e depois d'arrotar devagar, interpellou
de novo D. Josepha, assombrada de tanta
sciencia.
—E diga-me lá então a senhora, já que
é tão
doutora: o vinho, no divino sacrificio, deve ser branco
ou tinto?
D. Josepha parecia-lhe que devia ser tinto, para
se parecer mais com o sangue de Nosso Senhor.
—Emende a menina, mugiu o conego de dedo
em riste para Amelia.
Ella recusou-se, com um risinho. Como não era
sacristão, não sabia...
[395]
—Emende o senhor parocho!
Amaro galhofou. Se era erro ser tinto, então devia
ser branco...
—E porquê?
Amaro ouvira dizer que era o costume em Roma.
—E porque? continuava o conego, pedante e
roncão.
Não sabia.
—Porque Nosso Senhor Jesus Christo, quando
pela primeira vez consagrou, fel-o com vinho branco.
E a razão é muito simples: é porque na
Judéa n'esse
tempo, como é notorio, não se fabricava vinho
tinto... Repita-me a senhora a aletria, faça favor.
Então, a proposito do vinho e da limpeza das galhetas,
o padre Amaro queixou-se do Bento sacristão.
N'essa manhã antes de se paramentar—justamente
quando entrára o senhor conego na sacristia—acabava
de lhe dar uma desanda a respeito das alvas.
Em primeiro logar dava-as a lavar a uma Antonia
que vivia amancebada com um carpinteiro, em grande
escandalo, e que era indigna de tocar os paramentos
santos. Esta era a primeira. Depois, a mulher
trazia-as tão enxovalhadas que era um desacato
usal-as no divino sacrificio...
—Ai, mande-m'as a mim, senhor parocho, mande-m'as
a mim, acudiu D. Josepha. Dou-as á minha
lavadeira, que é pessoa de muita virtude e traz a
roupa escarolada. Ai, até era uma honra para mim!
Eu mesmo as passava a ferro, e até se podia benzer
o ferro...
[396]
Mas o conego (que positivamente estava n'aquella
noite d'uma loquacidade copiosa) interrompeu-a,
e voltando-se para o padre Amaro, fixando-o profundamente:
—Ora a proposito de eu entrar na sacristia, sempre
lhe quero dizer, amigo e collega, que commetteu
hoje um erro de palmatoria.
Amaro pareceu inquieto.
—Que erro, padre-mestre?
—Depois de se revestir, continuou o conego pausadamente,
já com os diaconos ao lado, quando fez
a cortezia á imagem da sacristia, em logar de fazer
a cortezia profunda, fez só a meia cortezia.
—Alto lá, padre-mestre! exclamou o padre Amaro.
É o texto da rubrica.
Facta reverentia
cruci,
feita a reverencia á cruz: isto é, a reverencia
simples,
abaixar ligeiramente a cabeça...
E, para
exemplificar, fez uma
cortezia a D. Josepha
que lhe sorriu toda, torcendo-se.
—Nego! exclamou formidavelmente o conego
que em sua casa, á sua mesa, punha d'alto as suas
opiniões. E nego com os meus auctores. Elles ahi
vão!—E deixou-lhe cahir em cima, como penedos
d'autoridade, os nomes venerados de Laboranti, Baldeschi,
Merati, Turrino e Pavonio.
Amaro afastára a cadeira, puzera-se em attitude
de controversia, contente de poder, diante d'Amelia,
«enterrar» o conego, mestre de theologia moral e
um colosso de liturgia pratica.
—Sustento, exclamou, sustento com Castaldus...
[397]
—Alto, ladrão, bramiu o conego, Castaldus é
meu!
—Castaldus é meu, padre-mestre!
E encarniçaram-se, puxando cada um para si o
veneravel Castaldus e a auctoridade da sua facundia.
D. Josepha pulava de gozo na cadeira, murmurando
para Amelia com a cara franzida de riso:
—Ai, que gostinho vêl-os! Ai, que santos!
Amaro continuava, com o gesto alto:
—E além d'isso tenho por mim o bom-senso,
padre-mestre.
Primò, a
rubrica, como expuz.
Secundò,
o sacerdote, tendo na sacristia o barrete na
cabeça, não
deve fazer cortezia inteira,
porque lhe
póde cahir o barrete e temos desacato maior.
Tertiò,
seguir-se-hia um absurdo, porque então a cortezia
antes da missa á cruz da sacristia seria maior que
a que se faz depois da missa á cruz do altar!
—Mas a cortezia á cruz do altar... bradou o
conego.
—É meia cortezia. Leia a rubrica:
Caput
inclinat.
Leia Gavantus, leia Garriffaldi. E nem podia deixar
de ser assim! Sabe porquê? Porque depois da
missa o sacerdote está no auge da dignidade, uma
vez que tem dentro em si o corpo e sangue de Nosso
Senhor Jesus Christo. Logo, o ponto é meu!
E de pé, esfregou vivamente as mãos, triumphando.
O conego abatera a papeira sobre as pregas do
guardanapo, como um boi atordoado. E depois d'um
momento:
[398]
—Vossê não deixa de ter razão... Eu
foi para
o ouvir... Faz-me honra cá o discipulo, acrescentou
piscando o olho a Amelia. Pois é beber, é beber!
E
depois salta o cafésinho bem quente, mana Josepha!
Mas um forte repique á campainha sobresaltou-os.
—É a S. Joanneira, disse D. Josepha.
A Gertrudes entrou com um chale e uma manta
de lã:
—Aqui está isto que vem de casa da menina
Amelia. A senhora manda muitos recados, que não
póde vir, que se achou incommodada.
—Então com quem hei de eu ir? disse logo
Amelia, inquieta.
O conego estendeu o braço sobre a mesa, e dando-lhe
uma palmadinha na mão:
—Em ultimo caso com este seu criado. E essa
virtudesinha podia ir socegada...
—Tem coisas, mano! gritou a velha.
—Deixe lá, mana. O que passa pela boca d'um
santo, santo fica.
O parocho approvou ruidosamente:
—Tem muita razão o senhor conego Dias! O que
passa pela pela boca d'um santo, santo fica! Para que
viva!
—Á sua!
E tocaram os copos, com um olho gaiato, reconciliados
da controversia.
Mas Amelia ficára assustada.
—Jesus, que terá a mamã! Que será?
[399]
—Ora o que ha de ser! preguiça! disse-lhe o
parocho, rindo.
—Não te agonies, filha, disse D. Josepha. Vou-te
eu levar, vamos todos levar-te...
—Vai a menina em charola, rosnou o conego
descascando a sua pêra.
Mas de repente pousou a faca, arregalou os olhos
em redor, e passando a mão pelo estomago:
—Pois olhem, disse, não me estou tambem a
sentir bem...
—Que é? que é?
—Um ameaçosito da dôr. Passou, não
vale nada.
D. Josepha, já assustada, não queria que elle
comesse
a pêra. Que a ultima vez que lhe dera fôra
por causa da fructa...
Mas elle, obstinado, cravou os dentes na pêra.
—Passou, passou, rosnava.
—Foi sympathia com a mamã, disse o parocho
baixo a Amelia.
De repente o conego afastou a cadeira, e torcendo-se
de lado:
—Não estou bem, não estou bem! Jesus! Oh,
diabo! Oh, caramba! Ai! ai! morro!
Alvoroçaram-se em volta d'elle. D. Josepha amparou-o
pelo braço até ao quarto, gritando á
criada
que fosse buscar o doutor. Amelia correu á cozinha
a aquecer uma flanella para lhe pôr no estomago.
Mas não apparecia flanella. Gertrudes topava contra
as cadeiras, espavorida, á procura do seu chale para
sahir.
[400]
—Vá sem chale, sua estupida! gritou-lhe Amaro.
A rapariga abalou. Dentro o conego dava urros.
Amaro então, realmente assustado, entrou-lhe no
quarto. D. Josepha de joelhos diante da commoda
gemia orações a uma grande lithographia de Nossa
Senhora das Dôres; e o pobre padre-mestre, estirado
de barriga sobre a cama, rilhava o travesseiro.
—Mas, minha senhora, disse o parocho severamente,
não se trata agora de rezar. É necessario
fazer-lhe
alguma coisa... Que se lhe costuma fazer?
—Ai, senhor parocho, não ha nada, não ha nada,
choramingou a velha. É uma dôr que vem e vai
n'um momento. Não dá tempo p'ra nada! Um
chá
de tilia allivia-o ás vezes... Mas por desgraça
hoje
nem tilia tenho! Ai, Jesus!
Amaro correu a casa a buscar tilia. E d'ahi a
pouco voltava esbaforido com a Dionysia, que vinha
offerecer a sua actividade e a sua experiencia.
Mas o senhor conego, felizmente, sentira-se de
repente alliviado!
—Muito agradecida, senhor parocho, dizia D. Josepha.
Rica tilia! É de muita caridade. Elle agora
naturalmente cae em somnolencia. Vem-lhe sempre
depois da dôr... Eu vou para ao pé d'elle,
desculpem-me...
Esta foi peor que as outras... São estas
fructas mald...—Reteve a blasphemia, aterrada.—São
as fructas de Nosso Senhor. É a sua divina vontade...
Desculpem-me, sim?
Amelia e o parocho ficaram sós na sala. Os seus
olhares reluziram logo do desejo de se tocar, de se
[401]
beijar, mas as portas estavam abertas; e sentiam no
quarto, ao lado, as chinelas da velha. O padre Amaro
disse então alto:
—Pobre padre-mestre! É uma dôr terrivel.
—Dá-lhe todos os tres mezes, disse Amelia. A
mamã já andava com o presentimento. Ainda me
tinha
dito antes d'hontem: é o tempo da dôr do senhor
conego, estou com mais cuidado...
O parocho suspirou, e baixinho:
—Eu é que não tenho quem pense nas minhas
dôres...
Amelia pousou n'elle longamente os seus bellos
olhos humedecidos de ternura:
—Não diga isso...
As suas mãos iam apertar-se ardentemente por
sobre a mesa; mas D. Josepha appareceu, encolhida
no seu chale. O mano tinha adormecido. E ella
estava que não se podia ter nas pernas. Ai, aquelles
abalos arrazavam-lhe a saude! Accendera duas
velas a S. Joaquim e fizera uma promessa a Nossa
Senhora da Saude. Era a segunda aquelle anno, por
causa da dôr do mano. E Nossa Senhora não lhe
tinha
faltado...
—Nunca falta a quem a implora com fé, minha
senhora, disse com unção o padre Amaro.
O alto relogio d'armario bateu então cavamente
oito horas. Amelia fallou outra vez no cuidado em
que estava pela mamã... Demais a mais ia-se a fazer
tão tarde...
[402]
—E é que quando eu sahi estava a choviscar,
disse Amaro.
Amelia correu á janella, inquieta. O lagedo defronte,
debaixo do candieiro, reluzia muito molhado.
O céo estava tenebroso.
—Jesus, vamos ter uma noite d'agua!
D. Josepha estava afflicta com o contratempo;
mas a Amelia bem via, ella agora não podia despegar
de casa; a Gertrudes fôra ao doutor; naturalmente
não o encontrára, andava a procural-o de casa
em casa, quem sabe quando viria...
O parocho então lembrou que a Dionysia (que
viera com elle e esperava na cozinha) podia ir acompanhar
a snr.
a D. Amelia. Eram dois passos,
não havia
ninguem pelas ruas. Elle mesmo iria com ellas
até á esquina da Praça... Mas deviam
apressar-se,
que ia cahir agua!
D. Josepha foi logo buscar um guardachuva para
Amelia. Recommendou-lhe muito que contasse á mamã
o que tinha succedido. Mas que não se affligisse
ella, que o mano estava melhor...
—E olha! gritou-lhe ainda de cima da escada,
dize-lhe que se fez tudo o que se pôde, mas que a
dôr não deu tempo para nada!
—Sim, lá direi. Boa noite.
Ao abrirem a porta a chuva cahia grossa. Amelia
então quiz esperar. Mas o parocho, apressado,
puxou-a pelo braço:
—Não vale nada, não vale nada!
[403]
Desceram a rua deserta, aconchegados debaixo
do guardachuva, com a Dionysia ao lado, muito calada,
de chale pela cabeça. Todas as janellas estavam
apagadas; no silencio as goteiras cantavam
d'enxurrão.
—Jesus, que noite! disse Amelia. Vai-se-me a
perder o vestido.
Estavam então na rua das Sousas.
—É que agora cae a cantaros, disse Amaro.
Realmente parece-me que o melhor é entrar no pateo
de minha casa e esperar um bocado...
—Não, não! acudiu Amelia.
—Tolices! exclamou elle impaciente. Vai-se-lhe
estragar o vestido... É um instante, é um
aguaceiro.
Para aquelle lado, vê, está a alliviar. Vai
passar...
É uma tolice... A mamã, se a visse apparecer
debaixo d'uma carga d'agua, zangava-se, e com razão!
—Não, não!
Mas Amaro parou, abriu rapidamente a porta, e
empurrando Amelia de leve:
—É um instante, vai passar, entre...
E alli ficaram, calados, no pateo escuro, olhando
as cordas d'agua que reluziam á luz do candieiro defronte.
Amelia estava toda atarantada. A negrura do
pateo e o silencio assustavam-n'a; mas parecia-lhe
delicioso estar assim n'aquella escuridão, ao pé
d'elle,
ignorada de todos... Insensivelmente attrahida,
roçava-se-lhe pelo hombro; e recuava logo, inquieta
de ouvir a sua respiração tão agitada,
de o sentir
[404]
tão junto das saias. Percebia por traz, sem a vêr,
a
escada que levava ao quarto d'elle; e tinha um desejo
immenso de lhe ir vêr acima os seus moveis,
os seus arranjos... A presença da Dionysia, encolhida
contra a porta e muito calada, embaraçava-a; todavia
a cada momento voltava os olhos para ella,
receando que desapparecesse, se sumisse na negrura
do pateo ou da noite...
Amaro então começou a bater com os pés
no
chão, a esfregar as mãos, arripiado.
—Estamos aqui a apanhar alguma, dizia. As lages
estão regeladas... Realmente era melhor esperar
em cima na sala de jantar...
—Não, não! disse ella.
—Pieguices! Até a mamã se havia de zangar...
Vá, Dionysia, accenda luz em cima.
A matrona immediatamente galgou os degraus.
Elle então, muito baixo, tomando o braço
d'Amelia:
—Porque não? Que pensas tu? É uma pieguice.
É emquanto não passa o aguaceiro. Dize...
Ella não respondia, respirando muito forte. Amaro
pousou-lhe a mão sobre o hombro, sobre o peito,
apertando-lh'o, acariciando a sêda. Toda ella estremeceu.
E foi-o emfim seguindo pela escada, como
tonta, com as orelhas a arder, tropeçando a cada degrau
na roda do vestido.
—Entra p'r'áhi, é o quarto, disse-lhe elle ao
ouvido.
Correu á cozinha. Dionysia accendia a vela.
[405]
—Minha Dionysia, tu percebes... Eu fiquei de
confessar aqui a menina Amelia. É um caso muito
sério... Volta d'aqui a meia hora. Toma.—Metteu-lhe
tres placas na mão.
A Dionysia descalçou os sapatos, desceu em pontas
de pés e fechou-se na loja do carvão.
Elle voltou ao quarto com a luz. Amelia lá estava,
immovel, toda pallida. O parocho fechou a porta—e
foi para ella, calado, com os dentes cerrados,
soprando como um touro.
Meia hora depois Dionysia tossiu na escada. Amelia
desceu logo, muito embrulhada na manta: ao
abrirem a porta do pateo passavam na rua dois borrachos
galrando: Amelia recuou rapidamente para o
escuro. Mas Dionysia d'ahi a pouco espreitou; e vendo
a rua deserta:
—Está a barra livre, minha rica menina...
Amelia embrulhou mais o rosto e apressaram o
passo para a rua da Misericordia. Já não chovia;
havia
estrellas; e uma frialdade sêcca annunciava o
norte e o bom tempo.
XVII
Ao outro dia Amaro, vendo no relogio que tinha
á cabeceira que ia chegando a hora da missa, saltou
alegremente da cama. E, enfiando o velho paletot
que lhe servia de robe-de-chambre, pensava n'essa
outra manhã em Feirão em que acordára
aterrado
por ter na vespera, pela primeira vez depois de
padre, peccado brutalmente sobre a palha da estrebaria
da residencia com a Joanna Vaqueira. E não
se atrevera a dizer missa com aquelle crime na alma,
que o abafava com um peso de penedo. Considerára-se
contaminado, immundo, maduro para o inferno,
segundo todos os santos padres e o seraphico
concilio de Trento. Tres vezes chegára á porta da
igreja, tres vezes recuára assombrado. Tinha a certeza
de que, se ousasse tocar na Eucharistia com
[408]
aquellas mãos com que repanhára os saiotes da
Vaqueira,
a capella se aluiría sobre elle, ou ficaria paralysado
vendo erguer-se diante do sacrario, d'espada
alta, a figura rutilante de S. Miguel Vingador!
Montára a cavallo e trotára duas horas, pelos
barreiros
de D. João, para ir á Gralheira confessar-se ao
bom abbade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos
de innocencia, de exagerações piedosas e de
terrores
noviços! Agora tinha aberto os olhos em redor
á realidade humana. Abbades, conegos, cardeaes e
monsenhores não peccavam sobre a palha da estrebaria,
não—era em alcovas commodas, com a ceia
ao lado. E as igrejas não se aluiam, e S. Miguel Vingador
não abandonava por tão pouco os confortos
do céo!
Não era isso o que o inquietava—o que o inquietava
era a Dionysia, que elle ouvia na cozinha,
arrumando e tossicando, sem se atrever a pedir-lhe
agua para a barba. Desagradava-lhe sentir aquella
matrona introduzida, installada no seu segredo. Não
duvidava decerto da sua discrição, era o seu
officio;
e algumas meias libras manteriam a sua fidelidade.
Mas repugnava ao seu pudor de padre saber
que aquella velha concubina de auctoridades civis e
militares, que rolára a sua massa de gordura por todas
as torpezas seculares da cidade, conhecia as
suas fragilidades, as concupiscencias que lhe ardiam
sob a batina de parocho. Preferiria que fosse o Silverio
ou Natario que o tivesse visto na vespera,
todo inflammado: era entre sacerdotes, ao menos!...
[409]
E o que o incommodava era a idéa de ser
observado por aquelles olhinhos cynicos, que não se
impressionavam nem com a austeridade das batinas
nem com a respeitabilidade dos uniformes, porque
sabiam que por baixo estava igualmente a mesma
miseria bestial da carne...
—Acabou-se, pensou, dou-lhe uma libra e imponho-a.
Nós de dedos bateram discretamente à porta do
quarto.
—Entre! disse Amaro sentando-se logo, curvando-se
vivamente sobre a mesa, como absorvido,
abysmado nos seus papeis.
A Dionysia entrou, pousou o pucaro da agua sobre
o lavatorio, tossiu, e fallando sobre as costas
d'Amaro:
—Ó senhor parocho, olhe que isto assim não tem
geito. Hontem iam vendo sahir daqui a pequena. É
muito sério, menino... Para bem de todos é
necessario
segredo!
Não, não a podia impôr! A mulher
estabelecia-se,
à força, na sua confidencia. Aquellas palavras
mesmo,
murmuradas com medo das paredes, revelando
uma prudencia de officio, mostravam-lhe a vantagem
d'uma cumplicidade tão experiente.
Voltou-se na cadeira, muito vermelho.
—Iam vendo, hein?
—Iam vendo. Eram dois bebedos... Mas podiam
ser dois cavalheiros.
—É verdade.
[410]
—E na sua posição, senhor parocho, na
posição
da pequena!... Tudo se deve fazer pelo calado...
Nem os moveis do quarto devem saber! Em coisas
que eu protejo, exijo tanta cautela como se se tratasse
de morte!
Amaro então decidiu-se bruscamente a aceitar a
protecção da
Dionysia.
Rebuscou n'um canto da gaveta, metteu-lhe meia
libra na mão.
—Seja pelo amor de Deus, filho, murmurou
ella.
—Bem; e agora, Dionysia, que lhe parece? perguntou
elle recostado na cadeira, esperando os conselhos
da matrona.
Ella disse muito naturalmente, sem affectação de
mysterio ou de malicia:
—A mim parece-me que para vêr a pequena
não ha como a casa do sineiro!
—A casa do sineiro!?
Ella recordou-lhe, muito tranquillamente, a excellente
disposição do sitio. Um dos quartos ao
pé da
sacristia, como elle sabia, dava para um pateo onde
se tinha feito um barracão no tempo das obras. Pois
bem, justamente do outro lado eram as trazeiras da
casa do sineiro... A porta da cozinha do tio Esguelhas
abria para o pateo: era sahir da sacristia, atravessal-o,
e o senhor parocho estava no ninho!
—E ella?
—Ella entra pela porta do sineiro, pela porta
da rua que dá para o adro. Não passa viva alma,
é
[411]
um ermo. E se alguem visse, nada mais natural,
era a menina Amelia que ia dar um recado ao sineiro...
Isto, já se vê, é ainda pelo alto, que
o plano
póde-se aperfeiçoar...
—Sim, comprehendo, é um esboço, disse Amaro
que passeava pelo quarto reflectindo.
—Eu conheço bem o sitio, senhor parocho, e
creia o que lhe digo: para um senhor ecclesiastico
que tem o seu arranjinho, não ha melhor que a casa
do sineiro!
Amaro parou diante d'ella, rindo, familiarisando-se:
—Ó tia Dionysia, diga lá com franqueza:
não é
a primeira vez que vossê aconselha a casa do sineiro,
hein?
Ella então negou, muito decisivamente. Era homem
que nem conhecia, o tio Esguelhas! Mas tinha-lhe
vindo aquella idéa de noite, a malucar na cama.
Pela manhã cedo fôra examinar o sitio, e
reconhecera
que estava a calhar.
Tossicou, foi-se aproximando sem ruido da porta;
e voltando-se ainda, com um ultimo conselho:
—Tudo está em que vossa senhoria se entenda
bem com o sineiro.
Era isso agora o que preoccupava o padre Amaro.
O tio Esguelhas passava na Sé, entre os serventes
e os sacristães, por um
macambusio. Tinha uma
[412]
perna cortada e usava muleta: e alguns sacerdotes,
que desejariam o emprego para os seus protegidos,
sustentavam mesmo que aquelle defeito o tornava,
segundo a Regra, improprio para o serviço da Igreja.
Mas o antigo parocho José Migueis, em obediencia
ao senhor bispo, conservára-o na Sé, argumentando
que o trambolhão desastroso que motivára a
amputação fôra na torre, n'uma
occasião de festa,
collaborando no culto:
ergo estava
claramente indicada
a intenção de Nosso Senhor em não
prescindir
do tio Esguelhas. E quando Amaro tomára conta da
parochia, o côxo valera-se da influencia da S. Joanneira
e d'Amelia para conservar, como elle dizia, a
corda do sino. Era além
d'isso (e fôra a opinião da
rua da Misericordia) uma obra de caridade. O tio Esguelhas,
viuvo, tinha uma filha de quinze annos paralytica,
desde pequena, das pernas. «O diabo embirrou
com as pernas da familia», costumava dizer
o tio Esguelhas. Era decerto esta desgraça que lhe
dava uma tristeza taciturna. Contava-se que a rapariga
(cujo nome era Antonia, e que o pai chamava
Tótó) o torturava com perrices, phrenesis,
caprichos
abominaveis. O doutor Gouvêa declarára-a
hysterica:
mas era uma certeza, para as pessoas de bons principios,
que a Tótó estava
possuida do
Demonio. Houvera
mesmo o plano de a exorcismar: o senhor vigario
geral, porém, sempre assustado com a imprensa,
hesitára em conceder a permissão ritual, e
tinham-lhe
feito apenas, sem resultado, as aspersões simples
de agua benta. De resto não se sabia a natureza do
[413]
endemoninhamento da paralytica: a
snr.
a D. Maria
da Assumpção ouvira dizer que consistia em uivar
como um lobo; a Gansosinho, em outra versão, assegurava
que a desgraçada se dilacerava com as
unhas... O tio Esguelhas, esse, quando lhe perguntavam
pela rapariga, respondia sêccamente:
—Lá está.
Os intervallos do seu serviço da igreja passava-os
todos com a filha no casebre. Só atravessava o
largo para ir á botica por algum remedio, ou comprar
bolos á confeitaria da Thereza. Todo o dia
aquelle recanto da Sé, o pateo, o barracão, o
alto
muro ao lado coberto de parietarias, a casa ao fundo
com a sua janella de portada negra n'uma parede
lazeirenta, permaneciam n'um silencio, n'uma
sombra humida: e os meninos do côro, que ás vezes
se arriscavam a ir pé-ante-pé, pelo pateo,
espreitar
o tio Esguelhas, viam-no invariavelmente curvado
á lareira, com o cachimbo na mão, cuspilhando
tristemente
para as cinzas.
Costumava todos os dias respeitosamente ouvir a
missa do senhor parocho. E Amaro, n'essa manhã, ao
revestir-se, sentindo-lhe nas lageas do pateo a muleta,
ia já ruminando a sua historia—porque não podia
pedir ao tio Esguelhas o uso do seu casebre sem
explicar, d'algum modo, que o desejava para um serviço
religioso... E que serviço, a não ser preparar,
em segredo e longe das opposições mundanas,
alguma
alma terna para o convento e para a santidade?
Ao vêl-o entrar na sacristia, deu-lhe logo uns
[414]
«bons dias» amaveis. Achou-lhe uma bella cara de
saude! Tambem não admirava—porque, segundo
todos os santos padres, a frequentação dos sinos,
pela virtude particular que lhes communica a
consagração,
dão uma alegria e um bem-estar especiaes.
Contou então com bonhomia ao tio Esguelhas e aos
dois sacristães que, quando era pequeno, em casa
da senhora marqueza d'Alegros, o seu grande desejo
era ser um dia sineiro...
Riram muito, extasiando-se com a pilheria de sua
senhoria.
—Não se riam, é verdade. E não me
ficava
mal... N'outros tempos eram clerigos d'ordens menores
que tocavam os sinos. Os nossos santos padres
consideram-n'os um dos meios mais efficazes
da piedade. Lá disse a glosa pondo o verso na bôca
do sino:
Laudo Deum, populum voco,
congrego clerum.
Defunctum ploro, pestem fugo, festa decoro...
O que quer dizer, como sabem:
Louvo a Deus, chamo
o povo, congrego o clero, choro os mortos, afugento
as pestes, alegro as festas.
Citava a glosa com respeito, já revestido d'amicto
e alva, no meio da sacristia; e o tio Esguelhas
impertigava-se sobre a sua muleta áquellas palavras
que lhe davam uma auctoridade e uma importancia
imprevista.
O sacristão tinha-se aproximado com a casula
[415]
rôxa. Mas Amaro não terminára a
glorificação dos
sinos;—explicou ainda a sua grande virtude em
dissipar as tempestades (apesar do que dizem alguns
sabios presumpçosos), não só porque
communicam
ao ar a unção que recebem da
benção, mas porque
dispersam os demonios que erram entre os vendavaes
e os trovões. O santo concilio de Milão
recommenda
que se toquem os sinos sempre que haja
tormenta...
—Em todo o caso, tio Esguelhas, acrescentou
sorrindo com solicitude pelo sineiro, aconselho-lhe
que n'esses casos é melhor não se arriscar.
Sempre
é estar no alto, e perto da trovoada... Vamos a isso,
tio Mathias.
E recebeu sobre os hombros a casula, murmurando
com muita compostura:
-
Domine, quis dixisti jugum meum...
Aperte
mais os cordões por traz, tio Mathias.
Suave est, et
onus meum leve...
Fez uma cortezia á imagem e entrou na igreja,
na attitude da rubrica, d'olhos baixos e corpo direito;
emquanto o Mathias, depois de ter tambem saudado
com um raspão de pé o Christo da sacristia,
se apressava com as galhetas, tossindo forte para clarear
a garganta.
Durante toda a missa, ao voltar-se para a nave,
no
Offertorio e ao
Orate fratres, o padre Amaro
dirigia-se
sempre (por uma benevolencia que o ritual
permitte) para o sineiro, como se o Sacrificio fosse
por sua intenção particular;—e o tio Esguelhas,
com
[416]
a sua muleta pousada ao lado, abysmava-se então
n'uma devoção mais respeitosa. Mesmo ao
Benedicat,
depois de ter começado a benção
voltado para o altar
para recolher do Deus vivo o deposito da Misericordia,
terminou-a, virando-se devagar para o tio
Esguelhas especialmente, como para lhe dar a elle
só as Graças e Dons de Nosso Senhor!
—E agora, tio Esguelhas, disse-lhe baixo ao entrar
na sacristia, vá-me esperar ao pateo que temos
que conversar.
Não tardou a vir ter com elle, com uma face grave
que impressionou o sineiro.
—Cubra-se, cubra-se, tio Esguelhas. Pois eu venho
fallar-lhe d'um caso sério... Verdadeiramente
pedir-lhe um favor...
—Oh, senhor parocho!
Não, não era um favor... Porque, quando se
tratava
do serviço de Deus, todos tinham o dever de
concorrer na proporção das suas
forças... Tratava-se
d'uma menina que se queria fazer freira. Emfim,
para lhe provar a confiança que tinha n'elle, ia-lhe
dizer o nome...
—É a Ameliasinha da S. Joanneira!
—Que me diz, senhor parocho?!
—Uma vocação, tio Esguelhas! Vê-se o
dedo de
Deus! É extraordinario...
Contou-lhe então uma historia diffusa que ia forjando
laboriosamente, segundo as sensações que
imaginava
vêr na face pasmada do sineiro. A rapariga
desgostára-se da vida, com as desavenças que
tivera
[417]
com o noivo. Mas a mãi, que estava velha, que
a necessitava para o governo da casa, não queria
consentir, suppondo que era uma velleidade... Mas
não, era vocação... Elle sabia-o...
Infelizmente,
quando havia opposição, a conducta do sacerdote
era
muito delicada... Todos os dias os jornaes impios
(e infelizmente era a maioria!) gritavam contra as
influencias do clero... As auctoridades, mais impias
que os jornaes, punham obstaculos... Havia leis terriveis...
Se soubessem que elle andava a instruir a
menina para professar, ferravam-no na cadeia! Que
queria o tio Esguelhas?... Impiedade, alheismo do
tempo! Ora, elle necessitava ter com a pequena
muitas e muitas conferencias: para a experimentar,
para conhecer as suas disposições, vêr
bem se é para
a Solidão que ella tem geito, ou para a Penitencia,
ou para o serviço dos enfermos, ou para a
Adoração
Perpetua, ou para o ensino... Emfim, estudal-a
por dentro e por fóra.
—Mas onde? exclamou, abrindo os braços como
na desolação d'um santo dever contrariado. Onde?
Em casa da mãi não póde ser,
já andam desconfiados.
Na igreja impossivel, era o mesmo que na rua.
Em minha casa, já vê, menina nova...
—Está claro.
—De modo que, tio Esguelhas... E estou certo
que vossê m'o ha de agradecer... pensei na sua
casa...
—Oh, senhor parocho, acudiu o sineiro, eu, a
casa, os trastes, está tudo ás ordens!
[418]
—Bem vê, é no interesse d'aquella alma,
é um
regosijo para Nosso Senhor...
—E p'ra mim, senhor parocho, e p'ra mim!
O que o tio Esguelhas receava é que a casa não
fosse decente e não tivesse as commodidades...
—Ora! fez o padre sorrindo, n'um renunciamento
de todos os confortos humanos. Comtanto que
haja duas cadeiras e uma mesa para pôr o livro da
oração...
De resto, por outro lado, dizia o sineiro, lá como
sitio retirado e casa socegada estava a preceito. Ficavam
alli, elle e a menina, como os monges no deserto.
Nos dias em que o senhor parocho viesse, elle
sahia a dar o seu giro. Na cozinha não poderiam
accommodar-se, porque o quartito da pobre Tótó
era
ao pé... Mas tinham o quarto d'elle, em cima.
O padre Amaro bateu com a mão na testa. Não
se lembrára da paralytica!
—Isso estraga-nos o arranjinho, tio Esguelhas!
exclamou.
Mas o sineiro tranquillisou-o, vivamente. Estava
agora todo interessado n'aquella conquista d'uma
noiva para Nosso Senhor; queria por força que o seu
telhado abrigasse a santa preparação da alma da
menina...
Talvez lhe attrahisse a elle a piedade de
Deus! Mostrou com calor as vantagens, as facilidades
da casa. A Tótó não
embaraçava. Não se mexia da
cama. O senhor parocho entrava pela cozinha do
lado da sacristia, a menina vinha pela porta da rua:
subiam, fechavam-se no quarto...
[419]
—E ella que faz, a Tótó? perguntou o padre
Amaro, hesitando ainda.
Coitadita, para alli estava... Tinha manias: ora
fazia bonecas e apaixonava-se por ellas a ponto de
ter febre; outros dias passava-os n'um silencio medonho
com os olhos cravados na parede. Mas ás vezes
estava alegre, palrava, chalaceava... Uma desgraça!
—Devia-se entreter, devia lêr, disse o padre
Amaro para mostrar interesse.
O sineiro suspirou. Não sabia lêr, a pequena,
nunca quizera aprender. Era o que elle lhe dizia—se
pudesses lêr já te não pesava tanto a
vida! Mas
então? Tinha horror a applicar-se... O senhor padre
Amaro devia ter a caridade de a persuadir, quando
viesse a casa...
Mas o parocho não o escutava, todo abysmado
n'uma idéa que lhe alumiára a face d'um sorriso.
Achára subitamente a explicação
natural a dar á S.
Joanneira e ás amigas das visitas d'Amelia a casa do
sineiro: era a ensinar a lêr a paralytica! A educal-a!
A abrir-lhe a alma ás bellezas dos livros santos, da
historia dos martyres e da oração!...
—Está decidido, tio Esguelhas, exclamou, esfregando
as mãos de jubilo. É em sua casa que se ha
de fazer da rapariga uma santa. E d'isto—e a sua
voz deu um grave profundo—um segredo inviolavel!
—Oh, senhor parocho! fez o sineiro, quasi offendido.
[420]
—Conto comsigo! disse Amaro.
Veio logo á sacristia escrever um bilhete, que devia
passar em segredo a Amelia, em que lhe explicava
detalhadamente «o arranjinho que fizera para
gozarem novas e divinas felicidades». Prevenia-a que
o pretexto para ella vir todas as semanas a casa do
sineiro devia ser a educação da paralytica: elle
mesmo
o proporia á noite em casa da mamã.
«Que n'isto,
dizia, ha alguma verdade, pois seria grato a Deus
que se alumiasse com uma boa instrucção religiosa
as trevas d'aquella alma. E matamos assim, querido
anjo, dois coelhos com uma só cacheirada!»
Depois entrou em casa. Como se sentou regalamente
á mesa do almoço, com um contentamento
pleno de si, da vida e das dôces facilidades que n'ella
encontrava! Ciumes, duvidas, torturas do desejo,
solidão da carne, tudo o que o consumira mezes e
mezes, além na rua da Misericordia e alli na rua das
Sousas, passára. Estava emfim installado á larga
na
felicidade! E recordava, abysmado n'um gozo mudo,
com o garfo esquecido na mão, toda aquella
meia hora da vespera, prazer por prazer, resaboreando-os
mentalmente um a um, saturando-se da
deliciosa certeza da posse—como o lavrador que
percorre a leira de terra adquirida que os seus olhos
invejaram muitos annos. Ah, não tornaria a olhar de
lado, com azedume, os cavalheiros que passeavam
na Alameda com as suas mulheres pelo braço! Tambem
elle agora tinha uma, toda sua, alma e carne,
linda, que o adorava, que usava boas roupas brancas,
[421]
e trazia no peito um cheirinho d'agua de colonia!
Era padre, é verdade... Mas para isso tinha o
seu grande argumento: é que o comportamento do
padre, logo que não dê escandalo entre os fieis,
em
nada prejudica a efficacia, a utilidade, a grandeza da
religião. Todos os theologos ensinam que a ordem
dos sacerdotes foi instituida para administrar os sacramentos;
o essencial é que os homens recebam a
santidade interior e sobrenatural que os sacramentos
contêm; e comtanto que elles sejam dispensados
segundo as formulas consagradas, que importa que
o sacerdote seja santo ou peccador? O sacramento
communica a mesma virtude. Não é pelos meritos
do sacerdote que elles operam, mas pelos meritos
de Jesus Christo. O que é baptisado ou ungido, ou
seja por mãos puras ou por mãos torpes, fica
igualmente bem lavado da macula original, ou
bem preparado para a vida eterna. Isto lê-se em
todos os santos padres, estabeleceu-o o seraphico concilio
de Trento. Os fieis nada perdem, na sua alma
e na sua salvação, com a indignidade do parocho.
E se o parocho se arrepende á hora extrema, tambem
se lhe não fecham as portas do céo. Logo em
definitiva tudo acaba bem, e em paz geral...—E
o padre Amaro, raciocinando assim, sorvia com prazer
o seu café.
A Dionysia, ao fim do almoço, veio saber, muito
risonha, se o senhor parocho fallára ao tio Esguelhas...
—Fallei por alto, disse elle ambiguamente. Não
[422]
ha nada decidido... Roma não se construiu n'um
dia.
—Ah! fez ella.
E recolheu-se á cozinha, pensando que o senhor
parocho mentia como um hereje. Tambem, não se
importava... Nunca gostára de arranjos com os senhores
ecclesiasticos; pagavam mal, e suspeitavam
sempre...
E mesmo ouvindo Amaro que sahia, correu á escada
a dizer-lhe—que emfim, ella tinha a olhar pela
sua casa, e quando o senhor parocho tivesse arranjado
criada...
—A snr.
a D. Josepha Dias anda-me a tratar
d'isso,
Dionysia. Espero ter alguem ámanhã. Mas
vossê
appareça... Agora que somos amigos...
—Quando o senhor parocho quizer é chamar-me
da janella para o quintal, disse ella do alto da escada.
Para tudo que precisar. De tudo sei um bocadinho,
até de desarranjos e de partos... E n'este
ponto posso até dizer...
Mas o padre não a escutava: atirára com a porta
de repellão, fugindo, indignado d'aquella utilidade
torpe assim brutalmente offerecida.
Foi d'ahi a dias que elle fallou em casa da S.
Joanneira da filha do sineiro.
Na vespera dera o bilhete a Amelia; e n'essa
noite, emquanto na sala se galrava alto, aproximára-se
do piano, onde Amelia, com os dedos preguiçosos,
[423]
corria escalas, e abaixando-se para accender
o cigarro á vela, murmurára:
—Leu?
—Optimo!
Amaro recolheu logo ao grupo das senhoras, onde
a Gansoso estava contando uma catastrophe que
lêra n'um jornal, succedida em Inglaterra: uma mina
de carvão que desabára, sepultando cento e vinte
trabalhadores. As velhas arripiavam-se horrorisadas.
A Gansoso então, gozando o effeito, accumulou
loquazmente os detalhes: a gente que estava fóra
esforçára-se
por desatulhar os infelizes; ouviam-se-lhes
em baixo os gemidos e os ais; era ao lusco-fusco;
havia uma tormenta de neve...
—Desagradavel! rosnou o conego, aconchegando-se
na sua poltrona, gozando o calor da sala e a
segurança dos tectos.
A snr.
a D. Maria da
Assumpção declarou que todas
essas minas, essas machinas estrangeiras lhe causavam
medo. Vira uma fabrica ao pé d'Alcobaça, e
parecera-lhe uma imagem do inferno. Estava certa
que Nosso Senhor não as via com bons olhos...
—É como os caminhos de ferro, disse D. Josepha.
Tenho a certeza que foram inspirados pelo demonio!
Não o digo a rir. Mas vejam aquelles uivos,
aquelle fogaracho, aquelle fragor! Ai, arripia!
O padre Amaro galhofou,—assegurando á snr.
a
D. Josepha que eram ricamente commodos para andar
depressa! Mas, tornando-se logo sério, acrescentou:
[424]
—Em todo o caso é incontestavel, que ha n'essas
invenções da sciencia moderna muito do demonio.
E é por isso que a nossa santa Igreja as
abençôa,
primeiro com orações e depois com agua benta.
Hão de saber que é o costume. Com agua benta para
lhes fazer o exorcismo, expulsar o espirito inimigo:
e com orações para as resgatar do peccado
original
que não só existe no homem, mas nas coisas
que elle construe. É por isso que se benzem e se purificam
as locomotivas... Para que o demonio não
se possa servir d'ellas para seu uso.
D. Maria da Assumpção quiz immediatamente
uma explicação. Como era a maneira usual do
Inimigo
se servir dos caminhos de ferro?
O padre Amaro esclareceu-a, com bondade. O
Inimigo tinha muitas maneiras, mas a habitual era
esta: fazia descarrilar um trem de modo que morressem
passageiros, e como essas almas não estavam
preparadas pela Extrema-Unção, o demonio alli
mesmo,
zás, apoderava-se d'ellas!
—É de velhaco! rosnou o conego, com uma
admiração
secreta por aquella manha tão habil do Inimigo.
Mas D. Maria da Assumpção abanou-se
langorosamente,
com o rosto banhado n'um sorriso de beatitude:
—Ai, filhas! dizia pausadamente para os lados,
a nós é que não nos succedia isso...
Que não nos
pilhava desprevenidas!
Era verdade; e todas gozaram um momento
[425]
aquella certeza deliciosa de estarem preparadas, de
poderem lograr a malicia do Tentador!
O padre Amaro então tossiu como para preparar
as vias, e apoiando as duas mãos sobre a mesa,
n'um tom de pratica:
—É necessario muita vigilancia para conservar
de longe o demonio. Ainda hoje eu estava a pensar
n'isso (foi mesmo a minha meditação) a respeito
de
um caso bem triste que tenho lá ao pé da
Sé... É
a filhita do sineiro.
As senhoras tinham chegado as cadeiras, bebendo-lhe
as palavras, n'uma curiosidade subitamente
excitada, esperando ouvir a historia picante d'alguma
façanha de Satanaz. E o parocho continuou com uma
voz a que o silencio em redor dava solemnidade:
—Alli está aquella rapariga, todo o santo dia,
pregada na cama! Não sabe lêr, não tem
devoções
habituaes, não tem o costume da
meditação; é por
consequencia, para empregar a expressão de S.
Clemente—
uma
alma sem defeza. O que succede?
Que o demonio, que ronda constantemente e não
perde dentada, estabelece-se alli como em sua casa!
Por isso, como me dizia hoje o pobre tio Esguelhas,
são phrenesis, desesperos, furores sem razão...
Emfim
o pobre homem tem a vida estragada.
—E a dois passos da igreja do Senhor! exclamou
D. Maria da Assumpção, indignada d'aquella
impudencia de Satanaz,
installando-se
n'um corpo,
n'um leito, que apenas a estreiteza do pateo separava
dos contrafortes da Sé.
[426]
Amaro acudiu:
—Tem a D. Maria razão. O escandalo é enorme.
Mas então? Se a rapariga não sabe lêr!
Se não sabe
uma oração, se não tem quem a instrua,
quem lhe
leve a palavra de Deus, quem a fortifique, quem lhe
ensine o segredo de frustrar o Inimigo!...
Ergueu-se animado, deu alguns passos pela sala,
de hombros vergados, n'uma mágoa de pastor a
quem uma força desproporcional arrebata uma ovelha
amada. E, exaltado pelas suas palavras, sentia,
com effeito, uma piedade que o invadia, uma compaixão
verdadeira por aquella pobre creatura, a
quem a falta de consolações devia tornar mais
intensa
a agonia da immobilidade...
As senhoras olhavam-se, magoadas com aquelle
caso triste d'abandono d'alma,—sobretudo pela dôr
que elle parecia trazer ao senhor parocho.
A snr.
a D. Maria da
Assumpção, que percorria
em imaginação o abundante arsenal da
devoção,
lembrára logo que se lhe puzessem alguns santos á
cabeceira, como S. Vicente, Nossa Senhora das Sete
Chagas... Mas o silencio das amigas exprimiu bem
a insufficiencia d'aquella galeria devota.
—As senhoras dir-me-hão talvez, disse o padre
Amaro sentando-se de novo, que se trata apenas da
filha do sineiro. Mas é uma alma! É uma alma como
as nossas!
—Todos têm direito á graça do Senhor,
disse
o conego gravemente, n'um sentimento d'imparcialidade,
admittindo a igualdade das classes logo que
[427]
não se tratava de bens materiaes e apenas dos confortos
do céo.
—P'ra Deus não ha pobre nem rico, suspirou a
S. Joanneira. Antes pobre, que dos pobres é o reino
do céo!
—Não, antes rico, acudiu o conego, estendendo
a mão para deter aquella falsa
interpretação da lei
divina. Que o céo tambem é para os ricos. A
senhora
não comprehende o preceito.
Beati
pauperes, bemditos
os pobres, quer dizer que os pobres devem-se
achar felizes na pobreza; não desejarem os bens dos
ricos; não quererem mais que o bocado de pão que
têm; não aspirarem a participar das riquezas dos
outros, sob pena de não serem bemditos. É por
isso,
saiba a senhora, que essa canalha que préga que os
trabalhadores e as clases baixas devem viver melhor
do que vivem, vai d'encontro á expressa vontade da
Igreja e de Nosso Senhor, e não merece senão
chicote,
como excommungados que são! Ouf!
E estirou-se, extenuado de ter fallado tanto. O
padre Amaro, esse, permanecia calado, com o cotovêlo
sobre a mesa, esfregando devagar a testa. Ia
lançar a sua idéa, como vinda d'uma
inspiração divina,
propôr que fosse Amelia levar uma
educação
devota á triste paralytica... E hesitava supersticiosamente
diante do seu motivo todo carnal, todo de
concupiscencia. A filha do sineiro apparecia-lhe agora,
exageradamente, abysmada n'uma treva d'agonia.
Sentia toda a caridade que haveria em consolal-a,
entretel-a, fazer-lhe os dias menos amargos...
[428]
Esta acção redimiria decerto muitas culpas,
encantaria
Deus, se fosse feita n'um puro espirito de fraternidade
christã! Vinha-lhe uma compaixão sentimental
de bom rapaz por aquelle miseravel corpo
pregado n'uma cama, sem nunca vêr o sol nem a
rua... E alli estava embaraçado, n'aquella piedade
que o invadia, sem se decidir, coçando a nuca, arrependido
quasi de ter fallado ás senhoras da
Tótó...
Mas D. Joaquina Gansoso tivera uma idéa:
—Ó senhor padre Amaro, se se lhe mandasse
aquelle livro com pinturas de vidas dos santos?
Eram pinturas que edificavam. A mim tocavam-me
alma... Não és tu que o tens, Amelia?
—Não, disse ella, sem erguer os olhos da costura.
Amaro então olhou-a. Tinha-a quasi esquecido.
Estava agora do outro lado da mesa, abainhando
um esfregão: a risca muita fina desapparecia na
abundancia espessa do cabello, onde a luz do candieiro
ao lado punha um traço lustroso; as pestanas
pareciam mais longas, mais negras sobre a pelle
da face, d'um trigueiro calido, que uma tinta rosada
aquecia; o vestido justo, que se franzia n'uma
prega sobre o hombro, elevava-se amplamente sobre
a fórma dos peitos, que elle via arfar no rhythmo
da respiração igual... Era aquella a belleza que
mais appetecia n'ella; imaginava-os d'uma côr de
neve, redondos e cheios; tivera-a nos braços, sim,
mas vestida, e as suas mãos sôfregas tinham
encontrado
só a sêda fria... Mas na casa do sineiro seriam
[429]
d'elle, sem obstaculo, sem vestidos, á
disposição dos
seus labios. Por Deus! e nada impedia que ao mesmo
tempo consolassem a alma da Tótó! Não
hesitou
mais. E erguendo a voz, no meio do palratorio das
velhas que discutiam agora a desapparição da
Vida
dos Santos:
—Não, minhas senhoras, não é com
livros que
se vale á rapariga... Sabem a idéa que me veio?
Era um de nós, o que estiver menos occupado, levar-lhe
a palavra de Deus e educar aquella alma!—E
acrescentou, sorrindo:—E a fallar a verdade,
a pessoa mais desoccupada aqui de todos nós é a
menina Amelia...
Então foi uma surpreza! Pareceu a mesma vontade
de Nosso Senhor vinda n'uma revelação. Os
olhos de todas accenderam-se n'uma excitação
devota,
á idéa d'aquella missão de caridade,
que partia
alli d'ellas, da rua da Misericordia... Extasiavam-se,
no ante-gosto guloso dos elogios do senhor
chantre e do cabido! Cada uma dava o seu conselho,
n'uma assiduidade de participar da santa obra,
de partilharem as recompensas que o céo certamente
prodigalisaria. D. Joaquina Gansoso declarou com
calor que invejava Amelia; e chocou-se muito vendo-a
de repente rir.
—Imaginas que não o faria com a mesma
devoção?
Já estás com o orgulho da boa
acção... Olha
que assim não t'aproveita!
Mas Amelia continuava tomada d'um riso nervoso,
[430]
deitada para as costas da cadeira, suffocando-se
para se conter.
Os olhinhos de D. Joaquina chammejavam.
—É indecente, é indecente! gritava.
Calmaram-na: Amelia teve de lhe jurar sob os
Santos Evangelhos que fôra uma idéa extravagante
que tivera, que era nervoso...
—Ai, disse D. Maria da Assumpção, ella tem
razão
em s'orgulhar. Que é uma honra p'r'á casa! Em
se sabendo...
O parocho interrompeu com severidade:
—Mas não se deve saber, snr.
a D.
Maria da
Assumpção!
De que serve, aos olhos do Senhor, uma
boa obra de que se tire alarde e vangloria?
D. Maria vergou os hombros, humilhando-se á
reprehensão.
E Amaro, com gravidade:
—Isto não deve sahir d'aqui. É entre Deus e
nós. Queremos salvar uma alma, consolar uma enferma,
e não ter elogios nos periodicos. Pois não
é
assim, padre-mestre?
O conego ergueu-se pesadamente:
—Vossê esta noite tem fallado com a lingua de
ouro de S. Chrysostomo. Eu estou edificado; e não
se me dava agora de vêr apparecer as torradas.
Foi então, emquanto a
Ruça não
trazia o chá,
que se decidiu que Amelia, todas as semanas, uma
ou duas vezes segundo fosse a sua devoção,
iria
em
segredo, para que a acção fosse mais valiosa aos
olhos de Deus, passar uma hora à cabeceira da paralytica,
[431]
lêr-lhe a
Vida dos Santos,
ensinar-lhe rezas
e insufflar-lhe a virtude.
—Emfim, resumiu a snr.
a D. Maria da
Assumpção
voltando-se para Amelia, não te digo senão
uma coisa: abichaste!
A
Ruça entrou com o
taboleiro, no meio dos risos
que provocára a «tolice de D. Maria»,
como disse
Amelia, que se fizera escarlate.—E foi assim que
ella e o padre Amaro se puderam vêr livremente,
para gloria do Senhor e humilhação do Inimigo.
Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora
duas vezes, de modo que as suas visitas caridosas
á paralytica perfizessem ao fim do mez o numero
symbolico de sete, que devia corresponder, na idéa
das devotas, ás
Sete
lições de Maria. Na vespera o
padre Amaro tinha prevenido o tio Esguelhas, que
deixava a porta da rua apenas cerrada, depois de
ter varrido toda a casa e preparado o quarto para
a pratica do senhor parocho. Amelia n'esses dias erguia-se
cedo: tinha sempre alguma saia branca a
engommar, algum laçarote a compôr; a
mãi estranhava-lhe
aquelles arrebiques, o desperdicio d'agua
de colonia de que ella se inundava; mas Amelia
explicava que «era para inspirar á
Tótó idéas de
aceio e de frescura». E depois de vestida sentava-se,
esperando as onze horas, muito séria, respondendo
distrahidamente ás conversas da mãi, com
[432]
uma côr nas faces, os olhos cravados nos ponteiros
do relogio: emfim a velha matraca gemia cavamente
as onze horas, e ella, depois d'uma olhadella ao
espelho, sahia, dando uma beijoca á mamã.
Ia sempre receosa, n'uma inquietação de ser
espreitada.
Todas as manhãs pedia a Nossa Senhora
da Boa Viagem que a livrasse de maus encontros; e
se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola,
para lisonjear os gostos de Nosso Senhor, amigo dos
mendigos e vagabundos. O que a assustava era o
largo da Sé, sobre o qual a Amparo da botica, costurando
por traz da janella, exercia uma vigilancia
incessante. Fazia-se então pequenina no seu mantelete,
e abaixando o guardasol sobre o rosto, entrava
emfim na Sé, sempre com o pé direito.
Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida
n'uma luz fusca, amedrontava-a: parecia-lhe sentir,
na taciturnidade dos santos e das cruzes, uma reprehensão
ao seu peccado; imaginava que os olhos de
vidro das imagens, as pupillas pintadas dos paineis
se fixavam n'ella, com uma insistencia cruel, e percebiam
o arfar que ao seu seio dava a esperança do
prazer. Ás vezes mesmo, atravessada d'uma
superstição,
para dissipar o descontentamento dos santos,
promettia dar-se n'essa manhã toda á
Tótó, occupar-se
caridosamente só d'ella, e não se deixar tocar
sequer
no vestido pelo senhor padre Amaro. Mas se
ao entrar na casa do sineiro o não encontrava, ia logo,
sem se deter ao pé da cama da Tótó,
postar-se
à janella da cozinha, vigiando a porta massiça da
sacristia
[433]
de que ella conhecia uma por uma as chapas
negras de ferro.
Elle apparecia, emfim. Era então nos começos de
março; já tinham chegado as andorinhas;
ouviam-n'as
chilrear, n'aquelle silencio melancolico, esvoaçando
entre os contrafortes da Sé. Aqui e além,
plantas dos logares humidos cobriam os cantos d'uma
verdura escura. Amaro, ás vezes muito galante, ia
procurar uma florzinha. Amelia impacientava-se, rufava
na vidraça da cozinha. Elle apressava-se; ficavam
um momento á porta, apertando-se as mãos,
com olhos brilhantes que se devoravam; e iam emfim
vêr a Tótó—e dar-lhe os bolos que o
parocho
lhe trazia no bolso da batina.
A cama da Tótó era na alcova, ao lado da cozinha;
o seu corpinho de tisica quasi não fazia saliencia
enterrado na cova da enxerga, sob os cobertores
enxovalhados que ella se entretinha a esfiar. N'esses
dias tinha vestido um chambre branco, os cabellos
reluziam-lhe d'oleo; porque ultimamente, desde as
visitas d'Amaro, viera-lhe «uma birra de parecer
alguem»,
como dizia encantado o tio Esguelhas, a
ponto de se não querer separar d'um espelho e
d'um pente que escondia debaixo do travesseiro e
obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa
suja, as bonecas que agora desprezava.
Amelia sentava-se um instante aos pés do catre,
perguntando-lhe se estudára o A B C, obrigando-a a
dizer aqui e além o nome d'uma letra. Depois queria
que ella repetisse sem a errar a oração que lhe
[434]
andava ensinando;—emquanto o padre, sem passar
da porta, esperava, com as mãos nos bolsos, enfastiado,
embaraçado com os olhos reluzentes da paralytica
que o não deixavam, penetrando-o, percorrendo-lhe
o corpo com pasmo e com ardor, e que
pareciam maiores e mais brilhantes no seu rosto trigueiro
tão chupado que se lhe via a saliencia das
maxillas. Não sentia agora nem compaixão nem
caridade
pela Tótó; detestava aquella demora; achava
a rapariga selvagem e embirrenta. A Amelia tambem
pesavam aquelles momentos em que, para não escandalisar
muito Nosso Senhor, se resignava a fallar
à paralytica. A Tótó parecia odial-a;
respondia-lhe
muito carrancuda; outras vezes persistia n'um silencio
rancoroso, voltada para a parede; um dia
despedaçára
o alphabeto; e encolhia-se toda encruada
se Amelia lhe queria compor o chale sobre os hombros
ou conchegar-lhe a roupa...
Emfim Amaro, impaciente, fazia um signal a
Amelia; ella punha logo diante da Tótó o livro
com
estampas da
Vida dos Santos.
—Vá, ficas agora a vêr as figuras... Olha, este
é S. Matheus, esta Santa Virginia... Adeus, eu vou
lá a cima com o senhor parocho rezarmos para que
Deus te dê saude e te deixe ir passear... Não
estragues
o livro, que é peccado.
E subiam a escada, emquanto a paralytica, estendendo
o pescoço sôfregamente, os seguia, escutando
o ranger dos degraus, com olhos chammejantes
que lagrimas de raiva ennevoavam. O quarto,
[435]
em cima, era muito baixo, sem forro, com um tecto
de vigas negras sobre que assentavam as telhas. Ao
lado da cama pendia a candeia que puzera sobre a
parede um penacho negro do fumo. E Amaro ria
sempre dos preparativos que fizera o tio Esguelhas—a
mesa ao canto com o Novo Testamento, uma
caneca d'agua, e duas cadeiras dispostas ao lado...
—É p'r'á nossa conferencia, para te ensinar os
deveres de freira, dizia elle, galhofando.
—Ensina, então! murmurava ella de braços
abertos, pondo-se diante do padre, com um sorriso
calido onde brilhava um branquinho dos dentes,
n'um abandono que se offerecia.
Elle atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoço, pelos
cabellos; às vezes mordia-lhe a orelha; ella dava
um gritinho; e ficavam então muito quedos, escutando,
com medo da paralytica em baixo. O parocho
depois fechava as portadas da janella e a porta
muito perra que tinha d'empurrar com o joelho.
Amelia ia-se despindo devagar; e com as saias cahidas
aos pés ficava um momento immovel, como
uma fórma branca na escuridão do quarto. Em redor
o padre, preparando-se, respirava forte. Ella então
persignava-se depressa, e sempre ao subir para
o leito dava um suspirosinho triste.
Amelia só podia demorar-se até ao meio dia. O
padre Amaro por isso pendurava o seu
cebolão no
prego da candeia. Mas quando não ouviam as badaladas
da torre, Amelia conhecia a hora pelo cantar
d'um gallo visinho.
[436]
—Devo ir, filho, murmurava toda cansada.
—Deixa lá... Estás sempre com a pressa...
Ficavam ainda um momento calados, n'uma lassidão
dôce, muito chegados um ao outro. Pelas vigas
separadas do telhado mal junto viam aqui e
além fendas de luz: ás vezes sentiam um gato, com
as suas passadas fofas, vadiar, fazendo bolir alguma
telha solta; ou um passaro, pousando, chilreava e
ouviam-lhe o fremito das azas.
—Ai, são horas, dizia Amelia.
O padre queria detel-a; não se fartava de lhe
beijar a orelhinha.
—Lambão! murmurava ella. Deixa-me!
Vestia-se á pressa no escuro do quarto; depois
ia abrir a janella, vinha ainda abraçar o pescoço
de
Amaro, que ficára estatelado sobre o leito; e ia emfim
arrastar a mesa e as cadeiras, para a paralytica
sentir em baixo, saber que tinha acabado a conferencia.
Amaro não findava ainda de a beijocar: ella
então,
para acabar, fugia-lhe, ia escancarar a porta do
quarto; o padre descia, atravessava em duas passadas
a cozinha sem olhar para a Tótó, e entrava na
sacristia.
Amelia, essa, antes de sahir, vinha vêr a paralytica,
saber se gostára das estampas. Encontrava-a
ás vezes com a cabeça debaixo dos cobertores, que
entalava e prendia com as mãos para se
esconder;
outras vezes, sentada na cama, examinava Amelia
com olhos em que se accendia uma curiosidade viciosa;
[437]
chegava o rosto para ella, com as narinas dilatadas
que pareciam cheiral-a; Amelia recuava, inquieta,
córando tambem; queixava-se então de ser
tarde, recolhia a
Vida dos
Santos,—e sahia, amaldiçoando
aquella creatura tão maliciosa na sua mudez.
Ao passar no largo, áquella hora, via sempre a
Amparo á janella. Ultimamente mesmo julgára
prudente
contar-lhe em segredo a sua caridade com a
Tótó. A Amparo, mal a via, chamava-a; e
debruçando-se
toda na varanda:
—Então como vai a Tótó?
—Lá vai.
—Já lê?
—Já soletra.
—E a oração a Nossa Senhora?
—Já a diz.
—Ai, que devoção a tua, filha!
Amelia baixava os olhos, modesta. E o Carlos,
que estava tambem no segredo, deixava o balcão
para vir á porta admirar Amelia.
—Vem da sua grande missão de caridade, hein?
dizia, d'olho arregalado, balanceando-se na ponta das
chinelas.
—Estive um bocado com a pequena, a entretel-a...
—Grandioso! murmurava o Carlos. Um apostolado!
Pois vá, minha santa menina, recados á
mamã.
[438]
Voltava-se então para dentro, para o praticante:
—Veja o snr. Augusto aquillo... Em logar de
passar o seu tempo, como as outras, em namoros,
faz-se anjo da guarda! Passa a flôr dos annos com
uma entrevada! Veja o senhor se a philosophia, o
materialismo, e essas porcarias são capazes d'inspirar
acções d'este jaez... Só a
religião, meu caro
senhor! Eu queria que os Renans e essa cambada
de philosophos vissem isto! Que eu, tenha o senhor
em vista, admiro a philosophia, mas quando ella,
por assim dizer, vai de mãos dadas com a
religião...
Sou homem de sciencia e admiro um Newton,
um Guizot... Mas (e grave o senhor estas palavras)
se a philosophia se afasta da religião... (grave
bem estas palavras) dentro de dez annos, snr.
Augusto, está a philosophia enterrada!
E continuava a mexer-se pela pharmacia a passos
lentos, de mãos atraz das costas, ruminando o
fim da philosophia.
XVIII
Foi aquelle o periodo mais feliz da vida de
Amaro.
«Ando na graça de Deus», pensava elle
ás vezes
á noite, ao despir-se, quando por um habito ecclesiastico,
fazendo o exame dos seus dias, via que
elles se seguiam faceis, tão confortaveis, tão
regularmente
gozados. Não houvera, nos ultimos dois mezes,
nem attritos nem difficuldades no serviço da parochia;
todo o mundo, como dizia o padre Saldanha,
andava d'um humor de santo. D. Josepha Dias
arranjára-lhe muito barata uma cozinheira excellente,
e que se chamava Escolastica. Na rua da Misericordia
tinha a sua côrte admiradora e devota; cada
semana, uma ou duas vezes, vinha áquella hora deliciosa
e celeste na casa do tio Esguelhas; e para
completar a harmonia até a estação ia
tão linda, que
já no Morenal começavam a abrir as rosas.
[440]
Mas o que o encantava era que nem as velhas,
nem os padres, ninguem da sacristia suspeitava os
seus
rendez-vous com Amelia.
Aquellas visitas á Tótó
tinham entrado nos costumes da casa; chamavam-lhe
«as devoções da pequena»; e
não a interrogavam
com particularidades, pelo principio beato que
as devoções são um segredo que se tem
com Nosso
Senhor. Só ás vezes alguma das senhoras
perguntava
a Amelia—como ia a doente; ella assegurava
que estava muito mudada, que começava a abrir
os olhos á lei de Deus; então, muito
discretamente,
fallavam de coisas differentes. Havia apenas o
plano vago de irem um dia, mais tarde, quando
a Tótó soubesse bem o seu catecismo e pela
efficacia
da oração se tivesse tornado boa, admirar
em romaria a obra santa de Amelia e a humilhação
do Inimigo.
Amelia mesmo, perante esta confiança tão larga
na sua virtude, propuzera um dia a Amaro, como
muito habil—dizer ás amigas que o senhor parocho
ás vezes vinha assistir á pratica piedosa que
ella fazia
á Tótó...
—Assim, se alguem te surprehendesse a entrar
para a casa do tio Esguelhas, já não havia
suspeitas.
—Não me parece necessario, disse elle. Deus
está comnosco, filha, é claro. Não
queiramos intrometter-nos
nos seus planos. Elle vê mais longe que
nós...
Ella concordou logo—como em tudo que sahia
dos seus labios. Desde a primeira manhã, na casa
[441]
do tio Esguelhas, ella abandonára-se-lhe absolutamente,
toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento:
não havia na sua pelle um cabellinho, não
corria no seu cerebro uma idéa a mais pequenina,
que não pertencesse ao senhor parocho. Aquella
possessão de todo o seu sêr não a
invadira gradualmente;
fôra completa, no momento que os seus
fortes braços se tinham fechado sobre ella. Parecia
que os beijos d'elle lhe tinham sorvido, esgotado a
alma: agora era como uma dependencia inerte da
sua pessoa. E não lh'o occultava; gozava em se humilhar,
offerecer-se sempre, sentir-se toda d'elle, toda
escrava; queria que elle pensasse por ella e vivesse
por ella; descarregára-se n'elle, com
satisfação,
d'aquelle fardo da responsabilidade que sempre
lhe pesára na vida; os seus juizos agora vinham-lhe
formados do cerebro do parocho, tão naturalmente
como se sahisse do coração d'elle o sangue que
lhe
corria nas veias. «O senhor parocho queria ou o senhor
parocho dizia» era para ella uma razão toda
sufficiente e toda poderosa. Vivia com os olhos n'elle,
n'uma obediencia animal: tinha só a curvar-se
quando elle fallava, e quando vinha o momento a
desapertar o vestido.
Amaro gozava prodigiosamente esta dominação;
ella desforrava-o de todo um passado de dependencias—a
casa do tio, o seminario, a sala branca do
senhor conde de Ribamar... A sua existencia de padre
era uma curvatura humilde que lhe fatigava a
alma; vivia da obediencia ao senhor bispo, á camara
[442]
ecclesiastica, aos canones, á Regra que nem lhe
permittia ter uma vontade propria nas suas
relações
com o sacristão. E agora, emfim, tinha alli aos seus
pés aquelle corpo, aquella alma, aquelle sêr vivo
sobre
quem reinava com despotismo. Se passava os
seus dias, por profissão, louvando, adorando e incensando
Deus,—era elle tambem agora o Deus
d'uma creatura que o temia e lhe dava uma devoção
pontual. Para ella ao menos, era bello, superior
aos condes e aos duques, tão digno da mitra como
os mais sabios. Ella mesmo, um dia, dissera-lhe, depois
de ter estado um momento pensativa:
—Tu podias chegar a Papa!
—D'esta massa se fazem, respondeu elle com
seriedade.
Ella acreditava-o—com um receio, todavia, que
as altas dignidades o afastassem d'ella, o levassem
para longe de Leiria. Aquella paixão, em que estava
abysmada e que a saturava, tornára-a estupida e
obtusa a tudo o que não respeitava ao senhor parocho
ou ao seu amor. Amaro de resto não lhe consentia
interesses, curiosidades alheias á sua pessoa.
Prohibia-lhe até que lêsse romances e poesias.
Para
que se havia de fazer doutora? Que lhe importava
o que ia no mundo? Um dia que ella fallára, com
algum appetite, d'um baile que iam dar os Vias-Claras,
offendeu-se como d'uma traição. Fez-lhe em
casa do tio Esguelhas accusações tremendas: era
uma vaidosa, uma perdida, uma filha de Satanaz!...
—Mas mato-te! Percebes? Mato-te!—exclamou,
[443]
agarrando-lhe os pulsos, fulminando-a com o olhar
accêso.
Tinha um medo, que o pungia, de a vêr subtrahir-se
ao seu imperio, perder-lhe a adoração muda
e absoluta. Pensava ás vezes que ella se fatigaria,
com o tempo, d'um homem que não lhe satisfazia
as vaidades e os gostos de mulher, sempre mettido
na sua batina negra, com a cara rapada e a corôa
aberta. Imaginava que as gravatas de côres, os bigodes
bem torcidos, um cavallo que trota, um uniforme
de lanceiros exercem sobre as mulheres uma
fascinação decisiva. E se a ouvia fallar d'algum
official
do destacamento, d'algum cavalheiro da cidade,
eram ciumes desabridos...
—Góstas d'elle? Hein? É pelos trapos, pelo
bigode?...
—Gósto d'elle! Oh, filho, eu nunca vi o homem!
Mas escusava de fallar da creatura, então! Era
ter curiosidade, pôr o pensamento n'outro! D'essas
faltas de vigilancia sobre a alma e a vontade é que
se aproveitava o demonio!...
Viera assim a ter um odio a todo o mundo secular—que
a poderia attrahir, arrastar para fóra da
sombra da sua batina. Impedia-lhe, com pretextos
complicados, toda a communicação com a cidade.
Convenceu mesmo a mãi que a não deixasse ir
só
á Arcada e ás lojas. E não cessava de
lhe representar
os homens como monstros d'impiedade, cobertos
de peccados como d'uma crosta, estupidos e falsos,
votados ao inferno! Contava-lhe horrores de quasi
[444]
todos os rapazes de Leiria. Ella perguntava-lhe aterrada,
mas curiosa:
—Como sabes tu?
—Não te posso dizer, respondia com uma reticencia,
indicando que lhe fechava os labios o segredo
da comfissão.
E ao mesmo tempo martellava-lhe os ouvidos
com a glorificação do sacerdocio. Desenrolava-lhe
com pompa a erudição dos seus antigos compendios,
fazendo-lhe o elogio das funcções, da
superioridade
do padre. No Egypto, grande nação da antiguidade,
o homem só podia ser rei se era sacerdote! Na Persia,
na Ethiopia, um simples padre tinha o privilegio
de desthronar os reis, dispôr das corôas! Onde
havia
uma auctoridade igual á sua? Nem mesmo na
côrte do céo. O padre era superior aos anjos e aos
seraphins—porque a elles não fôra dado como ao
padre o poder maravilhoso de perdoar os peccados!
Mesmo a Virgem Maria, tinha ella um poder maior
que elle, padre Amaro? Não: com todo o respeito
devido à magestade de Nossa Senhora, elle podia dizer
com S. Bernardino de Sena: «o sacerdote excede-te,
ó mãi amada!»—porque, se a Virgem
tinha
incarnado Deus no seu castissimo seio, fôra só uma
vez, e o padre, no santo sacrificio da missa, incarnava
Deus todos os dias! E isto não era argucia
d'elle, todos os santos padres o admittiam...
—Hein, que te parece?
—Oh, filho! murmurava ella pasmada, desfallecida
de voluptuosidade.
[445]
Então deslumbrava-a com citações
venerandas:
S. Clemente, que chamou ao padre «o Deus da terra»;
o eloquente S. Chrysostomo, que disse «que o
padre é o embaixador que vem dar as ordens de
Deus». E Santo Ambrosio que escreveu: «entre a
dignidade do rei e a dignidade do padre ha maior
differença que a que existe entre o chumbo e o
ouro»!
—E o ouro é cá o menino, dizia Amaro com
palmadinhas no peito. Que te parece?
Ella atirava-se-lhe aos braços, com beijos vorazes,
como para tocar, possuir n'elle o «ouro de Santo
Ambrosio», o «embaixador de Deus», tudo o
que
na terra havia mais alto e mais nobre, o sêr que
excede em graça os archanjos!
Era este poder divino do padre, esta familiaridade
com Deus, tanto ou mais que a influencia da sua
voz—que a faziam crêr na promessa que elle lhe
repetia sempre: que ser amada por um padre chamaria
sobre ella o interesse, a amizade de Deus;
que depois de morta dois anjos viriam tomal-a pela
mão para a acompanhar e desfazer todas as duvidas
que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do céo; e que
na sua sepultura, como succedera em França a uma
rapariga amada por um cura, nasceriam espontaneamente
rosas brancas, como prova celeste de que a
virgindade não se estraga nos abraços santos d'um
padre...
Isto encantava-a. Áquella idéa da sua cova
perfumada
de rosas brancas, ficava toda pensativa, n'um
[446]
antegosto de felicidades mysticas, com suspirinhos
de gozo. Affirmava, fazendo beicinho, que queria
morrer.
Amaro galhofava.
—A fallar da morte, com essas carnesinhas...
Engordára com effeito. Estava agora d'uma belleza
ampla e toda igual. Perdera aquella expressão
inquieta que lhe punha nos labios uma seccura e lhe
afilava o nariz. Nos seus beiços havia um vermelho
quente e humido; o seu olhar tinha risos sob um
fluido sereno; toda a sua pessoa uma apparencia
madura de fecundidade. Fizera-se preguiçosa: em
casa, a cada momento suspendia o seu trabalho, ficava
a olhar longamente com um sorriso mudo e fixo;
e tudo parecia ficar adormecido um momento,
a agulha, o panno que ella costurava, toda a sua
pessoa... Estava revendo o quarto do sineiro, o catre,
o senhor parocho em mangas de camisa.
Passava os seus dias esperando as oito horas, em
que elle apparecia regularmente com o conego. Mas
os serões agora pezavam-lhe. Elle
recommendára-lhe
muita reserva; ella exagerava-a, por um excesso de
obediencia, a ponto de nunca se sentar ao pé d'elle
ao chá, e de nem mesmo lhe offerecer bolos. Odiava
então a presença das velhas, a gralhada das
vozes,
as pachorras do quino: tudo lhe parecia intoleravel
no mundo, excepto estar só com elle... Mas
depois, em casa do sineiro, que desforra! Aquelle
rosto todo alterado, aquellas suffocações de
delirio,
aquelles ais agonisantes, depois a immobilidade da
[447]
morte, assustavam ás vezes o padre. Erguia-se no
cotovêlo, inquieto:
—Estás incommodada?
Ella abria os olhos espantados, como resurgindo
de muito longe; e era realmente bella, cruzando os
braços nús sobre o peito descoberto, dizendo
lentamente
com a cabeça que não...
XIX
Uma circumstancia inesperada veio estragar
aquellas manhãs da casa do sineiro. Foi a extravagancia
da Tótó. Como disse o padre Amaro, «a
rapariga
sahia-lhes um monstro»!
Tinha agora por Amelia uma aversão desabrida.
Apenas ella se aproximava da cama, atirava a cabeça
para debaixo dos cobertores, torcendo-se com
phrenesi se lhe sentia a mão ou a voz. Amelia fugia,
impressionada com a idéa de que o diabo que
habitava a Tótó, recebendo o cheiro que ella
trazia
da igreja nos vestidos, impregnados d'incenso e salpicados
d'agua benta, se espolinhava de terror dentro
do corpo da rapariga...
Amaro quiz reprehender a Tótó, fazer-lhe sentir,
em palavras tremendas, a sua ingratidão demoniaca
[450]
para com a menina Amelia que vinha entretel-a,
ensinal-a a conversar com Nosso Senhor... Mas
a paralytica rompeu n'um chôro hysterico; depois,
de repente, ficou immovel, hirta, esbugalhando os
olhos em alvo, com uma escuma branca na bôca.
Foi um grande susto; inundaram-lhe a cama d'agua;
Amaro, por prudencia, recitou os exorcismos... E
Amelia desde então resolveu «deixar a fera em
paz». Não tentou mais ensinar-lhe o alphabeto, nem
orações a Sant'Anna.
Mas, por escrupulo, iam sempre ao entrar vêl-a
um instante. Não passavam da porta da alcova,
perguntando-lhe
d'alto «como ia». Nunca respondia. E
elles retiravam-se logo aterrados com aquelles olhos
selvagens e brilhantes, que os devoravam, indo d'um
a outro, percorrendo-lhes o corpo, fixando-se com
uma faiscação metallica nos vestidos d'Amelia e
na
batina do padre, como para lhe adivinhar o que estava
por baixo, n'uma curiosidade avida que lhe dilatava
desesperadamente as narinas e lhe arreganhava
os beiços lividos. Mas era a mudez, obstinada
e rancorosa, que os incommodava sobretudo. Amaro,
que não acreditava muito em possessos e endemoninhados,
via alli os symptomas de
loucura
furiosa.
Os sustos d'Amelia augmentaram.—Felizmente que
as pernas inertes cravavam a Tótó alli na
enxerga!
Senão, Jesus, era capaz de lhes entrar no quarto e
mordêl-os n'um accesso!
Declarou a Amaro que nem lhe sabia bem o prazer
da manhã, «depois d'aquelle
espectaculo»; e
[451]
decidiu então, d'ahi por diante, subir para o quarto
sem fallar á Tótó.
Foi peor. Quando a via atravessar da porta da
rua para a escada, a Tótó debruçava-se
para fóra
do leito, agarrada ás bordas da enxerga, n'um
esforço
ancioso para a seguir, para a vêr, com a face
toda descomposta do desespero da sua immobilidade.
E Amelia ao entrar no quarto sentia vir de baixo
uma risadinha sêcca, ou um
ui! prolongado e
uivado que a gelava...
Andava agora aterrada: viera-lhe a idéa que
Deus estabelecera alli, ao lado do seu amor com o
parocho, um demonio implacavel para a escarnecer
e apupar. Amaro, querendo-a tranquillisar, dizia-lhe
que o nosso santo padre Pio IX, ultimamente, declarára
peccado crêr em
pessoas
possessas...
—Mas para que ha rezas, então, e exorcismos?
—Isso é da religião velha. Agora vai-se mudar
tudo isso... Emfim a sciencia é a sciencia...
Ella presentia que Amaro a enganava—e a Tótó
estragava a sua felicidade. Emfim Amaro achou o
meio de escaparem «á maldita rapariga»:
era entrarem
ambos pela sacristia: tinham apenas a atravessar
a cozinha para subir a escada, e a posição
da cama da Tótó, na alcova, não lhe
permittia vêl-os,
quando elles cautelosamente passassem pé ante pé.
Era facil, de resto, porque á hora do
rendez-vous,
entre as onze e o meio dia, nos dias de semana, a
sacristia estava deserta.
Mas succedia que, quando elles entravam em
[452]
pontas de pés e mordendo a respiração,
os seus
passos, por mais subtis, faziam ranger os velhos degraus
da escada. E então a voz da Tótó sahia
da
alcova, uma voz rouca e aspera, berrando:
—Passa fóra cão! passa fóra
cão!
Amaro tinha um desejo furioso de estrangular a
paralytica. Amelia tremia, toda branca.
E a creatura uivava de dentro:
—Lá vão os cães! lá
vão os cães!
Elles refugiavam-se no quarto, aferrolhando-se
por dentro. Mas aquella voz d'um desolamento lugubre,
que lhes parecia vir dos infernos, chegava-lhes
ainda, perseguia-os:
—Estão a pegar-se os cães! estão a
pegar-se os
cães!
Amelia cahia sobre o catre, quasi desmaiada de
terror. Jurava não voltar áquella casa maldita...
—Mas que diabo queres tu? dizia-lhe o padre
furioso. Onde nos havemos de vêr então? Queres
que nos deitemos nos bancos da sacristia?
—Mas que lhe fiz eu? que lhe fiz eu? exclamava
Amelia, apertando as mãos.
—Nada! É doida... E o pobre tio Esguelhas
tem tido um desgosto... Emfim, que queres que
lhe faça?
Ella não respondia. Mas em casa, quando se ia
aproximando o dia de
rendez-vous,
começava a tremer
á idéa d'aquella voz que lhe atroava sempre
nos ouvidos e que sentia em sonhos. E este terror
ia-a despertando lentamente do adormecimento de
[453]
todo o sêr, era que cahira nos braços do parocho.
Interrogava-se agora: não andaria commettendo um
peccado irremissivel? As affirmações de Amaro,
assegurando-lhe
o perdão do Senhor, já não a
tranquillisavam.
Ella bem via, quando a Tótó uivava,
uma pallidez cobrir o rosto do parocho, como correr-lhe
no corpo um calefrio do inferno entrevisto. E se
Deus os desculpava—porque deixava assim o demonio
atirar-lhes, pela voz da paralytica, a injuria e
o escarneo?
Ajoelhava então aos pés da cama, arremessava
orações sem fim para Nossa Senhora das
Dôres, pedindo-lhe
que a alumiasse, que lhe dissesse o que
era aquella perseguição da
Tótó, e se era sua intenção
divina mandar-lhe assim um aviso medonho.
Mas Nossa Senhora não lhe respondia. Não a sentia
como outr'ora descer do céo ás suas
orações, entrar-lhe
na alma aquella tranquillidade suave como
uma onda de leite que era uma visitação da
Senhora.
Ficava toda murcha, torcendo as mãos,
abandonada da graça. Promettia então
não voltar a
casa do sineiro;—mas quando o dia chegava, á
idéa d'Amaro, do leito, d'aquelles beijos que lhe levavam
a alma, d'aquelle fogo que a penetrava, sentia-se
toda fraca contra a tentação; vestia-se, jurando
que era a ultima vez; e ao toque das onze partia,
com as orelhas a arder, o coração tremendo da
voz da Tótó que ia ouvir, as entranhas
abrazando-se
no desejo do homem que a ia atirar para cima
da enxerga.
[454]
Ao entrar na igreja não rezava, com medo dos
santos.
Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se
á auctoridade sagrada da sua batina. Elle então,
vendo-a chegar tão pallida e
tão
transtornada, galhofava para a tranquillisar. Não,
era uma tolice, se iam agora estragar o regalosinho
d'aquellas manhãs, porque havia uma doida na
casa! Promettera-lhe de resto procurar outro sitio
para se vêrem: e mesmo com o fim de a distrahir,
aproveitando a solidão da sacristia, mostrava-lhe
ás
vezes os paramentos, os calices, as vestimentas, procurando
interessal-a por um frontal novo ou por
uma antiga renda de sobrepelliz, provando-lhe, pela
familiaridade com que tocava nas reliquias, que era
ainda o senhor parocho e não perdera o seu credito
no céo.
Foi assim que uma manhã lhe fez vêr uma capa
de Nossa Senhora, que havia dias chegára de presente
d'uma devota rica d'Ourem. Amelia admirou-a
muito. Era de setim azul, representando um firmamento,
com estrellas bordadas, e um centro, de lavor
rico, onde flammejava um coração d'ouro cercado
de rosas d'ouro. Amaro desdobrára-a, fazendo
scintillar junto da janella os bordados espessos.
—Rica obra, hein? centos de mil reis... Experimentamol-a
hontem na imagem... Vai-lhe como
um brinco. Um bocadito comprida, talvez...—E
olhando Amelia, n'uma comparação da sua alta
estatura
com a figura atarracada da imagem da Senhora:—A
[455]
ti é que te havia de ficar bem. Deixa vêr...
Ella recuou:
—Não, credo, que peccado!
—Tolice! disse elle adiantando-se com a capa
aberta, mostrando o forro de setim branco, d'uma
alvura de nuvem matutina. Não está benzida...
É
como se viesse da modista.
—Não, não, dizia ella frouxamente, com os
olhos já luzidios de desejo.
Elle então zangou-se. Queria talvez saber melhor
do que elle o que era peccado, não? Vinha agora a
menina ensinar-lhe o respeito que se deve aos vestuarios
dos santos?
—Ora não seja tola. Deixe vêr.
Poz-lh'a nos hombros, apertou-lhe sobre o peito
o fecho de prata lavrada. E afastou-se para a contemplar
toda envolvida no manto, assustada e immovel,
com um sorriso cálido de gozo devoto.
—Oh filhinha, que linda que ficas!
Ella então, movendo-se com uma cautela solemne,
chegou-se ao espelho da sacristia—um antigo
espelho de reflexo esverdeado com um caixilho
negro de carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz.
Mirou-se um momento, n'aquella sêda azul celeste
que a envolvia toda, picada do brilho agudo das estrellas,
com uma magnificencia sideral. Sentia-lhe o
peso rico. A santidade que o manto adquirira no
contacto com os hombros da imagem penetrava-a
d'uma voluptuosidade beata. Um fluido mais dôce
que o ar da terra envolvia-a, fazia-lhe passar no
[456]
corpo a caricia do ether do paraiso. Parecia-lhe ser
uma santa no andor, ou mais alto, no céo...
Amaro babava-se para ella:
—Oh filhinha, és mais linda que Nossa Senhora!
Ella deu uma olhadella viva ao espelho. Era, decerto,
linda. Não tanto como Nossa Senhora... Mas
com o seu rosto trigueiro, de labios rubros, alumiado
por aquelle rebrilho dos olhos negros, se estivesse
sobre o altar, com cantos ao orgão e um culto
susurrando em redor, faria palpitar bem forte o
coração dos fieis...
Amaro então chegou-se por detraz d'ella, cruzou-lhe
os braços sobre o seio, apertou-a toda—e
estendendo os labios por sobre os d'ella, deu-lhe
um beijo mudo, muito longo... Os olhos d'Amelia
cerravam-se, a cabeça inclinava-se-lhe para traz, pesada
de desejo. Os beiços do padre não se desprendiam,
avidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração d'ella
apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um
gemido desfalleceu sobre o hombro do padre, descórada
e morta de gozo.
Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo
as palpebras como acordada de muito longe;
uma onda de sangue escaldou-lhe o rosto:
—Oh Amaro, que horror, que peccado!...
—Tolice! disse elle.
Mas ella desprendia-se do manto, toda afflicta:
—Tira-m'o, tira-m'o! gritava, como se a sêda
a queimasse.
[457]
Então Amaro fez-se muito sério. Realmente
não
se devia brincar com coisas sagradas...
—Mas não está benzida... Não tem
duvida...
Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no
lençol branco, collocou-o no gavetão, sem uma
palavra.
Amelia olhava-o petrificada: e só os seus labios
pallidos se moviam n'uma oração.
Quando elle lhe disse, emfim, que eram horas
d'irem a casa do sineiro—recuou, como diante do
demonio que a chamasse.
—Hoje não! exclamou, implorando-o.
Elle insistiu. Era levar realmente muito longe a
pieguice... Ella bem sabia que não era peccado,
quando as coisas não estavam benzidas... Era ser
muito pobre d'espirito... Que demonio, só meia hora,
ou um quarto d'hora!
Ella, sem responder, ia-se aproximando da porta.
—Então não queres?
Ella voltou-se, e com uns olhos supplicantes:
—Hoje não!
Amaro encolheu os hombros. E Amelia atravessou
rapidamente a igreja, de cabeça baixa e olhos
nas lages, como se passasse entre as ameaças cruzadas
dos santos indignados.
No dia seguinte de manhã, a S. Joanneira, que
estava na sala de jantar, sentindo o senhor conego
subir soprando forte, veio encontral-o á escada e fechou-se
com elle na saleta.
[458]
Queria contar-lhe a afflicção que tivera de
madrugada.
A Amelia acordára de repente aos gritos,
que Nossa Senhora lhe estava a pousar o pé no
pescoço!
que suffocava! que a Tótó a queimava por detraz!
e que as labaredas do inferno subiam mais alto
que as torres da Sé!... Emfim um horror!... Viera
encontral-a em camisa a correr pelo quarto, como
doida. D'ahi a pouco cahira para o lado com um ataque
de nervos. Toda a casa estivera em alvoroço...
A pobre pequena lá estava de cama, e em toda a
manhã apenas tocára n'uma colher de caldo.
—Pesadêlos, disse o conego. Indigestão!
—Ai, senhor conego, não! exclamou a S. Joanneira,
que parecia acabrunhada, sentada diante d'elle
na borda d'uma cadeira. É outra coisa: são
aquellas
desgraçadas visitas á filha do sineiro!
E então desabafou, com a effusão labial de quem
abre os diques a um descontentamento accumulado.
Nunca quizera dizer nada, porque emfim reconhecia
que era uma grande obra de caridade. Mas,
desde que aquillo começára, a rapariga parecia
transtornada.
Ultimamente, então, andava de todo. Ora
alegrias sem razão, ora umas trombas de dar melancolia
aos moveis. De noite sentia-a passear pela
casa até tarde, abrir as janellas... Ás vezes
tinha
até medo de lhe vêr o olhar tão
exquisito: quando
vinha de casa do sineiro era sempre branca como
a cal, a cahir de fraqueza. Tinha de tomar logo
um caldo... Emfim, dizia-se que a Tótó tinha o
demonio
no corpo. E o senhor chantre, o outro que
[459]
tinha morrido (Deus lhe falle n'alma), costumava
dizer que n'este mundo as duas coisas que se pegavam
mais ás mulheres eram tisicas e demonio no
corpo. Parecia-lhe, pois, que não devia consentir
que a pequena fosse a casa do sineiro, sem estar
certa que aquillo nem lhe prejudicava a saude nem
lhe prejudicava a alma. Emfim, queria que uma
pessoa de juizo, d'experiencia, fosse examinar a
Tótó...
—N'uma palavra, disse o conego que escutára
d'olhos cerrados aquella verbosidade repassada de
lamuria, o que a senhora quer é que eu vá
vêr a
paralytica e saber á justa o que se passa...
—Era um allivio p'ra mim, riquinho!
Aquella palavra, que S. Joanneira, na sua gravidade
de matrona, reservava para a intimidade das
séstas, enterneceu o conego. Fez uma caricia ao
pescoço
gordo da sua velhota, prometteu com bondade
ir estudar o caso...
—Ámanhã, que a Tótó
está só, lembrou logo a
S. Joanneira.
Mas o conego preferia que Amelia estivesse presente.
Podia assim vêr como as duas se davam, se
havia influencia do espirito maligno...
—Que isto que eu faço é d'agradecer...
É por
ser p'ra quem é... Que bem me bastam os meus
achaques, sem me occupar dos negocios de Satanaz.
A S. Joanneira recompensou-o com uma beijoca
sonora.
[460]
—Ah, sereias, sereias!... murmurou o conego
philosophicamente.
No fundo aquelle encargo desagradava-lhe: era
uma perturbação nos seus habitos, toda uma
manhã
desarranjada; ia decerto fatigar-se, tendo d'exercitar
a sua sagacidade; além d'isso odiava o espectaculo
de doenças e de todas as circumstancias humanas
relacionadas com a morte. Mas, emfim, fiel á sua
promessa, d'ahi a dias, na manhã em que fôra
prevenido
que Amelia ia á Tótó, arrastou-se
contrariado
para a botica do Carlos; e installou-se, com um
olho no
Popular e outro na porta,
á espera que a
rapariga
atravessasse para a
Sé. O amigo Carlos estava
ausente; o snr. Augusto occupava os seus vagares
sentado á escrivaninha, de testa sobre o punho,
relendo o seu Soares de Passos; fóra, o sol já
quente dos fins de abril fazia rebrilhar o lageado do
largo; não passava ninguem; e só quebravam o
silencio
as martelladas nas obras do doutor Pereira.
Amelia tardava. E o conego, depois de ter considerado
longo tempo, com o
Popular cahido
nos joelhos,
o medonho sacrificio que fazia pela sua velhota,
ia cerrando as palpebras, já tomado da quebreira,
n'aquelle repouso calado do meio dia proximo—quando
entrou na botica um ecclesiastico.
—Oh, abbade Ferrão, vossê pela cidade! exclamou
o conego Dias despertando do seu quebranto.
—De fugida, collega, de fugida, disse o outro
collocando cuidadadosamente sobre uma cadeira dois
grossos volumes que trazia, amarrados n'um barbante.
[461]
Depois voltou-se e tirou com respeito o seu chapéo
ao praticante.
Tinha o cabello todo branco; devia passar já
dos sessenta annos; mas era robusto, uma alegria
bailava sempre nos seus olhinhos vivos, e tinha dentes
magnificos a que uma saude de granito conservava
o esmalte; o que o desfigurava era um nariz
enorme.
Informou-se logo com bondade se o amigo Dias
estava alli de visita ou infelizmente por motivo de
doença.
—Não, estou aqui á espera... Uma embaixada
de truz, amigo Ferrão!
—Ah, fez o velho discretamente.—E emquanto
tirava com methodo d'uma carteira atulhada de papeis
a receita para o praticante, deu ao conego noticias
da freguezia. Era lá, nos Poyaes, que o conego
tinha a fazenda, a Ricoça. O abbade Ferrão
passára
de manhã diante da casa e ficára surprehendido
vendo que lhe andavam a pintar a fachada. O amigo
Dias tinha algumas idéas d'ir lá passar o
verão?
Não, não tinha. Mas como trouxera obras dentro
e a fachada estava uma vergonha, mandára-lhe dar
uma mão d'oca. Emfim era necessario alguma apparencia,
sobretudo n'uma casa que estava á beira da
estrada, onde passava todos os dias o morgadelho
dos Poyaes, um parlapatão que imaginava que só
elle tinha um palacete decente em dez leguas á roda...
Só para metter ferro áquelle atheu! Pois
não
lhe parecia, amigo Ferrão?
[462]
O abbade estava justamente lamentando comsigo
aquelle sentimento de vaidade n'um sacerdote;
mas, por caridade christã, para não contrariar o
collega,
apressou-se a dizer:
—Está claro, está claro. A limpeza é
a alegria
das coisas...
O conego então, vendo passar no largo uma saia
e um mantelete, foi á porta affirmar-se se era Amelia.
Não era. E voltando, retomado agora da sua
preoccupação, vendo que o praticante
fôra dentro ao
laboratorio, disse ao ouvido do Ferrão:
—Uma embaixada da fortuna! Vou vêr uma endemoninhada!
—Ah, fez o abbade, todo sério á idéa
d'aquella
responsabilidade.
—Quer vossê vir commigo, abbade? É aqui
perto...
O abbade desculpou-se polidamente. Viera fallar
ao senhor vigario geral, fôra depois ao Silverio para
lhe pedir aquelles dois volumes, vinha alli aviar
uma receita para um velho da freguezia, e tinha
d'estar de volta aos Poyaes ao toque das duas horas.
O conego insistiu; era um instante, e o caso parecia
curioso...
O abbade então confessou ao caro collega que
eram coisas que não gostava d'examinar. Aproximava-se
sempre d'ellas com um espirito rebelde á
crença, com desconfianças e suspeitas que lhe
diminuiam
a imparcialidade.
—Mas emfim ha prodigios! disse o conego.—Apesar
[463]
das suas proprias duvidas, não gostava
d'aquella hesitação do abbade, a proposito d'um
phenomeno sobrenatural, em que elle, conego Dias,
estava interessado. Repetiu com seccura:—Tenho
alguma experiencia, e sei que ha prodigios.
—Decerto, decerto ha prodigios, disse o abbade.
Negar que Deus ou a Rainha do céo possa apparecer
a uma creatura é contra a doutrina da Igreja...
Negar que o demonio possa habitar o corpo de
um homem, seria estabelecer um erro funesto...
Aconteceu a Job, sem ir mais longe, e á familia de
Sara. Está claro, ha prodigios. Mas que rarissimos
que são, conego Dias!
Calou-se um momento olhando o conego, que tapava
o nariz com rapé em silencio—e continuou
mais baixo, com o olho brilhante e fino:
—E depois não tem o collega notado que é uma
coisa que só succede ás mulheres? É
só a ellas, cuja
malicia é
tão grande que o proprio
Salomão não
lhes pôde resistir, cujo temperamento é
tão nervoso,
tão contradictorio que os medicos não as
comprehendem.
É só a ellas que succedem prodigios!... O
collega já ouviu de ter apparecido a nossa Santa
Virgem a um respeitavel tabellião? Já ouviu d'um
digno juiz de direito possuido do espirito maligno?
Não. Isto faz reflectir... E eu concluo que é
malicia
n'ellas, illusão, imaginação,
doença, etc... Não lhe
parece? A minha regra n'esses casos é vêr tudo
isso
d'alto e com muita indifferença.
[464]
Mas o conego, que vigiava a porta, brandiu subitamente
o guardasol, fazendo para o largo:
—Pst, pst! Eh lá!
Era Amelia que passava. Parou logo, contrariada
d'aquelle encontro que a ia ainda retardar mais. E
já o senhor parocho devia estar desesperado...
—De modo que, disse o conego á porta abrindo
o seu guardasol, vossê, abbade, era lhe cheirando
a prodigio...
—Suspeito logo escandalo.
O conego contemplou-o um momento, com respeito:
—Vossê, Ferrão, é capaz de dar quinaus
a Salomão
em prudencia!
—Oh, collega! oh, collega! exclamou o abbade,
offendido com aquella injustiça feita á
incomparavel
sabedoria de Salomão.
—Ao proprio Salomão! affirmou ainda o conego
da rua.
Tinha preparado uma historia habil para justificar
a sua visita á paralytica; mas durante a sua
conversação com o abbade ella
escapára-lhe, como
tudo o que deixava um momento nos reservatorios
da memoria; e foi sem transição que disse
simplesmente
a Amelia:
—Vamos lá, tambem quero ir vêr essa
Tótó!
Amelia ficou petrificada. E o senhor parocho, naturalmente,
já lá estava! Mas sua madrinha Nossa
Senhora das Dôres, que ella invocou logo n'aquella
[465]
afflicção, não a deixou enleada no
embaraço.—E o
conego, que caminhava ao lado d'ella, ficou surprehendido
ouvindo-lhe dizer com um risinho:
—Viva, hoje é o dia das visitas á
Tótó! O senhor
parocho disse-me que tambem talvez hoje apparecesse
por lá... Talvez lá esteja até.
—Ah! O amigo parocho tambem? Está bom, está
bom. Faremos uma consulta á Tótó!
Amelia então, contente da sua malicia, tagarellou
sobre a Tótó. O senhor conego ia vêr...
Era uma
creatura incomprehensivel... Ultimamente, ella não
tinha querido contar em casa, mas a Tótó
tomára-lhe
birra... E dizia coisas, tinha um modo de fallar de
cães e d'animaes, d'arripiar!... Ai, era um encargo
que já lhe pesava... Que a rapariga não lhe
escutava
as lições, nem as orações,
nem os conselhos...
Era uma fera!
—O cheiro é desagradavel! rosnou o conego
entrando.
Que queria! A rapariga era uma porca, não havia
tel-a arranjado. O pai, esse, um desleixado tambem...
—É aqui, senhor conego, disse, abrindo a porta
da alcova—que agora, em obediencia ás ordens
do senhor parocho, o tio Esguelhas deixava sempre
fechada.
Encontraram a Tótó meio erguida sobre a cama,
com a face accêsa n'uma curiosidade, áquella voz
do
conego que não conhecia.
[466]
—Ora viva lá a snr.
a
Tótó! disse
elle da porta,
sem se aproximar.
—Vá, comprimenta o senhor conego, disse Amelia,
começando logo, com uma caridade desacostumada,
a compôr a roupa da cama, a arrumar
a alcova. Dize-lhe como estás... Não te
faças
amuada!
Mas a Tótó permaneceu tão muda como a
imagem
de S. Bento que tinha á cabeceira, examinando
muito aquelle sacerdote tão gordo, tão grisalho,
tão differente do senhor parocho... E os seus olhos,
mais brilhantes todos os dias á medida que se lhe
cavavam as faces, iam, como de costume, do homem
para Amelia, n'uma anciedade de perceber
porque o trazia ella alli, aquelle velho obeso, e
se ia tambem subir com elle para o quarto.
Amelia agora tremia. Se o senhor parocho entrasse,
e alli, diante do cónego, a Tótó,
tomada do
seu phrenesi, rompesse aos gritos, tratando-os de
cães!... Com o pretexto de dar uma arrumadella
foi à cozinha vigiar o pateo. Faria um signal da janella,
apenas Amaro apparecesse.
E o conego, só na alcova da Tótó,
preparando-se
para começar as suas observações, ia
perguntar-lhe
quantas eram as pessoas da Santissima Trindade,—quando
ella, adiantando a face, lhe disse n'uma voz
subtil como um sôpro:
—E o outro?
O conego não comprehendeu. Que fallasse alto!
Que era?
[467]
—O outro, o que vem com ella!
O conego chegou-se, com a orelha dilatada de
curiosidade:
—Que outro?
—O bonito. O que vai com ella p'ró quarto. O
que a belisca...
Mas Amelia entrava: e a paralytica calou-se logo,
repousada, com os olhos cerrados e respirando
regaladamente, como n'um allivio repentino de todo
o seu soffrimento. O conego, esse, immobilisado d'assombro,
permanecia na mesma postura, dobrado sobre
a cama como para ascultar a Tótó. Ergueu-se por
fim, soprou como n'uma calma d'agosto, sorveu d'espaço
uma pitada forte; e ficou com a caixa aberta
entre os dedos, os olhos muito vermelhos cravados
na colcha da Tótó.
—Então, senhor conego, que lhe parece cá a minha
doente? perguntou Amelia.
Elle respondeu, sem a olhar:
—Sim senhor, muito bem... Vai bem... É exquisita...
Pois é andar, é andar... Adeus...
Sahiu, resmungando que tinha negocios,—e voltou
immediatamente á botica.
—Um copo d'agua! exclamou, cahindo em cheio
sobre a cadeira.
O Carlos, que voltára, apressou-se, offerecendo
flôr de laranja, perguntando se sua excellencia estava
incommodado...
—Cansadote, disse.
Tomou o
Popular de sobre a mesa, e
alli ficou,
[468]
sem se mexer, abysmado nas columnas do periodico.
O Carlos tentou fallar da politica do paiz, depois
dos negocios d'Hespanha, depois dos perigos revolucionarios
que ameaçavam a Sociedade, depois da deficiencia
da administração do concelho de que era
agora um adversario feroz... Debalde. Sua excellencia
grunhia apenas monosyllabos soturnos. E o Carlos,
emfim, recolheu-se a um silencio chocado, comparando,
n'um desdem interior que lhe vincava de
sarcasmo os cantos dos beiços, a obtusidade soturna
d'aquelle sacerdote à palavra inspirada d'um Lacordaire
e d'um Malhão! Por isso o Materialismo em
Leiria, em todo o Portugal erguia a sua cabeça d'hydra...
Batia uma hora na torre quando o conego, que
vigiava a Praça pelo canto do olho, vendo passar
Amelia, arremessou o jornal, sahiu da botica sem dizer
uma palavra e estugou o seu passo d'obeso para
casa do tio Esguelhas. A Tótó estremeceu de medo
ao vêr de novo aquella figura bojuda apparecer
á porta da alcova. Mas o conego riu-se para ella,
chamou-lhe Tótósinha, prometteu-lhe um pinto para
bolos; e mesmo sentou-se aos pés da cama com um
ah! regalado, dizendo:
—Ora vamos nós agora conversar, amiguinha...
Esta é que é a pernita doente, hein? Coitadita!
Deixa
que te has de curar... Hei de pedir a Deus... Fica
por minha conta.
Ella fazia-se ora toda branca ora toda vermelha,
olhando aqui e além, inquieta, na
perturbação que
[469]
lhe dava aquelle homem a sós com ella tão perto
que lhe sentia o halito forte.
—Então, ouve cá, disse elle chegando-se mais
para ella, fazendo ranger o catre com o seu peso.
Ouve cá, quem é o outro? Quem é que
vem com a
Amelia?
Ella respondeu logo, atirando as palavras d'um
fôlego:
—É o bonito, é o magro, vêm ambos,
sobem
p'r'ó quarto, fecham-se por dentro, são como
cães!
Os olhos do conego injectaram-se para fóra das
orbitas:
—Mas quem é elle, como se chama? O teu pai
que te disse?
—É o outro, é o parocho, o Amaro! fez ella
impaciente.
—E vão p'r'ó quarto, hein? lá p'ra
cima? E
tu que ouves, tu que ouves? Dize tudo, pequena,
dize tudo!
A paralytica então contou, com um furor que dava
tons sibilantes à sua voz de tisica,—como ambos
entravam, e a vinham vêr, e se roçavam um
pelo outro, e abalavam para o quarto em cima, e estavam
lá uma hora fechados...
Mas o conego, com uma curiosidade lubrica que
lhe punha uma chamma nos olhos mortiços, queria
saber os detalhes torpes:
—E ouve lá, Tótósinha, tu que ouves?
Ouves
ranger a cama?
[470]
Ella respondeu com a cabeça affirmativamente,
toda pallida, os dentes cerrados.
—E olha, Tótósinha, já os viste
beijarem-se,
abraçarem-se? Anda, dize, que te dou dois pintos.
Ella não descerrava os labios; e a sua face transtornada
parecia ao conego selvagem.
—Tu embirras com ella, não é verdade?
Ella fez que sim n'uma affirmação feroz de
cabeça.
—E vistel-os beliscarem-se?
—São como cães! soltou ella por entre os dentes.
O conego então endireitou-se, bufou outra vez
com o seu grande sôpro d'encalmado, e coçou
vivamente
a corôa.
—Bem, disse, erguendo-se. Adeus, pequena...
Agasalha-te. Não te constipes...
Sahiu; e ao fechar com força a porta exclamou
alto:
—Isto é a infamia das infamias! Eu mato-o! eu
perco-me!
Esteve um momento considerando e partiu para
a rua das Sousas, de guardasol em riste, apressando
a sua obesidade, com a face apopletica de furor.
No largo da Sé, porém, parou a reflectir ainda; e
rodando
sobre os tacões, entrou na igreja. Ia tão levado
que, esquecendo um habito de quarenta annos,
não dobrou o joelho ao Santissimo. E arremessou-se
para a sacristia—justamente quando o padre Amaro
sahia, calçando cuidadosamente as luvas pretas
[471]
que usava agora sempre para agradar á Ameliasinha.
O aspecto descomposto do conego assombrou-o.
—Que é isso, padre-mestre?
—O que é? exclamou o conego de golpe, é a
maroteira das maroteiras! É a sua infamia! é a
sua
infamia!...
E emmudeceu, suffocado de cólera.
Amaro, que se fizera muito pallido, balbuciou:
—Que está vossê a dizer, padre-mestre?
O conego tomára fôlego:
—Não ha padre-mestre! O senhor desencaminhou
a rapariga! Isso é que é uma canalhice mestra!
O padre Amaro, então, franziu a testa como descontente
d'um gracejo:
—Que rapariga!? O senhor está a brincar...
Sorriu mesmo, affectando segurança; e os seus
beiços brancos tremiam.
—Homem, eu vi! berrou o conego.
O parocho, subitamente aterrado, recuou:
—Viu!?
Imaginára n'um relance uma traição, o
conego
escondido n'um recanto da casa do tio Esguelhas...
—Não vi, mas é como se visse!—continuou o
conego n'um tom tremendo. Sei tudo. Venho de lá.
Disse-m'o a Tótó. Fecham-se no quarto horas e
horas! Até se ouve em baixo ranger a cama! É uma
ignominia !
O parocho, vendo-se pilhado, teve, como um animal
acossado e entalado a um canto, uma resistencia
de desespero.
[472]
—Diga-me uma coisa. O que é que o senhor
tem com isso?
O conego pulou.
—O que tenho!? o que tenho!? Pois o senhor
ainda me falla n'esse tom!? O que tenho é que vou
d'aqui immediatamente dar parte de tudo ao senhor
vigario geral!
O padre Amaro, livido, foi para elle com o punho
fechado:
—Ah, seu maroto!
—Que é lá? que é lá?
exclamou o conego de
guardasol erguido. Vossê quer-me pôr as
mãos?
O padre Amaro conteve-se; passou a mão sobre
a testa em suor, com os olhos cerrados; e depois de
um momento, fallando com uma serenidade forçada:
—Ouça lá, senhor conego Dias. Olhe que eu vi-o
ao senhor uma vez na cama com a S. Joanneira...
—Mente! mugiu o conego.
—Vi, vi, vi! affirmou o outro com furor. Uma
noite ao entrar em casa... O senhor estava em mangas
de camisa, ella tinha-se erguido, estava a apertar
o collete. Até o senhor me perguntou
«
quem está
ahi?» Vi, como estou a vêl-o
agora. O senhor a
dizer uma palavra, e eu a provar-lhe que o senhor
vive ha dez annos amigado com a S. Joanneira, á
face de todo o clero! Ora ahi tem!
O conego, já antes esfalfado dos excessos do seu
furor, ficou agora, áquellas palavras, como um boi
atordoado. Só pôde dizer d'ahi a pouco, muito
murcho:
[473]
—Que traste que vossê me sae!
O padre Amaro então, quasi tranquillo, certo do
silencio do conego, disse com bonhomia:
—Traste porquê? Diga-me lá! Traste
porquê?
Temos ambos culpas no cartorio, eis ahi está. E olhe
que eu não fui perguntar, nem peitar a
Tótó... Foi
muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem
agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral
é para a escóla e para o sermão.
Cá na vida eu
faço isto, o senhor faz aquillo, os outros fazem o que
podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se
á velha, eu que sou novo arranjo-me com a pequena.
É triste, mas que quer? É a natureza que manda.
Somos homens. E como sacerdotes, para honra
da classe, o que temos é fazer costas!
O conego escutava-o, bamboleando a cabeça, na
aceitação muda d'aquellas verdades. Tinha-se
deixado
cahir n'uma cadeira, a descansar de tanta cólera
inutil; e erguendo os olhos para Amaro:
—Mas vossê, homem, no começo da carreira!
—E vossê, padre-mestre, no fim da carreira!
Então riram ambos. Immediatamente cada um
declarou retirar as palavras offensivas que tinha dito;
e apertaram-se gravemente a mão. Depois conversaram.
O conego, o que o tinha enfurecido era ser lá
com a pequena de casa. Se fosse com outra... até
estimava! Mas a Ameliasinha!... Se a pobre mãi
viesse a saber estourava de desgosto.
—Mas a mãi escusa de saber! exclamou Amaro.
[474]
Isto é entre nós, padre-mestre! Isto é
segredo de
morte! Nem a mãi sabe de nada, nem eu mesmo
digo á pequena o que se passou hoje entre nós. As
coisas ficam como estavam, e o mundo continua a
rolar... Mas vossê, padre-mestre, tenha cuidado!...
Nem uma palavra á S. Joanneira... Que não haja
agora traição!
O conego, com a mão sobre o peito, deu gravemente
a sua palavra d'honra de cavalheiro e de sacerdote
que aquelle segredo ficava para sempre sepultado
no seu coração.
Então apertaram ainda uma outra vez affectuosamente
a mão.
Mas a torre gemeu as tres badaladas. Era a hora
de jantar do conego.
E ao sahir, batendo nas costas de Amaro, fazendo
luzir um olho d'entendedor:
—Pois seu velhaco, tem dedo!
—Que quer vossê? Que diabo... Começa-se por
brincadeira...
—Homem! disse o conego sentenciosamente, é
o que a gente leva de melhor d'este mundo.
—É verdade, padre-mestre, é verdade!
É o que
a gente leva de melhor d'este mundo.
Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranquillidade
d'alma. Até ahi incommodava-o, por vezes,
a idéa de que correspondera ingratamente á
confiança, aos carinhos que lhe tinham prodigalisado
[475]
na rua da Misericordia. Mas a tacita approvação
do
conego viera tirar-lhe, como elle dizia, aquelle espinho
da consciencia. Porque emfim, o chefe de familia,
o cavalheiro respeitavel, o cabeça—era o conego.
A S. Joanneira era apenas uma concubina...
E Amaro mesmo, às vezes agora, em tom de galhofa,
tratava o Dias de
seu caro sogro.
Outra circumstancia viera alegral-o: a Tótó
adoecera
de repente: o dia seguinte ao da visita do conego,
passára-o soltando golfadas de sangue: o doutor
Cardoso, chamado á pressa, fallára de tisica
galopante,
questão de semanas, caso decidido...
—É d'estas, meu amigo, tinha elle dito, que é
trás... trás...—Era a sua maneira de pintar a
morte, que, quando tem pressa, conclue o seu trabalho
com uma fouçada aqui, outra além.
As manhãs na casa do tio Esguelhas eram agora
tranquillas. Amelia e o parocho já não entravam
em
pontas de pés, tentando esgueirar-se para o prazer,
despercebidos da Tótó. Batiam com as portas,
palravam
forte, certos que a Tótó estava bem prostrada
de febre, sob os lençoes humidos dos suores constantes.
Mas Amelia, por escrupulo, não deixava de
rezar todas as noites uma salve-rainha pelas melhoras
da Tótó. Ás vezes mesmo ao despir-se,
no
quarto do sineiro, parava de repente, e fazendo um
rostinho triste:
—Ai, filho! até me parece peccado, nós aqui a
gozarmos, e a pobre pequena lá em baixo a luctar
com a morte...
[476]
Amaro encolhia os hombros. Que lhe haviam elles
de fazer, se era a vontade de Deus?...
E Amelia, resignando-se á vontade de Deus em
tudo, ia deixando cahir as sáias.
Tinha agora d'aquellas pieguices frequentes que
impacientavam o padre Amaro. Em certos dias apparecia
muito murcha; trazia sempre algum sonho
lugubre a contar, que a torturára toda a noite, e em
que ella pretendia descobrir avisos de desgraças...
Perguntava-lhe ás vezes:
—Se eu morresse, tinhas muita pena?
Amaro enfurecia-se. Realmente era estupido! Tinham
apenas uma hora para se verem, e haviam
d'estar a estragal-a com lamurias?
—É que não imaginas, dizia ella, trago o
coração
negro como a noite.
Com effeito as amigas da mãi estranhavam-na.
Ás vezes durante serões inteiros não
descerrava os
labios, pendida sobre a sua costura, picando mollemente
a agulha; ou então, muito cansada mesmo para
trabalhar, ficava junto da mesa fazendo girar devagar
o
abat-jour verde do candieiro, com
o olhar
vazio e a alma muito longe.
—Ó rapariga, deixa esse
abat-jour em paz! diziam-lhe
as senhoras nervosas.
Ella sorria, dava um suspiro fatigado, e retomava
muito lentamente a sáia branca que havia semanas
andava abainhando. A mãi, vendo-a sempre tão
pallida, pensára em chamar o doutor Gouveia.
—Não é nada, minha mãi, é
nervoso, passa...
[477]
O que provava a todos que era nervoso eram os
sustos subitos que a tomavam—a ponto de dar um
grilo, quasi desmaiar, se de repente uma porta batia.
Certas noites mesmo, exigia que a mãi viesse
dormir ao pé d'ella, com medo de pesadêlos e de
visões.
—É o que diz sempre o senhor doutor Gouveia,
observava a mãi ao conego, é uma rapariga que
necessita
casar...
O conego pigarreava grosso.
—Não lhe falta nada, resmungava. Tem tudo o
que precisa. Tem de mais, ao que parece...
Era com effeito a idéa do conego, que a rapariga
(como elle dizia só comsigo) «andava-se a arrasar
de felicidade». Nos dias em que sabia que ella fôra
vêr a Tótó, não se fartava
de a estudar, cocando-a
do fundo da poltrona com um olho pesado e lubrico.
Prodigalisava-lhe agora as familiaridades paternaes.
Nunca a encontrava na escada sem a deter, com coceguinhas
aqui e alli, palmadinhas na face muito
prolongadas. Queria-a em casa repetidas vezes pela
manhã; e emquanto Amelia palrava com D. Josepha,
o conego não cessava de rondar em torno d'ella, arrastando
as chinelas com um ar de velho gallo. E
eram entre Amelia e a mãi conversas sem fim sobre
esta amizade do senhor conego, que decerto lhe deixaria
um bom dote.
—Seu maganão, tem dedo!—dizia sempre o
conego quando estava só com Amaro, arregalando
os olhos redondos. Aquillo é um bocado de rei!
[478]
Amaro entufava-se:
—Não é mau bocado, padre-mestre, é um
bom
bocado.
Era este um dos
grandes gozos
d'Amaro—ouvir
gabar aos collegas a belleza d'Amelia, que era chamada
entre o clero «a flôr das devotas». Todos
lhe
invejavam aquella confessada. Por isso insistia muito
com ella em que se ajanotasse nos domingos, á
missa; zangára-se mesmo ultimamente de a vêr
quasi sempre entrouxada n'um vestido de merino
escuro, que lhe dava um ar de velha penitente.
Mas Amelia, agora, já não tinha aquella
necessidade
amorosa de contentar em tudo o senhor parocho.
Acordára quasi inteiramente d'aquelle adormecimento
estupido d'alma e do corpo, em que a lançára
o primeiro abraço de Amaro. Vinha-lhe apparecendo
distinctamente a consciencia pungente da sua culpa.
N'aquelles negrumes d'um espirito beato e escravo,
fazia-se um amanhecimento de razão.—O que era
ella no fim? A concubina do senhor parocho. E esta
idéa, posta assim descarnadamente, parecia-lhe terrivel.
Não que lamentasse a sua virgindade, a sua honra,
o seu bom nome perdido. Sacrificaria mais ainda
por elle, pelos delirios que elle lhe dava. Mas havia
alguma coisa peor a temer que as reprovações do
mundo: eram as vinganças de Nosso Senhor. Era da
perda possivel do paraiso que ella gemia baixo; ou
de mais medonho ainda, d'algum castigo de Deus, não
das punições transcendentes que acabrunham a alma
além da tumba, mas dos tormentos que vêm durante
[479]
a vida, que a feririam na sua saude, no seu bem-estar
e no seu corpo. Eram vagos medos de doenças,
de lepras, de paralysias ou de pobrezas, de dias de
fome—de todas essas penalidades de que ella suppunha
prodigo o Deus do seu catecismo. Como em
pequena, nos dias em que se esquecia de pagar á
Virgem o seu tributo regular de salve-rainhas, temia
que ella a fizesse cahir na escada ou levar palmatoadas
na mestra, arrefecia de medo agora, á idéa
de que Deus, em castigo d'ella se deitar na cama
com um padre, lhe mandasse um mal que a desfigurasse
ou a reduzisse a pedir esmola pelas viellas.
Estas idéas não a deixavam, desde o dia em que na
sacristia peccára de concupiscencia dentro do manto
de Nossa Senhora. Tinha a certeza que a Santa Virgem
a odiava, e que não cessava de reclamar contra
ella; debalde procurava abrandal-a, com um fluxo
incessante de orações humilhadas; sentia bem
Nossa Senhora, inaccessivel e desdenhosa, de costas
voltadas. Nunca mais aquelle divino rosto lhe sorrira;
nunca mais aquellas mãos se tinham aberto para
receber com agrado as suas orações, como ramos
congratulatorios. Era um silencio sêcco, uma hostilidade
gelada de divindade offendida. Ella conhecia o
credito que Nossa Senhora tem nos concilios do céo;
desde pequena lh'o tinham ensinado; tudo o que
ella deseja o obtem, como uma recompensa devida
aos seus prantos no Calvario; seu Filho sorri-lhe á
sua direita, o Deus-Padre falla-lhe á esquerda... E
comprehendia bem que para ella não havia
esperança—e
[480]
que alguma coisa medonha se preparava
lá era cima, no paraiso, que lhe cahiria um dia
sobre o corpo e sobre a alma, esmagando-a com um
desabamento de catastrophe. Que seria?
Cessaria as suas relações com Amaro, se o
ousasse:
mas receava quasi tanto a sua cólera como a de
Deus. Que seria d'ella, se tivesse contra si Nossa Senhora
e o senhor parocho? Além d'isso, amava-o.
Nos seus braços, todo o terror do céo, a mesma
idéa
do céo desapparecia; refugiada alli, contra o seu
peito, não tinha medo das iras divinas: o desejo, o
furor da carne, como um vinho muito alcoolico, davam-lhe
uma coragem colerica; era com um brutal
desafio ao céo que se enroscava furiosamente ao seu
corpo.—Os terrores vinham depois, só no seu quarto.
Era esta lucta que a empallidecia, lhe punha pregas
d'envelhecimento ao canto dos labios seccos e
ardidos, lhe dava aquelle ar murcho de fadiga que
irritava o padre Amaro.
—Mas que tens tu, que parece te espremeram
o succo? perguntava-lhe elle quando aos primeiros
beijos a sentia toda fria, toda inerte.
—Passei mal a noite... Nervoso.
—Maldito nervoso! rosnava o padre Amaro impaciente.
Depois vinham perguntas singulares que o desesperavam,
repetidas agora todos os dias. Se tinha
dito a missa com fervor? Se tinha lido o Breviario?
Se tinha feito a oração mental?...
—Sabes tu que mais? disse elle furioso. Sêbo!
[481]
E esta! Tu pensas que eu sou ainda seminarista, e
que tu és o padre examinador, que verifica se cumpri
a Regra? Ora a tolice!
—É que é necessario estar bem com Deus,
murmurava
ella.
Era com effeito a sua preoccupação, agora, que
Amaro
fosse um bom padre. Contava,
para se salvar
e para se livrar da cólera de Nossa Senhora, com a
influencia do parocho na côrte de Deus: e temia
que elle por negligencia de devoção a perdesse, e
que, diminuindo o seu fervor, diminuissem os seus
meritos aos olhos do Senhor. Queria-o conservar
santo e favorito do céo, para colher os proveitos da
sua protecção mystica.
Amaro chamava a isto «caturrices de freira velha».
Detestava-as, por as achar frivolas—e porque
tomavam um tempo precioso, n'aquellas manhãs da
casa do sineiro...
—Nós não viemos aqui para lamurias, dizia elle,
muito sêccamente. Fecha a porta, se queres.
Ella obedecia,—e então aos primeiros beijos
na penumbra da janella cerrada, elle reconhecia emfim
a sua Amelia, a Amelia dos primeiros dias, o delicioso
corpo que lhe tremia todo nos braços, em espasmos
de paixão.
E cada dia a desejava mais, d'um desejo continuo
e tyrannico, que aquellas horas escassas não satisfaziam.
Ah! positivamente, como mulher não havia
outra!... Desafiava a que houvesse outra, mesmo
em Lisboa, mesmo nas fidalgas!... Tinha pieguices,
[482]
sim, mas era não as tomar a sério, e gozar
emquanto
era novo!
E gozava. A sua vida por todos os lados tinha
confortos e doçuras—como uma d'estas salas onde
tudo é acolchoado, não ha moveis duros nem
angulos,
e o corpo, onde quer que pouse, encontra a
elasticidade molle d'uma almofada.
Decerto, o melhor eram as suas manhãs em casa
do tio Esguelhas. Mas tinha outros regalos. Comia
bem: fumava caro n'uma boquilha d'espuma:
toda a sua roupa branca era nova e de linho: comprára
alguma mobilia: e não tinha, como outr'ora,
embaraços de dinheiro, porque a snr.
a
D. Maria da
Assumpção, a sua melhor confessada, lá
estava com
a bolsa prompta. Sobretudo, ultimamente, tivera uma
pechincha: uma noite em casa da S. Joanneira, a
excellente senhora, a proposito d'uma familia d'inglezes
que vira passar n'um
char-á-banc para ir
visitar
a Batalha, exprimira a opinião que os inglezes
eram herejes.
—São baptisados como nós, observára
D. Joaquina
Gansoso.
—Pois sim, filha, mas é um baptismo para rir.
Não é o nosso rico baptismo, não lhes
vale.
O conego então, que gostava de a torturar, declarou
pausadamente que a snr.
a D. Maria dissera
uma blasphemia. O santo concilio de Trento, no seu
canon IV, sessão VII, lá determinára
«que aquelle
que disser que o baptismo dado aos herejes, em nome
do Padre, do Filho e do Espirito, não é o
[483]
verdadeiro baptismo, seja excommungado!» E a D.
Maria, segundo o santo concilio, estava desde esse
momento excommungada!...
A excellente senhora teve um flato. Ao outro dia
foi lançar-se aos pés d'Amaro, que em penitencia
da sua injuria feita ao canon IV, sessão VII do santo
concilio de Trento, lhe ordenou trezentas missas de
intenção
pelas almas do purgatorio—que D. Maria
lhe estava pagando a cinco tostões cada uma.
Assim, elle podia ás vezes entrar na casa do tio
Esguelhas com um ar de satisfação mysteriosa e um
embrulhosinho na mão. Era algum presente para
Amelia, um lenço de sêda, uma gravatinha de
côres,
um par de luvas. Ella extasiava-se com aquellas
provas da affeição do senhor parocho; e era
então
no quarto escuro um delirio d'amor, emquanto em
baixo a tisica, sobre a Tótó, ia fazendo
«trás...
trás...»
XX
—O senhor conego? Quero-lhe fallar. Depressa!
A criada dos Dias indicou ao padre Amaro o escriptorio,
e correu acima contar a D. Josepha que o
senhor parocho viera procurar o senhor conego, e
com uma cara tão transtornada que decerto tinha
succedido alguma desgraça!
Amaro abrira abruptamente a porta do escriptorio,
fechou-a de repellão, e sem mesmo dar os bons
dias ao collega, exclamou:
—A rapariga está gravida!
O conego, que estava escrevendo, cahiu como
uma massa fulminada para as costas da cadeira:
—Que me diz vossê!?
—Gravida!
[486]
E no silencio que se fez o soalho gemia sob os
passeios furiosos do parocho da janella para a estante.
—Está vossê certo d'isso? perguntou emfim o
conego com pavor.
—Certissimo! A mulher já ha dias andava desconfiada.
Já não fazia senão chorar... Mas agora
é
certo... As mulheres conhecem, não se enganam.
Ha todas as provas... Que hei de eu fazer, padre-mestre?
—Olha que espiga! ponderou o conego atordoado.
—Imagine vossê o escandalo! A mãi, a
visinhança...
E se suspeitam de mim?... Estou perdido...
Eu não quero saber, eu fujo!
O conego coçava estupidamente o cachaço, com
o beiço cahido como uma tromba. Representavam-se-lhe
já os gritos em casa, a noite do parto, a S.
Joanneira eternamente em lagrimas, toda a sua tranquillidade
extincta para sempre...
—Mas diga alguma coisa! gritou-lhe Amaro desesperado.
Que pensa vossê? Veja se tem alguma
idéa... Eu não sei, eu estou idiota, estou de
todo!
—Ahi estão as consequencias, meu caro collega.
—Vá p'r'ó inferno, homem! Não se
trata de moral...
Está claro que foi uma asneira... Adeus, está
feita!
—Mas então que quer vossê? disse o conego.
Não quer decerto que se dê uma droga á
rapariga,
que a arrase...
[487]
Amaro encolheu os hombros, impaciente com
aquella idéa insensata. O padre-mestre, positivamente,
estava divagando...
—Mas então que quer vossê? repetia o conego
n'um tom cavo, arrancando as palavras do abysmo
do thorax.
—Que quero!? quero que não haja escandalo!
Que hei de eu querer?
—De quantos mezes está ella?
—De quantos mezes? Está d'agora, está d'um
mez...
—Então é casal-a! exclamou o conego com
explosão.
Então é casal-a com o escrevente!
O padre Amaro deu um pulo:
—C'os diabos, tem vossê razão! É de
mestre!
O conego affirmou gravemente com a cabeça que
era «de mestre».
—Casal-a já! Emquanto é tempo!
Pater est
quem nuptiæ demonstrant... Quem
é marido é que
é pai.
Mas a porta abriu-se, e appareceram os oculos
azues, a touca negra de D. Josepha. Não se pudera
conter em cima, na cozinha, tomada d'um phrenesi
agudo de curiosidade; descera na ponta das chinelas
e collára o ouvido á fechadura do escriptorio;
mas o grosso reposteiro de baetão estava cerrado por
dentro, um ruido de lenha que se descarregava na
rua abafava as vozes. A boa senhora então decidiu-se
a entrar, «a dar os bons dias ao senhor parocho».
Mas debalde, por detraz dos vidros defumados,
[488]
os seus olhinhos agudos esquadrinharam anciosamente
o carão espesso do mano e a face pallida d'Amaro.
Os dois sacerdotes estavam impenetraveis como
duas janellas fechadas. O parocho mesmo fallou ligeiramente
do rheumatico do senhor chantre, da
notícia que corria sobre o casamento do senhor secretario
geral... Ao fim d'uma pausa ergueu-se, contou
que tinha n'esse dia uma famosa orelheira para
o jantar—e a snr.
a D. Josepha, roendo-se, viu-o
abalar depois de ter dito já por detraz do reposteiro
ao conego:
—Então até á noite em casa da S.
Joanneira,
padre-mestre, hein?
—Até á noite.
E o conego, muito grave, continuou a escrever.
D. Josepha então não se conteve; e depois de
arrastar
um momento as chinelas em torno da banca do
mano:
—Ha novidade?
—Grande novidade, mana! disse-lhe o conego,
sacudindo os bicos da penna. Morreu o senhor D.
João VI!
—Malcriado! rugiu ella rodando sobre os sapatões,
cruelmente perseguida por uma risadinha do
mano.
Foi á noite, em baixo, na saleta da S. Joanneira,
emquanto Amelia em cima, com a morte n'alma,
martellava a
Valsa dos dois mundos,
que os
dois padres, muito chegados no canapé, de cigarro
nos dentes, por debaixo do tenebroso painel onde
[489]
a vaga mão do cenobita se estendia em garra sobre
a caveira, cochicharam o seu plano:—antes de
tudo era
necessario achar
João Eduardo, que
desapparecera
de Leiria; a Dionysia, mulher de faro, ia
bater todos os recantos da cidade para descobrir a
toca em que a fera se acoutava; depois, immediatamente,
porque o tempo urgia, Amelia escrever-lhe-hia...
Só quatro palavras simples: que soubera que
elle fôra victima d'uma intriga; que nunca perdera
nada da amizade que lhe tinha; que lhe devia uma
reparação; e que
viesse
vêl-a... Se
o rapaz hesitasse
agora, o que não era provavel (o conego affirmava-o),
fazia-se-lhe reluzir a esperança do emprego
no governo civil, facil d'obter pelo Godinho, inteiramente
governado pela mulher, que era uma escravasinha
do padre Silverio...
—Mas o Natario, disse Amaro, o Natario que detesta
o escrevente, que dirá elle a esta
revolução?
—Homem, exclamou o conego com uma grande
palmada na côxa, que me tinha esquecido! Pois vossê
não sabe o que aconteceu ao pobre Natario?...
Amaro não sabia.
—Quebrou uma perna! Cahiu da egoa!
—Quando?
—Esta manhã. Eu soube-o agora à noitinha. Eu
sempre lh'o disse: homem, esse animal ferra-lhe alguma!
Pois senhores, ferrou-lh'a. E têsa! Tem p'ra
pêras... E eu que me tinha esquecido! Nem as senhoras
lá em cima sabem nada.
Foi uma desolação, em cima, quando souberam.
[490]
Amelia fechou o piano. Todos lembraram logo remedios
que se lhe devia mandar, foi uma gralhada de
offerecimentos—ligaduras, fios, um unguento das
freiras d'Alcobaça, meia garrafinha d'um licôr dos
monges do deserto d'ao pé de Cordova... Era necessario
tambem assegurar a intervenção do céo:
e cada
uma se promptificou a usar do seu valimento
com os santos da sua intimidade: D. Maria da
Assumpção,
que ultimamente praticava com Santo Eleuterio,
offereceu a sua influencia; D. Josepha Dias encarregava-se
d'interessar Nossa Senhora da Visitação;
D. Joaquina Gansoso afiançou S. Joaquim...
—E lá a menina? perguntou o conego a Amelia.
—Eu?...
E fez-se pallida, n'uma tristeza de toda a sua
alma, pensando que ella, com os seus peccados e
os seus delírios, perdera a util amizade de Nossa Senhora
das Dôres.—E não poder ella tambem concorrer
com a sua influencia no céo para restabelecer
a perna de Natario, foi uma das amarguras maiores,
talvez a punição mais viva que sentira desde que
amava o padre Amaro.
Foi em casa do sineiro, d'ahi a dias, que Amaro
participou a Amelia o plano do padre-mestre. Preparou-a,
revelando-lhe primeiro que o conego sabia
tudo...
—Sabe tudo em segredo de confissão, acrescentou
[491]
para a socegar. Além d'isso elle e tua mãi
têm
culpas em cartorio... Tudo fica em familia...
Depois tomou-lhe a mão, e olhando-a com ternura,
como compadecendo-se já das lagrimas afflictas
que ella ia chorar:
—E agora escuta, filha. Não te afflijas com o que
te vou dizer, mas é necessario, é a nossa
salvação...
Ás primeiras palavras, porém, do casamento com
o escrevente, Amelia indignou-se com espalhafato.
—Nunca, antes morrer!
O quê? Elle punha-a n'aquelle estado e agora
queria descartar-se d'ella e passal-a a outro? Era ella
porventura um trapo que se usa e que se atira
a um pobre? Depois de ter posto fóra de casa o homem,
havia de humilhar-se, chamal-o e cahir-lhe
nos braços?... Ah, não! Tambem ella tinha o seu
brio! Os escravos trocavam-se, vendiam-se, mas era
no Brazil!
Enterneceu-se então. Ah, elle já não a
amava,
estava farto d'ella! Ah, que desgraçada, que
desgraçada
que era!—Atirou-se de bruços para a cama e
rompeu n'um chôro estridente.
—Cala-te, mulher, que te podem ouvir na rua!
dizia Amaro desesperado, sacudindo-a pelo braço.
—Não me importa! Que ouçam! P'r'á rua
vou
eu gritar que estou n'este estado, que foi o senhor
padre Amaro, e que me quer agora deixar!...
Amaro fazia-se livido de raiva, com um desejo
furioso de lhe bater. Mas conteve-se; e com uma
voz que tremia sob a sua serenidade:
[492]
—Tu estás fóra de ti, filha... Dize
lá, posso eu
casar comtigo? Não! Bem, então que queres? Se se
percebe que estás assim, se tens o filho em casa,
vê
o escandalo!... Por ti, estás perdida, perdida p'ra
sempre! E eu, se se souber, que me succede? Perdido
tambem, suspenso, mettido em processo talvez...
De que queres tu que eu viva? Queres que
morra de fome?
Enterneceu-se tambem áquella idéa das
privações
e das miserias do padre interdicto.—Ah, era ella,
era ella que o não amava, e que depois d'elle ter
sido tão carinhoso e tão delicado, lhe queria
pagar
com o escandalo e com a desgraça...
—Não, não! exclamou Amelia em
soluços, lançando-se-lhe
ao pescoço.
E ficaram abraçados, tremendo no mesmo
enternecimento,—ella
molhando de pranto o hombro do parocho,
elle mordendo o beiço com os olhos todos
turvos d'agua.
Desprendeu-se brandamente, emfim, e limpando
as lagrimas:
—Não, filha, é uma desgraça que nos
succede,
mas tem de ser. Se tu soffres, imagina eu! Vêr-te
casada, a viver com outro... Nem fallemos n'isso...
Mas então, é a fatalidade, é Deus que
a manda!
Ella ficára aniquilada, á beira do leito, tomada
ainda de grandes soluços. Tinha chegado emfim o
castigo, a vingança de Nossa Senhora, que ella sentia
preparar-se ha tempos no fundo dos céos, como
uma tormenta complicada. Ahi estava, agora, peor
[493]
que os fogos do Purgatorio! Tinha de se separar de
Amaro que imaginava amar mais, e ir viver com o
outro, com o excommungado! Como poderia ella nunca
reentrar na graça de Deus, depois de ter dormido
e vivido com um homem que os canones, o Papa,
toda a terra, todo céo consideravam maldito?... E
devia ser esse seu marido, talvez o pai d'outros filhos...
Ah, Nossa Senhora vingava-se de mais!
—E como posso eu casar com elle, Amaro, se
o homem está excommungado?!
Amaro então apressou-se a tranquillisal-a, prodigalisando
os argumentos. Era necessario não exagerar...
O rapaz, verdadeiramente, excommungado não
estava... Natario e o conego tinham interpretado mal
os canones e as bullas... Bater n'um sacerdote que
não estava revestido não era motivo
d'excommunhão
ipso facto, segundo certos
auctores... Elle, Amaro,
era d'essa opinião... De mais a mais podiam levantar-lhe
a excommunhão.
—Tu comprehendes... Como disse o santo concilio
de Trento, e como sabes,
nós atamos e
desatamos.
O moço foi excommungado?... Bem, levantamos-lhe
a excommunhão... Fica tão limpo como
d'antes. Não, isso não te dê cuidado.
—Mas de que havemos de viver, se elle perdeu
o emprego?
—Tu não me deixaste dizer... Arranja-se-lhe o
emprego. Arranja-lh'o o padre-mestre. Está tudo
combinadinho, filha!
Ella não respondeu, muito quebrada e muito triste,
[494]
com duas lagrimas persistentes ao comprido das
faces.
—Dize cá, tua mãi não desconfia de
nada?
—Não, por ora não se percebe, respondeu ella
com um grande ai.
Ficaram calados: ella limpando as lagrimas, serenando
para sahir; elle de cabeça baixa, trilhando
lugubremente o soalho do quarto, pensando nas boas
manhãs d'outr'ora, quando só havia alli beijos e
risadinhas
abafadas; tudo mudára agora, até o tempo
que estava todo nublado, um dia de fim de verão,
ameaçando chuva.
—Percebe-se que estive a chorar? perguntou ella,
compondo ao espelho o cabello.
—Não. Vaes-te?
—A mamã está á minha espera...
Deram um beijo triste, e ella sahiu.
No emtanto a Dionysia farejava pela cidade na
pista de João Eduardo. A sua actividade desenvolvera-se,
sobretudo, mal soubera que o conego Dias, o
ricaço, estava interessado na
«pesquiza». E todos os
dias, á noitinha, esgueirava-se cautelosamente pelo
portão d'Amaro a dar-lhe as novidades: já sabia
que
o escrevente estivera ao principio em Alcobaça com
um primo boticario; depois fôra para Lisboa; ahi,
com uma carta de recommendação do doutor
Gouvêa,
empregára-se no cartorio d'um procurador; mas
[495]
o procurador, passados dias, por uma fatalidade,
morrera de apoplexia; e desde então o rasto de
João
Eduardo perdia-se no vago, no cahos da capital. Havia,
sim, uma pessoa que lhe devia saber a morada
e os passos: era o typographo, o Gustavo. Mas
infelizmente o Gustavo, depois d'uma questão com
o Agostinho, deixára o
Districto e desapparecera.
Ninguem sabia para onde fôra; por desgraça, a
mãi
do typographo não a podia informar—porque morrera
tambem.
—Oh, senhores! dizia o conego quando o padre
Amaro lhe ia levar estes fios d'informação. Oh,
senhores!
mas então n'essa historia toda a gente morre!
Isso é uma hecatombe!
—Vossê graceja, padre-mestre, mas é
sério.
Olhe que um homem em Lisboa é agulha em palheiro.
É uma fatalidade!
Então, afflicto já, vendo passar os dias,
escreveu
á tia, pedindo-lhe que esquadrinhasse por toda a Lisboa,
a vêr se por lá apparecera «um tal
João Eduardo
Barbosa...» Recebeu uma carta da tia em garatujas
de tres paginas, queixando-se do Joãosinho, do
seu Joãosinho, que lhe fizera a vida um inferno,
embebedando-se
com genebra a ponto que não lhe paravam
hospedes em casa. Mas estava agora mais
tranquilla: o pobre Joãosinho havia dias
jurára-lhe
pela alma da mamã que d'ahi por diante não
beberia
senão gazosa. Emquanto ao tal João Eduardo
perguntára na visinhança e ao snr. Palma do
ministerio
das obras publicas, que conhecia toda a gente,
[496]
mas nada averiguára. Havia, sim, um Joaquim Eduardo
que tinha uma loja de quinquilherias no bairro...
E se fosse o negocio com elle bem ia, que era
um homem de bem...
—Lérias! lérias! interrompeu o conego
impaciente.
Resolveu-se elle então a escrever. E instado pelo
padre Amaro (que não cessava de lhe representar o
que a S. Joanneira e elle mesmo, conego Dias, soffreria
com o escandalo) chegou a auctorisar ao seu
amigo da capital as despezas necessarias para empregar
a policia. A resposta demorou-se, mas veio
emfim, promettedora e magnifica! O habil policia
Mendes descobrira João Eduardo! Somente não lhe
sabia ainda a morada, avistára-o apenas n'um
café;
mas em dois ou tres dias o amigo Mendes promettia
informações precisas.
O desespero dos dois sacerdotes, porém, foi grande
quando, d'ahi a dias, o amigo do conego escreveu
que o indivíduo, que o habil policia Mendes
tomára
por João Eduardo, n'um café da Baixa, sobre
signaes incompletos, era um moço de Santo Thyrso
que estava na capital a fazer concurso para delegado...
E havia tres libras e dezesete tostões de despeza.
—Dezesete demonios! rugiu o conego, voltando
para Amaro furioso. E no fim de contas foi o senhor
que gozou, que se refocillou, e sou eu que estou
aqui a arrasar a minha saude com estas andadas, e
a fazer desembolsos d'esta ordem!
[497]
Amaro, dependente do padre-mestre, vergou os
hombros á injuria.
Mas não estava nada perdido, graças a Deus. A
Dionysia lá andava no faro!
Amelia recebia estas noticias com desconsolação.
Depois das primeiras lagrimas, a irremediavel necessidade
impuzera-se-lhe, muito forte. Por fim que
lhe restava? D'ahi a dois ou tres mezes, com aquelle
seu desgraçado corpo de cinta fina e quadris estreitos,
não poderia esconder o seu estado. E que faria
então? Fugir de casa, ir como a filha do tio Cegonha
para Lisboa, ser espancada no Bairro Alto pelos marujos
inglezes, ou como a Joanninha Gomes, que fôra
a amiga do padre Abilio, levar pela cara os ratos
mortos que lhe atiravam os soldados? Não. Então,
tinha de casar...
Depois vir-lhe-hia um menino ao fim dos sete
mezes (era tão frequente!), legitimado pelo sacramento,
pela lei e por Deus Nosso Senhor... E o seu
filho teria um papá, receberia uma
educação, não
seria um engeitado...
Desde que o senhor parocho lhe affirmára, em
juramento, que o escrevente
não estava
realmente
excommungado, que com algumas
orações se lhe
levantaria a excommunhão, os seus escrupulos devotos
esmoreciam como brazas que se apagam. No
fim, em todos os erros do escrevente, ella só podia
[498]
descobrir a incitação do ciume e do amor:
fôra n'um
despeito de namorado que escrevera o
Communicado,
fôra n'um furor de paixão trahida que
espancára
o senhor parocho... Ah! não lhe perdoava esta brutalidade!
Mas que castigado fôra! Sem emprego, sem
casa, sem mulher, tão perdido na miseria anonyma
de Lisboa que nem a policia o achava! E tudo por
ella. Pobre rapaz! No fim não era feio... Fallavam
da sua impiedade; mas vira-o sempre muito attento
á missa, rezava todas as noites uma
oração especial
a S. João que ella lhe dera impressa n'um cartão
bordado...
Com o emprego no governo civil podiam ter
uma casinha e uma criada... Porque não seria feliz,
por fim? Elle não era rapaz de botequins, nem de
vadiagem. Tinha a certeza de o dominar, de lhe impôr
os seus gostos e as suas devoções. E seria
agradavel
sahir aos domingos de manhã para a missa,
arranjada, de marido ao lado, comprimentada de todos,
podendo, á face da cidade, passear o seu filho
muito vistoso na sua touca de rendas e na sua grande
capa franjada! Quem sabe se, então, pelos carinhos
que désse ao pequerrucho e pelos confortos de
que cercasse o homem, o céo e Nossa Senhora se
não abrandariam! Ah! para isso faria tudo, para ter
outra vez no céo aquella amiga, a sua querida Nossa
Senhora, amavel e confidente, sempre prompta a curar-lhe
as dôres, a livral-a de infortunios, occupada
a preparar-lhe no paraiso um luminoso conchego!
Pensava assim horas inteiras, sobre a sua costura;
[499]
pensava assim, mesmo no caminho para casa do
sineiro; e depois de ter estado um momento com a
Tótó, muito quieta agora, extenuada da febre
lenta,
quando subia ao quarto, a primeira pergunta a Amaro
era:
—Então, ha alguma novidade?
Elle franzia a testa, rosnava:
—A Dionysia lá anda... Porquê, tens muita
pressa?
—Tenho muita pressa, tenho, respondia ella
muito séria, que a vergonha é para mim.
Elle calava-se; e havia tanto odio como amor
nos beijos que lhe dava—áquella mulher que se resignava
assim tão facilmente a ir dormir com outro!
Tinha ciumes d'ella—que lhe tinham vindo ultimamente
desde que a vira conformar-se áquelle
casamento odioso! Agora, que ella já não chorava,
começava a enfurecer-se da falta das suas lagrimas;
e secretamente desesperava-se d'ella não preferir a
vergonha com elle á rehabilitação com
o outro. Não
lhe custaria tanto se ella continuasse a barafustar,
a fazer um alarido de prantos; isso seria uma prova
séria de amor, em que a sua vaidade se banharia
deliciosamente;
mas aquella aceitação do escrevente
agora, sem repugnancia e sem gestos d'horror, indignava-o
como uma traição. Viera a suspeitar que
a ella no fundo não lhe
desagradava a
mudança.
João Eduardo por fim era um homem; tinha a força
[500]
dos vinte e seis annos, os attractivos d'um bello bigode.
Ella teria nos braços d'elle o mesmo delirio
que tinha nos seus... Se o escrevente fosse um velho
consumido de rheumatismo, ella não mostraria a mesma
resignação. Então, por
vingança do padre, para
«lhe desmanchar o arranjo», desejava que
João
Eduardo não apparecesse: e muitas vezes, quando a
Dionysia lhe vinha dar conta dos passos, dizia-lhe
com um mau sorriso:
—Não se canse. O homem não apparece. Deixe
lá... Não vale a pena ganhar dôr de
peito...
Mas a Dionysia tinha o peito forte—e uma noite
veio, triumphante, dizer-lhe que estava na pista
do homem! Vira emfim o Gustavo, o typographo, entrar
para a casa de pasto do tio Osorio. Ao outro dia
ia-lhe fallar, e havia de se saber tudo...
Foi uma hora amargurada para Amaro. Aquelle
casamento, por que anciára no primeiro momento de
terror, agora, que o sentia seguro, parecia-lhe a catastrophe
da sua vida.
Perdia Amelia para sempre!... Aquelle homem
que elle expulsára, que elle supprimira, alli lhe vinha,
por uma d'estas peripecias malignas em que a
Providencia se compraz, levar-lhe a mulher legitimamente.
E a idéa que elle ia tel-a nos braços,
que ella lhe daria os beijos fogosos que lhe dava a
elle, que balbuciaria
oh,
João!—como agora murmurava
oh, Amaro!—enfurecia-o. E
não podia evitar
o casamento; todos o queriam, ella, o conego,
até a Dionysia com o seu zêlo venal!
[501]
De que lhe servia ser um homem com sangue
nas veias e as paixões fortes d'um corpo são?
Tinha
de dizer adeus á rapariga,—vêl-a partir de
braço
dado com o
outro, com o marido, irem
ambos para
casa brincar com o filho, um filho que era seu! E elle
assistiria á destruição da sua alegria
de braços cruzados,
esforçando-se por sorrir, voltaria a viver só,
eternamente só, e a relêr o Breviario!... Ah! se
fosse no tempo em que se supprimia um homem com
uma denuncia d'heresia!... Que o mundo recuasse
duzentos annos, e o snr. João Eduardo havia de saber
o que custa achincalhar um sacerdote e casar
com a menina Amelia...
E esta idéa absurda, na exaltação da
febre em
que estava, apoderou-se tão fortemente da sua
imaginação
que toda a noite a sonhou—n'um sonho vivido,
que muitas vezes depois contou rindo ás senhoras.
Era uma rua estreita batida d'um sol ardente;
entre as altas portas chapeadas, uma populaça
apinhava-se; pelos balcões, fidalgos muito bordados
retorciam o bigode cavalheiresco; olhos reluziam,
entre as pregas das mantilhas, accêsos n'um furor
santo. E pela calçada, a procissão do
auto-de-fé movia-se
devagar, n'um vasto ruido, sob o tremendo
dobre a finados de todos os sinos visinhos. Adiante
os flagellantes semi-nus, de capuz branco sobre o
rosto, dilaceravam-se, uivando o
Miserere, com as
costas empastadas de sangue: sobre um jumento ia
João Eduardo, idiota de terror, com as pernas pendentes,
a camisa alva sarapintada de diabos côr
[502]
de fogo, tendo ao peito um rotulo em que estava
escripto—
POR HEREJE;
por traz um
medonho
servente do Santo Officio espicaçava furiosamente o
jumento; e ao pé um padre, erguendo alto o crucifixo,
berrava-lhe aos ouvidos os conselhos do arrependimento.
E elle, Amaro, caminhava ao lado cantando
o
Requiem, de Breviario aberto n'uma
mão,
com a outra abençoando as velhas, as amigas da rua
da Misericordia que se agachavam para lhe beijar a
alva. Ás vezes voltava-se para gozar aquella pompa
lugubre, e via então a longa fila da confraria
dos Nobres: aqui era um personagem pansudo e
apopletico, além uma face de mystico com um bigode
feroz e dois olhos chammejantes; cada um levava
uma tocha accêsa, e na outra mão sustentava o
chapéo cuja pluma negra varria o chão. Os
capacetes
dos arcabuzeiros reluziam; uma cólera devota
contorcia as faces esfomeadas do populacho; e o
prestito ondeava nas tortuosidades da rua, entre o
clamor do canto-chão, os gritos dos fanaticos, o dobrar
aterrador dos sinos, o tlim-tlim das armas, n'um
terror que enchia toda a cidade,—aproximando-se
da platafórma de tijolo onde já fumegavam as
pilhas
de lenha.
E o seu desengano foi grande, depois d'aquella
gloria ecclesiastica do sonho, quando a criada o veio
acordar cedo com agua quente para a barba.
Era pois n'esse dia que se ia saber do snr. João
Eduardo, e escrever-se-lhe!... Devia encontrar-se
com Amelia ás onze horas; e foi a primeira coisa
[503]
que lhe disse, atirando a porta do quarto com mau
modo:
—O homem appareceu... Pelo menos appareceu
o amigo intimo, o typographo, que sabe onde a
bêsta pára...
Amelia, que estava n'um dia de desalento e terror,
exclamou:
—Ainda bem, que se acaba este tormento!
Amaro teve um risinho repassado de fel:
—Então agrada-te, hein?
—Se te parece, n'este susto em que ando...
Amaro teve um gesto desesperado, d'impaciencia.
Susto! Não estava má hypocrisia! Susto de
quê?
Com uma mãi que era uma babosa, que lhe consentia
tudo... O que era, era que queria casar...
Queria outro! Não lhe agradava aquelle divertimento
pela manhã, de fugida... Queria a coisa commodamente,
em casa. Imaginava a menina que o illudia a
elle, um homem de trinta annos e quatro annos de
experiencia de confissão? Via bem através
d'ella...
Era como as outras, queria mudar d'homem.
Ella não respondia, muito pallida. E Amaro, furioso
com o seu silencio:
—Calas-te, está claro... Que has de tu dizer? Se
é a verdade pura!... Depois dos meus sacrificios...
Depois do que tenho soffrido por ti... Apparece-te o
outro, larga para o outro!
Ella ergueu-se, e batendo o pé, desesperada:
—Foste tu que quizeste, Amaro!
—Pudera! Se imaginas que me havia de perder
[504]
por tua causa! Está claro que quiz!...—E olhando-a
d'alto, fazendo-lhe sentir um desprezo d'alma
muito recta:—Mas nem vergonha tens de mostrar a
alegria, o furor de ir para o homem!... És uma
desavergonhada,
é o que é...
Ella, sem uma palavra, branca como a cal, agarrou
o mantelete para sahir.
Amaro, exasperado, segurou-a violentamente pelo
braço:
—P'ra onde vaes? Olha bem p'ra mim. És uma
desavergonhada... Estou-te a dizer. Estás morta por
dormir com o outro...
—Pois acabou-se, estou! disse ella.
Amaro, perdido, atirou-lhe uma bofetada.
—Não me mates! gritou ella. É o teu filho!
Elle ficou diante d'ella, enleado e tremulo: áquella
palavra, áquella idéa do seu filho, uma piedade,
um amor desesperado revolveu todo o seu sêr: e
arremessando-se
sobre ella, n'um abraço que a esmagava,
como querendo sepultal-a no peito, absorvel-a
toda só para si, atirando-lhe beijos furiosos que a
magoavam,
pela face e pelos cabellos:
—Perdôa, murmurava, perdôa, minha Ameliasinha!
Perdôa, que estou doido!
Ella soluçava, n'um pranto nervoso;—e toda a
manhã foi no quarto do sineiro um delirio d'amor a
que aquelle sentimento da maternidade, ligando-os
como um sacramento, dava uma ternura maior, um
renascimento incessante de desejo, que os lançava
cada vez mais ávidos nos braços um do outro.
[505]
Esqueceram as horas; e Amelia só se decidiu a
saltar do leito quando ouviram em baixo na cozinha
a muleta do tio Esguelhas.
Emquanto ella se arranjava á pressa diante do
bocado d'espelho que ornava a parede, Amaro diante
d'ella contemplava-a com melancolia, vendo-a a passar
o pente nos cabellos—nos cabellos que elle
dentro em breve não tornaria a vêr pentear; deu
um grande suspiro, disse-lhe enternecido:
—Estão a acabar os nossos bons dias, Amelia.
És tu que queres... Has de te lembrar algumas vezes
d'estas boas manhãs...
—Não digas isso! fez ella com os olhos arrazados
d'agua.
E atirando-se-lhe de repente ao pescoço, com a
antiga paixão dos tempos felizes, murmurou-lhe:
—Hei de ser sempre a mesma para ti... Mesmo
depois de casada.
Amaro agarrou-lhe as mãos sôfregamente:
—Juras?
—Juro.
—Pela hostia sagrada?
—Juro pela hostia sagrada, juro por Nossa Senhora!
—Sempre que tenhas occasião?
—Sempre!
—Oh, Ameliasinha! oh, filha! não te trocava
por uma rainha!
Ella desceu. O parocho, dando uma arranjadella
ao leito, ouvia-a em baixo fallar tranquillamente
[506]
com o tio Esguelhas; e dizia comsigo que era uma
grande rapariga, capaz d'enganar o diabo, e que
havia de fazer andar n'uma roda viva o pateta do
escrevente.
Aquelle «pacto», como lhe chamava o padre
Amaro, tornou-se entre elles tão irrevogavel que
já
lhe discutiam tranquillamente os detalhes. O casamento
com o escrevente consideravam-no como uma
d'estas necessidades que a sociedade impõe e que
suffoca as almas independentes, mas a que a natureza
se subtrae pela menor fenda, como um gaz
irreductivel. Diante de Nosso Senhor, o verdadeiro
marido d'Amelia era o senhor parocho; era o marido
da alma, para quem seriam guardados os melhores
beijos, a obediencia intima, a vontade; o outro
teria quando muito o
cadaver...
Já ás vezes
mesmo tramavam o plano habil das correspondencias
secretas, dos logares occultos de
rendez-vous...
Amelia estava de novo, como nos primeiros tempos,
em todo o fogo da paixão. Diante da certeza
que em algumas semanas o casamento ia tornar
«tudo branco como a neve», os seus transes tinham
desapparecido, o mesmo terror da vingança do céo
calmára-se. Depois, a bofetada que lhe dera Amaro
fôra como a chicotada que esperta um cavallo que
preguiça e se atraza: e a sua paixão,
sacudindo-se
e relinchando forte, ia-a de novo levando no impeto
d'uma carreira fogosa.
[507]
Amaro, esse regosijava-se. Ainda ás vezes, decerto,
a idéa d'aquelle homem, de dia e de noite
com ella, importunava-o... Mas, no fundo, que
compensações!
Todos os perigos desappareciam magicamente,
e as sensações requintavam. Findavam para
elle aquellas atrozes responsabilidades da
seducção,
e ficava-lhe a mulher mais appetitosa.
Instava agora com a Dionysia para que acabasse
emfim aquella fastidiosa campanha. Mas a boa
mulher, decerto para se fazer pagar melhor pela
multiplicidade d'esforços, não podia descobrir o
typographo—aquelle
famoso Gustavo que possuia, como
os anões de romance de cavallaria, o segredo da
torre maravilhosa onde vive o principe encantado.
—Oh, senhor! dizia o conego, isso até já cheira
mal! Ha quasi dois mezes á busca d'um patife!...
Homem, escreventes não faltam. Arranje-se outro!
Mas emfim, uma noite em que elle entrára a descansar
em casa do parocho, a Dionysia appareceu;
e exclamou logo da porta da sala de jantar, onde os
dois padres tomavam o seu café:
—Até que emfim!
—Então, Dionysia?
A mulher, porém, não se apressou: sentou-se
mesmo, com licença dos senhores, porque vinha derreada...
Não, o senhor conego não imaginava os
passos que se vira obrigada a dar... O maldito typographo
lembrava-lhe a historia, que lhe contavam
em pequena, d'um veado que estava sempre á vista
e que os caçadores a galope nunca alcançavam. Uma
[508]
perseguição assim!... Mas, finalmente
apanhára-o...
E tocadito, por signal.
—Acabe, mulher! berrou o conego.
—Pois aqui está, disse ella. Nada!
Os dois sacerdotes olharam-na mystificados.
—Nada quê, creatura?
—Nada. O homem foi p'r'ó Brazil!
O Gustavo recebera de João Eduardo duas cartas:
na primeira, onde lhe dava a morada, para o
lado do Poço do Borratem, annunciava-lhe a
resolução
de ir para o Brazil; na segunda dizia-lhe que
mudára de casa, sem lhe indicar a nova
adresse, e
declarava que pelo proximo paquete embarcava para
o Rio; não dizia nem com que dinheiro, nem com
que esperanças. Tudo era vago e mysterioso. Desde
então, havia um mez, o rapaz não
tornára a escrever,
d'onde o typographo concluia que ia a essa
hora nos altos mares...—«Mas havemos de vingal-o!»
tinha elle dito a Dionysia.
O conego remexia pausadamente o seu café, embatocado.
—E esta, padre-mestre? exclamou Amaro, muito
branco.
—Acho-a boa.
—Diabo levem as mulheres, e o inferno as confunda!
disse surdamente Amaro.
—Amen, respondeu gravemente o conego.
XXI
Que lagrimas quando Amelia soube a noticia! A
sua honra, a paz da sua vida, tantas felicidades combinadas,
tudo perdido e sumido nas brumas do mar,
a caminho para o Brazil!
Foram as semanas peores da sua vida. Ia para o
parocho, banhada em lagrimas, perguntando-lhe todos
os dias o que havia de fazer.
Amaro, succumbido, sem idéa, ia para o padre-mestre.
—Fez-se tudo o que se pôde, dizia o conego desolado.
É aguentar. Não se mettesse n'ellas!
E Amaro voltava para Amelia com consolações
muito murchas:
—Tudo se ha de arranjar, é esperar em Deus!
[510]
Era bom o momento para contar com Deus, quando
Elle, indignado, a acabrunhava de miserias! E
aquella indecisão, n'um homem e n'um padre, que
devia ter a habilidade e a força de a salvar,
desesperavam-na;
a sua ternura por elle sumia-se como
a agua que a areia absorve; e ficava um sentimento
confuso em que sob o desejo persistente já transluzia
o odio.
Espaçava agora de semana a semana os encontros
na casa do sineiro. Amaro não se queixava;
aquellas boas manhãs do quarto do tio Esguelhas,
eram sempre estragadas com queixumes; cada beijo
tinha um rastro de soluços; e aquillo enervava-o
tanto, que lhe vinham desejos de se atirar tambem
de bruços para a enxerga e chorar toda a sua amargura.
No fundo accusava-a de exagerar os seus embaraços,
de lhe communicar um terror desproporcionado.
Outra mulher, de melhor senso, não faria semelhante
espalhafato... Mas quê, uma beata hysterica,
toda nervos, toda medo, toda exaltação!... Ah,
não havia duvida, fôra «uma famosa
asneira»!
Tambem Amelia pensava que fôra «uma
asneira».
E não ter nunca imaginado que aquillo lhe poderia
succeder! Qual! Como mulher, correra para o
amor, toda tonta, certa que escaparia, ella,—e agora
que sentia nas entranhas o filho, eram as lagrimas
e os espantos e as queixas! A sua vida era lugubre:
de dia tinha de se conter diante da mãi,
applicar-se á sua costura, conversar, affectar felicidade...
[511]
Era de noite que a imaginação desencadeada a
torturava com uma incessante phantasmagoria de
castigos, d'este e do outro mundo, miserias, abandonos,
desprezo da gente honrada e chammas do purgatorio...
Foi então que um acontecimento inesperado veio
fazer diversão áquella anciedade que se ia
tornando
um habito morbido do seu espirito. Uma noite a criada
do conego appareceu, esfalfada de correr, a dizer
que a snr.
a D. Josepha estava á
morte.
Na vespera a excellente senhora sentira-se doente
com uma pontada no lado, mas insistira em ir á Senhora
da Incarnação rezar a sua corôa; voltou
transida,
com uma dôr maior e uma ponta de febre; e
n'essa tarde, quando o doutor Gouvêa foi chamado,
tinha-se declarado uma pneumonia aguda.
A S. Joaneira correu logo a installar-se lá como
enfermeira. E então, durante semanas, na tranquilla
casa do conego, foi um alvoroço de
dedicações afflictas:
as amigas, quando se não espalhavam pelas
igrejas a fazer promessas e a implorar os seus santos
devotos, estavam lá em permanencia, sahindo e entrando
no quarto da doente com passos de phantasmas,
accendendo aqui e além lamparinas ás imagens,
torturando o doutor Gouvêa com perguntas
piegas. Á noite na sala, com o candieiro a meia luz,
era pelos cantos um cochichar de vozes lugubres; e
ao chá, entre cada mastigadella de torrada, havia
suspiros, lagrimas furtivamente limpadas...
O conego lá estava a um canto, aniquilado, succumbido
[512]
com aquella brusca apparição da doença
e do seu scenario melancolico—as garrafadas de
botica enchendo as mesas, as entradas solemnes do
medico, as faces compungidas que vem saber se ha
melhoras, o halito febril espalhado em toda a casa,
o timbre funerario que toma o relogio de parede no
abafamento de todo o ruido, as toalhas sujas que ficam
dias no logar em que cahiram, o anoitecer de
cada dia com a sua ameaça de treva eterna... De
resto, um pezar sincero prostrava-o; havia cincoenta
annos que vivia com a mana e era animado por
ella; o longo habito tornára-lh'a cara; e as suas
caturrices, as suas toucas negras, o seu espalhafato
pela casa faziam como uma parte mesma de seu
sêr... Além d'isso, quem sabe se a morte,
entrando-lhe
em casa, para poupar passos, o não levaria
tambem!...
Para Amelia aquelle tempo foi um allivio; ao
menos ninguem pensava, ninguem reparava n'ella;
nem a sua face triste e os vestigios de lagrimas pareceriam
estranhos, n'aquelle perigo em que estava
a madrinha. Demais os serviços de enfermeira occupavam-n'a:
como era a mais forte e a mais nova,
agora que a S. Joaneira estava estafada de vigilias,
era ella que passava as longas noites á beira de D.
Josepha: e não havia então desvelos que
não tivesse,
para abrandar Nossa Senhora e o céo com aquella
caridade pela doente, para merecer igual piedade
quando o seu dia viesse de estar tambem prostrada
n'um leito... Vinha-lhe agora, sob a impressão
[513]
funebre que se exhalava da casa, o presentimento
repetido que morreria de parto; ás vezes só,
embrulhada
no seu chale aos pés da doente, ouvindo-lhe
o gemer monotono, enternecia-se sobre a sua propria
morte que julgava certa, e molhavam-se-lhe os
olhos de lagrimas, n'uma saudade vaga de si mesma,
da sua mocidade e dos seus amores... Ia então
ajoelhar-se junto da commoda onde uma lamparina
bruxoleava diante d'um Christo projectando sobre o
papel claro da parede a sua sombra disforme que se
quebrava no tecto; e alli ficava rezando, pedindo a
Nossa Senhora que não lhe recusasse o paraiso...
Mas a velha mexia-se com um ai doloroso; ia então
aconchegar-lhe a roupa, fallar-lhe baixo. Vinha depois
á sala vêr no relogio se era o momento do remedio;
e estremecia ás vezes, sentindo vir do quarto
proximo um pio de flautim ou um som rouco de
trombone; era o conego a resonar.
Emfim, uma manhã, o doutor Gouvêa declarou
D. Josepha livre de perigo. Foi um vivo regosijo para
as senhoras—certa, cada uma, que aquillo era
devido á intervenção particular do seu
santo devoto.
E d'ahi a duas semanas houve uma festa na casa,
quando D. Josepha, pela primeira vez, amparada nos
braços de todas as amigas, deu dois passos tremulos
no quarto. Pobre D. Josepha, o que d'ella fizera a
doença! Aquella vozinha irritada, em que as palavras
eram despedidas como settas envenenadas, assemelhava-se
agora apenas a um som expirante,
quando, n'um esforço ancioso da vontade, pedia a
escarradeira
[514]
ou o xarope. Aquelle olhar sempre álerta,
escrutador e maligno, estava hoje como refugiado
no fundo das orbitas, assustado da luz, das sombras
e dos contornos das coisas. E o seu corpo, tão
têso outr'ora, d'uma seccura de ramo de sarmento,
agora ao cahir no fundo da poltrona, sob a trapalhada
dos agasalhos, parecia um trapo tambem.
Mas emfim o doutor Gouvêa, apesar d'annunciar
uma convalescença longa e delicada, dissera rindo
ao conego, diante das amigas (depois de ter visto
D. Josepha manifestar o seu primeiro desejo, o desejo
de se chegar á janella), que com muita cautela,
tonicos, e as orações de todas aquellas boas
senhoras—a
mana estava ainda para amores...
—Ai, doutor, exclamou D. Maria, as nossas
orações
não lhe hão de faltar...
—E eu não lhe hei de faltar com os tonicos,
disse o doutor. De modo que, o que resta é
congratularmo-nos.
Aquella jovialidade do doutor era para todos
como a certeza da saude proxima.
E d'ahi a dias, o conego vendo aproximar-se
o fim d'agosto, fallou de alugar casa na Vieira, como
costumava um anno sim outro não, para ir tomar
os seus banhos de mar. O anno passado não
fôra. Este era o anno de praia...
—E a mana lá, n'aquelles ares saudaveis da beira-mar,
é que acaba de ganhar forças e carnes...
Mas o doutor Gouvêa desapprovou a jornada. O
ar muito picante e muito rico do mar não convinha
[515]
á fraqueza de D. Josepha. Era preferivel irem para
a quinta da Ricoça, nos Poyaes, logar abrigado e muito
temperado.
Foi um desgosto para o pobre conego, que prodigalisou
as lamurias. O quê! ir enterrar-se todo o
verão, o melhor tempo do anno, na Ricoça! E os
seus banhos, meu Deus, os seus banhos?
—Veja o senhor,—dizia elle a Amaro, uma noite
no escriptorio,—veja o que eu tenho sofrido...
Durante a doença, que desarranjo, que desordem
na casa! Chá fôra d'horas, jantar esturrado! E os
cuidados que tive, que me emmagreceram... E agora,
quando eu pensava poder ir refazer-me para a
praia, não senhor, vai p'r'á Ricoça,
dispensa os teus
banhos... Isto é o que eu chamo sofrer! E no fim
de tudo não fui eu que estive doente. Mas sou eu
que as aguento... Perder dois annos a fio os meus
banhos!...
Amaro, então, deu de repente uma punhada na
mesa, e exclamou:
—Homem, veio-me uma boa idéa!
O conego olhou-o com duvida, como se não achasse
possivel a uma intelligencia humana descobrir o
fim dos seus males.
—Quando digo uma boa idéa, padre-mestre, devia
dizer uma idéa sublime!
—Acabe, creatura...
—Escute. O senhor vai p'r'á Vieira, e a S. Joanneira,
está claro, vai tambem. Naturalmente alugam
[516]
casa um ao pé do outro, como ella me disse que
tinham feito ha dois annos...
—Adiante...
—Bem. Aqui temos a S. Joanneira na Vieira.
Agora, a senhora sua mana parte p'r'á Ricoça.
—E então a creatura ha de ir só?
—Não! exclamou Amaro em triumpho. Vai com
a Amelia! A Amelia vai-lhe servir de enfermeira!
Vão ambas sós! e lá na
Ricoça, n'aquelle buraco
onde não vai viva alma, n'aquelle casarão onde
póde uma pessoa viver sem que ninguem em roda
suspeite, lá é que a rapariga tem o filho! Hein,
que
lhe parece?
O conego erguera-se com os olhos redondos
d'admiração.
—Homem, famosa idéa!
—É que concilia tudo! O senhor toma os seus
banhos. A S. Joanneira, longe, não sabe o que se
passa. Sua mana goza os ares... A Amelia tem um
sitio escondido p'r'á coisa... Á
Ricoça ninguem a
vai vêr... A D. Maria tambem vai p'r'á Vieira. As
Gansosos idem. A rapariga deve ter o bom successo
ahi pelos principios de novembro... Da Vieira, e
isso fica por sua conta, não volta ninguem dos nossos
até principios de dezembro... E quando nos reunirmos
de novo está a rapariga limpa e fresca.
—Pois senhores, por ser a primeira idéa que
vossê tem n'estes dois ultimos annos, é uma grande
idéa!
[517]
—Obrigado, padre-mestre.
Mas havia uma difficuldade feia: era o ir á D. Josepha,
á rigorista D. Josepha, tão implacavel
ás fraquezas
do sentimento, á D. Josepha que pedia para
as mulheres frageis as antigas penalidades gothicas—as
letras marcadas na testa com ferro em braza,
os açoutes nas praças publicas, os
in pace tenebrosos—ir
á D. Josepha e pedir-lhe para ser cumplice
d'um parto!
—A mana vai dar urros! disse o conego.
—Nós veremos, padre-mestre, replicou Amaro
repoltreando-se e balouçando a perna, muito certo
do seu prestigio devoto. Nós veremos... Hei de lhe
eu fallar... E quando lhe tiver contado umas lérias...
Quando lhe tiver representado que é para ella um
caso de consciencia encobrir a pequena... Quando
lhe lembrar que nas vesperas da morte é que se deve
fazer alguma boa acção, para não se
apresentar á
porta do paraiso com as mãos vazias... Nós
veremos!
—Talvez, talvez, disse o conego. A occasião é
boa, porque a pobre mana está fraquita do juizo e
leva-se como uma criança.
Amaro ergueu-se, esfregando vivamente as mãos:
—Pois é mãos á obra! É
mãos á obra!
—E é necessario não perder tempo, porque o
escandalo estala. Olhe que esta manhã, lá em
casa,
a besta do Libaninho pôz-se a gracejar com a rapariga,
a dizer-lhe que tinha a cinta grossa...
—Oh, que patife! rugiu o parocho.
Não, não seria por mal. Mas que a rapariga
[518]
tem engrossado, é facto... Com esta
atarantação da
doença ninguem tem tido olhos para nada... Mas
agora póde-se reparar... É sério,
amigo, é sério!
Por isso, logo na manhã seguinte, Amaro foi, segundo
a expressão do conego, «dar a grande abordagem
á mana».
Antes, porém, explicou em baixo no escriptorio
ao padre-mestre o seu plano: primeiro, ia dizer a
D. Josepha que o conego estava na inteira ignorancia
do desastre da Ameliasinha, e que elle, Amaro, o sabia,
não em segredo de confissão (n'esse caso
não
o poderia revelar) mas pelas confidencias secretas
dos dois—de Amelia e do homem casado que a seduzira!...
Do homem casado, sim!... Porque emfim
era necessario provar á velha que havia a impossibilidade
d'uma reparação legitima...
O conego coçava a cabeça descontente:
—Isso não vai bem arranjado, disse elle. A mana sabe
bem que não iam homens casados á rua da
Misericordia.
—E o Arthur Couceiro? exclamou Amaro, sem
escrupulo.
O conego largou a rir, com gosto. O pobre Arthur,
sem dentes, cheio de filhos, com os seus olhos
de carneiro triste, accusado de perder virgens!...
Não, essa era boa!
—Não péga, parocho amigo, não
péga! Outra,
outra...
[519]
Mas então subitamente partiu dos labios d'ambos
o mesmo nome,—o Fernandes, o Fernandes da loja
de panos! Bello homem, que Amelia admirava
muito! Sempre que sahia ia-lhe á loja: tinha mesmo
havido indignação na rua da Misericordia, havia
dois annos, com a ousadia do Fernandes que acompanhára
Amelia pela estrada de Marrazes até ao Morenal!
Já se sabe, não se dizia explicitamente
á mana,—mas
dava-se-lhe a entender que fôra o Fernandes.
E Amaro subiu rapidamente para o quarto da
velha, que era por cima do escriptorio. Esteve lá
meia hora, uma longa, uma pesada meia hora para
o conego, que apenas podia ouvir em cima, ora rangerem
as solas d'Amaro, ora a tosse cavernosa da
velha... E no seu passeio habitual pelo escriptorio,
da estante para a janella, com as mãos atraz das
costas e a caixa de rapé nos dedos, ia considerando
quantos incommodos, quantas despezas lhe traria
ainda aquelle «divertimento do senhor parocho»!
Tinha de ter a rapariga na quinta cinco ou seis mezes...
Depois o medico, a parteira que era elle naturalmente
que havia de pagar... Depois algum enxoval
para o pequeno... E que se lhe havia de fazer,
ao pequeno?... Na cidade, a Roda fôra supprimida;
em Ourem, como os recursos da Misericordia
eram escassos e a affluencia dos engeitados escandalosa,
tinham posto um homem ao pé da sineta da
Roda, para interrogar e pôr embaraços; havia
indagações
de paternidade, restituições de
crianças; e a
[520]
auctoridade, finoria, combatia o excesso dos engeitamentos
com o terror dos vexames...
Emfim o pobre padre-mestre via diante de si todo
um erriçamento de difficuldades para lhe sacudir
a pachorra e estragar-lhe a digestão...—Mas o
excellente conego, no fundo, não se indignava; sempre
tivera uma affeição de velho mestre pelo parocho;
para a Amelia sempre o inclinára um fraco
meio paternal, meio lubrico; e mesmo já sentia pelo
«pequeno» uma vaga condescendencia d'avô.
A porta abriu-se, e o parocho appareceu triumphante.
—Tudo ás mil maravilhas, padre-mestre! Que
lhe dizia eu?
—Consentiu?
—Em tudo. Não foi sem difficuldade... Ia-se
abespinhando. Fallei-lhe do homem casado... Que
a rapariga estava com a cabeça perdida, queria-se
matar... Que se ella não consentisse em encobrir
a coisa era responsavel por uma desgraça... Lembre-se
a senhora que está com os pés p'r'á
cova,
que Deus póde chamal-a d'um momento a outro, e
que se tiver na consciencia este peso, não ha padre
que lhe dê a absolvição!... Lembre-se
que morre
p'r'áhi como um cão!...
—Emfim, disse o conego approvando, fallou-lhe
com prudencia...
—Disse-lhe a verdade. Agora trata-se de fallar
á S. Joanneira, e de a levar p'r'á Vieira quanto
antes...
[521]
—Outra coisa, amigo, interrompeu o conego.
Tem vossê pensado no destino que se ha de dar ao
fructo?
O parocho coçou desconsoladamente a cabeça:
—Ah, padre-mestre... Isso é outra difficuldade...
Tem-me apoquentado muito... Naturalmente
dal-o a criar a alguma mulher, longe, lá p'ra
Alcobaça
ou p'ra Pombal... A felicidade, padre-mestre,
era que a criança nascesse morta!
—Era um anjinho mais... rosnou o conego sorvendo
a sua pitada.
Logo n'essa noite elle fallou á S. Joanneira da
ida para a Vieira, em baixo na saleta onde ella estava
arranjando pires de marmelada que andavam a
seccar para a convalescença de D. Josepha.
Começou
por dizer que lhe alugára a casa do Ferreiro...
—Mas isso é um nicho! exclamou ella logo. Onde
hei de eu metter a pequena?
—Ora ahi é que está. É que justamente
a Amelia
d'esta vez não vai á Vieira.
—Não vai!?
Foi só então que o conego lhe explicou que a
mana não podia ir só para a Ricoça, e
que elle tinha
pensado em mandar com ella Amelia... Era
uma idéa que lhe viera n'essa manhã.
—Eu não posso ir, tenho de tomar os meus banhos,
a senhora bem sabe... A pobre de Christo
[522]
não ha de estar para lá só, com uma
criada. Portanto...
A S. Joanneira teve um silenciosinho desconsolado:
—Isso é verdade. Mas olhe, para lhe dizer com
franqueza, custa-me bem deixar a pequena... Se
eu pudesse dispensar os banhos, ia eu.
—Qual ia! A senhora vem p'r'á Vieira. Eu tambem
não hei de estar lá só... Sua ingrata,
sua ingrata!...—E
tomando um tom muito sério:—A
senhora veja bem. A Josepha está com os pés
p'r'á
cova. Ella sabe que o que eu tenho para mim chega.
Ella tem affeição á pequena, sempre
é madrinha;
se a vir agora a tratal-a na doença, a estar alli
só com ella uns mezes, fica pelo beiço. Olhe que
a mana ainda vale um par de mil cruzados. A pequena
póde apanhar um bom dote. Não lhe digo
mais nada...
E a S. Joanneira concordou logo—uma vez que
era vontade do senhor conego.
Em cima, Amaro estava contando rapidamente a
Amelia «o grande plano», a scena com a velha: que
ella se promptificára logo, coitadinha, já cheia
de caridade,
desejando até ajudar para o enxoval do pequeno...
—N'ella pódes ter confiança, é uma
santa... De
modo que está tudo salvo, filha. É estar mettida
quatro ou cinco mezes na Ricoça.
Era isso que fazia choramingar Amelia: perder a
estação da Vieira, o divertimento dos banhos!...
Ir
[523]
enterrar-se todo um verão n'aquelle sinistro
casarão
da Ricoça! A unica vez que lá fôra,
já ao fim da
tarde, ficára estarrecida de medo. Tudo tão
escuro,
d'um echo tão concavo... Tinha a certeza que ia
lá
morrer, n'aquelle degredo.
—Tolice! fez Amaro. É dar graças ao Senhor de
me ter inspirado esta idéa de
salvação. Demais tens
a D. Josepha, tens a Gertrudes, o pomar para passear...
E eu vou-te lá vêr todos os dias. Até
has de
gostar, verás.
—Emfim que lhe hei de eu fazer? É aguentar.
E com duas grossas lagrimas nas palpebras, amaldiçoava
intimamente aquella paixão que só amarguras
lhe dava, e que agora, quando toda a Leiria ia
para a Vieira, a forçava a ella a ir fechar-se na
solidão
da Ricoça, ouvindo tossir a velha e os cães uivar
na quinta...—E a mamã, que diria a mamã?
—Que ha de dizer? A D. Josepha não póde ir
p'r'á quinta só, sem uma enfermeira de
confiança!
Não te dê cuidado. O padre-mestre está
lá em baixo
a trabalhal-a... E eu vou ter com ella, que já
aqui estou só ha bocado comtigo, e n'estes ultimos
dias é necessario ter cautelinha...
Desceu. Justamente o conego subia, e encontraram-se
na escada.
—Então? perguntou Amaro ao ouvido do padre-mestre.
—Tudo arranjado. E por lá?
—Idem.
[524]
E no escuro da escada os dois padres apertaram-se
silenciosamente a mão.
D'ahi a dias, depois d'uma scena de prantos,
Amelia partiu com D. Josepha para a Ricoça n'um
char-à-banc.
Tinham arranjado, com almofadas, um recanto
commodo para a convalescente. O conego acompanhava-a,
furioso com aquelle incommodo. E a Gertrudes
ia em cima na almofada, á sombra da montanha
que faziam sobre o tope do carro os bahús de
couro, os cestos, as latas, as trouxas, os saccos de
chita, o açafate onde miava o gato, e um fardo amarrado
com cordas contendo os paineis dos santos mais
queridos de D. Josepha.
Depois, ao fim da semana, foi a jornada da S.
Joanneira para a Vieira, de noite, por causa da calma.
A rua da Misericordia estava atravancada com o
carro de bois, que conduzia as louças, os
enxergões,
o trem de cozinha; e no mesmo
char-à-banc que
fôra á Cortegassa, ia agora a S. Joanneira e a
Ruça
que levava tambem no regaço um açafate com o
gato.
O conego fôra na vespera, só Amaro assistia
á
partida da S. Joanneira. E depois de toda uma azafama,
de galgarem cem vezes de baixo a cima as escadas
por um cestinho que esquecera ou um embrulho
que desapparecia, quando a
Ruça emfim fechou
[525]
a porta á chave, a S. Joanneira, já no estribo do
char-à-banc, rompeu a
chorar.
—Então, minha senhora, então! disse Amaro.
—Ai, senhor parocho, deixar a pequena!... Mal
sabe o que me custa... Parece que a não torno a
vêr. Appareça pela Ricoça,
faça-me essa esmola. Veja
se ella está contente...
—Vá descansada, minha senhora.
—Adeus, senhor parocho. Muito obrigada por
tudo... Ai os favores que lhe devo!
—Tolices, minha senhora... Boa jornada, dê
noticias! Recados ao padre-mestre. Adeus, minha senhora!
adeus, Ruça...
O
char-à-banc partiu. E
pelo mesmo caminho por
onde elle ia rolando, Amaro foi andando devagar
até á estrada da Figueira. Eram então
nove horas,
nascera já o luar d'uma noite calida e serena de
agosto. Uma tenue nevoa luminosa suavisava a paizagem
calada. Aqui e além uma fachada saliente de
casa rebrilhava, batida da lua, entre as sombras do
arvoredo. Ao pé da ponte, parou a olhar melancolicamente
o rio que corria sobre a areia com uma susurração
monotona; nos logares em que as arvores
se debruçavam, havia escuridões cerradas; e
adiante
uma claridade tremia sobre a agua, como um tecido
de filigrana faiscante. Alli esteve, n'aquelle silencio
que o calmava, fumando cigarros e atirando
as pontas para o rio, embebido n'uma tristeza vaga.
Depois, ouvindo as onze, veio voltando para a cidade,
passou pela rua da Misericordia n'um enternecimento
[526]
de recordações: a casa, com as janellas fechadas,
sem as cortinas de cassa, parecia abandonada
para sempre; os vasos de alecrim tinham ficado esquecidos
aos cantos da janella... Quantas vezes
Amelia e elle se tinham encostado áquella varanda!
Havia então um craveiro fresco, e conversando, ella
cortava uma folha, trincava-a nos dentinhos. Tudo tinha
acabado agora!—E na Misericordia, ao lado, o
piar das corujas no silencio dava-lhe uma
sensação
de ruina, de solidão e de fim eterno.
Foi andando para casa, devagar, com os olhos
arrazados d'agua.
A criada veio logo á escada dizer-lhe que o tio
Esguelhas, n'uma afflicção, viera procural-o duas
vezes,
haviam de ser nove horas. A Tótó estava a morrer,
e só queria receber os sacramentos da mão do
senhor parocho.
Amaro, apesar da sua repugnancia supersticiosa
em voltar assim n'essa noite, para um fim tão triste,
ao meio das recordações felizes da sua
paixão, foi,
para obsequiar o tio Esguelhas; mas impressionava-o
aquella morte, coincidindo com a partida d'Amelia, e
como completando a subita dispersão de quanto até
ahi o interessára ou estivera misturado á sua
vida.
A porta da casa do sineiro estava entreaberta, e
na escuridão da entrada topou com duas mulheres
que sahiam suspirando. Foi logo direito á alcova da
paralytica: duas grandes velas de cera, trazidas da
igreja, ardiam sobre uma mesa; um lençol branco
cobria o corpo da Tótó; e o padre Silverio, que
fôra
[527]
decerto chamado por estar de semana, lia o Breviario,
com o lenço nos joelhos, os seus grandes oculos
na ponta do nariz. Ergueu-se apenas viu Amaro:
—Ah, collega, disse muito baixo, andaram a procural-o
por toda a parte... A pobre de Christo queria-o
a vossê... Eu, quando me foram buscar, ia fazer
a partida a casa do Novaes. É a partida do sabbado...
Que scena! Morreu na impenitencia, como
era dos livros. Quando me viu, e que vossê não
vinha,
que espectaculo! Até tive medo que me cuspisse
no crucifixo...
Amaro, sem dar uma palavra, ergueu uma ponta
do lençol, mas deixou-o logo recahir sobre a face
da morta. Depois subiu acima ao quarto onde o sineiro,
estirado sobre a cama, voltado para a parede,
soluçava desesperadamente; estava com elle
outra mulher, que se conservava a um canto, muda
e immovel, com os olhos no chão, no vago aborrecimento
que lhe dava aquelle pesado dever de visinha.
Amaro tocou no hombro do sineiro, fallou-lhe:
—É necessario resignação, tio
Esguelhas... São
decretos do Senhor... Para ella é até uma
felicidade.
O tio Esguelhas voltou-se; e reconhecendo o parocho,
por entre o véo das lagrimas que lhe alagavam
os olhos, tomou-lhe a mão, quiz beijar-lh'a.
Amaro recuou:
—Então, tio Esguelhas!... Deus ha de ser misericordioso,
ha de lhe levar em conta a sua dôr...
Elle não o escutava, sacudido d'um pranto
convulsivo,—emquanto
[528]
a mulher, muito tranquillamente,
limpava ora um ora outro canto do olho.
Amaro desceu; e para alliviar o bom Silverio
d'aquelle serviço excepcional, tomou o seu logar ao
pé da vela, com o Breviario na mão.
Alli ficou até tarde. A visinha ao sahir veio dizer-lhe
que o tio Esguelhas tinha pegado a dormir; e
ella promettia voltar com a amortalhadeira, mal
rompesse a manhã.
Toda a casa então ficou n'aquelle silencio, que a
visinhança do vasto edificio da Sé fazia parecer
mais
soturno; só ás vezes um mocho piava debilmente
nos contrafortes, ou o grosso bordão batia os quartos.
E Amaro, tomado d'um indefinido terror, mas
preso alli por uma força superior da consciencia
sobresaltada,
ia precipitando as orações... Ás vezes
o
livro cahia-lhe sobre os joelhos; e então, immovel,
sentindo por detraz a presença d'aquelle cadaver coberto
do lençol, recordava, n'um contraste amargo,
outras horas em que o sol banhava o pateo, as andorinhas
esvoaçavam, e elle e Amelia subiam rindo
para aquelle quarto onde agora, sobre a mesma cama,
o tio Esguelhas dormitava com soluços mal acalmados...
XXII
O conego Dias recommendára muito a Amaro que
ao menos nas primeiras semanas, para evitar as suspeitas
da mana e da criada, não fosse á
Ricoça. E a
vida d'Amaro tornou-se então mais triste, mais vazia
que outr'ora, quando pela primeira vez deixando
a casa da S. Joanneira viera para a rua das Sousas.
Todos os seus conhecidos estavam fóra de Leiria: D.
Maria da Assumpção na Vieira; as Gansosinhos ao
pé
d'Alcobaça com a tia, a famosa tia que havia dez
annos estava para morrer e para lhes deixar uma
grande herdade. Depois do serviço da Sé, as
horas,
todo o longo dia, arrastavam-se pesadas como chumbo.
Não estaria mais separado de toda a
communicação
humana, se como Santo Antonio vivesse nos
areaes do deserto libyco. Só o coadjutor que, coisa
[530]
singular, nunca lhe apparecia nos tempos felizes,
voltára agora, como o companheiro fatidico das
horas tristes, a visital-o uma, duas vezes por semana,
ao fim do jantar, mais magro, mais chupado,
mais soturno, com o seu eterno guardachuva na
mão. Amaro odiava-o; ás vezes, para o
impôr, fingia-se
todo occúpado n'uma leitura; ou precipitando-se
para a mesa, mal lhe sentia nos degraus as
passadas lentas:
—Amigo coadjutor, desculpe, que estou aqui a
rabiscar uma coisa.
Mas o homem installava-se, com o odioso guardachuva
entre os joelhos:
—Não se prenda, senhor parocho, não se prenda.
E Amaro, torturado por aquella figura lugubre
que não se mexia na cadeira, atirava a penna, furioso,
agarrava o chapéo:
—Não estou hoje p'r'á coisa, vou espairecer.
E á primeira esquina descartava-se bruscamente
do coadjutor.
Ás vezes, farto de solidão, ia visitar o
Silverio.
Mas a felicidade pachorrenta d'aquelle sêr obeso, occupado
em colleccionar receitas de medicina caseira
e em observar as perturbações phantasticas da sua
digestão; os seus constantes louvores do doutor Godinho,
dos pequenos e da senhora; as chalaças obsoletas
que elle repetia havia quarenta annos e a innocente
hilaridade que ellas lhe davam, impacientavam
Amaro. Sahia, enervado, pensando na sorte inimiga
[531]
era a felicidade por fim: porque não havia de elle
ser tambem um bom padre caturra, com uma pequenina
mania tyrannica, parasita regalado d'uma
familia respeitavel, tendo um d'estes sangues tranquillos
que giram sob camadas de gordura, sem perigo
de transbordar e de causar desgraças, como um
riacho que corre por debaixo d'uma montanha?...
Outras vezes ia ao collega Natario, cuja fractura,
mal tratada ao principio, o retinha ainda na cama
com o apparelho na perna. Mas ahi, enjoava-o o aspecto
do quarto—impregnado d'um cheiro d'arnica
e de suor, com uma profusão de trapos ensopados
em malgas vidradas, e esquadrões de garrafas sobre
a commoda entre fileiras de santos. Natario, mal
o via apparecer, rompia em queixas: As cavalgaduras
dos medicos! A sua má sorte habitual! As torturas
a que o forçavam! O atrazo em que estava a medicina
n'este maldito paiz!... E ia salpicando o soalho
negro de expectorações e de pontas de cigarro.
Desde
que estava doente, a saude dos outros, sobretudo dos
amigos, indignava-o como uma offensa pessoal.
—E vossê sempre rijo, hein? Pudera!—murmurava
com rancor.
E pensar que aquella besta do Brito nunca lhe
doera a cabeça! E que o alarve do abbade se gabava
de nunca ter estado na cama depois das sete da
manhã! Animaes!
Amaro então dava-lhe as novidades: alguma carta
que recebera do conego, da Vieira, as melhoras
da D. Josepha...
[532]
Mas Natario não se interessava pelas pessoas a
quem apenas o unia a convivencia e a amizade; interessavam-n'o
só os seus inimigos, com quem tinha
ligações d'odio. Queria saber do escrevente, se
já tinha estourado de fome...
—Esse ao menos pude-lhe ser bom antes de cahir
aqui n'esta maldita cama!...
As sobrinhas appareciam então—duas creaturinhas
sardentas, d'olhos muito pisados. O seu grande
desgosto era que o titi não mandasse vir a
benzedeira
pôr-lhe
virtude na perna:
era o que tinha
curado o morgadinho da Barrosa, e o Pimentel d'Ourem...
Natario, na presença das
duas rosas do seu
canteiro,
calmava-se.
—Coitaditas, não é por falta de cuidados d'ellas
que eu ainda não arribei... Mas tenho soffrido, caramba!
E as duas rosas, com o mesmo movimento simultaneo,
voltavam-se para o lado limpando os olhos
aos lenços.
Amaro sahia d'alli, mais enfastiado.
Para se fatigar tentava dar grandes passeios pela
estrada de Lisboa. Mas apenas se afastava do movimento
da cidade, a sua tristeza tornava-se mais intensa,
concordando com aquella paizagem de collinas
tristes e arvores enfezadas: e a sua vida apparecia-lhe
como essa mesma estrada monotona e longa,
sem um incidente que a alegrasse, estirando-se
desoladamente até se perder nas brumas do crepusculo.
[533]
Ás vezes, ao voltar, entrava no cemiterio, ia
passeando entre os renques de cyprestes, sentindo
áquella hora do fim da tarde a
emanação adocicada
das moitas de goivos; lia os epitaphios; encostava-se
á grade dourada do jazigo da familia Gouvêa,
contemplando
os emblemas em relevo, um chapéo armado
e um espadim, seguindo as negras letras da
famosa ode que lhe adorna a lapida:
Caminhante, detem-te a contemplar
Estes restos
mortaes;
E, se sentires a mágoa a
transbordar,
Detem teus ais.
Que Julio Cabral da Silva Maldonado
Mendonça
de Gouvêa,
Moço fidalgo, bacharel
formado,
Filho da illustre
Cêa,
Ex-administrador d'este concelho,
Commendador de
Christo,
Foi de virtudes singular espelho,
Caminhante,
crê n'isto.
Depois era o rico mausoléo do Moraes, onde sua
esposa, que agora, rica e quarentona, vivia em concubinagem
com o bello capitão Trigueiros, fizera
gravar uma piedosa quadra:
Entre os anjos espera, ó esposo,
A metade do teu coração
Que no mundo ficou, tão sózinha,
Toda entregue ao dever da oração!...
Algumas vezes, ao fundo do cemiterio, junto ao
muro, via um homem ajoelhado ao pé d'uma cruz
negra, que um chorão assombreava, ao lado da valla
[534]
dos pobres. Era o tio Esguelhas, com a sua moleta
no chão, rezando sobre a sepultura da
Tótó. Ia fallar-lhe,
e mesmo, n'uma igualdade que aquelle logar
justificava, passeavam familiarmente, hombro a hombro,
conversando. Amaro, com bondade, consolava o
velho: de que servia á desgraçada rapariga a vida
para a passar estirada n'uma cama?
—Sempre era viver, senhor parocho... E eu,
veja agora isto, sósinho de dia e de noite!
—Todos têm as suas solidões, tio Esguelhas, dizia
melancolicamente Amaro.
O sineiro então suspirava, perguntava pela snr.
a
D. Josepha, pela menina Amelia...
—Lá está na quinta.
—Coitadita, não está má estopada...
—Cruzes da vida, tio Esguelhas.
E continuavam calados por entre as ruas de buxo
que fecham os canteiros cheios do negrejamento
das cruzes e da brancura das lapidas novas. Amaro,
ás vezes, reconhecia alguma sepultura que elle mesmo
tinha aspergido e consagrado: onde estariam
aquellas almas que elle recommendára a Deus em
latim, distrahido, engorolando á pressa as
orações
para ir ter com Amelia? Eram jazigos de gente da
cidade; elle conhecia de vista as pessoas da familia;
vira-as então lavadas em lagrimas, e agora passeavam
em rancho pela Alameda ou chalaceavam ao
balcão das lojas...
Voltava para casa mais triste,—e a sua longa
noite começava, infindavel. Tentava lêr; mas ao
fim
[535]
das dez primeiras linhas bocejava de tedio e de fadiga.
Ás vezes escrevia ao conego. Ás nove horas
tomava chá; e depois era um passear sem fim pelo
quarto, fumando maços de cigarros, parando á
janella
a olhar a negrura da noite, lendo aqui e além
uma noticia ou um annuncio do
Popular e recomeçando
a passear com bocejos tão cavos que a criada
os ouvia na cozinha.
Para entreter estas noites melancolicas, e por um
excesso de sensibilidade ociosa, tentára fazer versos,
pondo o seu amor e a historia dos dias felizes nas
formulas conhecidas da saudade lyrica:
Lembras-te d'esse tempo da delicias,
Ó anjo feiticeiro, Amelia amada,
Quando tudo eram risos e ventura
E a vida nos corria socegada?
Lembras-te d'essa noite de poesia
Em que a lua brilhava pelos céos,
E nós unindo as almas, ó Amelia,
Erguemos nossa prece para Deus?...
Mas a despeito de todos os esforços nunca passára
d'estas duas quadras—apesar de as ter produzido
com uma facilidade promettedora—como se o
seu sêr contivesse apenas estas duas gottas isoladas
de poesia, e, soltas ellas á primeira pressão,
nada
mais restasse senão a sêcca prosa do temperamento
carnal.
E esta existencia varia relaxára-lhe tão
subtilmente
todo o machinismo da vontade e da acção,
[536]
que qualquer trabalho que lhe pudesse encher a fastidiosa
concavidade das horas infindaveis era-lhe odioso
como o peso d'um fardo injusto. Preferia ainda
os tedios da ociosidade aos tedios da occupação.
A
não serem os deveres estrictos que elle não podia
desleixar sem escandalo e sem
censura—desembaraçára-se,
pouco a pouco, de todas as praticas do
zelo interior: nem a oração mental, nem as
visitas
regulares ao Santissimo, nem as meditações
espirituaes,
nem o rosario á Virgem, nem a leitura á noite
do Breviario, nem o exame de consciencia—todas
estas obras da devoção, estes meios secretos de
santificação progressiva substituia-os pelos
infindaveis
passeios pelo quarto, do lavatorio á janella, e
por maços de cigarros fumados até ao negro dos
dedos.
A missa, pela manhã, era rapidamente engorolada;
o serviço da parochia feito com surdas revoltas
de impaciencia; tornára-se consummadamente o
Indignus sacerdos dos ritualistas; e
tinha na sua
ampla totalidade os trinta e cinco defeitos e os sete
meios defeitos que os theologos attribuem ao
mau
padre.
Só lhe restava através da sua sentimentalidade
um appetite tremendo. E como a cozinheira era excellente,
e a snr.
a D. Maria da
Assumpção, antes da
sua partida para a Vieira, lhe deixára um fornecimento
de cento e cincoenta missas a cruzado—banqueteava-se,
tratando-se a gallinha e a geleia, regando-se
d'um vinho picante da Bairrada que o padre-mestre
lhe escolhera. E alli ficava á mesa, horas esquecidas,
[537]
de perna esticada, fumando sobre o café,
e lamentando não ter á mão a sua
Ameliasita...
—Que fará ella por lá, a pobre Ameliasita!
pensava,
espreguiçando-se com tedio e com langor.
A pobre Ameliasita, na Ricoça, amaldiçoava a sua
vida.
Logo durante a jornada no
char-à-banc D. Josepha
lhe fizera tacitamente sentir que d'ella não tinha
a esperar nem a antiga amizade, nem o perdão do
escandalo... E assim foi, quando se installaram. A
velha tornou-se intratavel: era todo um modo cruel
de abandonar o
tu, de a tratar por
menina; uma recusa
rispida se Amelia lhe queria arranjar a almofada
ou aconchegal-a no chale; um silencio reprehensivo
quando ella lhe passava o serão no quarto, costurando;
e a todo o momento allusões suspiradas ao
triste encargo que Deus lhe mandava no fim dos
seus dias...
Amelia, comsigo, accusava o parocho: elle promettera-lhe
que a madrinha seria toda caridade, toda
cumplicidade; entregava-a por fim a uma semelhante
ferocidade de velha virgem devota!...
Quando se viu n'aquelle casarão da Ricoça, n'um
quarto regelado, pintado a côr de canario, lugubremente
mobilado com uma cama de docel e duas cadeiras
de couro, chorou toda a noite com a cabeça,
enterrada no travessseiro—torturada por um cão
que debaixo das janellas, estranhando sem duvida
[538]
as luzes e o movimento na casa, uivou até de madrugada.
Ao outro dia desceu á quinta a vêr os caseiros.
Era talvez boa gente com quem podia distrahir-se.
Encontrou uma mulher, alta e lugubre como um cypreste,
carregada de luto: um grande lenço negro tingido,
muito puxado para a testa, dava-lhe um ar de
farricoco; e a sua voz gemebunda tinha uma tristeza
de dobre a finados. O homem pareceu-lhe ainda
peor, semelhante a um ourango-tango, com duas
orelhas enormes muito despegadas do craneo, uma
saliencia bestial de queixo, as gengivas deslavadas,
um corpo desengonçado de tisico, de peito mettido
para dentro. Abalou bem depressa, foi vêr o pomar:
andava maltratado; as ruasitas estavam invadidas
por um hervaçal humido; e a sombra das arvores
muito juntas, n'um terreno baixo, cercado d'altos
muros, dava uma sensação doentia.
Era ainda preferivel passar os seus dias mettida
no casarão; dias infindaveis em que as horas se iam
movendo com o vagar fastidioso d'um desfilar funerario.
O seu quarto era na frente; e pelas duas janellas
recebia a impressão triste da paizagem que se
estendia defronte, uma ondulação monotona de
terras
estereis com alguma magra arvore aqui e além,
um ar abafado em que parecia errar constantemente
a exhalação de paues proximos e de baixas
humidas,
e a que nem o sol de setembro dissipava o
tom sezonatico.
[539]
Logo pela manhã ia ajudar a levantar D. Josepha,
accommodal-a no canapé; depois vinha costurar
para ao pé d'ella—como outr'ora na rua da Misericordia
para ao pé da mãi; mas agora em logar das
boas «cavaqueiras» tinha só o silencio
intratavel da
velha e a sua ronqueira incessante. Pensára em fazer
vir o seu piano da cidade; mas, apenas em tal
fallou, a velha exclamou com azedume:
—A menina está doida... Não tenho saude para
tocatas! Ora o desproposito!
A Gertrudes tambem não lhe fazia companhia;
nas horas em que não estava ao pé da velha, ou na
cozinha, desapparecia; era justamente d'aquella freguezia,
e passava o seu tempo pelos casaes, palrando
com as antigas visinhas.
A peor hora era ao anoitecer. Depois de rezar o
seu rozario, ficava junto á janella olhando estupidamente
as gradações da luz poente; todos os campos
pouco a pouco se perdiam no mesmo tom pardo; um
silencio parecia descer, pousar sobre a terra; depois
uma primeira estrellinha tremeluzia e brilhava; e
diante d'ella era então só uma massa inerte de
sombra
muda até ao horisonte, aonde ainda ficava um
momento uma delgada tira côr de laranja desbotada.
O seu pensamento, sem nenhum tom de luz ou contorno
de objecto em redor que o prendesse, ia muito
saudoso para longe, para a Vieira; áquella hora
a mãi e as amigas recolhiam do passeio na praia;
já
todas as redes estavam apanhadas; já pelos palheiros
começam a apparecer as luzes; é a hora do
chá,
[540]
dos quinos alegres, quando os rapazes da cidade vão
em rancho pelas casas amigas, com uma viola e uma
flauta, improvisando
soirées. E ella alli,
só!...
Era então necessario deitar a velha, rezar com ella
e com a Gertrudes o terço. Accendiam depois o candieiro
de latão, pondo-lhe diante uma velha chapeleira
para dar sombra ao rosto da doente; e todo o
serão, no silencio lugubre, apenas se ouvia o rumor
do fuso da Gertrudes que fiava agachada a um canto.
Antes de se deitarem, iam trancar todas as portas,
n'um medo constante de ladrões; e então
começava
para Amelia a hora dos terrores supersticiosos.
Não podia adormecer, sentido ao pé a negrura
d'aquellas antigas salas deshabitadas e em redor o
tenebroso silencio dos campos. Ouvia ruidos inexplicaveis:
era o soalho do corredor que estalava, sob
passadas mulplicadas; era a luz da vela que de repente
se dobrava como sob um halito invisivel; ou
a distancia, para os lados da cozinha, o baque surdo
d'um corpo. Accumulava então as
orações, encolhida
debaixo da roupa; mas, se adormecia, as visões
do pesadêlo continuavam-lhe os terrores da vigilia.
Uma vez acordára de repente, a uma voz que dizia,
gemendo, por traz da alta barra da cama:—
Amelia,
prepara-te, o teu fim chegou! Espavorida, em camisa,
atravessou correndo a casa, foi refugiar-se na cama
da Gertrudes.
Mas na noite seguinte a voz sepulchral voltou
quando ella ia adormecer:
Amelia, lembra-te dos teus
peccados! Prepara-te, Amelia! Deu um grito, desmaiou.
[541]
Felizmente a Gertrudes, que ainda se não deitára,
correu áquelle ai agudo que cortára o silencio
do casarão. Achou-a estirada ao través do leito,
com
os cabellos soltos da rede rojando no chão, as
mãos
geladas e como mortas. Desceu a acordar a mulher
do caseiro, e até de madrugada foi uma azafama
para a chamar á vida. Desde esse dia a Gertrudes
dormia ao pé d'ella—e a voz não tornou a
ameaçal-a
por traz da barra.
Mas, de noite e de dia, não a deixou mais a idéa
da morte e o pavor do inferno. Por esse tempo, um
vendedor ambulante d'estampas passou pela Ricoça;
e a snr.
a D. Josepha comprou-lhe duas
lithographias—a
Morte do Justo e a
Morte do Peccador.
—Que é bom que cada um tenha o exemplo vivo
diante dos olhos, disse ella.
Amelia não duvidou ao principio que a velha,
que contava morrer no mesmo apparato de gloria
com que expirava o
Justo da estampa,
lhe quizera
mostrar a ella, a
peccadora, a scena
pavorosa que a
esperava. Odiou-a por aquella «picardia». Mas a sua
imaginação aterrada não tardou a dar
á compra da
estampa outra explicação: era Nossa Senhora que
alli
mandára o vendedor de pinturas, para lhe mostrar
ao vivo na lithographia da
Morte do
Peccador o espectaculo
da sua agonia: e estava então certa que
tudo seria assim, traço por traço—o seu anjo da
guarda fugindo aos soluços; Deus-Padre desviando
o rosto d'ella com repugnancia; o esqueleto da morte
rindo ás gargalhadas; e demonios de côres
rutilantes,
[542]
com todo um arsenal de torturas, apoderando-se
d'ella, uns pelas pernas, outros pelos cabellos,
arrastando-a com uivos de jubilo para a caverna
chammejante toda abalada da tormenta de rugidos
que solta a Eterna Dôr... E ella podia vêr ainda,
no
fundo dos céos, a grande balança—com um dos
pratos muito alto onde as suas orações
não pesavam
mais que uma penna de canario, e o outro prato cahido,
de cordas retesadas, sustentando a enxerga da
cama do sineiro e as suas toneladas de peccado.
Cahiu então n'uma melancolia hysterica que a envelhecia;
passava os dias suja e desarranjada, não
querendo dar cuidado ao seu corpo peccador; todo o
movimento, todo o esforço lhe repugnava; as mesmas
orações lhe custavam, como se as julgasse
inuteis;
e tinha atirado para o fundo d'uma arca o enxoval
que andava a costurar para o filho—porque o
odiava, aquelle sêr que ella sentia mexer-se-lhe
já
nas entranhas e que era a causa da sua perdição.
Odiava-o—mas menos que o outro, o parocho que
lh'o fizera, o padre malvado que a tentára, a
estragára,
a atirára ás chammas do inferno! Que desespero
quando pensava n'elle! Estava em Leiria socegado,
comendo bem, confessando outras, namorando-as
talvez—e ella alli sósinha, com o ventre condemnado
e enfartado do peccado que elle lá depuzera,
ia-se afundindo na perdição sempiterna!
Decerto esta excitação a teria matado—se
não
fosse o abbade Ferrão que começára
então a vir vêr
muito regularmente a irmã do amigo conego.
[543]
Amelia ouvira fallar muitas vezes n'elle na rua
da Misericordia; dizia-se lá que o Ferrão tinha
«idéas
exquisitas»: mas não era possivel recusar-lhe nem
a virtude da vida nem a sciencia de sacerdote. Havia
muitos annos que era alli abbade; os bispos tinham-se
succedido na diocese, e elle alli ficára esquecido
n'aquella freguezia pobre, de congrua atrazada,
n'uma residencia onde chovia pelos telhados. O ultimo
vigario geral, que nunca dera um passo para o
favorecer, dizia-lhe todavia, liberal de palavriado:
—Vossê é um dos bons theologos do reino.
Vossê
está predestinado por Deus para um bispado. Vossê
ainda apanha a mitra. Vossê ha de ficar na historia
da Igreja portugueza como um grande bispo Ferrão!
—Bispo, senhor vigario geral! Isso era bom!
Mas era necessario que eu tivesse o arrojo d'um Affonso
d'Albuquerque ou d'um D. João de Castro, para
aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!
E alli ficára, entre gente pobre, n'uma aldeia de
terra escassa, vivendo de dois pedaços de pão e
uma chavena de leite, com uma batina limpa onde
os remendos faziam um mappa, precipitando-se a
uma meia legua por um temporal desfeito se um parochiano
tinha uma dôr de dentes, passando uma hora
a consolar uma velha a quem tinha morrido uma
cabra... E sempre de bom humor, sempre com um
cruzado no fundo do bolso dos calções para uma
necessidade
do seu visinho, grande amigo de todos os
rapazitos a quem fazia botes de cortiça, e não
duvidando
[544]
parar, se encontrava uma rapariga bonita, o
que era raro na freguezia, e exclamar: «Linda
moça,
Deus a abençôe!»
E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes
era tão celebre, que lhe chamavam «a
donzella».
De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando
horas d'estação aos pés do Santissimo
Sacramento;
cumprindo com uma felicidade fervente as
menores praticas da vida devota; purificando-se para
os trabalhos do dia com uma profunda oração
mental, uma meditação de fé, d'onde a
sua alma
sahia mais agil, como d'um banho fortificante; preparando-se
para o somno com um d'estes longos e
piedosos exames de consciencia, tão uteis, que Santo
Agostinho e S. Bernardo faziam do mesmo modo que
Plutarcho e Seneca, e que são a
correcção laboriosa
e subtil dos pequenos defeitos, o aperfeiçoamento
meticuloso da virtude activa, emprehendido com um
fervor de poeta que revê um poema querido... E todo
o tempo que tinha vago, abysmava-se n'um cahos
de livros.
Tinha só um defeito o abbade Ferrão: gostava de
caçar! Cohibia-se, porque a caça tira muito
tempo,
e é sanguinario matar uma pobre ave que anda azafamada
pelos campos nos seus negocios domesticos.
Mas nas claras manhãs d'inverno, quando ainda ha
orvalho nas giestas, se via passar um homem d'espingarda
ao hombro, o passo vivo, seguido do seu
perdigueiro—iam-se-lhe os olhos n'elle... Ás vezes
[545]
porém, a tentação vencia: agarrava
furtivamente a
espingarda, assobiava á
Janota, e com as abas do
casacão ao vento, lá ia o theologo illustre, o
espelho
de piedade, através de campos e valles... E d'ahi
a pouco—pum... pum! Uma codorniz, uma perdiz
em terra! E lá voltava o santo homem com a espingarda
debaixo do braço, os dois passaros na algibeira,
cosendo-se com os muros, rezando o seu rosario
á Virgem, e respondendo aos
bons
dias da gente
pelo caminho com os olhos baixos e o ar muito
criminoso.
O abbade Ferrão, apesar do seu aspecto
«gêbo»
e do seu grande nariz, agradou a Amelia, logo desde
a primeira visita á Ricoça; e a sua sympathia
cresceu, quando viu que D. Josepha o recebia com
pouco alvoroço, apesar do respeito que o mano conego
tinha pela sciencia do abbade.
A velha, com effeito depois de ter estado só com
elle n'uma pratica d'horas, condemnára-o com uma
unica palavra, na sua auctoridade de velha devota
experiente:
—É relaxado!
Não se tinham realmente comprehendido. O bom
Ferrão, tendo vivido tantos annos n'aquella parochia
de quinhentas almas, as quaes cahiam todas, de
mães a filhas, no mesmo molde de
devoção simples
a Nosso Senhor, Nossa Senhora e S. Vicente, patrono
da freguezia, tendo pouca experiencia de confissão,
encontrava-se subitamente diante d'uma alma complicada
de devota de cidade, d'um beaterio caturra
[546]
e atormentado; e ao ouvir aquella extraordinaria
lista de peccados mortaes, murmurava espantado:
—É estranho, é estranho...
Percebera bem ao principio que tinha diante de
si uma d'essas degenerações morbidas do
sentimento
religioso, que a theologia chama
Doença dos
escrupulos—e
de que na sua generalidade estão affectadas
hoje todas as almas catholicas; mas depois,
a certas revelações da velha, receou estar
realmente
em presença d'uma maniaca perigosa; e instinctivamente,
com o singular horror que os sacerdotes
têm pelos doidos, recuou a cadeira.
Pobre D. Josepha! Logo na primeira noite em
que chegára á Ricoça (contava ella),
ao começar o rosario
a Nossa Senhora, lembrára-lhe de repente que
lhe esquecera o saiote de flanella escarlate, que era
tão efficaz nas dôres das pernas... Trinta e oito
vezes de seguida recomeçára o rosario, e sempre o
saiote escarlate se interpunha entre ella e Nossa Senhora!...
Então desistira, d'exhausta, d'esfalfada. E
immediatamente sentira dôres vivas nas pernas, e
tivera como uma voz de dentro a dizer-lhe que era
Nossa Senhora por vingança a espetar-lhe alfinetes
nas pernas...
O abbade pulou:
—Oh, minha senhora!...
—Ai, não é tudo, senhor abbade!
Havia outro peccado que a torturava: quando rezava,
às vezes, sentia vir a expectoração;
e, tendo
ainda o nome de Deus ou da Virgem na bôca, tinha
[547]
de escarrar; ultimamente engulia o escarro, mas estivera
pensando que o nome de Deus ou da Virgem
lhe descia d'embrulhada para o estomago e se ia
misturar com as fezes! Que havia de fazer?
O abbade, d'olhar esgazeado, limpava o suor da
testa.
Mas isto não era o peor: o grave era, que na
noite antecedente estava toda socegada, toda em virtude,
a rezar a S. Francisco Xavier—e de repente,
nem ella soube como, põe-se a pensar como seria
S. Francisco Xavier nú em pêllo!
O bom Ferrão não se moveu, atordoado. Emfim,
vendo-a a olhar anciosa para elle, á espera das suas
palavras e dos seus conselhos, disse:
—E ha muito que sente esses terrores, essas
duvidas...?
—Sempre, senhor abbade, sempre!
—E tem convivido com pessoas que, como a senhora,
são sujeitas a essas inquietações?
—Todas as pessoas que conheço, duzias d'amigas,
todo o mundo... O Inimigo não me escolheu só
a mim... A todos se atira...
—E que remedio dava a essas anciedades d'alma...?
—Ai, senhor abbade, aquelles santos da cidade,
o senhor parocho, o snr. Silverio, o snr. Guedes, todos,
todos nos tiravam sempre d'embaraços... E com
uma habilidade, com uma virtude...
O abbade Ferrão ficou calado um momento: sentia-se
[548]
triste, pensando que por todo o reino tantos
centenares de sacerdotes trazem assim voluntariamente
o rebanho n'aquellas trevas d'alma, mantendo
o mundo dos fieis n'um terror abjecto do céo, representando
Deus e os seus santos como uma côrte
que não é menos corrompida nem melhor que a de
Caligula e dos seus libertos.
Quiz então levar áquelle nocturno cerebro de
devota,
povoado de phantasmagorias, uma luz mais
alta e mais larga. Disse-lhe que todas as suas
inquietações
vinham da imaginação torturada pelo terror
d'offender a Deus... Que o Senhor não era um amo
feroz e furioso, mas um pai indulgente e amigo...
Que é por amor que é necessario servil-o,
não por
medo... Que todos esses escrupulos, Nossa Senhora
a enterrar alfinetes, o nome de Deus a cahir no estomago,
eram perturbações da razão doente.
Aconselhou-lhe
confiança em Deus, bom regimen para ganhar
forças. Que não se cansasse em
orações exageradas...
—E quando eu voltar, disse emfim erguendo-se
e despedindo-se, continuaremos a conversar sobre
isto, e havemos de serenar essa alma.
—Obrigada, senhor abbade, respondeu a velha
sêccamente.
E apenas a Gertrudes d'ahi a pouco entrou a
trazer-lhe a botija para os pés, D. Josepha exclamou,
toda indignada, quasi choramingando:
—Ai, não presta p'ra nada, não presta p'ra
nada!...
[549]
Não me percebeu... É um tapado... É um
pedreiro-livre, Gertrudes! Que vergonha n'um sacerdote
do Senhor...
Desde esse dia não tornou a revelar ao abbade
os peccados medonhos que continuava a commetter;
e quando elle, por dever, quiz recomeçar a
educação
da sua alma, a velha declarou-lhe sem rodeios
que, como se confessava com o senhor padre Gusmão,
não sabia se seria delicado receber d'outro a
direcção moral...
O abbade fez-se vermelho, respondeu:
—Tem razão, minha senhora, tem razão, deve-se
ter muita delicadeza n'essas coisas...
Sahiu. E d'ahi por diante, depois de ter entrado
no quarto a saber-lhe da saude, de ter fallado do
tempo, da estação, das doenças que
iam, d'alguma
festa na igreja,—apressava-se em se despedir e ir
para o terraço conversar com Amelia.
Vendo-a sempre tão tristonha, interessára-se por
ella; para Amelia, as visitas do abbade eram uma
distracção, n'aquella solidão da
Ricoça; e assim se
iam familiarisando, a ponto que nos dias em que
elle regularmente vinha, Amelia punha um mantelete
e ia pelo caminho dos Poyaes esperal-o até junto
á casa do ferrador. As conversas do abbade, fallador
incansavel, entretinham-na, tão differentes dos mexericos
da rua da Misericordia,—como o espectaculo
d'um largo valle com arvores, plantações, aguas,
pomares e rumor de lavouras, recreia os olhos habituados
ás quatro paredes caiadas d'uma trapeira
[550]
da cidade. Tinha com effeito uma d'estas
conversações
semelhantes aos
jornaes semanaes de
recreio,
o
Thesouro das familias
ou as
Leituras para serões,
em que de ha tudo—doutrina moral, historias
de viagens, anecdotas dos grandes homens,
dissertações
sobre a lavoura, citação d'uma boa
chalaça,
traços sublimes da vida d'um santo, um verso aqui
e além, e até receitas, como uma muito util que
deu
a Amelia para lavar as flanellas sem encolherem. Só
era monotono quando fallava da sua familia parochiana,
dos casamentos, baptisados, doenças, questões,
ou quando começava as suas historias de caça.
—Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Corrego
das Tristes, quando uma revoada de perdizes...
Amelia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam
façanhas da
Janota,
pontarias fabulosas contadas
em mimica, com imitações de vozes de passaros,
e
pum, pum de fusilaria. Ou
então eram descripções
das caçadas selvagens que elle lêra com
gula—a caça ao tigre do Nepal, ao leão d'Argelia
e ao elephante, historias ferozes que arrastavam a
imaginação da rapariga para longe, para os paizes
exoticos onde a herva é alta como os pinheiros, o
sol queima como um ferro em braza, e entre cada
ramagem reluzem os olhos d'uma fera... E depois,
a proposito de tigres e de malaios, lembrava-lhe
uma historia curiosa de S. Francisco Xavier, e eil-o
lançado, o terrivel palrador, na
descripção dos feitos
da Asia, das armadas da India e das estocadas famosas
do cerco de Diu!
[551]
Foi mesmo um d'esses dias, no pomar, em que
o abbade, tendo começado por enumerar as vantagens
que o conego tiraria de transformar o pomar
em terra de lavoura, acabára por contar perigos e
valores dos missionarios da India e do Japão—que
Amelia, então em toda a intensidade dos seus terrores
nocturnos, fallou dos ruidos que ouvia na casa e
dos sobresaltos que lhe davam.
—Oh, que vergonha! disse o abbade rindo;
uma senhora da sua idade ter medo de papões...
Ella então, attrahida por aquella bondade do senhor
abbade, contou-lhe as vozes que ouvia de noite
por detraz da barra da cama.
O abbade pôz-se sério:
—Minha senhora, isso são imaginações
que deve
a todo o custo dominar... Decerto tem havido prodigios
no mundo, mas Deus não se põe assim a fallar
a qualquer, por detraz das barras das camas, nem
permitte ao demonio que o faça... Essas vozes, se
as ouve, e se os seus peccados são grandes, não
vêm
de detraz da cama, vêm-lhe de si mesmas, da sua
consciencia... E póde então fazer dormir ao
pé de
si a Gertrudes, e cem Gertrudes, e todo o batalhão
de infanteria, que as ha de continuar a ouvir... Havia
de as ouvir, mesmo que fosse surda. O que é
necessario é calmar a consciencia que reclama penitencia
e purificação...
Tinham subido ao terraço, fallando assim: e Amelia
sentára-se fatigada n'um dos bancos de pedra
que alli havia, e ficára a olhar a quinta ao longe,
[552]
os tectos dos curraes, a longa rua de loureiros, a
eira, e a distancia os campos que se succediam planos
e avivados do tom humido que lhes dera a chuva
ligeira da manhã: agora a tarde estava d'uma
placidez clara, sem vento, com grandes nuvens paradas
que o sol do poente tocava de vivos côr de
rosa tenro... Pensava n'aquellas palavras tão sensatas
do abbade, no descanso que gozaria se cada peccado
que lhe pesava na alma como um penedo se
tornasse ligeiro e se dissipasse sob a acção da
penitencia.
E vinham-lhe desejos de paz, d'um repouso
igual á quietação dos campos que se
estendiam diante
d'ella.
Um passaro cantou, depois calou-se; e recomeçou
d'ahi a um momento com um trinado tão vibrante,
tão alegre, que Amelia sorria, escutando-o.
—É um rouxinol...
—Os rouxinoes não cantam a esta hora, disse o
abbade. É um melro... Ahi está um que
não tem
medo de phantasmas, nem ouve vozes... Olha que
enthusiasmo, o maganão!
Era com effeito um gorgear triumphante, um delírio
de melro feliz, que dera de repente a todo o
pomar uma sonoridade festiva.
E Amelia, diante d'aquelle chilrear glorioso d'um
passaro contente, subitamente, sem razão, n'um d'estes
abalos nervosos que vem às mulheres hystericas,
rompeu a chorar.
—Então, que é isso, que é isso? fez o
abbade
muito surprehendido.
[553]
Tomou-lhe a mão, com uma familiaridade de velho
e d'amigo, calmando-a.
—Que infeliz que sou!... murmurou ella aos
soluços.
Elle então muito paternal:
—Não tem razão para o ser... Sejam quaes forem
as afflicções, as
inquietações, uma alma christã
tem sempre a consolação á
mão... Não ha peccado
que Deus não perdôe, nem dôr que
não calme, lembre-se
d'isso... O que não deve é guardar em si o
seu desgosto... É isso que a suffoca, que a faz chorar...
Se eu lhe posso valer, socegal-a, é procurar-me...
—Quando? disse ella toda desejosa já de se refugiar
na protecção d'aquelle santo homem.
—Quando quizer, disse elle rindo. Eu não tenho
horas para consolar... A igreja está sempre aberta,
Deus está sempre presente...
Ao outro dia cedo, antes da hora em que a velha
se erguia, Amelia foi á residencia; e durante
duas horas esteve prostrada diante do pequeno confessionario
de pinho—que o bom abbade por suas
mãos pintára d'azul escuro, com extraordinarias
cabecinhas
d'anjos que em logar d'orelhas tinham
azas, uma obra d'alta arte de que elle fallava com
uma secreta vaidade.
XXIII
O padre Amaro acabára de jantar, e fumava,
com os olhos no tecto, para não vêr o
carão chupado
do coadjutor que havia meia hora alli estava,
immovel e espectral, fazendo cada dez minutos uma
pergunta que cahia no silencio da sala como os quartos
melancolicos que dá de noite um relogio de cathedral.
—O senhor parocho já não é assignante
da
Nação?
—Não senhor, leio o
Popular.
O coadjutor recahiu no silencio, começando logo
a colligir laboriosamente as palavras para uma
nova pergunta. Soltou-a emfim, com lentidão:
—Não se tornou a saber d'aquelle infame que
escreveu o
Communicado?
[556]
—Não senhor, foi para o Brazil.
A criada entrou, n'este momento, dizendo que
«estava alli uma pessoa que queria fallar ao senhor
parocho». Era a sua maneira d'annunciar a presença
de Dionysia na cozinha.
Havia semanas que ella não apparecia—e Amaro,
curioso, sahiu logo da sala fechando a porta sobre
si, e chamou a matrona ao patamar.
—Grande novidade, senhor parocho! E vim a
correr, que é sério. Está
cá o João Eduardo!
—Ora essa! exclamou o parocho. E eu justamente
a fallar d'elle! É extraordinario! Olha que coincidencia...
—É verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E já
estou informada de tudo. O homem está mestre dos
filhos do Morgadinho.
—Que Morgadinho?
—O Morgadinho dos Poyaes... Se vive lá, ou se
vai pela manhã e vem á noite, isso não
sei. O que
sei é que voltou... E janota, fato novo... Eu entendi
que devia avisar, porque póde estar certo que
elle, mais dia menos dia, dá pela Ameliasinha lá
na
Ricoça... É no caminho p'ra casa do Morgado...
Que lhe parece?...
—Forte besta! rosnou Amaro com rancor. Quando
não serve é que apparece. Então por
fim não foi
para o Brazil?
—Pelos modos, não... Que a sombra d'elle não
era, era elle mesmo em carne e osso... A sahir da
loja do Fernandes por signal, e todo peralta... Sempre
[557]
é bom avisar a rapariga, senhor parocho, que
se não vá ella plantar de janella...
Amaro deu-lhe as duas placas que ella esperava—e
d'ahi a um quarto d'hora, desembaraçado do
coadjutor, ia no caminho da Ricoça.
Batia-lhe forte o coração quando avistou o
casarão
amarello, pintado de novo, o largo terraço lateral
em linha com o muro do pomar, ornado d'espaço
a espaço no parapeito de vasos nobres de pedra.
Ia emfim, depois de tão longas semanas, vêr a sua
Ameliasinha! E já se alvoroçava á
idéa das exclamações
apaixonadas com que ella lhe cahiria nos
braços.
Ao rez do chão eram as cavallariças, do tempo
da familia morgada que outr'ora alli habitára, agora
abandonadas ás ratazanas e aos tortulhos, recebendo
a luz por estreitas janellas gradeadas que
quasi desappareciam sob camadas de teias de aranha;
entrava-se por um immenso pateo escuro, onde
havia longos annos se acastellava a um canto
toda uma montanha de pipas vazias; e o lance d'escadaria
nobre, que levava aos aposentos, era á direita,
flanqueado de dois leõesinhos de pedra, benignos
e somnolentos.
Amaro subiu até um sotão de tecto de carvalho
apainelado, sem mobilia, com a metade do soalho
coberta de feijão sêcco.
[558]
E, embaraçado, bateu as palmas.
Uma porta abriu-se. Amelia appareceu um instante,
toda despenteada e em saia branca; deu um
gritinho, bateu com a porta—e o parocho sentiu-a
fugir para o interior do casarão. Ficou muito desconsolado
no meio do salão, com o seu guardasol
debaixo do braço, pensando na boa familiaridade
com que entrava na rua da Misericordia—que até
pareciam as portas abrir-se de si mesmo e o papel
das paredes clarear-se d'alegria.
Ia bater as palmas outra vez, já quesilado, quando
a Gertrudes
appareceu.
—Oh, senhor parocho! Entre, senhor parocho!
Ora até que emfim! Minha senhora, é o senhor
parocho!—gritava,
na alegria de vêr emfim uma visita
querida, um amigo da cidade, n'aquelle desterro
da Ricoça.
Levou-o logo para o quarto de D. Josepha, ao
fundo da casa, um quarto enorme, onde, n'um pequeno
canapé perdido a um canto, a velha passava
os dias encolhida no seu chale, com os pés embrulhados
n'um cobertor.
—Oh, D. Josepha! Como está? Como está?
Ella não pôde responder, tomada d'um accesso
de tosse que lhe dera a commoção da visita.
—Como vê, senhor parocho, murmurou emfim
muito fraca. Para aqui vou, arrastando esta velhice.
E vossa senhoria? Porque não tem apparecido?
Amaro desculpou-se vagamente com os afazeres
da Sé. E comprehendia agora, ao vêr aquella face
[559]
amarella e cavada, com uma medonha touca de rendas
negras, que tristes horas Amelia alli devia passar.
Perguntou por ella; avistára-a de longe, mas
ella deitára a fugir...
—É que não estava decente para apparecer,
disse a velha. Hoje foi dia de barrela.
Amaro quiz então saber em que se entretinham,
como passavam os dias n'aquella solidão...
—Eu para aqui estou. A pequena para ahi anda.
Depois de cada palavra, parecia abater-se n'uma
fadiga e a sua ronqueira crescia.
—Então não se tem dado bem com a
mudança,
minha senhora?
Ella disse que não, n'um movimento de cabeça.
—Deixe fallar, senhor parocho, acudiu a Gertrudes
que ficára de pé, ao lado do canapé,
gozando a
presença do senhor parocho.—Deixe fallar... É
que
a senhora exagera tambem... Levanta-se todos os
dias, dá o seu passeinho até á sala,
come a sua azita
de frango... Temol-a aqui, temol-a arribada...
É o que diz o senhor abbade Ferrão, a saude foge
a toda a brida e para voltar vem a passo...
A porta abriu-se. Amelia appareceu, muito escarlate,
com o seu antigo robe-de-chambre de merino
rôxo, o cabello arranjado á pressa.
—Desculpe, senhor parocho, balbuciou, mas hoje
tem sido um dia de balburdia...
Elle apertou-lhe a mão gravemente: e ficaram
calados, como se estivessem separados pela distancia
d'um deserto. Ella não tirava os olhos do chão,
enrolando
[560]
com a mão tremula uma ponta da manta de
lã que trazia solta pelos hombros. Amaro achava-a
mudada, um pouco inchada das faces, com uma ruga
de velhice aos cantos da bôca. Para romper
aquelle silencio estranho, perguntou-lhe tambem se
se dava bem...
—Para aqui vou indo... É um pouco triste isto.
É como diz o senhor abbade Ferrão, é
muito grande
para a gente se sentir em familia.
—Ninguem veio para aqui para se divertir, disse
a velha sem descerrar as palpebras, com uma
voz sêcca que perdera toda a fadiga.
Amelia baixou a cabeça, fazendo-se pallida.
Amaro então, comprehendendo n'um relance que
a velha torturava Amelia, disse com muita severidade:
—É verdade, não foi para se divertirem... Mas
tambem não foi para se entristecerem de proposito...
Pôr-se uma pessoa de mau humor e fazer aos
outros a vida negra, é uma falta horrivel de caridade;
não ha peccado peor aos olhos do Senhor... É
indigno da graça de Deus quem tal pratica...
A velha rompeu a choramingar, muito excitada:
—Ai, o que Deus me guardou para os ultimos
annos da vida...
Gertrudes amimou-a. Então, senhora, que até
lhe fazia peor estar a affligir-se assim... Ora o disparate!
Tudo se havia de remediar com a ajuda de
Deus. Saude não havia de faltar, nem alegria...
[561]
Amelia chegára-se á janella, decerto para
esconder
tambem as lagrimas que lhe saltavam dos olhos.
E o parocho, consternado com a scena, começou a
dizer que D. Josepha não estava supportando com
a verdadeira resignação d'uma christã
aquelles dias
de doença... Nada escandalisava mais Nosso Senhor
que vêr as creaturas revoltarem-se contra as dôres
ou os encargos que elle mandava... Era insultar a
justiça dos seus decretos...
—Tem razão, senhor parocho, tem razão, murmurou
a velha muito contrita. Eu ás vezes nem sei
o que digo... São coisas da doença.
—Bem, bem, minha senhora, é resignar-se e
tratar de vêr tudo côr de rosa. É o
sentimento que
Deus mais aprecia. Eu comprehendo que é duro, estar
para aqui enterrada...
—É o que diz o senhor abbade Ferrão, acudiu
Amelia voltando da janella, a madrinha estranha...
Assim arrancada aos habitos de tantos annos...
Notando então a citação repetida das
palavras do
abbade Ferrão, Amaro perguntou se elle costumava
vir vêl-as...
—Ai, tem-nos feito muita companhia, disse Amelia.
Vem quasi todos os dias.
—É um santo! exclamou a Gertrudes.
—Decerto, decerto, murmurou Amaro descontente
d'um enthusiasmo tão vivo. Pessoa de muita
virtude...
—De muita virtude, suspirou a velha. Mas...—Calou-se,
não ousando decerto exprimir as suas
[562]
reservas de devota.—E exclamou n'uma supplica:—Ai,
o senhor parocho é que devia vir por aqui,
ajudar-me a levar esta cruz da doença...
—Hei de vir, minha senhora, hei de vir. É bom
para a distrahir, para lhe dar as noticias... E a proposito,
tive hontem carta do nosso conego.
Rebuscou na algibeira, leu alguns periodos da
carta. O padre-mestre já tinha quinze banhos. A praia
estava cheia de gente. A D. Maria passára doente
com um furunculo. O tempo famoso. Todas as tardes
grandes passeatas a vêr recolher as rêdes. A S.
Joanneira, boa, mas fallando sempre na filha...
—Pobre mamã... choramingou Amelia.
Mas a velha não se interessava com as novidades,
gemendo a sua ronqueira. Foi Amelia que perguntou
pelos amigos de Leiria, pelo senhor padre
Natario, pelo senhor padre Silverio...
Ia escurecendo já: a Gertrudes fôra preparar o
candieiro. Amaro emfim ergueu-se:
—Pois, minha senhora, até outro dia. Esteja
certa que hei de apparecer de vez em quando. E nada
d'affligir... Agasalho, boa dieta, e a misericordia
de Deus não a ha de abandonar...
—Não nos falte, senhor parocho, não nos
falte!...
Amelia estendera-lhe a mão, para se despedir alli
no quarto; mas Amaro gracejando:
—Se não lhe causa incommodo, menina Amelia,
sempre é bom vir mostrar-me o caminho, que eu
perco-me n'este casarão.
[563]
Sahiram ambos. E apenas no salão, a que as tres
largas vidraças davam ainda uma claridade:
—A velha faz-te a vida negra, filha, disse Amaro
parando.
—Que mereço eu mais? respondeu ella baixando
os olhos.
—Desavergonhada, eu lh'as cantarei!... Minha
Ameliasinha, se soubesses o que me tem custado...
E fallando, ia abraçal-a pelo pescoço.
Mas ella recuou, toda perturbada.
—Que é isso? fez Amaro assombrado.
—O quê?
—Esse modo! Tu não me queres dar um beijo,
Amelia? Tu estás doida?
Ella ergueu as mãos para elle, n'uma
supplicação
anciosa, fallando toda tremula:
—Não, senhor parocho, deixe-me! Isso acabou.
Bem basta o que peccamos... Quero morrer na graça
de Deus... Que nunca mais se falle em semelhante
coisa!... Foi uma desgraça... Acabou-se...
Agora o que quero é o socego de minha alma...
—Tu estás tola! Quem te metteu isso na cabeça?
Ouve cá...
Foi para ella outra vez, com os braços abertos.
—Não me toque, pelo amor de Deus,—e vivamente
recuou até á porta.
Elle olhou-a um momento, n'uma cólera muda.
—Bem, como queira, disse por fim. Em todo o
caso, quero prevenil-a que o João Eduardo voltou,
[564]
que passa aqui todos os dias, e que é bom não se
pôr de janella.
—Que me importa a mim o João Eduardo e os
outros e tudo o que passou?...
Elle acudiu, trasbordando d'um sarcasmo amargo:
—Está claro, agora o grande homem é o senhor
abbade Ferrão!
—Devo-lhe muito, é o que sei...
A Gertrudes n'este momento entrava com o candieiro
accêso. E Amaro, sem se despedir d'Amelia,
abalou, de guardachuva em riste, rilhando os dentes
de raiva.
Mas a longa caminhada até á cidade calmou-o.
Aquillo na rapariga por fim era apenas um accesso
de virtude e d'escrupulos! Vira-se alli só n'aquelle
casarão, amargurada pela velha, impressionada pelos
palavrões do moralista Ferrão, longe d'elle, e
tinha-lhe
vindo aquella reacção de devota com os seus
terrores do outro-mundo e appetites de innocencia...
Chalaça! Se elle começasse a ir á
Ricoça, n'uma semana
reganhava todo o seu dominio... Ah, conhecia-a
bem! Era só tocar-lhe, piscar-lhe o olho... Estava
logo rendida.
Passou porém uma noite inquieta, desejando-a
mais que nunca. E ao outro dia á uma hora marchou
para a Ricoça, levando-lhe um ramo de rosas.
A velha ficou toda contente ao vêl-o. É que lhe
[565]
dava saude a presença do senhor parocho! E se não
fosse a distancia havia de lhe pedir a esmola de vir
todas as manhãs. Até depois d'aquella visitinha
rezava
com mais fervor...
Amaro sorria, distrahido, com os olhos cravados
na porta.
—E a menina Amelia? perguntou por fim.
—Sahiu... Isso agora todas as manhãs é a
passeata,
disse a velha com azedume. Vai á residencia,
é tôda do abbade...
—Ah! fez Amaro com um sorriso livido. Nova
devoção, hein?... é pessoa de muitos
meritos, o
abbade.
—Ai, não presta, não presta! exclamou D.
Josepha.
Não me percebe. Tem idéas muito exquisitas.
Não dá virtude...
—Homem de livros... disse Amaro.
Mas a velha erguera-se sobre o cotovêlo, e baixando
a voz, com o magro carão accêso em odio:
—E aqui p'ra nós, a Amelia tem-se portado
muito mal! Nunca lh'o hei de perdoar... Confessou-se
ao abbade... É uma indelicadeza, sendo a confessada
do senhor parocho, não tendo recebido de vossa
senhoria senão favores... É uma ingrata,
é uma
traiçoeira!...
Amaro fizera-se pallido.
—Que me diz a senhora?
—A verdade! Que ella não o nega. Até se orgulha!
É uma perdida, é uma perdida! Depois do
favor que lhe estamos a fazer...
[566]
Amaro disfarçou a indignação que o
revolvia.
Riu até. Era necessario não exagerar...
Não havia
ingratidão. Era uma questão de fé. Se
a rapariga
pensava que o abbade a podia dirigir melhor, tinha
razão em se abrir com elle... O que todos queriam
é que ella salvasse a sua alma... Que fosse
pela direcção de fulano ou sicrano, isso
não importava...
E nas mãos do abbade estava bem.
E chegando vivamente a cadeira para o leito da
velha:
—E então agora, todas as manhãs vai à
residencia?
—Quasi todas... Que ella não ha de tardar, vai
depois d'almoço, volta sempre a esta hora... Ai, tem-me
causado isto um desgosto!...
Amaro deu um passeiosinho nervoso pelo quarto,
e estendendo a mão á velha:
—Pois minha senhora, eu não me posso demorar,
que vim de fugida... Até um dia cedo.
E sem escutar a velha, que lhe pedia com anciedade
que ficasse para jantar—-desceu os degraus
como uma pedra que rola, metteu furioso pelo caminho
da residencia, ainda com o seu ramo na
mão.
Esperava encontrar Amelia na estrada; e não
tardou em a avistar quasi ao pé da casa do ferreiro,
agachada ao pé do vallado, apanhando sentimentalmente
florinhas silvestres.
—Que fazes tu aqui? exclamou, chegando junto
d'ella.
[567]
Ella ergueu-se, com um gritinho.
—Que fazes tu aqui!? repetiu.
Áquelle
tu, e
áquella voz colerica, ella poz rapidamente
um dedo na bôca, assustada. O senhor abbade
estava dentro da casa com o ferreiro...
—Ouve lá, disse Amaro com os olhos chammejantes,
agarrando-lhe o braço—tu confessaste-te ao
abbade?...
—P'ra que quer saber? Confessei... Não é
vergonha
nenhuma...
—Mas confessaste
tudo, tudo?
perguntou elle
com os dentes cerrados de raiva.
Ella perturbou-se, e tratando-o ainda por
tu:
—Foste tu que me disseste muitas vezes... Que
era o maior peccado n'este mundo, esconder alguma
coisa ao confessor!
—Bebeda! rugiu Amaro.
Os seus olhos devoravam-na. E, através da nevoa
de cólera que lhe enchia o cerebro e lhe fazia
latejar as veias na fronte, achava-a mais bonita,
com umas redondezas em todo o corpo que ardia
por abraçar, com uns labios vermelhos avivados
pelo largo ar do campo que elle queria morder até
ao sangue.
—Ouve, disse-lhe cedendo a uma invasão brutal
do desejo. Ouve... Acabou-se, não me importa.
Confessa-te ao diabo se te agrada... Mas has de ser
a mesma para mim!
—Não, não! disse ella com força,
desprendendo-se,
prompta a fugir para casa do ferreiro.
[568]
—Tu m'as pagarás, maldita!—rosnou o padre
por entre dentes, voltando as costas, descendo o caminho
com passadas de desesperado.
E não abrandou o passo até á cidade,
levado de
um impulso d'indignação que, sob aquella
dôce paz
d'um meio d'outono, lhe suggeria planos de vinganças
ferozes. Chegou a casa esfalfado, ainda com
o ramo na mão. Mas ahi, na solidão do quarto,
veio-lhe pouco a pouco o sentimento da sua impotencia.
Que lhe podia fazer por fim? Ir pela cidade
dizer que ella estava gravida? Seria denunciar-se a
si. Espalhar que estava amigada com o abbade Ferrão?
Era absurdo: um velho de quasi setenta annos,
d'uma fealdade de caricatura, com todo um
passado de virtude santa... Mas perdel-a, não tornar
a ter nos braços aquelle corpo de neve, não
ouvir mais aquellas ternuras balbuciadas que lhe
arrebatavam a alma para alguma coisa de melhor
que o céo... Isso não!
E era possivel que ella, em seis ou sete semanas,
tivesse assim esquecido tudo? N'aquellas longas
noites na Ricoça, só na cama, não lhe
viria uma
recordação das manhãs no quarto do tio
Esguelhas?...
Decerto: elle sabia-o da experiencia de
tantas confessadas que lhe tinham revelado afflictas
a tentação muda e teimosa que não
deixa a carne
que uma vez peccou...
Não: devia perseguil-a, e por todos os modos
soprar-lhe aquelle desejo que agora ardia n'elle mais
alto e mais ruidoso.
[569]
Passou a noite a escrever-lhe uma carta de seis
paginas, absurda, cheia d'implorações
apaixonadas,
de argucias mysticas, de pontos d'exclamação e de
ameaças de suicidio...
Mandou-a ao outro dia cedo, pela Dionysia. A resposta
veio só á noite, por um rapazito da quinta.
Com que sofreguidão rasgou o sobrescripto! Eram
apenas estas palavras: «Peço-lhe que me deixe em
paz com os meus peccados.»
Não desistiu: ao outro dia lá estava na
Ricoça a
visitar a velha. Amelia achava-se no quarto de D.
Josepha, quando elle appareceu. Fez-se muito pallida;
mas os seus olhos não deixaram a costura—durante
a meia hora que elle alli ficou, ora n'um
silencio sombrio acabrunhado para o fundo da poltrona,
ora respondendo distrahidamente á tagarellice
da velha, muito falladora essa manhã.
E na semana seguinte foi o mesmo: se o ouvia
entrar fechava-se rapidamente no quarto: só vinha,
se a velha mandava a Gertrudes dizer-lhe «que estava
alli o senhor o parocho que a queria vêr». Ia
então, estendia-lhe a mão, que elle achava sempre
a escaldar—e tomando a sua eterna costura, junto
da janella, ia picando o posponto com uma taciturnidade
que desesperava o padre.
Tinha-lhe escripto outra carta. Ella não respondera.
Então jurava não voltar á
Ricoça, desprezal-a,—mas
depois de ter passado a noite, rolando-se pela
cama sem poder dormir, com a mesma visão da
[570]
nudez d'ella cravada intoleravelmente no cerebro,
lá partia de manhã para a Ricoça,
córando quando o
apontador das obras na estrada, que o via passar todos
os dias, lhe tirava o seu boné d'oleado.
N'uma tarde que choviscava, ao entrar no casarão,
dera com o abbade Ferrão que á porta abria o
seu guardachuva.
—Olá, por aqui, senhor abbade! disse elle.
O abbade respondeu naturalmente:
—Em vossa senhoria é que não ha que estranhar,
que vem por aqui todos os dias...
Amaro não se conteve; e tremendo de cólera:
—E que lhe importa ao senhor abbade se eu venho
ou não? A casa é sua?
Aquella brutalidade tão injustificavel offendeu o
abbade:
—Pois era melhor para todos que não viesse...
—E porque, senhor abbade? e porque?—gritou
Amaro, perdido.
Então o bom homem estremeceu. Commettera,
alli, a culpa mais grave do sacerdote catholico: o
que sabia d'Amaro, dos seus amores, era em segredo
de confissão; e era trahir o mysterio do sacramento,
mostrar que desapprovava aquella insistencia
no peccado. Tirou muito baixo o seu chapéo e disse
humildemente:
—Tem vossa senhoria razão. Peço
perdão do que
disse, sem reflectir. Muito boas tardes, senhor parocho.
—Muito boas tardes, senhor abbade.
[571]
Amaro não entrou na Ricoça. Voltou para a cidade
sob a chuva que batia forte agora. E, apenas
em casa, escreveu uma longa carta a Amelia, em
que lhe contava a scena com o abbade, acabrunhando-o
d'accusações—sobretudo de lhe trahir
indirectamente
o segredo da confissão. Como das outras,
d'esta carta não veio resposta da Ricoça.
Então Amaro começou a acreditar que tanta
resistencia
não podia vir só do arrependimento e do
terror do inferno... «Alli ha homem», pensou. E
devorado d'um ciume negro principiou a rondar de
noite a Ricoça; mas não viu nada; o
casarão permanecia
adormecido e apagado. Uma occasião, porém,
ao aproximar-se do muro do pomar, sentiu
adiante no caminho que desce dos Poyaes uma voz
cantarolar sentimentalmente a valsa dos
Dois
mundos,
e um ponto brilhante de charuto accêso adiantar-se
na escuridão. Assustado, refugiou-se n'um casebre
que desmantelava em ruinas do outro lado da
estrada. A voz calou-se; e Amaro, espreitando, viu
então um vulto que parecia embrulhado n'um chalemanta
claro, parado, contemplando as janellas da Ricoça.
Um furor de ciume apossou-se d'elle, e ia saltar
e atacar o homem—quando o viu seguir tranquillamente
ao comprido da estrada, de charuto alto,
trauteando:
Ouves ao longe retumbar na serra
O som do bronze que nos causa horror...
[572]
Pela voz, pelo chale-manta, pelo andar tinha reconhecido
João Eduardo. Mas teve a certeza que se
um homem fallava de noite a Amelia ou entrava na
quinta—não era decerto o escrevente. Todavia, receoso
de ser descoberto, não tornou a rondar o casarão.
Era com effeito João Eduardo, que sempre que
passava pela Ricoça, de dia ou de noite, parava um
momento a olhar melancolicamente as paredes que
ella habitava. Porque apesar de
tantas desillusões,
Amelia permanecera para o pobre rapaz a
ella, a
bem amada, a coisa mais preciosa da terra. Nem em
Ourem, nem em Alcobaça, nem pelas estalagens onde
errára, nem em Lisboa onde chegára como vem
á praia uma quilha de barco naufragado, deixára
um
momento de a ter presente na alma e de se enternecer
com as saudades d'ella. Durante esses dias
tão amargos de Lisboa, os peores da sua vida, em
que fôra fiel de feitos d'um cartorio obscuro, perdido
n'aquella cidade que lhe parecia ter a vastidão
d'uma Roma ou d'uma Babylonia e em que sentia
o duro egoismo das multidões azafamadas,
esforçava-se
mesmo por desenvolver mais esse amor
que lhe dava como a doçura d'uma companhia. Achava-se
menos isolado, tendo sempre no espirito aquella
imagem com quem travava dialogos imaginados,
nos seus infindaveis passeios ao longo do Caes do
[573]
Sodré, accusando-a das tristezas que o envelheciam.
E esta paixão, sendo para elle como a indefinida
justificação das suas miserias, tornava-o aos
seus
proprios olhos interessante. Era «um martyr de
amor»; isto consolava-o, como o consolára nas suas
primeiras desesperações considerar-se
«uma victima
das perseguições religiosas».
Não era um pobre diabo
banal a quem o acaso, a preguiça, a falta d'amigos,
a sorte e os remendos do casaco mantêm fatalmente
nas privações da dependencia: era um homem
de grande coração, a quem uma catastrophe
em parte amorosa e em parte politica, um drama
domestico e social, forçára assim, depois de
luctas
heroicas, a viajar d'um a outro cartorio com um
sacco de lustrina cheio d'autos. O destino tornára-o
igual a tantos heroes que lera nas novellas sentimentaes...
E o seu paletot coçado, os seus jantares
a quatro vintens, os dias em que não tinha dinheiro
para tabaco, tudo attribuia ao amor fatal d'Amelia
e á perseguição d'uma classe poderosa,
dando assim,
por um instincto muito humano, uma origem
grandiosa ás suas miserias triviaes... Quando via
passar os que elle chamava os
felizes—individuos
batendo tipoia, rapazes que encontrava com uma
linda mulher pelo braço, gente bem atabafada que
se dirigia aos theatros, sentia-se menos desgraçado
pensando que tambem elle possuia um grande luxo
interior que era aquelle amor infeliz. E quando emfim
por um acaso obteve a certeza d'um emprego
[574]
no Brazil, o dinheiro da passagem, idealisava a sua
aventura banal d'emigrante, repetindo-se durante todo
o dia que ia passar os mares, exilado do seu paiz
por uma tyrannia combinada de padres e auctoridades
e por ter amado uma mulher!
Quem lhe diria então, ao emmalar o seu fato no
bahú de lata, que d'ahi a semanas estaria outra vez
a meia legua d'esses padres e d'essas auctoridades,
contemplando d'olho terno a janella d'Amelia! Fôra
aquelle singular Morgadinho de Poyaes,—que não
era nem Morgadinho nem de Poyaes, e apenas um
ricaço excentrico de ao pé d'Alcobaça
que comprára
aquella velha propriedade dos fidalgos de Poyaes, e
que com a posse da terra recebia do povo da freguezia
a honra do titulo: fôra esse santo cavalheiro
que o livrára dos enjôos no paquete e dos acasos
da emigração. Encontrára-o casualmente
no cartorio
onde elle ainda trabalhava nas vesperas da viagem.
O Morgadinho, cliente do velho Nunes, conhecia-lhe
a historia, a façanha do
Communicado, o escandalo
no largo da Sé; e já de ha muito concebera por
elle uma sympathia ardente.
O Morgadinho tinha com effeito por padres um
odio maniaco, a ponto de não lêr no jornal a
noticia
d'um crime, sem decidir (ainda mesmo quando
o culpado estava já sentenciado) que «no fundo
devia
d'haver na historia um sotaina». Dizia-se que
este rancor provinha dos desgostos que lhe dera sua
primeira mulher, devota celebre d'Alcobaça. Apenas
viu João Eduardo em Lisboa e soube da viagem proxima,
[575]
teve immediatamente a idéa de o trazer para
Leiria, installal-o nos Poyaes, e entregar-lhe a
educação
das primeiras letras dos seus dois pequenos
como um insulto estridente feito a todo o clero diocesano.
Imaginava de resto João Eduardo um impio;
e isto convinha ao seu plano philosophico d'educar
os rapazitos n'um «atheismo desbragado».
João
Eduardo aceitou, com as lagrimas nos olhos: era
um salario magnifico que lhe vinha, uma posição,
uma familia, uma rehabilitação estrondosa...
—Oh, senhor Morgado, nunca hei de esquecer o
que faz por mim!...
—É p'ra meu gosto proprio!... É p'ra arreliar
a canalha! E partimos ámanhã!
Em Chão de Maçãs, apenas desceu do
wagon,
exclamou logo para o chefe da estação que
não conhecia
João Eduardo, nem a sua historia:
—Cá o trago, cá o trago em triumpho! Vem
p'ra quebrar a cara a toda a padraria... E se houver
custas a pagar, sou eu que as pago!
O chefe da estação não
estranhou—porque o
Morgadinho passava no districto por maluco.
Foi ahi, nos Poyaes, logo ao outro dia da sua
chegada, que João Eduardo soube que Amelia e D.
Josepha estavam na Ricoça. Soube-o pelo bom abbade
Ferrão, o unico sacerdote a quem o Morgado fallava,
e que recebia em casa, não como padre, mas
como cavalheiro.
—Eu como cavalheiro estimo-o, snr. Ferrão,
costumava elle dizer, mas como padre abomino-o!
[576]
E o bom Ferrão sorria, sabendo que, sob aquella
ferocidade d'impio obtuso, havia um santo
coração,
um pai-de-pobres na freguezia...
O Morgado era tambem grande amador de alfarrabios,
questionador incansavel; ás vezes os dois tinham
pelejas tremendas sobre historia, botanica,
systemas de caça... Quando o abbade, no fogo da
controversia, punha d'alto alguma opinião contraria:
—O senhor apresenta-me isso como padre ou
como cavalheiro? exclamava, empinando-se, o Morgado.
—Como cavalheiro, senhor Morgado.
—Então aceito a objecção.
É sensata. Mas se
fosse como padre, quebrava-lhe os ossos.
Ás vezes, pensando irritar o abbade, mostrava-lhe
João Eduardo, batendo d'alto no hombro do rapaz,
n'uma caricia de amador, como um cavallo favorito:
—Veja-me isto! Já ia dando cabo d'um. E ainda
ha de matar dois ou tres... E se o prenderem hei
de eu livral-o da forca!
—Isso não é difficil, senhor Morgado, dizia o
abbade tomando tranquillamente a sua pitada. Que
já não ha forcas em Portugal...
Então era uma indignação do Morgado.
Não havia
forcas? E porque não? Porque tinhamos um governo
livre e um rei constitucional! Que se se seguisse
a vontade dos padres, havia uma forca em
cada praça e uma fogueira em cada esquina!
[577]
—Diga-me uma coisa, snr. Ferrão, o senhor
vem defender aqui em minha casa a inquisição?
—Oh, senhor Morgado, eu nem sequer fallei da
inquisição...
—Não fallou por medo! Porque sabe perfeitamente
que lhe enterrava uma faca no estomago!
E tudo isto aos gritos e aos pulos pela sala, fazendo
um vendaval com as abas prodigiosas do seu
robe-de-chambre amarello.
—No fundo um anjo, diria o abbade a João
Eduardo. Capaz de dar a camisa mesmo a um padre,
se o soubesse em necessidade... E vossê aqui
está bem, João Eduardo... É
não lhe reparar nas
manias...
Tinha tomado affeição a João Eduardo,
o abbade
Ferrão: e sabendo por Amelia a famosa legenda do
Communicado quizera, segundo a sua
expressão
querida, «folhear o homem aqui e além».
Conversára
com elle tardes inteiras na rua de loureiros da
quinta, na residencia onde João Eduardo se ia fornecer
de livros; e sob o «exterminador de padres»,
como dizia o Morgado, encontrára um pobre
moço sensivel, com uma religião sentimental,
ambições
de paz domestica, e prezando muito o trabalho.
Então viera-lhe uma idéa que, sobretudo por lhe
ter
acudido um dia que sahia das suas devoções ao
Santissimo,
lhe pareceu descida de cima, da vontade
do Senhor: era o casal-o com Amelia. Não seria difficil
levar aquelle coração fraco e terno a perdoar o
erro d'ella; e a pobre rapariga, depois de tantos
[578]
transes, extincta aquella paixão que lhe entrára
na
alma como um sôpro do Demonio, levando-lhe a vontade,
a paz e o pudor d'empurrão para o abysmo,
encontraria na companhia de João Eduardo todo um
resto de vida calmo, e contente, um canto suave
d'interior, refugio dôce e purificação
do passado.
Não fallou nem a um, nem a outro, n'esta idéa que
o enternecia. Não era o momento agora, que ella
trazia nas entranhas o filho do
outro. Mas ia preparando
com amor aquelle resultado,—sobretudo
quando estava com Amelia, contando-lhe as suas conversas
com João Eduardo, algum dito muito sensato
que elle tivera, os bons cuidados de preceptor
que estava desenvolvendo na educação dos
Morgaditos.
—É um bom rapaz, dizia. Homem de familia...
D'estes a quem uma mulher póde realmente confiar
a sua vida e a sua felicidade. Se eu pertencesse ao
mundo, se tivesse uma filha, dava-lh'a...
Amelia não respondia, córando.
Já não podia objectar áquelles elogios
persuasivos
a antiga, a grande objecção—o
Communicado,
a impiedade! O abbade Ferrão destruira-lh'a um
dia, com uma palavra:
—Eu li o artigo, minha senhora. O rapaz não
escreveu contra os sacerdotes, escreveu contra os
phariseus!
E para attenuar este julgamento severo, o menos
caridoso que tivera havia muitos annos, acrescentou:
[579]
—Emfim, foi uma falta grave... Mas está muito
arrependido. Pagou-o com lagrimas, e com fome.
E isto enternecia Amelia.
Fôra tambem por esse tempo que o doutor Gouvéa
começára a vir á Ricoça,
porque D. Josepha tinha
peorado com os dias mais frios do outono. Amelia,
ao principio, á hora da visita, fechava-se no seu
quarto, tremendo á idéa de vêr o seu
estado descoberto
pelo velho doutor Gouvêa, o medico da casa,
aquelle homem d'uma severidade legendaria. Mas
emfim fôra necessario apparecer no quarto da velha,
para receber as suas instrucções de enfermeira
sobre
as horas dos remedios e as dietas. E um dia que
acompanhára o doutor até á porta,
ficou gelada,
vendo-o parar, voltar-se para ella cofiando a sua
grande barba branca que lhe cahia sobre o jaquetão
de velludo, e dizer-lhe sorrindo:
—Eu bem tinha dito a tua mãi que te casasse!
Duas lagrimas saltaram-lhe dos olhos.
—Bem, bem, pequena, não te quero mal por
isso. Estás na verdade. A natureza manda conceber,
não manda casar. O casamento é uma
fórmula administrativa...
Amelia olhava-o, sem o comprehender, com as
duas lagrimas muito redondinhas a correrem-lhe devagar
pela face. Elle bateu-lhe com os dedos no
queixo, muito paternal:
[580]
—Quero dizer que, como naturalista, regosijo-me.
Acho que te tornaste util á ordem geral das
coisas. Vamos ao que importa...
Deu-lhe então conselhos sobre a hygiene que devia
ter.
—E quando chegar a occasião, se te vires atrapalhada,
manda-me chamar...
Ia descer; Amelia deteve-o, e com uma supplicação
assustada:
—Mas o senhor doutor não vai dizer nada na cidade...
O doutor Gouvéa parou:
—Então não é estupida?...
Está bom, tambem
t'o perdôo. Está na logica do teu temperamento.
Não,
não digo nada, rapariga. Mas p'ra que diabo,
então,
não casaste tu com esse pobre João Eduardo?
Fazia-te
tão feliz como o outro, e já não
tinhas de pedir
segredo... Emfim, isso para mim é um detalhe
secundario... O essencial é o que te disse... Manda-me
chamar. Não te fies muito nos teus santos...
Eu entendo mais d'isso que Santa Brigida ou lá
quem é. Que tu és forte, e has de dar um bom
mocetão
ao Estado.
Todas estas palavras que em parte não comprehendera
bem, mas em que sentia uma vaga justificação
e uma bondade d'avô indulgente, sobretudo
aquella sciencia que lhe promettia a saude e a que
as barbas grisalhas do doutor, umas barbas de Padre
Eterno, davam um ar d'infallibilidade, reconfortaram-na,
augmentaram a serenidade que havia semanas
[581]
gozava, desde a sua confissão desesperada na capella
dos Poyaes.
Ah, fôra decerto Nossa Senhora, compadecida
emfim dos seus tormentos, que lhe mandára do céo
aquella inspiração de se ir entregar toda dorida
aos
cuidados do abbade Ferrão! Parecia-lhe que
deixára
lá, no seu confessionario azul-ferrete, todas as
amarguras, os terrores, a negra farrapagem de remorso
que lhe abafava a alma. A cada uma das
suas consolações tão persuasivas
sentira desapparecer
o negrume que lhe tapava o céo: agora via tudo
azul; e quando rezava, já Nossa Senhora não
desviava o rosto indignado. É que era tão
differente
aquella maneira de confessar do abbade! Os seus
modos não eram os do representante rigido d'um
Deus carrancudo; havia n'elle alguma coisa de feminino
e de maternal que passava na alma como
uma caricia; em logar de lhe erguer diante dos olhos
o sinistro scenario das chammas do Inferno, mostrára-lhe
um vasto céo misericordioso com as portas
largamente abertas, e os caminhos multiplicados que
lá conduzem, tão faceis e tão
dôces de trilhar que
só a obstinação dos rebeldes se recusa
a tental-os.
Deus apparecia, n'aquella suave interpretação da
outra
vida, como um bom bisavô risonho; Nossa Senhora
era uma irmã de caridade; os santos, camaradas
hospitaleiros! Era uma religião amavel, toda banhada
de graça, em que uma lagrima pura basta para
remir uma existencia de peccado. Que differente da
soturna doutrina que desde pequena a trazia aterrada
[582]
e tremula! Tão differente—como aquella pequena
capella d'aldeia da vasta massa de cantaria da
Sé. Lá, na velha Sé, muralhas da
espessura de covados
separavam da vida humana e natural: tudo
era escuridão, melancolia, penitencia, faces severas
d'imagens; nada do que faz a alegria do mundo alli
entrava, nem o alto azul, nem os passaros, nem o
ar largo dos prados, nem os risos dos labios vivos;
alguma flôr que havia era artificial; o
enxota-cães lá
se postava ao portal para não deixar passar as criancinhas;
até o sol estava exilado, e toda a luz que
havia vinha dos lampadarios funebres. E alli, na capellita
dos Poyaes, que familiaridade da natureza
com o bom Deus! Pelas portas abertas penetrava a
aragem perfumada das madresilvas; pequerruchos
brincando faziam sonoras as paredes caiadas; o altar
era como um jardinete e um pomar; pardaes
atrevidos vinham chilrear até junto aos pedestaes
das cruzes; ás vezes um boi grave mettia o focinho
pela porta com a antiga familiaridade do curral de
Belem, ou uma ovelha tresmalhada vinha regosijar-se
de vêr um da sua raça, o Cordeiro Paschal, dormir
regaladamente ao fundo do altar com a santa
cruz entre as patas.
Além d'isso o bom abbade, como elle lhe dissera,
«não queria impossiveis». Sabia bem que
ella
não podia arrancar n'um momento aquelle amor culpado,
que ganhára raizes até ás profundezas
do seu
sêr. Queria apenas que quando a assaltasse a idéa
de Amaro se abrigasse logo na idéa de Jesus. Com
[583]
a força colossal de Satanaz, que tem o poder d'um
Hercules, uma pobre rapariga não póde luctar
braço
a braço: póde sómente refugiar-se na
oração quando
o sente, e deixal-o fatigar-se de rugir e espumar
em torno d'esse asylo impenetravel. Elle mesmo cada
dia a ia ajudando n'aquella repurificação da
alma,
com uma solicitude de enfermeiro: fôra elle
que lhe marcára, como um ensaiador n'um theatro,
a attitude que devia ter na primeira visita de Amaro
á Ricoça; era elle que chegava, com alguma breve
palavra reconfortante como um cordial, se a via
vacillar n'aquella lenta reconquista da virtude; se
a noite fôra agitada das lembranças calidas dos
prazeres
passados, era durante toda a manhã uma boa
palestra, sem tom pedagogico, em que lhe mostrava
familiarmente que o céo lhe daria alegrias
maiores que o quarto enxovalhado do sineiro. Chegára,
com uma subtileza de theologo, a demonstrar-lhe
que no amor do parocho não havia senão
brutalidade
e furor bestial; que, dôce como era o amor
do homem, o amor do padre só podia ser uma
explosão
momentanea do desejo comprimido; quando
tinham começado as cartas do parocho,
analysára-lh'as
phrase a phrase, revelando-lhe o que ellas
continham de hypocrisia, de egoismo, de rhetorica,
e de desejo torpe...
Ia-a assim lentamente desgostando do parocho.
Mas não a desgostava do amor legitimo, purificado
pelo sacramento; conhecia bem que ella era toda
de carne e de desejos, e que lançal-a violentamente
[584]
no mysticismo seria apenas torcer-lhe um momento
o instincto natural e não crear-lhe uma paz duradoura.
Não tentava arrancal-a bruscamente á realidade
humana; elle não a queria para freira; só
desejava
que aquella força amante que sentia n'ella
servisse á alegria d'um esposo e á util harmonia
d'uma familia, e não se gastasse erradamente em
concubinagens casuaes... No fundo, o bom Ferrão
preferiria decerto na sua alma de sacerdote que a
rapariga se separasse absolutamente de todos os interesses
egoistas do amor individual, e se désse,
como irmã da caridade, como enfermeira d'um recolhimento,
ao amor mais largo de toda a humanidade.
Mas a pobre Ameliasita tinha a carne muito
bonita e muito fraca; não seria prudente assustal-a
com sacrificios tão altos; era toda mulher—toda mulher
devia ficar; limitar-lhe a acção era estragar-lhe
a utilidade. Christo não lhe bastava com os seus
membros ídeaes pregados na cruz: era-lhe necessario
um homem como todos, de bigode e chapéo alto.
Paciencia! Que ao menos elle fosse um esposo sob
a legitimação sacramental...
Assim a ia curando d'aquella paixão morbida
com uma direcção de todos os dias, uma d'estas
persistencias
de missionario que só dá a fé sincera,
pondo a subtileza d'um casuista ao serviço da moralidade
d'um philosopho, paternal e habil—uma
cura maravilhosa de que o bom abbade em segredo
tirava alguma vaidade.
E foi grande a sua alegria quando lhe pareceu
[585]
que emfim a paixão por Amaro já não
era na alma
d'ella um sentimento vivo; mas estava morto, embalsamado,
arrumado no fundo da sua memoria como
n'um jazigo, escondido já sob a delicada florescencia
d'uma virtude nova. Assim julgava pelo menos
o bom Ferrão—vendo-a agora alludir ao passado
com o olhar tranquillo, sem aquelles rubores que
outr'ora lhe escaldavam a face ao simples nome de
Amaro.
Ella, com effeito, já não pensava no senhor
parocho
com a commoção d'outr'ora: o terror do peccado,
a influencia penetrante do abbade, aquella
brusca separação do meio devoto em que o seu
amor se desenvolvera, o gozo que sentia n'uma serenidade
maior, sem sustos nocturnos e sem a inimizade
de Nossa Senhora, tudo concorrêra para que
o fogo ruidoso d'aquelle sentimento se fosse reduzindo
a alguma braza que rebrilhava surdamente.
O parocho estivera ao principio na sua alma com o
prestigio d'um idolo coberto d'oiro; mas tantas vezes,
desde a sua gravidez, sacudira, nas horas de
terror religioso ou de arrependimento hysterico,
aquelle idolo, que todo o dourado lhe ficára nas
mãos, e a fórma trivial e escura que apparecia
por
baixo já não a deslumbrava; viu por isso o abbade
derrubar-lh'o inteiramente, sem chorar e sem luctar.
Se ainda pensava em Amaro, é porque não podia
deixar de pensar na casa do sineiro; mas o que a
tentava ainda era o prazer e não o parocho.
E com a sua natureza de boa rapariga tinha um
[586]
reconhecimento sincero pelo abbade. Como dissera a
Amaro n'aquella tarde, «devia-lhe tudo». Era o que
sentia agora tambem pelo doutor Gouvêa, que vinha
regularmente vêr a velha de dois em dois dias.
Eram os seus bons amigos, como dois papás que o
céo lhe mandava—um que lhe promettia a saude,
outro a graça.
Refugiada n'aquellas duas protecções, gozou uma
paz adoravel nas ultimas semanas de outubro. Os
dias iam muito serenos e muito tepidos. Era bom
estar no terraço, pelas tardes, n'aquella serenidade
outonal dos campos. O doutor Gouvêa ás vezes
encontrava-se
com o abbade Ferrão; ambos se estimavam;
depois da visita á velha, iam para o terraço,
e começavam logo as suas eternas questões sobre
Religião e sobre Moral.
Amelia, com a costura cahida nos joelhos, sentindo
os seus dois amigos ao pé, aquelles dois colossos
de sciencia e de santidade, abandonava-se ao
encanto da hora suave, olhando a quinta onde as
arvores já empallideciam. Pensava no futuro; elle
apparecia-lhe agora facil e seguro; era forte, e o
parto, com a presença do doutor, seria apenas uma
hora de dôres; depois, livre d'aquella
complicação,
voltaria para a cidade e para a mamã... E então
uma outra esperança, que nascera das conversas constantes
do abbade sobre João Eduardo, vinha bailar-lhe
na imaginação. Porque não?... Se o
pobre rapaz
a amasse ainda, e perdoasse!... Elle nunca lhe repugnára
como homem, e seria um casamento esplendido
[587]
agora que elle tinha a amizade do Morgado. Dizia-se
que João Eduardo ia ser o administrador da
casa... E entrevia-se vivendo nos Poyaes, passeando
na caleche do Morgado, chamada para jantar por
uma campainha, servida por um escudeiro de libré...
Ficava muito tempo immovel, banhada na doçura
d'esta perspectiva, emquanto o abbade e o doutor
ao fundo do terraço pelejavam sobre a doutrina
da Graça e da Consciencia, e monotonamente a agua
das regas murmurava no pomar.
Foi por este tempo que D. Josepha, inquieta de
não vêr apparecer o senhor parocho,
mandára expressamente
o caseiro a Leiria, pedir a sua senhoria
a esmola d'uma visita. O homem voltára com a espantosa
noticia de que o senhor parocho partira para
a Vieira, e não viria senão d'ahi a duas semanas.
A velha choramingou de desgosto. E Amelia, n'essa
noite, no seu quarto, não pôde adormecer—na
irritação
que lhe dava aquella idéa do senhor parocho
a divertir-se na Vieira, sem pensar n'ella decerto,
chalaceando com as senhoras na praia, e andando de
serão em serão...
Com a primeira semana de novembro vieram
as chuvas. A Ricoça parecia agora mais lugubre
n'aquelles dias curtos, banhados d'agua, sob um céo
de tempestade. O abbade Ferrão, tolhido de rheumatismo,
já não apparecia na quinta. O doutor
Gouvêa,
[588]
depois da visita de meia hora, abalava no seu velho
cabriolet. A unica
distracção de Amelia era estar á
janella por dentro dos vidros: tres vezes vira passar
João Eduardo na estrada; mas elle ao avistal-a baixava
os olhos ou refugiava-se mais sob o guardachuva.
A Dionysia vinha tambem frequentemente: devia
ser a parteira, apesar do doutor Gouvêa ter aconselhado
a Michaela, matrona d'uma experiencia de
trinta annos. Mas Amelia «não queria mais gente no
segredo», e além d'isso Dionysia trazia-lhe as
noticias
d'Amaro, que ella sabia pela cozinheira. O senhor
parocho tinha-se achado tão bem na Vieira que
se ia demorar até dezembro. Aquelle «procedimento
infame» indignava-a: não duvidava que o parocho
queria estar longe quando chegassem os transes, os
perigos do parto. Além d'isso era decidido d'ha muito
que a criança havia de ser entregue a uma ama
de ao pé de Ourem, que a criaria na aldeia: e agora
o tempo chegava, e a ama não estava fallada,
e o senhor parocho apanhava conchinhas á beira-mar!...
—É indecente, Dionysia, exclamava Amelia furiosa.
—Ah! não me parece bem, não. Que eu podia
fallar á ama... Mas bem vê, são coisas
muito sérias...
O senhor parocho é que se encarregou de tudo...
—É infame!
Além d'isso ella descuidára-se do enxoval—e alli
[589]
estava na vespera de ter a criança, sem um trapo
para a cobrir, sem dinheiro para lh'o comprar! A
Dionysia tinha-lhe mesmo offerecido algumas peças
de enxoval, que uma mulher que ella tivera em casa
lhe deixára empenhadas. Mas Amelia recusára-se
a que o seu filho usasse cueiros alheios, trazendo-lhe
talvez um contagio de doença ou uma sorte infeliz.
E por orgulho não queria escrever a Amaro.
Além d'isso as impertinencias da velha tornavam-se
odiosas. A pobre D. Josepha, privada dos auxilios
devotos d'um padre, um verdadeiro padre (não um
abbade Ferrão), sentia a sua velha alma indefesa exposta
a todas as audacias de Satanaz: a visão singular
que tivera de S. Francisco Xavier nú, repetia-se
agora com uma insistencia pavorosa a respeito
de todos os santos: era toda uma côrte do céo,
arrojando tunicas e habitos, e bailando-lhe na
imaginação
sarabandas em pêllo: e a velha estava morrendo
da perseguição d'estes espectaculos dispostos
pelo demonio. Reclamára o padre Silverio, mas parecia
que um rheumatismo geral tolhia todo o clero
diocesano: desde o principio do inverno o Silverio
estava tambem de cama. O abbade da Cortegassa,
chamado urgentemente, veio—mas para lhe communicar
a receita nova que descobrira de fazer bacalhau
à biscainha... Esta falta d'um padre virtuoso
dava-lhe um humor feroz, que recahia sobre Amelia
n'uma chuva de impertinencias.
E a boa senhora estava pensando sériamente em
[590]
mandar a Amor pelo padre Brito—quando uma tarde,
ao fim do jantar, inesperadamente, o senhor parocho
appareceu!
Vinha magnifico, trigueiro do sol e do ar do mar,
de casaco novo e botins de verniz. E palrando longamente
ácerca da Vieira, dos conhecidos que estavam,
da pesca que fizera, dos soberbos quinos
fazia passar n'aquelle triste quarto de doente velha
todo um sopro vivificante da vida divertida á beira-mar.
D. Josepha tinha duas lagrimas nas palpebras
do gozo de vêr o senhor parocho, de o ouvir.
—E a mamã passa bem, disse elle a Amelia. Já
tem os seus trinta banhos. Ganhou outro dia quinze
tostões a uma batotinha que se arranjou... E por
cá que têm feito?
Então a velha rompeu em queixumes amargos:
Uma solidão! Um tempo de chuva! Uma falta de
amizades! Ai! ella estava alli a perder a sua alma
n'aquella quinta fatal...
—Pois eu, disse o padre Amaro traçando a perna,
dei-me tão bem que estou com idéas de voltar
para a semana.
Amelia, sem se conter, exclamou:
—Ora essa! outra vez!
—Sim, disse elle. Se o senhor chantre me der
uma licença d'um mez, vou lá passal-o... Fazem-me
uma cama na sala de jantar do padre-mestre, e tomo
um par de banhos... Estava farto de Leiria, e
d'aquelle aborrecimento...
[591]
A velha parecia desolada. O quê, voltar! Deixal-as
alli a estarrecer de tristeza!
Elle galhofou:
—Ora, as senhoras não precisam cá de mim.
Estão
bem acompanhadas...
—Eu não sei, disse a velha com azedume, se
os
outros—e accentuou com rancor a
palavra—se
os
outros não precisam do
senhor parocho... Eu é
que não estou
bem
acompanhada, estou aqui a perder
a minha alma... Que as companhias que ahi
vêm não dão honra nem proveito.
Mas Amelia acudiu para contrariar a velha:
—E de mais a mais o senhor abbade Ferrão tem
estado doente... Está com rheumatismo. Sem elle a
casa parece uma prisão.
D. Josepha deu um risinho d'escarneo. E o padre
Amaro, erguendo-se para sahir, lamentou o bom abbade:
—Coitado! Santo homem... Hei de ir vêl-o em
tendo vagar. Pois ámanhã cá
appareço, D. Josepha,
e havemos de pôr essa alma em paz... Não se
incommode,
snr.
a D. Amelia, eu sei agora o caminho.
Mas ella insistiu em o acompanhar. Atravessaram
o salão sem uma palavra. Amaro calçava as suas
luvas
novas de pellica preta. E no alto da escada,
muito ceremoniosamente, tirando o chapéo:
—Minha senhora...
E Amelia ficou petrificada vendo-o descer muito
tranquillo—como se ella lhe fosse mais indifferente
[592]
que os dois leões de pedra, que em baixo dormiam
com o focinho nas patas.
Foi para o quarto chorar de bruços sobre a cama,
de raiva e de humilhação. O infame! E nem uma
palavra
sobre o filho, sobre a ama, sobre o enxoval!
Nem um olhar d'interesse para o seu corpo desfigurado
por aquella prenhez que elle lhe dera! Nem
uma queixa irritada por todos os desprezos que ella
lhe mostrára!... Nada! Calçava as luvas, com o
chapéo ao lado. Que indigno!
Ao outro dia o padre voltou mais cedo. Esteve
muito tempo fechado no quarto com a velha.
Amelia, impaciente, rondava no salão com os
olhos como carvões. Elle appareceu emfim, como na
vespera, calçando as suas luvas com um ar prospero.
—Então já? disse ella n'uma voz que tremia.
-Já, sim, minha senhora. Estive n'uma praticasinha
com a D. Josepha.
Tirou o chapéo, comprimentando muito profundamente:
—Minha senhora...
Amelia, livida, murmurou:
—Infame!
Elle olhou-a, como assombrado:
—Minha senhora...—repetiu.
E, como na vespera, desceu vagarosamente a
larga escadaria de pedra.
O primeiro pensamento d'Amelia foi denuncial-o
ao vigario geral. Depois passou a noite escrevendo-lhe
[593]
uma carta—tres paginas de accusações e de
lastimas. Mas toda a resposta d'Amaro, ao outro dia,
mandada verbalmente pelo Joãosito da quinta, foi
«que talvez apparecesse por lá na
quinta-feira».
Teve outra noite de lagrimas—emquanto na rua
das Sousas o padre Amaro esfregava as mãos, no
regosijo do seu «famoso estratagema». E todavia
não o concebera elle mesmo; tinha-lhe sido suggerido
na Vieira, onde fôra para desabafar com o padre-mestre
e espalhar a mágoa nos ares da praia;
fôra lá que elle o aprendera, o «famoso
estratagema»,
n'uma
soirée, ouvindo
dissertar sobre o amor
o brilhante Pinheiro, premiado em direito e gloria
d'Alcobaça.
—Eu n'isso, minhas senhoras—dizia o Pinheiro,
passando a mão pela cabelleira de poeta, ao
semi-círculo
de damas que pendiam dos seus labios
d'ouro—eu n'isso sou da opinião de Lamartine (era
alternadamente da opinião de Lamartine ou de Pelletan).
Digo como Lamartine: a mulher é igual á
sombra; se correis atraz d'
ella,
foge-vos; se fugis
d'
ella, corre atraz de
vós!
Houve um
muito bem, exclamado com
convicção:
mas uma senhora de grandes proporções,
mãi
de quatro deliciosos anjos todos Marias (como dizia
o Pinheiro), quiz explicações, porque nunca tinha
visto fugir uma sombra.
O Pinheiro deu-as, scientificamente:
—É muito facil d'observar, snr.
a D.
Catharina.
Colloque-se vossa excellencia na praia, quando o sol
[594]
começa a declinar, com as costas para o astro. Se
vossa excellencia caminha em frente, perseguindo a
sombra, ella vai-lhe adiante, fugindo...
—Physica recreativa, muito interessante! murmurou
o escrivão de direito ao ouvido d'Amaro.
Mas o parocho não o escutava; bailava-lhe já na
imaginação «o famoso
estratagema». Ah! mal voltasse
a Leiria, havia de tratar Amelia como uma
sombra e fugir-lhe para ser seguido...—E o resultado
delicioso alli estava—tres paginas de paixão,
com manchas de lagrimas no papel.
Na quinta-feira appareceu, com effeito. Amelia
esperava-o no terraço, d'onde estivera desde
manhã
vigiando a estrada com um binoculo de theatro.
Correu a abrir-lhe o portãosinho verde no muro do
pomar.
—Então, por aqui! disse-lhe o parocho, subindo
atraz d'ella ao terraço.
—É verdade, como estou sósinha...
—Sósinha?
—A madrinha está a dormir e a Gertrudes foi
á cidade... Tenho estado toda a manhã aqui ao
sol.
Amaro ía penetrando pela casa, sem responder;
diante d'uma porta aberta parou, vendo um grande
leito de docel, e em redor cadeiras de couro de convento.
—É o seu quarto aqui, hein?
—É.
Elle entrou familiarmente, com o chapéo na
cabeça.
[595]
—Muito melhor que o da rua da Misericordia. E
boas vistas... São as terras do Morgado, além...
Amelia cerrára a porta, e indo direita a elle,
com os olhos chammejantes:
—Porque não respondeste á minha carta?
Elle riu:
—É boa! E porque não respondeste tu
ás minhas?
Quem começou? Foste tu. Dizes que não queres
peccar mais. Tambem eu não quero peccar mais.
Acabou-se...
—Mas não é isso! exclamou ella pallida
d'indignação.
É que ha a pensar na criança, na ama, no
enxoval... Não é abandonar-me
p'r'áqui!...
Elle poz-se sério, e com um tom resentido:
—Peço perdão... Eu prezo-me de ser um
cavalheiro.
Tudo isso ha de ficar arranjado antes de voltar
p'r'á Vieira...
—Tu não voltas p'r'á Vieira!
—Quem é que diz isso?
—Eu, que não quero que vás!
Puzera-lhe fortemente as mãos nos hombros, retendo-o,
apoderando-se d'elle: e alli mesmo, sem
reparar na porta apenas cerrada, abandonou-se-lhe
como outr'ora.
D'ahi a dois dias o abbade Ferrão appareceu
restabelecido do seu ataque de rheumatismo. Contou
a Amelia a bondade do Morgado, que chegára a
[596]
mandar-lhe todas as tardes, n'um apparelho de lata
com agua quente, uma gallinha cozida em arroz.
Mas era sobretudo a João Eduardo que devia a caridade
melhor; todas as suas horas vagas as passava
ao pé da cama, lendo-lhe alto, ajudando-o a voltar,
ficando com elle até á uma hora da noite n'um
zelo de enfermeiro. Que rapaz! que rapaz!
E de repente, tomando as mãos ambas d'Amelia,
exclamou:
—Diga-me, dá licença que eu lhe conte tudo,
que lhe explique?... Que arranje que elle perdôe.
e esqueça... E que se faça este casamento, se
faça
esta felicidade?
Ella balbuciou espantada, toda escarlate:
—Assim de repente... Não sei... Hei de pensar...
—Pense. E Deus a alumie! disse o velho com
fervor.
Era n'essa noite que Amaro devia entrar pelo
portalzinho do pomar de que Amelia lhe dera a chave.
Infelizmente tinham esquecido a matilha do caseiro.
E apenas Amaro pôz o pé dentro do pomar,
rompeu pelo silencio da noite escura um tão desabrido
ladrar de cães—que o senhor parocho abalou
pela estrada, batendo o queixo de terror.
XXIV
Amaro n'essa manhã mandou á pressa chamar a
Dionysia, apenas recebeu o seu correio. Mas a matrona
que estava no mercado veio tarde, quando
elle á volta da missa acabava d'almoçar.
Amaro queria saber
ao certo e
immediatamente
para quando estava a
coisa...
—O bom successo da pequena?... Entre quinze
a vinte dias... Porquê, ha novidade?
Havia; e o parocho leu-lhe então em confidencia
uma carta que tinha ao lado.
Era do conego, que escrevia da Vieira, dizendo
«que a S. Joanneira tinha já trinta banhos e
queria
voltar! Eu, (acrescentava), perco quasi todas as semanas
tres, quatro banhos, de proposito para os espaçar
e dar tempo, porque cá a minha mulher já
[598]
sabe que eu sem os meus cincoenta não vai. Ora
já tenho quarenta, veja lá vossê.
Demais por aqui
começa a fazer frio devéras. Já se tem
retirado muita
gente. Mande-me pois dizer pela volta do correio
em que estado estão as coisas.» E n'um
post-scriptum
dizia: «Tem vossê pensado que destino se ha
de dar ao
fructo?»
—Mais vinte dias, menos vinte dias, repetiu a
Dionysia.
E Amaro alli mesmo escreveu a resposta ao conego,
que a Dionysia devia levar ao correio: «A
coisa póde estar prompta d'aqui a vinte dias. Suspenda
por todo o modo a volta da mãi! Isso de
modo nenhum! Diga-lhe que a pequena não escreve
nem vai, porque a excellentissima mana passa
sempre adoentada.»
E traçando a perna:
—E agora, Dionysia, como diz o nosso conego,
que destino se ha de dar ao
fructo?
A matrona arregalou os olhos de surpreza:
—Eu pensei que o senhor parocho tinha arranjado
tudo... Que se ia dar a criança a criar fóra da
terra...
—Está claro, está claro, interrompeu o parocho
com impaciencia. Se a criança nascer viva é
evidente
que se ha de dar a criar, e que ha de ser
fóra da terra... Mas ahi é que está!
Quem ha de
ser a ama? É isso que eu quero que vossê me
arranje.
Vai sendo tempo...
A Dionysia pareceu muito embaraçada. Nunca
[599]
gostára de inculcar amas. Ella conhecia uma boa,
mulher forte e de muito leite, pessoa de confiança;
mas infelizmente entrára no hospital, doente...
Sabia d'outra tambem, até tivera negocios com
ella. Era uma Joanna Carreira. Mas não convinha
porque vivia justamente nos Poyaes, ao pé da
Ricoça.
—Qual não convém! exclamou o parocho. Que
tem que viva na Ricoça?... Em a rapariga convalescendo
as senhoras vêm p'r'á cidade, e não se
falla
mais na Ricoça.
Mas a Dionysia procurava ainda, arranhando devagar
o queixo. Tambem sabia d'outra. Essa morava
para o lado da Barrosa, a boa distancia... Criava
em casa, era o seu officio... Mas n'essa nem fallar!
—Mulher fraca, doente?
A Dionysia chegou-se ao parocho, e baixando a
voz:
—Ai, menino, eu não gosto d'accusar ninguem.
Mas, está provado, é uma tecedeira d'anjos!
—Uma quê?
—
Uma tecedeira d'anjos!
—O que é isso? Que significa isso? perguntou
o parocho.
A Dionysia gaguejou-lhe uma explicação. Eram
mulheres que recebiam crianças a criar em casa. E
sem excepção as crianças morriam...
Como tinha
havido uma muito conhecida que era tecedeira, e
[600]
as criancinhas iam para o céo... D'ahi é que
vinha
o nome.
—Então as crianças morrem sempre?
—Sem falhar.
O parocho passeava devagar pelo quarto, enrolando
o seu cigarro.
—Diga lá tudo, Dionysia. As mulheres matam-n'as?
Então a excellente matrona declarou que não
queria accusar ninguem! Ella não fôra espreitar.
Não sabia o que se passava nas casas alheias. Mas
as crianças morriam todas...
—Mas quem vai então entregar uma criança a
uma mulher d'essas?
A Dionysia sorriu, apiedada d'aquella innocencia
d'homem.
—Entregam, sim senhor, ás duzias!
Houve um silencio. O parocho continuava o seu
passeio do lavatorio para a janella, de cabeça baixa.
—Mas que proveito tira a mulher, se as crianças
morrem? perguntou de repente. Perde as soldadas...
—É que se lhe paga um anno de criação
adiantado,
senhor parocho. A dez tostões ao mez, ou
quartinho, segundo as posses...
O parocho agora, encostado á janella, rufava devagar
nos vidros.
—Mas que fazem as auctoridades, Dionysia?
A boa Dionysia encolheu silenciosamente os hombros.
[601]
O parocho então sentou-se, bocejou, e estirando
as pernas disse:
—Bem, Dionysia, vejo que a unica coisa a fazer
é fallar á tal ama que vive ao pé da
Ricoça, á
Joanna Carreira. Eu arranjarei isso...
A Dionysia fallou ainda das peças d'enxoval que
já tinha comprado por conta do parocho, d'um
berço
muito barato em segunda mão que vira no Zé
Carpinteiro—e ia sahir com a carta para o correio,
quando o parocho erguendo-se e galhofando:
—Ó tia Dionysia, essa coisa da
tecedeira
d'anjos
é uma historia, hein?
Então a Dionysia escandalisou-se. O senhor parocho
sabia que ella não era mulher d'intrigas. Conhecia
a tecedeira d'anjos ha mais d'oito annos, de lhe
fallar e de a vêr na cidade quasi todas as semanas.
Ainda no sabbado passado a vira sahir da taberna
do Grego... O senhor parocho já tinha ido á
Barrosa?
Esperou a resposta do parocho, e continuou:
—Pois bem, sabe o começo da freguezia. Ha
um muro cahido. Depois é um caminho que desce.
Ao fundo d'esse corregosito encontra um poço
atulhado. Adiante, retirada, ha uma casita que tem
um alpendre. É lá que ella vive... Chama-se
Carlota...
Isto é p'ra lhe mostrar que sei, amiguinho!
O parocho ficou toda a manhã em casa, passeando
pelo quarto, alastrando o chão de pontas de cigarros.
Alli estava agora diante d'aquelle episodio
[602]
fatal que até ahi fôra apenas um cuidado
distante—dispôr
do filho!
Era bem grave entregal-o assim a uma ama desconhecida,
na aldeia. A mãi, naturalmente, havia
de querer ir a todo o momento vêl-o, a ama poderia
fallar aos visinhos. O rapaz viria a ser, na freguezia,
o
filho do parocho... Algum
invejoso, que
lhe cubiçasse a parochia, poderia denuncial-o ao senhor
vigario geral. Escandalo, sermão, devassa: e,
se não fosse suspenso, poderia como o pobre Brito
ser mandado para longe, para a serra, outra vez
para os pastores... Ah! se o
fructo
nascesse morto!
Que solução natural e perpetua! E para a
criança,
uma felicidade! Que destino podia elle ter n'este
duro mundo? Era o
engeitado, era o
filho do padre.
Elle era pobre, a mãi pobre... O rapaz cresceria
na miseria, vadiando, apanhando o estrume das
bestas, ramelloso e tosco... De necessidade em necessidade
iria conhecendo todas as fórmas do inferno
humano: os dias sem pão, as noites regeladas,
a brutalidade da taberna, a cadeia por fim. Uma enxerga
na vida, a valla na morte... E se morresse—era
um anjinho que Deus recolhia ao paraiso...
E continuava passeando tristemente pelo quarto.
Realmente o nome era bem posto,
tecedeira
d'anjos...
Com razão, quem prepara uma criança para
a vida com o leite do seu peito, prepara-a para os
trabalhos e para as lagrimas... Mais vale torcer-lhe
o pescoço, e mandal-a direita para a eternidade
[603]
bemaventurada! Olha elle! Que vida a sua, n'esses
trinta annos atraz! Uma infancia melancolica,
com aquella pêga da marqueza d'Alegros; depois
a casa na Estrella, com o alarve do tio toucinheiro;
e d'ahi as clausuras do seminario, a neve
constante de Feirão, e alli em Leiria tantos transes,
tanta amargura... Se lhe tivessem esmagado o craneo
ao nascer, estava agora com duas azas brancas,
cantando nos córos eternos.
Mas emfim não havia que philosophar: era partir
para Poyaes e fallar á ama, á snr.
a
Joanna
Carreira.
Sahiu, dirigindo-se para a estrada, sem pressa.
Ao pé da ponte veio-lhe porém de repente a
idéa,
a curiosidade de ir á Barrosa vêr a
tecedeira...
Não lhe fallaria: examinaria apenas a casa, a figura
da mulher, os aspectos sinistros do sitio... Demais
como parocho, como auctoridade ecclesiastica,
devia observar aquelle peccado organisado n'um recanto
d'estrada, impune e rendoso. Podia mesmo
denuncial-o ao senhor vigario geral ou ao secretario
do governo civil...
Tinha ainda tempo, eram apenas quatro horas.
Por aquella tarde suave e lustrosa fazia-lhe bem
um passeio a cavallo. Não hesitou, então; foi
alugar
uma egoa á estalagem do Cruz; e d'ahi a pouco,
d'espora no pé esquerdo, choutava a direito pelo
caminho da Barrosa.
Ao chegar ao corrego, de que lhe fallára a Dionysia,
[604]
apeou, foi andando com a egoa pela arreata.
A tarde estava admiravel; muito alto no azul, uma
grande ave fazia semi-circulos vagarosos.
Encontrou emfim o poço atulhado ao pé de dois
castanheiros onde passaros ainda chilreavam; adiante
n'um terreno plano, muito isolada, lá estava a
casa com o seu alpendre: o sol declinando batia-lhe
na unica janella do lado, accendendo-a n'um resplendor
d'ouro e braza; e, muito delgado, elevava-se
da chaminé um fumo claro no ar sereno.
Uma grande paz estendia-se em redor; no monte,
escuro da rama dos pinheiros baixos, a capellinha
da Barrosa punha a alvura alegre da sua parede
muito caiada.
Amaro ia imaginando então a figura da
tecedeira;
sem saber porque, suppunha-a muito alta, com
um carão trigueiro onde dois olhos de bruxa refulgiam.
Defronte da casa prendeu a egoa á cancella, e
olhou pela porta aberta: era uma cozinha terrea, de
grande lareira, com sahida para o pateo estradado
de matto onde dois bacorinhos foçavam. Na prateleira
da chaminé rebrilhava a louça branca. Dos
lados pendiam grandes cassarolas de cobre, d'um lustro
de casa rica. N'um velho armario meio aberto
branquejavam pilhas de roupa: e havia tanta ordem
que uma claridade parecia sahir do aceio e do arranjo
das coisas.
Amaro então bateu forte as palmas. Uma rôla
[605]
pulou assustada, dentro da sua gaiola de vime pendurada
da parede. Depois chamou alto:
—Senhora Carlota!
Immediatamente do lado do pateo uma mulher
appareceu, com um crivo na mão. E Amaro, surprehendido,
viu uma agradavel creatura de quasi quarenta
annos, forte de peitos, ampla de encontros,
muito branca no pescoço, com duas ricas arrecadas,
e uns olhos negros que lhe lembraram os d'Amelia
ou antes o brilho mais repousado dos da S. Joanneira.
Assombrado, balbuciou:
—Creio que me enganei... Aqui é que mora a
senhora Carlota?
Não se enganára, era ella; mas com a
idéa que
a figura medonha «que tecia os anjos» devia estar
algures, agachada n'um vão tenebroso da casa, perguntou
ainda:
—Vossemecê vive aqui só?
A mulher olhou-o desconfiada:
—Não senhor, disse por fim, vivo com o meu
marido...
Justamente o marido sahia do pateo,—medonho,
esse, quasi anão, com a cabeça embrulhada
n'um lenço e muito enterrada nos hombros, a face
d'uma amarellidão de cera oleosa e lustrosa; no
queixo annelavam-se os pêllos raros d'uma barba
negra; e sob as arcadas fundas sem sobrancelhas,
vermelhejavam dois olhos raiados de sangue, olhos
d'insomnia e de bebedeira.
[606]
—Para o seu serviço, vossa senhoria quer alguma
coisa? disse, muito collado á saia da mulher.
Amaro foi entrando pela cozinha, e tartamudeando
uma historia que ia forjando laboriosamente. Era
uma parente que ia ter o seu bom successo. O
marido não pudéra vir fallar-lhes porque estava
doente... Queriam uma ama para lhes ir para casa,
e tinham-lhe dito...
—Não, fóra de casa, não.
Cá em casa—disse o
anão que não se despegava das saias da mulher,
mirando o parocho de lado com o seu medonho olho
injectado.
Ah, então tinham-n'o informado mal... Sentia;
mas o que o parente queria era uma ama para
casa.
Veio dirigindo-se para a egoa, devagar; parou,
e abotoando o casacão:
—Mas em casa recebem crianças para
criação?...—perguntou
ainda.
—Convindo o ajuste, disse o anão que o seguia.
Amaro arranjou a espora no pé, deu um puxão
ao estribo, demorando-se, rondando em torno da
cavalgadura:
—É necessario trazer-lh'a cá, já se
sabe.
O anão voltou-se, trocou um olhar com a mulher
que ficára á porta da cozinha.
—Tambem se lhe vai buscar, disse.
Amaro batia palmadas no pescoço da egoa.
—Mas sendo a coisa de noite, agora com este
frio, é matar a criança...
[607]
Então os dois, fallando ao mesmo tempo, affirmaram
que não lhe fazia mal. Havendo, já se sabe,
carinho e agasalho...
Amaro cavalgou vivamente a egoa, deu as boas
tardes, e trotou pelo corrego.
Amelia agora começava a andar assustada. De
dia e de noite só pensava n'aquellas horas, que se
avisinhavam, em que devia sentir chegarem as dôres.
Soffria mais que durante os primeiros mezes; tinha
tonturas, perversões de gosto—que o doutor Gouvêa
observava, franzindo a testa descontente. As
noites eram más, n'uma turbação de
pesadêlos. Já
não eram as allucinações religiosas:
isso cessára
n'uma subita aplacação de todo o terror devoto:
não sentiria menos temor de Deus, se já fosse uma
santa canonisada. Eram outros medos, sonhos em
que o parto se lhe representava de modos monstruosos:
ora era um sêr medonho que lhe saltava das
entranhas, metade mulher e metade cabra; ora era
uma cobra infindavel que lhe sahia de dentro, durante
horas, como uma fita de leguas, enrolando-se
no quarto em roscas successivas que ganhavam a
altura do tecto: e acordava em tremuras nervosas
que a deixavam prostrada.
Mas anciava por ter a criança. Estremecia á
idéa
de vêr um dia inesperadamente a mãi apparecer na
Ricoça. Ella escrevera-lhe, queixando-se do senhor
[608]
conego que a retinha na Vieira, dos temporaes que
já reinavam, da solidão que se ia fazendo na
praia.
Além d'isso D. Maria da Assumpção
voltára; felizmente,
uma noite providencialmente gelada dera-lhe
durante a jornada uma inflammação dos
bronchios—e
estava de cama para semanas, segundo
dizia o doutor Gouvêa. O Libaninho, esse, tambem
viera á Ricoça; e sahira lastimando-se de
não ter
visto a Amelinha «que tinha n'esse dia enxaqueca».
—Se isto se demora mais quinze dias, vem-se
a descobrir tudo, dizia ella, choramigando, a Amaro.
—Paciencia, filha. Não se póde forçar
a natureza...
—O que tu me tens feito soffrer! suspirava ella,
o que tu me tens feito soffrer!
Elle calava-se resignado—muito bom, muito
terno agora com ella. Vinha-a vêr quasi todas as
manhãs, porque não queria pelas tardes encontrar
o abbade Ferrão.
Tranquillisára-a a respeito da ama, dizendo-lhe
que fallára á mulher da Ricoça
inculcada pela Dionysia.
Era uma escolha rica a snr.
a Joanna Carreira!
Mulher forte como um carvalho, com barricas
de leite, e dentes de marfim...
—Fica-me tão longe para vir vêr depois a
criança...—suspirava ella.
Tomavam-n'a agora pela primeira vez enthusiasmos
de mãi. Desesperava-se em não poder ella
mesma costurar o resto do enxoval. Queria que o rapaz—porque
havia de ser um rapaz!—se chamasse
[609]
Carlos. Scismava-o já homem, e official de cavallaria.
Enternecia-se com a esperança de o vêr gatinhar...
—Ai, eu é que o queria criar, se não fosse a
vergonha!...
—Vai muito bem para onde vai, dizia Amaro.
Mas o que a torturava, a fazia chorar todos os
dias era a idéa de elle ser um engeitadinho!
Um dia veio ao abbade com um plano extraordinario
«que lhe inspirára Nossa Senhora»: ella
casaria
já com João Eduardo, mas o rapaz devia por
uma escriptura adoptar o Carlinhos! Que para que
o anjinho não fosse um engeitado, casava até com
um calceteiro da estrada! E apertava as mãos do
abbade, n'uma supplicação loquaz. Que convencesse
João Eduardo, que désse um papá ao
Carlinhos!
Queria ajoelhar aos pés d'elle, do senhor abbade,
que era o seu pai e o seu protector.
—Oh, minha senhora, socegue, socegue. Esse é
tambem o meu desejo, como lhe disse. E ha de arranjar-se,
mas mais tarde, disse o bom velho, atarantado
d'aquella excitação.
Depois, d'ahi a dias, foi outra exaltação;
descobrira
de repente, uma manhã, que não devia trahir
Amaro, «porque era o papá do seu
Carlinhos».
E disse-o ao abbade; fez córar os sessenta annos do
bom velho, palrando muito convencidamente dos
seus deveres d'esposa para com o parocho.
O abbade, que ignorava as visitas do parocho todas
as manhãs, assombrou-se.
[610]
—Minha senhora, que está a dizer? que está a
dizer? Caia em si... Que vergonha!... Imaginei
que lhe tinham passado essas loucuras.
—Mas é o pai do meu filho, senhor abbade, disse
ella, olhando-o muito séria.
Fatigou então Amaro toda uma semana com uma
ternura pueril. Lembrava-lhe cada meia hora que
era o «papá do seu Carlinhos».
—Bem sei, filha, bem sei, dizia elle impaciente.
Obrigado. Não me gabo da honra...
Ella chorava, então, aninhada no sofá. Era
necessaria
toda uma complicação de caricias para a
calmar. Fazia-o sentar n'um banquinho junto d'ella;
tinha-o alli como um boneco, contemplando-o, coçando-lhe
devagarinho a corôa; queria que se tirasse
a photographia ao Carlinhos para a trazerem ambos
n'uma medalha ao pescoço; e se ella morresse,
elle havia de levar o Carlinhos á sepultura, ajoelhal-o,
pôr-lhe as mãosinhas, fazel-o rezar pela
mamã.
Atirava-se então para a almofada, tapando o
rosto com as mãos:
—Ai, pobre de mim, meu querido filho, pobre
de mim!
—Cala-te, que vem gente! dizia-lhe Amaro furioso.
Ah, aquellas manhãs na Ricoça! Eram para elle
como uma penalidade injusta. Ao entrar tinha de ir
á velha escutar-lhe as lamurias. Depois, era aquella
hora com Amelia, que o torturava com as pieguices
d'um sentimentalismo hysterico,—estirada no sofá,
[611]
grossa como um tonel, com a face entumecida, os
olhos papudos...
N'uma d'essas manhãs, Amelia, que se queixava
de caimbras, quiz dar um passeio pelo quarto apoiada
a Amaro: e ia-se arrastando, enorme no seu velho
robe-de-chambre, quando se sentiram, em baixo
no caminho, passos de cavallos: chegaram á janella—mas
Amaro recuou vivamente, deixando Amelia
que embasbacára com a face contra a vidraça. Na
estrada, galhardamente montado n'uma egoa baia,
passava João Eduardo de paletot branco e chapéo
alto; ao lado trotavam os dois Morgaditos, um n'um
poney, outro acorreado n'um burro; e atraz, a distancia,
n'um passo de respeito e de cortejo, um criado
de farda, de bota de cano e esporões enormes,
com uma libré muito larga que lhe fazia na ilharga
rugas grotescas, e no chapéo a roseta escarlate. Ella
ficára assombrada, seguindo-os até que as costas
do
lacaio desappareceram à esquina da casa. Sem uma
palavra, veio sentar-se no sofá. Amaro, que continuava
passeando pelo quarto, teve então um risinho
sarcastico:
—O idiota, de lacaio á retaguarda!
Ella não respondeu, muito escarlate. E Amaro,
chocado, sahiu atirando com a porta, foi para o
quarto de D. Josepha contar-lhe a cavalgada, e vituperar
o Morgado.
—Um excommungado de criado de farda! exclamava
a boa senhora, com as mãos apertadas na
[612]
cabeça. Que vergonha, senhor parocho, que vergonha
para a nobreza d'estes reinos!
Desde esse dia Amelia não tornou a choramigar,
se pela manhã o senhor parocho não vinha. Quem
esperava agora com impaciencia era o senhor abbade
Ferrão, pela tarde. Apoderava-se d'elle, queria-o
n'uma cadeira junto ao canapé: e depois de rodeios
demorados d'ave que tenteia a presa, cahia sobre
a pergunta fatal—se tinha visto o senhor João
Eduardo?
Queria saber o que elle dissera, se fallára n'ella,
se a avistára á janella. Torturava-o com
curiosidades
sobre a casa do Morgado, a mobilia da sala,
o numero de lacaios e de cavallos, se o criado de
farda servia á mesa...
E o bom abbade respondia com paciencia—contente
de a vêr esquecida do parocho, occupada de
João Eduardo: tinha agora a certeza que aquelle casamento
se faria: ella evitava, de resto, pronunciar
sequer o nome d'Amaro, e uma vez mesmo respondeu
ao abbade que lhe perguntava se o senhor parocho
voltára á Ricoça:
—Ai, vem pela manhã vêr a madrinha... Mas
eu não lhe appareço, que nem estou decente...
Todo o tempo que podia estar de pé, passava-o
agora á janella, muito arranjada da cinta para cima
que era o que se podia vêr da estrada—enxovalhada
das saias para baixo. Estava esperando João
Eduardo, os Morgados e o lacaio; e tinha de vez em
quando, com effeito, o gozo de os vêr passar, n'aquelle
[613]
passo bem lançado de cavallos de preço, sobretudo
o da egoa baia de João Eduardo, que elle defronte
da Ricoça fazia sempre ladear, de chicote atravessado
e perna á Marialva, como lhe ensinára o Morgado.
Mas era o lacaio, sobretudo, que a encantava: e
com o nariz nos vidros seguia-o n'um olhar guloso,
até que á volta da estrada via desapparecer o
pobre
velho, de dorso corcovado, com a gola da farda até
á nuca e as pernas bamboleantes.
E para João Eduardo que delicia aquelles passeios
com os Morgaditos, na egoa baia! Nunca deixava
de ir á cidade: fazia-lhe bater o
coração o som
das ferraduras sobre o lagedo: ia passar diante da
Amparo da botica, diante do cartorio do Nunes que
tinha a sua banca ao pé da janella, diante da Arcada,
diante do senhor administrador que lá estava na
varanda de binoculo para a Telles—e o seu desgosto
era não poder entrar com a egoa, os Morgaditos
e o lacaio pelo escriptorio do doutor Godinho que
era no interior da casa.
Foi um dia, depois d'um d'esses passeios triumphaes,
que voltando ás duas horas da Barrosa, ao
chegar ao Poço das Bentas e ao subir para o caminho
de carros, viu de repente o senhor padre Amaro
que descia montado n'um garrano. Immediatamente
João Eduardo fez caracolar a egoa. O caminho
era tão estreito, que apesar de se chegarem às
sebes quasi roçaram os joelhos—e João Eduardo
pôde então, do alto da sua egoa de cincoenta
moedas,
agitando ameaçadoramente o chicote, esmagar
[614]
com um olhar o padre Amaro que se encolhia muito
pallido, com a barba por fazer, a face biliosa, esporeando
ferozmente o garrano ronceiro. No alto do
caminho João Eduardo ainda parou, voltou-se sobre
a sella, e viu o parocho que apeava á porta do casebre
isolado onde ha pouco, ao passar, os Morgaditos
tinham rido «do anão».
—Quem vive alli? perguntou João Eduardo ao
lacaio.
—Uma Carlota... Má gente, snr. Joãosinho!
Ao passar na Ricoça, João Eduardo, como sempre,
poz a passo a egoa baia. Mas não viu por traz
dos vidros a costumada face pallida sob o lenço
escarlate. As portadas da janella estavam meio cerradas;
e ao portão, desatrellado com os varões em
terra, o
cabriolet do doutor
Gouvêa.
É que tinha chegado emfim o dia! N'essa manhã
viera da Ricoça um moço da quinta com um bilhete
de Amelia quasi inintelligivel—
Dionysia depressa,
a coisa chegou! Trazia ordem tambem de ir chamar
o senhor doutor Gouvêa. Amaro foi elle mesmo
avisar a Dionysia.
Dias antes, tinha-lhe dito que D. Josepha, a propria
D. Josepha, lhe inculcára uma ama—que elle
já ajustára, grande mulher, rija como um
castanheiro.
E agora combinaram rapidamente que n'essa
noite Amaro se postaria com a ama á portinha do
[615]
pomar, e Dionysia viria dar-lhe a criança bem atabafada.
—Ás nove da noite, Dionysia. E não nos
faça
esperar!—recommendou-lhe ainda Amaro vendo-a
abalar n'um espalhafato.
Depois voltou a casa e fechou-se no quarto, face
a face com aquella difficuldade que elle sentia como
uma coisa viva fixal-o e interrogal-o:—Que havia
de fazer á criança? Tinha ainda tempo d'ir aos
Poyaes ajustar a outra ama, a boa ama que a Dionysia
conhecia; ou podia montar a cavallo e ir á
Barrosa fallar á Carlota... E alli estava, diante
d'aquelles dois caminhos, hesitando n'uma agonia.
Queria serenar, discutir aquelle caso como se fosse
um ponto de theologia, pesando-lhe os
prós e os
contras: mas tinha temerariamente
diante de si, em
logar de dois argumentos, duas visões:—a criança
a crescer e a viver nos Poyaes, ou a criança esganada
pela Carlota a um canto da estrada da Barrosa...—E,
passeando pelo quarto, suava d'angustia,
quando no patamar a voz inesperada do Libaninho
gritou:
—Abre, parochosinho, que sei que estás em casa!
Foi necessario abrir ao Libaninho, apertar-lhe a
mão, offerecer-lhe uma cadeira. Mas o Libaninho felizmente
não se podia demorar. Passára na rua, e
subira a saber se o amigo parocho tinha noticias
d'aquellas santinhas da Ricoça.
—Vão bem, vão bem, disse Amaro que obrigava
a face a sorrir, a prazentear.
[616]
—Eu não tenho podido ir lá, que tenho andado
mais occupado!... Estou de serviço no quartel...
Não te rias, parochosinho, que estou lá fazendo
muita
virtude... Metto-me com os soldadinhos, fallo-lhes
das chagas de Christo...
—Andas a converter o regimento, disse Amaro
que mexia nos papeis da mesa, passeava, n'uma
inquietação
d'animal preso.
—Não é para as minhas forças,
parocho, que se
eu pudesse!... Olha, agora vou eu levar a um sargento
uns bentinhos... Foram benzidos pelo Saldanhinha,
vão cheios de virtude. Hontem dei outros
iguaes a um anspeçada, perfeito rapaz, um amor de
rapaz... Puz-lh'os eu mesmo por baixo da camisola...
Perfeito rapaz!...
—Devias deixar esses cuidados pelo regimento
ao coronel, disse Amaro abrindo a janella, abafando
d'impaciencia.
—Credo, olha o impio! Se o deixassem desbaptisava
o regimento. Pois adeus, parochosinho. Estás
amarellinho, filho... Precisas purga, eu sei o
que isso é.
Ia a sahir, mas á porta, parando:
—Ai, dize cá, parochosinho, dize cá: tu ouviste
alguma coisa?
—De quê?
—Foi o padre Saldanha que m'o disse. Diz que
o nosso chantre declarára (palavras do Saldanhinha)
que lhe constava que ia na cidade um escandalo
com um senhor ecclesiastico... Mas não disse
[617]
quem nem o
quê... O Saldanha quil-o
sondar, mas
o chantre diz que recebera só uma denuncia vaga,
sem nome... Tenho estado a pensar: quem será?
—Pataratas do Saldanha...
—Ai, filho! Deus queira que sejam. Que quem
folga são os impios... Quando fôres pela
Ricoça dá
recados áquellas santinhas...
E pulou pelos degraus a ir levar «a virtude» ao
batalhão.
Amaro ficára aterrado. Era elle decerto, eram os
seus amores com Amelia que já iam chegando ao vigario
geral em denuncias tortuosas! E alli vinha agora
aquelle filho, criado a meia legua da cidade, ficar
como uma prova viva!... Parecia-lhe extraordinario,
quasi sobrenatural, ter o Libaninho, que em
dois annos não lhe viera a casa duas vezes, ter o
Libaninho entrado com aquella nova terrivel, quando
elle estava alli n'uma batalha com a consciencia.
Era como a Providencia, que sob a fórma grotesca
do Libaninho, vinha trazer-lhe o seu aviso, murmurar-lhe:
«Não deixes viver quem te póde trazer o
escandalo! Olha que já se suspeita de ti!»
Era decerto Deus apiedado que não queria que
houvesse na terra mais um engeitado, mais um miseravel,—e
que
reclamava o seu anjo!...
Não hesitou: partiu para a estalagem do Cruz,
e d'ahi a cavallo para a casa de Carlota.
Demorou-se lá até ás quatro horas.
De volta a casa atirou o chapéo para cima da cama,
[618]
e sentiu emfim um allivio de todo o seu sêr.
Estava acabado! Lá fallára á Carlota e
ao anão; lá
lhe pagára um anno adiantado; agora era esperar
pela noite!...
Mas na solidão do quarto toda a sorte de
imaginações
morbidas o assaltavam: via a Carlota a esganar
a criancinha rôxa; via os cabos de policia mais
tarde a desenterrar o cadaver, o Domingos da
administração
redigindo sobre um joelho o auto de corpo
de delicto, e elle, de batina, arrastado para a cadeia
de S. Francisco, em ferros, ao lado do anão!
Tinha quasi vontade de montar a cavallo, voltar á
Barrosa desfazer o ajuste. Mas uma inercia retinha-o.
Depois, nada o forçava á noite a entregar a
criança
á Carlota... Podia leval-a bem agasalhada á
Joanna
Carreira, a boa ama dos Poyaes...
Para escapar áquellas idéas que lhe faziam sob
o craneo um ruido de tormenta, sahiu, foi vêr Natario
que já se erguia—e que lhe gritou immediatamente
do fundo da poltrona:
—Então vossê viu, Amaro! O idiota, de lacaio
atraz!
João Eduardo passára-lhe na rua, na egoa baia,
com os Morgadinhos; e Natario desde então rugia de
impaciencia de estár alli amarrado á cadeira e
não
poder recomeçar a campanha, expulsal-o por uma
boa intriga da casa do Morgado, arrancar-lhe a egoa
e o lacaio.
—Mas não as perde, em Deus me dando pernas...
[619]
—Deixe lá o homem, Natario, disse Amaro.
Deixal-o! quando tinha uma idéa prodigiosa—que
era provar ao Morgado, com documentos, que o
João Eduardo era um beato! Que lhe parecia, ao
amigo Amaro?
Era engraçado, com effeito. O homem não deixava
de o merecer, só pela maneira como olhava
para a gente de bem, do alto da egoa...—E Amaro
fazia-se vermelho, ainda indignado do encontro,
de manhã, no caminho de carros da Barrosa.
—Está claro! exclamou Natario. Para que somos
nós sacerdotes de Christo? Para exaltar os humildes
e derrubar os soberbos.
D'alli Amaro foi vêr D. Maria da
Assumpção—que
já se erguera tambem—que lhe fez a historia
da sua bronchite e a enumeração dos ultimos
peccados:
o peor era que, para se distrahir um bocado
na convalescença, recostava-se por traz da
vidraça,
e um carpinteiro que mórava defronte embasbacava
para ella; e por influencia do maligno, não tinha
forças para se retirar para dentro, e vinham-lhe pensamentos
maus...
—Mas vossa senhoria não está com
attenção, senhor
parocho.
—Ora essa, minha senhora!
E apressou-se a pacificar-lhe os escrupulos—porque
a salvação d'aquella velha alma idiota era
para elle um emprego melhor que a mesma parochia.
Já escurecia quando entrou em casa. A Escolastica
queixou-se da demora que lhe esturrára o jantar.
[620]
Mas Amaro tomou apenas um copo de vinho
e uma garfada d'arroz, que enguliu de pé, olhando
com terror pela janella a noite que impassivelmente
cahia.
Entrava no quarto a vêr se os candieiros já
estavam
accêsos, quando o coadjutor appareceu. Vinha
fallar-lhe sobre o baptisado do filho do Guedes, que
estava marcado para o dia seguinte ás nove horas.
—Trago luz?—disse de dentro a criada sentindo
a visita.
—Não! gritou logo Amaro.
Temia que o coadjutor visse a alteração que
sentia
nas faces, ou que se installasse para toda a noite.
—Diz que vem na
Nação d'antes
d'hontem um
artigo muito bom, observou o coadjutor, grave.
—Ah! fez Amaro.
Passeava no seu trilho costumado, do lavatorio
para a janella; parava ás vezes a rufar nos vidros;
já se tinham accendido os candieiros.
Então o coadjutor, chocado com aquella treva
do quarto e aquelle passear de fera n'uma jaula, ergueu-se,
e com dignidade:
—Estou a incommodar talvez...
—Não!
E o coadjutor satisfeito sentou-se, com o seu
guardachuva entre os joelhos.
—Agora anoitece mais cedo, disse.
—Anoitece...
Emfim Amaro desesperado declarou-lhe que tinha
uma enxaqueca odiosa, que se ia encostar: e o homem
[621]
sahiu, depois de lhe lembrar ainda o baptisado
do menino do seu amigo Guedes.
Amaro partiu logo para a Ricoça. Felizmente a
noite estava tenebrosa e quente, annunciando chuva.
Ia agora tomado d'uma esperança que lhe fazia
bater o coração: era que a criança
nascesse morta!
E era bem possivel. A S. Joanneira em nova tivera
duas crianças mortas; a anciedade em que vivera
Amelia devia ter perturbado a gestação. E se ella
morresse tambem? Então a esta idéa, que nunca lhe
acudira, invadiu-o bruscamente uma piedade, uma
ternura por aquella boa rapariga que o amava tanto,
e que agora, por obra d'elle, gritava dilacerada
de dôres. E todavia, se ambos morressem, ella e a
criança, era o seu peccado e o seu erro que cahiam
para sempre nos escuros abysmos da eternidade...
Elle ficava, como antes da sua vinda a Leiria, um
homem tranquillo, occupado da sua igreja, d'uma
vida limpa e lavada como uma pagina branca!
Parou junto ao casebre em ruinas á beira da estrada,
onde devia estar a pessoa que da Barrosa vinha
buscar a criança: não se tinha decidido se seria
o homem ou a Carlota: e Amaro receava encontrar
o anão, para lhe levar o filho, com aquelles
olhos raiados d'um sangue mau. Fallou para dentro,
para as trevas do casebre:
—Olá!
Foi um allivio quando a clara voz da Carlota
disse da negrura:
—Cá está!
[622]
—Bem, é esperar, snr.
a Carlota.
Estava contente: parecia-lhe que não tinha nada
a temer, se o filho partisse aninhado contra aquelle
robusto seio de quarentona fecunda, tão fresca e
tão
lavada.
Foi então rondar a casa. Estava apagada e muda,
como um empastamento mais denso de sombra
n'aquella lugubre noite de dezembro. Nem uma fenda
de luz sahia das janellas do quarto d'Amelia. No
ar muito pesado nenhuma folhagem ramalhava. E a
Dionysia não apparecia.
Aquella demora torturava-o. Podia passar gente
e vél-o rondar na estrada. Mas repugnava-lhe ir occultar-se
no casebre em ruinas ao pé de Carlota. Foi
andando ao comprido do muro do pomar, voltou,—e
viu então na porta envidraçada do
terraço uma
claridade de luz apparecer.
Correu para a portinha verde do pomar que quasi
immediatamente se abriu; e a Dionysia, sem uma
palavra, poz-lhe nos braços um embrulho.
—Morta? perguntou elle.
—Qual! Vivo! Um rapagão!
E fechou a porta devagarinho, quando os cães,
farejando rumor, começavam a ladrar.
Então o contacto do seu filho, contra o seu peito,
desmanchou como um vendaval todas as idéas
d'Amaro. O quê! ir dal-o áquella mulher,
á tecedeira
d'anjos, que na estrada o atiraria a algum vallado,
ou em casa o arremessaria á latrina? Ah! não,
era o seu filho!
[623]
Mas que fazer, então? Não tinha tempo de correr
aos Poyaes e acordar a outra ama... A Dionysia
não tinha leite... Não o podia levar para a
cidade...
Oh! que desejo furioso de bater áquella porta
da quinta, precipitar-se para o quarto d'Amelia,
metter-lhe o pequerruchinho na cama, muito agasalhado,
e todos tres ficarem alli como no conchego
d'um céo! Mas quê, era padre! Maldita fosse a
religião
que assim o esmagava!
De dentro do embrulho sahiu um gemido. Correu
então para o casebre—quasi esbarrou com a
Carlota, que se apoderou logo da criança.
—Ahi está, disse elle. Mas ouça lá.
Isto agora é
sério. Agora é outra coisa. Olhe que o
não quero
morto... É para o tratar. O que se passou não
vale...
É para o criar! é para viver. Vossê tem
a sua
fortuna... Trate d'elle!...
—Não tem duvida, não tem duvida, dizia a mulher
apressada.
—Escute... A criança não vai bem agasalhada.
Ponha-lhe o meu capote.
—Vai bem, senhor, vai bem.
—Não vai, com mil diabos! É o meu filho! Ha
de levar o capote! Não quero que morra de frio!
Atirou-lh'o aos hombros com força, traçando-lh'o
sobre o peito, agasalhando a criança;—e a mulher
já enfastiada metteu rapidamente pela estrada.
Amaro ficou alli plantado no meio do caminho,
vendo o vulto perder-se na negrura. Então todos os
seus nervos, depois d'aquelle choque, se relaxaram
[624]
n'uma fraqueza de mulher sensivel—e rompeu a
chorar.
Muito tempo rondou a casa. Mas ella permanecia
na mesma escuridão, n'aquelle silencio que o aterrava.
Depois, triste e fatigado, veio voltando para a
cidade, quando batiam as dez badaladas na Sé.
A essa hora, na sala de jantar da Ricoça, o doutor
Gouvêa ceava tranquillamente o frango assado que
lhe preparára a Gertrudes, para depois das canceiras
do dia. O abbade Ferrão, sentado junto da mesa,
assistia-lhe á ceia; viera munido dos sacramentos para
o caso de haver perigo. Mas o doutor estava satisfeito;
durante as oito horas de dôres a rapariga
mostrára-se corajosa; o parto fôra feliz, de
resto, e
sahira um rapagão que fazia muita honra ao papá.
O bom abbade Ferrão baixava castamente os
olhos áquelles detalhes, no seu pudor de sacerdote.
—E agora, dizia o doutor trinchando o peito do
frango, agora que eu introduzi a criança no mundo,
os senhores (e quando digo os senhores, quero dizer
a Igreja) apoderam-se d'elle e não o largam até
á
morte. Por outro lado, ainda que menos sôfregamente,
o Estado não o perde de vista... E ahi começa
o desgraçado a sua jornada do berço á
sepultura,
entre um padre e um cabo de policia!
O abbade curvou-se, e tomou uma estrondosa
pitada preparando-se para a controversia.
[625]
—A Igreja, continuava o doutor com serenidade,
começa, quando a pobre creatura ainda nem tem sequer
a consciencia da vida, por lhe impôr uma
religião...
O abbade interrompeu, meio sério, meio rindo:
—Ó doutor, ainda que não seja senão
por caridade
com a sua alma, devo advertil-o que o sagrado
Concilio de Trento, canon decimo terceiro, commina
a pena d'excommunhão contra todo o que disser
que o baptismo é nullo, por ser imposto sem a
aceitação da razão.
—Tomo nota, abbade. Eu estou acostumado a
essas amabilidades do Concilio de Trento para commigo
e outros collegas...
—Era uma assembléa respeitavel! acudiu o abbade
já escandalisado.
—Sublime, abbade. Uma assembléa sublime. O
Concilio de Trento e a Convenção foram as duas
mais
prodigiosas assembléas d'homens que a terra tem
presenciado...
O abbade fez uma visagem de repugnacia áquelle
cotejo irreverente entre os santos auctores da doutrina
e os assassinos do bom rei Luiz XVI.
Mas o doutor proseguiu:
—Depois, a Igreja deixa a criança em paz algum
tempo emquanto ella faz a sua dentição e tem
o seu ataque de lombrigas...
—Vá, vá, doutor! murmurava o abbade, escutando-o
pacientemente, de olhos cerrados—como significando
[626]
«anda, anda, enterra bem essa alma no
abysmo de fogo e pez»!
—Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros
symptomas de razão, continuava o doutor,
quando se torna necessario que elle tenha, para o distinguir
dos animaes, uma noção de si mesmo e do
universo, então entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe
tudo! Tudo! Tão completamente, que um gaiato
de seis annos que não sabe ainda o
b-a-bá tem
uma sciencia mais vasta, mais certa, que as reaes
academias combinadas de Londres, Berlim e Paris!
O velhaco não hesita um momento para dizer como
se fez o universo e os seus systemas planetarios;
como appareceu na terra a creação; como se
succederam
as raças; como passaram as revoluções
geologicas
do globo; como se formaram as linguas; como
se inventou a escripta... Sabe tudo: possue
completa e immutavel a regra para dirigir todas as
acções e formar todos os juizos; tem mesmo a
certeza
de todos os mysterios; ainda que seja myope
como uma toupeira vê o que se passa na profundidade
dos céos e no interior do globo; conhece, como
se não tivesse feito senão assistir a esse
espectaculo,
o que lhe ha de succeder depois de morrer... Não
ha problema que não decida... E quando a Igreja
tem feito d'este marmanjo uma tal maravilha de saber,
manda-o então aprender a lêr... O que eu pergunto
é: para que?
A indignação tinha emmudecido o abbade.
[627]
—Diga lá abbade, para que os mandam os senhores
ensinar a lêr? Toda a sciencia universal, o
res scibilis, está no
Catecismo: é metter-lh'o na memoria,
e o rapaz possue logo a sciencia e consciencia
de tudo... Sabe tanto como Deus... De facto, é
Deus mesmo.
O abbade pulou.
—Isso não é discutir, exclamou, isso
não é discutir!...
Isso são chalaças á Voltaire! Essas
coisas
devem-se tratar mais d'alto...
—Como chalaças, abbade? Tome um exemplo: a
formação das linguas. Como se formaram? Foi Deus,
que descontente com a Torre de Babel...
Mas a porta da sala abriu-se, e appareceu a Dionysia.
Havia pouco o doutor tinha-lhe dado uma desanda
no quarto d'Amelia; e agora a matrona fallava-lhe
sempre encolhida de terror.
—Senhor doutor, disse ella no silencio que se
fez, a menina acordou e diz que quer o filho.
—E então? A criança levaram-n'a, não?
—A criança levaram-n'a... disse a Dionysia.
—Bem, acabou-se...
Dionysia ia fechar a porta, mas o doutor chamou-a.
—Ouça lá, diga-lhe que a criança vem
ámanhã...
Que ámanhã sem falta que lh'a trazem. Minta.
Minta como um cão; aqui o senhor abbade dá
licença... Que durma, que socegue.
A Dionysia retirou-se. Mas a controversia não
recomeçou:
diante d'aquella mãi que acordava depois
[628]
da fadiga do parto e reclamava o seu filho, o filho
que lhe tinham levado para longe e para sempre, os
dois velhos esqueceram a Torre de Babel e a
formação
das linguas. O abbade sobretudo parecia commovido.
Mas o doutor não tardou, sem piedade, a
lembrar-lhe que eram aquellas as consequencias da
situação do padre na sociedade...
O abbade baixou os olhos, occupado na sua pitada,
sem responder, como ignorando que houvesse
um padre n'aquella historia infeliz.
O doutor então, seguindo a sua idéa, discursou
contra a preparação e
educação ecclesiastica.
—Ahi tem o abbade uma educação dominada
inteiramente pelo absurdo: resistencia ás mais justas
solicitações da natureza, e resistencia aos mais
elevados movimentos da razão. Preparar um padre é
crear um monstro que ha de passar a sua desgraçada
existencia n'uma batalha desesperada contra os
dois factos irresistiveis do universo—a força da Materia
e a força da Razão!
—Que está o senhor a dizer? exclamou assombrado
o abbade.
—Estou a dizer a verdade. Era que consiste a
educação d'um sacerdote?
Primò: em o preparar
para o celibato e para a virgindade; isto é, para a
suppressão violenta dos sentimentos mais naturaes.
Secundò: em evitar todo o
conhecimento e toda a
idéa que seja capaz d'abalar a fé catholica; isto
é, a
suppressão forçada do espirito
d'indagação e d'exame,
portanto de toda a sciencia real e humana...
[629]
O abbade erguera-se, ferido d'uma piedosa
indignação:
—Pois o senhor nega á Igreja a sciencia?
—Jesus, meu caro abbade, continuou tranquillamente
o doutor, Jesus, os seus primeiros discipulos,
o illustre S. Paulo representaram em parabolas, em
epistolas, n'um prodigioso fluxo labial, que as
producções
do espirito humano eram inuteis, pueris, e
sobretudo perniciosas...
O abbade passeava pela sala, indo contra um e
outro movel como um boi espicaçado, apertando as
mãos na cabeça na desolação
d'aquellas blasphemias;
não se conteve, gritou:
—O senhor não sabe o que diz!... Perdão, doutor,
peço-lhe humildemente perdão... O senhor faz-me
cahir em peccado mortal... Mas isso não é
discutir...
Isso é fallar com a leviandade d'um jornalista...
Lançou-se então com calor n'uma
dissertação sobre
a sabedoria da Igreja, os seus altos estudos gregos
e latinos, toda uma philosophia creada pelos santos
padres...
—Leia S. Basilio! exclamou. Lá verá o que elle
diz dos estudos dos auctores profanos, que são a
melhor preparação para os estudos sagrados! Leia
a
Historia dos mosteiros na meia
idade! Era lá que
estava a sciencia, a philosophia...
—Mas que philosophia, senhor, mas que sciencia!
Por philosophia meia duzia de concepções d'um
espirito mythologico, em que o mysticismo é posto
[630]
em logar dos instinctos sociaes... E que sciencia!
Sciencia de commentadores, sciencia de grammaticos...
Mas vieram outros tempos, nasceram sciencias
novas que os antigos tinham ignorado, a que o ensino
ecclesiastico não offerecia nem base nem methodo,
estabeleceu-se logo o antagonismo entre ellas
e a doutrina catholica!... Nos primeiros tempos, a
Igreja ainda tentou supprimil-as pela
perseguição, a
masmorra, o fogo! Escusa de se torcer, abbade... O
fogo, sim, o fogo e a masmorra. Mas agora não o
póde fazer e limita-se a vituperal-as em mau latim...
E no emtanto continúa a dar nos seus seminarios e
nas suas escólas o ensino do passado, o ensino anterior
a essas sciencias, ignorando-as, e desprezando-as,
refugiando-se na escolastica... Escusa d'apertar
as mãos na cabeça... Estranha ao espirito
moderno,
hostil nos seus principios e nos seus methodos
ao desenvolvimento espontaneo dos conhecimentos
humanos... O senhor não é capaz de negar isto!
Veja o
Syllabus no seu canon
terceiro excommungando
a Razão... No seu canon decimo terceiro...
A porta abriu-se timidamente; era ainda a Dionysia:
—A pequena está a choramingar, diz que quer
a criança.
—Mau, mau! disse o doutor.
E depois d'um momento:
—Que tal aspecto tem ella? Está córada?
Está
inquieta?
—Não senhor, está bem. Só a
choramingar, a
[631]
fallar no pequeno... Diz que o quer hoje por força...
—Converse com ella, distraia-a... Veja se ella
adormece...
A Dionysia retirou-se; e o abbade logo com cuidado:
—Ó doutor, suppõe que lhe possa fazer mal o
affligir-se?
—Póde-lhe fazer mal, abbade, póde—disse o
doutor que rebuscava na sua pharmacia portatil. Mas
eu vou-a fazer dormir... Pois é verdade, a Igreja
hoje é uma intrusa, abbade!
O abbade tornou a levar as mãos á
cabeça.
—Escusa de ir mais longe, abbade. Veja a Igreja
em Portugal. É grato observar-lhe o estado de decadencia...
Pintou-lh'o a largos traços, de pé, com o seu
frasco
na mão. A Igreja fôra a
Nação; hoje era uma minoria
tolerada e protegida pelo Estado. Dominára nos
tribunaes, nos conselhos da corôa, na fazenda, na armada,
fazia a guerra e a paz; hoje um deputado da
maioria tinha mais poder que todo o clero do reino.
Fôra a sciencia no paiz; hoje tudo o que sabia era algum
latim macarronico. Fôra rica, tinha possuido no
campo districtos inteiros e ruas inteiras na cidade; hoje
dependia para o seu triste pão diario do ministro
da justiça, e pedia esmola á porta das capellas.
Recrutára-se
entre a nobreza, entre os melhores do reino;
e hoje, para reunir um pessoal, via-se no embaraço
e tinha de o ir buscar aos engeitados da Misericordia.
Fôra a depositaria da tradição
nacional,
[632]
do ideal collectivo da patria; e hoje, sem
communicação
com o pensamento nacional (se é que o ha)
era uma estrangeira, uma cidadã de Roma, recebendo
de lá a lei e o espirito...
—Pois se está assim tão prostrada, mais uma
razão para a amar!—disse o abbade, erguendo-se
escarlate.
Mas a Dionysia tinha de novo apparecido á porta.
—Que temos mais?
—A menina está-se a queixar d'um peso na cabeça.
Diz que sente faíscas diante dos olhos...
O doutor então immediatamente, sem uma palavra,
seguiu a Dionysia. O abbade, só, passeava pela
sala ruminando toda uma argumentação
erriçada de
textos, de nomes formidaveis de theologos, que ia
fazer desabar sobre o doutor Gouvêa. Mas, meia hora
passou, a luz do candieiro ia esmorecendo, e o
doutor não voltou.
Então aquelle silencio da casa, onde só o som
dos seus passos sobre o soalho da sala punha uma
nota viva, começou a impressionar o velho. Abriu a
porta devagarinho, escutou; mas o quarto d'Amelia
era muito afastado, ao fim da casa, ao pé do
terraço;
não vinha de lá nem rumor nem luz.
Recomeçou
o seu passeio solitario na sala, n'uma tristeza
indefinida que o ia invadindo. Desejaria bem ir
vêr tambem a doente; mas o seu caracter, o pudor
[633]
sacerdotal não lhe permittiam aproximar-se sequer
d'uma mulher no leito, em trabalho de parto, a não
ser que o perigo reclamasse os sacramentos. Outra
hora mais longa, mais funebre, passou. Então, em
pontas de pés, córando na escuridão
d'aquella audacia,
foi até ao meio do corredor: agora, aterrado,
sentia no quarto d'Amelia um ruido confuso e surdo
de pés movendo-se vivamente no soalho, como n'uma
lucta. Mas nem um ai, nem um grito. Recolheu á
sala, e abrindo o seu Breviario começou a rezar.
Sentiu os chinelos da Gertrudes passarem rapidamente,
n'uma carreira. Ouviu uma porta a distancia
bater. Depois o arrastar no soalho d'uma bacia de
latão. E emfim o doutor appareceu.
A sua figura fez empallidecer o abbade: vinha
sem gravata, com o collarinho espedaçado; os
botões
do collete tinham saltado; e os punhos da camisa,
voltados para traz, estavam todos manchados
de sangue.
—Alguma coisa, doutor?
O doutor não respondeu, procurando rapidamente
pela sala o seu estojo, com a face animada d'um
calor de batalha. Ia já sahir com o estojo, mas
lembrando-lhe
a pergunta anciosa do abbade:
—Tem convulsões, disse.
O abbade então deteve-o á porta, e muito grave,
muito digno:
—Doutor, se ha perigo, peço-lhe que se lembre...
É uma alma christã em agonia, e eu estou
aqui.
[634]
—Certamente, certamente...
O abbade tornou a ficar só, esperando. Tudo dormia
na Ricoça, D. Josepha, os caseiros, a quinta, os
campos em redor. Na sala, um relogio de parede,
enorme e sinistro, que tinha no mostrador a carranca
do sol e em cima sobre o caixilho a figura esculpida
em pau d'uma coruja pensativa, um movel de
castello antigo, bateu a meia noite, depois uma hora.
O abbade a cada momento ia até ao meio do
corredor: era o mesmo rumor de pés n'uma lucta;
outras vezes um silencio tenebroso. Voltava então
para o seu Breviario. Meditava n'aquella pobre rapariga
que, além no quarto, estava talvez no momento
que ia decidir da sua eternidade: não tinha ao
pé nem a mãi, nem as amigas: na memoria apavorada
devia passar-lhe a visão do peccado: diante
dos olhos turvos apparecia-lhe a face triste do Senhor
offendido: as dôres contorciam o seu corpo miseravel:
e na escuridão em que ia penetrando, sentia
já o halito ardente da aproximação de
Satanaz.
Temeroso fim do tempo e da carne!—Então rezava
fervorosamente por ella.
Mas depois pensava no outro que fôra uma metade
do seu peccado, e que agora na cidade, estirado
na cama, resonava tranquillamente. E rezava então
tambem por elle.
Tinha sobre o Breviario um pequeno
crucifixo.
E
contemplava-o com amor, abysmava-se enternecido
na certeza da sua força, contra a qual era bem pouca
a sciencia do doutor e todas as vaidades da razão!
[635]
Philosophias, idéas, glorias profanas,
gerações
e imperios passam: são como os suspiros ephemeros
do esforço humano: só ella permanece e
permanecerá,
a cruz—esperança dos homens, confiança
dos desesperados, amparo dos frageis, asylo dos
vencidos, força maior da humanidade:
crux
triumphus
adversus demonios, crux oppugnatorum murus...
Então o doutor entrou, muito escarlate, vibrante
d'aquella tremenda batalha que estava dando lá dentro
á morte; vinha buscar outro frasco; mas abriu
a janella, sem uma palavra, para respirar um momento
uma golfada d'ar fresco.
—Como vai ella? perguntou o abbade.
—Mal, disse o doutor sahindo.
O abbade, então, ajoelhou, balbuciou a
oração
de S. Fulgencio:
—Senhor, dá-lhe primeiro a paciencia, dá-lhe
depois a misericordia...
E alli ficou, com a face nas mãos, apoiado á
beira
da mesa.
A um rumor de passos na sala ergueu a cabeça.
Era a Dionysia, que suspirava, recolhendo todos os
guardanapos que encontrava nas gavetas do aparador.
—Então, senhora, então? perguntou-lhe o abbade.
—Ai, senhor abbade, está perdidinha... Depois
das convulsões que foram d'arripiar, cahiu n'aquelle
somno, que é o somno da morte...
[636]
E olhando para todos os cantos como para se assegurar
da solidão, disse muito excitada:
—Eu não quiz dizer nada... Que o senhor doutor
tem um genio!... Mas sangrar a rapariga
n'aquelle estado é querer matal-a... Que ella tinha
perdido pouco sangue, é verdade... Mas nunca se
sangra ninguem em semelhante momento. Nunca,
nunca!
—O senhor doutor é homem de muita sciencia...
—Póde ter a sciencia que quizer... Eu tambem
não sou nenhuma tola... Tenho vinte annos d'experiencia...
Nunca me morreu nenhuma nas mãos, senhor
abbade... Sangrar em convulsões! Até causa
horror!...
Estava indignada. O senhor doutor tinha torturado
a creaturinha. Até lhe quizera administrar chloroformio...
Mas a voz do doutor Gouvêa berrou por ella do
fundo do corredor—e a matrona abalou, com o seu
mólho de guardanapos.
O medonho relogio, com a sua coruja pensativa,
bateu as duas horas, depois as tres... O abbade,
agora, cedia a espaços a uma fadiga de velho, cerrando
um momento as palpebras. Mas resistia bruscamente:
ia respirar o ar pesado da noite, olhar
aquella treva de toda a aldeia; e voltava a sentar-se,
a murmurar, com a cabeça baixa, as mãos postas
sobre o Breviario:
—Senhor, volta os teus olhos misericordiosos
para aquelle leito d'agonia...
[637]
Foi então Gertrudes que appareceu commovida.
O senhor doutor mandára-a a baixo acordar o moço
para pôr a egoa ao
cabriolet.
—Ai, senhor abbade, pobre creaturinha! Ia tão
bem, e de repente isto... Que foi por lhe tirarem o
filho... Eu não sei quem é o pai, mas o que sei
é
que n'isto tudo anda um peccado e um crime!...
O abbade não respondeu, orando baixo pelo padre
Amaro.
O doutor então entrou com o seu estojo na
mão:
—Se quizer, abbade, póde ir, disse.
Mas o abbade não se apressava, olhando o doutor,
com uma pergunta a bailar-lhe nos labios entreabertos,
e retendo-a por timidez: emfim, não se
conteve, e n'um tom de medo:
—Fez-se tudo, não ha remedio, doutor?
—Não.
—É que nós, doutor, não devemos
aproximar-nos
d'uma mulher em parto illegitimo senão n'um
caso extremo...
—Está n'um caso extremo, senhor abbade, disse
o doutor, vestindo já o seu grande casacão.
O abbade então recolheu o Breviario, a cruz—mas
antes de sahir, julgando do seu dever de sacerdote
pôr diante do medico racionalista a certeza da
eternidade mystica que se desprende do momento
da morte, murmurou ainda:
—É n'este instante que se sente o terror de
Deus, o vão do orgulho humano...
[638]
O doutor não respondeu, occupado a afivelar o
seu estojo.
O abbade sahiu—mas, já no meio do corredor,
voltou ainda, e fallando com inquietação:
—O doutor desculpe... Mas tem-se visto, depois
dos soccorros da religião, os moribundos voltarem
a si de repente, por uma graça especial... A
presença do medico então póde ser
util...
—Eu ainda não vou, ainda não vou, disse o
doutor, sorrindo involuntariamente de vêr a
presença
da Medicina reclamada para auxiliar a efficacia
da Graça.
Desceu, a vêr se estava prompto o
cabriolet.
Quando voltou ao quarto d'Amelia, a Dionysia e
a Gertrudes, de rojos ao lado da cama, rezavam. O
leito, todo o quarto estava revolvido como um campo
de batalha. As duas velas consumidas extinguiam-se.
Amelia estava immovel, com os braços
hirtos, as mãos crispadas d'uma côr de purpura
escura—e
a mesma côr mais arroxeada cobria-lhe a
face rigida.
E debruçado sobre ella, com o crucifixo na mão,
o abbade dizia ainda, n'uma voz d'angustia:
—
Jesu, Jesu, Jesu! Lembra-te da
graça de
Deus! Tem fé na misericordia divina! Arrepende-te
no seio do Senhor!
Jesu, Jesu, Jesu!
Por fim, sentindo-a morta, ajoelhou, murmurando
o
Miserere. O doutor que
ficára á porta retirou-se devagarinho,
atravessou em bicos de pés o corredor, e
desceu á rua, onde o moço segurava a egoa
atrellada.
[639]
—Vamos ter agua, senhor doutor, disse o rapaz
bocejando de somno.
O doutor Gouvêa ergueu a gola do paletot, accommodou
o seu estojo no assento—e d'ahi a um momento
o
cabriolet rodava surdamente pela
estrada,
sob a primeira pancada de chuva, cortando a escuridão
da noite com o clarão vermelho das suas duas
lanternas.
XXV
Ao outro dia desde as sete da manhã, o padre
Amaro esperava a Dionysia em casa, postado á janella,
com os olhos cravados na esquina da rua, sem
reparar na chuva miudinha que lhe fustigava a face.
Mas a Dionysia não apparecia: e elle teve de partir
para a Sé, amargurado e doente, a baptisar o filho
do Guedes.
Foi uma pesada tortura para elle vêr aquella
gente alegre que punha na gravidade da Sé, mais
sombria por esse escuro dia de dezembro, todo um
rumor mal contido de regosijo domestico e de festa
paterna; o papá Guedes resplandecente de casaca
e gravata branca, o padrinho compenetrado com
uma grande camelia ao peito, as senhoras de gala,
e sobretudo a parteira rechonchuda, passeando com
[642]
pompa um montão de rendas engommadas e de
laçarotes
azues onde mal se percebiam duas bochechinhas
trigueiras. Ao fundo da igreja, com o pensamento
bem longe na Ricoça e na Barrosa, foi engorolando
á pressa as ceremonias: soprando em cruz
sobre a face do pequerrucho para expulsar o Demonio
que já habitava aquellas carninhas tenras; impondo-lhe
o sal sobre a bôca para que elle se desgostasse
para sempre do sabor amargo do peccado
e tomasse gosto a nutrir-se só da verdade divina;
tocando-o com saliva nas orelhas e nas narinas, para
que elle não escutasse jámais as
solicitações da carne
e jámais respirasse os perfumes da terra. E em
roda, com tochas na mão, os padrinhos, os convidados,
na fadiga que davam tantos latins rosnados
á pressa, só se occupavam do pequeno, n'um receio
que elle não respondesse com algum desacato impudente
ás tremendas exhortações que lhe fazia
a
Igreja sua Mãi.
Amaro, então, pondo de leve o dedo sobre a touquinha
branca, exigiu do pequerrucho que elle, alli
em plena Sé, renunciasse para sempre a Satanaz,
ás
suas pompas e ás suas obras. O sacristão Mathias,
que dava em latim as respostas rituaes, renunciou
por elle—emquanto o pobre pequerrucho abria a
boquinha a procurar o bico da mama. Emfim o parocho
dirigiu-se á pia baptismal seguido de toda a
familia, das velhas devotas que se tinham juntado,
de gaiatos que esperavam uma distribuição de
patacos.
Mas foi toda uma atrapalhação para fazer as
[643]
unções: a parteira commovida não
atinava a desapertar
os laçarotes do chambre, para pôr a nú
os
hombrosinhos, o peito do pequeno; a madrinha quiz
ajudal-a: mas deixou escorregar a tocha, alastrou de
cera derretida o vestido d'uma senhora, uma visinha
dos Guedes, que ficou embezerrada de raiva.
—Franciscus, credis?—perguntava Amaro.
O Mathias apressou-se a affirmar, em nome de
Francisco:
—Credo.
—Franciscus, vis baptisari?
O Mathias:
—Volo.
Então a agua lustral cahiu sobre a cabecinha redonda
como um melão tenro: a criança agora perneava
n'uma perrice.
—Ego te baptiso, Franciscus, in nomine Patris...
et Filiis... et Espiritus Sancti...
Emfim, acabára! Amaro correu á sacristia a
desvestir-se—emquanto
a parteira grave, o papá Guedes,
as senhoras enternecidas, as velhas devotas e
os gaiatos sahiam ao repique dos sinos; e agachados
sob os guardachuvas, chapinhando a lama, lá
iam levando em triumpho Francisco, o novo christão.
Amaro galgou os degraus de casa com o presentimento
que ia encontrar a Dionysia.
Lá estava, com effeito, sentada no quarto, esperando-o,
amarrotada, enxovalhada da lucta da noite
e da lama da estrada: e apenas o viu começou a
choramingar.
[644]
—Que é, Dionysia?
Ella rompeu em soluços, sem responder.
—Morta! exclamou Amaro.
—Ai, fez-se-lhe tudo, filho, fez-se-lhe tudo! gritou
emfim a matrona.
Amaro tombou para os pés da cama como morto
tambem.
A Dionysia berrou pela criada. Inundaram-lhe a
face d'agua, de vinagre. Elle recuperou-se um pouco,
muito pallido: afastou-as com a mão, sem fallar;
e atirou-se de bruços para sobre o travesseiro, n'um
chôro desesperado,—emquanto as duas mulheres
consternadas iam recolhendo á cozinha.
—Parece que tinha muita amizade á menina,
começou a Escolastica, fallando baixo como na casa
d'um moribundo.
—Costume d'ir por lá. Foi hospede tanto tempo...
Ai, eram como irmãos...—disse a Dionysia,
ainda chorosa.
Fallaram então de doenças de
coração—porque
a Dionysia contára á Escolastica que a pobre
menina
tinha morrido d'um aneurisma rebentado. A Escolastica
tambem soffria do coração; mas n'ella eram
flatos,
dos maus tratos que lhe dera o marido... Ah,
tinha sido bem infeliz tambem!
—Vossemecê toma uma gotinha de café, snr.
a
Dionysia?
—Olhe, a fallar a verdade, snr.
a Escolastica,
tomava
uma gotinha de geropiga...
A Escolastica correu á taberna ao fim da rua,
[645]
trouxe a geropiga n'um copo de quartilho debaixo
do avental: e ambas á mesa, uma molhando sopas
no café, outra escorropichando o copo, concordavam,
com suspiros, que n'este mundo tudo eram sustos e
lagrimas.
Deram onze horas: e a Escolastica pensava em
levar um caldo ao senhor parocho, quando elle chamou
de dentro. Estava de chapéo alto, com o casaco
abotoado, os olhos vermelhos como carvões...
—Escolastica, vá a correr ao Cruz que me mande
um cavallo... Mas depressa.
Chamou então a Dionysia: e sentado ao pé d'ella,
quasi contra os joelhos da mulher, com a face rigida
e livida como um marmore, escutou em silencio
a historia da noite—as convulsões de repente,
tão fortes que ella, a Gertrudes e o senhor doutor
mal a podiam segurar! o sangue, as prostrações em
que cahia! depois a anciedade da asphyxia que a fazia
tão rôxa como a tunica d'uma imagem...
Mas o moço do Cruz chegára com o cavallo. Amaro
tirou d'uma gaveta, d'entre roupa branca, um pequeno
crucifixo, deu-o á Dionysia que ia voltar á
Ricoça
para ajudar a amortalhar a menina.
—Que lhe ponham este crucifixo no peito, tinha-m'o
ella dado...
Desceu, montou; e apenas na estrada da Barrosa
despediu a galope. Não chovia, agora; e entre as
nuvens pardas algum raio fraco do sol de dezembro
fazia brilhar a relva, as pedras molhadas.
Quando chegou ao pé do poço entulhado, d'onde
[646]
se avistava a casa de Carlota, teve de parar, para
deixar passar um longo rebanho d'ovelhas que tomava
o caminho; e o pastor, com uma pelle de cabra
ao hombro e a borracha a tiracollo, fez-lhe lembrar
de repente Feirão, toda a vida passada, que lhe
voltava por fragmentos bruscos—aquellas paizagens
afogadas nos vapores pardacentos da serra; a Joanna
rindo estupidamente dependurada da corda do
sino; as suas ceias de cabrito assado na Gralheira,
com o abbade, defronte da chaminé, onde a lenha
verde estalava; os longos dias em que se desesperava
na tristeza da residencia, vendo fóra sem cessar
cahir a neve... E veio-lhe um desejo ancioso
d'essas solidões da serra, d'essa existencia de lobo,
longe dos homens e das cidades, sepultado lá com
a sua paixão.
A porta da Carlota estava fechada. Bateu, foi de
roda chamar, atirando a voz por cima do telhado dos
curraes, para o pateo, onde sentia cacarejar os gallos.
Ninguem respondeu. Seguiu então pelo caminho
da aldeia, levando a egoa pela arreata; parou na
taberna, onde uma mulher obesa fazia meia sentada
á porta. Dentro, no escuro da baiuca, dois homens
com os seus quartilhos ao lado, batiam as cartas
n'uma bisca renhida; e um rapazola d'uma amarellidão
de sezões, com um lenço amarrado na
cabeça,
olhava-lhes o jogo tristemente.
A mulher tinha justamente visto passar a snr.
a
Carlota, que até parára a comprar um quartilho de
azeite. Devia estar em casa da Michaela, ao adro.
[647]
Chamou para dentro; uma rapariguita vesga appareceu
de traz da sombra das pipas.
—Corre, vai á Michaela, dize à snr.
a
Carlota
que
está aqui um senhor da cidade.
Amaro voltou para a porta da Carlota, esperou
sentado n'uma pedra, com o seu cavallo pela redea.
Mas aquella casa fechada e muda aterrava-o. Foi pôr
o ouvido á fechadura, na esperança d'ouvir um
chôro,
uma rabuje de criança. Dentro pesava um silencio
de caverna abandonada. Mas tranquillisava-o a
idéa que a Carlota teria levado a criança
comsigo,
para Michaela. Devia realmente ter perguntando á
mulher na taberna, se a Carlota trazia uma criança
ao collo... E olhava a casa bem caiada, com a sua
janella em cima que tinha uma cortininha de cassa,
um luxo tão raro n'aquellas freguezias pobres; recordava
a boa ordem, o escarolado da louça da cozinha...
Decerto, o pequerrucho devia ter tambem
um berço aceado...
Ah, estava doido decerto na vespera, quando puzera
alli, na mesa da cozinha, quatro libras em ouro,
preço adiantado d'um anno de criação,
e dissera
cruelmente ao anão—«conto comsigo»!
Pobre pequerruchinho!...
Mas a Carlota comprehendera bem,
á noite na Ricoça, que elle agora queria-o vivo,
o
seu filho, e creado com mimo!... Todavia não o
deixaria alli, não, sob o olho raiado de sangue do
anão... Leval-o-hia essa noite á Joanna Carreira
dos
Poyaes...
[648]
Que as sinistras historias da Dionysia, a
tecedeira
d'anjos, eram uma legenda insensata. A
criança estava
muito regalada em casa de Michaela, chupando
aquelle bom peito de quarentona sã... E vinha-lhe
então o mesmo desejo de deixar Leiria, ir enterrar-se
em Feirão, levar comsigo a Escolastica, educar
lá a criança como sobrinho, revivendo n'elle
largamente
todas as emoções d'aquelle romance de dois
annos; e alli passaria n'uma paz triste, na saudade
de Amelia, até ir como o seu antecessor, o abbade
Gustavo que tambem creára um sobrinho em Feirão,
repousar para sempre no pequeno cemiterio, de verão
sob as flôres silvestres, de inverno sob a neve
branca.
Então a Carlota appareceu; e ficou attonita ao
reconhecer Amaro, sem passar da cancella, com a
testa franzida, a sua bella face muito grave.
—A criança? exclamou Amaro.
Depois d'um momento, ella respondeu, sem
perturbação:
—Nem me falle n'isso, que me tem dado um
desgosto... Hontem mesmo, duas horas depois de
ter chegado... O pobre anjinho começa a fazer-se
rôxo, e alli me morreu debaixo dos olhos...
—Mente! gritou Amaro. Quero vêr.
—Entre, senhor, se quer vêr.
—Mas que lhe disse eu hontem, mulher?
—Que quer, senhor? Morreu. Veja...
Tinha aberto a porta, muito simplesmente, sem
[649]
cólera nem receio. Amaro entreviu n'um relance, ao
pé da chaminé, um berço coberto com um
saiote escarlate.
Sem uma palavra voltou as costas, atirou-se para
cima do cavallo. Mas a mulher, muito loquaz subitamente,
rompeu a dizer que tinha ido justamente
à aldeia para encommendar um caixãosinho
decente...
Como vira que era filho de pessoa de bem,
não o quisera enterrar embrulhado n'um trapo. Mas
emfim, como o senhor alli estava, parecia-lhe razoavel
que désse algum dinheiro para a despeza...
Uns dois mil reis que fossem.
Amaro considerou-a um momento com um desejo
brutal de a esganar; por fim, metteu-lhe o dinheiro
na mão. E ia trotando no carreiro, quando a
sentiu ainda correndo, gritando
pst!
pst! A Carlota
queria-lhe restituir o capote que elle emprestára na
vespera: tinha feito muito bom serviço, que a
criança
chegára quente como um rojãosinho...
Infelizmente...
Amaro já a não escutava, esporeando furiosamente
a ilharga da cavalgadura.
Na cidade, depois de apear à porta do Cruz, não
entrou em casa. Foi direito ao paço do bispo. Tinha
agora uma idéa só: era deixar aquella cidade
maldita,
não vêr mais as faces das devotas, nem a fachada
odiosa da Sé...
Foi só ao subir a larga escadaria de pedra do
paço, que lhe lembrou com inquietação
o que o Libaninho
dissera na vespera da indignação do senhor
[650]
vigario geral, da denuncia obscura... Mas a affabilidade
do padre Saldanha, o confidente do paço, que
o introduziu logo na livraria de sua excellencia, tranquillisou-o.
O senhor vigario geral foi muito amavel.
Estranhou o ar pallido e perturbado do senhor parocho...
—É que tenho um grande desgosto, senhor vigario
geral. Minha irmã está a morrer em Lisboa. E
venho pedir a vossa excellencia licença para lá
ir,
por uns dias...
O senhor vigario geral consternou-se com bondade.
—Decerto, consinto... Ah! somos todos passageiros
forçados da barca de Charonte.
Ipse ratem conto subigit, velisque ministrat
Et ferruginea subvectat corpora cymba.
Ninguem lhe escapa... Sinto, sinto... Não me esquecerei
de a recommendar nas minhas orações...
E muito methodico, sua excellencia tomou uma
nota a lapis.
Amaro, ao sahir do paço, foi direito á
Sé. Fechou-se
na sacristia, a essa hora deserta: e depois
de pensar muito tempo com a cabeça entre os punhos,
escreveu ao conego Dias:
«Meu caro padre-mestre.—Treme-me a mão ao
escrever estas linhas. A infeliz morreu. Eu não posso,
bem vê, e vou-me embora, porque, se aqui ficasse,
estalava-me o coração. Sua excellentissima
irmã lá
[651]
estará tratando do enterro... Eu, como comprehende,
não posso. Muito lhe agradeço tudo...
Até um dia,
se Deus quizer que nos tornemos a vêr. Por mim
conto ir para longe, para alguma pobre parochia de
pastores, acabar meus dias nas lagrimas, na
meditação
e na penitencia. Console como puder a desgraça
da mãi. Nunca me esquecerei do que lhe devo, emquanto
tiver um sopro de vida. E adeus, que nem
sei onde tenho a cabeça.—Seu amigo do
C.—
Amaro
Vieira.»
«P. S. A criança morreu tambem, já se
enterrou.»
Fechou a carta com uma obreia preta; e depois
d'arranjar os seus papeis, foi abrir o grande portão
chapeado de ferro, olhar um momento o pateo, o
barracão, a casa do sineiro... As nevoas, as primeiras
chuvas já davam áquelle recanto da Sé
o seu ar
lugubre d'inverno. Adiantou-se devagar, sob o silencio
triste dos altos contrafortes, espreitou á
vidraça
da cozinha do tio Esguelhas: elle lá estava, sentado
á chaminé, com o cachimbo na bôca,
cuspilhando
tristemente para as cinzas. Amaro bateu de leve nos
vidros—e quando o sineiro abriu a porta, aquelle
interior conhecido, rapidamente entrevisto, a cortina
da alcova da Tótó, a escada que ia para o quarto,
agitaram o parocho de tantas recordações e de
saudades
tão bruscas, que não pôde fallar um
momento,
com a garganta tomada de soluços.
—Venho-lhe dizer adeus, tio Esguelhas, murmurou
[652]
por fim. Vou a Lisboa, tenho minha irmã a morrer...
E acrescentou com os beiços tremulos d'um chôro
que ia romper:
—Todas as desgraças vêm juntas. Sabe, a pobre
Ameliasinha lá morreu de repente...
O sineiro emmudeceu, assombrado.
—Adeus, tio Esguelhas. Dê cá a mão,
tio Esguelhas.
Adeus...
—Adeus, senhor parocho, adeus! disse o velho
com os olhos arrazados d'agua.
Amaro fugiu para casa, contendo-se para não
soluçar alto pelas ruas. Disse logo á Escolastica
que
ia partir n'essa noite para Lisboa. O tio Cruz devia
mandar-lhe um cavallo, para ir tomar o comboio a
Chão de Maçãs.
—Eu não tenho senão o dinheiro que é
necessario
para a jornada. Mas o que ahi me fica em lençoes
e toalhas é para vossê...
A Escolastica, chorando de perder o senhor parocho,
quiz beijar-lhe a mão por tanta generosidade:
offereceu-se para fazer a mala...
—Eu mesmo a arranjo, Escolastica, não se incommode.
Fechou-se no quarto. A Escolastica, ainda choramingando,
foi logo recolher, examinar as poucas
roupas que estavam pelos armarios. Mas Amaro
d'ahi a pouco gritou por ella: diante da janella uma
harpa e uma rebeca, em desafinação, tocavam a
valsa dos
Dois mundos.
[653]
—Dê um tostão a esses homens, disse o padre
furioso. E diga-lhe que vão p'r'ó inferno... Que
está
aqui gente doente!
E até ás cinco horas a Escolastica não
tornou a
sentir rumor no quarto.
Quando o moço do Cruz veio com o cavallo, pensando
que o senhor parocho adormecera, ella foi-lhe
bater devagarinho á porta do quarto, choramingando
já da despedida proxima. Elle abriu logo. Estava de
capote aos hombros; no meio do quarto prompta
e acorreada a mala de lona que devia ir á garupa
da egoa. Deu-lhe um maço de cartas para ir entregar
n'essa noite à snr.
a D. Maria da
Assumpção, ao
padre Silverio e a Natario: e ia descer, entre os
prantos da mulher, quando sentiu na escada um ruido
conhecido de muleta, e o tio Esguelhas appareceu
muito commovido.
—Entre, tio Esguelhas, entre.
O sineiro cerrou a porta, e depois de hesitar um
momento:
—Vossa senhoria ha de desculpar, mas... Tinha-me
esquecido de todo, com os desgostos que
tenho passado. Já ha tempo que achei no quarto
isto, e pensei que...
E metteu na mão de Amaro um brinco d'ouro.
Elle reconheceu-o logo: era d'Amelia. Muito tempo
ella o procurára debalde; soltára-se decerto
n'alguma
manhã d'amor, sobre a enxerga do sineiro. Amaro
então, suffocado, abraçou o tio Esguelhas.
—Adeus! Adeus, Escolastica. Lembrem-se por cá
[654]
de mim. Dê lembranças ao Mathias, tio Esguelhas...
O moço afivelou a maleta ao sellim, e Amaro partiu,
deixando a Escolastica e o tio Esguelhas, a chorar
ambos á porta.
Mas depois de ter passado os açudes, ao pé d'uma
volta da estrada, teve de apear para compôr o estribo:
e ia montar, quando appareceram dobrando o
muro o doutor Godinho, o secretario geral e o senhor
administrador do concelho, muito amigos agora,
e que vinham, depois do passeio, recolhendo para a
cidade. Pararam logo a fallar ao senhor parocho—admirando-se
de o vêr alli, de maleta na garupa,
com ares de jornada...
—É verdade, disse, vou para Lisboa!
O antigo Bibi e o administrador suspiraram invejando-lhe
a felicidade.—Mas quando o parocho
fallou da irmã moribunda, affligiram-se com polidez;
e o senhor administrador disse:
—Deve estar muito sentido, comprehendo... De
mais a mais essa outra desgraça na casa d'aquellas
senhoras suas amigas... A pobre Ameliasinha, morta
assim de repente...
O antigo Bibi exclamou:
—O quê? A Ameliasinha, aquella bonita que
morava na rua da Misericordia? Morreu?
O doutor Godinho tambem o ignorava, e pareceu
consternado.
O senhor administrador soubera-o pela sua criada,
que o ouvira da Dionysia. Dizia-se que fôra um
aneurisma.
[655]
—Pois senhor parocho, exclamou Bibi, desculpe
se afflijo as suas crenças respeitaveis, que são
as
minhas de resto... Mas Deus commetteu um verdadeiro
crime... Levar-nos a rapariga mais bonita da
cidade! Que olhos, senhores! E depois com aquelle
picantesinho da virtude...
Então, n'um tom de pezames, todos lamentaram
aquelle golpe que devia ter affectado tanto o senhor
parocho.
Elle disse muito grave:
—Senti-o deveras... Conhecia-a bem... E com
as suas boas qualidades, devia fazer, sem duvida,
uma esposa modêlo... Senti-o muito.
Apertou silenciosamente as mãos em redor—e
emquanto os cavalheiros recolhiam á cidade, o padre
Amaro foi trotando pela estrada, que já escurecia,
para a estação de Chão de
Maçãs.
Ao outro dia, pelas onze horas, o enterro d'Amelia
sahiu da Ricoça. Era uma manhã aspera: o
céo
e os campos estavam afogados n'uma nevoa pardacenta;
e cahia, muito miuda, uma chuva regelada.
Era longe da quinta a capella dos Poyaes. O menino
do côro adiante, de cruz alçada, apressava-se,
chapinhando
a lama a grandes pernadas; o abbade Ferrão,
d'estola negra, abrigava-se, murmurando o
Exultabunt
Domino, sob o guardachuva que sustentava ao
lado o sacristão com o hyssope; quatro trabalhadores
[656]
da quinta, abaixando a cabeça contra a chuva
obliqua, levavam n'uma padiola o esquife que tinha
dentro o caixão de chumbo; e, sob o vasto guardachuva
do caseiro, a Gertrudes de mantéo pela cabeça
ia desfiando as suas contas. Ao lado do caminho o
valle triste dos Poyaes cavava-se, todo pardo na neblina,
n'um grande silencio; e a voz enorme do vigario,
mugindo o
Miserere, rolava pela
quebrada humida
onde murmuravam os riachos muito cheios.
Mas ás primeiras casas da aldeia os moços do
caixão pararam derreados; e então um homem, que
estava esperando debaixo d'uma arvore sob o seu
guardachuva, veio juntar-se silenciosamente ao enterro.
Era João Eduardo, de luvas pretas, carregado
de luto, com as olheiras cavadas em dois sulcos negros,
grossas lagrimas a correrem-lhe nas faces. E
immediatamente, por traz d'elle, vieram collocar-se
dois criados de farda, com as calças muito
arregaçadas
e tochas na mão—dois lacaios que mandára
o Morgado, para honrar o enterro d'uma d'essas
senhoras da Ricoça, amigas do abbade.
Então, vendo estas duas librés que vinham
afidalgar
o prestito, o menino do côro rompeu logo,
erguendo mais alto a cruz; os quatro homens, já
sem fadiga, impertigaram-se ás varas da padiola: o
sacristão bramiu um
Requiem tremendo. E pelas lamas
do íngreme caminho da aldeia foi subindo o
enterro, emquanto às portas as mulheres se ficavam
persignando, olhando as sobrepellizes brancas e
o caixão de galões d'ouro, que se iam afastando
seguidos
[657]
do grupo de guardachuvas abertos, sob a
chuva triste.
A capella era no alto, n'um adro de carvalheiras:
o sino dobrava: e o enterro sumiu-se para o
interior da igreja escura, ao canto do
Subvenite
sancti que o sacristão entoou em
ronco.—Mas os
dois criados de farda não entraram porque o senhor
Morgado assim o tinha ordenado.
Ficaram á porta, sob o guardachuva, escutando,
batendo os pés regelados. Dentro seguia o
cantochão;
depois era um ciciar d'orações que se amortecia:
e de repente latins funebres lançados pela
voz grossa do vigario.
Então os dois homens, enfastiados, desceram do
adro, entraram um momento na taberna do tio Seraphim.
Dois moços de gado da quinta do Morgado,
que bebiam em silencio o seu quartilho, ergueram-se
logo vendo apparecer os dois criados de farda.
—Á vontade, rapazes, é sentar e beber, disse o
velho baixito que acompanhava João Eduardo a cavallo.
Nós lá estamos, na massada do enterro...
Boas tardes, snr. Seraphim.
Apertaram a mão ao Seraphim, que lhes mediu
duas aguardentes—e informou-se se a defunta era
a noiva do snr. Joãosinho. Tinham-lhe dito que morrera
d'uma veia rebentada.
O baixito riu:
—Qual veia rebentada! Não lhe rebentou coisa
nenhuma. O que lhe rebentou foi um rapagão pelo
ventre...
[658]
—Obra do snr. Joãosinho? perguntou o Seraphim,
arregalando o olho bréjeiro.
—Não me parece, disse o outro com importancia.
O snr. Joãosinho estava em Lisboa... Obra d'algum
cavalheiro da cidade... Sabe vossemecê de
quem eu desconfio, snr. Seraphim?...
Mas a Gertrudes, esbaforida, rompeu pela taberna
gritando que o sahimento já ia ao pé do
cemiterio,
e que não faltavam senão «aquelles
senhores»!
Os lacaios abalaram logo, e alcançaram o enterro
quando ia passando a pequena grade do cemiterio,
ao ultimo versiculo do
Miserere.
João Eduardo agora
levava uma vela na mão, ia logo atraz do caixão
d'Amelia, tocando-o quasi, com os olhos ennevoados
de lagrimas fitos no velludilho negro que o cobria.
Sem cessar o sino na capella dobrava desoladamente.
A chuva cahia mais miuda. E todos calados, no
silencio fusco do cemiterio, com passos abafados pela
terra molle, iam-se dirigindo para o canto do muro
onde estava cavada de fresco a cova d'Amelia, negra
e profunda entre a relva humida. O menino do
côro cravou no chão a haste da cruz prateada, e o
abbade Ferrão, adiantando-se até á
beira do buraco
escuro, murmurou o
Deus cujus
miseratione... Então
João Eduardo, muito pallido, vacillou de repente,
e o guardachuva cahiu-lhe das mãos; um dos
criados de farda correu, segurou-o pela cinta; queriam-no
levar, arrancal-o d'ao pé da cova; mas elle
resistiu, e alli ficou, com os dentes cerrados, segurando-se
desesperadamente á manga do criado, vendo
[659]
o coveiro e os dois moços amarrarem as cordas
no caixão, fazerem-no resvalar devagar entre a terra
esfarellada que rolava, com um ranger de taboas
mal pregadas.
—
Requiem aeternam donna ei, Domine!
—
Et lux perpetua luceat ei, mugiu o
sacristão.
O caixão bateu no fundo com uma pancada surda:
o abbade espalhou em cima uma pouca de terra
em fórma de cruz: e sacudindo lentamente o hyssope
sobre o velludilho, a terra, a relva em redor:
—
Requiescat in pace.
—
Amen, responderam a voz cava do
sacristão e
a voz aguda do menino do côro.
—
Amen, disseram todos n'um
murmurio, que
ciciou, se perdeu entre os cyprestes, as hervas, os
tumulos e as nevoas frias d'aquelle triste dia de dezembro.
XXVI
Nos fins de maio de 1871 havia grande alvoroço
na Casa Havaneza, ao Chiado, em Lisboa. Pessoas
esbaforidas chegavam, rompiam pelos grupos que
atulhavam a porta, e alçando-se em bicos de pés
esticavam o pescoço, por entre a massa dos chapeus,
para a grade do balcão, onde n'uma taboleta
suspensa se collavam os telegrammas da
Agencia
Havas; sujeitos de faces espantadas sahiam
consternados,
exclamando logo para algum amigo mais pacato
que os esperára fóra:
—Tudo perdido! Tudo a arder!
Dentro, na multidão de grulhas que se apertava
contra o balcão, questionava-se forte; e pelo passeio,
no largo do Loreto, defronte ao pé do estanco, pelo
Chiado até ao Magalhães, era, por aquelle dia
já quente
[662]
do começo de verão, toda uma gralhada de vozes
impressionadas onde as palavras—
Communistas!
Versailles! Petroleiros! Thiers! Crime!
Internacional!
voltavam a cada momento, lançadas com
furor, entre o ruido das tipoias e os pregões dos garotos
gritando
supplementos.
Com effeito, a cada hora, chegavam telegrammas
annunciando os episodios successivos da
insurreição
batalhando nas ruas de Paris: telegrammas despedidos
de Versailles n'um terror dizendo os palacios que
ardiam, as ruas que se aluiam; fuzilamentos em massa
nos pateos dos quarteis e entre os mausoleus dos
cemiterios; a vingança que ia saciar-se até
á escuridão
dos esgotos; a fatal demencia que desvairava
as fardas e as blusas; e a resistencia que tinha o furor
de uma agonia com os methodos d'uma sciencia,
e fazia saltar uma velha sociedade pelo petroleo, pela
dynamite e pelo nitro-glycerina! Uma convulsão, um
fim de mundo—que vinte, trinta palavras de repente
mostravam, n'um relance, a um clarão de fogueira.
O Chiado lamentava com indignação aquella ruina
de Paris. Recordavam-se com exclamações os
edificios
ardidos, o Hotel de Ville, «tão bonito»,
a rua Royale,
«aquella riqueza». Havia individuos tão
furiosos
com o incendio das Tulherias como se fosse uma propriedade
sua: os que tinham estado em Paris um ou
dois mezes abriam-se em invectivas, arrogando-se
uma participação de parisiense na riqueza da
cidade,
escandalisados por a insurreição não
ter respeitado
monumentos em que elles tinham posto os seus olhos.
[663]
—Vejam vossês! exclamava um sujeito gordo.
O palacio da Legião d'Honra destruido! Ainda não
ha um mez que eu lá estive com minha mulher...
Que infamia! Que patifaria!
Mas espalhára-se que o ministerio recebera outro
telegramma mais desolador: toda a linha do
boulevard
da Bastilha á Magdalena ardia, e ainda a praça
da Concordia, e as avenidas dos Campos-Elyseos até
ao Arco do Triumpho. E assim tinha a revolta arrazado,
n'uma demencia, todo aquelle systema de restaurantes,
cafés-concertos, bailes publicos, casas de jogo
e ninhos de prostitutas! Então houve por todo o largo
do Loreto até ao Magalhães um estremecimento de
furor. Tinham pois as chammas aniquilado aquella
centralisação tão commoda da
patuscada! Oh que infamia!
O mundo acabava! Onde se comeria melhor
que em Paris? Onde se encontrariam mulheres mais
experientes? Onde se tornaria a vêr aquelle desfilar
prodigioso d'uma volta de Bois, nos dias asperos e
seccos d'inverno, quando as victorias das cocottes
resplandeciam ao pé dos phaetons dos agentes da
Bolsa? Que abominação! Esqueciam-se as
bibliothecas
e os museus: mas a saudade era sincera pela
destruição dos cafés e pelo incendio
dos lupanares.
Era o fim de Paris, era o fim da França!
N'um grupo ao pé da Casa Havaneza os questionadores
politicavam: pronunciava-se o nome de Proudhon
que, por esse tempo, se começava a citar vagamente
em Lisboa como um monstro sanguinolento;
e as invectivas rompiam contra Proudhon. A
[664]
maior parte imaginava que era elle que tinha incendiado.
Mas o poeta estimado das
Flôres e
Ais acudiu
dizendo «que, à parte as asneiras que Proudhon
dizia,
era ainda assim um estylista bastante ameno».
Então o jogador França berrou:
—Qual estylo, qual cabaça! Se aqui o pilhasse
no Chiado rachava-lhe os ossos!
E rachava. Depois do cognac o França era uma
fera.
Alguns moços porém, a quem o elemento dramatico
da catastrophe revolvia o instincto romantico,
applaudiam a heroicidade da Communa—Vermorel
abrindo os braços como o Crucificado, e sob as balas
que o trespassavam gritando: Viva a humanidade! O
velho Delecluze, com um fanatismo de santo, dictando
do seu leito d'agonia as violencias da resistencia...
—São grandes homens! exclamava um rapaz
exaltado.
Em redor as pessoas graves rugiam. Outras afastavam-se
pallidas, vendo já as suas casas na Baixa a
escorrer de petroleo e a mesma Casa Havaneza presa
de chammas socialistas. Então era em todos os grupos
um furor d'auctoridade e repressão: era necessario
que a sociedade, atacada pela Internacional, se refugiasse
na força dos seus principios conservadores e
religiosos, cercando-os bem de baionetas! Burguezes
com tendas de capellistas fallavam da «canalha» com
o desdem imponente d'um La Tremouille ou d'um
Ossuna. Sujeitos, palitando os dentes, decretavam a
vingança. Vadios pareciam furiosos «contra o
operario
[665]
que quer viver como principe». Fallava-se com
devoção na propriedade, no capital!
D'outro lado eram moços verbosos, localistas excitados
que declamavam contra o velho mundo, a
velha idéa, ameaçando-os d'alto, propondo-se a
derruil-os
em artigos tremendos.
E assim uma burguezia entorpecida esperava
deter, com alguns policias, uma evolução social:
e
uma mocidade, envernizada de litteratura, decidia
destruir n'um folhetim uma sociedade de dezoito seculos.
Mas ninguem se mostrava mais exaltado que
um guarda-livros de hotel, que do alto do degrau
da Casa Havaneza brandia a bengala, aconselhando
á França a restauração dos
Bourbons.
Então um homem vestido de preto, que sahira do
estanco e atravessava por entre os grupos, parou,
sentindo uma voz espantada que exclamava ao lado:
—Ó padre Amaro! ó maganão!
Voltou-se: era o conego Dias. Abraçaram-se com
vehemencia, e para conversarem mais tranquillamente
foram andando até ao largo de Camões, e alli
pararam, junto á estatua:
—Então vossê quando chegou, padre-mestre?
Tinha chegado na vespera. Trazia uma demanda
com os Pimentas da Pojeira por causa d'uma servidão
na quinta, tinha appellado para a Relação, e
vinha seguir de perto a questão na capital.
—E vossê, Amaro? Na ultima carta dizia-me que
tinha vontade de sahir de Santo Thyrso.
Era verdade. A parochia tinha vantagens; mas
[666]
vagára Villa-Franca, e elle, para estar mais perto da
capital, viera fallar com o senhor conde de Ribamar,
o seu conde, que lá andava obtendo a transferencia.
Devia-lhe tudo, sobretudo á senhora condessa!
—E de Leiria? A S. Joanneira, vai melhor?
—Não, coitada... Vossê sabe, ao principio tivemos
um susto dos diabos... Pensavamos que lhe ia
succeder como á Amelia. Mas não, era
hydropesia...
E alli o que ha é anasarca...
—Coitada, santa senhora! E o Natario?
—Avelhado. Tem tido seus desgostos. Muita
lingua.
—E diga lá, padre-mestre, o Libaninho?
—Eu escrevi-lhe a esse respeito, disse o conego
rindo.
O padre Amaro riu tambem: e durante um momento
os dois sacerdotes pararam, apertando as
ilhargas.
—Pois é verdade, disse emfim o conego. A
coisa tinha sido realmente escandalosa... Porque
emfim, repare o amigo que o pilharam com o sargento,
de tal modo que não havia a duvidar...
E ás dez horas da noite, na alameda! Já
é imprudencia...
Mas emfim a coisa esqueceu, e quando o
Mathias morreu, lá lhe demos o logar de
sacristão,
que é bem boa posta... Muito melhor que o que
elle tinha no cartorio... E ha de cumprir com
zelo!
—Ha de cumprir com zelo, concordou muito sério
[667]
o padre Amaro. E a proposito, a D. Maria da
Assumpção?
—Homem, rosnam-se coisas... Criado novo...
Um carpinteiro que morava defronte... O rapaz anda
no trinque.
—Palavra?
—No trinque. Charuto, relogio, luva! Tem pilheria,
hein?
—É divino!
—As Gansosos na mesma, continuou o conego.
Têm agora a sua criada, a Escolastica.
—E da besta do João Eduardo?
—Eu mandei-lhe dizer, não? Lá está
ainda nos
Poyaes. O Morgado está mal do figado. E o João
Eduardo diz que está tisico... que eu não sei,
nunca mais o vi... Quem m'o disse foi o Ferrão.
—Como vai elle, o Ferrão?
—Bem. Sabe quem eu vi ha dias? A Dionysia.
—E então?
O conego disse uma palavra baixo ao ouvido do
padre Amaro.
—Deveras, padre-mestre?
—Na rua das Sousas, a dois passos da sua antiga
casa. O D. Luiz da Barrosa é que lhe deu o dinheiro
para montar o estabelecimento. Pois aqui
estão as novidades. E vossê está mais
forte, homem!
Fez-lhe bem a mudança...
E pondo-se diante, galhofando:
—Ó Amaro, e vossê a escrever-me que queria
[668]
retirar-se para a serra, ir para um convento, passar
a vida em penitencia...
O padre Amaro encolheu os hombros:
—Que quer vossê, padre-mestre?... N'aquelles
primeiros momentos... Olhe que me custou! Mas
tudo passa...
—Tudo passa, disse o conego. E depois d'uma
pausa:—Ah! Mas Leiria já não é
Leiria!
Passearam então um momento em silencio, n'uma
recordação que lhes vinha do passado, os quinos
divertidos
da S. Joanneira, as palestras ao chá, as passeatas
ao Morenal, o
Adeus e o
Descrido cantados
pelo Arthur Couceiro e acompanhados pela pobre
Amelia, que agora lá dormia, no cemiterio dos
Poyaes, sob as flôres silvestres...
—E que me diz vossê a estas coisas de França,
Amaro? exclamou de repente o conego.
—Um horror, padre-mestre... O arcebispo, uma
sucia de padres fuzilados!... Que brincadeira!
—Má brincadeira, rosnou o conego.
E o padre Amaro:
—E cá pelo nosso canto parece que começam
tambem essas idéas...
O conego assim o ouvira. Então indignaram-se
contra essa turba de maçons, de republicanos, de
socialistas,
gente que quer a destruição de tudo o que
é respeitavel—o clero, a instrucção
religiosa, a familia,
o exercito e a riqueza... Ah! a sociedade estava
ameaçada por monstros desencadeados! Eram
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necessarias as antigas repressões, a masmorra e a
forca. Sobretudo inspirar aos homens a fé e o respeito
pelo sacerdote.
—Ahi ó que está o mal, disse Amaro, é
que nos
não respeitam! Não fazem senão
desacreditar-nos...
Destroem no povo a veneração pelo sacerdocio...
—Calumniam-nos infamamente, disse n'um tom
profundo o conego.
Então junto d'elles passaram duas senhoras, uma
já de cabellos brancos, o ar muito nobre; a outra,
uma creaturinha delgada e pallida, d'olheiras batidas,
os cotovêlos agudos collados a uma cinta d'esterilidade,
pouff enorme no vestido, cuia forte,
tacões de
palmo.
—Caspitè! disse o conego baixo, tocando o
cotovêlo
do collega. Hein, seu padre Amaro?... Aquillo
é que vossê queria confessar.
—Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse o
parocho
rindo, já as não confesso senão
casadas!
O conego abandonou-se um momento a uma
grande hilaridade; mas retomou o seu ar ponderoso
de padre obeso, vendo Amaro tirar profundamente
o chapéo a um cavalheiro de bigode grisalho
e oculos d'ouro, que entrava na praça, do lado do
Loreto, com o charuto cravado nos dentes e o guardasol
debaixo do braço.
Era o senhor conde de Ribamar. Adiantou-se com
bonhomia para os dois sacerdotes; e Amaro, descoberto
e perfilado, apresentou «o seu amigo, o senhor
conego Dias, da Sé de Leiria». Conversaram um
momento
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da estação, que já ia quente. Depois o
padre
Amaro fallou dos ultimos telegrammas.
—Que diz vossa excellencia a estas coisas de
França, senhor conde?
O estadista agitou as mãos, n'uma
desolação que
lhe assombreava a face:
—Nem me falle n'isso, senhor padre Amaro, nem
me falle n'isso... Vêr meia duzia de bandidos destruir
Paris... O meu Paris!... Creiam vossas senhorias
que tenho estado doente.
Os dois sacerdotes, com uma expressão consternada,
uniram-se á dôr do estadista.
E então o conego:
—E qual pensa vossa excellencia que será o resultado?
O senhor conde de Ribamar, com pausa, em palavras
que sabiam devagar, sobrecarregadas do peso
das idéas, disse:
—O resultado?... Não é difficil prevel-o. Quando
se tem alguma experiencia da Historia e da Politica,
o resultado de tudo isto vê-se distinctamente.
Tão distinctamente como os vejo a vossas senhorias.
Os dois sacerdotes pendiam dos labios propheticos
do homem de governo.
—Suffocada a insurreição—continuou o senhor
conde olhando a direito diante de si com o dedo no
ar, como seguindo, apontando os futuros historicos
que a sua pupilla, ajudada pelos oculos d'ouro, penetrava—suffocada
a insurreição, dentro de tres mezes
temos de novo o imperio... Se vossas senhorias
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tivessem visto como eu uma recepção nas Tulherias
ou no Hotel de Ville, nos tempos do imperio,
haviam de dizer, como eu, que a França é
profundamente
imperialista e só imperialista... Temos
pois Napoleão III: ou talvez elle abdique, e a
imperatriz tome a regencia na menoridade do principe
imperial... Eu aconselharia antes, e já o fiz
saber, que era esta talvez a solução mais
prudente.
Como consequencia immediata temos o Papa
em Roma outra vez senhor do poder temporal...
Eu, a fallar a verdade, e já o fiz saber, não
approvo
uma restauração papal. Mas eu não lhes
estou aqui a dizer o que approvo, ou o que reprovo.
Felizmente não sou o dono da Europa...
Seria um encargo superior á minha idade e ás
minhas enfermidades. Estou a dizer o que a minha
experiencia da Politica e da Historia me aponta
como certo... Dizia eu...? Ah! a imperatriz
no throno de França, Pio Nono no throno de Roma,
ahi temos a democracia esmagada entre estas
duas forças sublimes, e creiam vossas senhorias
um homem que conhece a sua Europa e os
elementos de que se compõe a sociedade moderna,
creiam que depois d'este exemplo da Communa não
se torna a ouvir fallar de republica, nem de questão
social, nem de povo, n'estes cem annos mais
chegados!...
—Deus Nosso Senhor o ouça, senhor conde, fez
com unção o conego.
Mas Amaro, radiante de se achar alli, n'uma praça
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de Lisboa, em conversação intima com um estadista
illustre, perguntou ainda, pondo nas palavras
uma anciedade de conservador assustado:
—E crê vossa excellencia que essas idéas de
republica, de materialismo, se possam espalhar entre
nós?
O conde riu: e dizia, caminhando entre os dois
padres, até quasi junto das grades que cercam a estatua
de Luiz de Camões:
—Não lhes dê isso cuidado, meus senhores,
não
lhes dê isso cuidado! É possivel que haja ahi um
ou dois esturrados que se queixem, digam tolices
sobre a decadencia de Portugal, e que estamos n'um
marasmo, e que vamos cahindo no embrutecimento,
e que isto assim não póde durar dez annos. etc.
etc. Babuseiras!...
Tinha-se encostado quasi ás grades da estatua, e
tomando uma attitude de confiança:
—A verdade, meus senhores, é que os estrangeiros
invejam-nos... E o que vou a dizer não é
para lisonjear a vossas senhorias: mas emquanto
n'este paiz houver sacerdotes respeitaveis como vossas
senhorias, Portugal ha de manter com dignidade
o seu logar na Europa! Porque a fé, meus senhores,
é a base da ordem!
—Sem duvida, senhor conde, sem duvida, disseram
com força os dois sacerdotes.
—Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz,
que animação, que prosperidade!
E com um grande gesto mostrava-lhes o largo do
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Loreto, que áquella hora, n'um fim de tarde serena
concentrava a vida da cidade. Tipoias vazias rodavam
devagar; pares de senhoras passavam, de cuia cheia
e tacão alto, com os movimentos derreados, a pallidez
chlorotica d'uma degeneração de raça;
n'alguma
magra pileca, ia trotando algum moço de nome historico,
com a face ainda esverdeada da noitada de
vinho; pelos bancos da praça gente estirava-se n'um
torpôr de vadiagem; um carro de bois, aos solavancos
sobre as suas altas rodas, era como o symbolo
de agriculturas atrazadas de seculos; fadistas gingavam,
de cigarro nos dentes; algum burguez enfastiado
lia nos cartazes o annuncio d'operetas obsoletas;
nas faces enfezadas de operarios havia como a
personificação das industrias moribundas... E
todo
este mundo decrepito se movia lentamente, sob um
céo lustroso de clima rico, entre garotos apregoando
a loteria e a batota publica, e rapazitos de voz plangente
offerecendo o
Jornal das pequenas
novidades:
e iam, n'um vagar madraço, entre o largo onde se
erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque
comprido das casarias da praça onde brilhavam tres
taboletas de casas de penhores, negrejavam quatro
entradas de taberna, e desembocavam, com um tom
sujo d'esgoto aberto, as viellas de todo um bairro
de prostituição e de crime.
—Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta
paz, esta prosperidade, este contentamento... Meus
senhores, não admira realmente que sejamos a inveja
da Europa!
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E o homem d'estado, os dois homens de religião,
todos tres em linha, junto ás grades do monumento,
gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da
grandeza do seu paiz,—alli ao pé d'aquelle pedestal,
sob o frio olhar de bronze do velho poeta, erecto
e nobre, com os seus largos hombros de cavalleiro
forte, a epopeia sobre o coração, a espada firme,
cercado dos chronistas e dos poetas heroicos da
antiga patria—patria para sempre passada, memoria
quasi perdida!
Outubro 1878—Outubro 1879.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
O original não tem capítulo XI, no entanto, a
numeração das páginas não
apresenta quebra
na narração. Optámos por
não corrigir a
numeração dos capítulos.