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Rita
Farinha (Agosto 2010)
A ARCHITECTURA RELIGIOSA
NA
EDADE-MÉDIA
ENSAIOS DE HISTORIA DA ARTE
A ARCHITECTURA RELIGIOSA
NA
EDADE-MÉDIA
POR
AUGUSTO FUSCHINI
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1904
A Minha Filha
Octavia Fuschini de Lima Mayer
INTRODUCÇÃO
As noções fundamentaes do nosso espirito
são absolutamente indefiniveis. Sentem-se; nada
mais. Se lhe procurarmos a definição, cahiremos
em simples labyrintos de palavras, consistindo,
quasi sempre, em verdadeiros circulos viciosos.
Tomemos, para exemplo, o espaço e o tempo,
noções bem fundamentaes.
O que é o espaço? É o
meio, sem limites,
onde existem em continuo movimento todos os
corpos; o que equivale a dizer que o
espaço é
o
espaço.
O que é o tempo? É a serie indefinida de
momentos, durante os quaes se realisa a successão
dos factos physicos e moraes; o que
equivale a dizer que o
tempo
é o
tempo.
Assim, parece que as idéas ou noções
fundamentaes
teem o singular caracter de ser facilmente
comprehensiveis pela intelligencia humana,
[VIII]
sem que ella tenha palavras rigorosas
ou phrases perfeitas, para as definir com sufficiente
clareza.
Dados o espaço e o tempo, a materia e o
espirito em perpetuo movimento produzem a
totalidade dos factos e phenomenos physicos
e moraes, constituindo o Universo, que sem as
primeiras noções seria absolutamente impossivel
e incomprehensivel.
Pouco nos importa saber, n'este momento, se
a materia e o espirito coexistem, ou se o espirito
é apenas um attributo da materia, organisada
segundo leis desconhecidas. Os phenomenos passam-se
como se fossem distinctos; deixemos,
pois, a investigação d'este problema, que
aliás
parece insoluvel, aos metaphysicos e aos theologos.
O que podemos considerar quasi certo é que
a materia em movimento nos dá as
noções exactas
do espaço e do tempo; e o espirito em
actividade nos dá, tambem, as noções
claras
do bem, do bello e do justo, que são como as
primeiras completamente indefiniveis na sua natureza
absoluta.
Quem aprecia o tempo e o espaço? Os sentidos
physicos.
Quem aprecia o bem, o bello e o justo? Esse
sentido especial e perfeitissimo,
denominado consciencia,
[IX]
a faculdade de
julgar que
possue a intelligencia
humana.
As similhanças mostram-se ainda mais intimas.
As noções do espaço e do tempo
são
inseparaveis. A nossa intelligencia não pode conceber
uma sem a outra. O bello, o bem e o justo
manifestam a mesma qualidade. São
noções correlativas.
É certo que a complexidade dos phenomenos
animicos torna esta correlação menos evidente
do que a primeira, mais simples e clara pela
sua origem physica; mas, discutindo bem e com
profundidade qualquer facto de ordem animica,
chega-se a descobrir que uma d'estas noções do
nosso espirito envolve, sempre, as outras duas
em maior ou menor grau.
Assim, pois, poderemos, sem grande receio
de errar, estabelecer tres definições:
A Arte é a expressão do bello;
A Moral é a expressão do bem;
O Direito é a expressão da justiça.
Ora, como as noções do nosso espirito se
manifestam
subordinadas a leis geraes, temos tres
sciencias, que estudam as manifestações externas
e visiveis da propria essencia do espirito
humano.
Eis-nos entrados no campo positivo e experimental.
Um longo periodo historico prova já
[X]
que o nosso espirito é successivamente perfectivel
e evolutivo; não o sendo, de certo, nos principios
fundamentaes, mas sim na applicação
d'esses principios e na variedade infinita de
combinações, que se podem fazer com as
idéas,
como se obtem com as notações musicaes.
Se nos fosse permittido, empregariamos a seguinte
expressão: a perfectibilidade é a lei fundamental
do espirito humano, a evolução o seu
methodo.
Convém, todavia, observar, como um facto
historico e psychologico, que a alma humana—digamos
a palavra—não é perfeitamente livre
no pensamento e na acção. Deixemos a theoria
do
Livre Arbitio para ser definida
em Concilio.
Os astros, esses até, que estão sujeitos a
leis immutaveis e mathematicas, soffrem
perturbações
nas respectivas orbitas, por influencias
ainda mysteriosas algumas, outras descobertas
em certos casos. Ora, sobre as leis moraes
as influencias são variadissimas; por isso,
o
astro espiritual, a
Idéa, caminha sempre em
determinado sentido, ás vezes, com enormes
desvios.
O raciocinio prevê as causas d'essas grandes
irregularidades e a experiencia demonstra a
verdade d'essas previsões.
[XI]
Em relação á Arte, estas causas podem
grupar-se
em tres grandes categorias:
1.ª A influencia do
meio natural,
da atmosphera
physica e cosmica;
2.ª A influencia do
meio historico,
isto é, do
conjuncto de circumstancias que em dado momento
constituem a atmosphera social;
3.ª A influencia do
meio particular
de cada
individuo, formado pelo proprio caracter e talento,
pelas suas condições dentro da sociedade
e da familia, ou pelo menos, dentro do pequeno
grupo social, em que se executa o seu trabalho
e se exerce a sua actividade.
Teremos occasião de explicar mais tarde algumas
applicações d'estes principios; mas seja-nos
permittido concretisal-os um pouco mais,
principalmente o primeiro.
Nas leis historicas—e a Arte tem historia
e leis—entre as influencias, actuando obscura
e vigorosamente sobre o caracter dos povos e
sobre os destinos das nações, a sciencia
não
conseguiu ainda definir bem a acção profunda
dos elementos climatericos e geographicos sobre
o espirito humano; todavia, essa influencia presente-se,
ou melhor prova-se e deduz-se da diversidade
das raças e dos caracteres moraes
dos habitantes da terra.
A forma humana, como é incontestavel, soffre
[XII]
a influencia d'este
meio externo e
ás modificações
d'essa forma correspondem modos de ser
e intensidades differentes de intelligencia. Ora,
se nas linhas geraes do nosso espirito se observa
a acção dos agentes climatericos e geographicos,
como a vida dos povos depende das
proprias funcções intellectuaes e, pelo menos,
em forte proporção o bem e o mal proveem do
exercicio da intelligencia humana, não é vago
presentimento mas verdade scientifica a existencia
de leis, embora ainda não formuladas, que
expliquem a correlação das idéas e das
instituições
dos povos com a climatologia e a geographia
da zona habitada.
Na constituição de certas
noções, esta influencia
deve ser profunda. A noção de Deus, o melhor
manancial da Arte, e o grupo de idéas
e de sentimentos, que em volta d'ella, como
centro, constituem por assim dizer uma categoria
do espirito humano, estão, sem duvida,
n'estas condições. O exemplo é
excellente.
Seja qual fôr a origem da crença no sobrenatural,
derive esta crença da intima essencia
da alma, provenha da revelação divina,
nasça
da generalisação espiritual ou material das
forças
naturaes, funde-se na grandeza dos factos
cosmicos, ou no receio dos phenomenos physicos,
é indiscutivel que a essencia e a
evolução
[XIII]
da idéa de Deus e das formulas do culto externo
offerecem caracteres mais ou menos harmonicos
com as condições geographicas e climatericas,
que lhes serviram de ambiente.
O polytheismo guerreiro, honesto e nebuloso,
dos povos septentrionaes da Europa e o polytheismo
grego, livre e artistico, foram concebidos
em
meios differentes. As
regiões asperas e
rudes do norte, onde os gelos e as tempestades,
durante longo periodo do anno, difficultam
a lucta pela existencia, não podiam ser habitadas
pelas divindades do Olympo.
O ceu puro da Grecia, a limpidez da atmosphera
jámais escurecida por tempestades terriveis,
a amenidade do clima, os contornos suaves
dos montes, o murmurio poetico dos pequenos
rios, as frescas florestas de platanos em valles
abertos, o perfume de flores variadas, o sabor
delicado dos fructos, em summa, as excellentes
condições climatericas e geographicas da Grecia
permittiram ao genio popular a creação de uma
familia de divindades, em quem o amor sensual,
o gôso physico e a belleza das formas traduziram
admiravelmente a doçura das forças naturaes.
As vagas enormes, revoltas e furiosas dos
mares arcticos não podiam gerar a belleza do
Eterno Feminino. Das ondas serenas do mar
[XIV]
Egeu, coroadas de espuma branca e transparente
como finissima renda, que vinham quebrar-se
com suavidade sobre a areia dourada
das costas do Peloponeso, nasceu o formoso
corpo de Venus, a expressão ideal da belleza
da forma.
E, todavia, germanos e gregos eram da mesma
raça, d'esses aryas brancos e louros que dos
confins da Bactriana, talvez por caminhos differentes,
haviam emigrado, seguindo a trajectoria
do Sol, que lhes indicava propheticamente a
sua grande obra, a futura civilisação da Europa.
Se fizermos tambem estudos sobre raças differentes,
chegaremos aos mesmos resultados.
A
anthropomorphose da
idéa de Deus é lei fundamental
do espirito humano e até hoje o manancial
mais rico de productos artisticos de todas
as ordens. A representação physica e a
definição
moral da divindade derivam, sem a menor duvida,
da idealisação e da
generalisação das qualidades
physicas e psychicas do homem. Pode
haver duvida se, conforme o
Genesis,
o homem
foi creado á imagem e similhança de Deus;
é,
porém, indiscutivel que na
constituição d'este
symbolo lhe demos muito da nossa forma e
ainda mais do nosso espirito.
Eram polytheistas as raças aryanas, segundo
parece. A duvida pode nascer de que na Grecia
[XV]
o polytheismo pertencia ás classes populares,
emquanto os sabios criam na Unidade do Espirito.
Assim, Anaxagoras, Socrates e a sua escola,
em que floresceram os maiores sabios, philosophos,
estadistas e artistas do grande seculo
de Pericles, acreditavam na unidade de Deus;
eram monotheistas.
Seja como fôr, é facil de comparar a forma
e o espirito de Jupiter, do Monte Olympo, com
os de Jehovah, do Monte Sinai, isto é, a
concepção
da divindade entre aryas polytheistas, os
gregos, e semitas monotheistas, os hebreus.
A figura sombria e magestosa de Jehovah não
só era feita á imagem e similhança do
caracter
hebreu; mas reflectia, tambem, a grandeza melancholica
da cordilheira do Libano e das montanhas
da Palestina.
Esse Espirito, vivendo fóra do cahos e creando
a ordem entre os elementos, eternos como elle,
pelo esforço da propria vontade omnisciente, ora
energico e duro, ora manso e amoroso, pedindo
a Abrahão o cruel sacrificio do filho e contentando-se
com a offerta no templo de algumas
pombas brancas, era o reflexo d'esse clima da
Palestina, onde, umas vezes, furiosas tempestades
electricas rasgam as calliginosas nuvens
e os raios fazem explodir os rochedos, ou o
simoun, soprando dos areiaes
ardentes da Arabia,
[XVI]
secca as plantas e prostra os homens; onde,
outras vezes, os ventos frescos do Mediterraneo,
fazendo voar no ceu azul bandos de nuvens
brancas, levam a frescura e a vida á flora
tropical riquissima das campinas da antiga
Judéa.
Se apreciarmos bem a natureza essencial dos
factos mythologicos, que formam a biographia
lendaria de Jupiter, encontraremos não o espirito
ardente, sombrio e puro da divindidade
hebraica, mas esse caracter leviano e sensual,
que define a raça hellenica, pelo menos no ramo
jonico. Foi ainda a acção do clima, que facetou
os caracteres da raça; foram ainda estes caracteres,
que se crystallisaram n'uma forma especial
da idéa de Deus.
Emquanto á influencia do
meio social, que
poderiamos escrever que não fossem paraphrases
das idéas e copias das leis positivas, que
Taine expoz, com a maior lucidez de espirito
e brilhantismo de estylo, na
Philosophia da
arte, depois applicada á Grecia,
á Italia e aos
Paizes Baixos?
De facto, se o
meio climaterico e
geographico
envolve e faceta o espirito humano, o
meio social ou historico tem ainda
mais profunda
e directa influencia sobre o individuo.
Assim, pode dizer-se, em rigor, que o homem
[XVII]
existe mergulhado n'uma atmosphera moral e
intellectual, da qual recebe, se nos é consentida
a phrase, a alimentação animica.
Ora, a acção d'esta atmosphera exerce-se
tanto mais energica e activamente, quanto as
manifestações intellectuaes mais dependem do
mundo exterior. A sciencia pode até certo ponto
dispensar o applauso das multidões; a arte, pelo
contrario, exige-a, porque o seu principal fim
consiste em corresponder a essa necessidade do
bello, que parece ser qualidade fundamental da
alma humana.
Diz-se que Wronski descobriu leis mathematicas,
que só poderão ser bem comprehendidas
em seculos futuros. Admittamos a hypothese.
Affirmaremos pela nossa parte que artista algum
terá a pretensão de crear primores para
as gerações futuras, sob pena de não
ter admiradores
actuaes, o que lhe pede o proprio espirito,
e compradores, o que em regra lhe exigirão
as conveniencias particulares.
A regra de boa philosophia que nos aconselha
a sermos
homens do nosso tempo,
é uma
lei suprema para os artistas, imposta pela propria
essencia da arte e pelas necessidades animicas
e sociaes dos seus cultores.
Assim, a influencia do
meio social,
que se
exerce sobre todas as manifestações do espirito
[XVIII]
humano, actua com maior intensidade nos de
ordem esthetica.
Convem, egualmente, attender á influencia do
caracter individual do artista, ao seu pequeno
meio familiar, ao ambiente das
amizades e dos
odios que se forma em volta de nós sempre e
mais actua sobre os grandes artistas, em regra,
neurasthenicos e possessos da nevrose do genio
e do talento. Taine tambem se refere a este
ponto, um pouco ao de leve talvez. Sem a ousadia
de o completar, citemos um exemplo curioso
e caracteristico, um só para não avolumar
esta modesta exposição.
É sabido que no seculo XVII Sevilha foi um
riquissimo centro de Arte. Na
casa de
ouro
reuniam-se, dia a dia, poetas, prosadores, pintores
e esculptores, entre elles Cervantes, Quevedo,
Murillo, Valdez Leal, Montañez, Herrera
e muitos outros. N'esse seculo a escola hespanhola
de pintura attingira o maior esplendor.
Os chefes da escola sevilhana eram Murillo e
Valdez Leal, que aliás é pouco conhecido
fóra
da peninsula a não ser pelos eruditos.
Murillo era um santo homem, modesto e simples
no viver, um mystico absorto no amor de
Deus e da familia, artista colossal, creado e feito
pelo unico esforço do seu genio e pelo amigavel
auxilio de Velasquez. Valdez Leal, pelo contrario,
[XIX]
era um genio atrabiliario, cheio de
emulação
ardente a roçar quasi pela inveja, ambicioso e
energico, bom catholico de certo porque era
perigoso não o ser no seculo XVII, principalmente
em Hespanha. Genio tinha-o, não tanto
como Murillo; mas o genio transparece nos seus
quadros, a nosso ver principalmente no formoso
quadro do
Bispo morto roido pelos vermes da
morte, uma maravilha de perspectiva, de desenho,
de côr e de effeitos de luz.
O caracter d'estes grandes pintores traduz-se
nas suas obras. O estylo vaporoso de Murillo,
o seu estylo definitivo, offerece as qualidades
do seu espirito. Colorido suavissimo, contornos
um pouco vagos, expressões bondosas em assumptos
mysticos, dão uma impressão ideal aos
seus quadros, dos quaes, se o nome se perdesse,
se poderiam deduzir as qualidades do espirito
do auctor.
Valdez Leal tem qualidades extraordinarias,
não é duro como João de Castilho,
mestre commum
d'elle e de Murillo, nem violento como
Herrera; mas sente-se na sua pintura a influencia
da vontade e o azedume do caracter.
Este exemplo parece-nos ser frisante e podia
ser completado com outros, até entre nós e nos
tempos modernos...
Expostas estas doutrinas sobre a influencia
[XX]
do ambiente, que envolve a evolução da Arte
e actua sobre os artistas, convem observar que
a acção do mundo exterior tende a diminuir
com o desenrolar do progresso. É, talvez, esta
uma das causas da especie de
anarchia, que
hoje se observa na producção da Arte e nos
estylos dos artistas. O excesso de individualismo
dá, sem duvida, liberdade e expansão aos
genios; mas o genio é a excepção e a
regra o
talento.
Podemos, pois, acceitar como demonstrado,
que a Arte é evolutiva e as suas phases especiaes,
os estylos, correspondem a estados do espirito
humano, sob a influencia das condições
particulares da natureza, da sociedade e até do
proprio individuo.
Appliquemos esta doutrina á Architectura,
porque os seus productos, pela propria grandeza
e quantidade, se conservam melhor e se
perdem menos, manifestando, assim, menores
soluções de continuidade. Limitaremos, por
obvias razões, esta applicação
á Architectura
religiosa nos tempos christãos, o assumpto exclusivo
d'este livro, fazendo, apenas, um breve
schema.
O Estylo Classico grego, modificando algumas
qualidades e ganhando outras, produziu o Classico
Romano.
[XXI]
O espirito do Christianismo, no Imperio do
Occidente, obtendo a liberdade e a acção social,
apoderou-se do classico romano, modificou-o, segundo
as necessidades religiosas e do culto, gerando
o Estylo Latino. Ao mesmo tempo quasi
parallelamente, o Christianismo no Imperio do
Oriente, fundando-se em outros elementos, creava
o Estylo Byzantino. Sob a acção do elemento
barbaro, os dois estylos, caminhando para o
centro da Europa, se nos é permittida a
expressão,
encontraram-se, harmonisaram-se, produzindo
o Estylo Romanico.
As modificações profundas, occorridas nas
sociedades
dos seculos XI, XII e XIII, transformaram
o Estylo Romanico, nascendo o Estylo Ogival,
que atravessou tres seculos, para a seu turno
se transformar, sob a acção poderosa da
Renascença.
Os estylos são, pois, élos d'essa cadeia de
phases architectonicas, que se estende atravez
dos seculos, ligando a inspiração e o trabalho
da Humanidade.
Assim, a Arte é a expressão do bello, e o
Estylo a forma particular d'essa expressão, em
determinado periodo historico.
PARTE PRIMEIRA
ORIGENS DA ARCHITECTURA CHRISTÃ
CAPITULO PRIMEIRO
A LUCTA ENTRE O PAGANISMO E O CHRISTIANISMO
O antigo espirito classico, que produzira as magnificas
civilisações da Grecia e de Roma, esmorecia,
como esmagado sob o peso da sua propria e grandiosa
obra, quando dois elementos novos, talvez regulados
pela lei suprema da conservação e do perpetuo
rejuvenescimento
da Humanidade, se manifestaram com profundo
vigor e intensidade no seio das velhas sociedades
decadentes: o Christianismo e a invasão dos
barbaros.
Assim, os factos historicos, as idéas e os sentimentos
humanos, as instituições sociaes, a moral, a
politica
e a arte, se explicam pela acção reciproca e
poderosa
dos tres principios, o classico, o christão e o
barbaro, que são as causas efficientes da edade-media
e da civilisação moderna.
Já no tempo de Cesar e de Augusto, os primeiros
Imperadores, cuja grandeza de genio é incontestavel,
a sociedade romana entrára em plena decadencia. Os
[4]
vicios da antiga Republica, que os bons cidadãos e os
philosophos contemporaneos não haviam podido expungir,
cavaram-lhe a ruina.
O Imperio correspondia, sem duvida, ás necessidades
de corrigir ardentes ambições em continuas
luctas,
que produzem sempre a anarchia politica, e de imprimir
acção energica e centralisadora á
enorme expansão
das conquistas; mas o Imperio trazia na propria essencia
dois vicios terriveis e inevitaveis: o despotismo, a
extincção completa das ultimas liberdades
publicas,
e a constituição militar, como poder especial
independente
dos cidadãos, o
militarismo segundo a
expressão
moderna.
Na agonia da Republica, Catão de Utica previra o
desastre. Luctara para o evitar, chegando até a apontar
o homem, Julio Cesar, que devia destruir o quasi
phantasma da antiga liberdade romana. O futuro
Dictador, ainda muito novo, espreitava e preparava,
entre os prazeres dos ricos e dos poderosos da Roma
republicana, pelo amor das mulheres, pela elegancia,
pelos costumes faceis e até pela lisonja, a origem da
grandeza, que mais tarde encontrou no proconsulado
das Gallias.
Assim tambem, Napoleão, frequentando os salões
politicos e litterarios do Directorio republicano, conseguiu
ser nomeado general em chefe dos exercitos da
Italia. Singular coincidencia entre dois homens de
caracter tão parecido, dois genios innegavelmente; um
procura nas Gallias, a França, outro na Italia, a Republica
Romana, as origens de futuros imperios!
[5]
Durante o Imperio, pelo menos nos primeiros tempos,
as ambições foram enfreadas pela existencia do
poder perpetuo da dictadura; mas, se algumas das
antigas instituições conservaram os nomes,
foram-lhes
tiradas a pouco e pouco as ultimas funcções. Os
fracos
lampejos da liberdade republicana em breve se
extinguiram na escuridão profunda do mais feroz despotismo,
até hoje conhecido. O Cesar era dictador
e pontifice-maximo, o soberano absoluto dos povos e
o chefe espiritual das consciencias.
Tambem é certo que a energia da
centralisação
politica e administrativa do Imperio facilitou o espirito
conquistador e a conservação das conquistas, mais
do que o podia fazer a esphacelada Republica; mas,
como consequencia logica, estas mesmas condições
favoraveis prepararam o militarismo. Os exercitos nacionaes
da Republica tornaram-se as legiões cesarianas
do Imperio, que lhes pagava e as dirigia, transformando-se
a pouco e pouco em guardas do Imperador.
Era natural e logica esta confusão entre o homem e o
principio. A nação, o povo, a liberdade, os
direitos
dos cidadãos, tudo desapparecera encarnado na pessoa
de um Cesar deificado.
Os resultados eram fataes. Tiberio creou as
guardas
pretorianas para defeza da pessoa do Imperador.
Sentindo a sua força, os
pretores imperiaes completaram
depois logicamente a doutrina e as guardas pretorianas
começaram a escolher os Cesares.
O despotismo e a centralisação do Imperio
accentuaram,
assim, as causas da decadencia da sociedade
[6]
romana, dando-lhe, apenas, por algum tempo um falso
aspecto de força e de grandeza.
Nos ultimos annos da Republica era já, na realidade,
profunda a desmoralisação das classes superiores.
O ouro das depredações, feitas nas provincias
conquistadas,
os costumes luxuosos e dissolutos, importados
com o ouro dos povos orientaes, os grandes latifundios,
em que se dividia a Italia, possuidos por
familias poderosas, haviam amollecido a antiga rigidez
do caracter romano. São ainda hoje citadas e celebres
as prodigalidades da magnificencia e do luxo de Lucullo,
questor da Asia.
As despezas excessivas de um estado de guerra
constante em regiões differentes e afastadas, a defeza
de vastissimas fronteiras, já então
ameaçadas em mais
de um ponto, as estradas e as respectivas obras, pontes,
castellos, campos entrincheirados, que constituiam a
admiravel rede de communicações militares romanas
dentro e fóra da Italia, as
espoliações dos grandes e
pequenos funccionarios, exigiam o ardor do fisco, motivavam-lhe
as violencias, exercendo-se, como sempre,
sobre as classes populares.
Estas pessimas sementes, lançadas no campo da democracia,
ainda haviam sido contrariadas durante a
Republica por instituições e franquias populares.
O
Imperio, nivelando a sociedade abaixo de um Cesar
deificado de quem tudo e todos dependiam, extinguindo
as ultimas liberdades, creando uma especie de côrte de
grandioso fausto, que no tempo de Elagabalo attingiu
as loucuras orientaes nos costumes e no luxo, desenvolvendo
[7]
por necessidade o espirito e as forças militares,
accentuou estas causas de decadencia. Nos começos
do Imperio, um philosopho epicurista, Petronio,
deixou-nos uma face viva d'esse estado moral e social,
n'uma satyra celebre e cheia de vigorosa ironia, o
Satyricon.
A religião polytheista perdera o prestigio e a
força.
As classes superiores professavam um epicurismo devasso,
elegante e atheu. O povo, sem crenças, debatia-se
na miseria politica e economica. Os mythos do
polytheismo podiam interessar imaginações
ardentes
e poeticas; mas não consolavam desgraçados, que
sobre
a terra sentiam apenas, sem uma esperança, a
rudeza do trabalho, as crueldades da dôr e o receio
da morte.
Os deuses tinham perdido o seu prestigio, porque
não faziam milagres; esses deuses alegres e devassos,
que acceitavam os Cesares por collegas e o deixavam,
a elle, pobre povo, soffrer e morrer de fome, mais miseravel
e esquecido do que as bestas das cavallariças
imperiaes...
A religião precisa de milagres, como a politica de
grandes e espectaculosos factos, para se engrandecerem
aos olhos dos simples. Esta necessidade do espirito
humano mais vulgar comprehendeu-a Jesus Christo,
o honesto e bom, o illuminado pela Justiça Divina,
elle, que tanto lhe repugnava fazel-os.
A philosophia oppunha ainda impotentes esforços
ao desabar da sociedade romana; mas bem na essencia
era tambem epicurista. Além d'isso, prégar a
moral
[8]
pelo valor da propria moral, dizer aos simples de
espirito que a virtude tem em si o proprio premio,
exaltar a humildade e a pobreza aos pequenos, quando
os soberbos e os ricos avassalam os bens e os prazeres
do mundo, é doutrina assás abstracta que
só comprehendem
os philosophos, embora ás vezes não a
pratiquem. Seneca, no principio do Imperio, ensinava
esta doutrina ao povo romano, escrevia livros elogiando
a pobreza; mas o philosopho esquecia-se, apenas,
de que era feliz e riquissimo. A philosophia só é
uma grande força, quando o exemplo acompanha a
palavra.
Por esse tempo, principio do Imperio, na provincia
romana da Judea, manifestou-se o Christianismo. As
causas efficientes d'este esplendido e profundo movimento
do espirito humano não podem ser desenvolvidas
e estudadas em trabalho d'esta natureza.
A egualdade entre os homens de todas as raças e
condições, o amor e a fraternidade humanas
enunciadas
como leis supremas, a fé profunda na existencia
de um Deus justo, feito á imagem e similhança da
bondade e da doçura de Christo, a esperança n'uma
vida eterna de felicidade e de goso, merecido premio
das virtudes e boas obras sobre a terra, doce
compensação
dos soffrimentos d'este mundo, emfim, a essencia
delicada do Christianismo desceu sobre os desgraçados,
os pobres, os enfermos, os escravos, essa
enorme legião de miseraveis, affagou-os, levantou-lhes
as almas, como a chuva fresca e crystallina levanta
as cearas resequidas por longo sol ardente.
[9]
Falar aos escravos em liberdade, egualal-os aos senhores,
reconhecer-lhes alma e direitos sobre a terra,
embalal-os com a visão mystica de uma vida eterna,
nunca o polytheismo tivera esta linguagem eloquente,
nem os philosophos e os moralistas classicos haviam
professado taes doutrinas.
Devemos observar que a escravidão no mundo classico
era um facto legitimo, consequencia logica das
organisações sociaes. O cidadão livre
dirigia o Estado,
o escravo trabalhava e produzia. As democracias gregas
e a romana, como no Oriente, professavam a divisão
das castas, embora mais adoçadas. A cabeça, os
braços e os pés tinham
funcções hierarchicas differentes.
A grandiosa estatua social repousava sobre o
plintho da escravidão: se o destruissem, o colosso
ruiria em pedaços.
Alem d'isso, o numero de escravos em Italia, principalmente
na grande e populosa Roma dos Cesares,
era enorme; prisioneiros de guerra uns, outros reduzidos
á escravidão hereditaria ou por varias causas,
mas em grande parte da mesma raça dos senhores, ou
de raças equivalentes. A escravidão moderna
defendeu-se,
por longo tempo, recrutando as victimas entre
as raças negras ou indias da America, consideradas
inferiores. O escravo do mundo antigo, recordando-se
da passada liberdade, ou sentindo-se do
mesmo sangue dos senhores, devia experimentar bem
no fundo da alma o sentimento de revolta, que nenhuma
miseria humana consegue suffocar. As grandes
sublevações servis, principalmente a ultima de
Spartaco,
[10]
um seculo antes de Christo, confirmam estas
observações.
A doutrina de Christo, cheia de amor, de esperança
e de bondade, era tambem de molde para suggestionar
a alma da mulher, incutindo-lhe a fé e o ardor do
proselytismo. O espirito feminino é um instrumento
perfeito e delicado. A natureza creou as mulheres para
nossas amantes e mães, as duas expressões mais
finas
e elevadas dos sentimentos humanos; por isso, se não
lhes concedeu outros em larga escala, as notas da
alma feminina são n'estes de deliciosa finura, ás
vezes
incomprehensivel para os homens vulgares.
A mulher classica estava bem longe de ter subido
ao logar elevado, que depois lhe deu o Christianismo
no seio da familia. A grega vivia isolada no
gyneceo,
leve sombra do serralho dos povos orientaes. A romana
subira um pouco; sendo, porem, ainda considerada
sujeita ao marido, como os filhos ao patrio poder.
O divorcio entre os antigos era um facto corrente
e facil; ora, a mulher sente que o seu logar é na familia.
O adulterio, crime horrendo para as mulheres,
soffria em geral penas infamantes ou a morte. A mulher
classica era, em summa, uma serva, uma filha,
uma forma de propriedade do marido.
O Christianismo tornava-a companheira e egual ao
homem. Christo dissera que o casamento na terra
se mantinha no Ceu. Jesus defendera a adultera e, um
dia, glorificou a loura mulher de Magdala, envolvendo
a prostituta no doce manto do seu amor, glorificando-a
perante os homens e salvando-a perante Deus.
[11]
O Christianismo tinha a linguagem, eloquente e expressiva,
que entendem logo os simples e as mulheres.
Assim, nos primeiros tempos, o florilegio christão
é
riquissimo em martyres femininos. A mulher morre
pela religião de Christo com a fé e a
resignação, diremos
mais, com a vontade e a energia do homem.
É um facto singular d'este bello e grandioso movimento
do espirito humano.
O polytheismo era a religião da forma e da belleza,
cheia de mythos absurdos e incomprehensiveis, religião
de culto externo, secca philosophia encarnada em
symbolos obscuros. O Christianismo era a religião do
espirito, replecto de doces verdades e de sentimentos
adoraveis, religião de culto interno, moral clara e divina
que Jesus Christo expozera com phrases singelas
no bello sermão da montanha.
Os prophetas hebraicos haviam dito que seria espiritual
a religião do futuro e constituiria o patrimonio
da humanidade; que a piedade valia mais do que o
sacrificio e o conhecimento de Deus mais do que os
holocaustos. Nós vemos hoje realisada a grande obra
de Christo. Os prophetas viram o futuro a quarenta
seculos de distancia!
Assim, se explica como o Christianismo teve uma
expansão enorme, apenas começou a ser
evangelisado
entre os povos classicos, sujeitos ao jugo do Imperio.
O
meio estava preparado, a doutrina
era excellente.
Os que soffriam os males de espirito, os Os que soffriam os males de
espirito, os que padeciam
as doenças da carne, os pobres, os enfermos, as
victimas da sociedade classica, affluiam ás catecheses,
[12]
bebendo com soffrega delicia o filtro espiritual do
Verbo Eterno.
A diffusão da religião christã em
Roma, logo nos
primeiros annos, constitue um facto assombroso na
historia do proselytismo. Já no anno 64 de Christo, o
grande incendio, que devorou parte importante de
Roma, pôde ser attribuido á malevolencia dos
adeptos
das novas idéas, considerados conspiradores contra
o Imperio e gente de costumes suspeitos e mysteriosos.
Nero iniciou as perseguições, o que demonstra
o espirito que reinava em Roma e o numero avultado
de christãos, que impelliam os poderes constituidos a
extinguil-os pela força e pela violencia.
Os melhores imperadores romanos, assim considerados
ainda hoje pelo genio politico e pelo caracter
pessoal, foram os maiores perseguidores dos christãos.
Trajano, Marco Aurelio, Deocleciano alargaram
as perseguições pelas vastas provincias do
Imperio. O
sangue correu em jorros, sem distincção de edade
e
sexo. A lucta foi terrivel e desegual entre as idéas
classicas, que então representavam a ordem, e as
idéas christãs, innovações
perigosas e immoraes, segundo
a critica do tempo. Os primeiros tres seculos
do Christianismo constituem o periodo brilhante dos
martyres, cujo sangue cimentou a
pedra, sobre a qual
Jesus Christo fundára a sua Egreja.
As perseguições não foram simples
actos de crueldade,
como o suppozeram os christãos, que depois imfamaram
os imperadores, fazendo a historia a seu
modo. Eram actos politicos; ora, a politica de força e
[13]
de violencia confunde-se com facilidade com a violencia
de odios e de crimes. Eis o que explica a furia
singular e ardente dos bons imperadores romanos
contra o Christianismo.
O poder em exercicio é sempre conservador por
natureza e essencia; deve sel-o até, entre certos limites,
por deveres de responsabilidade. O Christianismo
apresentava-se como uma revolução nos espiritos,
a
transformação radical da religião
pagã em que se
fundavam as sociedades classicas. A consciencia da
egualdade e da liberdade humanas atacava a intima
essencia do paganismo, substituia-lhe a moral, modificava-lhe
a politica e feria de morte os principios da
sua organisação economica.
O despotismo repousa sobre a passividade dos cidadãos,
precisa d'elles inertes de vontade, movendo-se
como automatos sob rigida disciplina, ás ordens respeitadas
e não discutidas do poder supremo. É a lei
da constituição do despotismo, que seguiu mais
tarde
Santo Ignacio de Loyolla, quando pretendeu oppor a
terrivel machina de guerra, a Companhia de Jesus,
aos progressos da Reforma.
O Christianismo creava homens livres e conscientes;
embora o seu espirito mystico tendesse infelizmente
a destruir as qualidades civicas, o
civismo a virtude
das sociedades classicas. Além d'isso, o Cesar-Imperador
era o
pontifice-maximo, poderiamos
dizer o papa
da religião pagã. O Christianismo atacava-o nas
duas
principaes origens do poder despotico, fazendo sair
do marasmo e da podridão o espirito humano e matando-lhe
[14]
a influencia religiosa sobre milhões de
individuos.
É verdade que Jesus Christo dissera:
dae
a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de
Deus;
mas... dissera-o sorrindo...
Estavam, pois, gravemente ameaçadas as grandes
forças do Imperio; a segunda, a
organisação religiosa,
condemnada sem remedio e talvez fosse a principal.
Constantino protegeu o Christianismo desde os primeiros
tempos do seu reinado; mas só se baptisou alguns
dias antes de morrer. O grande estrategico-politico,
usando da força do Christianismo, apoiando-se
n'elle, não abdicou o cargo e a importancia de
pontifice-maximo,
isto é, a influencia sobre o paganismo,
senão nos ultimos momentos da sua vida.
Eis como se explica a lucta tremenda entre as duas
doutrinas, uma representando o mundo antigo, outra
que trazia em si o germen das futuras sociedades. Admiravel
manifestação da força irresistivel da
verdade
e da justiça!
O Imperio Romano, o maior poder que até hoje viu
a terra, e o paganismo, que formára tantas
civilisações
e creara a philosophia, a sciencia e a grande arte classicas,
esses dois colossos, dispondo de tudo que tem
força e valor n'este mundo, levantaram-se com impeto
terrivel para esmagar o verbo simples e verdadeiro
de um judeu desconhecido da Gallilea. E a força e o
poder cairam vencidos pela Idéa!
Jesus Christo, envolvido em pobre tunica, acompanhado
de poucos discipulos, pronunciára a sentença
da destruição do paganismo, quando do alto da
montanha,
[15]
com voz doce e suave, annunciou á Humanidade
o bello preceito:
Amae a Deus sobre todas as cousas
e ao proximo como a vós mesmo.
A revolução estava feita. Christo foi a
encarnação
da Idéa, que então correspondia ás
necessidades intellectuaes
e moraes da Humanidade e preparava os
seus futuros destinos.
Admiravel manifestação da força
irresistivel da verdade
e da justiça!
CAPITULO
SEGUNDO
OS TRES PRIMEIROS SECULOS DO CHRISTIANISMO
Pelas razões expostas no precedente capitulo, era
muito difficil e perigosa a situação do
Christianismo,
nos primeiros seculos. As grandes perseguições
repetiam-se,
sempre com maior intensidade e crueza, sob
os successivos imperadores, que, muito naturalmente,
procuravam conquistar a força e a sympathia da
opinião
publica pagã, exigindo d'elles as violencias e as
atrocidades caracteristicas das luctas religiosas. No intervallo
d'estas exacerbações de odios, a
desconfiança e
a vigilancia insupportaveis e constantes opprimiam o
gremio dos christãos, que, aliás, nos primeiros
tempos
devia ser constituido em geral por elementos pobres
e obscuros, sem força alguma na politica e na
administração
do Imperio.
Este estado de cousas prolongou-se desde as primeiras
manifestações visiveis do Christianismo em
Roma, em data impossivel de fixar, até ao reinado de
Constantino, isto é, durante um periodo de mais de tres
[18]
seculos. A ultima e mais formidavel perseguição
foi ordenada
por Diocleciano no anno 303 da éra christã.
A tetrarchia, que então governava o Imperio, facilitou
esta colossal e longa perseguição, estendendo-a
por
todas as provincias romanas, com a crueldade e o vigor
que manifestam sempre as medidas extremas de
salvação publica.
Durante estes tres seculos terriveis, a grande maioria
dos pobres e dos ignorantes, que constituia a
associação
christã, não tinha qualidades, nem gosto,
nem tempo, para cultivar as artes, aliás já bem
decadentes
n'essa epoca. Perseguidos pelas auctoridades
romanas, dominados por ardente proselytismo, em
continuas catecheses, vivendo receiosos entre perigos e
miserias, não lhes sobravam, decerto, vontade e tempo
para cultivar as artes, ainda que para isso possuissem
qualidades estheticas.
O Christianismo era doutrina tão espiritual, fazia
depender tanto a felicidade da prece e da virtude, elevando
a alma a Deus e conduzindo-a ao Ceu, que as
formas visiveis do bello, a plastica das artes, deviam
ser consideradas inuteis, se não peccadoras, aos olhos
dos crentes. O mysticismo da edade-media e a seita
dos Iconoclastas estavam latentes no Christianismo
nascente.
Alem d'isso, os christãos perseguidos, considerados
inimigos da sociedade pagã, não podiam construir
templos, nem ter formas publicas de culto, imagens
de Deus e dos martyres, sempre o melhor manancial
da Arte, que nos seculos futuros produzirão phases
[19]
artisticas de grande valor. Nem eram ricos, ao menos,
para cultivar as artes, suppondo que o ardor da propaganda
e o espirito da religião lhes consentissem o
culto pagão da forma.
A religião precisa de reunir os seus adeptos, para
mutuamente avigorarem a fé e incitarem a
esperança.
Sem a communidade dos fieis, a religião toma o aspecto
de simples philosophia, mais ou menos completa,
fria, sem vigor de propaganda, porque as multidões,
ligadas pela mesma idéa, teem em si o condão
singular
de excitar o enthusiasmo, essa embriaguez
d'alma que a leva até ao sacrificio.
Os christãos reuniram-se, sem duvida, desde os primeiros
tempos; mas essas reuniões eram clandestinas,
como as dos conspiradores dos tempos modernos. Os
logares mais occultos e afastados deviam ser os preferidos.
Era logico. Quando o gremio religioso cresceu,
e cresceu rapidamente, não devia ser facil problema
encontrar logares amplos e seguros para a
communicação
dos fieis e as necessidades do culto, embora nascente
e simples.
A estas necessidades correspondiam as
catacumbas,
vastos subterraneos que existiam em volta do centro
populoso da Roma dos Cesares. A religião christã
em
Roma desenvolveu-se debaixo da terra, como para
symbolisar a acção da Idéa Nova, que
ia minando e
corroendo as bases das antigas sociedades pagãs.
O auctor d'este livro visitou em Roma uma das
mais famosas
catacumbas, a de S.
Calixto. Percorrendo
os subterraneos, lobregos e humidos labyrintos
[20]
de encruzilhadas, guiado pela luz mortiça de uma
lampada, sentiu na alma a poesia do passado, revelaram-se-lhe
a fé e a esperança, doces e profundas,
que os seus
irmãos em
Christo, de ha dois mil annos
quasi, sentiam, quando receiosos mas resolutos vinham
por entradas e caminhos differentes reunir-se no
sanctuario, para a admissão de neophytos e para as
praticas religiosas.
N'aquella atmosphera pesada e humida pareceu-lhe
ouvir ainda os primitivos canticos, a historia poetica
dos martyres mortos que a linguagem eloquente do
espirito religioso dava aos vivos, como exemplo. Enthusiasmou-se
com a fé simples e primitiva, nutriu a
esperança firme e serena na desejada victoria; emfim,
durante algumas horas, sentiu-se possesso, deliciosamente
possesso, da energia de vontade, da pureza de
sentimentos e da firmeza de crenças de um iniciado
d'esses primeiros seculos do Christianismo.
Galerias sinuosas e extensas de secção regular,
um
metro por dois metros, cruzam-se com angulos muito
abertos, formando um complicado tecido de subterraneos,
excavados em tufo escuro, porôso e infiltrado de
agua. Nas duas paredes lateraes d'estas galerias, longas
filas horisontaes de sarchophagos, sobrepostos por
vezes em tres ordens, foram excavadas na rocha
branda. Eram as sepulturas dos primeiros christãos.
Nos tempos primitivos, provavelmente, esses sarcophagos
foram fechados por lapides; mas hoje, abertos
e negros á luz vacillante da lampada, essas filas extensas
de buracos teem um aspecto monstruoso, infundem
[21]
um sentimento de pavor e de espanto, terriveis
quando no fundo de alguns se vêem ainda branquejar
os ossos e as caveiras de seres, que soffreram e morreram
ha quasi dois mil annos.
De grandes em grandes espaços, estas galerias alargam-se,
ou convergem umas poucas, formando subterraneos
amplos de maior altura de abobada natural.
São os sanctuarios, ou as cryptas. Nas catacumbas de
S. Calixto, existe n'estas condições uma grande
sala
de forma rectangular, que, sem duvida, constituia o
templo, para onde se descia de fóra por longa escadadaria,
construida depois de Constantino, isto é, da liberdade
do Christianismo. Do lado esquerdo do templo,
passa se para a grande
crypta de Santa Cecilia.
Parece attestar que ahi foi depositado o corpo da nobre
e rica dama de Roma, uma esculptura na parede
representando uma mulher luxuosamente adornada.
Esta crypta communica com a dos Papas, assim chamada
por conter um grande numero de Pontifices do
terceiro seculo da era christã. Sarcophagos de pedra
de esculptura archaica conservam ainda os restos dos
martyres, uns esquecidos, outros beatificados ou santificados
pela Egreja.
Dedalos de corredores, constituindo enormes necropoles,
sobrepõem-se ás vezes em dois e tres andares
e, se é verdadeira a affirmação,
estendem-se nas
catacumbas de S. Calixto por mais de quinze kilometros.
O reconhecimento da liberdade religiosa do Christianismo
tirou ás catacumbas a importancia primitiva.
[22]
Transformadas em logares de veneranda tradição,
conservadas, talvez, para cemiterio de alguns christãos
mais afamados, as catacumbas soffreram
modificações
na anterior disposição. Assim, nos sitios mais
importantes
foram rasgados
luminarios, que
deixam passar
luz de fóra, tenue e duvidosa, e
arcocelios que enfeitavam
e cobriam sarcophagos de pedra. Estas obras parecem
de caracter posterior á emancipação do
Christianismo
e a logica leva a crel-o.
Eis, em rapidos traços, os caracteres geraes d'estes
sombrios subterraneos, onde nasceu a luz brilhante do
Christianismo e os grupos cada vez mais numerosos
de homens de boa vontade construiam
os alicerces das
modernas sociedades.
É evidente que até ao seculo IV os
christãos, sob
a acção da vigilancia pagã,
não podiam construir templos.
A architectura christã, pelo menos, nasceu depois
d'este seculo. O mesmo se póde dizer sobre a esculptura
dos arcocelios e dos sarcophagos, grandes
peças difficeis de trabalhar dentro das catacumbas e
impossiveis de transportar de fóra, por longos corredores
estreitos, sob as vistas dos agentes das
perseguições,
que o eram todos os adeptos e defensores do
antigo polytheismo.
A arte d'este tempo é ingenua. Consiste, como é
de crer, em esculpturas grosseiras. A maior parte das
pinturas, se muitas existiram, deve tel-as desfeito o
tempo. Além d'isso, não nos parece facil
distinguir
hoje o que foi feito no tempo das perseguições,
ou
depois da liberdade do Christianismo, em que as catacumbas
[23]
deviam ser consideradas logares santos e
concorridos pela veneração dos fieis.
Estas razões, que nos parecem fundadas, circumscreveram
ainda mais a acção dos artistas
christãos dos
seculos primitivos. A arte n'esse tempo limitou-se a
pinturas e esculpturas simples, baixos relevos ligeiros,
verdadeiros traços profundos desenhando figuras informes,
ou ingenuos symbolos, uns adequados do paganismo
ao espirito da nova religião, outros creados,
como linguagem mysteriosa, que só os iniciados podiam
ler e comprehender. Assim, o peixe, symbolo de
Jesus Christo, é um emblema muito espalhado nas
catacumbas. Era necessario, com effeito, ser iniciado
para comprehender que Ichtus, em grego o peixe,
representava aos olhos dos fieis as primeiras lettras
das palavras mysticas:
Jesus Christo, Filho de Deus,
Salvador.
Inutil seria e prolixo, n'este ponto, descrever os symbolismos
religiosos, que envolvem um ligeiro caracter
de arte: a pomba e ás vezes Psyche alada, que representavam
a alma; a ancora a esperança; o ramo de
oliveira a paz; e tantos outros symbolos e allegorias,
que ainda hoje se encontram nos costumes da Egreja
e na tradição dos povos christãos.
Na realidade, tudo isto não constituia verdadeira
arte; muito embora nas primeiras egrejas do Estylo
Latino possamos encontrar elementos trazidos das catacumbas.
As cryptas dos templos lembram as das
catacumbas. Os tumulos de pedra dos martyres e
santos, que nas catacumbas serviam de altares, apparecem
[24]
mais tarde no Estylo Latino. São usos respeitados;
a tradição santifica-os, conserva-os e
transforma-os.
Eis ainda um exemplo da evolução da Arte.
Taes eram as condições sociaes e moraes do
Christianismo,
antes do IV seculo. No anno 306, Constantino,
filho de Constancio Chloro tetrarcha das Gallias
e da Bretanha, foi proclamado imperador pelas legiões
gaulezas.
O grande periodo da Edade-Media vae começar em
breve. O poderoso Imperador Constantino, o genial espirito
do primeiro christão coroado, parece presidir a
este periodo historico, em que se accentua a
evolução
e o poder do Christianismo, creando novas sociedades
e novos estylos de Arte.
Constantino era um grande homem e um profundo
politico. Sem falarmos na unidade e na
organisação
do Imperio, que elle creou com admiravel energia e
sagacidade nem sempre clementes e doces, dois actos
seus demonstram-lhe o valor: a protecção
concedida
ao Christianismo e a escolha da situação de
Byzancio,
para capital do Imperio. Estes dois factos, além de
influencia enorme sobre a conservação do Imperio,
tiveram
acção profunda e decisiva na
evolução social da
religião e das artes christãs.
É evidente que esta evolução tinha de
existir, porque,
já antes do reinado de Constantino, o Christianismo,
moralmente vencedor, não podia ser suffocado;
mas o movimento seria diverso, talvez mais lento e de
caracteres secundarios differentes. Os grandes homens
não conseguem crear as opportunidades, nem modificar
[25]
as causas profundas que transformam o modo de
ser animico e social da humanidade; comtudo, o genio
aproveita-as, imprime-lhes caracter especial, dirige-as
em determinado caminho, de entre os variados de que
dispõe a natureza e o espirito para se approximar
indefinidamente
do fim supremo, os ideaes do bem, do
bello e da justiça.
Constantino vira nas Gallias o caminhar rapido do
Christianismo. Tinha assistido, provavelmente, aos
actos de perseguição alli praticados por ordem de
Deocleciano. Sentira a fé dos crentes, apreciára
a
energia de alma dos martyres, a valentia das mulheres
que se deixavam suppliciar, sem protestos, sem
choros, olhando o Ceu com esperança e cobrindo apenas
os corpos, animadas d'esse pudôr do espirito que
desconhecia quasi o paganismo. Para elles, martyres,
a morte não era horrivel; por um lado, davam
o exemplo, por outro, obtinham a liberdade da alma,
que em breve ia ser feliz, vivendo para sempre no
seio do doce Christo. Constantino era um genio e os
genios vêem sempre no futuro.
Depois, annos de morticinio não extinguiam os
christãos.
Parecia que a flora do Christianismo rebentava
sempre mais forte e variada. A suggestão do martyrio,
fundando-se na esperança, trazia novos adeptos,
que appareciam por toda a parte, como nos campos
cobertos de relva pullulam as boninas brancas na primavera.
Constantino era politico e os politicos usam das forças
vivas para os seus altos designios. A idéa e a
força
[26]
sempre crescente do Christianismo, que haviam levado,
talvez, Diocleciano a abdicar a coroa imperial
não podendo transigir com elle, eram elementos necessarios,
unicos, para o sonho de Constantino, a unificação
e a reorganisação do antigo Imperio Romano.
Alem d'isso, Constantino era um philosopho. A idéa
polytheista estava condemnada. Os verdadeiros sabios
nunca haviam acreditado n'esses mythos monstruosos
uns, ingenuos outros; n'essa religião, emfim, sob cuja
influencia cabiam aos pedaços a politica das sociedades
pagãs e a moral dos cidadãos. A doutrina
christã,
simples e virtuosa, o seu principio deista, a unidade
do Espirito Supremo ideal dos philosophos, deviam
ter um encanto poetico aos olhos do imperador, constituir
uma aspiração da sua alma.
Não é, pois, necessaria a
revelação divina para explicar
a conversão de Constantino. Em nome das
perseguições
feitas aos christãos, o novo imperador marcha
contra seu cunhado Mazencio, o tetrarcha da Italia,
derrota-o nos campos do Pó, aperta-o na retirada e,
ajudado pelos christãos, levando na frente o
labarum,
com a cruz de Christo e o prophetico lemma
in hoc
signo
vinces, vence-o e fal-o morrer junto dos muros de
Roma. No anno seguinte, em 313, o imperador publica
em Milão o Edito de Tolerancia, a aurora da liberdade
para a Egreja triumphante.
Dois annos depois, ataca o tetrarcha do Oriente, Licinio,
sempre a titulo das perseguições exercidas contra
os christãos; derrota-o em Siballis, aprisiona-o,
promette-lhe a vida e manda-o matar passado tempo!
[27]
A unidade politica do Imperio estava feita; faltava,
apenas, a organisação administrativa. Os
christãos haviam
sido auxiliares do imperador; tornaram-se, pois,
seus protegidos. Constantino não combatia ainda abertamente
o paganismo; enfraquecia-o a pouco e pouco,
enchendo os christãos de favores, mostrando por elles
viva predilecção. Ora, os favores e a
predilecção dos
poderosos são uma ordem e um incentivo para os pequenos.
O trabalho de propaganda de Constantino foi lento
e efficaz. Não bastava que o Christianismo vivesse de
tolerancia. Antes de ser religião do Estado, precisava
tornar-se pessoa moral, possuir propriedade, o que entre
os romanos era a melhor manifestação de
força e
de soberania. Em 321, outro Edito imperial auctorisa
a Egreja a receber donativos e a possuir bens temporaes.
O imperador concede, depois, privilegios aos
templos da nova religião, entre elles o direito de asylo
dos templos classicos; eguala os dois sacerdocios em
direitos e regalias; começa até a perseguir os
pagãos.
Eram costumes do tempo.
Para dar unidade á nova Egreja e expungir a heresia
de Ario, que no terceiro seculo do Christianismo
ameaçava já a tradição
orthodoxa, Constantino convocou
em 325 o primeiro Concilio Ecumenico, a reunião
dos bispos de todas as dioceses do Imperio, em Nicea.
Este concilio teve subida importancia sobre a unidade
e a disciplina do Christianismo, como mais tarde a
manifestou, tambem, o Concilio de Trento, iniciando
a theocracia dos pontifices romanos. Deu o exemplo
[28]
da definição do dogma nas reuniões da
Egreja Universal;
fixou a doutrina da consubstanciação do Pae e
do Filho; divinisou Jesus Christo, enunciando o
Symbolo
dos Apostolos, ainda hoje o
Credo resado pelos
christãos;
finalmente, fulminou o anathema e a excommunhão
sobre Ario e a sua doutrina, que negavam esta
consubstanciação.
O arianismo, porém, não se deu por vencido e,
durante
seculos, manifestou profunda influencia sobre o
Christianismo, principalmente na catechese dos povos
barbaros.
Assim, pode dizer-se que o arianismo, preparando o
espirito dos povos germanicos, é o verdadeiro germen
do movimento da reforma religiosa, que nos seculos
futuros dividiu o Christianismo em dois poderosos ramos,
o catholico e o protestante.
Constantino fizera-se christão de facto, faltava-lhe
apenas o baptismo; comtudo, como esse sacramento lhe
sacrificaria as funcções e a influencia de
pontifice-maximo
do paganismo perseguido, quasi extincto mas
tendo ainda proselytos, o imperador, encarnando-se no
politico, deixa a prova indubitavel e solemne da conversão,
para os ultimos dias da vida. O politico ainda
transparece na escolha de Byzancio, reedificada e engrandecida,
para capital do Imperio. Com effeito, em
torno das suas vastas fronteiras, já no tempo de
Constantino,
uma cinta de ferro de povos barbaros cingia-se
cada vez mais. Eram as ondas das invasões, que
se começavam a formar e entrarão com movimento
irresistivel no seculo seguinte.
[29]
O genio de Constantino presentiu a proxima e inevitavel
lucta, o terrivel choque dos povos do norte nas
fronteiras do Imperio. A cidade de Byzancio, defendida
pelo Caucaso, pelo Mar Negro e pelo profundo
fosso do Bosphoro, offerecia-lhe uma posição
relativamente
mais segura do que Roma para capital, o cerebro
e a alma dos seus vastos estados. O imperador
transferiu a séde do governo para Constantinopla, no
anno 330 da nossa era.
Assim, o Christianismo foi reconhecido religião do
Estado, official e professada pelo imperador, segundo
o antigo aphorismo:
cujus regio, ejus
religio.
Um novo periodo historico vae, pois, começar para
a Humanidade. A politica e a moral, expressões geraes
da actividade humana, manifestarão caracteres differentes
do passado. O espirito do Christianismo presidirá
a esta phase longa e brilhante da evolução
historica, que ha de inflorar-se com a
civilisação e o
progresso modernos.
Entre o mundo classico e o christão parece existir
hoje um abysmo; todavia, na evolução do espirito
não occorreu a menor solução de
continuidade.
As sociedades modernas ligam-se ás antigas, como
a arvore se prende ao solo pelas raizes, como a
planta se enxerta n'outra, de que recebe a seiva e o
alimento.
A arte classica e a christã parecem, tambem, distinctas,
quando na realidade nasceram ambas do movimento
evolutivo e ascencional do espirito humano. As
differenças provéem da intima natureza das
religiões,
[30]
que imprimiu caracteres especiaes á expressão do
bello, a Arte, nas duas sociedades.
Todas as religiões se dirigem, mais ou menos directamente
conforme a perfeição da doutrina e do culto,
para o ideal do bem, do bello e do justo; mas procuram-n'o
por differentes caminhos. O polytheismo grego
e romano, pelas condições especiaes da sua
formação,
via esse ideal atravez da belleza da forma. O Christianismo,
pelo contrario, contempla-o atravez da belleza
do espirito. Os fins são identicos; apenas os meios
de os attingir se manifestam differentes.
A religião classica exaltava a alma, penetrando-a de
doce sensualismo. O amor e o goso eram bens da vida,
de que os proprios Deuses davam bons exemplos. Diogenes
no seu tonel professava esta doutrina. Desprezando
as vaidades do mundo, aquecia-se aos raios do
sol e contemplava o bello visivel da natureza.
A religião christã exalta a alma, penetrando-a de
elevado espiritualismo. A vida é a estrada rude e aspera,
que a alma vae subindo dolorosamente até entrar,
emfim, pela porta da morte na felicidade eterna.
S. Jeronymo, na sua cella humida e fria, rasgava as
carnes com cilicios e açoutes para calar os sentidos.
Desprezando, tambem, os bens mundanos, absorvia-se
na contemplação da belleza ideal do Eterno
Espirito.
A applicação d'esta doutrina é facil e
concludente.
Na architectura, comparemos duas producções
singulares
em merito e belleza: o Parthenon e a Cathedral
de Strasburgo.
O Parthenon foi o templo mais perfeito da arte classica;
[31]
a Cathedral de Strasburgo gosa da fama de ser
exemplar completo do mais rico estylo da arte christã.
No primeiro, todas as proporções e elementos
foram
estudados e combinados para attingir a harmonia e a
belleza da forma; mas a expressão é fria. O
monumento
não diz nada ao nosso espirito. Na segunda,
pelo contrario, a belleza da expressão completa a da
forma. A Cathedral de Strasburgo é um poema de pedra,
um cantico da religião christã.
Na esculptura observa-se o mesmo. O auctor d'este
livro percorreu os museus de Italia, viu nas vastas
galerias do Vaticano accumuladas centenas, milhares
de estatuas classicas. Nunca, nunca, até hoje, a
esculptura moderna attingiu tal belleza de formas!
Mas, n'essa multidão immensa de primores, não
encontrou
a expressão. As physionomias são de uma
serenidade
olympica, as attitudes magestosas, em geral,
não teem movimento. A expressão não
existe, até
quando as condições do acto mais a exigem. A
morte
não tem contracções no rosto. A lucta
não manifesta
a furia do odio. O amor é frio e solemne. Todas as
bellas estatuas teem a impassibilidade de Jupiter ou
de Minerva, conforme os sexos.
As excepções são rarissimas; contam-se
sem difficuldade.
O grupo de Laocoon e dos filhos, envolvidos
pelas serpentes, as lagrimas de Niobe, chorando os filhos,
são exemplares curiosos da expressão dos antigos
estatuarios. Saindo dos museus classicos, encontramos
em Italia por toda a parte a vida, a expressão, o
movimento dos esculptores da Renascença, de que Bernini
[32]
nos dá singular exemplo no extasis de Santa Thereza
de Jesus, uma das mais extraordinarias estatuas
produzidas pelos artistas modernos.
A arte classica e a christã traduzem, pois, a essencia
intima das respectivas religiões. Na primeira, predomina
a forma; na segunda sobresae o espirito. Estas
observações parecem-nos fundamentaes na Historia
da Arte.
CAPITULO
TERCEIRO
AS INVASÕES DOS BARBAROS
O mestre de Socrates, Anaxagoras, que professou
a philosophia em Athenas cinco seculos antes de
Christo, ensinava aos seus discipulos este principio:
o Espirito começou pacientemente a
revolução, que deve
realisar-se; os seus progressos são rapidos,
sel-o-ão cada
vez mais.
Este espirito, sem duvida, era a lei da perfectibilidade
humana, bem evidente nos seus resultados, embora
enygmatica nas proprias origens.
O periodo historico da Edade-Media resulta da
acção
reciproca das tres manifestações do espirito,
representadas
pelo paganismo, pelo christianismo e pelos barbaros.
É a longa phase das suas luctas, das suas
concessões
mutuas, das suas combinações, verdadeira
endosmose e
exosmose de idéas, que
termina pela constituição
homogenea das sociedades modernas.
A Edade-Media começou no seculo V, definida pela
primeira invasão dos barbaros, germanos, hunos e
[34]
alanos, e dura até á tomada de Constantinopla, em
1453, pelos turcos de Mahomet II. Estes dez seculos,
sombrios e tristes, infundem ainda hoje, apesar da distancia
do tempo, um sentimento vago de pavor e de
melancholia, taes são os flagellos, as guerras, as miserias,
como eguaes não houve n'outra quadra historica,
que n'este espaço immenso, principalmente até
ao seculo X, assolaram a humanidade.
A acção reciproca do paganismo e do Christianismo
já procurámos esboçal-a nos anteriores
capitulos. Vamos
referir-nos, agora, aos
barbaros,
elemento novo
e activo, causa de poderosa transformação social
e moral
sem duvida, que vem entrar directa e profundamente
na scena da historia. De entre os tres, como é de
justiça, reconheçamos a hegemonia ao
Christianismo.
Já no tempo de Constantino hordas numerosas de
barbaros, mais ou menos organisadas
em nações, se
distribuiam pelas vastas fronteiras do Imperio, desde
a cordilheira do Caucaso até á embocadura do
Rheno.
Os hunos e os germanos constituiam a primeira zona
d'estes povos, apertados entre os limites do Imperio e
outras zonas de barbaros, escalonadas para o norte da
Europa. Os hunos de raça mongolica occupavam as
vertentes septentrionaes do Caucaso e estendiam-se
para o nordeste. Os godos guarneciam a costa norte do
Mar Negro e mais além, para o occidente, a margem
esquerda do Danubio; os vandalos, os allemanos, os
francos e frisões, depois, até á
embocadura do Rheno,
fechavam o circuito, cheio de perigos previstos e tremendos.
[35]
De quando em quando, esta massa de innumeraveis
guerreiros trasbordava em alguns pontos e passava
as fronteiras romanas; comtudo, até ao seculo V o
Imperio resistira. Derrotava-os, dominava-os e concedia-lhes
até vastas provincias, confiando-lhes a guarda
d'essas fronteiras, ameaçadas por outras hordas. A
acção da diplomacia imperial completava a dos
exercitos,
semeando intrigas e dissensões entre as
nações
barbaras e os mais poderosos chefes, assoldadando
generaes e guerreiros; empregando, emfim, todos os
meios de intriga e de veniaga que dividem as forças
do inimigo.
Assim, correram os factos até ao fim do seculo IV,
quando um movimento geral dos hunos, promovido
por causas particulares internas, arremessou estas
grandes massas nomadas e os alanos, sobre os ostrogodos
e os visigodos. Os primeiros submetteram-se ao
jugo dos hunos. Os visigodos vencidos entraram no
Imperio do Oriente, obtendo terras a pedido de Ulphilas,
bispo godo ariano. Revoltados em breve, bateram
o Imperador Valente e mataram-n'o em Andrinopla.
A habilidade do Imperador Theodosio dominou-os
e deteve-lhes a expansão conquistadora; mas
esta primeira investida deve ser considerada o facto
primordial da invasão dos barbaros.
Theodosio organisou o Imperio, que, durante os dezeseis
annos do seu reinado, gosou tranquillidade relativa;
todavia, o movimento dos hunos e dos alanos
para o occidente communicou-se a todas as nações
barbaras, repercutindo-se até ao Rheno.
[36]
Logo no principio do seculo V os visigodos de Alarico
assolaram a Italia e pozeram cêrco a Roma.
Quasi a seguir, os suevos de Radagués precipitaram-se
como nova onda sobre a peninsula, sendo vencidos
por Stilicon, da raça vandala, ao serviço do
Imperador
Honorio. Os visigodos, seis annos depois, apparecem
novamente e assediam Roma. O grande chefe
Alarico morre, quando preparava a conquista da Sicilia.
Entretanto, Attila, o famoso chefe dos hunos, marchava
sobre a França. Romanos, francos e godos
vencem-n'o em Arles. Attila retira sobre a Italia, devasta
as regiões do Pó, desce sobre a cidade de Roma,
que foi salva pelo Papa Leão o Grande. A morte de
Attila dissolveu a invasão dos hunos, cuja crueldade
e selvageria ficaram historicas.
Outra horda de barbaros vem devastar a Italia: os
vandalos de Genserico tomam e saqueiam a cidade de
Roma. A esta onda segue-se outra, os herulos de
Odoacro. Novo saque de Roma, novas devastações
precedem a coroação do chefe herulo, como Rei da
Italia. A queda do Imperio do Oriente, pela
desmembração
das respectivas provincias, tornou-se emfim
um facto consummado.
Quasi no fim do seculo V, os ostrogodos de Theodorico
fecharam o primeiro periodo das invasões barbaras.
Odoacro é vencido e morto. A
restauração do
Imperio do Occidente já não era possivel; mas
Theodorico
consegue reconstituir, nos antigos moldes imperiaes,
um vasto dominio, comprehendendo a Italia,
[37]
limitado ao oriente pelo Drina, para além o Imperio
Byzantino, ao norte pelo Danubio, para além os lombardos
e os gepides, e a oeste definido pelas nações
dos francos, dos borguinhões e dos visigodos.
Tal é em succinto o quadro, a pintura do estado
de guerras e de miserias, que atravessaram os paizes
e os povos do antigo Imperio Romano, reduzido no fim
do seculo V ao Imperio Byzantino, no extremo oriente
da Europa. A estes movimentos dos barbaros nos referiremos
apenas, porque os outros, na Bretanha, na
Gallia e na Hespanha, tiveram n'esse periodo pequena
importancia sobre a arte christã, que na realidade
nasceu em Italia e no Imperio Byzantino.
Todos estes barbaros, que em ondas successivas se
precipitaram sobre o Imperio do Occidente, exceptuando
os hunos e os alanos, constituiam ramos da
mesma raça aryana, de que os gregos e os romanos
provinham tambem, descendentes mais ou menos puros
e directos de emigrações remotissimas. Se as
linguas
d'estas nações barbaras eram, pois, entre si
incomprehensiveis, embora da mesma familia, os caracteres
individuaes e ethnicos apresentavam intimas
analogias.
Mais ou menos nomadas, as nações barbaras
possuiam
energico espirito bellicoso. Rudes e destemidas,
embora não selvagens ou crueis, essas vastas
confederações
nacionaes procuravam em luctas aventurosas
satisfazer o espirito guerreiro, que mais tarde singularmente
manifestaram duas instituições suas: o feudalismo
e a cavallaria.
[38]
O polytheismo, entre ellas, tivera o mesmo caracter,
antes de se converterem á heresia do arianismo. A
religião
manifestava entre os barbaros um espirito poetico
e nebuloso, que lhe davam os
bardos,
como entre
os celtas cantando hymnos, em que eram glorificados
os deuses e os grandes actos dos heroes nacionaes.
Foram estes bardos, que na Edade-Media deram origem
aos famosos menestreis.
Homens robustos, de caracter franco e aberto, leaes
como companheiros, fieis aos seus chefes, estes
barbaros,
como lhes chamavam os romanos, nutriam enraizados
no espirito o amor da liberdade e o respeito da
propria dignidade, professando, como se diria hoje,
um energico individualismo. A este amor da liberdade
individual se devem attribuir em grande parte alguns
factos importantes da historia, como, por exemplo, a
constituição das communas e principalmente o
movimento
da
reforma religiosa, a bella e
grande lucta da
theocracia e da democracia christãs, em que esta ficou
vencedora, a final, no seculo XVI.
Assim, o caracter disciplinado, a dedicação pelos
chefes,
em geral escolhidos pelo valor e por altos feitos,
não excluiam uma organisação social
democratica, que
se manifestava em reuniões periodicas de guerreiros,
onde se discutiam e resolviam as questões de interesse
commum da tribu. Estas qualidades singulares
dos barbaros, bem oppostas ás dos romanos da decadencia,
caracterisam ainda hoje as nações do norte da
Europa, suas legitimas descendentes.
O amor da liberdade fraccionava as nacionalidades
[39]
barbaras, constituidas pela federação de pequenos
estados
ou tribus, onde era possivel a vida local. Communicava-lhes
um certo espirito nomada, inimigo dos
grandes centros; exigia-lhes uma vida separada e independente
de pequenos senhores, avessos ao trabalho,
ignorantes por indolencia não por desprezo das
artes e das sciencias, só ardentes e activos na guerra,
na caça e no exercicio da soberania. Sentem-se n'estes
traços os futuros barões feudaes. Entregando o
trabalho
penoso aos escravos e ás mulheres, pelas quaes
aliás professavam certo respeito, considerando-as investidas
de dons propheticos, estes
barbaros
traziam
em si o germen, que, ao calor do Christianismo, devia
produzir a consideração, singular e antinomica
com
outros costumes, e o amor mystico e respeitoso pela
mulher no tempo da cavallaria.
Estas virtudes, sem duvida, tinham reverso; os
barbaros
eram irasciveis, ebrios, jogadores e libertinos;
ainda n'isto se manifestavam os futuros barões feudaes.
Tal era o caracter dos povos, que assolaram o
Imperio do Occidente no seculo V, não falando nos
hunos e nos alanos, povos de outra raça que foram
um episodio na historia da Europa. Ora, estas qualidades,
no exercicio da intelligencia e nas diversas
manifestações
sociaes, tiveram grande influencia no organismo
da Edade-Media, e logicamente sobre a arte;
influencia mais accentuada nos periodos romanico e
ogival.
Quando os barbaros tocavam a antiga civilisação
romana, eram fascinados por ella. É um facto incontestavel
[40]
na historia. A primeira demonstração
deu-se
na constituição do reino godo de Italia por
Theodorico,
um precursor de Carlos Magno e como elle um
barbaro de genio. Educado na
côrte imperial de Constantinopla,
apreciára o immenso valor da
organisação
social e do direito romanos, offuscados e desprestigiados
pela pequenez dos homens. A grandeza do espirito
de Theodorico avalia-se bem por um só facto, extraordinario
e caracteristico. Legislando a justiça no seu
vasto imperio, decretou que as questões suscitadas
entre dois godos, seriam resolvidas por um godo, entre
um romano e um godo por um romano, entre
romanos por outro romano; assim, conclue o
barbaro:
cada um terá o seu direito garantido e, apesar
da differença dos juizes, uma só
justiça reinará para
todo o mundo. E, todavia, os godos eram os
conquistadores
e os romanos os vencidos!
Este espirito de justiça nascia do amor pela liberdade
e do respeito pela dignidade humana, que é a
sua consequencia logica. Era a manifestação
esplendida
do caracter fundamental da sua raça, que os
barbaros
traziam para a caduca civilisação romana,
recebendo
em troca tradições de gloria, sabias
instituições
e um direito escripto, que ainda hoje causa a
admiração
do mundo moderno. Na religião, Theodorico, um
sectario das doutrinas de Ario, idéa perseguida nos
seus adeptos e fulminada nos concilios, mostra se tolerante.
A Italia era orthodoxa e continua a professar
as suas doutrinas. Os christãos elevam templos
por toda a parte, gosam de inteira liberdade de culto.
[41]
O
barbaro só vacilla um
momento no fim da sua vida,
como represalia ao Imperador do Oriente, que perseguia
o arianismo com violencia e crueldade.
O seu governo pacifico e justo restabelece a ordem,
desenvolve a riqueza, fomenta o commercio interno e
externo. As antigas instituições romanas
são respeitadas,
consultadas até. Os cargos civis são para os
romanos,
os militares para os godos, que assim se conservam
separados como casta guerreira. O direito romano
serve de base ao novo direito gothico. Emfim, a
combinação
das tres manifestações do Espirito, segundo a
expressão de Anaxagoras, começa a dar
homogeneidade
a uma nova civilisação.
O reinado de Theodorico é, pois, uma tentativa da
fusão de principios, um relampago de luz serena e
clara que irrompe do seio tenebroso dos primeiros
tempos da Edade-Media. Dentro de dois seculos constituir-se-ha
o Santo Imperio de Carlos Magno.
PARTE SEGUNDA
OS ESTYLOS CHRISTÃOS PRIMITIVOS
V SECULO AO X
SECULO
CAPITULO
PRIMEIRO
ESPIRITO E CARACTERES DO ESTYLO LATINO
O Christianismo saíra das catacumbas nos meiados
do seculo IV. Quasi todo o seculo seguinte passara-se
em invasões successivas. Hordas de barbaros precipitaram-se
sobre a Italia, talando, destruindo e roubando
o que umas ás outras deixavam. As
perseguições religiosas
haviam cessado; mas a heresia de Ario perturbava
os espiritos, e as invasões accumulavam morticinios
e flagellos. O trabalho não tinha socego, a
agricultura abandonada decaíra, a propriedade estava
ameaçada e a industria e o commercio esmoreciam,
asphixiados por pesada atmosphera de fogo, de
sangue e de incerteza. Não é n'estas
condições da sociedade
e do espirito humano que as artes se desenvolvem
e florescem. O Estylo Latino, que principiára
a formar-se nos meiados do seculo IV, constitui-se lentamente
no seculo seguinte.
A derrota do paganismo inutilisára os templos e
mutilára as estatuas dos antigos deuses. Ora, parece-nos
[46]
haver comprehendido na historia das religiões,
que a vencedora esmaga a doutrina vencida, persegue-lhe
ferozmente os adeptos e, como os antigos
exercitos definiam a victoria dormindo sobre o campo
da batalha, as religiões triumphantes occupam e
apropriam ao seu culto os antigos templos profanados
e desertos.
Este principio deriva de rasões logicas e de qualidades
ou defeitos da propria alma humana. O vencedor
expolia o vencido; vê-se isto ainda nos tempos
modernos. O espirito da nova religião sente a necessidade
orgulhosa de fazer adorar o seu Deus nos mesmos
recintos e altares, onde os
idolatras adoravam
os deuses vencidos. Além d'isso, os templos inuteis
offerecem, em regra, condições de
construcção adequadas
ás praticas religiosas; ora, em todas as
religiões
mais perfeitas existem usos e praticas similhantes. O
vencedor não tem tempo para construir logo a principio,
encontra sanctuarios em sitios escolhidos e
convenientes, aproveita-os. É uma rasão. Assim,
nós
vemos os arabes de Hespanha aproveitarem as egrejas
godas, transformando-as em mesquitas, onde o
Alcorão occupa o logar da Biblia; mesquitas que, depois,
se tornam templos christãos. Assim, os turcos
de Mahomet II, tomando Constantinopla, fizeram de
Santa Sophia e dos templos byzantinos do Oriente
conquistado as suas primeiras mesquitas.
O Christianismo não procedeu por esta fórma,
salvo
raras excepções. Em primeiro logar, porque o
espirito
e os ritos da nova religião eram assás
differentes dos do
[47]
paganismo. A expressão da arte classica não dizia
bem
com a essencia do culto christão. Além d'isso, os
templos
classicos eram pouco espaçosos. O
naos, a cella
ou sanctuario dos deuses, era pequeno; o que dava
amplidão ao tempo classico, o
pro-naos, o portico que
mais ou menos envolvia o
naos,
correspondia ao
culto e aos ritos pagãos; não se amoldava,
porém,
aos do Christianismo, cujas multidões, sempre crescentes,
precisavam reunir-se amiudadas vezes para os
exercicios divinos.
As circumstancias desgraçadas da sociedade romana,
esboçadas anteriormente, proporcionaram aos
christãos os grandes edificios das
basilicas, logares de
reuniões publicas, tribunaes, mercados e bolsas de
commercio e bancarias, se em referencia a esses tempos
se podem empregar as ultimas expressões tão
modernas.
O amortecimento da actividade social e a
extincção
da vida politica dos cidadãos, que os chamavam aos
foros junto dos quaes existiam as
basilicas, o abatimento
do commercio e das industrias, emfim, as
condições
adversas dos seculos IV e V tornaram quasi inuteis
estes enormes edificios, outr'ora correspondendo a necessidades
publicas e regorgitando de cidadãos, na
plena actividade de trabalho em variadas
operações
commerciaes. Os christãos preponderantes em Roma,
logo no principio do imperio de Constantino, começaram
a apropriar-se d'estes edificios do Estado, adequando-os
ao culto e aos ritos da nova religião.
As basilicas romanas produziram, pois, a fórma e o
[48]
estylo das primeiras egrejas christãs. Sobre as respectivas
disposições existiam duvidas, que a critica e a
inducção procuraram resolver; assim, a
reconstituição
d'estes edificios parece ser hoje questão resolvida.
A importancia que tiveram sobre a arte christã, a
grandeza e a magnificencia dos que existem hoje,
principalmente em Roma, obrigam-nos a mais desenvolvida
descripção.
Vitruvio deu-nos as regras principaes da
construcção
d'estes monumentos e esclareceu-nos sobre os
seus empregos. O architecto aconselha que as basilicas
sejam levantadas em sitios quentes e amenos, para facilitar
a reunião dos commerciantes. Os seus fins estão,
pois, definidos, pelo menos no ultimo seculo antes de
Christo em que viveu o celebre architecto romano.
As regras são incompletas, sem deixarem de ser tambem
interessantes, porque traduzem o espirito methodico
e as proporções prefixadas e tradicionaes da arte
classica.
A largura das basilicas, diz Vitruvio, deve ser pelo
menos, o terço do seu comprimento. Adequadas ao
terreno, que, se for longo, obrigará a construir
chalcidicos
nos extremos da basilica. As columnas do pavimento
terreo terão altura egual á largura dos
porticos, como o architecto chama ás naves lateraes,
que a seu turno devem offerecer approximadamente
um terço da largura do corpo ou nave central. As columnas
superiores, as das galerias sobrepostas aos
porticos, serão um quarto mais baixas do que as do
pavimento terreo. O parapeito, lançado entre as columnas
[49]
d'estas galerias, offerecerá altura sufficiente
para que as pessoas de cima não sejam vistas pelas
de baixo. Por muito incompletos que pareçam, estes
pormenores seriam sufficientes para dar approximada
idéa dos fins e das disposições
d'estes edificios classicos.
Schema de uma basilica romana
O nome de basilicas parece indicar-lhes origem na
Grecia, onde provavelmente existiram construcções
com fins equivalentes; comtudo, pode tambem definir-lhes
a grandeza e a magnificencia, visto que a palavra
grega expressa o poder real.
A basilica apparece nos ultimos tempos da republica.
Construida nas proximidades dos
foros, grandes
praças onde existia a tribuna dos oradores e se
discutiam e resolviam os negocios publicos, a basilica
parece ter sido um annexo indispensavel d'estes
foros, recinto abrigado e coberto
para occasiões de intemperie.
A mais antiga em Roma, a Basilica Porcia,
suppõe-se ter sido construida cêrca de duzentos
annos
antes de Christo. Depois, como mais importantes, contavam-se
a Basilica Emilia, construida por Fulvio, a
Basilica Simpronia, elevada por Tito Sempronio,
censor
no ultimo seculo antes de Christo. Estas
construcções
faziam parte das dadivas, com que os politicos e
os ambiciosos do tempo procuravam conquistar as
boas graças do povo.
Os imperadores, depois, elevaram muitas. Cesar,
Trajano, e por ultimo Constantino construiram-nas em
Roma. Cidades de importancia secundaria possuiam
basilicas. Assim, pudémos ver ainda os restos da que
[50]
existiu em Pompeia, junto do pequeno
forum. Ora,
esta cidade era, como outras, semeadas nas margens
do golpho de Napoles, uma verdadeira estação de
verão,
provavelmente do caracter que hoje têem Nice e
as povoações da Côte-d'Azur, sobre o
Mediterraneo.
A basilica de Pompeia constitue um excellente
exemplar, porque demonstra que nas primitivas não
existia ábside. No fim da nave principal, uma tribuna
quadrada, avançando sobre o transepto e de altura
superior á de um homem de regular estatura, constituia,
decerto, o espaço reservado para o tribunal. Nas
ultimas basilicas posteriormente construidas, por exemplo
a de Constantino, já apparece a ábside saliente,
abobadada em meia cupula, para installação dos
juizes.
A descripção d'esta ultima basilica
dar-nos-á idéa
clara da disposição interior e grandeza d'esta
natureza
de construcções. Media cêrca de 90
metros de comprido,
por 75 metros de largo. Em geral, as basilicas
offereciam consideravel superficie. Segundo o maior
comprimento, eram divididas em tres naves, cortadas
perpendicularmente por tres transeptos. Na extremidade
dos eixos da nave e do transepto centraes existia
uma ábside; no outro extremo, em face das
ábsides,
abriam-se as entradas, das quaes a principal dava
sobre a Via-Sacra.
Reunindo estes elementos, podemos figurar com
grande exactidão as disposições
internas das basilicas.
Em geral, Reunindo estes elementos, podemos figurar com
grande exactidão as disposições
internas das basilicas.
Em geral, eram vastos edificios, constituidos por uma
nave central terminada em ábside e ladeada de porticos
sobrepostos em dois pavimentos, que attingiam a
[51]
altura do corpo central. Este conjunto, exceptuando
a ábside abobadada em meia cupula, tinha cobertura
de madeira com as traves a descoberto.
Nos tempos primitivos, pelo menos, o edificio cercado
de porticos era accessivel por todos os pontos.
Depois, as columnas periphericas foram substituidas
por paredes, onde havia portas symetricas nos extremos
das naves em face das ábsides.
No pavimento terreo reunia-se o tribunal, occupando
a ábside e o transepto annexo; os negocios commerciaes
e bancarios d'aquelle tempo tratavam-se na
grande nave central; nos porticos inferiores lateraes
estavam os logares dos vendedores, á similhança
dos
bazares orientaes. Os porticos
superiores constituiam
logar de reunião para ociosos e para os que procuravam
as diversões da sociedade e da
conversação.
Para bem fixar os caracteres das basilicas, apresentamos
um claro schema, onde todos os respectivos
elementos estão expressamente desenhados. N'este
schema faremos notar as disposições relativas do
tribunal,
constituido pela ábside, onde estacionava o juiz
e o pessoal annexo, pelas cadeiras ou tribunas dos
advogados, ladeando esta ábside, e finalmente pelo
recinto fechado, que sem duvida devia existir para
separar os negocios do tribunal dos restantes, que se
tratavam tambem nas basilicas. Estes elementos são
a origem de disposições especiaes nas egrejas do
Estylo
Latino, como adeante diremos.
Emfim, diz-se que as basilicas eram de architectura
simples e de modesta ornamentação. É
um erro; taes
[52]
edificios, dados os seus fins e a mira dos doadores e
constructores, principalmente quando foram os Cesares,
não podiam deixar de manifestar grandeza architectonica,
embora a severa e solemne grandeza classica. A
ornamentação era rica e profusa em estatuas e
objectos
de arte, como o foi sempre a grega e a romana. Este
ultimo facto, pelo menos, é attestado pelas
descripções
dos historiadores. É claro que n'este ponto nos referimos
ás antigas basilicas romanas e não ás
que, seguindo
o estylo, edificaram depois os christãos.
As basilicas romanas deram, pois, origem ás primeiras
egrejas do Christianismo no occidente. Parece-nos,
todavia, conveniente, n'esta formação do estylo
latino, distinguir dois periodos, sem lhes poder fixar
datas, como aliás é sempre difficilimo nas
transições
artisticas: o primitivo, desde Constantino até Theodorico,
em que o estylo devia ser, em regra, relativamente
simples e pobre, e o segundo, sob a influencia
da riquissima arte byzantina, que ia successivamente
attingindo a perfeição manifestada no seculo VI,
pela
construcção de Santa Sophia de Constantinopla. As
relações entre o occidente e oriente eram muito
frequentes
e activas n'aquella epoca, para que se não
desse esta influencia de uma arte grandiosa e de
ornamentação
riquissima, sobre o Estylo Latino nascente.
Nos primeiros tempos houve, sem duvida,
vacillações.
A consolidação da egreja deve ter influido muito
na constituição do estylo. As basilicas
christãs dos
melhores tempos tinham fórmas definidas; obedeciam,
por assim dizer, ás regras de alguns typos apurados
[53]
e preferidos; por isso, é até certo ponto
possivel descrever-lhes
os caracteres geraes.
A disposição interior das egrejas do Estylo
Latino
apresentava figuras differentes; a circular e a rectangular
foram as mais empregadas, principalmente a ultima.
Exemplos ha, tambem, do emprego combinado
do circulo e do rectangulo, como se vê na egreja basilica
de S. Martinho de Tours. A architectura era simples
e sobria, seguindo o espirito e a fórma do estylo
classico romano. A diversidade manifesta-se mais accentuada
nas disposições internas, accommodadas
ás
necessidades do novo culto, e na ornamentação
mais
ou menos rica, onde exerceu decidida influencia o
Estylo Byzantino, em plena florescencia no seculo VI.
Figuremos, agora, uma visita a estas basilicas do
Estylo Latino, fazendo um ligeiro schema dos seus
caracteres principaes; observaremos, comtudo, que
esta descripção
theorica soffre as
modificações impostas
pelas circumstancias, pelas disposições dos
edificios
apropriados e, emfim, pela imaginação e
concepção
artisticas, que, embora dentro das regras dos estylos,
teem sempre maior ou menor liberdade de acção.
Um espaçoso
atrio,
fechado por muros, ás vezes revestidos
de porticos internos, dava ingresso á egreja.
No fundo d'este
atrio quadrado, que
foi origem dos
adros das nossas egrejas, em frente da respectiva entrada,
elevava-se o edificio do templo. A fachada era
formada por tres portas e tres janellas, correspondendo
aos eixos das tres naves internas. A porta central servia
para os grandes ceremoniaes. Sobrepujando as portas
[54]
e as janelas, um frontão pouco alto encobria o
madeiramento
dos telhados. N'esta disposição vê-se a
ordenança classica.
Em frente da egreja e encostado á fachada, um
portico de columnas formava alpendre sobre as portas,
logar protegido onde se abrigavam os fieis. Algumas
vezes, não havia saliencia para fóra da
superficie
vertical da fachada, que então repousava sobre o
intercolumnio
externo do portico. As portas da egreja
ficavam, n'este caso, precedidas de uma especie de
vestibulo. Nos lados d'este portico duas fontes serviam
para as abluções.
N'estas fontes teem origem os baptisterios, edificios
sumptuosos que mais tarde foram elevados junto das
egrejas, nos atrios ou fóra d'elles, onde se praticava
em grandes bacias de marmore o baptismo por immersão,
usado n'aquelles tempos. Depois, a transformação
dos ritos, dando caracter symbolico ao baptismo, introduziu
os baptisterios no corpo das egrejas proximo
da entrada.
As fachadas lateraes da egreja, em regra, não tinham
janelas. A parede lisa era coroada por uma cornija,
repousando sobre modilhões. As janelas da fachada
eram fechadas por grandes laminas de marmore,
rendilhadas de pequenas aberturas circulares ou em lozangos,
dando a impressão das rotulas orientaes.
No interior, a egreja offerecia as caracteristicas
disposições
da basilica romana: tres naves, a do centro
mais larga e alta, as lateraes com dois pavimentos sobrepostos,
abrindo na principal, compunham a superficie
[55]
coberta do edificio. Segundo o preceito primitivo
da divisão dos sexos nas ceremonias religiosas, os homens
occupavam a nave lateral da esquerda, as mulheres
casadas a da direita e as virgens e as viuvas os
pavimentos superiores d'estas naves.
ROMA. BASILICA DE S. PAULO—Fachada principal
Nos extremos das naves, em frente das portas, rasgavam-se
tres ábsides; a da nave central, a mais importante,
constituía o
presbyterio
ou a
tribuna. Nas lateraes
guardavam-se os livros santos e os objectos do
culto. Estas ultimas foram a origem dos
thesouros e
das
sacristias das nossas egrejas.
Na ábside central, a
tribuna, em degraus de marmore
dispostos em amphitheatro, sentavam-se os presbyteros;
ao fundo, n'uma cadeira tambem de marmore
o bispo, ou o officiante, presidia ás cerimonias religiosas.
Nas basilicas romanas, como vimos, era este o logar
dos juizes.
Em face da tribuna, isolado, levantava-se o altar,
coberto pelo
ciborio, o
baldachino das basilicas modernas
de Roma, vasto e alto docel sustentado por columnas,
formando uma especie de pallio de marmore.
O altar, em geral, era o sarcophago de um santo, o
da invocação da egreja. Sobre a mesa do altar
viam-se
baixos relevos, o
alpha e o
ómega, o
labaro, a
palma
do martyrio e outros symbolismos religiosos.
No solo, por baixo do altar, existia um pequeno subterraneo,
o
martyrio ou a
confissão, contendo
reliquias
de santos; quando este subterraneo era vasto tomava
o nome de
crypta. Todos estes
elementos nasceram
das tradições do Christianismo das catacumbas.
[56]
Este conjunto do altar, o
santuario,
ficava entre a
tribuna e o côro, constituido por um vasto espaço
quadrado,
limitado por muros baixos, no extremo da nave
central. Nos tres lados do côro, excepto o mais proximo
do altar, bancadas de marmore em amphitheatro davam
logar aos chantres e cantores. Dois
ambons symetricos,
nos extremos do côro, ladeavam quasi o altar.
Correspondiam proximamente ás tribunas dos advogados
romanos e são a origem dos pulpitos. Estas
disposições
caracteristicas pódem observar-se ainda hoje
nas antigas cathedraes hespanholas, cujos coros cortam
as naves principaes.
A conveniencia de extremar o publico da tribuna e
do altar, fez mais tarde construir um muro, ou balaustrada
perpendicular aos eixos das naves, entre o côro
e o altar. Assim, ficou definido o transepto e desenhada
a cruz latina das egrejas dos futuros estylos occidentaes.
Os tectos eram de madeira, em geral de vigas descobertas,
ás vezes de grandes caixões. A abobada
não
foi, nem podia ser empregada em edificios d'esta
construcção.
A riqueza e o luxo das egrejas do Estylo Latino
manifestavam-se principalmente no interior. Os tectos
eram de essencias raras, esculpidos e recamados de
metaes, entre os quaes figurava o ouro. As columnas
das naves, ligadas por architraves, ou por arcos de
volta inteira, as paredes das naves, divididas em compartimentos
por pilastras, eram construidas e revestidas
de finos marmores e de porphyros. O altar e o
[57]
côro principalmente offereciam
ornamentação riquissima,
revestidos de esculpturas onde e quando era
possivel; assim como a tribuna, cuja semi-cupula representava
grandes quadros biblicos em mosaico de
fundo de ouro, que ás vezes se estendia a outros pontos
da egreja. É evidente que esta pujante
ornamentação
se desenvolveu nos melhores tempos do estylo, sob
a influencia do Estylo Byzantino. Sabe-se, com effeito,
que os romanos empregavam com raridade o mosaico
nas paredes.
ROMA, BASILICA DE S. PAULO—Fachada lateral (norte)
O pavimento das egrejas nos tempos primitivos fôra
de grandes lages; depois, vieram os mosaicos de desenho
fino e variado, formados de pequenos cubos de
marmore branco, de esmalte e de porphyro verde e
amarello, chamado
opus alexandrinus,
nome que lhe
caracterisa a origem oriental.
Se accrescentarmos, por simples curiosidade, por exceder
a esphera da Historia da Arte, que os primitivos
templos eram construidos pelo systema romano na
qualidade e disposição dos materiaes, teremos
dado
uma succinta idéa da formação e dos
caracteres do
Estylo Latino, isto é, do primitivo estylo
christão no
occidente.
Não temos, infelizmente, em Portugal um só
exemplo
do Estylo Latino. O nome de
basilica, applicado a
algumas das nossas egrejas, taes como a da Estrella e
a de Mafra, corresponde simplesmente á expressão
de
grandeza e sumptuosidade, mais ou menos merecida,
sem se referir a qualidades architectonicas, porque estas
egrejas são de caracteristico Estylo da
Renascença.
[58]
Os maiores e mais bellos exemplares existentes do Estylo
Latino é necessario procural-os entre as trezentas
e oitenta e nove egrejas e capellas, que ornam a artistica
e historica cidade de Roma!
Entre as basilicas do Estylo Latino avultam as de
S. João de Latrão, Santa Maria Maior, S. Paulo e
S. Lourenço, as duas ultimas construidas fóra dos
muros
da antiga cidade. Ora, são exactamente estas ultimas
que nos parecem mais caracteristicas, quer nos
elementos externos, quer nas disposições
internas.
A Egreja de S. Paulo, fóra dos muros, constitue de
facto um formoso e rico exemplar do Estylo Latino.
As suas disposições geraes traduzem, com a
possivel
exactidão, os caracteres das basilicas romanas,
anteriormente
descriptas. Esta grandiosa construcção conserva
ainda uma pequena parte antiga, se não primitiva,
mas o restante é de epoca moderna.
Diz a tradição que no local de um cemiterio, onde
repousavam os restos de S. Paulo, o grande Apostolo
das Gentes, o imperador Constantino mandou edificar
uma primeira basilica, que depois foi restaurada e engrandecida
por successivos imperadores, sendo terminada
por Honorio no anno 423 da nossa era. Um
grande incendio destruiu em 1827 grande parte d'esta
primitiva basilica.
Então, o Papa Leão XII, pedindo donativos
á fé
dos christãos de todo o mundo, começou a
reedificação
da antiga basilica; fazendo, porém, engrandecer e enriquecer
os novos planos. Em 1854, o Papa Pio IX
sagrou o novo e magnifico templo, do qual apresentamos
[59]
os principaes elementos, como excellente
definição
das feições especiaes do Estylo Latino.
ROMA—Interior de S Paulo
A fachada principal é formada por um vasto portico
da Ordem Corynthia, para o qual se abrem as
sete portas da egreja; por detrás d'este portico eleva-se
o corpo da nave central do templo. Devemos observar
que nas egrejas do Estylo Latino, em regra,
desappareceram as galerias superiores das basilicas
romanas. Abolido o uso da separação dos sexos nas
ceremonias religiosas, a conveniencia de bem illuminar
as egrejas aconselhou a suppressão d'estas galerias.
Assim, o corpo da nave central eleva-se sobre os corpos
lateraes, recebendo luz directa e profusa de grandes
janelas. A fachada principal de S. Paulo é ricamente
decorada por mosaicos modernos. As portas,
que abrem no bello portico, são antigas, de bronze
e de excellente Estylo Byzantino.
O interior da egreja offerece cinco grandes naves,
formadas por quatro ordens parallelas de columnas,
vinte em cada ordem. São, pois, oitenta columnas,
tendo as bases e os pedestaes de marmore branco e os
fustes de granito rosa polido. Sobre a cornija da nave
central corre uma serie de medalhões circulares em
mosaico, que representam retratos de antigos Papas.
Esta grande nave é directamente illuminada por dez
janelas lateraes, sendo os respectivos intervallos preenchidos
por frescos, que representam scenas da vida de
S. Paulo. O tecto riquissimo é feito de caixões
de madeira
esculpidos e dourados. O arco da capella-mór
constitue, talvez, um dos elementos da primitiva basilica
[60]
de Constantino. Este arco, ladeado por duas estatuas
colossaes de S. Pedro e de S. Paulo, é guarnecido
na parte superior por antigo mosaico, que se
suppõe ser do anno 440 da nossa era.
A ábside, para onde se sobe por tres degraus, tem
na semi-cupula um mosaico, que se presume ser do
seculo XIII. O altar, do mesmo seculo, é coberto por um
ciborio, formado por quatro columnas de porphiro,
que sustentam um docel de Estylo Ogival.
No lado norte do transepto abrem-se, tambem, tres
portas precedidas de um portico corynthio de menor
importancia. A torre dos sinos, coroada de um mirante,
está collocada por detrás da ábside.
A Egreja de S. Lourenço, segundo a
tradição tambem
construida por Constantino no anno 330 da nossa
era, foi modernamente restaurada por Pio IX, cujos
restos mortaes n'ella repousam, e constitue egualmente
um exemplar muito bom do Estylo Latino, mais modesto
e severo.
Na fachada, o portico é da Ordem Jonica, coberto
por telhados muito inclinados e evidentes. O corpo da
nave central, ornada de pinturas a fresco, não tem
frontão.
No interior, de cada lado, onze fortes columnas jonicas
de granito rosa e de cipolino dividem o templo
em tres naves, dando-lhe um aspecto de severidade e
grandeza que mais realça ainda a cobertura da nave
central, feita de grandes vigas descobertas, douradas e
esculpidas. Esta egreja não tem na realidade um verdadeiro
transepto, o que mais a approxima das fórmas
[61]
tradicionaes das basilicas romanas, das quaes se afasta,
por outro lado, porque a ábside termina em parede
plana, guarnecida de janelas.
ROMA. BASILICA DE S. LOURENÇO
Não sendo possivel nem opportuno desenvolver
descripções
mais completas d'estas grandiosas e riquissimas
basilicas, julgamos haver escripto e apresentado
graphicamente os sufficientes elementos para bem fixar
os caracteres do Estylo Latino, mais puro e rico.
ROMA—Interior da Basilica de S. Lourenço
CAPITULO
SEGUNDO
ESPIRITO E CARACTERES DO ESTYLO BYZANTINO
Roma deixára de ser a capital do Imperio.
Conservára
de direito as suas antigas tradições, o seu
cognome
de
cidade-eterna; de facto, a
capital do Imperio já no
seculo III, sob Maximiano, havia sido deslocada, para o
norte. Era em Milão. Assim, foi n'esta cidade que
Constantino promulgou o edito de tolerancia, de que
data a liberdade do Christianismo. As extensas fronteiras
e as enormes agglomerações de estados e de
povos, que formavam o Imperio, exigiram, talvez, uma
capital mais no centro, com sacrificio de Roma, muito
afastada, quasi no meio da peninsula italica.
Além d'isso, os imperadores, em geral, preferiam habitar
as cidades do oriente, onde por exemplo Diocleciano
residiu quasi sempre. As tendencias luxuosas
e os costumes mais do que faceis dos imperadores
deviam tender a approximal-os do fóco de luxo e de
vida devassa, de que os satrapas médo-persas deram
exemplo imitado e haviam deixado profundas
tradições
[64]
respeitadas. São ainda hoje
proverbiaes o luxo
e os costumes do oriente.
Constantino, pelas razões que expozemos,
edificára
em Bysancio a nova capital do Imperio. A permanencia
da côrte do autocrata romano no oriente foi, sem
duvida, um golpe profundo na vida social e na riqueza
da Italia, reduzida a um exarchado. Com o chefe supremo
e a alta administração do Imperio, a pouco e
pouco devem ter emigrado para Constantinopla as
melhores forças vivas e os mais valiosos elementos sociaes,
que tendem sempre a agrupar-se em torno do
poder central.
O Christianismo existia já n'aquellas provincias do
Imperio; mas a acção da nova capital e do proprio
imperador
imprimiu-lhe necessariamente grande expansão.
As mesmas causas e influencias, que no occidente
haviam produzido o Estylo Latino, foram encontrar-se
com outras especiaes, nascidas e desenvolvidas no
oriente. Um outro estylo christão, differente do occidental,
foi tambem o producto da acção reciproca d'estes
elementos. A sua formação é coeva e
parallela.
Póde dizer-se que o espirito classico e o do Christianismo
produziram simultaneamente dois estylos architectonicos:
no occidente, o Latino; no oriente o
Byzantino, de que nos vamos occupar.
O genio romano era o reflexo, um pouco pallido na
verdade, do genio hellenico. Imitou-o na religião, na
sciencia e na arte, seguiu-lhe os passos nem sempre
com grande felicidade. Nas manifestações da
actividade
social os romanos foram superiores aos gregos;
[65]
mas em creações do espirito, na sciencia, na
philosophia
e na arte, a Grecia teve apenas em Roma um soffrivel
discipulo. Os romanos, é certo, eram amadores,
grandes amadores da arte, como os inglezes modernos
exactamente, que a adoram, cultivando-a pouco, ou
pelo menos não produzindo creações
novas, comparaveis
com os d'outros povos.
Apenas a Grecia se tornou provincia romana, o
enorme thesouro da arte hellenica foi posto a saque;
Roma enriqueceu-se com tudo quanto podia ser transportado:
estatuas, quadros, vasos, vieram adornar os
templos, os
foros e os edificios
publicos, povoar os palacios
e as galerias dos vencedores, que assim se enriqueceram
com productos artisticos, durante seculos
creados e accumulados pelo trabalho e pelo genio
gregos.
Roma adorava a Grecia. Nero, deante do povo
hellenico, quiz ser athleta e artista. O prestigio imperial
provocou as acclamações; a força
garantiu-lhe
e facilitou-lhe a grande espoliação dos objectos
artisticos.
É provavel que, sujeita a
este
espirito dos amadores
romanos, a Grecia ficasse quasi desprovida de
estatuas, algumas das quaes poderemos ver ainda hoje
nos grandes museus da Italia.
Apesar de tudo, o genio artistico grego era tão vivo
e energico que se manteve sempre, durante os flagellos
da conquista e das depredações romanas. Foi este
genio de grandes qualidades estheticas, formado n'uma
escola de excepcional grandeza, que a modesta arte
latina do occidente, formada pelo classico romano e
[66]
pelo Christianismo, encontrou ainda pujante e activa
no imperio byzantino. Ora, esta substituição da
esthetica
romana pela grega constituia já uma grande vantagem
para a nova evolução da Arte.
Além d'isso, Constantinopla estava perto da Asia
Menor e d'essas grandes provincias romanas, que comprehendiam
a Mesopotamia e parte do grande imperio
dos Sassanides. Esta vasta região, onde floresceram
tantas civilisações antigas, confinava com a
mysteriosa
Fars, a Persia, que em guerras
successivas fôra vencida
pelos heroes da Grecia. Todas estas nações, a
Phrygia,
a Lycia, a Caria, a Lydia e sobretudo a Assyria e a
Persia haviam tido uma arte mais ou menos adiantada.
Esta parte da historia da arte antiga é assás
obscura nas origens e nas relações reciprocas;
mas estudos
modernos vão demonstrando a importancia das
manifestações estheticas entre estes povos
orientaes.
A influencia de ornamentações riquissimas e de
estylos
cheios de originalidade, adequados aos costumes,
ás necessidades e ao clima do oriente, estendia-se
principalmente
para os lados do Bosphoro, o caminho que
tinham seguido as invasões médo-persas. Foi a
acção
reciproca d'estes elementos, o classico hellenico e os
estylos orientaes, que, substituindo o romano e sob o
influxo do Christianismo, produziu o Estylo Byzantino.
A basilica, levada do occidente por Constantino e
pelos christãos do seu tempo, chegára a elevar-se
na
capital e nas provincias orientaes do Imperio; mas as
suas fórmas especiaes, pobres e severas, não
poderam
por longo tempo resistir á atmosphera ardente da arte
[67]
oriental. O seculo V foi, pois, o periodo da
evolução
rapida d'esse novo estylo christão, que o imperador
Justiniano teve a gloria e o orgulho de caracterisar
n'um só edificio, dos mais bellos do mundo.
Os planos e a construcção de Santa Sophia de
Constantinopla
foram dirigidos por Anithemius, nascido em
Tralles, e por Isidoro, de Mileto. Estes architectos,
cuja fama ficou immorredoura como a de Ictino e
Callisthenes, os constructores do Parthenon o mais
bello templo do classico hellenico, eram ambos naturaes
da Asia Menor, onde haviam florescido adeantadas
colonias jonicas. Mileto, uma das mais famosas,
pertencia á Caria, Tralles á Lycia, provincias
limitrophes,
das quaes a ultima tocava a Assyria e a Mesopotamia,
approximando-se do Imperio dos Sassanides, a
Persia. Estes dois homens de incontestavel genio
foram, pois, oriundos de raças e
nações, onde o espirito
hellenico e o oriental tinham descoberto
combinações
singulares e bellas na arte da construcção, nos
estylos e na ornamentação dos edificios.
A construcção do templo de Justiniano, iniciada
em
532, correu com tal rapidez, que em 27 de novembro
de 537, dia da sua sagração, o Imperador
pôde soltar
esta soberba e historica expressão:
Gloria
a Deus
que me julgou digno de construir uma tal obra. Venci-te
Salomão!
De facto, nunca a riqueza da ornamentação e do
culto excedeu a magnificencia de Santa Sophia, nos
tempos do Imperio Byzantino. Ainda hoje, decahido e
estragado pelos turcos, que lhe cobriram os marmores
[68]
e os mosaicos com estuques rendilhados, onde se lêem
versiculos do Alcorão, o edificio de Santa Sophia constitue
o primeiro e mais admiravel monumento do Estylo
Byzantino, o seu melhor exemplar, o mais perfeito
e mais rico.
O Estylo Byzantino, que se estendeu com enorme
rapidez pelo norte da Italia e pelo sul da França, chegando
até á Allemanha, não penetrou em
Hespanha
e muito menos em Portugal, pelo menos em edificios
importantes que tenham deixado tradições ou
vestigios
materiaes.
Para definirmos, pois, os caracteres d'este estylo,
esbocemos curta descripção de Santa Sophia de
Constantinopla,
o seu principal monumento, que nos esclarecerá
e servirá de guia, como fizemos no Estylo Latino.
O exterior de Santa Sophia é simples e severo.
Uma multidão de cupulas de differentes dimensões,
dominadas pela grande cupula do corpo central da
antiga egreja, dão-lhe um aspecto caracteristico,
perfeitamente
oriental, como o das cidades em climas
onde a neve é desconhecida, a chuva rara e reina
quasi sempre calor ardente. A impressão de solidez
do edificio deprehende-se d'essas cupulas achatadas,
repousando sobre paredes espessas, separadas por botareos
entre os quaes se abrem pequenas janelas de
volta inteira. Estamos já longe das coberturas de madeira
sobre paredes delgadas do Estylo Latino e bem
perto das pesadas abobadas sobre muros espessos, reforçados
por botareos, do Estylo Romanico. Na gravura,
[69]
que apresentamos, Santa Sophia é representada
no estado actual, isto é, ladeada de quatro
minaretes
e cercada de construcções, que as necessidades do
culto do Islamismo e a selvageria artistica dos turcos
teem feito encostar ao antigo monumento.
CONSTANTINOPLA—Exterior de S.
ta Sophia
A construcção, exceptuando a pequena saliencia da
ábside principal, está circumscripta n'um vasto
quadrado
de 77 metros de lado, como se vê da seguinte
planta, limpa das excrescencias de origem turca.
A disposição interna offerece tres naves, a do
centro
muito larga e alta em relação ás
lateraes. A cobertura
d'esta nave central constitue um dos caracteres
principaes da architectura byzantina. No meio
d'ella desenha-se um grande quadrado de 31 metros
de lado, exactamente a largura da nave, definido pelos
angulos internos de quatro enormes pilares muito
elevados, sobre os quaes veem apoiar-se quatro grandes
[70]
arcos de volta inteira. Repousando sobre os fechos
d'estes arcos, ergue-se uma cupula colossal, cujo diametro
é, portanto, egual ao lado do quadrado. O espaço
vasio, que ficaria comprehendido entre os quartos de
circumferencia da cupula e os dos arcos sobre que
ella assenta, foi cheio, formando uma superficie concava
e triangular, gerada pela curvatura da cupula
descendo ao longo dos arcos. Esta construcção,
facilitando
a passagem da figura circular da cupula para a
quadrada dos pilares, constitue quatro enormes
pendentes,
que ligam a mesma cupula aos arcos, sobre
que ella repousa.
Esta disposição, muito caracteristica,
comprehende-se
com facilidade, estudando o anterior córte, feito
pelo centro da cupula e perpendicular ao eixo maior
da nave central.
[71]
Para o oriente e para o occidente—porque o eixo
principal da egreja tem esta
direcção—duas
semi-cupulas
firmam-se nas paredes externas e encostam-se
aos arcos internos, tocando-lhes quasi o intradorso;
assim fica fechada a cobertura da nave central. O
templo era, pois, orientado; a luz da madrugada espalhava-se
na grande nave, durante as ceremonias
religiosas, em geral matutinas. Esta orientação
apparece
mais tarde no Estylo Romanico. Vamos, assim,
fazendo desde já simples
approximações.
Os grandes arcos lateraes da nave principal foram
cheios por paredes, onde se abrem arcadas de volta inteira
sobre as columnas do primeiro e segundo pavimento
das naves secundarias; por cima d'estas galerias
a egreja recebe luz directa de janelas, abertas
para o exterior e deitando sobre os terraços das mesmas
naves, cobertas por abobadas de volta inteira.
Assim, o corpo central do edificio apparece definido,
mais elevado do que os collateraes, recebendo luz de
fóra. Se o Estylo Latino deixou aqui reminiscencias
das galerias sobrepostas para separação dos
sexos, a
disposição tambem faz lembrar as naves centraes
mais
elevadas dos templos romanicos e ogivaes. Na parede
oriental, sob a semi-cupula respectiva, rasgam-se tres
ábsides, das quaes a do centro, um pouco saliente do
edificio, era o
sanctuario. Na
parede occidental em
frente das ábsides, existem as tres portas de entrada,
precedidas de um duplo
narthex,
reminiscencia do
porticos dos templos classicos, adoptados tambem pelo
Estylo Latino.
[72]
Se a isto accrescentarmos que o edificio é profusamente
illuminado por numerosas janelas de volta inteira,
relativamente pequenas, existindo na base da
grande cupula central uma verdadeira corôa de quarenta
d'estas janelas, que lhe dão um aspecto singular
de elegancia e de levesa, teremos esboçado singela
descripção architectonica, que, sem
confusões e incertezas
segundo pensamos, dará idéa do edificio e das
feições caracteristicas do Estylo Byzantino, que
Santa
Sophia traduz magistralmente.
Sem falarmos por emquanto na ornamentação,
devemos
concluir que o primeiro caracter evidente d'este
estylo é a cupula. Como quasi todos os elementos
fundamentaes architectonicos, foi ella conhecida no
mundo antigo. Constitue uma especie de cobertura,
que os grandes constructores e architectos da antiguidade
deviam ter descoberto quasi ao mesmo tempo,
principalmente nos climas muito quentes, de longas
estiagens e por isso de poucas florestas, que economicamente
fornecessem madeira para construcções.
Póde
servir isto de exemplo para as influencias do clima
sobre a construcção e d'esta sobre a arte. Assim,
tambem
a ogiva, por outras rasões especiaes, deve ter
sido conhecida pelos bons architectos e constructores,
porque os houve excellentes na mais remota antiguidade.
A cupula veiu do Oriente, da Persia dizem; é natural
e logico. Mas não póde existir a menor duvida em
que, pelo menos, na Roma antiga foi conhecida. Ainda
hoje na cidade eterna A cupula veiu do Oriente, da Persia dizem;
é natural
e logico. Mas não póde existir a menor duvida em
que, pelo menos, na Roma antiga foi conhecida. Ainda
hoje na cidade eterna a podemos ver no Pantheon de
[73]
Agrippa, transformado em egreja christã, onde por signal
jazem os restos mortaes de Victor Manuel I, o unificador
da Italia. O auctor d'este livro admirou esta
soberba cupula, que produz espanto pela perfeição
da
construcção arrojada, tão excellente
que resistiu á
acção de dezenove seculos, porque foi edificada
no
imperio de Augusto. Se a cupula de Santa Sophia
admira tendo o diametro de 31 metros, a do Pantheon
causa assombro porque a excede em grandeza. É toda
de pedra talhada e tem 43 metros de diametro; no
alto, tambem a 43 metros, offerece uma grande abertura
por onde o templo recebe a luz.
CONSTANTINOPLA—Interior de S.
ta Sophia
Bastaria este exemplo existente para demonstrar, aos
que não ignoram o principio da
evolução da arte e da
sciencia de construir, que uma maravilha d'estas não
póde constituir um producto esporadico n'uma
civilisação.
Roma conhecia este systema de construcção,
porque o empregou, logo conhecia-o tambem a Grecia.
É regra logica e segura. Verdade seja que o Pantheon
é um templo circular, precedido de um simples portico
de frontão classico; n'este caso, a cupula repousa toda
sobre paredes, emquanto que em Santa Sophia firma-se
sobre quatro pilares, com auxilio dos
pendentes.
Eis a caracteristica differença.
D'esta fórma especial de construcção,
que provavelmente
foi empregada nos tempos mais remotos em
Babylonia, na Assyria e na Persia, n'um ou n'outro
ponto preferida por condições locaes,
é que não se
encontraram, até hoje, vestigios no classico romano
e no hellenico. A
cupula de
pendentes é, pois, um dos
[74]
caracteres fundamentaes do Estylo Byzantino, herdado
de estylos antiquissimos.
Entre nós existe um exemplo d'esta cobertura, na
Egreja do Sagrado Coração de Jesus, vulgarmente
denominada
da Estrella. A cobertura interior do cruzeiro,
quadrado de cêrca de 12 metros de lado, é
uma cupula d'este genero, sustentada por quatro arcos.
A unica differença, aliás secundaria, consiste em
que a cupula repousa sobre um corpo cylindrico, entreposto
entre ella e os arcos, em cuja superficie se
abrem as janellas. Em geral, as cupulas byzantinas
repousavam directamente sobre os arcos sem
interposição
do tambor cylindrico; dizemos em geral, porque
nos pareceu que esta interposição, embora pouco
accentuada,
se dá na egreja de S. Marcos de Veneza,
sem, todavia, o podermos affirmar com plena
convicção.
A ornamentação de Santa Sophia era tambem
caracteristica.
A vontade omnipotente do Imperador, secundada
pelo espirito respeitoso—iamos a escrever
servil—dos funccionarios das suas vastas provincias,
fez saquear os templos pagãos do oriente, como tambem
se praticára no occidente, para enriquecer o novo
templo, o emulo do antigo templo de Salomão. A historia
relata a este respeito espantosos factos de
espoliação
e destruição dos antigos templos classicos de
Palmyra, Pergamo, Heliopolis, Epheso e outras cidades.
Ora, as depredações n'este caso exerceram-se nos
thesouros immensos da arte hellenica e oriental; emquanto,
no occidente, o Christianismo encontrou a
[75]
mais modesta arte do classico romano. Comprehende-se,
pois, a enorme differença da
ornamentação das
egrejas nos primeiros estylos christãos.
Os mais ricos materiaes foram empregados com
profusão. Marmores rarissimos e finos, o porphyro,
o granito e a malachite constituiam as columnas e
forravam as paredes. Por toda a parte reinava esse
luxo asiatico, em que a prata, o
ouro e até as pedras
preciosas se revesavam com os grandes mosaicos orientaes
de fundo dourado ou de azul escuro, revestindo
as cupulas e os pendentes de immensos quadros, contendo
passagens do Novo e do Antigo Testamento, scenas
reaes e symbolismos diversos, onde as figuras
appareciam com desenho incorrecto, sem vida e movimento,
em grupos symetricos, expressões hieraticas
de uma arte crystallisada, que perdera as
tradições
do grande estylo e não estudava a natureza.
A magnificencia dos objectos do culto attingiu
proporções
phantasticas em Santa Sophia.
Como se o ouro não fosse bastante precioso, o altar
era feito de uma singular liga de ouro, prata e perolas
e pedras preciosas reduzidas a pó. As suas quatro faces,
cobertas de baixos relevos byzantinos, brilhavam
rica e profusamente incrustadas de perolas e gemmas
de todas as especies.
Este altar era coberto pelo
ciborio
em fórma de
torre, cujo docel de ouro massiço repousava sobre
quatro columnas tambem de ouro e prata, entre as
quaes se viam suspensas grandes espheras de ouro
com a cruz grega. No interior do ciborio, pendente
[76]
do docel e como pairando sobre o altar, uma pomba de
ouro representava o Espirito Santo. Era a custodia,
onde se guardavam as sagradas particulas. Todo este
conjunto refulgia de perolas e gemmas preciosas.
O
sanctuario fôra separado
do corpo da egreja por
uma alta divisoria de prata, sustentada por doze columnas
de ouro. Nas grandes superficies de prata
d'esta divisoria viam-se esculpidas em alto relevo figuras
de santos e lavores de caracter byzantino.
Quasi no centro da nave central, em frente do altar,
um enorme
ambon de fórma
circular, em recinto
vedado, servia de côro para as dignidades ecclesiasticas
e de tribuna para a côrte imperial. Era coberto
por um docel de metaes preciosos, encimado de uma
grande cruz de ouro, recamada de granadas e perolas;
este docel firmava-se sobre oito columnas de marmore.
De marmore e recamadas de ouro eram tambem as
escadas de accesso do ambon.
Nas hombreiras e nas portas do edificio havia-se
prodigalisado a prata, o marmore, o marfim e o cedro.
Emfim, todos os restantes objectos do culto, por mais
secundarios que fossem, manifestavam riqueza deslumbrante,
accusando a tendencia oriental de carregar
as linhas e as fórmas estheticas com pesados ornamentos,
encrustados de gemmas e metaes preciosos.
Imagine-se, pois, o effeito deslumbrante de tudo
isto: columnas e paredes de finissimos marmores polidos,
mosaicos de fundo de ouro revestindo as abobadas
das cupulas e das absides, espalhando-se pelos
pendentes e pelo corpo da egreja em grandes quadros,
[77]
os altares, o ambon e os objectos do culto divino
recamados de pedrarias, as grades e divisorias de
prata, imagine-se toda esta riqueza salomonica e oriental,
rutilando á luz de 6:000 grandes lampadas de
metaes preciosos ricamente cinzelados!
Esta impressão extraordinaria, embora não
comparavel,
sentiu-a um dia o auctor d'este livro ao entrar
n'uma festa religiosa, em S. Marcos de Veneza; occorrendo-lhe,
n'esse momento, a bella e rigorosa phrase
de Theophilo Gautier, porque a egreja, bem mais modesta
em tudo do que o foi a de Santa Sophia, tinha
reflexos fulvos e brilhantes, como se fosse uma
grande
caverna de ouro!
Em rapidos traços, tal foi nos primitivos tempos a
Egreja de Santa Sophia de Constantinopla, ainda hoje
rica e soberba apesar de saqueada pelos turcos de Mahomet
II, se não pelo proprio Mahomet; egreja, transformada
em mesquita, que os dignos descendentes dos
conquistadores cobriram de estuques com arabescos
orientaes e versiculos do Alcorão!
D'esta simples e modesta noticia deprehendem-se
os caracteres, ou melhor as feições do Estylo
Byzantino;
devemos, porém, entrar ainda n'este ponto em
alguns pormenores.
A fórma das egrejas byzantinas offerecia differentes
disposições. Démos a de Santa Sophia,
falaremos
ainda de outras. Em S. Vital de Ravenna, edificio
coevo de Santa Sophia, a planta offerece a figura de
um octogono regular; a grande cupula central repousa
sobre oito pilares internos, dispostos nos angulos do
[78]
polygono, deixando entre si e as paredes da egreja
uma nave octogonal. A cruz grega desenha-se nos
eixos principaes dos dois corpos da egreja, o que termina
na abside e o que ao meio lhe fica perpendicular.
É claro que n'este caso os pendentes são pequenos
e sel-o-iam successivamente, quanto mais numerosos
fossem os lados do polygono.
Na antiga egreja dos Santos Apostolos em Constantinopla,
a nave principal, tendo em comprimento
o triplo da largura, é cortada ao meio por um transepto
perpendicular das mesmas dimensões. Nove cupulas
de pendentes eguaes cobrem esta superficie,
representando uma verdadeira cruz grega. S. Marcos
de Veneza é uma imitação d'esta
egreja. Sem multiplicarmos
os exemplos, poderemos estabelecer como
tendencia geral a maior ou menor approximação da
cruz de braços eguaes, a do estylo grego.
No conjunto os edificios, em geral, manifestam-se
pesados, austeros e simples, pelo menos nos tempos primitivos.
A cupula principal eleva-se e predomina sobre
as menores e mais baixas, se estas existem, sobresaíndo
na tendencia horisontal das outras coberturas.
A construcção respira estabilidade e solidez. As
janelas são pequenas, segundo o uso oriental, muito
numerosas, de volta inteira como as portas, offerecendo
ás vezes a fórma de ferradura tão
usada no Estylo
Arabe, que afinal teve tambem muitas das origens
do byzantino no mundo oriental.
O interior respira a riqueza, que manifestou em
grande escala a egreja de Santa Sophia. A
ornamentação
[79]
é caracteristica; mas, na
realidade, são as
cupulas
de pendentes, os
mosaicos orientaes, as
arcadas
sobre columnas, os
capiteis, e os
arcos geminados, que
melhor definem o Estylo Byzantino, alem de outros
que já descrevemos e vamos enumerar. Observaremos
que um grande numero d'estes elementos, não todos,
serão empregados depois nos Estylos Romanico
e Ogival.
Os mosaicos, de fundo de ouro ou de azul muito
vivo, representam em grandes quadros, principalmente
nas cupulas, nos pendentes e nas abobadas das
absides, motivos sagrados ou profanos em que entram
poderosos senhores, como nos de Ravenna. A arte é,
porém, hierarchica, secca e fria. Em geral, o desenho
manifesta singulares intenções de symetria. As
personagens
não têem vida e movimento; parecem, se nos
consentem a expressão, multidões de manequins,
dispostos
em maus quadros scenicos. Este espirito byzantino
da arte influiu, de certo, nos pintores e nos esculptores
occidentaes, nos periodos romanico e ogival.
A ornamentação profusa inspira-se nas artes do
Oriente, offerecendo fórmas curiosas e originaes. Os
capiteis, por exemplo, são de extrema diversidade.
Massiços e pesados, quasi todos, variam de contornos:
cubicos, arredondados na base, em pyramides truncadas
de arestas salientes, ás vezes dois sobrepostos,
como succede na egreja de Ravenna. A sua
ornamentação
manifesta, tambem, caracteres diversos, em que
predominam perolas, galões entretecidos, rendilhados
de folhas phantasticas, graciosos lavores abertos que
[80]
parecem ornados de pedrarias. Ás vezes, aves e animaes
de singulares aspectos, vasos e cestos, completam
esta profusa ornamentação, em que foram
abandonados
e esquecidos o gosto e as proporções classicas.
No Estylo Byzantino, a esculptura, bem como a
pintura, apresentam-se decadentes, padecem quasi de
eguaes defeitos. A pedra é trabalhada sem os
córtes
largos e profundos, que procuram o relevo pelas sombras
e saliencias dos planos e dos ornamentos. Os artistas
byzantinos lavravam frouxamente a pedra. Parecia
empregarem mais o buril do que o escopro;
foram mais gravadores de metaes do que esculptores
de pedra.
É evidente que todos estes caracteres byzantinos
tiveram profunda influencia sobre os dos Estylo Romanico
e Ogival, onde muitos apparecem, mas já tratados
com outro vigor e largueza.
Assim, pensamos ter dado successiva idéa do Estylo
Byzantino, que o calor do Christianismo fez brotar
vigoroso e esplendido do fertil solo da arte hellenica
e oriental.
CAPITULO
TERCEIRO
ACÇÃO RECIPROCA DOS DOIS ESTYLOS
CHRISTÃOS PRIMITIVOS
Assim, o espirito do Christianismo, reanimando as
energias quasi moribundas da arte grega e oriental, e
da romana, creára dois formosos estylos; correspondendo,
na realidade, a expressões definidas do bello
nas duas maiores civilisações, em que
então se dividia
a Humanidade.
O Estylo Latino nascera primeiro, começando a
constituir-se logo após a saída do Christianismo
das
Catacumbas. Abandonando a Italia, Constantino levou-o
comsigo e implantou-o na sua nova capital,
Constantinopla, que teve, pois, como o occidente, as
suas basilicas, entre as mais importantes a dos Santos
Apostolos, a de Santa Irene e a primitiva de Santa
Sophia, que Justiniano dois seculos depois transformou
no grande templo byzantino, descripto no capitulo
anterior.
No periodo de formação do Imperio do Oriente,
isto
é, desde Constantino até Theodosio, o Estylo
Latino
[82]
desenvolveu-se com maior ou menor intensidade, salvo
n'essa breve tentativa reaccionaria do polytheismo
vencido, que se encarnou no imperador Juliano.
O Estylo Latino não tinha, porém, as qualidades
exigidas pelo
meio grego e oriental,
nem as basilicas
classicas, de que elle derivava, eram muito vulgares
no oriente, se algumas importantes existiam. O proprio
clima não aconselhava coberturas de madeira, que
o doce e temperado clima da Italia e a tradição
conservaram
no primitivo estylo. Como as plantas exoticas
teem, em regra, vida artificial e difficil, o Estylo Latino,
nascido no occidente, não encontrando no oriente
condições favoraveis, estiolou-se a pouco e pouco
e por
fim desappareceu sob a influencia de elementos architectonicos
mais poderosos, porque eram harmonicos
com o
meio natural e social, para
onde o Estylo Latino
fôra transplantado.
Todavia, o novo Estylo Byzantino, que ia formar-se
em harmonia com esse
meio natural e
social, não podia
repudiar os elementos architectonicos fundamentaes
do Estylo-Latino vencido, que não eram antinomicos
com os seus e correspondiam, alem d'isso, a qualidades
e exigencias do espirito christão, que, sendo origem
commum de ambos, imprimira á Arte novas
feições
em situações differentes.
De facto, não é difficil observar que o Estylo
Byzantino,
apesar da sua originalidade, se apropriou de
alguns caracte
De facto, não é difficil observar que o Estylo
Byzantino,
apesar da sua originalidade, se apropriou de
alguns caracteres fundamentaes do Latino; muito embora,
como em breve diremos, a fusão d'estes estylos
se devesse realisar mais tarde sob a acção do
elemento
[83]
barbaro, que não podia deixar de manifestar profunda
influencia sobre a architectura christã, visto que a
teve decisiva e innegavel na constituição das
sociedades
medievaes.
Uma observação interessante na
formação do Estylo
Byzantino consiste em que a sua maior obra,
nunca depois excedida nem até egualada, Santa Sophia
de Constantinopla, parece ter apparecido como
um facto esporadico e uma creação inspirada dos
architectos
gregos; a verdade é, porém, que o Estylo
Byzantino não fugiu á lei de todas as
producções humanas,
tendo uma formação lenta e evolutiva. Existem
e existiram edificios, que constituem verdadeiros
marcos milliarios d'esta evolução. O genio dos
constructores
de Santa Sophia, apenas a precipitou,
dando-lhe
a apparencia de uma verdadeira revolução nos
estylos
architectonicos.
É logico suppôr que o periodo de verdadeira
constituição
do Estylo Byzantino deve ter começado quando
Constantinopla foi declarada capital do Imperio. O
desenvolvimento de uma nova phase da arte exige
sempre elementos de actividade social e de riqueza,
que só poderam reunir-se quando a
administração geral
do Imperio concentrou no oriente todas as forças
creadoras, com grave sacrificio do mundo occidental.
Nos principios do seculo VI, o estylo achava-se constituido,
offerecendo a sua mais perfeita expressão no
templo de Justiniano.
O apparecimento, relativamente rapido, d'esta obra
de arte tão perfeita e rica do Estylo Byzantino tinha
[84]
de exercer forçosamente profunda influencia sobre a
arte occidental. Não só as egrejas e as
construcções
byzantinas começaram logo a elevar-se nos antigos
dominios do Estylo Latino e a invadir a Italia, na
parte que então constituia um Exarchado do Imperio
do Oriente, mas foi rapida a dispersão d'este novo
estylo, principalmente no sul da Europa.
Muitas causas especiaes do tempo facilitaram esta
dispersão, que reinou na Italia, no sul da França
e
chegou até á Allemanha, as duas
nações que mais
tarde deviam cobrir-se de monumentos romanicos e
ogivaes. As relações de todas as ordens, entre o
occidente
e o oriente, eram activas n'esses seculos.
Commerciaes havia-as constantes, porque as grandes
caravanas, que iam ao Extremo Oriente permutar
mercadorias, atravessavam a extensa zona, onde florescia
o Estylo Byzantino, tendo um dos seus grandes
caravansarás em
Constantinopla.
Além d'isso, o espirito religioso activava o movimento
dos peregrinos occidentaes para os logares santos
na Palestina, onde florescia o Estylo Byzantino,
até no proprio templo do Santo Sepulchro de Jerusalem,
que serviu depois de exemplar a tantos outros.
As descripções, sempre um pouco imaginosas dos
viajantes,
adornavam o novo estylo de magnificencias
e maravilhas, que segundo vimos eram bem merecidas.
Estas causas, só por si explicam a influencia da
ornamentação
oriental sobre a arte do occidente; a acção,
porém, tinha de ser mais completa. Assim, ainda
[85]
durante a existencia do Imperio ostrogodo de Theodorico,
no curto reinado de sua filha Amalasonte, o Estylo
Byzantino começou a invadir a Italia. A Egreja
de S. Vital de Ravenna, capital do reino godo, foi
erecta em 534, epocha em que duravam os trabalhos
de Santa Sophia. A Cathedral de Parenzo, cidade maritima
da costa oriental do Adriatico, seguiu-se-lhe em
540. Como era natural, a invasão fez-se primeiro pelas
grandes cidades litoraes d'este mar, em constantes
relações
com o mundo oriental.
O facto historico culminante, que facilitou a dispersão
do Estylo Byzantino, foi todavia a constituição
do Exarchado em Italia. Por morte de Theodorico,
sua filha Amalasonte assumiu a regencia em nome do
filho Athalarico. Esta princeza herdára algumas das
grandes qualidades de seu pae e entre ellas accentuadas
tendencias para a civilisação classica,
então representada
pelo Imperio Byzantino. A morte do herdeiro
da corôa entregou-lhe a herança paterna, que
a nova imperatriz partilhou com Theodato, seu primo,
transigindo assim com a surda irritação dos
guerreiros
ostrogodos. O assassinio da princeza foi o resultado
da transigencia. Então, a desordem e a
dissolução apoderaram-se
dos estados de Theodorico.
Justiniano aproveitou o ensejo, pensando em restaurar
o antigo Imperio de Constantino. Belisario conquistou
o sul da Italia e avançou até Ravenna, que
por momentos pertenceu á corôa do oriente. As
constantes
intrigas da côrte byzantina sacrificaram em
parte a obra do heroico general de Justiniano, que
[86]
então incumbiu o persa Narsés de
recomeçar a conquista.
O famoso eunucho, valido do imperador, em
victoriosas companhas contra os godos conseguiu vencel-os,
constituindo o ducado de Italia, reduzida a provincia
do Imperio Byzantino.
A morte de Justiniano levou ao throno Justino II,
espirito fraco, dominado pela imperatriz Sophia, que
odiava o heroico eunucho Narsés. Na côrte de
Constantinopla
ferveram, pois, as intrigas ambiciosas contra
o duque de Italia, a quem a propria imperatriz
não poupava desgostos e motejos, não se atrevendo
a
atacar de face o poderoso exarcha e habil administrador.
Uma phrase sangrenta fez trasbordar a vingança
de Narsés. Dissera a imperatriz, referindo-se
ironicamente ás desgraçadas qualidades physicas
do
duque de Italia, que
elle era um homem digno de fazer
parte de um grupo de fiandeiras. A resposta do
eunucho
não se fez esperar. Sentindo a morte proxima,
Narsés, incitou entre os lombardos, poderosa e guerreira
nação germanica que habitava a Pannonia, a
idéa
da conquista da Italia. Assim, elles, em 568 atravessando
os Alpes, precipitaram-se sobre a peninsula,
conquistando em poucos annos parte importante da
região septentrional, que ainda hoje conserva o nome
de Lombardia.
O Imperio Byzantino, privado de grandes generaes
e profundamente corroido por vicios e intrigas, conseguiu
apenas detel-os na marcha para o sul; ficando
a Italia dividida entre duas poderosas influencias: ao
norte, o reino lombardo; ao sul, as provincias do Exarchado
[87]
de Ravenna, que durou até meiados do seculo VIII,
em que foi, emfim, destruido e englobado no novo
reino germanico. Assim, durante dois seculos, a
civilisação
e a arte byzantinas estiveram em contacto
directo e intimo com uma das mais intelligentes
nações
barbaras, das que invadiram o solo da peninsula
italica.
As relações entre os Chefes dos Estados tambem
eram frequentes. O Imperio do Oriente tinha para os
reis semi-barbaros singular prestigio, pelas
tradições
como legitimo representante do grande poderio romano,
que aliás os seus antecessores haviam destruido,
pela civilisação relativa e, emfim, pelas
immensas
riquezas e pelo luxo asiatico da côrte byzantina.
As tradições gloriosas e as riquezas foram e
hão
de ser em todos os tempos motivos de admiração,
de
respeito e até de culto para os espiritos inferiores. Assim,
muitos chefes barbaros solicitavam a nomeação
de
patricios romanos, ou
acceitavam-n'a como grande
honra; com effeito, foram
patricios
Theodorico, rei da
Italia, e Clovis, rei de França. Estas
relações diplomaticas
do tempo não deviam contribuir pouco para
a propagação da influencia da arte byzantina, nas
nações occidentaes da Europa.
O movimento logico do ardente mysticismo christão
facilitou, ainda, esta propagação em grande
escala.
Desde os primeiros tempos do Christianismo os
seus mais ferventes e menos ignorantes proselytos deviam
considerar a representação material das
idéas
sagradas, de Deus principalmente, quasi uma verdadeira
[88]
profanação. Era a consequencia logica de
doutrinas
muito
espiritualistas na
essencia.
Assim acontecera, tambem, que os chefes do povo
hebreu, Moysés entre outros, haviam mais de uma
vez destruido os idolos, deante dos quaes se prostrava
o povo. O Mosaismo e o Islamismo, duas religiões de
forte essencia espiritual, não admittiram nunca a
representação
material da divindade. No rigor da logica o
Christianismo devia chegar, e chegou de facto, a identicas
conclusões.
D'aqui proveiu a famosa seita dos
Iconoclastas, no
fim do seculo V já tão poderosa que teve por
chefe
ou adepto, pelo menos, o Imperador Zenon. Estes
destruidores
de imagens, que as perseguiam com o terrivel
furor religioso, atravessaram quasi quatro seculos
no Oriente, chegando a invadir a propria Italia. No
seculo VIII estes verdadeiros barbaros eram poderosos.
Condemnados por Concilios regulares, embora protegidos
por alguns imperadores, vieram só a extinguir-se no
seculo IX. N'este periodo extenso as artes byzantinas,
pelo menos a esculptura e a pintura, soffreram rudes
perseguições nas suas obras, o que promoveu um
exodo dos respectivos artistas para o occidente, onde
a seita foi sempre menos poderosa e nociva.
Emfim, as Cruzadas no fim do seculo XI levaram
para o Oriente centenas de milhares de homens de relativa
instrucção, que conhecendo apenas a modesta
arte occidental, se extasiavam deante dos primores e
da magnificencia, que iam encontrando no seu caminho,
desde Constantinopla até á Palestina.
[89]
Foram todas estas causas, que em varias epochas
facilitaram a dispersão da arte byzantina no occidente.
Assim, o Estylo Byzantino logo no seculo VI começou
a espalhar-se na parte septentrional da Italia, alargando-se
depois successivamente pela Lombardia.
A influencia da ornamentação byzantina em
mosaicos,
pinturas e esculpturas, que já anteriormente se
manifestára sobre o Estylo Latino e que os artistas,
emigrados do oriente pelas perseguições dos
iconoclastas,
haviam accentuado, achou-se agora fortalecida
pelos proprios edificios, cujos fundamentaes elementos
architectonicos eram bem superiores em majestade,
grandeza e duração aos correspondentes no
primitivo
estylo christão, nascido no occidente.
Apesar das qualidades do seu emulo, o Estylo Latino
occidental offereceu resistencia, e não foi tão
facilmente
vencido como no oriente. Na Italia fôra creado
e se espalhára com profusão, correspondia ao
meio natural
e social; era, emfim, o producto do genio classico
romano e o representante de antigas tradições.
Foi sempre singular a resistencia tenaz d'esse antigo
espirito classico romano, que por longos seculos
viveu sobre o solo da Italia, sem duvida conservado
pela hereditariedade do sangue e pelas tradições
vivas
dos antigos monumentos. Assim, o Estylo Romanico
não penetrou facilmente no sul de Italia e o Ogival,
cuja expansão foi enorme por toda a parte, se a invadiu,
teve de transigir e amoldar-se ás circumstancias.
Entrou na Lombardia, elevando um dos melhores edificios
em Milão; mas, a partir de Florença, onde na
[90]
opinião dos proprios italianos começa a
verdadeira Italia,
o ogival tomou caracteres muito especiaes e transigiu
com o espirito classico.
O auctor d'este livro teve ensejo de apreciar bem
este facto, quando percorreu aquelle paiz. Alem d'isso,
o movimento artistico da Renascença terminado no
seculo XVI, que representa um verdadeiro retrocesso
ás origens, isto é, ás
idéas e aos estylos classicos, foi
preparado e realisado em Italia, exclusivamente por
elementos italianos, quer fossem escriptores, quer amadores
ou artistas.
Assim, a grande vitalidade do espirito classico no
solo da Italia foi origem de muitos factos importantes
na Historia da Arte, sendo, segundo julgamos,
tambem a causa da tenaz resistencia do Estylo Latino
em face do poderoso invasor oriental.
Emquanto o Estylo Byzantino realisava a invasão
da Italia, durante
o seculo VI,
elevando as suas construcções
ao lado das latinas, as leis historicas preparavam
as bases das futuras constituições sociaes.
O seculo V fôra o periodo das invasões na Italia,
nas
Gallias e na Iberia. Na Italia, que mais nos interessa
porque foi no occidente o fóco da arte, viu-se passarem
os visigodos de Alarico, os suévos de Rodagués,
os hunos de Atila e os herulos de Odoacro, como rudes
e barbaros conquistadores; mas as conquistas succediam-se,
deixando ruinas e miserias, sem crearem
organisações
sociaes estaveis. Como verdadeiras ondas
rebentavam no solo da peninsula, espraiando-se em
grandes côrsos, que tão rapidamente quasi se
retiravam,
[91]
como se haviam formado. Apenas, os herulos de
Odoacro, revoltados contra Augustulo, o ultimo imperador
do occidente, por curtos annos formaram uma
vacillante monarchia, destruida no fim do seculo V
pelos ostrogodos de Theodorico.
O proprio Imperio ostrogodo tivera ephemera
duração.
O genio indiscutivel do grande chefe imprimira-lhe,
segundo vimos, certa unidade e brilhante grandeza;
mas a fusão das raças não se
déra. O conquistador
era intelligente e humano, um espirito liberal e
justo, civilisado na côrte de Byzancio; mas bem na
essencia Theodorico ficára sempre um conquistador,
confiando mais na força das armas do que na
acção
lenta e segura da catechese politica. Por isso, conservára
os seus guerreiros isolados quanto possivel da
civilisação classica, constituindo uma verdadeira
casta.
A morte de Theodorico foi o signal da dissolução
dos
seus Estados, sendo pouco depois d'ella conquistada
a Italia por Belisario e Narsés, os habeis generaes de
Justiniano.
No seculo VI começou na realidade a
constituição
de nacionalidades mais fortes e duradouras. Assim, ao
expirar do seculo V, organisou-se no occidente da Europa,
sob o energico governo de Clovis, convertido ao
Christianismo, a monarchia dos frankos, origem do
Imperio de Carlos Magno e da actual França; e nos
meiados do seculo VI, como já vimos, a Italia achava-se
dividida em duas grandes nacionalidades, ao
norte a monarchia lombarda, ao sul as provincias byzantinas
do Exarchado.
[92]
Os lombardos de Alboino eram, todavia, mais rudes
do que os godos de Theodorico; ou, pelo menos,
o chefe lombardo não possuia a malleabilidade do genio,
a illustração e a grandeza de caracter do
conquistador
godo. Os povos vencidos foram no principio
tratados com maior egoismo e crueldade. As
exacções
assumiram proporções violentas, porque o espirito
selvagem e guerreiro das hordas lombardas não era
temperado pelo caracter superior e prestigioso de Alboino.
A estabilidade relativa da conquista lombarda, que
durou desde 568 até 774, anno em que foi destruida
por Carlos Magno, e sem duvida as qualidades intellectuaes
dos novos invasores permittiram a lenta fusão
da raça vencida e da vencedora. Os riquissimos terrenos
da Lombardia foram de novo arroteados pelos
fortes e energicos homens do norte. A abjuração
do
arianismo pelos vencedores, que abraçaram o Christianismo
orthodoxo dos vencidos, facilitou as relações
sociaes. A combinação dos sangues creou a pouco e
pouco novas gerações, em que se casaram as
qualidades
animicas e ethnicas dos vencedores e dos vencidos,
recebendo de uns o espirito da liberdade e o valor
guerreiro, que haviam perdido os romanos da decadencia,
de outros a cultura intellectual e moral, que
não podiam possuir os barbaros do norte, por melhores
que fossem as suas tendencias e disposições. A
fusão
das raças produziu, assim, uma sociedade mais ou
menos homogenea, fundada na unidade da religião e
na constituição de uma lingua commum, primeiro
esboço
[93]
das futuras sociedades, que deviam resultar da
alliança dos tres espiritos creadores, o
christão, o classico
e o barbaro. A ordem e a sciencia, o commercio e
a industria começaram, pois, a reflorir na Lombardia,
apesar das continuas guerras que os seus habitantes
sustentavam, principalmente com o Exarchado, por
elles emfim destruido em meiados do seculo VIII.
N'este cadinho, se nos consentem a expressão, a
arte oriental e a occidental em contacto não podiam deixar
de produzir uma liga especial, sob o calor de novas
idéas e sentimentos, nascidos do rejuvenescimento
de uma importante fracção da Humanidade.
A origem do Estylo Romanico deve ser attribuida
a estes factos historicos, embora n'outros pontos e
n'outros seculos se dessem circumstancias similhantes,
que facilitaram tambem a evolução e a
dispersão d'este
estylo. Assim, é certo que a
constituição da monarchia
franka se deve considerar no occidente o resultado
equivalente da acção das leis historicas, e
sabe-se que
durante a dynastia merovingiana, depois da conversão
de Clovis, se elevaram muitas construcções; mas
os lombardos encontraram-se na posição singular e
favoravel de contacto com a arte byzantina, cujos edificios
e producções se elevavam nos seus proprios
Estados.
Esta situação especial envolve logicamente mais
directa e proficua influencia na formação de
novas
physionomias da arte.
Alem d'isso, os lombardos manifestaram-se sempre
bons architectos e excellentes constructores, quer o
fossem por disposições proprias de
raça ou herança do
[94]
sangue romano, quer o exemplo das construcções
existentes
lhes desenvolvessem e aperfeiçoassem estas qualidades.
Assim, quando a monarchia lombarda foi destruida
por Carlos Magno e reduzida a provincia do
Imperio, os artistas lombardos espalharam-se pelos
restantes Estados imperiaes, sendo considerados bons
architectos e habeis constructores. Ainda hoje a expressão
Estylo Lombardo, applicada a uma feição do
romanico, attesta a grande influencia d'estes artistas
n'este periodo da evolução da arte.
Difficil será, sem duvida, tentar a
fixação de datas,
embora seculares, para os factos da genese do Estylo
Romanico primario. N'estes remotos seculos por completo
fallecem os documentos e os melhores, os proprios
monumentos coévos, em grande parte desappareceram
pela acção de longa antiguidade e de muitas
e profundas catastrophes, offerecendo os que existem
duvidosa classificação. É
indiscutivel, todavia, que esse
periodo de transição existiu, porque entre o
Estylo
Latino primitivo e o Romanico secundario, constituido
no seculo XI, as differenças manifestam-se tão
radicaes
que só as pôde explicar uma longa
evolução.
O Estylo Byzantino, em verdade, approxima-se
mais do Romanico secundario em certos caracteres
fundamentaes; mas ainda entre elles as respectivas
physionomias manifestam-se tão distinctas, que envolvem
um longo periodo intermedio de elaboração.
Como as transformações biologicas e ethnicas das
raças
animaes exigem gerações successivas e numerosas
de verdadeiros typos intermediarios, assim, entre
[95]
os estylos christãos primitivos e o Estylo Romanico
secundario é logica e necessaria a existencia de um
periodo de transição.
Alem d'isso, a comparação dos caracteres
architectonicos
demonstra que o Estylo Romanico secundario
comprehende os de ambos os seus antecessores, constituindo
não uma simples mistura de elementos diversos,
mas em verdade uma sabia e harmonica combinação,
que fixou uma feição especial da arte.
[1]
[96]
Assim, o Estylo Romanico recebeu do Latino as
disposições geraes das fachadas e os narthexs, a
fórma
interior das egrejas nas naves, nos transeptos e nas
absides, os triforios, as cryptas, os altares, os ciborios,
as tribunas e outras disposições particulares
archictetonicas
e ornamentaes; e do Byzantino as abobadas e
as cupulas, os pilares massiços e as grossas columnas,
os pesados e variados capiteis, as arcadas de volta inteira,
[97]os arcos geminados
e sobretudo a variedade e
riqueza da ornamentação.
Quando começou a manifestar-se essa
transformação,
que constitue o periodo do Estylo Latino de
transição, ou o Estylo Romanico primario?
Em geral, as maiores creações do espirito humano,
coincidem com os grandes movimentos historicos. O
marasmo politico suffoca a actividade intellectual e
entibia a energia da alma; escravisa e annulla o pensamento,
estancando-lhe as forças creadoras; substitue
os grandes ideaes pelos pequenos interesses, as nobres
ambições pelo sordido egoismo; emfim, reduz o
animal humano a um automato, que apenas
sente a
necessidade e o prazer de uma vida de sensações
faceis
e vulgares. Assim, vivem os chinezes ha milhares
de annos, adormecidos dentro de uma formula social
crystallisada na sciencia, na moral e na arte.
A constituição do extenso e poderoso Imperio
franko
de Carlos Magno, em meiados do seculo VIII, principalmente
depois da conquista do Reino Lombardo,
póde considerar-se o inicio provavel do Estylo Romanico
primario. Este grande facto politico, um dos
maiores da Historia, deu, como é sabido, profundo impulso
á civilisação, e sob o aspecto da arte
disseminou-a
pelas vastas provincias de um vasto Imperio,
habil e energicamente governado por um dos maiores
espiritos, com que até hoje se inflorou a Humanidade.
Foi então que os architectos e constructores lombardos,
espalhando-se no occidente e no centro da Europa,
encontraram, sem duvida, excellente atmosphera para
[98]
desenvolver as singulares aptidões do seu talento e a
profunda sciencia de longa pratica, creando novos elementos
e novas combinações architectonicas, que
prepararam
o Estylo Romanico secundario, a phase pura
e perfeita d'este estylo.
Esta revolução na esthetica nasceu
indiscutivelmente
da acção de um novo espirito creador, sem a
influencia do qual a arte no occidente teria crystallisado,
permanecendo quasi invariavel por longos seculos,
como succedeu no oriente ao Estylo Byzantino,
que apenas gerou o Estylo Russo, cuja physionomia
actual conserva ainda accentuados e caracteristicos os
traços, embora orientalisados, do seu antecessor. Esse
espirito innovador, que modificou a politica e a moral
das antigas sociedades, esse forte e benefico movimento,
que agitou e saneou o pantano do mundo classico,
esse espirito revolucionario, que das montanhas
da philosophia, da sciencia e da arte classicas fez brotar
poderosos mananciaes de novas idéas e de novas
fórmas, foi o elemento barbaro.
A sua grande qualidade, o amor pela liberdade do
pensamento, foi o sangue forte e generoso, que veiu
dar calor e vida á cançada e anemica
compleição classica.
Na arte o seu trabalho de regeneração,
atravessando
as phases do periodo romanico, devia produzir
a definitiva e magnifica concepção do mais
perfeito
estylo religioso conhecido, o Estylo Ogival.
PARTE TERCEIRA
OS ESTYLOS CHRISTÃOS DEFINITIVOS
XI SECULO AO XV SECULO
CAPITULO
PRIMEIRO
SYNTHESE SOCIAL DOS SECULOS XI E XII
Quando no anno de 814 da era de Christo morreu
Carlos Magno, o seu vasto Imperio, abrangendo a
França, a Allemanha, parte da Austro-Hungria, a
Hespanha até ao Ebro e a Italia quasi toda até ao
Volturno,
entrou em dissolução, tendo o destino fatal de
todas as tentativas de restauração do antigo
poder romano.
A unidade apparente, que reinava entre raças e
nações
differentes, proviera do prestigio pessoal de Carlos
Magno, do seu talento administrativo, da bondade
do seu caracter, em summa da elevação
intellectual e
moral de um homem, que imprimiu ao movimento do
espirito humano, tão abatido n'aquelles tempos, um
vigoroso impulso, afrouxado nos seculos seguintes,
mas, ainda assim, não perdido para a Humanidade.
As antigas e inuteis discussões byzantinas tomaram,
com effeito, novo caracter especial, constituindo
a philosophia da Edade-Media, a Escholastica, que na
[102]
realidade nasceu nas academias e nas escolas, creadas
por Carlos Magno. Este movimento intellectual é
interessantissimo,
principalmente nas duas primitivas
phases: a primeira sob a influencia do idealismo de
Platão, subordinando a philosophia, isto é, a
sciencia,
á theologia; a segunda, sob a acção do
realismo de
Aristoteles, durante a qual a sciencia e a theologia caminham
a par.
O seculo XIII, como veremos, foi o da lucta mais
activa entre
realistas e
nominalistas, entre as influencias
de Aristoteles e de Platão, lucta formidavel, nem
sempre incruenta porque teve perseguidoras e martyres,
sendo uma das origens da reforma religiosa do
seculo XVI e do movimento philosophico e positivo das
sciencias nos seculos seguintes.
O Imperio de Carlos Magno constituiu, pois, um periodo
curto e brilhante depois d'esse espaço obscuro
e terrivel das invasões, em que tantos povos de origem
differente se precipitaram sobre o esqueleto do antigo
mundo romano.
Sob a acção poderosa de Carlos Magno, a unidade
administrativa do Imperio podia considerar-se completa.
Os delegados do poder central, duques, condes,
vigarios e outros funccionarios, governavam os diversos
Estados, quasi reduzidos a provincias, em nome
do imperador, em quem residia o poder supremo indiscutivel
e respeitado. Já no tempo de Carlos Magno,
comtudo, o espirito de rebellião lavrava entre estes
funccionarios, cujo caracter germanico, guerreiro e independente,
altivo e ambicioso do poder, os levava
[103]
a pensar na hereditariedade dos cargos e na permanencia
das funcções. O prestigio pessoal do imperador
contrariára-lhes os designios, que tomaram vulto
e animo depois da sua morte. Estas tendencias definem
a origem e são a causa da organisação
do
feudalismo,
constituido no seculo XIII, em que tambem se
manifesta o primeiro periodo do Estylo Ogival.
Os filhos e netos de Carlos Magno não lhe haviam
herdado nem o prestigio nem as qualidades pessoal. Tibios
e ambiciosos, em continuas guerras, enfraqueciam-se
mutuamente, deixando engrossar a idéa de
independencia, que sempre germinára entre os delegados
imperiaes. Assim, o fraco Carlos-o-Calvo, rei
de França, reconheceu aos senhores, que o eram já
de facto, o direito da hereditariedade e certa independencia,
na
Capitularia de 877, anno da sua
morte,
que define historicamente o começo do feudalismo.
Ao mesmo tempo, nas classes sociaes inferiores,
constituidas principalmente pelos vencidos e pelos pobres
e trabalhadores, lavrava tambem o espirito da liberdade,
animado pelo Christianismo e pelas tradições
das antigas instituições romanas. A Republica
excitára
sempre a vida local. O Imperio, depois, restringira-a
successivamente; conservando-lhe, apenas, as
funcções
indispensaveis para facilitar o exercicio do poder central.
Esta acção, a decadencia dos costumes dos
cidadãos
dos ultimos tempos e as responsabilidades fiscaes
dos municipios romanos, fizeram decaír as
curias da
sua primitiva grandeza.
É sabido que nos ultimos tempos do Imperio as
[104]
funcções municipaes, consideradas de perigo e
onerosas,
não eram disputadas, como outr'ora; para obter
os
curiales, os imperadores viram-se
forçados a obrigar
os cidadãos a desempenharem estes cargos, com penas
e multas correspondentes. O espirito communal,
todavia, não se extinguira de todo nem com a
depravação
dos costumes romanos, nem com a conquista
dos barbaros. No sul da França, por exemplo, mais
livre das invasões, os antigos municipios romanos haviam-se
conservado com maior ou menor pureza.
Além d'isso, a tradição d'estas
instituições locaes
mantinha-se, e os seus principios existiam vivos, com
o brilho das legislações theoricas, no antigo
direito
romano. É muito provavel, tambem, que o espirito de
fraternidade e de solidariedade de certas classes romanas,
como as dos artifices e dos operarios, tivesse
atravessado o longo collapso do V ao X seculo. Pelo
menos parece serem d'isto exemplo as associações
franco-maçonicas
constructoras, que tanta influencia tiveram
na arte ogival e, a nosso ver, se não se filiam
nas similares romanas, pelo menos derivam d'ellas,
como exporemos a seu tempo, n'outro ponto d'este
livro.
Seja como for, julgamos que os dois principios, o
feudalismo, nascido do espirito
barbaro, e o movimento
das
communas, insufflado
pelo espirito christão, sem
duvida os agentes principaes da civilisação dos
seculos
XI ao XV, manifestaram as primeiras tentativas de
evolução entre o Imperio de Carlos Magno e os
começos
do seculo XI, no qual na realidade começa a
[105]
Renascença, que se operou
durante um longo periodo,
com relampagos admiraveis nos seculos XIII e XVI, sobretudo
sob o aspecto da arte.
De facto, a Edade-Media parece dividida em dois
periodos distinctos: o primeiro do seculo V ao seculo X,
o das terriveis luctas entre os tres principios, o classico,
o christão e o barbaro; o segundo periodo do seculo
XI ao seculo XV, o da lenta combinação e
fusão
d'estes principios. No seculo V, a luz já quasi crepuscular
do grandioso mundo classico perde-se na noute,
longa e tempestuosa noute d'alguns seculos. A pallida
aurora do mundo moderno começa a despontar a partir
do seculo XI.
Estes dois periodos são definidos por um facto historico
interessante e de alguma importancia. O espirito
mystico do Christianismo e as profundas miserias,
soffridas pelo mundo romano logo após a victoria d'esta
religião, geraram a lenda do
millenio periodo de mil
annos durante o qual a humanidade dos vivos e os
martyres e adeptos do Christianismo resuscitados gosariam,
sob o proprio reinado de Jesus Christo, todas
as felicidades e os maiores bens sobre a terra. O principio
d'estes seculos de Justiça implicava logicamente
o fim de um mundo cheio de dores e flagellos, que assim
foi prefixado para o ultimo dia do seculo X.
A superstição teve sempre grande presa sobre os
espiritos
ignorantes e fracos; julgue-se, pois, da influencia
na Edade-Media d'esta prophecia, fundada em
textos sagrados, tendo uma longa tradição e
admittida
por homens superiores, até por alguns papas. Nos fins
[106]
do seculo X, a approximação d'este dia tremendo
amortecera todas as expansões da actividade humana.
Para que servia, com effeito, trabalhar, produzir,
construir, fazer esforços, quando estava prestes
o fim d'este mundo e o principio d'aquelle em que
todos seriam eguaes e felizes, reinando sobre a terra
a justiça e a felicidade sob o sceptro do proprio
Christo?!
Por isso, a historia descreve o collapso profundo e
crescente, que se apoderou do mundo christão, quando
se avisinhava esse dia de Juizo, tão admiravelmente
traduzido pelo desconhecido poeta medieval de um
dos mais bellos canticos da egreja:
Dies irae, dies ille
Solvent seculum in faville.
N'esse dia um panico profundo envolveu todos os
espiritos. As egrejas encheram-se de fieis, que esperavam
a catastrophe entre prantos e rezas; ora, por uma
doce ironia da natureza, a aurora do primeiro dia do
seculo XI raiou esplendida.
Para apreciar bem a importancia d'este facto, que
hoje parece pueril, é preciso transportarmo-nos aos
primitivos tempos da Edade-Media, avaliarmos a ignorancia
extrema de todas as classes sociaes, com rarissimas
excepções e essas escondidas principalmente
nos conventos; apreciarmos, emfim, o espirito publico
n'um tempo em que primava a idéa religiosa, não
tendo outros competidores.
[107]
A passagem do perigo imminente alliviou a alma
humana, dando-lhe expansão ás faculdades
creadoras
e activando-lhe o exercicio do trabalho. Assim, o segundo
periodo da Edade-Media é bem differente do
primeiro.
No seculo XI, a sociedade christã entrou n'uma
evolução
accentuada. O feudalismo achava-se quasi constituido.
Esta nova organisação social espalhou-se pela
superficie do antigo imperio de Carlos Magno. A terra,
toda dividida em
feudos, pertencia
aos suzeranos; mas
os
senhores tinham n'esses feudos
quasi absolutos direitos
de soberania, absorvidos a pouco e pouco aos reis,
agora confinados em pequenos Estados propriamente
seus.
Em compensação, estes suzeranos recebiam dos
feudatarios
o respeito pessoal e a defeza da sua honra,
auxilios prefixados em homens equipados a cargo dos
mesmos feudatarios em caso de guerra e, emfim, rendas
pecuniarias, ou certos impostos cobrados por conta do
suzerano, que ás vezes tambem conservava o direito de
justiça, funcção em geral independente
dos senhores
feudatarios. Esta organisação politica era, na
realidade,
uma federação de pequenos Estados, tendo um
soberano ou imperador mais ou menos nominal.
O direito reconhecido aos senhores feudaes de crearem
dentro dos seus Estados novos feudos, disseminava
as baronias e originava uma hierarchia de suzeranos
secundarios, seculares e ecclesiasticos. Os grandes
dignitarios da egreja, os bispos, eram senhores feudaes
na sua diocese e suzeranos nos seus Estados. As grandes
[108]
doações, feitas á egreja, haviam
multiplicado o
numero dos senhores feudaes ecclesiasticos, que chegaram
a possuir em França e Inglaterra o quinto
das terras, e o terço na Allemanha.
N'esta organisação autonoma e guerreira sente-se
claramente o espirito dos barbaros, que seculos antes
haviam destruido o Imperio Romano. As violencias
e as luctas intestinas entre estes senhores eram
constantes e traduziam-lhes o caracter audacioso e cupido;
o amor pelas aventuras e o desejo ardente do
poder arremessavam-n'os uns sobre os outros, impondo-se
reciprocamente pelo direito da força n'uma sociedade,
onde eram mal reconhecidos pelos fortes e
poderosos os principios do direito e os dictames da justiça.
Assim, a egreja, em nome da religião, unica influencia
energica sobre aquellas almas de bronze em
corpos vestidos de ferro, procurou intervir, definindo
com modestos resultados a
trégua de
Deus, a prohibição
da lucta em certos dias da semana.
Estas poderosas unidades guerreiras repousavam,
como era logico, sobre a servidão das classes civis,
principalmente das mais numerosas e pobres. Em verdade,
o Christianismo tinha adoçado o caracter duro e
barbaro da escravidão classica. No regimen feudal,
a classe dos miseraveis, os
servos de
gleba, que em
torno dos castellos agricultavam a terra e eram herdados
como fazendo parte d'ella e sendo verdadeiros
instrumentos de trabalho, tinha subido um pouco na
escala da escravatura, cujos pontos culminantes se desenham
no mundo classico e depois no moderno,
[109]
quando se desenvolveu o infame trafico das raças de
côr, consideradas inferiores ás brancas. O
feudalismo,
repassado pela religião christã, olhava-os como
homens,
sem direitos politicos e civis é certo; mas estava
longe, muito longe ainda, de os considerar, como o
antigo regimen, o das monarchias
absolutas fundadas
no Catholicismo, o fez depois, uma multidão de miseraveis,
sem garantias, sem direitos e quasi sem familia,
que os cynicos dos seculos XVII e XVIII consideraram
massa
taillable, et corvéable à
merci.
Assim, no segundo periodo da Edade-Media, pelo
menos a grande maioria do povo—digamos a
palavra—gozava
de certas vantagens, que provinham dos
dois espiritos em acção parallela: o germanico e
o christão.
A familia offerecia uma expressão mais elevada e
perfeita. Na antiguidade o casamento era um contracto,
na Edade-Media um sacramento, que ligava por
toda a vida. O Christianismo consolidára a pedra angular
das sociedades com a indissolubilidade do matrimonio.
Depois, Jesus Christo encarnára-se no seio de
uma mulher, a Virgem. O espirito germanico, acceitando
estas doutrinas, trouxe a essa unidade da familia,
onde o homem se completa, os seus caracteres de
hombridade e de liberdade; o seu
ponto de
honra, emfim,
que foi uma feroz creação moral do feudalismo,
adoçada pelo Christianismo.
Ainda foi o espirito germanico que implantou no
mundo romano o julgamento pelos eguaes—pelos
pares—origem do moderno jury. Na Edade-Media
o imposto era admittido pelos contribuintes, o que envolvia
[110]
prévia consulta,
nem sempre talvez respeitada,
mas em summa reconhecida. A egreja, n'esse
tempo ainda, conservava o principio electivo romano
para as altas dignidades ecclesiasticas. Estes e outros
principios temperavam um pouco a tyrannia feudal,
e quasi todos elles desappareceram no regimen
despotico das monarchias absolutas e da theocracia
pontificia.
As classes civis na Edade-Media agrupavam-se nos
grandes centros, onde se mantinham as transacções
e
as industrias rudimentares do tempo, e nos pequenos
burgos, povoações dispersas creadas naturalmente,
ou facilitadas pelos senhores dos feudos, que davam
guarida e protecção aos fugitivos dos feudos
limitrophes;
além d'isso, eram formadas por essa multidão
de
servos de gleba, que dispersos ou
concentrados perto
dos castellos, constituiam os verdadeiros agricultores,
como os
sudras da India antiga.
O movimento communal nascera naturalmente nos
grandes centros, promovido pelas causas geraes, precedentemente
apontadas. Demos n'este ponto idéa
da essencia e constituição d'este movimento, em
que
tiveram acção importante os trabalhadores d'esse
tempo, como teem nos tempos modernos os operarios
industriaes na formação das futuras sociedades
socialistas.
A acção das associações, ou
confraternidades operarias,
na constituição das communas e a influencia
que exerceu uma das mais poderosas, principalmente
no periodo ogival, a dos
franco-maçons
constructores,
[111]
obrigam-nos a abrir um parenthese para nos occuparmos
das suas origens e dos seus fins. As origens
provaveis estão nas associações
romanas similares, ou
por filiação directa e successiva, o que
aliás não demonstra
a historia no grande collapso do V ao X
seculo, ou organisada sob a acção das
tradições e
das leis romanas na phase activa das construcções
do primeiro e segundo periodo romanico, nos seculos
XI e XII.
Pelo primeiro ou pelo segundo processo, ou talvez
por ambos, ninguem póde deixar de reconhecer a profunda
similhança entre as duas associações:
as romanas
e as da Edade-Media. Já no tempo da Republica,
havia em Roma um collegio de pedreiros, cuja existencia
se prolongou durante o Imperio. Constituia uma
verdadeira associação de classe no sentido
moderno da
expressão, composta de architectos, pedreiros e canteiros
ligados pelos principios da confraternidade moral,
mutuo auxilio e protecção ao trabalho. O Estado
reconhecera-lhe
a existencia. Possuia estatutos, propriedades,
salas de reunião; era, emfim, uma
instituição
legal.
No regimen interno, os associados, classificados
mestres, companheiros e aprendizes, tinham assembléas
deliberantes, secretarios, fundos proprios administrados
por um thesoureiro, archivos, escolas, em
summa, tudo que caracterisa uma poderosa
associação.
As praticas internas, mais ou menos secretas,
empregavam symbolismos, entre os quaes figuravam
as ferramentas dos respectivos officios.
[112]
Esta vasta associação espalhava-se por todo o
Imperio—ella,
as suas lojas filiaes, ou outras associações
congeneres—era privilegiada pelas leis; por exemplo,
não pagava impostos. N'estas
condições, abrangia uma
area tão extensa que existem d'ella noticias historicas
na Gallia e na Bretanha, onde provavelmente deu origem,
com outras associações romanas, aos primitivos
guilds, os antecessores dos
poderosos Trade-Unions da
Inglaterra moderna.
Esta simples descripção, fornecida pelos
escriptores
romanos, manifesta similhanças tão singulares com
os
caracteres fundamentaes das grandes associações
constructoras
da
franco-maçonaria, que
pela filiação directa,
o que nos parece mais plausivel, ou pela influencia
da tradição, as mesmas idéas e os
mesmos interesses
approximaram estas classes de operarios, salvo as
differenças
provenientes da acção do Christianismo na
Edade-Media.
Dos seculos V ao X, espaço de tempo a que chamamos
o primeiro periodo medieval, as miserias, as crises
sociaes e a acção mystica do Christianismo haviam
desenvolvido o espirito cenobitico e monastico, como
necessidade da segurança e do descanço do corpo,
e
da paz e da liberdade do espirito. As sciencias e as
artes refugiaram-se nos primeiros conventos. Em 529,
por exemplo, S. Benedicto fundou a celebre ordem dos
benedictinos, a cujas praticas religiosas foram impostas
tambem, como obrigações scientificas, a
conservação
da sciencia classica e a copia dos manuscriptos.
Esta ordem poderosissima, cujos trabalhos valiosos
[113]
são conhecidos, espalhou-se por todo o orbe
christão,
constituindo grandes e historicas abbadias.
Em volta d'estes conventos, que logicamente comprehendiam
os architectos e os constructores dos mosteiros
e dos templos, agruparam-se os operarios, organisando
as primeiras associações christãs.
Ora, a
tradição e a essencia das grandes
associaçães romanas
deviam manter-se no espirito e nos archivos dos mosteiros
d'esse tempo. Por esta fórma se explica a
ligação,
directa ou indirecta mas indiscutivel, das
associações
romanas e das medievaes.
Assim, os primeiros traços historicos da
franco-maçonaria
datam do seculo XI, isto é, do seculo em
que se define o segundo periodo do Estylo Romanico.
No seculo XIII, estas associações apparecem
já independentes, com organisação
completa e construindo
as maiores cathedraes do Estylo Ogival.
Teremos occasião de desenvolver o assumpto n'outra
parte d'este livro.
É indiscutivel que as corporações de
artes e mesteres,
embora bem rudimentares n'essa epocha, feitas
á imagem e similhança das romanas, deviam
constituir
grandes forças revolucionarias nos primeiros movimentos
communaes. A communa nasce, pois, do
amor da liberdade, manifestação do espirito
germanico,
do principio das organisações methodicas e
regulares,
tradição do espirito romano, e dos sentimentos
de caridade e mutuo auxilio, essencia intima do
Christianismo. Em nenhum facto historico da Edade-Media
se distingue mais clara e profundamente a acção
[114]
parallela e harmonica das tres manifestações
d'esse
espirito, de que falavam as escolas de Anaxagoras
e de Socrates. A communa, todavia, representava tambem
a ligação dos fracos quasi inermes, contra o
feudalismo guerreiro e potente. A natureza intima
d'esta instituição democratica provém
de todos estes
principios.
Os primeiros movimentos communaes accentuados
datam do seculo XI, embora, como dissemos, as
organisações
municipaes romanas tivessem subsistido nos
pontos do Imperio mais livres das invasões barbaras,
por exemplo no sul da França. Nos seculos XII e XIII a
organisação communal era já poderosa.
Estas communhões,
confederações, ou
conjurações, segundo os nomes
caracteristicos do tempo, haviam-se formado nos
antigos centros, ou em centros novos. O seu principal
fim, n'esses tempos de guerras e desastres, foi a defeza
reciproca; a primeira obrigação dos
cidadãos
consistia em se reunirem armados, quando tocava a
rebate o sino do campanario, em volta do qual se
agrupava a communa, e d'onde esculcas vigilantes,
noite e dia, espreitavam os perigos de subitas investidas.
A organisação interna das communas nasceu
logicamente d'estas agremiações primitivas,
realisadas
á sombra da egreja, que, ás vezes, constituia o
ultimo baluarte das luctas entre os burguezes e a cavallaria
feudal.
Pela habilidade, pela pertinacia, aproveitando com
astucia as occasiões favoraveis das luctas entre os senhores
feudaes e a sua necessidade de dinheiro, as
[115]
communas foram obtendo a pouco e pouco a
organisação
autonoma, umas livres constituindo quasi
feudos
burguezes, se nos consentem a expressão,
outras sujeitas
ao delegado do senhor ou do suzerano, o
preboste;
mas todas reunindo uma força respeitavel, depois
aproveitada pelos senhores mais habeis para instrumento
dos planos de restauração da unidade do poder
real, que antecedem e preparam a formação das
monarchias
do direito divino.
No seculo XIII as communas livres e do
prebostado
eram numerosas e os seus direitos mais ou menos reconhecidos
por contratos, entre os senhores feudaes e
as agremiações burguezas. Libertadas dos antigos
serviços pessoaes, tendo uma
organisação administrativa
independente e electiva, que envolvia, ás vezes,
o direito de justiça, em qualquer caso repousando sobre
o julgamento dos
pares, livres de
tributos arbitrarios
substituidos por contribuições fixas, as communas
manifestam n'este seculo certa unidade de
organisação
e os caracteres de liberdade e de vida locaes.
Taes foram, descriptas na essencia e em rapidos
traços, as duas forças, o feudalismo e as
communas,
que fizeram a historia do segundo periodo da Edade-Media.
N'este meio social, se a ignorancia era profunda,
as sciencias e as artes davam os primeiros passos.
A Escholastica, nascida com o Imperador Carlos
Magno, depois da morte de Alcuino e de Engenhard,
perdera o brilho que attingira nas escolas e academias
imperiaes. Revive no seculo XI, em que Abelard, celebre
pelos seus amores com Heloisa, lhe imprime um
[116]
vigoroso impulso, do qual resultará o grande movimento
Escholastico do seculo XIII, com as figuras primaciaes
de S. Thomás de Aquino, o auctor da Summula
Theologica, e de Roger Bacon, o sabio universal
e prophetico. Estes dois grandes homens representam
duas escolas, a primeira que por evolução
successiva
devia produzir a theologia e a metaphysica, a segunda
que originaria o methodo experimental e é a
essencia positiva das sciencias modernas.
No seculo XI começam tambem as guerras religiosas,
o embate das grandas forças do islamismo, accumuladas
ao sul da Europa, e do Christianismo, occupando
o centro e o norte. A primeira lucta corpo a
corpo, travada nos campos da Palestina, constituiu a
Cruzada do anno de 1096. O feudalismo move-se
em peso e 600:000 guerreiros reunem-se em Constantinopla,
ponto de partida. As populações servis da Europa
christã respiram, alliviadas d'esta força
tremenda,
que vae a Jerusalem libertar o Santo Sepulcro. As
fileiras rareadas do feudalismo facilitam a
constituição
communal. Alem d'isso, o movimento das Cruzadas,
que dura dois seculos, activa as relações de
todas as
ordens com o Oriente, põe as nações
occidentaes em
mais directa communicação com a arte byzantina,
que
tanta influencia tivera já sobre o Estylo Latino, e
contribue
poderosamente para a riqueza e dispersão dos
Estylos Romanico e Ogival.
N'este pequeno quadro dos seculos XI e XII pretendemos
definir o
meio social, em que se
desenvolveram
os mais completos estylos da arte christã. A pintura
[117]
é incompleta, mas um trabalho d'esta natureza não
se presta a maiores desenvolvimentos historicos. Os
necessarios fal-os-emos tratando dos Estylos Romanico
e Ogival. N'este ponto, basta notar que o espirito humano
teve rapida e ascensional evolução nos dois
seculos
XI e XII, o periodo do Estylo Romanico, e que o
seculo XIII representa na historia uma phrase brilhante,
um relampago da Renascença, em que principia o periodo
ogival.
CAPITULO
SEGUNDO
ESPIRITO E CARACTERES DO ESTYLO ROMANICO
Os
meios sociaes em que se formaram
os Estylos
Latino e Byzantino descrevemol-os, com rapidos traços,
em anteriores capitulos. Seguindo o methodo adoptado,
apreciámos as circumstancias historicas em que
se operou a fusão d'esses estylos e fizemos depois o
quadro do estado social dos seculos XI e XII, periodos
medios durante os quaes se definiram as duas
feições
do Estylo Romanico, o da constituição perfeita e
o
da transição para o Estylo Ogival.
D'estes quadros, se embora curtos ficaram perfeitos,
devemos tirar conclusões geraes. A fusão dos tres
espiritos,
o classico, o germanico e o christão, está quasi
realisada. A homogeneidade do pensamento prepara a
das sociedades. É a aurora do mundo moderno, que
desponta ha oito seculos. São enormes os dias da historia
da Humanidade; duram por longo tempo, como
por myriades de seculos se contam os da historia da
Natureza.
[120]
O espirito da liberdade começa o seu caminho, nem
sempre directo e facil mas constante e orientado, para
as instituições modernas. Essa força
poderosa, a liberdade
do pensamento, vae engrandecer as antigas sciencias,
crear outras novas e, como a arte é uma sciencia,
engrandecel-a tambem em todos os ramos, refundindo
a antiga esthetica, como transformou a philosophia
classica.
A tendencia para a ordem social produz a riqueza,
a relativa instrucção desenvolve o gosto,
elementos
que constituem a melhor atmosphera do trabalho intellectual
e da sua applicação pratica. As sciencias e
as artes saem dos conventos, onde a barbarismo dos
primeiros seculos as obrigára a procurar refugio. Os
senhores fazem os seus votos e cumprem-n'os, elevando
templos, e constróem castellos e palacios nos seus Estados.
As communas nascentes edificam os seus campanarios
e tambem os seus muros e fortalezas. A
emulação estabelece-se. Os pequenos tyrannos
até procuram
salvar as almas, mercadejando com Deus e
cobrindo o sangue dos assassinios e as torpezas dos
actos com templos admiraveis. Sirva de exemplo a
grande Cathedral de Milão, construida em 1386 por
João Galeas Visconti, duque de Milão, um dos
maiores
malvados do seu tempo, aliás bem fertil em individualidades
d'esta especie, dispersas por toda a Europa
feudal.
O Christianismo domina sem rival; para elle
começára
tambem a unidade que teve depois n'outros seculos.
Chame-se Catholicismo, religião reformada ou orthodoxa
[121]
grega, é sempre o mesmo espirito tendo
acção
identica sobre os destinos do orbe christão, que
nós e
os hespanhoes havemos de alargar mais tarde, descobrindo
os mais longinquos confins do mundo.
Este bello movimento do espirito humano, iniciado
nos seculos XI e XII, avigora-se no seculo XIII, cuja
atmosphera facilitou a formação do Estylo Ogival,
aquelle que até hoje produziu, em menos tempo, a
maior quantidade de monumentos de todas as ordens,
admiraveis manifestações de grandeza e de
qualidades
de arte. Agora, porém, circumscrevamos os nossos
raciocinios ao Estylo Romanico
secundario e ao terciario,
chamado de transição, porque n'elle, durante o
seculo XII, se opera a passagem para o Estylo Ogival.
As grandes provincias occidentaes do Imperio Romano,
a Gallia, a Iberia, a Bretanha, haviam sido devastadas
pelas invasões germanicas; a propria Italia,
como vimos, soffrera os maiores flagellos, perdera primeiro
a hegemonia e depois fôra arrancada á
corôa
imperial do oriente. A miseria era extrema em toda a
parte. Na Italia, por exemplo, no principio do seculo
VI, S. Benedicto retirava-se para Subiaco, a cem
kilometros de Roma, para n'este
vasto
deserto levar
vida contemplativa e ascetica, creando depois com os
adherentes, que dia a dia se agrupavam em volta d'elle,
a celebre ordem dos Benedictinos. Este estado social,
perigoso e incerto, e o proprio mysticismo da religião
christã crearam as primeiras
associações religiosas,
que satisfaziam ás necessidades do espirito e á
segurança
e ao socego dos homens, que não andavam envolvidos
[122]
nas tremendas luctas do tempo. Taes são na
essencia as origens das ordens religiosas, que, a pouco
e pouco, principalmente depois das Cruzadas, se organisaram
regularmente.
N'estas associações se refugiaram a sciencia, a
philosophia
e a arte, que precisam para boa cultura o
socego do corpo e a tranquillidade do espirito. Algumas
ordens religiosas, como as dos Benedictinos, tinham
nos seus estatutos escriptos, além de regras e praticas
religiosas, obrigações de caracter scientifico;
ora, esta
ordem teve, como é sabido, uma expansão enorme e
rapida, depois da fundação, no seculo VI, do
primeiro
mosteiro em Monte Cassino. De facto, esta poderosa
e sabia associação espalhou-se pelo occidente,
dando
origem a abbadias que ainda hoje teem nome na historia:
em França as de Cluny e Citeaux, construidas nos
seculos X e XI, na Allemanha as de Ratisbonne e Salsburg,
em Inglaterra as de York e de Westminster,
para não citar ainda mais outras. Tambem, nos ultimos
seculos do primeiro periodo da Edade-Media até
ao principio do seculo XI, se formou em Italia a
associação
civil dos
irmãos
pontifices, que depois se constituiu
em ordem religiosa; os seus fins consistiam em
construir e reparar pontes, facilitando assim o caminho
das peregrinações, que se dirigiam aos logares
santos
e a outros pontos de veneração
christã.
A existencia d'estas associações religiosas
exigia a
construcção de grandes edificios, para a vida em
communidade,
e a da egreja para os exercicios divinos. Os
primeiros associados em Christo foram assim, logicamente,
[123]
os architectos e constructores dos proprios templos;
quasi os unicos quando as miserias da sociedade
se accentuaram ainda mais nos seguintes seculos. Em
volta dos conventos e das egrejas em construcção,
agrupavam-se os operarios, os restos das antigas
associações
romanas, talvez, ou pelo menos gremios nascentes
que mais tarde deviam dar origem á
franco-maçonaria.
Assim, ao lado da sociedade religiosa
constituia-se outra associação civil, que os
proprios
superiores ou abbades cultivavam pela sciencia e pela
religião, organisando-as e não desdenhando a
honra
de fazer parte d'estas corporações de artes e
officios.
O movimento iconoclasta favorecia estas
organisações,
trazendo artistas experimentados do oriente,
que no occidente procuravam o trabalho e a
protecção
dos conventos. Entre os grandes serviços que o
Christianismo prestou á Humanidade, durante a Edade-Media,
não foi este o menos importante: conservar a
sciencia e a philosophia classica e desenvolver novas
feições estheticas.
Assim correram as cousas até ao seculo IX, quando
sobreveiu a grande invasão dos normandos, que, descendo
do norte, infestaram o occidente da Europa, a
França e principalmente a Bretanha. Estes grandes
piratas do mar, que
as tempestades levavam aonde elles
queriam ir, assolavam, saqueavam e queimavam tudo
na sua passagem, mais sequiosos de presa e mais
brutos de sentimentos do que os proprios hunos de
Atilla. A pouco e pouco, é certo, uma
civilisação superior
infiltrou-se-lhes no sangue e adoçou-lhes os costumes
[124]
selvagens; mas os grandes males estavam feitos
e era indispensavel reconstruir os edificios, as egrejas
e os conventos, cujas ruinas, ainda negras do fumo
dos incendios, attestavam a brutalidade dos novos invasores.
Os primeiros constructores christãos tinham encontrado
edificios feitos, as basilicas; apropriaram-se
d'ellas, imitaram-n'as por toda a parte, saqueando as
riquezas dos antigos templos classicos para as adornar.
Agora, os architectos occidentaes, os frades principalmente,
encontravam-se em circumstancias differentes.
As necessidades do culto tinham modificado as
egrejas, embora conservando-lhes a antiga feição;
a
estabilidade das associações religiosas
manifestava outras
exigencias na duração dos edificios. O tempo e
os flagellos da guerra haviam esgotado os thesouros,
d'onde os antigos architectos tinham tirado a
ornamentação
dos templos primitivos; emfim, ao novo Estylo
Byzantino, espalhado e conhecido no occidente, offerecia-se
campo largo e aberto, onde a sua influencia se
podia exercer com grande actividade. Todas estas
condições especiaes tendiam a imprimir novos
caracteres
ás construcções architectonicas.
A solidez do edificio e a sua maior duração
envolviam
o problema da natureza da cobertura. Os novos
constructores resolveram-n'o empregando a
abobada,
que fôra excluida das construcções
primitivas do Estylo
Latino e tinha sido raras vezes usada no Estylo Romanico
primario. A abobada de volta inteira ou abatida
era muito usada em Roma; mas os edificios escolhidos
[125]
para egrejas ou para modelos dos templos do Estylo
Latino, as basilicas, não a tinham, nem a comportavam,
dadas as condições de estabilidade e de espessura
dos muros, ou das columnas, sobre as quaes repousava
a cobertura. A tradição, principalmente em
materia
religiosa, tem sempre grande força; por isso, as
tradições
da basilica foram, n'este ponto, quasi absolutamente
conservadas.
Além d'isso, o Estylo Byzantino empregára a
cupula
de construcção difficil e a abobada em arco de
circumferencia,
facil de construir; estamos, pois, plenamente
convencidos de que o caracter fundamental do
Estylo Romanico secundario, a
abobada, foi o resultado
da influencia do novo estylo oriental. Mas o systema
de cobertura abobadada exige, sem discussão,
maior espessura de paredes, que lhe possam sustentar
o peso e resistir ás pressões lateraes; por isso,
os edificios
romanicos apresentam estes caracteres, pela
diminuição
dos vãos abertos e pelo emprego de contrafortes
e botareos. Aqui, são as proprias necessidades
da construcção, que levam os architectos a
adoptar os
processos e as fórmas do Estylo Byzantino. Emfim,
logicamente, se o arco de circumferencia predomina
na parte principal do edificio, a harmonia do estylo
indica-o para os outros elementos, portas, janelas e
arcos, assim tambem traçados no Estylo Byzantino.
Os architectos latinos, acceitando a ordenação
classica,
preoccuparam-se pouco com os ornamentos externos;
pelo contrario, a interior das basilicas deparára-se-lhes
rica e era-lhes facilitada pelos excellentes
[126]
materiaes e productos artisticos, com que topavam por
toda a parte, restos conservados dos precedentes estylos.
Os architectos romanicos trabalhavam em mais
perfeita liberdade de acção; mas tinham poucos
thesouros
artisticos para ornamentação das egrejas.
Além
d'isso, a solidez dos edificios e a sua longa
duração
provavel convidavam-n'os a estudar e a realisar
combinações
estheticas, que os embellezassem no exterior.
A extensão do uso dos sinos e a
invenção dos relogios
exigiram a construcção de elevadas torres, que
muitas vezes tambem, como já vimos, satisfaziam a
necessidade de defeza, ultimo baluarte da communa,
ou castello do convento. Era, pois, natural que essas
torres symetricas, por exigencias estheticas e do clima
ornadas de agulhas ou de elevados corucheus, se tornassem
elementos principaes das fachadas mais ricas
e grandiosas.
Por esta fórma, muito logicamente, se deduzem os
caracteres fundamentaes do Estylo Romanico, devidos
uns a influencias dos anteriores estylos, outros a necessidades
de construcção, a novos usos e ritos e
até á
acção do clima, que em certas circumstancias
influe
sobre a escolha e emprego dos materiaes e por elles na
formação dos estylos.
Expostas estas idéas geraes, que a nosso ver ligam
as condições do
meio social dos seculos XI e XII,
durante
os quaes o espirito humano manifestou determinada
phase, com os caracteres do estylo que é a sua
feição especial nesse periodo da
evolução da arte, desçamos
a explanações indispensaveis para melhor
distinguir
[127]
e apreciar o Estylo Romanico secundario, que
reinou no seculo XII.
É bom notar que a classificação dos
estylos por seculos
é um pouco arbitraria; querendo, apenas, significar
que dentro d'este espaço foi construida a maioria
dos principaes monumentos de determinado estylo; o
que não quer dizer que alguns o não fossem antes
ou
depois d'esse limite. Além d'isso, entre as differentes
nações, que usaram do mesmo estylo,
não se manifesta
elle rigorosamente nos mesmos periodos, nem até offerece
perfeita unidade e similhança de caracteres, que,
pelo menos nos secundarios, apresentam differenças
sensiveis provenientes de varias causas, entre as quaes
o clima, os materiaes de construcção e as
tradições
locaes se devem considerar importantes.
As disposições anteriores das egrejas romanicas
offerecem
muitas variantes. Algumas, talvez as mais
numerosas, seguem o typo tradicional das basilicas;
tres naves, cortadas pelo transepto, a do centro mais
ampla e prolongada pelo côro, que n'este estylo se
alongou mais, constituido por um corpo recto terminado
pela abside. Como vimos, no primitivo Estylo
Latino a abside formava o
presbyterio, depois seguiam-se
o altar e o côro, dispostos já na nave central;
nas egrejas romanicas estes tres elementos foram
introduzidos na abside alongada por paredes rectilineas,
espaço a que o uso deu o nome geral de côro.
Proveiu este engrandecimento de necessidades do culto,
da melhor separação do sanctuario em
relação ao templo
e do uso generalisado dos orgãos.
[128]
N'esta fórma, algumas vezes as naves lateraes
avançam,
ladeando o côro até á curva da abside,
outras
vezes circumdam-n'a por completo, constituindo a
charola,
ou deambulatorio, para o qual nos ultimos tempos
se abriram capellas. Infelizmente, Portugal não possue
exemplar algum completo e rico d'este estylo. Os
que existem são pequenos, pobres e estragados por
successivas restaurações antigas que lhes
deturpam as
fórmas e a ornamentação: mas a
Sé de Lisboa, a que
nos referiremos em capitulo especial, fornece exemplo
das disposições particulares do Estylo Romanico.
N'este plano, o mais habitual, desenha-se com nitidez
a cruz latina, formada pela nave central e pelo
côro, cortados pelo transepto. Em algumas egrejas
nota-se o facto singular do eixo do côro, em vez de
prolongar o da nave central, inclinar-se para a direita
do observador. Esta anomalia foi attribuida a defeitos
de construcção descuidada, vulgar nos edificios
romanicos
menos importantes, ou ao symbolismo da inclinação
da cabeça de Jesus Christo, quando expirou
sobre a cruz. A segunda hypothese parece-nos mais
provavel.
Outras egrejas offerecem a disposição octogonal,
imitando n'este caso as byzantinas de S. Vital de Ravenna
e do Santo Sepulcro de Jerusalem, que serviu
de modelo, como era natural, a muitos templos, até
com identica invocação. Existe n'este genero uma
egreja, que nos parece constituir excepção muito
singular,
e onde em cada lado do octogono interior ha uma
abside: a de S. Miguel de Entraigues, em França.
[129]
Emfim, a planta circular, se não abunda, tem exemplos
n'este estylo.
Em geral, a porta ou as tres portas de entrada defrontam
com o côro; mas egrejas existem de duas
absides ou córos fronteiros, isto é, tendo dois
transeptos
nos extremos da nave central; n'este caso as entradas
são lateraes.
A cobertura empregada foi a abobada, principalmente
a partir dos fins do seculo XI. Em data anterior
nas egrejas subsistiram em geral as coberturas de
madeira; este facto é muito provavel ter-se dado nas
mais pobres e em regiões ricas de florestas. Assim,
pareceu-nos que parte das egrejas das nossas
povoações
do norte foram do Estylo Romanico secundario
ou do periodo de transição, restauradas no tempo
ogival
e no da renascença manuelina, de que teem em geral
muitissimos elementos; ora, estas egrejas tiveram sempre,
dada a espessura das paredes e das arcadas das
naves, cobertura de madeira. Talvez possam dar d'isto
exemplo duas pequenas egrejas excellentes, a de Caminha
e a de Villa do Conde. Fazemos esta affirmação
com reservas, porque entre nós as
restaurações,
em regra, foram tão más e radicaes, que
mascararam a
feição anterior dos edificios; mas que tenham
sido do
Estylo Romanico secundario ou do terciario, a sua cobertura
foi sempre de madeira.
A fórma das abobadas póde reduzir-se a dois
typos:
o de volta inteira, ou o que resulta da
penetração reciproca
de cylindros ou cones de base circular, constituindo
as abobadas de arestas, ou as de arco de claustro.
[130]
Estas fórmas são fundamentaes nas
construcções do
segundo periodo romanico, porque a ogiva, quando
apparece nos começos do seculo XII, caracterisa o terceiro
periodo, o de transição, como veremos em breve.
Tambem o Estylo Romanico tem as cryptas do latino,
maiores ou menores e em geral debaixo do côro,
nas egrejas mais importantes.
Ainda as torres caracterisam este estylo. São relativamente
pouco elevadas, massiças, ornadas de
arcaturas,
ou de arcos de volta inteira, e cobertas por
agulhas de pequena altura. Umas vezes ficam separadas
do corpo do edificio, como é de uso nos de Italia,
outras vezes, fazendo parte d'este corpo, ou ornamentando-lhe
a fachada. Algumas egrejas teem mais de
uma torre, dispostas duas symetricas na fachada e
uma outra sobre o cruzeiro, interiormente aberta, formando
uma especie de zimborio, ou fechada pela propria
abobada d'este cruzeiro. A Sé de Lisboa offereceu
a primeira disposição. A terceira torre,
caída pelo
terramoto de 1755 e de que existem evidentes vestigios,
denominava-se
torre sineira, o que
explica os
seus fins especiaes, a que foram depois applicadas as
grandes torres da fachada.
Um elemento, que nos parece constituir um dos caracteres
importantes do estylo romanico, é a existencia
de galerias, mais ou menos largas, sobre as arcadas
que dividem a nave central das lateraes. Estas galerias,
denominadas
triforios, de pequenos
arcos simples
ou trilobados, são verdadeiras reminiscencias dos porticos
superiores das basilicas, onde as viuvas e as virgens
[131]
assistiam isoladas ás ceremonias religiosas. O
exemplo encontra-se na Sé de Lisboa, guarnecida por
um triforio nas paredes da nave central e nas do transepto.
A construcção moderna tem columnellos com
galba e capiteis de dimensões classicas; mas nas sondagens
feitas foram encontradas as verdadeiras dimensões
do triforio primitivo e o seu typo accentuadamente
romanico. Tambem a Sé de Coimbra tem triforio;
n'esta egreja, porém, a galeria é muito larga e
de fórma
especial.
As portas e as janelas são de volta inteira, onde,
ás vezes, os
arcos
geminados byzantinos demonstram o
parentesco proximo dos dois estylos. Os supportes, os
pilares, as columnas e os capiteis, fugindo a todas as
proporções classicas, manifestam-se rudes e
fortes. Os
grandes pilares das naves, até quando já tendem a
tornar-se polystylos, são grossos e curtos. A
expressão
de força sobrepuja n'elles a de elegancia, dando-lhes,
aliás, um aspecto grandioso; umas vezes, apresentam-se
quadrados e lisos, ou com columnelos nichados
nos angulos; outras vezes, cylindricos ou polygonaes,
revestidos de meias columnas. Esta disposição
prepara
os pilares polystilos, isto é, ornados de finos e elevados
columnelos, do Estylo Ogival.
Os capiteis apresentam variadissima ornamentação,
em geral differente em todos elles, ainda que pertençam
ao mesmo vão. Este facto caracteristico será
explicado,
quando tratarmos do Estylo Ogival. Offerecem
a fórma de pyramides quadradas ou conicas,
truncadas e invertidas, coroados por um simples abaco.
[132]
As columnas desobedecem a todos os modulos classicos,
não teem galba, apresentam-se cylindricas, em
geral, ou ligeiramente conicas.
As arcadas de volta inteira são formadas de varias
molduras, as mais ricas ornadas de desenhos, dos
quaes já encontrámos alguns no Estylo Byzantino.
No
interior e no exterior dos edificios romanicos, as
arcaturas,
simples ou entrelaçadas, constituem ornamentos
muito vulgares e elegantes das paredes, sobre as quaes
teem maior ou menor saliencia.
O conjunto exterior dos edificios romanicos produz
no espirito uma impressão caracteristica de força
e severidade, embora tambem, ás vezes, de elegancia
e riqueza. Os coroamentos elevados, em alguns
edificios revestidos de ameias, sobre cornijas repousando
em
macheculis, as torres
massiças e quadradas,
os muros muito espessos revestidos de botareos pouco
salientes, por entre os quaes se abrem as janelas, dão
a estes grandes edificios um aspecto de
fortificação,
de que, em verdade, serviram muitas vezes nos tempos
medievaes.
Ao vel-os, melancholicos e sombrios, parece que
a sua grande alma de pedra sente ainda as impressões
dolorosas das desgraças profundas e dos horriveis
flagellos, atravessados pela Humanidade durante
essa triste quadra da historia. O seu caracter
religioso é para muitos mais completo e elevado do
que o dos edificios ogivaes; por isso, hoje o Estylo
Romanico começa a ser considerado mais verdadeira
expressão da arte christã do que o ogival.
Citamos
[133]
a opinião por curiosidade, embora com ella não
estejamos
muito de accordo.
As fachadas romanicas variam muito, conforme a
inspiração dos architectos, para que possam ser
descriptas
em schema desenvolvido; mas n'estas fachadas
os portaes de entrada, em geral um ou tres, offerecem
grande importancia. São formados de archivoltas
de muitas molduras mais ou menos ornamentadas, repousando
sobre capiteis e columnas da natureza anteriormente
descripta. No fundo d'estes portaes de
arcadas embocetadas e decrescentes, abre-se o vão
da porta, offerecendo em geral um tympano de pedra,
ora com baixos relevos symbolicos, ora liso ou formado
de pequenos parallelipipedos. D'esta ultima
disposição
existe entre nós exemplo na antiga porta lateral
da Sé de Lisboa, hoje restaurada. Algumas vezes
o tympano era de pintura polychromica sobre fundo
de ouro, systema que constitue, sem duvida, uma
imitação
pobre dos ricos tympanos byzantinos de mosaico,
como se vêem em S. Marcos de Veneza. Por
cima dos portaes, janelas da mesma disposição
architectonica
dão luz ás naves; a central é a origem
da
futura rosacea do Estylo Ogival.
O
narthex, ou galilé, dos
primitivos estylos conserva-se
nas condições expostas n'outro ponto d'esta
memoria.
A ornamentação geral é variada e
caracteristica
n'este estylo. Folhagens caprichosas entre phantasticos
corvos e cabeças de expressões grotescas,
combinações
geometricas de galões recamados de perolas,
[134]
zig-zags e arabescos impossiveis de definir constituem
reminiscencias do Estylo Byzantino e são precursores
do Estylo Ogival. Na porta lateral da Sé de Lisboa foram
descobertos e restaurados dois capiteis do lado esquerdo,
que nos parece envolverem uma excepção rarissima
no Estylo Romanico. Na base dos capiteis, em cada
um, duas pombas bem trabalhadas parece dão bicadas
em cachos pendentes da folhagem. São dos mais
bellos capiteis que temos visto. A pintura polychromica
apresenta-se, ás vezes, nos capiteis dourados, de que
existem traços evidentes na Sé de Lisboa, ou
pintados,
assim como os fustes das columnas, as molduras das
archivoltas e certos pontos das paredes.
É evidente que a abundancia e
perfeição dos ornamentos
dependem da edade do estylo, mais rudes e
simples no primitivo, mais perfeitos e variados quando
se approxima o Estylo Ogival. Assim, quasi todos os
elementos principaes d'este futuro estylo se encontram,
mais ou menos esboçados no romanico.
Seria quasi impossivel comprehender bem os dois
estylos sem os comparar, estudando-os separadamente.
No Estylo Romanico, o caracter de todos os elementos
é a força e a severidade: no Ogival a elegancia e
a
suavidade, que mascaram a força sem a diminuir, a
não ser na decadencia d'este ultimo.
Eis em rapidos traços os caracteres mais salientes
e geraes do Estylo Romanico secundario. Em verdade,
não são muito accentuados, exceptuando a abobada,
por isso, o estylo talvez seja definido, ou pelo menos
completada a definição, pelos caracteres
ornamentaes,
[135]
aliás, tambem sujeitos ás
condições particulares e aos
materiaes empregados nos differentes paizes. Assim,
no sul da França, como na Italia, onde reinou mais
accentuadamente o Estylo Byzantino, os edificios romanicos
teem qualidades um pouco differentes, embora
sempre subordinadas ás regras geraes e ás
feições do
estylo. Os do sul são mais leves e cuidados do que os do
norte; na Allemanha e na Inglaterra manifestam-se
mais pesados e de ornamentação mais barbara e
primitiva.
Em qualquer caso, a grande influencia do Estylo
Byzantino, na constituição da architectura dos
seculos XI e XII, manifesta-se incontestavel.
O Estylo Romanico terciario—o de
transição—apresenta
os mesmos caracteres do secundario; comtudo
um elemento não empregado no periodo anterior,
o
arco em ogiva, produz logicamente
importantes modificações
na disposição geral dos edificios. Este arco
deve ter sido conhecido em todas as nações da
antiguidade,
que tiveram grandes constructores e edificios
importantes. Se o não empregaram em grande escala,
foi decerto porque a natureza dos respectivos estylos,
com tendencias horisontaes nas linhas mais apparentes,
não se adequava estheticamente ás
disposições
inversas do arco ogival. As investigações
scientificas
vão demonstrando este facto e o futuro nos dirá o
que
se póde ainda descobrir.
O arco em ogiva tem propriedades mechanicas tão
evidentes em si, tão faceis de provar pelo simples
raciocinio
e pela mais modesta experiencia, que seria
quasi uma offensa á capacidade, aliás
extraordinaria,
[136]
de alguns architectos classicos suppôr que não
lhes
foram conhecidas e portanto que não applicaram o
arco ogival, quando as condições o exigiram.
Todos
sabem, com effeito, os extremos cuidados de
construcção,
na perspectiva e na disposição dos materiaes, que
os architectos classicos empregaram no Parthenon:
sciencia tão profunda, demonstrada pelo moderno estudo
do monumento, como depois não houve exemplo,
e em que foram até attendidos os erros visuaes nas
grandes linhas horisontaes e perpendiculares. Negar
a estes e a outros famosos architectos perfeito conhecimento
das vantagens da applicação da ogiva seria
um indiscutivel absurdo.
No arco em ogiva as componentes horisontaes das
pressões, exercidas sobre os pilares, são menores
do
que no arco de volta inteira e decrescem successivamente
com a maior altura da ogiva. Este theorema é
tão facil que a mechanica de todos os tempos o devia
ter demonstrado. As rasões pelas quaes começou a
ser
usado no segundo periodo romanico e depois teve geral
emprego no Estylo Ogival, a que deu o nome, eis o que
nos cumpre investigar como inducção interessante.
É muito provavel que a solidez e a economia das
construcções fossem a rasão suprema da
sua adopção,
sem, todavia, deixarmos de considerar as
condições estheticas
de edificios, como os romanicos, que iam tomando
fórmas elevadas e ponteagudas, repellindo por
sua natureza as grandes linhas horisontaes e as curvas
continuas. As qualidades estaticas do arco em ogiva
prestavam-se a diminuir a espessura das paredes, isto
[137]
é, davam aos edificios egual solidez real e tornavam-n'os
mais economicos, elegantes e ideaes, se nos
permittem a palavra; correspondendo, assim, ao espirito
essencialmente mystico e religioso que o Christianismo
havia desenvolvido na Edade-Media. A ogiva
apparece, pois, como elemento logico de um estylo e
expressão esthetica do estado especial do espirito humano
no periodo historico, que procurámos definir
n'outros capitulos d'este livro.
Cumpre-nos, todavia, observar que a ogiva, só por
si, não caracterisa o terceiro periodo romanico. Os
edificios tomam, sem duvida, um aspecto mais leve;
mas a ornamentação tambem offerece
transformações
importantes. O trabalho é mais perfeito. Novo systema
de molduras
substitue em
parte as primitivas, os ornamentos
mais pesados apparecem rejuvescidos, outros
novos são creados; emfim, a guarnição
vegetal, precursora
do ogival, desenvolve-se n'este periodo.
Na esculptura e na pintura persiste a fórma ascetica,
delgada e alta, de roupagens de pregas parallelas
e apertadas, da arte byzantina. As physionomias
são graves e serenas, traduzindo o extasi mystico,
de quem abandona o corpo esqueletico e macerado
n'este mundo e deixa voar a alma livre para a celeste
beatitude do espirito; verdadeiras fórmas hieraticas
e tradicionaes, e porque o são, seccas e sem movimento.
Uma decoração magnifica começa a
manifestar
grande desenvolvimento no ultimo periodo do Estylo
Romanico: os
vitraes, as
vidraças coloridas das janelas.
[138]
O uso dos vidros nas egrejas parece haver começado
no seculo X. É muito provavel que os vitraes
ordinarios substituissem longo tempo antes as laminas
de pedra rendilhada, que encontrámos no Estylo Latino.
Que esses vitraes fossem depois superficialmente
pintados, tambem é de crer; mas o verdadeiro vidro
polychromico, com a côr fundida e incrustada na
massa, não apparece senão no seculo XII, por modo
incontestavel e com desenvolvida applicação, de
que
existem ainda alguns exemplares.
Estes vitraes primitivos offerecem caracteres definidos,
pelos quaes é relativamente facil conhecel-os. O
tecido de chumbo, que sustenta e encastra as pequenas
placas de vidro, tem malhas muito miudas, visto
que n'esse tempo cada côr differente correspondia a
uma só malha, sendo divididas em muitas as côres
de
grande superficie, por necessidade de construcção
da
vidraça. O fundo do quadro offerece, em geral, um
mosaico azul. Na parte superior do vitral desenha-se,
conforme o periodo, a ogiva ou o arco inteiro, sobrepujando
pequenos quadros de scenas do Antigo e
Novo Testamento ou de lendas christãs, onde as figuras,
bem como alguns ornamentos, manifestam claramente
a influencia da arte byzantina nas disposições,
no desenho e nas roupagens. Em geral, a côr dos objectos
representados não corresponde á natural, sendo
as côres escolhidas mais no proposito decorativo do
que no da expressão da realidade, que entre certos
limites lhes deu a natureza. Esta
Estes vitraes primitivos offerecem caracteres definidos,
pelos quaes é relativamente facil conhecel-os. O
tecido de chumbo, que sustenta e encastra as pequenas
placas de vidro, tem malhas muito miudas, visto
que n'esse tempo cada côr differente correspondia a
uma só malha, sendo divididas em muitas as côres
de
grande superficie, por necessidade de construcção
da
vidraça. O fundo do quadro offerece, em geral, um
mosaico azul. Na parte superior do vitral desenha-se.
conforme o periodo, a ogiva ou o arco inteiro, sobrepujando
pequenos quadros de scenas do Antigo e
Novo Testamento ou de lendas christãs, onde as figuras,
bem como alguns ornamentos, manifestam claramente
a influencia da arte byzantina nas disposições,
no desenho e nas roupagens. Em geral, a côr dos objectos
representados não corresponde á natural, sendo
as côres escolhidas mais no proposito decorativo do
que no da expressão da realidade, que entre certos
limites lhes deu a natureza. Esta admiravel
ornamentação,
cujo effeito é surprehendente, attinge a maior
perfeição
[139]
no Estylo Ogival; para elle, pois,
reservamos
mais algumas considerações.
Julgamos haver dito o sufficiente para caracterisar
o Estylo Romanico nos dois periodos, o secundario e
terciario. Accrescentaremos, apenas, que a
classificação
dos edificios, principalmente nas epocas de
transição
de estylos limitrophes, é assumpto delicado, que
exige sobretudo muita experiencia e observação de
exemplares bem definidos. As idéas geraes não
bastam,
nem é sufficiente o estudo dos livros. É preciso
pela
experiencia ter apurado a critica e a sciencia, possuir
um senso esthetico educado; uma cousa correspondente
a essa qualidade singular que teem os grandes
medicos de diagnosticar a doença, quasi adivinhando-a
pela simples observação do enfermo.
Além disso, é indispensavel conhecer a historia
do
monumento, se elle a tem escripta, aliás refazel-a com
successivas investigações, estudando pedra a
pedra,
elemento a elemento, porque nos periodos de
transição,
principalmente, tudo se sobrepõe e combina por
tal fórma que o enygma parece sorrir dos nossos
esforços
em cada canto dos monumentos.
Entre nós, citaremos um exemplo: ainda hoje vacillamos
sobre se a egreja de Alcobaça deve ser considerada
romanica do terceiro periodo, ou já ogival.
Nas arcadas do côro, mascarada por bellos intercolunmios
jonicos manifesta-se o romanico, talvez do segundo
periodo, depois, no corpo da egreja, as ogivas
dos arcos e das abobadas casam-se com pilares ainda
de caracter romanico.
[140]
Restaurações successivas, feitas em largos
periodos,
desnorteiam o observador. Exceptuando, pois, a fachada,
do feio e pesado Estylo da Renascença dos
principios ou meiados do seculo XVII, parece-nos ser
esta egreja um soffrivel exemplar do romanico de
transição.
Discutiremos este assumpto, interessante sob o
aspecto da classificação architectonica dos
nossos monumentos,
em um dos seguintes capitulos d'este livro.
CAPITULO
TERCEIRO
A SÉ PATRIARCHAL DE LISBOA E A SUA
RESTAURAÇÃO
Não pretendemos fazer uma monographia da Sé de
Lisboa; nem o edificio tem valor architectonico que
mereça investigações demoradas, nem
ácerca d'elle
existem documentos ou dados provaveis, que possam
facilitar similhante trabalho. A carencia de elementos
historicos, regra pelo menos nos monumentos nacionaes
primitivos, não soffre excepção na
antiga cathedral
metropolitana, cujos archivos foram em grande
parte destruidos pelo incendio, que seguiu o terremoto
de 1755.
Assim, citamos esta egreja como simples exemplo
nacional do Estylo Romanico; porque foi, sem duvida,
o melhor dos edificios d'este estylo existentes em
Portugal. Effectivamente, entre nós devem apenas
considerar-se
de relativa importancia, como monumentos
romanicos, a Sé de Lisboa, a Sé Velha de Coimbra
e
a da Guarda, porque, se algumas outras egrejas começaram
por ser d'este estylo, successivas reconstrucções
[142]
e restaurações no
periodo ogival e no da renascença
mascararam-lhe quasi por completo as feições.
Alem d'isso, são estes templos os de maiores
dimensões,
e excepcionalmente podemos encontrar pelo paiz alem
d'elles uma ou outra pequena egreja ou capella do
Estylo Romanico, mais ou menos puro.
Ainda assim, dos tres modestos exemplares romanicos,
que possuimos, dois, a Sé de Lisboa e a da
Guarda, acham-se mais ou menos profundamente alterados
por obras realisadas em differentes seculos, algumas
assás barbaras. Apenas, o terceiro, a Sé Velha
de Coimbra, teve nos ultimos annos conscienciosa
restauração, que a repoz quanto foi possivel no
estado
primitivo. Pensou-se, tambem, ultimamente na Sé de
Lisboa e n'este sentido alguma cousa se tem feito;
mas tão profunda é a ruina d'este templo e do
respectivo
claustro, que a estas obras talvez melhor se deverá
chamar dispendiosa reconstrucção, do que simples
e economica restauração.
Apesar do exposto, faremos rapido bosquejo historico
ácerca da Sé Patriarchal de Lisboa; templo que,
embora nunca fosse grandioso de dimensões ou rico
e cuidado de estylo, deve merecer attentos trabalhos
de reconstrucção e de
restauração, visto que representa
a primeira egreja do paiz na ordem da hierarchia
ecclesiastica e é a cathedral de uma importante
cidade da Europa.
Sobre o solo de Lisboa, atravez dos longos seculos
da sua existencia historica, têem-se succedido muitas
invasões de povos de differentes raças e
religiões. Sem
[143]
falarmos, pois, em celtas, phenicios e carthaginezes,
que mais ou menos se perdem na noute mythica dos
tempos, occuparam-n'a os romanos em primeiro logar,
vencidos depois pelos barbaros, alanos, suevos e visigodos,
que a seu turno foram dominados pelos arabes,
sendo, emfim, estes ultimos expulsos de Lisboa por
D. Affonso Henriques, primeiro rei de Portugal. É
evidente que n'esta longa serie de seculos, Lisboa
atravessou vicissitudes e condições diversas. Foi
pagã
e polytheista com os romanos, christã ariana com os
visigodos, professou o Islamismo com os arabes e o
Christianismo orthodoxo, quando assumiu a posição
de metropole do pequeno reino de Portugal.
Apesar d'estes estados diversos e duradouros, Lisboa
nunca foi uma cidade importante. Os romanos
não eram navegadores e o seu commercio, quasi exclusivamente
terrestre e oriental, não podia valorisar
o excellente estuario do Tejo. Os barbaros constituiam
nações rudes ainda, essencialmente guerreiras,
embora já penetradas pela civilisação
romana e pelos
ideaes christãos. Os arabes, finalmente, mais puros e
civilisados, haviam-se concentrado no sul da Hespanha,
na Andaluzia e em volta de Cordova, a capital do
grande Khalifado do Occidente, abandonando as regiões
mais occidentaes da peninsula iberica a raças e
tribus mais guerreiras e illetradas.
Assim se explica a pobreza quasi absoluta de monumentos
arabes na zona de Portugal, que foi habitada
por esta raça, emquanto a Andaluzia está cheia
de ricas construcções do Estylo do Khalifado,
algumas
[144]
ainda assás completas, como a mesquita de Cordova,
o Alcaçar de Sevilha e o Alhambra de Granada, sem falarmos
de edificios de menor importancia e de trechos
e vestigios, que attestam o grau da elevada
civilisação
dos arabes, que povoaram aquella parte da Hespanha.
A importancia da cidade de Lisboa nos periodos
romano, visigodo e arabe foi sempre secundaria. A
sua transformação profunda em verdadeiro emporio
commercial proveiu de dois factos posteriores na Historia
da Humanidade: a irradiação, para outros pontos
do globo, da civilisação dos povos e das
nações, dispostas
ao longo das costas do Mediterraneo, onde ella
se conservou durante os tempos classicos; e a descoberta
do caminho maritimo da India e dos vastos continentes
da America, que annullou os emporios de
Marselha, Genova e Veneza, deslocando os antigos
caminhos commerciaes. A grandeza um pouco ephemera
de Lisboa manifesta-se nos ultimos quarteis do
seculo XV e nos dois primeiros do seculo XVI.
Não admira, pois, que a capital portuguesa fosse
sempre tão pobre de monumentos primitivos; quando,
alem d'isso, a sua precaria situação na zona dos
terremotos
não tendesse a destruir os poucos, que o trabalho
de longos seculos penosamente accumulou na
sua antiga área.
Por muito secundaria que fosse, todavia, a importancia
de Lisboa, romanos, godos e arabes n'ella edificaram
templos, de que hoje não restam os menores
vestigios, a não ser em vagas
tradições, colhidas em
[145]
antigos escriptos. Assim, a antiga Sé de Lisboa teria
sido edificada nas proximidades, se não no proprio local,
de um templo classico, substituido depois por um
templo godo, a seu turno transformado em mesquita
no tempo do dominio arabe. Esta tradição
é mais do
que plausivel, se attendermos á tendencia das
religiões
victoriosas em se apossarem dos templos das religiões
vencidas, facto de que existem numerosos e incontestaveis
exemplos em differentes epocas e em
diversas nações. A este ponto interessante da
Historia
da Arte e das Religiões nos referimos n'outro capitulo
d'este livro.
A tradição, que affiança haver sido a
actual Sé uma
antiga mesquita arabe, é evidentemente absurda.
Não
só o estylo do templo é accentuadamente romanico;
mas, se elle houvesse sido construido nos curtos periodos,
durante os quaes os christãos occuparam Lisboa
depois da conquista dos arabes, estes, voltando a dominar
na cidade, teriam apropriado a egreja ao seu
culto, caracterisando-a com construcções e
ornamentos
especiaes, de que não se encontram os menores
vestigios.
Seria, porém, o actual edificio da Sé de Lisboa
levantado no local de uma mesquita arabe?
Esta tradição parece-nos muito fundada;
não suppomos,
todavia, que a construcção arabe podesse ser de
grande importancia. As mesquitas de Lisboa não deviam
soffrer comparação com as de Toledo, Cordova,
Granada e Sevilha, centros da civilisação arabe.
A
Cathedral de Sevilha, por exemplo, repousa sobre o
[146]
local de uma grandiosa mesquita, da qual se conservam
ainda hoje, junto á mesma cathedral, o espaçoso
pateo, que precedia as mais consideraveis mesquitas,
e a magnifica torre, um primor do Estylo do Khalifado,
bem conhecida pelo nome de Giralda.
Seja qual fôr o valor d'estas
presumpções, a melhor
opinião, fundada em argumentos de ordem historica
e architectonica, consiste, segundo pensamos, em
que o edificio actual se deve attribuir a D. Affonso
Henriques e foi levado a effeito logo depois da conquista
de Lisboa aos arabes, em outubro de 1147.
Devia ser rapida a construcção. A simplicidade
architectonica
e a pobreza de ornamentação, que manifesta
a parte primitiva do edificio, não exigiram, de
certo, planos muito estudados e completos, nem a
propria construcção foi muito cuidada quer na
escolha,
quer na disposição dos materiaes.
Forçoso é
confessal-o, embora destôe um pouco dos louvores
hyperbolicos de alguns escriptores nacionaes: o edificio
da Sé de Lisboa é de acanhadas
proporções,
de muito pobre estylo e de construcção bastante
ordinaria.
Sendo muito provavel que as obras começassem
logo após a conquista, não é facil
determinar a respectiva
duração. O conego Vieira da Silva, em memoria
annotada por D. Francisco de S. Luiz, Cardeal
Patriarcha em meiados do seculo XIX, deduz, de varios
documentos e de investigações proprias, que a
primeira constituição do Cabido da Sé
de Lisboa data do anno de 1150.
[147]
Estaria o primitivo templo acabado n'esse anno, ou
pelo menos achar-se-ia já muito adeantado e proximo
do seu fim?
Não custa a acredital-o. Em tres annos não seria
grande difficuldade elevar edificio d'esta natureza;
principalmente se tivermos em attenção que a
silharia
n'elle empregada foi, sem duvida, explorada em
pedreiras muito proximas das respectivas obras.
Uma observação interessante devemos fazer n'esta
altura: o primeiro bispo de Lisboa, capital de Portugal,
foi o inglez Gilberto. Ora, em Inglaterra floresceu
o Estylo Romanico, a que pertence a parte primitiva
da Sé Patriarchal.
Depois da sua fundação, o primitivo edificio
soffreu
muitas reconstrucções,
restaurações e alargamentos,
dos quaes alguns motivados pelas necessidades do
culto e outros provenientes da falta de alojamentos
internos para o numeroso pessoal, que exigem a guarda
e os serviços religiosos de uma cathedral. As barbaridades
artisticas e de construcção, que por estas
razões
se praticaram, seriam inacreditaveis, se grande parte
d'ellas não fossem directamente observadas pelo auctor
d'este livro e algumas não existissem ainda,
attestando o mau gosto, a ignorancia e o desprezo
pelos monumentos e pelas tradições, que
ás vezes caracterisa
o espirito nacional desde os tempos mais
remotos até aos nossos dias.
Seguindo a planta da Sé no seu estado actual, isto
é, na data em que escrevemos este livro, é
fácil formar
clara idéa do plano primitivo da velha egreja de
[148]
D. Affonso Henriques e das principaes
transformações,
que ella soffreu durante sete seculos e meio; por
isso, chamamos a attenção do leitor para a
respectiva
planta, observando-lhe que os seus differentes tons
correspondem a periodos distinctos da
construcção.
A primitiva egreja foi de Estylo Romanico do melhor
periodo—o secundario—que em geral floresceu
no occidente e no centro da Europa no seculo XI.
Quando se levantava a Sé de Lisboa, em meiados do
seculo XII, já o Estylo Romanico em geral attingira o
periodo terciario, preparando a transição para o
Estylo
Ogival. Este relativo atrazo não deve, comtudo,
causar surpreza; póde considerar-se quasi regra geral
na evolução da arte portuguesa em
relação á das restantes
nações centraes da Europa.
Apesar de coberta de horriveis estuques, que a mascaram
ridiculamente de Estylo Classico, e das
reconstrucções
ogivaes posteriores, não encontrámos durante
o estudo minucioso, que temos feito d'esta
construcção,
um só elemento, que possa contrariar a sua
classificação
no Estylo Romanico secundario.
A planta primitiva era elegante. A nave central, o
transepto e capella-mór formavam uma cruz latina.
As naves lateraes avançavam, envolvendo a capella
mór, isto é, formavam
deambulatorio, ou
charola. Não é
muito frequente esta disposição no Estylo
Romanico
secundario; mas, evidentemente, a disposição da
planta
exige-a como condição indispensavel e de
elegancia.
Alem d'isso, se não é possivel demonstrar
directamente
a existencia da charola romanica na Sé de Lisboa, na
[149]
egreja de Alcobaça, sua coéva, a existencia
prova-se
pelas fortes columnas e arcadas da capella-mór, que
abriam, sem a menor duvida, para uma primitiva
charola romanica. Não nos parece nada provavel que
a charola romanica da Sé tivesse capellas; como
não
as tinha talvez tambem a primitiva de Alcobaça.
N'uma e n'outra egreja, estas capellas provéem de
restaurações
ou reconstrucções ogivaes.
Planta da SÉ DE LISBOA—Estado actual
Occupando os espaços onde hoje estão as capellas
do Santissimo e a de S. Vicente, que abrem para os
dois extremos do transepto, existiam provavelmente
a sacristia e o thesouro. A estes elementos se reduzia
a planta da Sé primitiva, porque o claustro e todos
os edificios annexos são de
construcção posterior.
Escusado será observar que a
supposição da existencia
de cinco naves na antiga cathedral resulta do erro
grosseiro de tomar certos edificios annexos, de que
falaremos mais tarde, por naves extremas, hypothese
que a simples inspecção da planta não
admittiria com
a menor probabilidade, quando a existencia das primitivas
janelas e da porta, hoje restaurada, da fachada
lateral-norte não fosse indiscutivel prova de que a
egreja nunca teve mais de tres naves.
A fachada primitiva era formada, como a actual,
por duas torres quadradas, massiças e revestidas de
fortes botareos. Entre estas torres corria a parte da
fachada, correspondente ao côro. A
disposição das linhas
geraes não foi, pois, alterada pelas
restaurações,
que aliás estragaram o estylo; com effeito, as torres
foram, sem duvida, coroadas de agulhas e as horriveis
[150]
janelas quadradas n'ellas abertas substituiram, não se
póde bem avaliar por que razões, as bellas
janelas geminadas
romanicas, que ultimamente foram restauradas
na torre-norte. As agulhas ou corucheus primitivos,
em nossa opinião, não tiveram a detestavel
fórma,
com que apparecem em gravuras e azulejos posteriores
ao seculo XV; naturalmente destruidas por algum
terramoto—talvez o de 1384—foram restauradas
sob a fórma de elevadas torres quadradas, de muito
menor superficie do que a das torres inferiores e cobertas
por telhados vulgares de quatro aguas!
A parte central da fachada, comprehendida entre
as duas torres, tambem não podia ser em nada parecida
com a existente. A rosacea devia existir, bem
como o grande arco, dando accesso ao portal da egreja;
mas toda esta parte actual é de
construcção posterior
e do frio e decadente Estylo da Renascença, no seu
peor periodo.
Tem-se attribuido as janelas quadradas da fachada,
a mesquinha rosacea e o bruto e feio arco do vestibulo
á grande restauração, depois do
terramoto de
1755; é um erro. Uma gravura franceza do tempo,
mostrando o estado das ruinas da egreja depois do
terramoto, prova que tudo isto existia antes d'esta
catastrophe. Assim, nós suppomos, com o maior fundamento,
que todos estes absurdos elementos, bem
como o ridiculo coroamento das torres são obras
coévas
da sacristia, encostada á fachada lateral-sul da
primitiva egreja, datando tudo dos começos do seculo
XVIII, talvez do reinado de D. João V.
Ruinas da SÉ de LISBOA—Terramoto de 1755
[151]
Alem d'isso, as torres soffreram restaurações em
differentes epocas; a do norte no periodo ogival e depois
na renascença manuelina; a do sul foi quasi toda
reconstruida depois do terremoto de 1755. N'uma e
n'outra, as grandes janelas primitivas foram transformadas
em sineiras, fim que primitivamente não tiveram,
porque os sinos occupavam uma elevada torre,
construida sobre o cruzeiro, que desabou tambem pelo
terremoto de 1755.
Fundados n'estes raciocinios, elaborámos o projeto
de restauração da fachada, que melhor nos parece
traduzir a physionomia especial do Estylo Romanico
da velha egreja. Embora essa fachada não seja grandiosa
em dimensões e rica em ornamentação,
julgamos
traduzir a severa solemnidade do estylo e o aspecto
de força, que nunca perderam as grandes e
massiças torres da Sé, apesar de torturadas por
absurdas
restaurações e coroadas por platibandas
ridiculas,
repousando sobre cornijas classicas.
O interior da primitiva egreja deduz-se da respectiva
planta, esclarecendo-a com algumas observações,
colhidas em investigações directas e sondagens
feitas no actual edificio.
A nave central, a capella mór e o transepto, offerecendo
quasi a mesma largura, eram cobertas por
abobada de volta inteira, nascendo a egual altura; nos
quatro arcos do cruzeiro repousava uma grande torre
quadrada no exterior, que se elevava muito para cima
d'estas abobadas. No interior da egreja esta torre tomava
a fórma de um octogono regular, firmando-se em
[152]
pendentes as paredes, correspondendo aos angulos
biselados do quadrado exterior. Em cada uma das
faces d'este octogono, rasgava-se uma janela muito
alta e estreita, que illuminava a cupula coberta por
abobada, gerada pela intersecção de quatro
semi-cylindros,
lançados entre as faces oppostas do prisma
octogonal, isto é, por uma abobada de oito arestas.
Esta abobada da cupula formava o primeiro pavimento
da torre, que para cima offerecia no exterior
duas ordens sobrepostas de sineiras, tres em cada
ordem e em cada face. Segundo a nossa opinião, esta
torre não tinha senão um andar, a que fazia
pavimento
a abobada da cupula. Não nos parece que a espessura
dos muros, ainda existentes na base, permittisse
a sobreposição de tres abobadas, sendo possivel
até que a cobertura da torre fosse de madeira revestida
de telhado.
Voltando ao interior da egreja, observaremos que
esta disposição particular da cupula octogonal
devia
ser de excellente effeito architectonico. As naves lateraes
tinham as abobadas muito menos elevadas do
que a da nave central; mas esta disposição
não permittiu
o rasgamento de janelas, que directamente illuminassem
esta nave, porque por cima das segundas
naves foram construidas galerias de egual largura,
cujas abobadas em pouco ficavam inferiores á da nave
central, não deixando espaço para rasgamento de
janelas
do
clerestory.
Nas paredes da nave central, por cima dos arcos
que dividiam as naves, e nas do transepto, corria ao
[153]
longo da egreja, com excepção da capella
mór, um
estreito triforio, em communicação directa com as
galerias,
que acabamos de apontar.
SÉ PATRIARCHAL DE
LISBOA—Restauração
da fachada principal
Todas estas disposições foram depois mais ou
menos
alteradas; assim, por exemplo, no triforio a
restauração
não só modificou as dimensões como
empregou
columnas com galba e capiteis classicos! As paredes
cobertas por estuques horriveis, fingindo marmore de
varias côres, subsistem na actual egreja.
Feixes de grossas columnas romanicas sustentavam
os arcos de volta inteira, que dividem as tres naves;
mas toda esta parte do edificio está
excellentemente
mascarada com columnas corynthias, tendo capiteis
de madeira, fustes de gêsso e bases de marmore verdadeiro
combinado com madeira, tudo, excepto os
marmores, imitando tambem marmore! Assim, é impossivel
fazer hoje clara idéa d'estes elementos, que o
maior idiotismo imaginavel de restauradores em cidade
civilisada conseguiu estragar, com grande perda
de tempo e dispendio de dinheiro!
A primitiva capella-mór era mais pequena do que
a actual de construcção mais moderna, como o
indica
o tom mais leve da planta; devia ser formada de grandes
arcos de volta inteira, repousando sobre fortes
columnas romanicas e abrindo na charola.
Apesar da tradição corrente e escripta, que
affirma
haver na Sé de Lisboa grandes subterraneos, não
deparámos
ainda com elles nas sondagens e investigações
realisadas. Até podemos quasi concluir que, pelo
menos, nem existe uma crypta importante; reduzindo-se
[154]
tudo a pequenas capellas sepulcraes subterraneas, ou
carneiros escavados muito depois da data da
construcção
do edificio
[2].
A illuminação do primitivo templo foi
assás perfeita.
A nave central recebia luz da rosacea da fachada
principal; as segundas naves de janelas e portas
abertas nas fachadas lateraes, que vamos descrever;
o transepto das rosaceas, rasgadas nos seus dois extremos,
não existindo, é claro, as feias janelas
rectangulares,
que actualmente por baixo d'estas rosaceas
[155]
abrem para o triforio; finalmente, a capella-mór era
illuminada pelas grandes janelas da charola e directamente
por outras superiores ao terraço da mesma
charola. Alem d'isso, a cupula central com as suas
oito janelas devia, tambem, contribuir para derramar
bastante claridade no interior do templo.
Foram todas estas aberturas fechadas por vitraes
coloridos?
Não nos parece. Na epoca da
construcção, os verdadeiros
vitraes coloridos eram muito raros, nem ella
foi rica e cuidada. Vê-se que D. Affonso Henriques
tinha mais fé religiosa do que dinheiro. No periodo do
maior emprego dos vitraes, nos seculos XIII, XIV e XV,
não é muito provavel que o gosto artistico
nacional
exigisse este complemento esthetico. Haja vista os martyrios,
que inflingiram ao pobre edificio romanico!
As fachadas lateraes eram muito simples. A partir
das torres, acima descriptas, a muralha, tendo a altura
das naves lateraes e das galerias sobrepostas a
estas naves, apresentava-se dividida por botareos pouco
salientes, em cujos intervallos se abriam seis janelas
todas de volta inteira; as mais baixas e proximas do
solo eram grandes, alargando para dentro; por cima
d'estas existiam outras muito menores, rasgadas quasi
em estreita fresta.
Umas e outras illuminavam as segundas naves. Em
terceira linha superior seis janelas abriam para as
galerias, sobrepostas ás naves lateraes. No terceiro
vão entre os botareos, a contar da torre, pelo menos
na fachada-norte, a janela inferior era substituida por
[156]
uma porta, que foi nos primitivos tempos resguardada
por um vasto alpendre, coberto por telhado. Esta
porta foi ultimamente restaurada. É muito provavel
que na fachada lateral-sul se désse egual
disposição;
mas essa porta, se existiu, foi inutilisada pela
construcção
da nova sacristia. Nos lados do transepto viam-se
apenas as janelas superiores.
Em face da fachada principal, e terminando em
frente das portas lateraes, devia existir um adro, cujos
tijolos podémos ainda ver em
escavações praticadas
junto do monumento.
Eis a descripção summaria da antiga Sé
de D. Affonso
Henriques. Não era de certo nem grande nem
rica; mas, indiscutivelmente, o seu todo devia manifestar
os caracteres do Estylo Romanico, a força e a
severidade, sem excluir certa elegancia, que ainda hoje
se póde notar nos elementos primitivos, embora suffocados
e esmagados por estuques, construcções absurdas,
umas já desapparecidas, outras que será
impossivel
eliminar.
Oxalá os restauradores de todos os tempos tivessem
procurado conservar ao edificio as feições
primitivas,
porque n'esse caso Lisboa teria um monumento
de Estylo Romanico secundario de certo valor.
Assim, nós, as gerações actuaes, temos
obrigação de
fazer desapparecer pelo menos as vergonhosas excrescencias,
restaurando a parte restauravel do edificio,
como adeante explicaremos.
Bem cedo começaram as construcções
annexas a prejudicar a esthetica do primitivo templo. Vamos
[157]
seguir as principaes por ordem de relativa antiguidade.
Logo pouco depois da egreja ter sido terminada,
foi
no rigor da palavra encostada no
angulo formado
pela fachada lateral-norte e pelo transepto a primeira
d'estas construcções, consistindo n'um recinto
coberto
por abobada de volta inteira, que inutilisou duas janelas
inferiores da nave. Este recinto, cujo terraço ficava
inferior ás mais elevadas janelas da fachada, abria para
o exterior em toda a dimensão da sua
secção; não
tendo mais janela ou abertura alguma. Todas estas
observações podem ser ainda verificadas em
elementos
existentes.
Qual seria o fim d'este annexo?
Difficil será descobril-o. É possivel que fosse
um
narthex, ou galilé
lateral, aberto mais tarde, talvez
um logar de refugio para peregrinos ou viandantes.
Sobre este ponto poderá, apenas, fazer-se alguma luz,
quando a eliminação dos estuques, que revestem
interiormente
este recinto e a parte correspondente da
egreja, deixar ver se existem alguns vestigios de antigas
portas para o transepto ou para a nave lateral-norte.
Depois d'esta epoca, sobre o recinto anteriormente
descripto, levantou-se uma grande sala abobadada,
em que a ogiva se accentua ja bem claramente. Esta
sala, não tendo egualmente janelas na sua frente-norte,
era illuminada por uma grande janela ogival, em parte
cega, rasgada na parede, que repousa sobre o grande
arco do supposto
narthex. As duas
janelas mais elevadas
[158]
do edificio principal, que ficaram inutilisadas por
esta construcção, acham-se tapadas por tal
fórma que,
segundo pensamos, não póde existir a menor duvida
em
não haverem jámais dado
communicação da primitiva
Sé para a referida sala; apenas se póde admittir,
embora
a achassemos tambem murada, que esta communicação
se fazia por uma janela do transepto, transformada
em porta para o triforio. Estas disposições,
tanto a do recinto inferior como a da sala sobreposta,
comprehender-se-ão claramente, notando na planta a
segunda intensidade do tom escuro.
Assim, temos uma sala de importantes dimensões
apenas ligada com o interior da egreja pela acanhada
galeria do triforio, que a seu turno é servido por uma
pessima e estreitissima escada de caracol, encastrada
no botareo do transepto! Qual foi o fim d'esta sala?
O problema, porém, complica-se ainda mais. Uma
terceira construcção, tendo dois andares
correspondentes
aos dois pavimentos existentes, veiu encostar-se ás
duas precedentes. Devemos observar que propositadamente
temos escripto a palavra
encostar,
porque na
realidade os successivos constructores nem se deram
ao trabalho de travar reciprocamente os edificios; encostando-os,
apenas, uns aos outros, o que permitte
que em determinados casos seja possivel ver claridade
atravez das separações.
O pavimento inferior d'este novo annexo tinha de
certo ligação com a egreja, havendo sido
transformada
a janela da nave em porta, que ainda actualmente
existe; mas no pavimento superior as cousas passam-se
[159]
por fórma differente. A janela ogival da sala
anteriormente descripta foi transformada em porta, que
serve os dois compartimentos; porém, a janela da
Sé,
inutilisada pela nova construcção, essa,
encontramo-la
nós murada como as duas outras precedentes; e quando
a abrimos, por necessidades de serviço e aproveitamento
de local, ficámos convencidos, pela
perfeição do
espesso massiço de silharia e de alvenaria, de que o
tapamento era, sem duvida, antiquissimo, se não
contemporaneo
d'esta inexplicavel construcção.
Assim, como ainda se póde ver, existem duas salas,
illuminadas por duas altas frestas, que apenas communicavam
com o interior da egreja por duas estreitas
escadas de caracol: a primeira, já indicada, a do
triforio, a segunda encastrada n'uma especie de botareo,
que faz parte da ultima construcção.
Que fins podia ter esta disposição mysteriosa dos
dois importantes recintos?
Debalde temos pensado no problema e investigado
as pedras, a fim de ver se nos revelam o segredo;
em vão temos consultado os eruditos. Apenas, alguem
suggeriu a idéa de que, tendo as antigas cathedraes
o
direito de asylo, isto
é, de tornar inviolaveis os perseguidos
pelas justiças ordinarias, talvez as salas, tão
bem defendidas e mysteriosas, se podessem relacionar
com esse direito de protecção. Ahi deixamos posto
o
problema, que talvez investigações e sondagens
mais
completas possam mais tarde resolver.
Das tres construcções, que acabamos de descrever
e apreciar, a primeira deve datar dos fins do seculo XII
[160]
e a ultima dos fins do seculo XIII. Eis tudo quanto nos
parece ser licito affirmar ácerca da edade d'estes
edificios,
annexados á primitiva Sé.
Como se deprehende da planta, estas construcções
approximaram-se successivamente da porta lateral-norte,
que ainda nos fins do seculo XIII abria directamente
para a rua, ou terrado d'este lado da Sé. Que
esta porta, como dissemos, tinha alpendre coberto de
telhado, provam-n'o os vestigios, ainda existentes na
fachada do ultimo dos mencionados annexos.
No anno de 1324 falleceu em Lisboa Bartholomeu
Joannes, rico mercador de fidalga linhagem franceza,
como parece demonstrarem-n'o os brazões e as flores de
liz do seu tumulo, deixando em testamento legado especial
para ser erecta na Sé de Lisboa uma capella,
onde jazessem os seus restos mortaes e os das pessoas,
que por elle fossem indicadas. Esta disposição
testamentaria
originou uma quarta construcção, a de uma
elegante capella do Estylo Ogival francez, que foi
encostada á fachada lateral-norte, occupando o
espaço
de duas janelas a partir da torre.
N'estas condições, a porta lateral ficaria
encravada,
entre as construcções primitivas e a da nova
capella; por isso, substituindo o antigo alpendre, o
espaço da porta foi coberto por uma abobada. Esta
especie de vestibulo abre sobre a rua por um grande
arco ogival.
Taes são os edificios, que em successivos seculos
foram encostados á fachada lateral-norte da primitiva
Sé, mascarando-a por completo.
[161]
É claro que em qualquer projecto de
restauração
ninguem poderá pensar sequer em repôr o edificio
nas condições primitivas; muito embora todos
estejamos
de accordo em que teria sido muito preferivel
ter evitado estes acrescentamentos, que lhe prejudicaram
a unidade do estylo. Além d'isso, a capella
de S. Bartholomeu, apesar da sua pequenez, é um
excellente exemplar do ogival secundario. Assim, no
projecto de restauração d'esta fachada,
attendemos
a todos os edificios, aproveitando-os o melhor possivel.
Ainda no seculo XIV, em 1344, um forte terremoto
destruiu ou pelo menos arruinou a primitiva capella-mór
romanica. A reconstrucção realisou-se, alterando
as dimensões d'esta parte da egreja e empregando o
Estylo Ogival. As capellas, que guarnecem a nova
charola, e o claustro, que não existiam anteriormente,
datam da mesma reconstrucção.
Depois, entre esta grande restauração e a que
resultou
do terremoto de 1755, devem ter-se realisado
muitas outras de secundaria importancia e principalmente
as obras, que estragaram o edificio. Assim, por
exemplo, as janelas quadradas das torres, substituindo
as lindas janelas geminadas primitivas, a rosacea, as
sacadas e o arco do frontispicio, bem como o edificio
da sacristia e da sala capitular, que mascarou grande
parte da fachada lateral-sul, parece-nos datarem dos começos
do seculo XVIII, pelas qualidades do estylo; sendo,
portanto, anteriores ao terremoto de 1755, como o
prova a gravura das ruinas, a que já nos referimos.
[162]
Devem pertencer tambem a este periodo as
construcções
dos vergonhosos pardieiros de todas as ordens,
especies e fins, que mascaravam completamente a fachada
lateral-norte, subindo até elevada altura entre
os botareos da respectiva torre, e a inutilisação
da
bella porta lateral e do respectivo vestibulo, substituidos
por uma horrivel porta, rasgada na capella de
Bartholomeu Joannes.
O terremoto de 1 de novembro de 1755, finalmente,
produziu profundas ruinas na egreja e no claustro da
Sé. Metade da torre do sul desabou, bem como a torre
sineira que veiu esmagar a abobada da nave central
e a da capella-mór. A memoria da parte principal
d'estas ruinas foi conservada n'uma gravura franceza
do tempo, que nos pareceu interessante reproduzir.
Durante muitos annos estas ruinas permaneceram no
meio da cidade, até que em 1767 começaram as
grandes
obras de reconstrucção.
Teria sido esta a occasião azada para a
restauração
completa da Sé, não na sua fórma
primitiva, que já
não seria possivel renovar; ao menos, porém, nos
Estylos
Romanico e Ogival que se ligaram intimamente
em varios pontos do edificio. As tendencias da epoca,
que já começavam a condemnar estes bellos estylos
como
barbaros e
gothicos, a insciencia dos
restauradores,
a pressa e talvez a carencia de dinheiro deram os
resultados, que ainda podemos ver.
A abobada da nave central foi simulada em madeira
e estuque, abrindo se-lhe medonhos oculos para melhor
illuminar a egreja. Na capella-mór procedeu-se
[163]
por fórma parecida. A egreja foi por toda a parte coberta
de espessas camadas de estuque pintado, mascarando
os velhos elementos romanicos e ogivaes com
elementos classicos absurdos e desordenados. Assim,
se o edificio da Sé, olhado exteriormente, causava a
impressão, principalmente na fachada lateral-norte, de
uma sobreposição de casebres, visto no interior,
produz
a desagradavel surpreza de uma miseria, que pretende
ostentar riqueza, e de um cahos de fórmas disparatadas
e deselegantes, que resultam da desharmonica
combinação das linhas principaes dos estylos
christãos
mais perfeitos com elementos classicos, exigindo
linhas geraes differentes
[3].
Depois de termos dado succinta idéa, porque outra
não comportam os quadros d'este livro, do primitivo
estylo da Sé Patriarchal de Lisboa e das
modificações
[164]
mais importantes, que este edificio soffreu atravez dos
sete seculos da sua existencia, em curtos periodos diremos
as nossas opiniões ácerca da respectiva
restauração,
de que ultimamente fomos incumbidos e tentamos
executar com os melhores criterios estheticos.
Embora a Sé de Lisboa, nem pelas suas dimensões
nem pela grandeza do estylo, possa ser considerada
importante monumento romanico, no estado primitivo,
como acabamos de observar, não deixava de manifestar
algum valor architectonico.
Restaurações successivas e barbaridades de
construcção
em seculos differentes reduziram-n'o ao estado
lastimoso, em que se conservou por longos annos e
em parte se encontra ainda n'este momento. A
reconstrucção
e restauração mais ou menos radical do
antigo monumento é, portanto, quasi um dever de
patriotismo.
Pensar em lhe dar a feição primitiva, apurando o
Estylo Romanico secundario em que foi construido,
seria uma verdadeira loucura; no conjunto do edificio
os elementos ogivaes são mais importantes do que os
romanicos e, em regra, acham-se em melhor estado de
conservação.
A restauração, a nosso ver, deve
começar pelas
fachadas. A principal póde, sem duvida, assumir novamente
a sua expressão romanica, manifestando certa
grandeza, se as suas torres forem convenientemente
coroadas de agulhas e substituida a parte central, entre
as duas torres. Esta obra é indispensavel e uma
das primeiras que deve ser realisada.
SÉ PATRIARCHAL DE
LISBOA—Restauração
da fachada lateral-norte
[165]
A fachada lateral-norte ficará sempre uma
juxtaposição
de edificios; mas a indiscutivel belleza da Capella
de Bartholomeu Joannes desculpará até certo
ponto esta agglomeração de estylos. Pelo que
respeita
á fachada-sul, não haverá remedio
senão conservar
o annexo onde estão a sacristia e a sala
capitular, melhorando o seu frio e pobre Estylo da
Renascença.
O claustro e as respectivas capellas são obras de
restauração facil, embora dispendiosa, attendendo
ao estado
de profunda ruina em que se encontram. O claustro
não tem, na realidade, grande valor architectonico;
mas para elle abre uma vasta sala de elevada
abobada artezonada, que primitivamente devia ser
muito bella. Diz-se que n'esta sala foi instituida a primeira
Misericordia nacional. Mais tarde, talvez em
principios do seculo XVIII, foi transformada em capella
no Estylo da Renascença, onde abundavam os mosaicos
florentinos no arco, nas paredes da abside e no altar.
Suppomos que esta capella foi primitivamente a
sala
capitular.
Realisadas todas estas restaurações, a parte
interior
da egreja tem de ser completamente reedificada, aproveitando-se
apenas as fundações dos pilares das arcarias
das naves e as paredes exteriores. Não só as
abobadas
da nave central e da capella-mór não existem,
sendo simuladas em madeira e estuques, mas, os proprios
pilares, ou feixes de columnas, e as arcadas sobrepostas
estão fendidos por tal fórma que não
suppo
Realisadas todas estas restaurações, a parte
interior
da egreja tem de ser completamente reedificada, aproveitando-se
apenas as fundações dos pilares das arcarias
das naves e as paredes exteriores. Não só as
abobadas
da nave central e da capella-mór não existem,
sendo simuladas em madeira e estuques, mas, os proprios
pilares, ou feixes de columnas, e as arcadas sobrepostas
estão fendidos por tal fórma que não
supportariam
o peso de verdadeiras abobadas. Além d'isso,
[166]
as abobadas das naves lateraes são de tijolo e provavelmente
substituiram as primitivas de silharia.
É natural que a restauração exterior
do templo leve,
mais cedo ou mais tarde, a esta importante obra de
reedificação interna da egreja, porque outra
não se
deve tentar, por improficua e dispendiosissima.
Em todo o caso já seria um adeantado passo acabar
a restauração externa da velha egreja de D.
Affonso
Henriques, que deve considerar-se um verdadeiro
monumento da epoca, recordando a constituição
e a independencia da Nação Portuguesa.
CAPITULO
QUARTO
SYNTHESE SOCIAL DO SECULO XIII
Traçar um quadro do seculo XIII, dando-lhe a verdadeira
expressão social, scientifica e esthetica, é
materia
difficil, principalmente nos limites estreitos d'este
livro; todavia, por nos parecer indispensavel, conforme
o methodo adoptado, tentaremos este trabalho em modestas
proporções.
O seculo XIII foi incontestavelmente o mais brilhante
da Edade-Media; concentra e dá unidade, por
assim dizer, aos trabalhos do pensamento humano,
realisados nos anteriores seculos, prepara os thesouros
de sciencia e de philosophia, que produziram a renascença
artistica e litteraria do seculo XVI, a philosophica
do seculo XVII e, emfim, os grandes movimentos
sociaes e politicos dos seculos seguintes.
A organisação das monarchias feudaes, como a
tentámos
descrever n'outros capitulos, estava completa
no começo do seculo XIII; em verdade, até
começava
a resvalar para a dissolução, que se operou no
fim
[168]
do seculo XV e de que foram principaes agentes em
França Luiz XI, em Inglaterra Henrique VII, o fundador
da dynastia dos Tudors.
As grandes guerras religiosas para libertação do
solo sagrado de Jerusalem, que aliás nunca foi perfeitamente
livre e christão, foram a grande obra das
monarchias feudaes, desde os fins do seculo XI aos do
seculo XIII. Este grande esforço do feudalismo accumulou
as causas da propria decadencia; como as
organisações
vigorosas se enfraquecem pelo excesso de trabalho.
Prégadas pelos proprios Papas ou animadas por
elles, as Cruzadas tinham levado ao oriente, durante
dois seculos, milhões de homens das
nações occidentaes.
A melhor cavallaria feudal, durante este longo
periodo, havia deixado no caminho de Jerusalem
parte das riquezas, e as vidas nos campos das batalhas
ou dizimadas pela peste. Este enorme fluxo e refluxo
de homens ligara intimamente as relações entre
os dois extremos da Europa, trazendo para o occidente
novos elementos de uma civilisação mais
adeantada,
novas idéas e processos; activando, emfim, as reciprocas
transacções commerciaes, de que foram poderosos
centros Genova, Marselha e Veneza.
Os grandes senhores arruinavam-se, sustentando
longinquo e dispendioso estado de guerra, emquanto
a burguezia se enriquecia no commercio pacifico e as
classes populares repousavam e trabalhavam, livres
de grande numero dos pequenos tyrannos. A
exaltação
do espirito religioso, excitado pelas santas Cruzadas,
[169]
approximara as nações e dentro d'ellas as
respectivas
classes. N'esta atmosphera favoravel, a liberdade ganhava
vigor na vida local das communas, cujas revoltas
eram mais faceis e mais baratas as compras de
direitos civicos a senhores, que careciam de dinheiro
para as enormes despezas da guerra e satisfação
de
um luxo exagerado, que traziam sempre inveterado
nos costumes, quantos tocavam sequer de leve as
civilisações
orientaes. Assim, no seculo XIII baixava o
sol do feudalismo e começava a raiar a aurora d'essa
energica vida communal, que nas mãos de suzeranos
habeis devia servir mais tarde de poderoso instrumento
para reduzir os barões feudaes, livres e turbulentos, a
vassallos, subordinados e pacificos, e a pouco e pouco
a simples cortezãos, servis e lisonjeiros, que apenas
ostentavam nas antecamaras reaes honorificos titulos
de antigos apanagios e nomes de gloriosos antecessores.
No seculo XIII a egreja adquirira indiscutivel preponderancia
sobre o orbe christão, a Europa. Pela
religião e pelo respeito tradicional, o Papado impozera-se
aos grandes e aos pequenos; era o arbitro supremo
entre os principes, perseguia-os como revoltosos
e criminosos sobre os proprios thronos e, sendo
preciso, separava-os do povo pela interdicção dos
Estados,
ou pela excommunhão dos rebeldes.
Desde os fins do seculo XI, o poder temporal do Papa
tornara-se um facto consummado. O antigo bispo de
Roma já usava em volta da tiára a primeira
corôa da
soberania terrestre, que o punha ao lado dos reis
[170]
christãos, cuja consciencia elle dominava pelo espirito
da religião. Senhor quasi absoluto, depois da
querela
das investiduras, d'essa machina immensa que se chama
hierarchia ecclesiastica, levando a acção
poderosa até
ás consciencias mais humildes e obscuras, no seculo
XIII, o Papa era o primeiro poder da Europa.
Assim, o Papado fôra o espirito das Cruzadas e o feudalismo
o seu braço armado, que na lucta gastou as
forças e perdeu quasi os bens, herdados em grande
parte pela egreja, cujas enormes riquezas não satisfizeram
nunca as suas ambições colossaes.
A atmosphera de liberdade, embora fraca, que se
formou no seculo XIII, deixára florescer, emfim, a cultura
das artes e da sciencia. Grandes discussões philosophicas
enchem o seculo. Promove-as a theologia. Os
profundos dialecticos e os sabios pertencem em regra
ás Ordens Religiosas, é certo; mas nos sombrios
claustros
penetrára a luz de fóra. A Escholastica n'esse
periodo
tomou uma feição nova e caracteristica, que
trazia
em si os germens da liberdade do pensamento. A philosophia
da Edade-Media offerece, com effeito, tres
periodos differentes; no primeiro, a theologia subordina
a sciencia; no segundo, estes dois principios caminham
a par, depois dividem-se, seguindo rumos
divergentes.
No segundo periodo, durante o seculo XIII, os talentos
mais elevados e cultos travam renhidas luctas
de palavras e de escriptos, nem sempre incruentas;
uns são pelo
realismo de
Alberto, o grande doutor,
e do seu genial discipulo Thomaz de Aquino, outros
[171]
pelo
nominalismo de Duns Scott, o
doutor subtil. O
discipulo excedeu o mestre. Santo Thomaz de Aquino
foi o chefe da eschola, que definiu os principaes dogmas
da egreja e preparou a constituição definitiva do
Catholicismo, no concilio de Trento.
O
nominalismo, fundado sobre as
doutrinas de Aristoteles,
desenvolvia as bases da sciencia; o methodo
da observação e da experiencia
recomeçava o seu caminho,
interrompido por longos seculos. No seculo XIII
viveu o franciscano Roger Bacon, que só por si define
uma eschola e illustra um seculo. Philosopho, astrologo
e alchimista, cujo saber immenso nas azas do genio
chega a saír fóra dos limites do seu tempo, Bacon
descobre, ou pelo menos prevê factos e verdades, que
hão de manifestar-se nos seculos seguintes.
Arnaldo de Villanova, outro profundo sabio do seculo,
medico e alchimista, discute a metaphysica
escholastica e combate-a á luz dos principios da sciencia
ainda vacillante e incerta, mas procurando já firmar-se
nas bases do positivismo moderno. A sua vigorosa
critica não se atemorisa ante os perigos de
atacar os erros da eschola philosophica triumphante
nas doutrinas de um dos maiores sabios e casuistas
do tempo. «Que importa, escreve o grande luctador,
que Alberto, o grande doutor, affirme que as folhas
de salva lançadas n'uma fonte fazem sobrevir a tempestade?
Lancemos folhas de salva n'uma fonte e vejamos
se a tempestade sobrevem».
A revolta do livre pensamento attinge o dogmatismo
da Escholastica orthodoxa, a essencia do methodo
[172]
experimental está claramente definida n'esta
ironica e simples phrase. Arnaldo de Villanova é um
precursor, como Roger Bacon e os escholasticos revolucionarios
nominalistas, d'esse methodo, que ha de
produzir a sciencia moderna e por meio d'ella o espantoso
progresso do seculo XIX.
N'estes primeiros movimentos revolucionarios do
nominalismo sentem-se já
energicas aspirações da liberdade
do pensamento. As suas doutrinas são a semente,
que, ao calor do estudo, das luctas, e pela acção
do
tempo, ha de produzir, por ininterrupta evolução,
a
reforma religiosa do seculo XVI e a philosophia do seculo
seguinte. Os adeptos do
nominalismo
são perseguidos
e as doutrinas consideradas heterodoxas; mas,
como correspondem a necessidades organicas do espirito
humano, se os martyres ficam desconhecidos, as
suas idéas preparam o futuro. Os primeiros luctadores
contra o poder de Roma, Arnaldo de Brescia, discipulo
de Abelard o
nominalista, em Italia,
Pedro de Vaux
em França, Lollard e Wiclef em Inglaterra, são os
precursores de João Huss e depois de Luthero, Melancton,
Calvino, Zwinglio e Knox, os fundadores victoriosos
da
reforma religiosa do seculo XVI.
No seculo XIII, a esthetica experimenta, tambem,
uma acção profunda. Um dos maiores genios, de
entre
os que têem engrandecido a Humanidade, o florentino
Dante Allighieri, cujas feições energicas e
tragicas
nos conservou o pincel de Giotto, aperfeiçoa,
se não cria litterariamente a primeira e mais bella das
linguas latinas, a italiana, em que teve como discipulos
[173]
e commentadores Petrarcha e Boccacio. Genio colossal,
fortalecido por sciencia profunda e inspirado
por grandes sentimentos, attingindo a febre da paixão,
Dante revoluciona a poesia e quebra os velhos moldes
dos poetas da decadencia.
A sua prodigiosa lyra, tendo todas as cordas desde
a sublime epopeia até ao delicado lyrismo, produz o
mais gigantesco poema, creado pela intelligencia humana,
a Divina Comedia, onde o poeta se revela sabio,
theologo, historiador do seu tempo, ás vezes apaixonado
e injusto, se quizerem, mas sempre supremo
artista. Dante, talvez a figura principal do seculo XIII,
a quem os seculos seguintes não fizeram perder ainda
na poesia a posição culminante, é a
mais pura e clara
expressão d'esse espirito classico, sempre vivo no solo
da grande Italia. A liberdade do pensamento, como
nova e rica seiva, inflora no poeta esse vivido espirito,
impellindo-o para fóra da esphera humana e levando-o
a procurar no Inferno, no Purgatorio e no Paraiso,
symbolos da metaphysica theologica, um campo
infinito, onde podiam exercer-se intelligencia e phantasia
tão excepcionaes.
As outras bellas-artes, excepto a musica para a
qual não chegára ainda o momento historico, bem
mais tarde manifestado, principalmente em fins do
seculo XVIII e no seculo XIX, offerecem um caracteristico
movimento correspondente.
Até ao seculo XIII, a influencia do espirito byzantino
mantivera-se preponderante, sobretudo na pintura
e na esculptura, aliás ainda subordinadas á
architectura,
[174]
de que constituiam artes auxiliares e complementares.
Ora, as artes do oriente, como vimos,
haviam ficado estacionarias, crystallisando em fórmas
hieraticas e convencionaes. A inspiração e a
liberdade
dos pintores e dos esculptores foram esterilisadas por
esse immovel e hybrido espirito oriental. Os artistas
copiavam-se successiva e reciprocamente, procurando
amoldar a espontaneidade do proprio talento a antigas
e consagradas formulas, a que as tradições
religiosas
contribuiam para dar quasi força de dogmas.
Foi ainda a Italia, que deu os primeiros gritos, sacudindo
essa lethargia; foi ainda o espirito classico,
reanimado pela liberdade do pensamento, que despedaçou
a rede dos formalismos tradicionaes e da ignorancia
technica, que envolvia e suffocava a inspiração
dos pintores e esculptores.
Esta reacção inicia-a Cimabué,
libertando-se dos
liames das escolas byzantinas. Giotto, seu discipulo,
pintor, esculptor e architecto, segundo o uso e as necessidades
do tempo, opéra a revolução. A
correcção
do desenho e o rigor do colorido, a expressão e a vida,
isto é, a verdade na arte que só nasce do estudo
da
natureza, são o resultado d'essa outra victoria do espirito
humano. Os dois primeiros mestres italianos do
seculo XIII ficam sendo na historia os precursores da
grande arte da renascença, poderoso movimento que
tambem a Italia quasi exclusivamente realisará nos
fins do seculo XV e durante o seculo XVI, no grande
periodo em que floresceram homens como Leonardo
de Vinci, Raphael Sanzio e Miguel Angelo Buonaroti.
[175]
A architectura e as artes secundarias annexas saem
dos conventos, vindo expor novos productos e novas
creações á luz da liberdade nascente.
Já não são as
grandes communidades religiosas, que monopolisam
as construcções, crystallisando-as um pouco e
enviando
de convento para convento os architectos mais
famosos e os planos mais completos. A esthetica, como
a sciencia, manifesta energica expansão. A arte
revoluciona-se
e liberta-se.
Nas communas constituem-se grandes corporações
de artes e officios. As associações de
architectos e de
operarios de todas as ordens, que nos seculos precedentes
trabalhavam sob a direcção monastica, esse resto
dos gremios romanos, ou formados á sua imagem,
emancipam-se, libertam-se do jugo ecclesiastico nas
producções artisticas, tomando definitivo
caracter civil,
embora subordinadas e protegidas pelo espirito
religioso, que imperou sempre durante toda a Edade-Media.
São, com effeito, as corporações
franco-maçonicas
que vão construir muitos, se não todos os
edificios ogivaes
mais grandiosos e celebres. Houve-as em Inglaterra,
tendo um dos centros principaes em York.
Foram incontestavelmente os
free-stones-masons, que
elevaram um dos grandes monumentos ogivaes inglezes,
a cathedral de York. Teve-as a Allemanha, com
o principal centro em Strasburgo, onde Erwing Steinbach
construiu a grande e formosa cathedral, um dos
primeiros monumentos do Estylo Ogival, que serviu
de exemplo a tantos outros e cuja fama deu á loja-mestra
[176]
a supremacia sobre quasi todos os centros
principaes allemães e ao seu presidente o
grão-mestrado
supremo. Existiram em França, onde predominou
a loja-mestra de Paris, construindo as grandes
cathedraes de Amiens, Reims e outras, Notre-Dame e
a Saint-Chapelle em Paris. Encontravam-se, emfim, na
propria Italia, onde aliás o Estylo Ogival experimentou
energicas reacções classicas, principalmente ao
sul.
Foram os
magistri comacini, que, sem
a menor duvida,
construiram o colosso ogival, a cathedral de Milão.
Como estas associações tiveram grande influencia
sobre a formação e a dispersão do
Estylo Ogival, parece-nos
conveniente entrar em alguns pormenores
ácerca da sua organisação no seculo
XIII, visto que das
respectivas origens provaveis e evolução
constituinte
já falámos em precedentes capitulos.
Não póde existir, a nosso ver, a menor duvida em
que
estas corporações
franco-maçonicas,
que se estendiam
pela França, Allemanha e Inglaterra, chegando pelo
menos ao norte da Italia, tinham entre si intimas
relações,
offerecendo um caracter internacional bem definido.
Esta affirmação resulta não
só da propria natureza
das associações de mutuo auxilio e de defeza
dos interesses dos respectivos associados; mas é, ainda,
demonstrada pela essencia e tradição das
associações
franco-maçonicas
politicas, em que as primeiras se transformaram,
durante os seculos XVI e XVII.
A grande unidade do Estylo Ogival e a sua rapida
dispersão nas zonas, aliás extensas, em que
floresceu,
devem ser attribuidas em grande parte ás
relações
[177]
muito apertadas entre as
corporações maçonicas
do mesmo paiz e assás intimas entre as de
nações differentes.
Em 1459, por exemplo, a assembléa capitular
de muitas lojas allemãs, reunida em Strasburgo,
reconheceu como grão-mestre o presidente da loja-mestra
d'esta cidade. Mais do que provavel nos parece
que em França e em Inglaterra se procedesse por identica
fórma; é a consequencia logica dos fins d'estas
associações de trabalho e de soccorro mutuo.
Alem d'isso, as deslocações dos associados de uns
para outros paizes, em procura de trabalho ou por outras
quaesquer causas, só por si constituiriam, n'esse
tempo de construcções muito activas, constantes
relações
internacionaes, quando não existissem outras officiaes
e regulares, como é assás provavel. O operario
associado em viagem encontrava, naturalmente, a
protecção
e o apoio das associações do mesmo genero,
formadas em outros paizes. Este facto dava-se com
as associações romanas e corresponde á
tendencia internacional
das poderosas associações operarias. Assim,
na Edade-Media o trabalho teve uma organisação
muita extensa e protectora, que a moderna Internacional
tentou debalde realisar no ultimo quartel do
seculo XIX.
A constituição interna d'estas sociedades
franco-maçonicas
é, como a sua historia, assás obscura. Visto
que fixavam os proprios salarios dos differentes trabalhadores,
parece-nos logico que estas associações
se ligassem por simples contractos pessoaes, ou porventura
em muitos casos por contractos de empreitadas
[178]
parciaes ou geraes, como se pratica nos modernos
tempos. Evidentemente, estas presumpções
fundam-se apenas na logica e no principio de que
em todas as epocas a eguaes necessidades corresponderam,
sempre, instituições e processos analogos ou
equivalentes.
Deve notar-se que estas associações foram muito
protegidas durante a Edade-Media. Altas personagens
civis e ecclesiasticas faziam d'ellas parte como
socios
honorarios, no periodo da sua maior grandeza. Foi
até a existencia numerosa d'estes elementos
estranhos
ao trabalho, que, depois da decadencia e
transformação
do Estylo Ogival, facilitou a conversão das
associações
primitivas em corporações politicas, conservando
os symbolismos dos officios, os provaveis
signaes de reconhecimento, as praticas secretas e o
espirito internacional, protector e caridoso, da maçonaria
moderna, que foi nos ultimos seculos um instrumento
poderoso de movimentos sociaes.
É natural que as lojas-mestras dirigissem as obras
de varios edificios, elevados na sua respectiva esphera
de acção; sabe-se, como a partir dos meiados do
seculo XIII, as construcções ogivaes tomaram
grande
incremento.
Sendo assim, a elaboração dos planos seria
a tarefa dos maiores e mais habeis architectos e, por
logica divisão do trabalho, as particularidades caberiam
ao pessoal technico, que por ordem hierarchica
se ia seguindo, classificado pela competencia e pelo
merito. Esta hypothese é corroborada pelo espirito
disciplin
É natural que as lojas-mestras dirigissem as obras
de varios edificios, elevados na sua respectiva esphera
de acção; sabe-se, como a partir dos meiados do
seculo XIII, as construcções ogivaes tomaram
grande
incremento.
Sendo assim, a elaboração dos planos seria
a tarefa dos maiores e mais habeis architectos e, por
logica divisão do trabalho, as particularidades caberiam
ao pessoal technico, que por ordem hierarchica
se ia seguindo, classificado pela competencia e pelo
merito. Esta hypothese é corroborada pelo espirito
disciplinado
e methodico, que constitue a melhor garantia
[179]
de producções completas e perfeitas em obras
collossaes.
Esta divisão do trabalho devia chegar ao ultimo
extremo. Assim, sabe-se que as construcções eram
dirigidas
por um mestre ou architecto, escolhido provavelmente
em harmonia com a grandeza da obra, sob
cujas ordens turmas de dez homens trabalhavam, dirigidos
a seu turno por um mestre pedreiro. Esta
organisação
explica a grandeza da concepção dos planos,
a analogia, quasi similhança, que manifestam muitos
dos seus elementos e, emfim, a extrema diversidade da
ornamentação no mesmo edificio. Póde
notar-se, por
exemplo, que as altas agulhas de Zurich, Vienna, Colonia
e Landshut offerecem reminiscencias muito accentuadas
das de Strasburgo.
A extrema variedade de ornamentação, a
diversidade
dos capiteis, no mesmo edificio numerosissimos
e poucas vezes repetidos, esses symbolismos grotescos
uns, pornographicos outros, espalhados nos capiteis e
constituindo algumas gargulas, não podem ser explicados
senão pela extrema liberdade de acção
dos esculptores
e lavrantes de pedra, mais numerosos e
inferiores. Este uso caracteristico, já mencionado no
Estylo Romanico, conservou-se depois ainda nos paizes,
como o nosso, onde a
franco-maçonaria teve,
quando
muito, residencia accidental.
Isto exposto, o perfil do seculo XIII póde desenhar-se
em poucas palavras. O pensamento humano, activo e
energico, procura conquistar a liberdade na esphera
moral e politica. O feudalismo perde lentamente as
[180]
forças e empobrece. Pelo contrario, a burguezia progride,
accumula riquezas pelo commercio e pela industria,
e trabalha. As communas multiplicam-se e
florescem. N'este estado social, um poder predomina,
o Papado e a hierarchia ecclesiastica, pela intelligencia
e illustração, pelo prestigio da
religião sobre as
consciencias e pelo poderio de riquezas immensas. As
futuras reacções da
reforma estão ainda
embryonarias
e latentes. A sciencia busca despir as faixas da theologia
e da metaphysica, approximando-se lentamente
do methodo experimental, que ha de ser o poderoso
instrumento da rapida e prodigiosa evolução
social e
scientifica dos seculos XVIII e XIX. Tambem a arte,
conforme a propria essencia,
observa
e
experimenta,
retemperando-se no estudo da Natureza.
Em summa, a liberdade hesitante bruxoleia ainda;
mas os tenues raios de luz são sufficientes para dissipar
as sombras medievaes, deixando ver o caminho
do futuro e os direitos da Humanidade. Eis como comprehendemos
a synthese do brilhante seculo XIII.
CAPITULO
QUINTO
ESPIRITO E CARACTERES DO ESTYLO OGIVAL
A formação do Estylo Ogival resulta logicamente
do
meio social do seculo XIII. A
phase da evolução da
arte corresponde-lhe com rigor. É o espirito do seculo
que toma fórma nas pedras dos monumentos,
descobrindo novas combinações de antigos
elementos,
empregando-os com mais arrojo e inspiração
esthetica,
mais sciencia e experiencia de construcção.
Assim,
na realidade o Estylo Ogival é a
floração esplendida
do romanico, aberta á luz e ao calor do sol nascente
da liberdade do pensamento.
Onde se manifestou primeiro o Estylo Ogival? É
impossivel fixal-o. Os seus productos, mais ou menos
originaes, elevam-se por toda a parte, onde o
meio foi
identico; como certas plantas nascem em sólos afastados,
quando são de natureza similhante. É certo,
todavia, que se desenvolve e progride com maior rapidez,
principalmente entre as nações onde teve mais
tarde maior preponderancia a
reforma
religiosa, vencedora
[182]
na Allemanha e em Inglaterra, em França
vencida após longas e tenazes luctas: mas deixando
sempre um permanente fermento religioso. Na Hespanha,
em Portugal e na Italia, onde a Inquisição e a
Companhia de Jesus esmagaram a
reforma logo á
nascença, o caminho do novo estylo manifesta-se, pelo
contrario, mais penoso e lento.
N'aquelles paizes, que hão de ser o foco das futuras
luctas da religião, entre o dogma e a disciplina de
um lado e do outro a liberdade do pensamento e da
interpretração da Biblia, a dispersão
do ogival foi rapida
e fecunda. Os reis, os pequenos senhores feudaes
seculares e ecclesiasticos, as communas e as ordens
religiosas, numerosas e ricas depois das Cruzadas, rivalisavam
em construcções grandiosas, espalhavam-n'as
por toda a parte com piedade religiosa, onde havia
tambem muita emulação humana. Assim, por exemplo,
resolvendo a construcção da grande Cathedral
de Sevilha, o respectivo Cabido escrevia: «construamos
obra tão grandiosa e magnifica que os vindouros
possam dizer que estavamos loucos».
As associações
franco-maçonicas,
fornecendo um
exercito de constructores desde os architectos até aos
mais simples operarios, facilitavam este grande movimento,
imprimindo-lhe a rapidez e a unidade de feições,
que anteriormente notámos.
Recordando n'este ponto o que escrevemos ácerca
da abobada e das consequencias logicas do respectivo
emprego, bem como as doutrinas expostas no mesmo
sentido sobre o arco ogival, procuremos agora definir
[183]
os caracteres do Estylo Ogival, que aliás se ligam
intimamente
com os do romanico terciario. O arco em
ogiva, diminuindo muito os impulsos horisontaes sobre
os supportes, permittia dar-lhes menos espessura, fossem
pilares ou paredes. A elevação dos edificios,
dando-lhes
incontestavelmente elegancia e nobreza, foi a
consequencia necessaria do emprego d'este arco. Os
architectos ogivaes aperfeiçoaram o systema, empregando
as
abobadas artezonadas, ou de
nervuras, d'onde
decorreram modificações importantes na arte da
construcção
dos edificios. É este, sem duvida, o caracter
mais importante do Estylo Ogival.
Figuremos por um instante que da abobada da nave
central da Egreja da Batalha, bem conhecida de todos,
tiravamos a silharia encastrada entre os artezões,
como o parenchyma das folhas vegetaes enche os
meandros das nervuras salientes. Da folha ficaria
uma fina renda de estreitas malhas, da abobada um
grande arcabouço de arcos ogivaes parallelos sobre
pilares correspondentes, formando successivos tramos
quadrados eguaes. Outros arcos em ogiva, perpendiculares
entre si e cortando-se nos fechos, ligariam de
angulo para angulo os quatro pilares do tramo. Emfim,
uma nervura recta ao longo do eixo da nave
pareceria dar rigidez e estabilidade ao systema, encadeando
os vertices dos arcos parallelos e perpendiculares.
Se a figura foi exposta com alguma clareza,
comprehender-se-á
com pequeno esforço de intelligencia
o systema das abobadas ogivaes. Tudo consiste, em
[184]
summa, no artificio de descarregar, o mais possivel,
as pressões verticaes e os impulsos horisontaes da
abobada sobre os pilares. Em theoria tambem a silharia
entre os pilares poderia desapparecer, deixando
um pavilhão aberto, uma especie de esqueleto formado
pelos pilares, reforçados por arcobotantes, e pelos arcos,
constituindo as nervuras ou artesões das abobadas.
As conclusões logicas d'este systema de
construcção
são de extrema evidencia. As pressões verticaes
e os impulsos horisontaes dos arcos determinam certa
espessura aos pilares. As primeiras não podéram
ser
supprimidas; mas os impulsos horisontaes foram diminuidos
pela fórma ogival da curva e podem ainda, ser,
contrariados pelo lado de fóra por botareos salientes,
e pela ligação d'estes botareos a outros
exteriores
por meio de arcobotantes. Assim por este modo, um
edificio ogival pode ser
theoricamente reduzido a um
esqueleto de pedra, como as casas de Lisboa representam
um esqueleto de madeira, antes de preenchidos
os intervallos com a alvenaria das paredes e de
fechada a cobertura dos tectos.
É evidente que este systema da
construcção ogival
permitte o facil rasgamento de grandes vãos abertos,
portas, janelas e rosaceas, entre os intervallos dos
botareos e dos arcobotantes; por isso, ao contrario do
romanico, o Estylo Ogival abunda n'estes elementos,
multiplicando as janelas e as rosaceas para illuminar
as grandes naves e os transeptos, que attingem alturas
muito elevadas em relação á respectiva
largura,
[185]
ás vezes, alturas relativas enormes, como succede na
Egreja da Batalha. Pretender dar mais clareza a uma
exposição d'esta ordem, sem desenhos ou modelos,
seria caír em diffusão de palavras, que mais
complicaria
ainda o assumpto. É, pois, contraproducente
tental-o. A imaginação do leitor, impellida por
estes
traços, preencherá as lacunas.
Expostas estas generalidades, inutil será entrar em
divagações sobre o emprego da ogiva, o que
aliás já
fizemos succintamente no segundo periodo do Estylo
Romanico. A ogiva foi conhecida e empregada muito
antes do estylo a que deu o nome, é facto incontestavel.
Não conhecido nem empregado era o systema
das abobadas, tal como o havemos descripto. Eis qual
foi a verdadeira creação dos architectos ogivaes.
Em verdade, este systema ainda póde considerar-se
a conclusão logica e scientifica do emprego da ogiva
e das suas respectivas qualidades estheticas e mechanicas.
O arco de volta inteira podia, com effeito, ter
sido applicado ao systema com alguns resultados, sómente
implicando grande sacrificio da elegancia e da
majestade do edificio. Parece-nos, pois, um verdadeiro
circulo vicioso investigar, se o arco em ogiva deu
origem ao novo systema de abobadas, se este systema
exigiu a fórma quebrada do arco. Emquanto a nós,
se houvesse vantagem em fixar opinião sobre este
ponto, admittiriamos, como mais natural e logica, a
primeira hypothese.
O Estylo Ogival manifesta uma duração de tres
seculos. Vimol-o nascer com o feudalismo na decadencia,
[186]
durará durante a agonia d'esta
instituição e
desapparecerá com ella, transformando-se em novo
estylo. Está definitivamente formado a partir dos
meiados do seculo XIII, constituindo o primeiro periodo.
As construcções d'este periodo são
harmonicas
e regulares, mas a sua feição é ainda
um pouco fria
e severa.
No seculo XIV adquire feições mais elegantes e
distinctas.
N'este segundo periodo, que os architectos
denominaram
radiante, devido a
disposições caracteristicas
de certos elementos de construcção e
ornamentação,
os edificios são mais puros e alegres, mais
elevados e finos, emfim mais ideaes, d'esse espirito
que principiou a manifestar-se no seculo anterior.
No seculo XV e nos começos do XVI o Estylo Ogival
attinge elevado grau de elegancia, ás vezes exagerada.
N'este terceiro periodo, os elementos verticaes
tendem a tomar grandes proporções, a
ornamentação
manifesta-se riquissima e caprichosa, os coroamentos
enchem-se de agulhas e de pinaculos, uma floresta de
corocheos elevados e ponteagudos dá aos edificios
phantastico aspecto, causando a impressão caracteristica
de chammas, principalmente quando illuminados
pelos raios do sol poente. D'esta impressão proveiu,
de certo, o ser conhecido este periodo pela
designação
de Estylo Ogival
flammejante, ou
florido.
Taes são os periodos, que offerece a
evolução do
novo estylo; devendo, porém, notar-se n'este ponto o
que dissemos ácerca da classificação
um pouco empirica
por seculos. A passagem dos estylos faz-se sempre
[187]
evolutivamente, sendo impossivel marcar-lhes limites
rigorosos e bem definidos.
No interior as egrejas ogivaes manifestam excepcional
grandeza e elegancia, provindo da elevação dos
pilares polystilos e da profundidade das abobadas, ricamente
artezonadas, com fechos ornados de bocetes.
Numerosas janelas e rosaceas, tendo vitraes polychromicos,
inundam o templo de luz doce e poetica.
O mysticismo sombrio e severo das egrejas romanicas,
a profunda melancholia que produzem no espirito,
transforma-se nas ogivaes em alegre e suave sentimento
religioso.
A egreja romanica traduz a profunda tristeza e o
desalento da Edade-Media, principalmente nos primeiros
seculos; a sua expressão é lugubre, quasi
sinistra,
como a do espirito monastico que lhe deu origem. Ha
n'ella a impressão desoladora de uma vida rude e cruel,
d'onde a alma procura fugir para o socego eterno. A
egreja ogival produz sensações differentes.
Respira-se ali
a vida livre e activa, supremo bem sobre a terra, seguida
depois pela felicidade eterna, cuja esperança irisada
illumina o espirito, como os raios do sol, atravessando
as grandes vidraças coloridas, inudam de luz
suave e avelludada as naves do templo.
Nas disposições internas a egreja ogival soffreu
algumas
modificações importantes. A cruz latina
já havia
sido por vezes abandonada ou alterada no Estylo
Romanico, muito embora, tanto n'este estylo como
no ogival, deva ser considerada fórma fundamental e
preferida. Pelas necessidades do culto, sempre crescente
[188]
em riqueza, os coros ogivaes tomaram
proporções
maiores em relação ás naves. A
charola, quando
existe, é ornada de capellas, a correspondente ao eixo
central da egreja mais elevada e comprida, dedicada
ao culto da Virgem. As capellas ao longo das naves
lateraes não se encontram ainda no primeiro periodo
ogival; mas apparecem no fim do segundo, no seculo
XIV. Em algumas egrejas observa-se a inclinação
do eixo do côro em relação ao da nave
principal, desvio
que citámos e apreciámos no Estylo Romanico de
transição.
A planta circular e a polygonal manifestam-se, tambem,
como no estylo precedente. Em certas egrejas
as absides são prismaticas ou desappareccm, sendo
substituidas por paredes planas em que se abrem
grandes janelas. É evidente ser impossivel abranger
em curta synthese as disposições, variaveis em
muitos
elementos, das plantas das egrejas ogivaes, que
se contam por centenas, se não por milhares em todo
o orbe christão. Uma idéa geral, embora, pouco
caracteristica,
é o mais a que se póde chegar n'este momento;
todavia, não devemos deixar de especificar a
elegante planta da egreja da Batalha, que descreveremos
n'outra parte d'este livro.
Uma disposição particular muito constante das
egrejas ogivaes parece-nos ser a maior elevação
da
nave central sobre as colateraes. Nas paredes d'esta
nave, exteriormente fortalecidas por arcobotantes,
abrem-se as grandes janelas do
clerestory. Ás vezes,
desapparecendo o
triforio, estas
janelas assumem enormes
[189]
proporções, prestando-se então
admiravelmente
aos magnificos quadros dos vitraes polychromicos.
Esta disposição, que dá extrema
belleza ás naves centraes,
é a da Egreja da Batalha.
N'algumas egrejas, os ambons primitivos—as tribunas
onde era lido o Evangelho—foram substituidos
por galerias elevadas, lançadas entre a nave central
e o côro, com accesso pelos dois lados. Estas galerias,
profusa e ricamente ornamentadas, repousam
sobre grandes arcos, por baixo dos quaes fica livre
e desembaraçada a ligação do corpo da
egreja com o
côro. D'esta construcção,
aliás pouco vulgar e não existente
entre nós, ha exemplos elegantissimos e muito
ricos.
Pelo que respeita ás fachadas, a diversidade é
maravilhosa;
todavia, de um grande numero de edificios
póde deduzir-se um schema de certa importancia e clareza.
Tomaremos, para exemplo, um monumento bem
conhecido, a Cathedral de Notre Dame de Paris. A
fachada é dividida em trez partes verticaes—em
geral
ha tantas partes definidas, quantas são as naves
interiores da egreja—a do centro comprehende a
porta principal, sobrepujada pela rosacea; as lateraes,
correspondendo ás torres, conteem as portas secundarias
e por cima as respectivas janelas ou rosaceas,
que illuminam as naves correspondentes. A fachada
offerece, tambem, tres divisões horisontaes bem distinctas,
a primeira envolve as tres portas, a segunda
a rosacea e as janelas ou rosaceas lateraes, a terceira
começa na nascença das torres.
[190]
Nas fachadas sem torres, como as das Cathedraes
de Milão e de Sevilha, de cinco grandes naves, e na da
Egreja da Batalha de tres, as divisões verticaes
são
muito evidentes, accusando, sempre por fórma bem
marcada, o numero e a disposição decrescente das
naves
interiores.
Este schema parece-nos apenas interessante; porque
seria impossivel abranger a variedade infinita
das fachadas ogivaes em curtas regras e poucos principios.
Diremos mais: é quasi impossivel descrever a
mais modesta só com simples palavras oraes ou escriptas.
As torres ogivaes são caracteristicas, de extrema
elegancia, principalmente quando coroadas de elevadas,
finas e rendilhadas agulhas. Offerecem a impressão
de força e grandeza, sem duvida; mas a profusa
ornamentação
e as grandes janelas, onde reina a ogiva,
dão-lhes um aspecto especial de leveza e elegancia,
que não possuem as romanicas. Algumas vezes as
torres da fachada apresentam-se deseguaes; accusando,
assim, a secundaria importancia da egreja na hierarchia
ecclesiastica.
Estes e outros caracteres dos templos ogivaes manifestam-se
tão salientes, impressionam tão profundamente
a intelligencia e a memoria, que os menos
entendidos e versados na architectura podem distinguil-os,
classificando com relativa facilidade edificios
bem definidos.
A ornamentação ogival é em extremo
complexa;
mas tão harmonica e bem combinada, que produz a
[191]
sensação de grande simplicidade. Para bem a
apreciar
seria indispensavel estudar elemento a elemento as
differentes partes de um edificio, o que não podemos
fazer.
Na ornamentação mural do seculo XIII predomina
o reino vegetal; na Cathedral de Reims, por exemplo,
contaram-se mais de trinta especies vegetaes differentes,
espalhadas pelos varios pontos do edificio. Os
ornamentos mais usados são os trifolios, os quadrifolios,
as violetas, as crossas ou arpões, orlando os angulos
das pyramides e as linhas dos frontões e das
cornijas, os pinaculos, rematando as cabeças dos botareos,
os nichos com doceis mais ou menos pyramidaes
e rendilhados, zig-zags, cabeças de pregos e
algumas outras molduras romanicas. A antiga
ornamentação
byzantina, que floresceu ainda no Estylo Romanico,
tende a desapparecer. O trabalho é fino e perfeito;
procura-se imitar a natureza, sem a copiar, com
extrema liberdade de concepção e firmeza de
execução.
No seculo XIV esta ornamentação subsiste. Os
doceis
dos nichos tomam fórmas mais elevadas e pyramidaes.
Os triforios obscuros tornam-se transparentes,
illuminados por janelas. As arcaturas teem n'este periodo
uso mais geral.
No seculo XV, domina nas molduras a secção
prismatica.
Os doceis dos nichos accentuam-se em elevação
e em caprichosos e ricos ornamentos. Os caixilhos,
ou almofadas, constituem decorações muito
vulgares,
que mascaram a nudez das paredes. A ornamentação
do seculo XV acompanha, como é natural, a
evolução do
[192]
estylo, é grandiosa e complexa, approximando-se das
fórmas da renascença.
A esculptura no seculo XIII começa a perder as
fórmas
tradicionaes e byzantinas dos seculos anteriores.
Tem mais grandeza e naturalidade, sem prejudicar a
uncção religiosa. A architectura emancipou-se da
influencia
monastica, a esculptura seguiu-lhe o exemplo.
É o elemento profano que vae preparando successivamente
o movimento artistico da renascença, pelo
estudo da natureza e da antiguidade classica.
No seculo XIV apparecem as creações grotescas,
algumas
assás livres, e as satyras da vida monastica,
de que entre nós existem exemplos. Na Egreja da Batalha,
alguns capiteis mais elevados, segundo nos disseram
operarios que os restauraram, descrevem scenas
equivocas, ou pelo menos pouco edificantes. Não
pudémos
verifical-o, attendendo a enorme altura dos capiteis
e á pouca claridade do templo. Algumas gárgulas
offerecem disposições parecidas; uma parece
symbolisar
accentuadamente o classico deus Priappo.
No antigo Convento da Conceição em Evora,
mosteiro
de freiras, uma gárgula representa uma freira,
dando á luz uma creança. Na egreja matriz de
Caminha,
outra gárgula figura um homem, voltando as
costas para Hespanha em posição assás
equivoca.
Estas e outras anomalias, aliás vulgares e caracteristicas
n'este estylo, procurámos explical-as, tratando da
organisação das associações
franco-maçonicas. Em
qualquer
caso, são o producto do trabalho independente da
acção monastica, talvez uma
manifestação deploravel
[193]
da liberdade de pensamento, que foi a aspiração
do
segundo periodo da Edade-Media.
No seculo XV a esculptura e a pintura libertam-se.
A verdade da natureza traduz-se nas posições e
nos
actos. Sente-se bem que a Renascença está
á distancia
de um seculo. Os esculptores e os pintores teem individualidade
propria, as suas escolas e os seus discipulos;
não se apresentam simples decoradores, manifestando
já a dignidade de artistas, que professam artes
independentes.
A pintura mural foi muito usada no Estylo Ogival.
No interior, as abobadas eram, ás vezes, pintadas
de azul e constelladas de ouro e prata. A côr verde
applicava-se aos capiteis, a encarnada aos fustes das
columnas. Nas paredes desenhavam-se varios ornamentos,
em alguns casos simulando elementos architectonicos
que melhor pertencem á esculptura. No exterior,
a pintura cobria tambem os portaes, as arcaturas
e os pontos principaes do edificio. As folhagens offereciam
a côr verde e as figuras dos porticos eram recamadas
de ouro.
A pintura mural rivalisava com a dos grandes vitraes.
O tempo fel-a, porém, desapparecer quasi por
completo, habituando a esthetica moderna a não comprehender
nem admirar a polychromia dos edificios,
aliás tambem muito empregada nos Estylos Classicos.
A Sainte Chapelle de Paris, modernamente restaurada,
offerece no interior um excellente exemplo da pintura
mural. É, todavia, mais do que provavel que este uso
não fosse geral, pelo menos nas egrejas de menor
importancia.
[194]
Segundo a nossa opinião, devemos confessal-o,
as velhas cathedraes devem aos seculos o grande
beneficio de lhes haverem substituido o effeito garrido
da pintura exterior pela côr sombria e solemne, que
provém da acção do tempo.
Um dos mais bellos ornamentos do Estylo Ogival
consiste, sem a menor duvida, nos vitraes. As vidraças
multicolores, rutilantes á luz do sol, como se fossem de
pedrarias, coando serena claridade pelas grandes superficies
irisadas, onde se desenham, envoltos em caprichosa
ornamentação, complexas scenas, paisagens,
episodios guerreiros ou religiosos, nichos rendilhados
com grandes figuras asceticas, produzem effeitos de
luz surprehendentes e de extrema belleza esthetica.
Estes vitraes polychromicos causam uma impressão
profunda e indelevel, em que se mistura a poesia da
alma com a musica das côres. Sem elles as mais bellas
cathedraes perderiam grande parte do espirito mystico
e do seu finissimo caracter artistico.
Vimos apparecer estes vitraes no ultimo periodo
romanico, pelo menos com mais importante
applicação;
vamos agora esboçar as transformações,
que soffreram
nos seculos seguintes.
No seculo XIII, as vidraças coloridas attingem grande
perfeição. A arte do vidreiro e a pintura
aperfeiçoaram-se.
Como se chegou a obter na mesma chapa de
vidro côres differentes e esbatidas, as malhas do tecido
de chumbo são maiores, não recortam tanto o
desenho, e os tons dos vitraes manifestam mais harmonia
e doçura. As figuras são mais elevadas, o que
provém
[195]
logicamente dos grandes vãos das janelas. Os
ornamentos, mais cuidados e ricos, harmonisam-se com
os do interior do templo.
São variadissimos os motivos; scenas do Novo e
Antigo Testamento, lendas do Christianismo, o florilegio
dos martyres, combinam-se com episodios do tempo
e representações de industrias coévas,
verdadeiros subsidios
de estudo. Retratos de personagens da epocha,
ecclesiasticas e civis, guerreiros com armaduras e bispos
paramentados, constituem recordações historicas
de piedade christã e de votos dos que offereceram estes
despendiosos ornamentos, que embellezam as antigas
cathedraes.
No seculo XIV o desenho dos vitraes é mais correcto
e as figuras vão sempre perdendo o caracter byzantino.
Os pintores começam a estudar mais a antiguidade
e a natureza, abandonando as fórmas tradicionaes
dos seculos anteriores. A esthetica consegue em bellos
effeitos o que perde em originalidade e espirito de
tradição, que aliás encerra sempre
manifestações de
belleza mais de accordo com a architectura dos templos.
As côres tornam-se menos vivas, prevalecem as
neutras pouco carregadas. As egrejas precisam de
luz, a fim de que os fieis possam ler nos breviarios
os exercicios divinos; as vidraças tornam-se, pois,
mais claras. A Imprensa, inventada no seculo XIV,
se esclareceu o mundo, sacrificou um pouco as velhas
cathedraes, desfazendo essa penumbra doce e encantadora
que era a expressão mais adequada ao mysticismo
religioso.
[196]
Uma ornamentação, embora accessoria, que
embelleza
as cathedraes ogivaes, é a rica obra da talha ou
a esculptura em madeira, principalmente nas cadeiras
dos córos, que nos estylos mais primitivos eram de pedra.
A perfeição d'este trabalho attinge
proporções admiraveis
no seculo XIV. N'este genero de coros, em que
a nossa pobreza é extrema, deve citar-se o da Sé
da
Guarda. Em Hespanha, pelo contrario, ha riquezas
immensas nos coros e nas respectivas obras de talha.
O mais rico, que temos visto é o da Cathedral de Sevilha,
collocado segundo o uso n'aquelle paiz na nave
principal, como no Estylo Latino. Este côro, admiravel
e riquissimo em todo o sentido, parece-nos que deve
datar dos meiados, se não dos fins do seculo XVI.
Antes de finalisar este capitulo, são indispensaveis
algumas considerações geraes de ordem mais ou
menos
technica, que somos forçados a desenvolver. Em
nenhuma das phases da evolução da arte se
manifesta
mais accentuada a influencia do
meio, do que no Estylo
Ogival. Provam esta asserção a unidade dos seus
caracteres geraes e tambem a sua rapida dispersão
nas zonas, onde esse
meio, como o
definimos na introducção
d'este livro, era mais ou menos identico;
todavia, a existencia de elementos e de condições
particulares
nos differentes paizes tinha de influir necessariamente
nos caracteres da arte.
As construcções ogivaes, obedecendo á
influencia
do
meio particular das
nações, entre as quaes se desenvolveram,
tomou feições proprias em cada uma,
muito embora subordinadas ás leis e aos caracteres
[197]
geraes do estylo. O mesmo facto succedeu com o Estylo
Romanico. Assim, as feições especiaes, diriamos
talvez mais nitidamente as physionomias, do ogival
allemão, francez e inglez são por tal
fórma definidas,
que os grandes entendedores da arte as distinguem
com facilidade.
A evolução e a decadencia do estylo
não se manifestaram,
tambem, em identicos periodos: por exemplo,
a Inglaterra conservou mais puro e duradouro o bom
estylo, não experimentando quasi o periodo de decadencia.
A Italia, principalmente ao sul, offereceu sempre
tenaz resistencia a todas as innovações
artisticas,
que mais se distanciavam do profundo espirito classico,
herdado no sangue das gerações successivas e
conservado
em numerosos restos dos antigos monumentos.
Ao Estylo Ogival aconteceu facto analogo: as suas
construcções appareceram primeiro nos pontos,
onde
menos abundavam as romanicas. Não falaremos na
Grecia e no Oriente, porque n'esses paizes o
meio social
conservou-se sempre differente.
A estas indicações se deve attender na historia
de
um estylo, sem perder, tambem, de vista que a unidade
e a harmonia dos edificios são sempre prejudicadas
pela demorada construcção. É sabido,
com effeito,
que alguns dos maiores monumentos ogivaes
levaram seculos a terminar, não falando, ainda, nas
successivas restaurações, que chegam a alterar a
unidade
e o caracter de um edificio.
Um facto, que parece caracteristico tanto no Estylo
Romanico como no Ogival, consiste no pequeno
[198]
numero de nomes dos grandes architectos, que nos
conservou a historia, emquanto são conhecidos muitos
dos classicos. Tem-se procurado, com excesso de paciencia
archeologica, explicar este facto pela humildade
christã dos frades architectos do Estylo Romanico e
pela organisação especial das
associações
franco-maçonicas,
principaes constructoras dos edificios ogivaes.
Talvez em parte fossem estas causas a origem do
silencio; não comparemos, porém, a
illustração e o gosto
artistico dos cidadãos livres da Grecia e de Roma
com a ignorancia dos barões feudaes e dos cavalleiros
medievaes, que timbravam em não saber ler e
escrever, sellando os documentos com os copos das
proprias espadas. Nem confundamos a plebe d'aquellas
florescentes republicas com a multidão desgraçada
e quasi selvagem da Edade-Media. Nos paizes classicos
a arte foi sempre considerada nobre e elevada
funcção;
na Edade-Media deve ter sido apenas olhada como
simples profissão. Assim, conservaram-se os nomes dos
fundadores dos templos e dos grandes e poderosos da
terra, para quem foi inventada a Historia; os dos pequenos
e humildes, embora geniaes e creadores, mergulharam
nas trevas do esquecimento e da ignorancia
medieval.
Alem d'isso, os architectos não punham em evidencia
os seus nomes. Aqui e além dão-se pequenas
excepções
a esta regra. Quando muito, empregavam signaes
caracteristicos e proprios em qualquer ponto evidente
da construcção. Assim, já o dissemos,
na pequena e
elegante capella do Estylo Ogival secundario, agora
[199]
em via de restauração na Sé de Lisboa,
a flor de lyz,
gravada na face de uma columna prismatica, póde
bem indicar a origem franceza do architecto.
Os signaes gravados nos silhares dos monumentos
ogivaes tambem são muito vulgares. Teem sido attribuidos
a simples marcas dos canteiros, que indicavam,
talvez para pagamento, as pedras feitas por cada um.
O facto de serem os signaes gravados na pedra e alguns
difficeis e complicados, como se póde verificar no Mosteiro
da Batalha, prejudica no nosso espirito esta hypothese.
Mais provavel nos parece que sejam signaes
particulares das differentes lojas maçonicas, ou
secções
d'ellas, a que pertenciam os differentes trabalhadores,
mestres e architectos. O assumpto não offerece,
aliás,
senão o simples valor de curiosidade.
Temos exposto, segundo nos parece, os caracteres
principaes do Estylo Ogival. O trabalho é incompleto,
nem podia deixar de o ser em assumpto tão vasto
e complexo, sobre o qual muito se tem escripto e
muito ha ainda para escrever. N'este estylo temos,
felizmente, um riquissimo exemplar no Mosteiro da
Batalha, cuja historia e descripção reservamos
para
uma parte especial d'este livro. Esta rapida monographia
completará a exposição feita, melhor
talvez do
que outros desenvolvimentos mais ou menos didacticos.
Na nossa opinião, o Estylo Ogival é a mais
elevada
expressão esthetica, até hoje revelada na
evolução da
architectura. Para o comprehender não é
necessario ser
artista, sabio ou crente; bastará, apenas, possuir algum
[200]
sentimento, firmado em instrucção vulgar, e
comparar
os movimentos do nosso espirito em face das
creações dos melhores estylos.
Nós vimos grandes templos, restos da antiguidade
classica, sumptuosas basilicas, magnificos exemplares
byzantinos e romanicos; encontrámol-os por muita
parte. Em longas horas de contemplação e de
estudo,
procurámos o espirito d'esses monumentos, transportando-nos
aos seculos, que lhes imprimiram physionomia.
As impressões mais perfeitas e harmonicas
foram-n'os dadas, sempre, pelas grandes cathedraes
do Estylo Ogival.
CAPITULO
SEXTO
O ESTYLO OGIVAL ENTRE NÓS
Eis um capitulo por natureza curto. Se Portugal é,
infelizmente, pobre em monumentos, a sua penuria
manifesta-se extrema nos do Estylo Ogival. O Estylo
Romanico deixou entre nós algumas
construcções, mais
ou menos importantes, embora, em geral, estragadas
depois por inscientes restaurações, que o cuidado
e o
gosto moderno vão a pouco e pouco substituindo, a
fim de darem aos edificios a possivel pureza primitiva.
A Sé de Coimbra, egreja romanica do segundo
periodo, é bom exemplo d'este gosto e cuidado.
Pelo paiz inteiro, pelo menos na parte por nós
percorrida, encontram-se de quando em quando trechos
do Estylo Romanico de soffrivel valor, escondidos
no mesmo edificio por entre outros ogivaes e da
renascença. Assim, um dos nossos primeiros monumentos,
o Convento de Christo em Thomar, offerece
construcções
differentes. A subida importancia que outr'ora
teve este Mosteiro, sem duvida o mais rico do
[202]
paiz, a extrema e curiosa diversidade de estylos, que
elle manifesta, aconselha-nos mais detida
descripção,
embora exceda em parte os quadros d'este livro.
1 Terreiro e
escadorio. |
6 Sacristia. |
2
Adro. |
7 Portaria. |
3 Charola, egreja
primitiva. |
8 Côro e corpo da egreja. |
4 Antiga porta da egreja
primitiva. |
9
Claustro de João III—Filippes. |
5 Claustro do D. Henrique ou Cemiterio. |
10 Refeitorio. |
11 Claustro de Santa Barbara. |
Na anterior planta estão descriptos os elementos do
grande edificio, que nós suppomos deverem ser considerados
verdadeiramente monumentaes; o que não quer
dizer que n'outros pontos, já na parte pertencente
ao Estado, já n'aquella que infelizmente foi vendida,
não existam trechos de verdadadeiro valor artistico e
historico, dignos de cuidadosa defeza e
conservação.
CONVENTO DE THOMAR—Fachada da Egreja
[203]
A egreja actual é formada por dois corpos, construidos
em seculos differentes. O circular, que parece
hoje constituir a charola da egreja, foi o templo primitivo.
Pertence ao Estylo Romanico, talvez terciario,
visto que a ogiva, embora pouco accentuada, se desenha
sob as camadas de estuque, que revestem os oito
arcos do recinto octogonal, cuja abobada forma uma
especie de zimborio sobre o altar.
Primitivamente, este recinto tinha o aspecto de torre
central, elevando-se a respectiva abobada bastante
acima da abobada anelar da nave envolvente. A antiga
porta de entrada, virada ao nascente, foi transformada
em janela, quando á egreja romanica se annexou
o corpo rectangular. N'esta fórma do primitivo
templo sente-se a indiscutivel influencia de S. Vital
de Ravenna e do Santo Sepulcro de Jerusalem.
Nos começos do seculo XV foi construido ao norte
da primitiva egreja o Claustro de D. Henrique ou do
Cemiterio, que, embora muito simples e pequeno, é de
assás puro e elegante Estylo Ogival; talvez do terceiro
periodo, se attendermos aos caracteres dos capiteis
das columnas, unicos elementos que poderão
servir para rigorosa classificação architectonica
d'este
claustro.
Nos fins do mesmo seculo XV e principios do XVI
elevou-se a construcção do actual corpo da
egreja, que
abre para o primitivo templo circular, transformado
em capella-mór, por grande arco, rasgado na respectiva
parede. A nova entrada, olhando o sul, é formada
por um magnifico e elegante portal. Assim,
[204]
antes da construcção do Claustro de D.
João III,
vulgarmente chamado dos Filippes, toda a fachada
sul da egreja, comprehendendo este portal e duas grandes
janelas de volta inteira, bem como a fachada Occidental,
ficavam livres e visiveis.
O côro, outr'ora guarnecido de excedente obra de
talha, occupa quasi metade do corpo da egreja e firma-se
sobre a abobada da casa do capitulo. Por esta
fórma, a fachada occidental, ladeada por dois formosos
e originaes botareos, offerece entre elles na parte
superior uma rosacea, abrindo no côro, e na inferior,
illuminando a casa do capitulo, uma magnifica janela
com rica ornamentação de algas, embora na
realidade
um pouco pesada. Toda esta parte do edificio é do
Estylo da Renascença do primeiro periodo, entre
nós
chamado manuelino, manifestando-se na fachada occidental
grande influencia do oriente, principalmente na
decoração dos botareos e da janela das algas.
Pouco depois do meiado do seculo XVI foi construido
e encostado á fachada sul da egreja, da qual mascara
grande parte, o Claustro de D. João III, erradamente
denominado dos Filippes. Este claustro, que faz recordar
os magnificos pateos dos palacios florentinos, é
de excellente Estylo da Renascença italiana. Emquanto
a nós, se não constitue o unico exemplar nacional
d'este
estylo, deve pelo menos ser considerado o mais puro
e completo. Para o claustro, ou mais rigorosamente
para este pateo, abria outr'ora a porta do refeitorio,
que da parte monumental é elemento integrante e
indispensavel,
como o indica a planta.
[205]
Esta bella e ampla sala abobadada pertence tambem
ao Estylo da Renascença; hoje, porém, encontra-se
separada do monumento, havendo sido murada
a respectiva porta. Embora seja propriedade do Estado,
anda ha longos annos arrendada ao proprietario
de parte do Mosteiro e da respectiva cêrca, servindo-lhe
de celleiro! Todos os esforços empregados até
agora para acabar com este arrendamento, ainda os
mais recentes feitos pelo Conselho dos Monumentos
Nacionaes, têem sido infructiferos
[4]!
Do Claustro do Cemiterio passa-se para a sacristia,
peça de secundario valor architectonico, construida
nos fins do seculo XVI em Estylo da Renascença, frio
e pesado, que faz lembrar muito a singular physionomia
da renascença do Escurial.
Esta succinta descripção demonstra a importancia
architectonica do Mosteiro de Thomar, bello exemplar
onde se casam os mais perfeitos estylos com
ornamentações
ricas e caracteristicas. Devemos, porém, observar
que, no rigor da palavra, a parte não monumental do
grande edificio monastico envolve tambem elementos
e trechos de bastante valor artistico. Assim, no Claustro
da Micha, não comprehendido na planta junta, existem
tres grandes salas, onde a tradição affirma que
se reuniram as Côrtes de Thomar. Se é possivel
duvidar
d'esta tradição, embora o estylo das salas seja
da
epoca, não padece duvida alguma que todas, principalmente
[206]
a da Nobreza, são bellas e dignas de
conservação,
ou talvez melhor de salvamento, porque o
tempo e o vandalismo acabarão por destruil-as sem
remedio
[5].
Além d'isso, o Mosteiro manifesta riquissima
construcção
quer em materiaes, quer em trabalho; assim,
por exemplo, os corredores para onde abrem as cellas,
na realidade multiplas, vastas e sobrepostas galerias
cortando-se em angulo recto, são cobertos por
tectos de volta inteira e apainelados de excellente carvalho
do norte. De espaços em espaços, encontram-se
n'estas galerias bellos trechos e baixos-relevos da pura
arte da renascença.
A conservação em que tudo isto se encontra,
exceptuando
os edificios monumentaes descriptos, menos
descurados hoje, é quasi deploravel na parte pertencente
ao Estado; porque a outra parte do Mosteiro,
talvez a maior, encravada nas pertenças nacionaes
sem ordem e sem nexo, bem como a bella cêrca e
outras valiosas propriedades conventuaes, foram vendidas
por somma irrisoria
[6].
Entre todos os mosteiros nacionaes, exceptuando o
de Mafra e o de Alcobaça, suppomos que o de Thomar
é o maior e o segundo na ordem da riqueza artistica
e historica. Uma administração nacional sensata
[207]
e illustrada teria conservado completo e mobilado
este bello monumento, como typo da vida e dos costumes
monasticos. Seria, por assim dizer, um exemplar
unico no mundo. Hoje, alienada parte do edificio,
vendidos a desbarate ou roubados os moveis e os
livros, esta restauração seria quasi impossivel;
mas, no
que nos resta ao menos, o edificio deveria ser conservado
como excellente exemplo de uma feição
caracteristica
e importante das organisações sociaes dos seculos
passados
[7].
Grande parte das egrejas no norte do paiz, foram
primitivamente do Estylo Romanico do primeiro ou do
segundo periodo, mas são de
construcção acanhada e
pobre, offerecendo cobertura de madeira. No sul ainda
a escassez de monumentos é maior. Em todo o Algarve,
depara-se-nos apenas a Sé de Faro e a de Silves,
que merecem alguma attenção. Julgamos que a
ultima obedece aos principios das construcções do
norte: Estylo Romanico do terceiro
periodo—transição—naves
cobertas de madeira, côro abobadado, mas
tudo em lastimoso estado de conservação
artistica.
A Egreja Matriz de Caminha parece-nos constituir
um bello exemplo d'este typo de egrejas do norte. Sem
duvida, a primeira construcção foi romanica do
segundo
periodo. Soffreu, depois, grandes restaurações no
tempo
[208]
da renascença manuelina. A fachada, composta de tres
corpos distinctos desenhando as naves internas, é
d'este definido estylo.
No interior, muito interessante, existem tres naves.
A cobertura é de carvalho e de castanho, com vigas
descobertas. Arcos de volta inteira sobre columnas
delgadas dividem as naves. As paredes lateraes d'estas
naves não tinham primitivamente capellas; as que
hoje existem são dos seculos XVI e XVII. A egreja
acha-se revestida até á altura dos capiteis das
naves
por azulejos ordinarios, datados de 1690. D'ahi para
cima as paredes estão caiadas. O templo primitivo
não
tinha côro sobre a porta principal, o que existe na
actualidade é de construcção moderna.
A capella-mór, tambem manuelina, é coberta por
uma bonita abobada. No exterior d'esta capella-mór
corre um bello friso de corda e por baixo d'elle outro,
simulando uma cadeia de ferro. É o primeiro que vimos
n'este genero. Na fachada lateral da egreja ha
uma bonita porta da renascença. A
construcção é toda
de granito. Em geral, os ornatos estão muito apagados,
porque o granito empregado tem o grão muito
grosso e esborôa-se, exposto á
acção do tempo. Fazemos
esta ligeira descripção para darmos
idéa de um
typo assás vulgar das nossas egrejas secundarias do
norte e do seu estado actual.
Parece-nos dever concluir, do que temos visto, que as
construcções religiosas em Portugal foram
bastante activas
nos seculos XI e XII, isto é, no periodo romanico.
O periodo ogival não manifesta a mesma actividade.
[209]
Na Sé de Lisboa, como nas de Evora e de Braga e
n'outros pontos, o ogival apparece certamente; mas,
em geral, parece-nos que foi trazido pelas
restaurações
dos edificios e pela construcção de capellas
annexas.
Assim, na Sé de Lisboa, como vimos, a charola é
ogival, guarnecida de capellas, resultando da
restauração
da antiga charola do romanico secundario, estylo
a que pertence a egreja. O claustro é tambem
ogival e deve datar da restauração da charola.
Á esquerda,
logo a principio da nave lateral da egreja, foi
construida nos meiados do seculo XIV uma elegantissima
capella ogival, por testamento de Bartholomeu
Joannes. Esta capella é talvez, apesar das suas pequenas
dimensões, um dos mais ricos exemplares do
ogival francez do segundo periodo, existente em Portugal.
As suas disposições fazem
lembrar—até
certo
ponto e com a devida modestia—as da Sainte Chapelle
de Paris. Está hoje em adeantada
restauração;
devendo constituir, em breve, a unica construcção
completa do Estylo Ogival em Lisboa.
A Egreja do Carmo, como o attestam as respectivas
ruinas, foi um edificio ogival do segundo periodo, de
certa grandeza e de bastante valor architectonico,
muito embora diminuido por evidentes
restaurações,
sobre tudo na capella-mór e nas capellas lateraes das
naves, que a primitiva egreja não devia ter. Esta
construcção,
começada alguns annos depois da do Mosteiro
da Batalha, seguiu-lhe o plano, pelo menos nas
disposições geraes; sem, comtudo, ter podido
nunca
manifestar a elegancia e a pureza de estylo do seu
[210]
bello modelo. É para lamentar que o terremoto de
1755 inutilisasse o unico edificio ogival importante
de Lisboa. Hoje, não seria rasoavel restaural-o
completamente;
mas dever-se-ia tentar, com proveito para
a arte nacional e para a decoração da cidade, a
restauração
das ruinas,—se nos consentem a
expressão—o
que não seria obra difficil nem dispendiosa.
Da Egreja de Alcobaça já falámos
anteriormente,
classificando-a de preferencia no Estylo Romanico de
transição. Julgamos, pois, opportuno apresentar
agora
as rasões de ordem architectonica, em que fundamos
esta classificação, que póde ser
talvez impugnada.
Este edificio religioso, um dos maiores se não o maior
que entre nós existe, é attribuido tambem a D.
Affonso
Henriques; sendo, portanto, coévo da Sé de
Lisboa;
seria, porém, completamente edificado no seculo XII,
ou apenas restaurado e engrandecido n'esse seculo um
templo primitivo existente?
Confessamos não possuir elementos sufficientes para
dar fundada resposta a esta pergunta, embora nos inclinemos
para a segunda hypothese. Esta investigação,
que aliás teria importancia para o estudo perfeito
do monumento, é dispensavel no caso presente, em
que apenas procuramos classifical-o e firmar a nossa
opinião em affirmações claras e
positivas.
Em seguida, apresentamos a planta da parte monumental
do Mosteiro de Alcobaça, famoso pela grandeza
do edificio, pelas ricas propriedades conventuaes
e pelas tradições de opulencia gastronomica dos
frades
beneditinos, que o habitaram.
1 Egreja. |
5 Sacristia. |
2 Sala dos
Reis. |
6 Capella do Santissimo. |
3 Sala dos
tumulos. |
7 Claustro de D. Diniz. |
4 Vestibulo. |
8 Sala do Capitulo |
[211]
A parte monumental é relativamente pequena em
relação
á enorme superficie do Mosteiro; todavia, a egreja
deve em comprimento considerar-se a maior do paiz.
A fachada foi, evidentemente, restaurada, ou melhor,
reconstruida já no periodo da renascença, talvez
a partir dos meiados do seculo XVII, aproveitando-se
pelo menos parte do antigo portal. Esta fachada manifesta-se
fria e pesada, pertencendo ao estylo, assás
espalhado entre nós, que de bom grado chamariamos
jesuitico; porque nos parece
traduzir a ferrea disciplina,
o caracter forte e combatente, o methodo implacavel
e severo d'essa machina de guerra religiosa,
chamada Companhia de Jesus, que, durante seculos,
dominou a sociedade portugueza, organisando-a á sua
imagem e similhança nas instituições,
na philosophia,
na sciencia, na religião e até nas
manifestações estheticas.
É preciso, em verdade, confessar que a fachada da
Egreja de Alcobaça, apesar das qualidades indicadas,
offerece elevado cunho de severidade e um grande aspecto
solemne, que até certo ponto se nos impõe,
resgatando
os defeitos do respectivo estylo. É como a
disciplina e o espirito jesuiticos, aos quaes, por mais
antipathicos que se manifestem á nossa intelligencia
e ao nosso sentimento, não podemos deixar de reconhecer
grandeza e de tributar um odiento respeito.
CONVENTO DE ALCOBAÇA—Fachada da Egreja
A egreja no interior não exprime, tambem, o sentimento
religioso, que se apodera da alma em edificios
ogivaes d'esta natureza, principalmente na bella
Egreja do Mosteiro da Batalha. Este facto provém talvez
[213]
mais de condições secundarias do que das
disposições
geraes architectonicas. É possivel que a
impressão
fosse profundamente modificada, se a egreja tivesse
um dia completa e perfeita restauração e os
vitraes
polychromicos produzissem a suave e poetica
luz, que hoje falta por completo ao grande templo.
Em todo o caso, a egreja não deixa de causar uma
sensação profunda de majestosa e solemne
severidade,
exactamente aquella que produzem os edificios romanicos
e, sem duvida, provém da synthese caracteristica
dos elementos fundamentaes do estylo.
A egreja tem tres elevadas naves, cujas respectivas
abobadas se elevam a egual altura. As lateraes são
muito estreitas e como excepção, que julgamos
assás
rara, inflectem-se em angulo recto, acompanhando os
braços do transepto. A capella-mór, relativamente
pequena,
é envolvida pela charola, onde foram abertas
capellas. Suppomos que estas capellas devem ter sido
construidas no periodo ogival; estão, porém,
tão cobertas
de obra de talha dourada, que não é
facil fazer
seguras affirmações sobre este ponto.
As columnas romanicas da capella-mór, bem caracterisadas,
segundo pensamos, do periodo secundario,
são visiveis da charola; pela frente, estão
mascaradas
por intercolumnios classicos semicirculares, de
construcção
relativamente moderna, muito elegantes: o
inferior da Ordem Jonica e superior da Composita.
N'este ponto reside, sem duvida, uma das difficuldades
e um dos problemas de qualquer futura
restauração.
O Claustro de D. Diniz—damos-lhe a
designação
[214]
vulgar—fica encostado á parede norte da egreja,
commum a ambas as construcções. É um
bello e
grande claustro, o terceiro na ordem architectonica
dos que existem no paiz, considerando o primeiro o do
Mosteiro da Batalha pela unidade e delicioso estylo e
o segundo o do Mosteiro dos Jeronymos. Primitivamente
este claustro apenas teve, como o da Batalha,
porticos inferiores, segundo todas as probabilidades
cobertos por terraços; nos fins do seculo XV ou no XVI
foram construidos os porticos superiores, cuja cobertura
é de madeira e telhados amouriscados.
A Sala do Capitulo abre no portico oriental inferior
do claustro. É uma bella peça architectonica;
sobretudo, a grande porta, ladeada de quatro janelas,
duas de cada banda, constitue um dos melhores exemplares
romanicos, existentes no paiz. Ninguem acreditará,
por certo, que esta porta e estas janelas, tão
puras e caracteristicas, se acham muradas, ficando
separada da parte monumental a respectiva sala, que
outr'ora serviu de
picadeiro ao
regimento de cavallaria
aquartelado no velho Mosteiro e hoje está occupada
pelo
gymnasio militar!
Os restantes edificios, exceptuando a chamada Sala
dos Reis, são construcções
posteriores, annexas ou encostadas
ao antigo monumento. Por pouco se recommendam,
embora sejam elementos integrantes e indispensaveis
da parte monumental.
A Sala dos Reis deve ser coéva da egreja e do
claustro, quer seja primitivo o seu estado actual, quer
resulte de posteriores reconstrucções.
Não tem valor architectonico.
[215]
A sua designação provém
de umas estatuas (?!)
de gêsso com olhos pintados, que sobre
misulas de pedra
ornam as paredes do
recinto. Uma
só phrase define estas grotescas personagens:
ridiculas
e vergonhosas. Seria uma obra de misericordia
artistica
e de amor patrio tirar d'ali aquelles
mônos, que attestam
a esthetica dos gordos frades de Alcobaça e nos
envergonham perante nacionaes e estrangeiros, hoje
começando a affluir em visita ao monumento.
A Sala dos Tumulos, abrindo no ramo sul do transepto,
é de construcção posterior
á da egreja. Edificio
vulgar, contém, apenas, alguns sarcophagos de valor,
principalmente o de D. Pedro I e o de D. Ignez de
Castro, magnificos exemplares do Estylo Ogival, embora
um pouco damnificados pelas profanações, que
em geral soffreram as nossas ricas sepulturas
no tempo
dos francezes. É a defeza habitual da
incuria e falta de
respeito pelas tradições e pelos mortos.
Tambem, muito posteriormente á
construcção da
egreja, uma das capellas envolventes da charola foi
rasgada para ligar o templo com a sacristia actual.
Esta sacristia, de Estylo da Renascença, é muito
pobre
e quasi glacial. Parece-nos posterior á
restauração
da fachada. No extremo da sacristia vê-se um Relicario
circular, todo forrado de talha dourada e de bustos
de madeira, em geral assás feios e mal feitos, que
encerravam as reliquias. Apesar dos defeitos e do pessimo
estylo, se esta palavra se póde applicar ao caso,
este Relicario deveria ser restaurado, como exemplar
dos costumes religiosos do tempo.
[216]
Em frente da sacristia encontra-se uma capella,
actualmente do Santissimo, sem valor architectonico
absolutamente algum. Todavia, no vestibulo, que serve
esta capella e á sacristia, as duas respectivas portas
são de excedente Estylo da Renascença manuelina.
Eis a succinta descripção da planta da parte
monumental
do Mosteiro de Alcobaça. No resto do edificio
nada encontramos que mereça attenção a
não ser
a Sala da Bibliotheca, do Estylo da Renascença, vastissimo
salão com estuques modernos a caír em
pedaços
e ameaçando proxima e perigosa ruina. Nos vãos
das respectivas janelas existem ainda vestigios da
antiga ornamentação, onde se nota a influencia
dos
frescos e pinturas muraes de Pompeia, tão usadas
depois da descoberta, no meiado do seculo XVIII, e das
excavações d'esta antiga cidade romana, situada
nas
margens do Golpho de Napoles.
Não mencionaremos a
pantagruelica cozinha dos
gastronomos frades de Alcobaça, que, segundo parece,
a todas as artes preferiam, a julgar pelo
sanctuario,
a arte culinaria e as famosas
tremendas, pequenas
refeições de um arratel de toucinho assado!
A que estylo pertencem a egreja e o claustro, ao
Romanico de transição ou ao Ogival primario?
É claro que em face d'estes edificios vamos collocar-nos
como os classificadores zoologicos ou botanicos
em frente de novos exemplares. Além d'isso, não
temos
a pretensão de resolver o problema; desejamos,
apenas, enuncial-o claramente, o que em mathematica
se considera meia resolução.
[217]
Comecemos pela egreja, fazendo notar não só a
impressão
particular, que ella produz, mas tambem a circumstancia
de que tanto este edificio, como o claustro
e a casa do capitulo se encontram tão ligados, tendo
paredes communs, que no respectivo conjunto a
construcção
deve ter sido pelo menos quasi simultanea.
Enumeremos, pois, os principaes caracteres romanicos
bem definidos d'estas construcções.
A egreja offerece os seguintes:
1.º Os pilares das arcadas, que dividem as naves,
são rectangulares, massiços e muito fortes,
embora
assás elevados. Os cinco primeiros de cada lado, a
contar do transepto, têem columnas nichadas nos quatro
angulos. Nas faces exteriores d'estes pilares, as columnas,
que sustentam os arcos da nave central perpendiculares
ao respectivo eixo, são chanfradas em
certa altura, não chegando ao pavimento. Nos oito
pilares seguintes, tambem de cada lado, desapparecem
as columnas nichadas e as das faces exteriores assentam
sobre fortes misulas. Todas estas columnas,
que revestem de grandes em grandes espaços os pilares
rectangulares, embora sejam muito elevadas, manifestam
relativamente grande grossura.
Estamos, pois, bem longe dos pilares polistylos ogivaes.
Assim, se a um architecto dessem isoladamente
a secção d'estes pilares e parte da sua
elevação, cremos
que não duvidaria em classifical-os romanicos.
2.º Em algumas bases das columnas da egreja apparecem
garras, cuja fórma nos parece accentuadamente
romanica.
[218]
3.º As portas da Sala dos Reis, a da entrada para
o claustro e a do refeitorio, no portico norte d'este
claustro, manifestamente primitivas, são
caracterisadamente
romanicas.
4.º Os arcos primitivos da capella-mór
são de
puro
Estylo Romanico.
5.º As janelas da capella-mór, as orientaes do
transepto e as lateraes das naves, excepto a ultima de
cada lado proximas do transepto, são de volta inteira.
D'esta exposição suppomos dever concluir a
supremacia
do arco continuo nos elementos fundamentaes
da egreja. A ogiva apparece, sem duvida, mas nem
ao menos é dominante. Assim, na abobada da nave
central apresenta-se pouco accentuada e se o é nas
lateraes, póde o facto attribuir-se á
condição da egual
altura dos fechos das abobadas nas tres naves, que
obrigou o constructor a dar maior ponto aos arcos,
pronunciando a ogiva.
É verdade que o portal da fachada principal é
ogival;
mas nada prova que esse portal seja o primitivo.
Além d'isso, os respectivos capiteis, de folhagens e
galões com muito pequeno relevo, são mais
romanicos
do que ogivaes.
Passemos agora ao claustro:
1.º A porta e as janelas da Sala do Capitulo são
absolutamente romanicas.
2.º Os porticos inferiores são formados de dois ou
tres arcos geminados de ogiva bem definida, com pequenas
rosaceas sobre os angulos curvilineos; mas o
grande arco envolvente é
sempre de volta inteira.
[219]
3.º O pavilhão da fonte tem janelas nas quaes a
ogiva mal se desenha.
Se a tudo isto juntarmos que o coroamento do edificio,
na parte primitiva, é formado de ameias, repousando
sobre forte e simples cachorrame, teremos
dado a summula dos argumentos architectonicos, em
que nos fundamos para a classificação do
monumento.
Outros mais entendidos do que nós que os apreciem,
porque na realidade não temos em geral grande
amor ás nossas idéas e em todas as
occasiões da nossa
vida, sem sacrificio de vaidade, temos procurado apenas
a verdade.
Este bello Mosteiro de Alcobaça teve sorte egual ao
de Thomar. Não o venderam, é certo; mas
transformaram-n'o
em caserna e abandonaram-n'o á pilhagem.
Verdade seja que hoje lá vamos com diminuta somma
restaurando lentamente o magnifico claustro.
Afóra isto, nada mais existe no paiz do Estylo Ogival,
pelo menos que o conheçamos, a não ser em
pequenos
edificios e em trechos encravados em egrejas
romanicas; eis o que nos parece incontestavel. Assim,
na realidade, o unico monumento puro, completo e
relativamente grande, que Portugal possue do Estylo
Ogival, é o Mosteiro da Batalha; por isso mais detidamente
o vamos estudar e descrever.
Da Renascença não é tão
accentuada a nossa pobreza.
Durante os seculos XVI, XVII e XVIII reparou-se
e construiu-se bastante entre nós. As
construcções
são em geral acanhadas, é certo; ás
vezes, de um
estylo de pessimo gosto, como o de quasi todas as
[220]
egrejas d'esse estylo frio, deselegante, disciplinado e
monotono, que, segundo dissemos, parece ter nascido
da influencia do espirito jesuitico, dominante n'esses
seculos. Mas edificios existem, como o Mosteiro dos Jeronymos
em Belem, o Palacio da Ajuda, o Convento
de Mafra, o Convento da Madre de Deus e a Egreja
da Estrella em Lisboa, o Convento de Santa Joanna
em Aveiro e ainda alguns outros, que possuem qualidades
estheticas e architectonicas dignas de admiração
e louvor.
D'este ponto não nos podemos occupar n'este livro,
limitado pela prévia definição do
assumpto; reservando
para mais tarde o delicado estudo do Estylo
da Renascença, se podérmos ainda tentar e
realisar
este trabalho
[8].
PARTE QUARTA
O MOSTEIRO DE SANTA MARIA DA VICTORIA
NA BATALHA
MOSTEIRO DA BATALHA—Vista geral
CAPITULO
PRIMEIRO
ORIGENS E CONSTRUCÇÃO DO MOSTEIRO
O Mosteiro da Batalha é, sem possivel
contestação,
o nosso primeiro monumento do Estylo Ogival, quasi
poderiamos dizer o unico entre nós pela unidade e
grandeza, porque os outros offerecem valor secundario.
Tivemos occasião de apreciar esta
asserção no
capitulo precedente.
A verdade é, ainda, que deve ser considerado, não
pelas dimensões mas pela architectura, um dos primeiros
do mundo. Seria inutil, com effeito, comparal-o
com as enormes Cathedraes de Milão, Sevilha, Strasburgo
e Colonia. A pequena Egreja da Batalha caberia
quasi nos transeptos das duas primeiras cathedraes,
vastos colossos de cinco grandes naves, cujas abobadas
se elevam a mais de quarenta metros nas naves
centraes.
A posição primacial do Mosteiro da Batalha, entre
a multidão dos monumentos ogivaes, é-lhe fixada
pelas formosas condições architectonicas, pela
unidade
[224]
e harmonia de estylo, rarissimas nas outras cathedraes,
pelo sentimento indescriptivel de poesia e
de mysticismo que infunde a todos os visitantes, embora
sejam versados no estudo de outros monumentos
e tenham visto alguns dos principaes. Ora, devemos
observar que é necessario ter um edificio singulares
qualidades estheticas para resistir á falta de grandeza,
que constitue, sem duvida, um requisito quasi
indispensavel nas construcções monumentaes.
Assim, por exemplo, o Alhambra de Granada com o
seu lindo pateo dos Leões, um primor da arte arabe,
visto em gravuras causa grande impressão, que é
modificada
depois de visitado, por effeito da pequenez do recinto.
O aspecto é encantador, de certo; mas falta-lhe
a solemnidade das dimensões. Os porticos do pateo dos
Leões, formados de pequenas columnas cujos capiteis
mal excedem a altura elevada de um homem, offerecem
mesquinho aspecto. O nosso espirito procura augmentar
tudo aquillo, alargar-lhe as dimensões, dar-lhe,
emfim, grandeza e com ella a solemnidade.
Já o mesmo não succede na antiga mesquita de
Cordova, transformada em Cathedral. Se o edificio é
baixo, como em regra o eram os do Estylo Arabe, as
vastas alamedas de columnas, ligadas por dois arcos
sobrepostos e cortando-se perpendicularmente em
enorme superficie, dão-lhe um aspecto original e
grandioso.
Outro tanto não poderemos dizer da Sainte
Chapelle de Paris, riquissimo exemplar do Estylo
Ogival, mas tão pequeno e rendilhado que faz nascer
a idéa de estarmos dentro de um riquissimo e gigantesco
[225]
cofre cinzelado. Taes são as impressões,
que produzem,
pelo menos no nosso espirito, estes dois pequenos
monumentos: o arabe e o christão.
Assim, as condições excepcionaes do Mosteiro da
Batalha, quer em relação á nossa
riqueza artistica,
quer pela sua elevada classificação entre os
monumentos
do Estylo Ogival, obrigam-nos a estudal-o mais
detidamente, procurando, se for possivel, fixar a seu
respeito doutrinas e opiniões, que ainda nos parecem
pelo menos incertas e confusas.
Origem e data da
construcção.—No momento
critico,
em que a batalha de Aljubarrota, dada em 14 de
agosto de 1385, esteve perdida para os portuguezes,
D. João I e o seu grande condestavel Nuno Alvares
Pereira faziam, talvez ao mesmo tempo, o voto de edificar
um templo ao Deus dos Exercitos, porque só elle
os podia salvar n'esse terrivel transe. A victoria dos
castelhanos teria sido, com effeito, a perda irremediavel
do pequeno reino de Portugal, visto que as
condições
politicas do tempo eram differentes das de 1640.
Os votos dos dois poderosos senhores foram entre
nós origem de duas construcções
ogivaes. O espirito
religioso da Edade Media produziu estes resultados
em muitos pontos. Foi, como dissemos, uma das causas
da grande dispersão do Estylo Ogival por todo o
orbe christão no periodo do feudalismo, que aliás
em
rigor não existiu entre nós.
O rei cumpriu o voto, edificando perto dos campos
de Aljubarrota o Mosteiro de Santa Maria da Victoria,
o condestavel elevando em Lisboa o templo do convento,
[226]
onde em vida mystica passou os ultimos annos
da sua existencia. Esta egreja, destruida pelo terramoto
de 1755, é conhecida pelo nome de Ruinas do
Carmo.
A data do começo dos trabalhos do Mosteiro da Batalha
não é facil de fixar. Os archivos do convento,
como aconteceu com os de muitos outros, foram dispersos
e roubados, principalmente depois da revolução
constitucional. Existem, todavia, documentos, pelos
quaes se póde definir com muita probabilidade esta
data e o periodo da construcção.
Na carta regia de 4 de abril de 1388, el-rei
D. João I fez doação do convento
á Ordem de S. Domingos.
É, pois, natural que n'esta data os trabalhos
estivessem começados e parte do convento, pelo menos,
em estado de receber os frades. O cardeal patriarcha
de Lisboa, D. Francisco de S. Luiz, auctor
de uma memoria valiosa sobre o Mosteiro da Batalha,
homem instruido que viveu durante alguns annos no
convento e pôde ainda consultar os archivos mais
ou menos completos, manifesta a opinião de que o
edificio teria sido iniciado em 1387, ou quando mais
cedo no anno precedente.
A necessidade de fazer projectos e de reunir mestres
e operarios habeis, principalmente para obra de
estylo grandioso e rico pouco cultivado entre nós,
exclue, a nosso ver, o curto espaço de um anno entre
o voto e o começo da construcção.
Além d'isso, frei
Luiz de Sousa, o chronista do Mosteiro, cuja
descripção
constitue um primor de estylo e linguagem do
[227]
tempo, frade no proprio convento, na sua
Historia da
Ordem de S. Domingos escreve estas phrases:
«com as
armas ás costas—D. João
I—revia
traças, consultava
architectos, buscava officiaes e, ganhando por uma
parte logares rebeldes que lhe resistiam, ia por outra
edificando paredes sagradas. E foi assim que já havia
tres annos que a obra do Mosteiro corria, quando, estando
de cerco sobre o castello de Melgaço, assentou
de o dar á ordem de S. Domingos».
Esta citação demonstra a vida agitada do monarcha
e o seu cuidado em buscar architectos e artifices
para a realisação do voto, mas em parte
está evidentemente
incorrecta, porque, datando a doação do convento
de 1388, não podia a respectiva
construcção
ter já n'essa epocha tres annos, visto que tambem tres
annos antes se ferira a batalha de Aljubarrota.
Por estas rasões, corroboradas por outras que exporemos
em logar competente, somos levados a fixar o
começo dos trabalhos em 1387 e com grande probabilidade
a suppor, em harmonia com o espirito peculiar
dos votos, que foi escolhido para este acto o dia
do anniversario da victoria sobre os castelhanos, 14
de agosto.
Periodo da
construcção.—O conjunto do
Mosteiro,
como existiu outr'ora porque depois parte do convento
foi arrasada para desaffrontar o monumento,
deve ter sido construido em tres epochas differentes.
A primeira epocha abrange os edificios principaes,
como a egreja, a capella do fundador, o claustro, a
sacristia, o refeitorio e a casa do capitulo. Estes elementos,
[228]
os de maior valor, constituem uma parte monumental
do Mosteiro e são do melhor e mais puro
Estylo Ogival, embora em pontos muito secundarios
offereçam vestigios da renascença manuelina.
A segunda epocha comprehende um outro claustro,
denominado de D. Affonso V e os antigos annexos do
convento.
A terceira epocha envolve as
capellas
imperfeitas e
o respectivo vestibulo.
Occupar-nos-emos, agora, só dos edificios da primeira
epocha, porque os da segunda e os da terceira
serão succintamente apreciados em um dos seguintes
capitulos.
Uma das impressões profundas, que á simples vista
produzem logo os edificios ogivaes da primeira epocha,
é a sua perfeita harmonia e unidade, tão
completas
que no nosso espirito se radica a opinião de que o conjunto
teve planos estudados e realisados por um só
architecto. Esta impressão é manifestada por
todos os
homens versados no assumpto. Citaremos dois.
Murphy, architecto inglez, que em 1793 viajou
em Portugal e visitou o Mosteiro da Batalha, onde
fez estudos desenvolvidos, publicou dois livros conhecidos,
um sobre as viagens, outro sobre o Mosteiro,
acompanhado de magnificas gravuras. Ora, este architecto
escreve ácerca dos edificios, agora considerados:
«no todo vêem-se tal
correcção e regularidade
que apparentemente parece ter sido o resultado de
bem concebido plano original e, ao mesmo tempo, é
evidente que este plano foi seguido e executado em
[229]
progressão regular, sem as alterações
e as interrupções
a que estão, em geral, sujeitas estas grandes
construcções».
Um grande engenheiro portuguez, Luiz Mousinho
de Albuquerque, que durante longo tempo dirigiu as
primeiras obras de restauração do Mosteiro,
distinguindo-se
nas dos vitraes, observa, em memoria que
corre impressa, terem todos os edificios da primeira
epocha paredes communs e directas communicações.
Esta observação indica que a
construcção não podia
deixar de ser simultanea e de obedecer a um plano
geral definitivo, organisado sob as vistas harmonicas
em concepção e estylo de um architecto, ou pelo
menos
de poucos animados do mesmo espirito.
Além d'isso, demonstra que os edificios deviam ter
sido construidos em curto praso. Com effeito, vimos
que nas grandes cathedraes do periodo ogival faltam
em regra a unidade e a harmonia, porque nos longos
periodos de construcção, ás vezes
abrangendo seculos,
muitos architectos se seguiram na direcção das
obras e, durante tão largos espaços, o
meio social e o
gosto artistico tiveram tempo de se transformar sensivelmente,
influindo sobre a unidade e a harmonia
dos monumentos. Nos edificios considerados do Mosteiro
da Batalha não se deve ter dado este facto. Eis
o que resulta da simples observação; ora, os
documentos
e as presumpções positivas demonstram esta
verdade, por fórma irrefutavel.
No testamento de D. João I, feito em 1426, lêem-se
em relação ao estado do edificio as seguintes
phrases:
[230]
«que o Mosteiro se acabe de Crasta, casarias, e
de todolos outros edificios, que a bom comprimento
do dito Mosteiro forem necessarios». Anteriormente, no
mesmo documento, El-rei designa para sua sepultura
a
capella-mór, onde jazia
a rainha D. Filippa, sua mulher,
ou
na outra que Nós ora mandamos fazer,
depois
que for acabada. Cotejando estas duas
citações devemos
concluir que a egreja estava quasi acabada em
1415, anno da morte de D. Filippa, porque o respectivo
epitaphio refere a trasladação do corpo da rainha
para o Mosteiro da Batalha, em 15 de outubro de 1416.
Assim, comparadas estas datas, é ponto incontroverso
que em 1416 a egreja se achava terminada e
estavam em adeantada construcção o claustro
principal
e a capella do fundador; portanto, tambem o
deviam estar a casa do capitulo, o refeitorio e a sacristia,
como corpos annexos e por necessidade do proprio
desenvolvimento das obras.
D. João I morreu em agosto de 1433. Seu filho,
D. Duarte, continuou os edificios, já muito proximos
do fim. O cardeal D. Francisco de S. Luiz transcreve
uma carta d'este ultimo rei, escripta de Setubal,
em 10 de maio de 1436, a Fernão Rodrigues,
védor das
obras—sublinhamos propositadamente o
cargo—dizendo-lhe:
«vimos a carta que nos escreveste pelo
Ruy Fernandes, vosso filho, sobre certas obras que
dizeis que eram ordenadas por El-Rei, nosso Senhor
que Deus haja, que se fizessem logo n'esse Mosteiro e
que quereis saber o que n'este caso havemos por bem
que se fizesse, convem a saber: em vir a agua da
[231]
fonte dos valles, ou da jardoeira, ou da calvaria para
o lavatorio do dito Mosteiro».
As expressões d'esta carta provam que em 1436 a
construcção tocava o fim, porque o lavatorio, a
que
evidentemente se refere D. Duarte, é a bella fonte de
excellente estylo, abrigada no pequeno pavilhão, construido
n'um dos angulos do claustro principal e fazendo
parte integrante da respectiva construcção.
A exposição das opiniões de ordem
technica e a
comparação dos documentos historicos, que
acabamos
de fazer, auctorisam e fundamentam a hypothese de
que todos os edificios da primeira epocha foram construidos
e terminados, pelo menos nos seus elementos
principaes, de 1387 a 1433, isto é, no periodo de quarenta
e seis annos.
Contra esta hypothese podem apenas suscitar-se
duvidas de caracter muito secundario e facilmente
explicaveis, por exemplo: a cruz de Christo e a esphera
armillar, emblemas manuelinos, existentes nos
tecidos rendilhados dos tympanos de alguns arcos do
claustro principal. É evidente que estes elementos podem
ter sido feitos posteriormente, porque não eram
indispensaveis para os usos do Mosteiro; alem d'isso,
é muito possivel que provenham de
restaurações,
visto que a pedra empregada nos edificios é branda
em excesso e, nas peças finas e rendilhadas principalmente,
mostra-se muito sensivel á acção
corrosiva do
tempo.
CAPITULO
SEGUNDO
O ESTYLO ARCHITECTONICO DO MOSTEIRO
Quando tratámos dos Estylos Romanico e Ogival,
expozemos as rasões pelas quaes os nomes dos architectos
d'esses periodos eram pouco conhecidos. Tambem
o do Mosteiro da Batalha segue esta regra quasi
geral; todavia, é assumpto muito interessante esta
investigação, que, ao mesmo tempo, nos
esclarecerá,
sobre varios pontos historicos e technicos do nosso
primeiro monumento ogival. Ouçamos os documentos;
depois virão as deducções geraes e os
argumentos de
ordem technica. Veremos se é possivel lançar
alguma
luz n'estas densas trevas.
«D. João I chamou de
longes
terras, escreve frei
Luiz de Sousa, os mais celebres architectos que se sabiam,
convocou de todos os pontos officiaes de cantaria
destros e sabios; convidou uns com honras, a outros
com grandes partidos, obrigou a outros com tudo
junto. Á voz da grandeza da obra acudiu de
todo o
mundo numero infinito de peonagem a servir e trabalhar
[234]
e ganhar jornaes—que este bem têem as grandes
obras, manter muitos pobres».—E n'outro ponto faz
notar que os religiosos não eram chamados a dar voto,
nem traça, nem ordem nas obras, «unicamente
dirigidas
por officiaes reaes».
Estas affirmações na bocca de um escriptor grave,
eminentemente nacional, que devia ter ao seu alcance
os archivos e conhecer as tradições oraes
monasticas do
Mosteiro da Batalha, offerecem decisiva auctoridade.
Frei Luiz de Sousa viveu por largos annos no convento;
attesta-o a magnifica descripção que d'elle fez
na sua
grande obra, escripta no principio do seculo XVII, isto
é, cerca de duzentos annos apenas depois da
construção
do Mosteiro. Se os archivos do convento já não
existiam, havia a tradição oral, admissivel em
tão
curto espaço de tempo, principalmente n'uma
associação
monastica. Frei Luiz de Sousa não cita o nome do
architecto; mas escreve expressamente que foram chamados
de
longes terras os mais celebres
architectos;
ora, n'este caso, a expressão designa
nações estrangeiras.
Esta interpretação não póde
soffrer duvida, porque
o mesmo auctor mais abaixo explica que o pessoal
acudiu de
todo o mundo. A
declaração é expressa.
Por outro lado, José Soares da Silva, nas
Memorias
de D. João I, affirma que n'outra memoria
do
dominicano Antonio de Madureira se dizia ter sido o
primeiro architecto do Mosteiro da Batalha um irlandez
chamado David Aquete, que então vivia em Vianna
do Castello. Debalde procurámos encontrar esta ultima
memoria, ou determinar a data em que existiu este
[235]
frade dominicano, o que poderia constituir valioso
subsidio para a resolução do problema; todavia,
parece-nos
dever concluir d'estas citações que, entre os
frades dominicanos, passava por averiguado ter sido
estrangeiro o primeiro architecto da Batalha.
O patriotismo dos nossos escriptores antigos, por
vezes exagerado, não teria por certo deixado escapar
a occasião de enaltecer o nome nacional com a gloria
da creação de monumento, que em todos os tempos
foi profunda e geralmente admirado.
Esta furia patriotica offerece um eloquente exemplo.
Murphy, fundando-se na asserção de Soares da
Silva,
anteriormente citada, traduziu Aquete—fórma
portugueza—pelo
nome inglez, que sonicamente lhe corresponde,
escrevendo Hakett, appellido irlandez por
signal. D. Francisco de S. Luiz critica este procedimento
do architecto inglez, que aliás teve tambem
outros motivos technicos importantes para acceitar a
origem ingleza do creador do plano do Mosteiro, e declara-o
exagerado. E como se não bastasse este triste
argumento, accrescenta, com incrivel arrojo, que n'esse
tempo da construcção do Mosteiro eramos a
nação
mais adeantada em architectura e nas outras artes, exceptuando
apenas a Italia!
Ora, n'este ponto, o Cardeal, aliás erudito e grave,
demonstrou pequenos conhecimentos, porque não só
no ogival a Italia nunca teve a primazia, mas n'essa
epoca já a França, a Allemanha, a Inglaterra e os
Paizes
Baixos estavam cobertos de monumentos dos mais
puros estylos, não falando nas outras artes.
[236]
Em contraposição a estes indicios, cujo valor
é incontestavel,
temos a opinião de frei Manuel dos Santos,
que diz chamar-se o mestre da obra Affonso Domingues,
natural de Lisboa, morador na freguezia da
Magdalena, homem digno de eterna memoria pela capacissima
idéa, com que delineou a fabrica. Devemos observar
que este chronista do seculo XVIII, pela sua
posição
official, não nos deve infundir grande confiança
em questões patrioticas. Além d'isso, estudou
tão mal
a questão que, linhas abaixo, escreve haver-se executado
a construcção do Mosteiro de 1385 a 1388, o que
era em absoluto impossivel no curto espaço de tres
annos, confundindo assim a data da doação do
convento,
feita por D. João I, com a do fim dos trabalhos.
D. Francisco de S. Luiz, como é logico, acceita esta
versão e dá-lhe certa plausibilidade. O futuro
Cardeal
Patriarcha de Lisboa estivera por muito tempo no
Mosteiro da Batalha, onde estudou o monumento e
consultou os archivos, existentes no principio do seculo
passado, colhendo preciosas informações sobre os
seus
successivos architectos, pintores e vidraceiros, nomes
que hoje estariam perdidos, se não fossem o zêlo e
a
curiosidade do illustre prelado. Ora, entre os documentos
do archivo, este escriptor viu um de 1402, que se
referia a Affonso Domingues e já o dava por fallecido
n'esta data. Como os trabalhos haviam começado
em 1387, segundo a nossa opinião, este architecto, se
o foi, podia bem ter sido o primeiro, ou um dos primeiros
do Mosteiro da Batalha; não se devendo concluir
d'aqui, comtudo, que fosse o unico, ou o auctor
[237]
do plano primitivo, que bem poderia ter vindo de
longes
terras. Em todo o caso a
observação tem valor.
Affonso Domingues seria architecto? Eis a duvida.
Um grande architecto não se forma isoladamente. No
gabinete estuda-se a arte, que se pratica depois. A
imaginação, a sciencia da
construcção, a firmeza do
estylo, emfim, as grandes qualidades de um architecto,
se dependem do proprio genio, desenvolvem-se pela
pratica e, sobretudo, pela influencia do
meio.
O que existia em Lisboa n'esse tempo tendo verdadeiro
valor architectonico, a não ser do Estylo Romanico
e d'esse bem pobre e pouco? O que estava em
construcção, onde se aquecesse e formasse o seu
genio?
Porque produzir no gabinete e realisal-o depois, sem
a experiencia e a influencia de grandes obras existentes
ou em construcção, plano como o do Mosteiro da
Batalha, seria um rasgo genial, quasi superior ao de
Pascal, que, sendo novo, pelo unico esforço do proprio
genio deduziu os trinta e seis primeiros theoremas de
Euclides. Mas entre a mathematica e a architectura,
as differenças são profundas: na primeira, as
verdades
absolutas existem e concatenam-se no raciocinio; na
segunda, a intelligencia não póde supprir os
factos
numerosos, que constituem a arte e a sciencia do constructor.
É verdade que no seu tempo, em meiados do seculo
XIV, acabára a construcção em Lisboa
de uma
pequena capella do Estylo Ogival, n'este momento em
via de restauração, encostada á velha
Sé; mas o exemplar,
simples e modesto, é do ogival francez do segundo
[238]
periodo, como o attestam os seus caracteres architectonicos
e a assignatura do seu auctor n'uma pilastra
principal, conforme era de uso ás vezes, segundo
já dissemos: uma flor de lyz bem definida, que, se
occulta o nome, define a nacionalidade.
Finalmente, para citarmos uma opinião inesperada
e singular, o auctor da collecção de memorias
relativas
aos pintores, esculptores, architectos e gravadores
estrangeiros, que estiveram em Portugal, cita o nome
de Benjamin Comte. Esta citação não
envolve valor
algum, porque estas memorias, impressas em 1827,
manifestam grosseiras inadvertencias. O nome parece
francez; todavia, cumpre notar que depois da conquista
dos normandos foram introduzidos em Inglaterra muitos
nomes de origem franceza. Esta supposição podia
tomar vulto, se o segundo mestre, ou architecto do
Mosteiro da Batalha, que apparece no documento citado
de 1402, como testemunha e já era fallecido em
1450, Mestre Ouguet, Huet, ou Huguet, não fosse,
como é provavel, a fórma sonica portuguesa do
nome
bem inglez Hewett.
D. Francisco de S. Luiz, para reforçar a hypothese
de que Affonso Domingues foi o architecto do Mosteiro,
diz que bem póde ser este mestre Ouguet o
Aquete, nomeado por Soares da Silva segundo a memoria
do dominicano Antonio de Madureira.
Bem avaliados os documentos e as citações
apresentadas,
o nosso espirito fica perplexo. Sem duvida,
Affonso Domingues existiu e teve importante ingerencia
nas obras do Mosteiro da Batalha; mas isto não
[239]
significa que, se dirigiu as obras, fosse d'elle o plano
primitivo do Mosteiro. Em primeiro logar, poderia
apenas tel-o executado; depois—parece-nos esta
observação
importante—a situação de Affonso
Domingues
tambem podia ser a de simples fiscal da obra,
contractada com uma corporação
franco-maçonica, que
a teria projectado e realisado, como tudo nos leva a
crer e explicaremos mais adeante.
Esta ultima asserção nossa é
corroborada pela carta
de El-Rei D. Duarte, anteriormente citada e escripta
de Setubal a Fernão Rodrigues,
védor das obras, do
Mosteiro da Batalha, em 1436. N'este anno, vivia ainda
o architecto Hewett, que se suppõe ter sido o segundo
mestre das respectivas obras, porque D. Duarte lhe
fez doação em 1436 de umas casas, que elle Hewett
habitava junto das obras; ora, este principe morreu em
1438, reinando apenas cinco annos. N'este periodo de
tres annos de 1433 a 1436, ou pelo menos em parte
d'elle, o architecto inglez teve, como
védor ou fiscal,
Fernão Rodrigues, delegado regio.
Se este devia ser logicamente o systema, como o é
na actualidade nas grandes empreitadas do Estado,
nada repugna ao espirito que o mesmo facto se desse
em epocha anterior com o architecto David Hacket e
o
védor Affonso
Domingues. Assim, ficaria explicado
o apparecimento do nome do segundo no documento
de 1402, que infelizmente, ainda visto por D. Francisco
de S. Luiz, já hoje não existe.
Esta investigação é assás
difficil e uma conclusão,
mais ou menos segura, carece de ser fundada em argumentos
[240]
e provas de outras ordens, que em seguida
procuraremos adduzir. Por emquanto, a nosso ver, a
mais provavel supposição reduz-se a estas
proposições:
que o plano do Mosteiro da Batalha é de origem estrangeira,
ingleza provavelmente, e que o primeiro
architecto, que delineou e começou a realisar este
plano, não era nacional, mas tambem, segundo as
maiores probabilidades, de nação ingleza.
Se os argumentos de ordem historica nos levam a
estas conclusões, vejamos agora onde nos conduzem
outros argumentos e outras inducções de natureza
architectonica.
As construcções ogivaes, obedecendo á
influencia
do
meio particular das
nações, entre as quaes se desenvolveram,
tomaram feições proprias em cada uma,
muito embora subordinadas ás leis e aos caracteres
geraes do estylo. O mesmo facto succedeu com o Estylo
Romanico. Assim, as feições especiaes, diriamos
talvez mais nitidamente, as physionomias do ogival
allemão, francez e inglez são por tal
fórma definidas,
que os grandes entendedores da arte as distinguem
com facilidade. A evolução e a decadencia do
estylo
não se manifestaram, tambem, em identicos periodos;
por exemplo, a Inglaterra conservou mais puro e duradouro
o bom estylo, não offerecendo quasi o periodo
de decadencia. Eis o que escrevemos a proposito do
Estylo Ogival e agora por applicavel repetimos.
No fim do seculo XIV, quando começou a
construcção
do Mosteiro da Batalha, manifestava-se já certa
decadencia na arte ogival do continente, emquanto a
[241]
ingleza era, ainda, pura e florescente. É certo que, pelas
suas condições geographicas e particulares,
Portugal
recebia o influxo das artes um pouco em atrazo;
devemos, pois, entrar em linha de conta com este
facto.
O estylo architectonico do Mosteiro da Batalha
é de um ogival purissimo, de perfeita unidade e
harmonia nas linhas geraes, elegantissimo, sobrio
na ornamentação aliás fina e
distincta; em summa,
traduz os melhores caracteres da arte na mais florescente
edade. Esta impressão resalta do conjunto
do monumento e do estudo das suas differentes
partes.
Faremos notar, por exemplo, a extraordinaria e formosa
visão architectonica, permitta-se-nos a phrase,
que, mais talvez do que em nenhum outro ponto,
o monumento produz, visto do canto do claustro principal,
no terrado junto ao pequeno pavilhão da fonte.
Jámais outros grandes monumentos, dos que vimos,
nos provocaram tão profunda sensação e
sempre repetida;
a não ser, talvez, a grande charola da Cathedral
de Milão.
A construcção do Mosteiro da Batalha
começou,
pois, quando no continente o Estylo Ogival resvalava
para a decadencia; pelo mesmo tempo, erguiam-se em
Sevilha e Milão duas enormes cathedraes de estylo
bem menos puro. Esta coincidencia da pureza architectonica
do Mosteiro da Batalha com a da arte ingleza
parece-nos assás caracteristica; outras rasões
ha, porém, que ainda mais apertam estas
relações.
[242]
Em assumpto tão delicado procuremos a opinião
de um mestre inglez, bem conhecido historiador da
arte. «Nós não encontramos, tambem, em
Inglaterra,
diz Hope, esses porticos profundos, cheios de estatuas
e encimados de grande rosaceas, que se vêem nas
Cathedraes de Strasburgo, Reims, París, Chartres,
Amiens e outros pontos. Apenas podemos formar
idéa d'isto pela rosacea, relativamente insignificante,
da egreja de Exester. Por toda a parte—em
Inglaterra—o
portal e a rosacea são substituidos por uma
porta e uma janela sem proporção alguma entre si,
a
porta sendo muito pequena e a janela muito grande.»
Não multiplicamos as citações para
evitar longa exposição
e porque esta nos parece caracteristica.
Olhando a fachada principal e a do sul do Mosteiro,
porque a egreja está orientada, como era costume,
voltando a capella-mór para o oriente, encontraremos
realisada a regra do historiador inglez, principalmente
na ultima. Outras similhanças se manifestam
nos caracteres do coroamento e da ornamentação,
que seria prolixo descrever. Além d'isso, em todo o edificio
predominam as grandes janelas com maior ou
menor numero de maineis; só duas insignificantes rosaceas
existem na casa do capitulo e essas talvez não
sejam primitivas.
Uma observação fizemos logo n'uma das nossas
primeiras
visitas ao Mosteiro da Batalha, guiado, de
certo, pelas presumpções e pelos factos
historicos, a
que nos havemos mais tarde de referir; pareceu-nos
que a feição, a physionomia artistica do Mosteiro
offerecia
[243]
grandes analogias com a da Cathedral de York,
apesar das profundas differenças nas respectivas linhas
geraes.
Assim, foi com alguma surpreza e contentamento
que se nos deparou, depois, a seguinte opinião de
Raczynski, cuja obra sobre as Artes em Portugal é
bem conhecida: «logo que eu conheci, diz este sabio,
a soberba Egreja da Batalha pelas gravuras de Murphy,
achei-lhe tal analogia com a Cathedral de York,
que não me restou duvida sobre a origem commum
d'estes edificios».
Ora, deve notar-se que este grande critico da arte
não podia ter presumpções fundadas,
nem perfeito
conhecimento dos factos historicos portuguezes, que o
levassem, como a nós, a ser bem guiado ou enganado
por elles. O testemunho é, pois, valioso e insuspeito.
É tambem verdade que Murphy, o architecto inglez
de quem já falámos e a quem Raczynski se refere,
no
seu livro
Viagens em Portugal, diz
que Falkenstein bibliothecario
em Dresde, lhe escreveu: «ser fóra de duvida
que a maior parte das cathedraes ogivaes eram
obra da inspiração de architectos, ou pedreiros
livres—
franco-maçons.
Havendo, tambem, acrescenta Murphy,
recebido informações de empregados dos archivos
de Lisboa, que lhe affirmaram ter sido um architecto
inglez, chamado Stephen Stephenson, o constructor
do Mosteiro da Batalha.
«Foi a Rainha D. Filippa, continúa Murphy, filha
do duque João de Lencastre e neta de Eduardo III,
de Inglaterra, quem deve ter tido maior acção na
escolha
[244]
do architecto. É fóra de duvida que
Stephen
Stephenson fazia parte dos
free and accepted
masons,
cujo centro em Inglaterra era York—
grand-loge of
free masons at York.» Esta
observação valiosissima
podia ter guiado Raczynski; mas não seria sufficiente
para lhe formar a opinião das parecenças, visto
que
lhe faltavam outros elementos.
A affirmação de Murphy póde ser
contestada; d'ella
se conclue, porém, embora implicitamente, que o architecto
inglez encontrára os caracteres do Estylo
Ogival da sua nação no Mosteiro da Batalha,
aliás
não acceitaria nem exporia as hypotheses apresentadas.
Por todas estas rasões, parece-nos demonstrado que
o estylo do Mosteiro é do ogival inglez. Vejamos ainda
se os factos historicos e as respectivas datas, bem
como outros argumentos, corroboram esta conclusão.
Em primeiro logar, a construcção da Cathedral de
York, levada a effeito pelos
franco-maçons da
loja-mestra
d'aquella cidade, começou cêrca do anno de
1245 e tinha terminados os principaes elementos, naves,
transepto, etc., etc., de 1291 a 1360. As obras
do mosteiro da Batalha, havendo sido iniciadas em
1387, permittem as datas não só a influencia
directa
da Cathedral de York sobre o monumento portuguez,
mas explicam até esta influencia pela possibilidade de
ter sido feito o plano respectivo por architectos inglezes
da loja-mestra dos
franco-maçons d'aquella
cidade,
chamados depois a Portugal por D. João I para o
executarem.
[245]
Um facto muito secundario na apparencia parece-nos
avigorar esta presumpção. Alguns nomes
portuguezes
dos elementos architectonicos ogivaes são
perfeitas adulterações das palavras
correspondentes
inglezas, por exemplo: o
maynel, ou
pinazio das janelas,
traduzido por
mainel, o
butress transformado em
botareos, a
gargoil em
gargula. Estes termos, pelo menos,
são de origem ingleza.
Assim tambem, nos tempos modernos, os operarios
inglezes, que primeiro trabalharam no caminho de
ferro entre Lisboa e Porto, deixaram, entre outros
termos especiaes, os
rails, carris,
traduzidos pelo portuguez
popular em
ralhes e as
sleepers, travessas, transformadas
em
chulipas. A analogia tem aqui
grande importancia
e demonstra, a nosso ver, que na primitiva
construcção do Mosteiro da Batalha trabalharam
operarios
inglezes; ora, sendo inglezes, a logica leva-nos
a suppor que deviam ser de York, pertencentes á
grande corporação
franco-maçonica, que
levantou a
grande cathedral d'esta cidade.
Os factos da historia do tempo mais corroboram
ainda esta fundada presumpção. É
impossivel fazer
n'este ponto um quadro completo d'essa phase historica
nacional; por isso, citaremos apenas, apreciando-os
e comparando-os, alguns factos culminantes, que mais
directamente interessam o presente assumpto.
As nossas relações com a Inglaterra eram
então
muito intimas. N'esse tempo, em que não existia
representação
dip
As nossas relações com a Inglaterra eram
então
muito intimas. N'esse tempo, em que não existia
representação
diplomatica permanente, Portugal tinha
n'aquella nação dois embaixadores, cujos nomes a
historia
[246]
conservou: D. Fernando Affonso de Albuquerque
e Lourenço Annes Fogaça.
Eduardo III, o pae do celebre
Principe
Negro, acabava
de crear condados para dois dos seus filhos,
dando-lhes soberania quasi independente: o de Leicester,
para João de Gaunt, e o de York, para Eduardo
de Langley. Os condados eram limitrophes e no segundo
approximava-se do fim a construcção da grande
cathedral, que passa por ser a melhor da Inglaterra e
uma das melhores do mundo.
Sem entrarmos em outros pormenores, digamos que
em começos de 1386 chegaram a Portugal emissarios
de João de Gaunt, duque de Leicester, annunciando
a sua chegada e pedindo navios. De facto, o
duque desembarcou na Corunha, em 25 de junho do
mesmo anno. Em novembro seguinte, n'uma conferencia
realisada no Porto, ficou ajustado o casamento
de D. João I com D. Filippa de Lencaster, filha do
duque inglez. Assim, em fevereiro de 1387 realisou-se
no Porto o casamento.
A fórma, pela qual os factos se precipitam em tempos,
em que as communicações eram difficeis, demonstra
as relações intimas e constantes das duas
côrtes.
É, pois, natural que D. João I, informado pelo
duque
de Leicester das magnificencias da Cathedral de York,
cuja fama corria já por toda a Inglaterra, lhe pedisse
esses
celebres architectos e officiaes de cantaria de
longes
terras, de que fala Frei Luiz de Sousa.
Esta presumpção é logica e humana.
Seria absolutamente
impossivel suppor que D. João I não falasse ao
[247]
duque, seu futuro genro e auxiliar na guerra, na batalha
de Aljubarrota e no cumprimento do voto; como
impossivel é, tambem, que a tal respeito o interlocutor
não se referisse á Cathedral de York.
É muito provavel,
portanto, haverem sido encommendados os planos
para Inglaterra, ou pedidos os architectos para os fazer
em Portugal, dirigindo depois a respectiva
construcção.
A proxima vinda para Portugal de Filippa
de Lencaster facilitava esta resolução.
De certo, estes raciocinios só por si poderiam representar
simples coincidencias de datas; mas ponderados
e cotejados com os restantes, já desenvolvidos, assumem
um caracter de plausibilidade de incontestavel
valor.
Ora, não existe duvida alguma em que architectos
e operarios da loja-mestra
franco-maçonica de York
foram os constructores da grande cathedral; portanto,
é rigorosamente logico e muito natural que a essa
corporação se fossem buscar os elementos para a
construcção
do Mosteiro da Batalha. A prova da cathedral
ingleza, quando outra não houvesse, daria nome e fama
universal aos seus habeis constructores.
É, além d'isso, muito provavel que as
associações
franco-maconicas fossem
empreiteiras, como existem
sociedades modernas. Em qualquer tempo, a eguaes
necessidades sociaes correspondem instituições
similhantes,
ou pelo menos equivalentes. Se assim não
aconteceu, manifesta-se ainda provavel que estas
associações
franco-maçonicas, creadas
tambem para
defeza dos respectivos operarios de todas as ordens,
[248]
se garantissem por meio de contratos de trabalho.
Qualquer d'estes factos, ambos naturaes e logicos, explica
a existencia do
védor, ou
fiscal das obras, Fernão
Rodrigues, que vivia no tempo de D. Duarte.
Assim, ficaria egualmente fundamentada a nossa hypothese:
Affonso Domingues poderia muito bem ter
sido o primeiro
védor
real das obras do Mosteiro da
Batalha.
De todos estes raciocinios e factos, expostos e comparados,
resulta, segundo pensamos, a plena convicção
de que o Mosteiro da Batalha, sendo do Estylo Ogival
inglez, foi planeado e construido por architectos
e operarios inglezes, que faziam parte da
associação
franco-maçonica da
grande-loja de York.
|
LEGENDA
primeira epocha
1 egreja.
2 capela do fundador.
3 sacristia.
4 thesouro.
5 claustro principal.
6 casa do capitulo.
7 ponte ou lavabo.
8 refeitorio.
9 cozinha.
10 adega e dispensa.
11 portaria.
segunda epocha
12 claustro de d. affonso v.
terceira epocha
13 vestibulo.
14 capellas imperfeitas. |
CONVENTO DA BATALHA—Planta geral.
CAPITULO
TERCEIRO
AS EPOCHAS DA CONSTRUCÇÃO DO MOSTEIRO
Como dissemos em anterior capitulo, os edificios,
constituindo o antigo Convento da Ordem de S. Domingos,
na Batalha, foram construidos em epochas
differentes. Depois da extincção das ordens
religiosas,
esteve o Mosteiro completamente abandonado durante
longos annos, caindo em ruinas parte d'elle e soffrendo
graves prejuizos a parte monumental, exposta á
acção
do tempo e ás grosseiras depredações,
praticadas pela
ignorancia popular.
Mais tarde, quando começaram com algum methodo
e continuidade as obras de conservação e
restauração
dos edificios, uns foram arrasados como inuteis,
porque formavam as arruinadas pertenças do convento,
e outros para desaffrontar a parte monumental
do Mosteiro. A planta geral, que apresentamos, traduz
o estado actual e definitivo d'estes edificios.
Em tres epochas muito proximas, quasi successivas,
foram elles construidos. Na planta procurámos distinguir
[250]
estas epochas, dando tons diversos ás
construcções
respectivas existentes. Assim, temos:
1.ª Epocha. Envolve, bem nitidamente definidos pelas
intimas ligações, a capella sepulcral do
fundador,
a egreja, a sacristia, o claustro principal, a casa do
capitulo, a portaria, a adega, a cozinha e o refeitorio.
2.ª Epocha. Comprehende actualmente o claustro
de D. Affonso V e alguns dos antigos annexos.
3.ª Epocha. Abrange, apenas, as chamadas
capellas
imperfeitas, que mais rigorosamente se deveriam
denominar
incompletas, porque o nome
lhes vem de
estarem ainda em grande parte por acabar, e o respectivo
vestibulo.
Da historia dos edificios da primeira epocha já nos
occupámos nos anteriores capitulos, por serem do monumento
os que pertencem ao Estylo Ogival. Não
será, todavia, longa e escusada digressão,
determo-nos
um pouco na apreciação dos edificios das outras
epochas.
Os edificios da segunda epocha eram assás vulgares;
apenas o claustro chamado de D. Affonso V, cujo
reinado durou de 1438 a 1481, offerece algum valor
architectonico. É do Estylo Ogival, muito
espaçoso e
simples, não manifestando ornamentação
alguma, nem
até nos proprios capiteis das columnas prismaticas dos
porticos. Apesar d'isso, as suas linhas geraes são
agradaveis,
embora tenha de luctar com a proximidade do
bello claustro monumental. Sem duvida, foi construido
para servir de centro ás pertenças do convento,
que
principalmente para elle abriam.
[251]
O Cardeal D. Francisco de S. Luiz admitte que a
construcção d'este claustro se deve attribuir aos
mestres
Martin Vasques e Fernão de Evora. O primeiro
d'estes mestres, segundo o mesmo auctor, dirigiu as
obras de 1438 a 1448. Como este claustro era o centro
das pertenças conventuaes, a respectiva
construcção
deve ter acompanhado de perto a dos edificios da
primeira epocha.
Os edificios da terceira epocha reduzem-se ás
capellas
imperfeitas e ao respectivo vestibulo, que
são
peças de elevado valor architectonico, onde a primeira
physionomia do Estylo da Renascença se desenha
com excessiva nitidez e se accentua, á medida
que a ornamentação se manifesta nas partes
superiores
do edificio, parecendo marcar-lhe varios e successivos
periodos de construcção.
Julgamos indiscutivel que este conjunto é obra do
reinado de D. Manuel, que durou de 1495 a 1521.
Assim, logo no interior do vestibulo, por baixo das
lindas janelas que o illuminam, uma ao norte outra
ao sul, vê-se em logar superior o caracteristico
E, letra
do nome d'este rei, Emmanuel, cercada de uns lavores,
que por signal têem dado tratos á
imaginação dos archeologos
pacientes, e por baixo as seguintes legendas
em caracteres romanos:
perfectum fuit anno domini
1509. Ora, é mais do que natural que as
paredes do
vestibulo crescessem simultanea e parallelamente com
a elevação das paredes das capellas.
O Cardeal D. Francisco de S. Luiz, que estudou o
monumento, infere, não sabemos com que criterio,
[252]
que esta data corresponde á suspensão das obras.
Julgamos infundado este asserto. Não é natural
nem
logico suppor que a suspensão se désse n'esse
anno,
quando D. Manuel no seu testamento, feito em 1517,
recommenda com a maior instancia ao seu successor
que as mande acabar.
N'este documento, com effeito, lêem-se textualmente
os seguintes periodos: «item, rogo muito e encomendo
que se mandem acabar as Capellas da Batalha
naquella maneira que milhor parecer, que seja conforme
á outra obra e asy lhe dem entrada para a
Igreja do Mosteiro da milhor maneira que parecer, e
mandem mudar para ellas, sendo primeiro de todo
acabadas, e asy seus Altares, e todas as outras cousas
necessarias: El-Rei Duarte, que foy o primeiro principiador
dellas, e assy El-Rey D. Affonso meu thio,
e El-Rey D. João, que Deus aja, e o Principe D. Affonso,
meu sobrinho».
As phrases terminantes d'esta parte do testamento
parece indicarem D. Duarte como iniciador das obras,
quer este principe tivesse apenas o pensamento de
construir um pantheon de familia, que D. Manuel depois
adoptou, quer lhe lançasse os fundamentos, sobre
os quaes depois, e muito mais tarde, começaram a crescer
os edificios. Em nossa opinião só a tanto se
poderia
ter alargado a iniciativa de D. Duarte, não só
porque
o reinado d'este principe, de 1433 a 1438, foi curtissimo;
mas ainda porque em principios do seculo XV
seria impossivel em qualquer parte, principalmente em
Portugal, o emprego do estylo d'estas capellas.
[253]
N'este tempo reinava o Estylo Ogival no seu estado
de pureza, e a evolução da arte não
manifestára ainda
os primeiros symptomas da renascença. Além
d'isso,
a carta, anteriormente citada, de D. Duarte a Fernão
Rodrigues, védor das obras do Mosteiro da Batalha,
corrobora esta presumpção. O principe
não teria deixado
de referir-se ás obras das capellas, sendo natural
ter maior interesse pelas da sua propria iniciativa. A
construcção devia, pois, estar parada e ter ainda
pequena
importancia no principio do reinado de D. Manuel,
se na realidade passou de simples plano.
Todas estas presumpções são
fortalecidas por outras
rasões, que seguidamente vamos adduzir, muito embora
não pretendamos alongar esta exposição
e fazer
detida descripção d'esta parte do Mosteiro.
A grande porta das
capellas
imperfeitas é uma das
melhores, das mais ricas e bellas, se não a melhor que
temos visto até hoje, fóra e dentro do paiz. Deve
ser
considerada incontestavelmente um primor de elegancia,
de ornamentação e de
execução; mas um architecto
ogival não a poderia ter creado, por maior genio
e sciencia que possuisse. A potente concepção do
artista,
fosse elle quem fosse, já estava fortemente aquecida
pela renascença e enthusiasmada pelas glorias das
viagens portuguezas ao Oriente. Sente-se, vê-se isto
n'aquellas pedras, quasi cinzeladas.
Sem a pretensão de descrever, o que é
indescriptivel
sem o auxilio de planos e desenhos minuciosos,
diremos, apenas, que na face voltada para o vestibulo,
a de ornamentação mais sobria e pura, as molduras
da
[254]
porta estão, de cima até abaixo, absolutamente
cobertas
de pequenos anneis encadeados, em cujos espaços
circulares se lêem caracteristicas legendas. No alto da
porta, em dois grandes anneis similhantes, que a fraca
claridade do vestibulo mal deixa perceber, lêem-se em
caracteres gothicos as palavras gregas:
pante
taray.
Nos anneis mais pequenos repete-se sempre outra legenda,
tambem em grego:
tanyas erey.
Sem falarmos nos erros orthographicos, que provêem
de se empregar muitas vezes n'esse tempo o
y
por
i, estas legendas completam-se
na symbolica e imperativa
phrase:
depressa por toda a parte descobre
regiões.
É o grito da alma portugueza dos seculos XV e
XVI que o architecto deixou gravado na pedra do formoso
monumento!
Na face voltada para o recinto das capellas, o estylo
parece mudar de physionomia. Os rendilhados
assumem proporções phantasticas. A pedra parece
trabalhada por joalheiros. A nossa memoria occorrem
essas filigranas delicadissimas, que a India e a China
nos enviam, abertas em sandalo e marfim!
Se é licito, deante de tal primor, lembrar defeitos,
talvez seja esta ornamentação, levada ao ultimo
excesso
de finura e riqueza, aquelle que impressiona o
nosso espirito, principalmente quando passamos abruptamente
do grande estylo, simples, puro e ideal dos
edificios da primeira epocha para os das
capellas
imperfeitas.
Que nos perdoe o poderoso e genial creador
d'esta maravilha architectonica!
Ora, se é possivel duvidar de que as paredes do vestibulo
[255]
crescessem simultaneamente com as do recinto
das
capellas imperfeitas, duvida que
aliás para nós não
existe, seria um absurdo insustentavel fazer egual
supposição
ácerca da porta monumental, que dá entrada
unica para este recinto.
Devia ter um genio prophetico o architecto ogival,
que em começos do seculo XV, durante o reinado de
D. Duarte, projectasse esta porta monumental de accentuada
renascença, com indiscutiveis influencias
orientaes na ornamentação e nas legendas,
excepcionalmente
escriptas em lingua grega!
No interior do recinto das capellas a physionomia
do estylo muda sensivelmente. Até á altura das
janelas
em começo, a influencia ogival ainda é profunda;
embacia-se
mais, depois, accentuando-se os caracteres da
renascença. Por cima da magnifica porta, que acabamos
de indicar, uma bella janela accusa já fortemente
a renascença italiana, que aliás se manifesta na
ornamentação
geral d'esta parte superior do edificio. Aos
espiritos um pouco versados na historia e nos caracteres
dos estylos occorre que algum tempo deve ter
separado estas duas construcções sobrepostas,
realisadas
por architectos differentes
[9].
[256]
De facto, parece que depois da interrupção da
construcção
das
capellas imperfeitas, ainda no
tempo de
D. Manuel, as obras tiveram andamento. Assim, D. Sebastião,
para continuação dos trabalhos, mandou dar
em 1574, pela Casa da India, 400$000 réis annuaes,
impostos sobre o contrato da pimenta. Já n'este tempo
tinhamos addicionaes! Segundo consta, este imposto
pouco ou nada produziu; mas isto não prova que o
mesmo rei não concedesse outros fundos para esta
construcção, que lhe mereceu as
attenções. Depois, em
1591, Filippe I—o celebre
demonio do meio
dia—mandou
fazer o orçamento, como se diria hoje, para
terminação das
capellas
imperfeitas; mas o dinheiro
nunca chegou de Hespanha, onde mal dava para a
grandiosa obra da construcção do Mosteiro de S.
Lourenço,
no Escurial.
Seja como for, a parte superior das
capellas
imperfeitas
pela feição especial do seu estylo parece-nos
de construcção posterior á outra
parte, devendo datar
dos meiados do seculo XVI.
Apesar do seu incontestavel valor architectonico,
a elevação d'este edificio, na
situação onde se encontra,
foi um grave e irremediavel erro, que se tornaria
monstruoso se a construcção tivesse sido
finalisada
e posto em directa communicação o pantheon
dynastico
com a egreja primitiva, como D. Manuel indicava
no seu testamento. Por esta fórma, as absides
do templo ogival ficariam quasi sem luz e as
communicações
directas só podiam ser rasgadas, ou na
abside central, a capella-mór, ou nas duas absidiolas
[257]
lateraes adjacentes, estragando completamente a bella
egreja ogival.
Ainda no estado actual as
capellas
imperfeitas prejudicam
muito a luz das janelas inferiores das cinco
absides do templo, principalmente das tres comprehendidas
no vestibulo, tirando-lhes os bellos effeitos
dos vitraes, atravessados pelos primeiros raios do sol
nascente, tão procurados pelos architectos da edade
media.
Pensar em demolir as
capellas
imperfeitas, dado o
seu grande valor historico e architectonico, constituiria
um crime de lesa-arte; mas o que poderia fazer-se
com vantagem para ambos os monumentos, um ganhando
luz para as respectivas absides, outro para a
soberba porta acima descripta, seria demolir a abobada
do vestibulo, deixando-lhe apenas as paredes lateraes,
onde existem, como dissemos, duas bellas janelas,
que devem ser respeitadas.
Eis em rapidos traços a summaria
enumeração das
construcções da terceira epocha. Se excede os
quadros
d'este livro, exige-a a descripção do Mosteiro,
que não ficaria completa, se a este trabalho por inopportuno
nos houvessemos poupado.
MOSTEIRO DA BATALHA—Córte longitudinal segundo o
eixo da
Egreja
CAPITULO
QUARTO
DESCRIPÇÃO GERAL DOS EDIFICIOS DA PRIMEIRA EPOCHA
—Estylo Ogival—
Por ordem logica, deveriamos, talvez, começar pela
descripção exterior das fachadas do Mosteiro,
porque
estes elementos se apresentam primeiro á nossa
observação;
todavia, alteramos esta ordem, visto ser impossivel
bem avaliar e estudar uma construcção, sem
previamente haver formado clara idéa das
disposições
geraes da respectiva planta.
I
Plano geral dos edificios ogivaes
Egreja. Está orientada,
como era costume, na direcção
leste-oeste, correspondendo a porta da fachada
principal ao poente e abrindo as bellas janelas das
cinco absides sobre o oriente, d'onde o templo devia
receber a primeira luz radiante da madrugada, atravez
dos vitraes polychromicos. A absurda escolha do
[260]
local para a construcção das
capellas imperfeitas inutilisa,
em grande parte e sem remedio, este effeito
poetico, procurado em quasi todas as cathedraes romanicas
e ogivaes.
A egreja tem tres naves, apenas; a do centro,
mais larga e elevada do que as outras, termina pela
abside principal, tambem de maior altura e comprimento
do que as quatro absidiolas, duas de cada lado,
correspondendo as confinantes com a nave central ás
naves lateraes, e as extremas vencendo o excesso de
comprimento do transepto sobre a largura das tres naves.
Dada esta disposição, não existe
charola. Assim,
a nave central, prolongada pela respectiva abside e cortada
pelo transepto, desenha uma elegante cruz latina.
No extremo sul do transepto abre-se outra porta para
a egreja; esta porta, e a da fachada principal, são as
unicas que de fóra a servem. Em poucas palavras eis
a descripção da elegantissima planta do templo.
A egreja é pequena, já o dissemos; mas
tão pura
de estylo que a pequenez não lhe sacrifica a majestade.
Para formar idea das suas dimensões, apresentamol-as
comparadas com as das Cathedraes de
Milão e de Sevilha, colossos de cinco grandes naves
do Estylo Ogival.
|
|
Milão |
Sevilha |
Batalha |
|
|
m |
m |
m |
Comprimento da
porta ao fim da abside |
148 |
140 |
81,18 |
Largura de todas
as
naves |
57 |
77 |
21,97 |
Comprimento do
transepto |
87 |
77 |
36,12 |
Largura do
transepto |
19 |
16 |
9,48 |
Nave central |
{ Altura |
46 |
40 |
27,73 |
|
{ Largura |
19 |
16 |
9,48 |
MOSTEIRO DA BATALHA—Córte transversal da Egreja
segundo o
eixo do transepte
[261]
N'estas dimensões devemos observar a
relação da
largura para a altura das naves centraes. Na Egreja
da Batalha esta relação é representada
por 1:2,9, emquanto
na Cathedral de Milão attinge apenas 1:2,4 e
1:2,50 na de Sevilha. Differenças similhantes se devem
dar nas naves lateraes; por isso, a expressão de
elegancia do edificio portuguez é bem superior ás
dos
monumentos italiano e hespanhol.
As naves lateraes são illuminadas por sete janelas,
das quaes duas na do sul mais pequenas, porque ficam
em parte inutilisadas pela capella do fundador. São
elegantissimas e correspondem aos vãos interiores das
arcadas da egreja. A nave principal recebe, tambem,
luz de cada lado, por sete janelas do
clerestory, verdadeiras
reducções das anteriores, abrindo sobre os
terraços das naves lateraes, entre os arcobotantes que
amparam o corpo mais elevado do centro.
Estas disposições serão facilmente
comprehensiveis
estudando e comparando as pequenas gravuras correspondentes
ao corte longitudinal, segundo o eixo da
egreja, ao transversal, segundo o eixo do transepto e
finalmente ao do claustro principal
[10].
Por cima da porta principal, uma grande janela
maior do que o vão d'esta porta, fechada por finissimos
rendilhados de pedra, derrama luz suave e multicolor
[262]
ao longo da nave central. O transepto recebe
luz de quatro janelas, rasgadas sobre as absidiolas e
ainda de outra sobre a porta do extremo sul do mesmo
transepto; janela enorme, de dimensões bem superiores
ás da porta, com tympano de quadrifolios sustentado
por dois maineis, entre os quaes existe um tecido
de pedra aberto em lozangos. Em geral, na
ornamentação
dos tympanos das janelas predominam os quadrifolios.
Insistimos na descripção para darmos
idéa
da feição caracteristica do ogival inglez, que se
manifesta
por toda a parte na Egreja da Batalha
[11].
MOSTEIRO DA BATALHA—Córte do Claustro principal
Capella do fundador. Seguindo a
planta, ao entrar
na egreja á direita, depara-se-nos esta capella de
[263]
fórma quadrada, tendo 20
m,1 de lado,
juxtaposta
á
nave do sul, de que inutilisa parte de duas janelas.
O conjunto d'este pequeno edificio é de um encanto
grandioso, apesar das dimensões. O recinto é
illuminado
profusamente por tres janelas em cada uma das
paredes livres, a do centro magnifica, com sete maineis
sustentando um grande tympano, as lateraes de
tres maineis. Arcocelios de puro estylo, encostados ao
lado sul da capella, cobrem os sarcophagos dos infantes
filhos de D. João I e de D. Filippa, cujos restos
foram tambem recolhidos n'outro grande e bello sarcophago,
isolado no meio da capella entre os arcos de
um elevado zimborio, ou torre.
Levanta-se esta construcção sobre oito arcos,
formando
um octogono de 5
m de lado. Estas arcadas sobem
e sobre ellas e as paredes lateraes assentam as
abobadas da parte rectangular da capella; depois, as
respectivas paredes crescem, formando exteriormente
uma torre octogona, amparada por arcobotantes,
tendo em cada uma das faces uma janela. É admiravel
o effeito d'este mausoleo, quer no interior,
quer no exterior, verdadeira obra prima no genero.
Constitue uma creação esthetica tão
feliz no exito,
que, ainda visto muitas vezes, causa sempre agradavel
impressão.
Sacristia. Da absidiola do norte
passa-se para este
recinto, tendo 11
m,95 por 9
m,47,
que nada envolve importante
a não ser as duas respectivas janelas conjugadas,
viradas ao nascente. Para a sacristia abre a
pequena casa do
thesouro.
[264]
Claustro principal. Encosta-se
á nave lateral do
norte; mas os porticos não lhe mascaram as janelas,
que abrem sobre os terraços d'este claustro. Os porticos
são, pois, baixos e não affrontam o corpo da
egreja; pelo contrario, completam-n'o, dando-lhe o
realce de varios planos. Este magnifico claustro, tendo
55
m,3 de lado, é formado de grandes
arcos, encastrados
entre fortes botareos, com tympanos rendilhados
repousando sobre cinco finos columnellos; produz um
effeito deslumbrante. Sob um pavilhão, tendo paredes
communs com o claustro, no angulo sudoeste, existe
o lavabo, ou a fonte, a que indubitavelmente se refere
a carta citada de D. Duarte. N'este ponto gosa-se de
um dos mais bellos golpes de vista, que offerece o
Mosteiro.
Casa do capitulo. No portico
oriental do claustro
depara-se com a entrada d'este edificio, uma grande
porta, ladeada por janelas, uma de cada lado, manifestando
tudo extraordinaria belleza nas linhas geraes
e na ornamentação. A sala forma um quadrado
perfeito de 19
m,95 de lado. É coberta
por um só
vão de
abobada de extrema elegancia, ricamente artezonada
e com enorme bocete. Esta abobada, cuja geração
é
um pouco complexa, constitue uma especie de cupula,
dando em projecção horisontal uma estrella de
seis
raios. Nos cantos da sala os artezões nascem de misulas;
nas paredes, firmam-se em columnellos, que descem
ao pavimento. Em verdade, é uma das abobadas
mais bellas e bem lançadas que temos visto. Além
d'isso, distingue-se pela admiravel perfeição do
trabalho;
[265]
observação que devemos em rigor applicar a
todas
as obras ogivaes do Mosteiro da Batalha.
MOSTEIRO DA BATALHA—Portico sul do Claustro principal
Ácerca da construcção d'esta abobada,
considerada
muito difficil, correm varias lendas. É certo que a abobada
é bastante abatida; não nos parece,
porém, que a
difficuldade extrema da construcção seja o
caracter
que mais a recommenda. Bem mais difficil julgamos
ser a construcção de uma abobada unica, como a
que
por exemplo cobre o extenso transepto da Egreja do
Mosteiro dos Jeronymos, em Belem.
Em frente da porta da entrada d'esta sala, uma
grande janela com vitraes, talvez os mais antigos e
melhores do Mosteiro, dá luz ao recinto. Tambem se
vêem por cima das janelas, que ladeiam a porta, duas
pequenas rosaceas. São as unicas, aliás bem
insignificantes,
que se encontram em todo o Mosteiro, onde
reinam exclusivamente as janelas de formas elegantissimas,
algumas vezes simples, em geral divididas por
maineis.
Refeitorio. Communica com
o portico occidental do
claustro real. Nada tem notavel; é apenas uma grande
sala de 27
m,3 por 9
m,7,
abobadada, bastante feia e
abaixo do valor architectonico do resto do edificio.
Cosinha. Em
communicação directa com o refeitorio
existe a cosinha, tendo 10
m,17 por 9
m,34,
que por
cousa alguma se recommenda.
Adega, e dispensa. Este edificio
abobadado, tendo
37
m,36 por 9
m,34, corre
ao longo do portico norte do
claustro principal, para onde abre apenas por tres
frestas.
[266]
Portaria. É uma grande
sala, tendo 12
m,08 por
9
m,34. Servia de aula para as
lições, que os
frades
davam a estudantes seculares.
Eis a succinta descripção do plano geral do
Mosteiro,
na parte que se refere aos edificios da primeira
epoca, os ogivaes. Quizemos dar uma idéa do conjunto
e das disposições relativas, para acompanhar a
planta
geral e as gravuras, que, segundo pensamos, muito
esclarecem e completam a descripção.
II
Descripção das fachadas
Descrevamos agora succintamente o exterior do edificio,
limitando-nos ás linhas mais geraes. A fachada
principal, que olha para o occidente, é formada por
tres corpos diversos: o da egreja, ladeado ao sul
pelo da capella do fundador e ao norte pelo do refeitorio.
Os dois primeiros estão no mesmo alinhamento,
o terceiro avança sobre este alinhamento a respectiva
largura.
Fachada principal. Não
é ornada de torres. Pertence
á categoria das construcções, de que
são exemplo
as Cathedraes de Sevilha e de Milão. Assim, tambem
n'esta fachada se notam, perfeitamente marcadas
por botareos encimados de pinaculos, tres divisões
verticaes: a do centro correspondendo á nave principal,
e as lateraes ás naves secundarias.
MOSTEIRO DA BATALHA—Fachada principal
A divisão central, de cerca de 30 metros de altura,
excede n'um terço approximadamente as divisões
lateraes.
[267]
Comprehende o unico portal, sobrepujado por
uma grande janela coroada por elegante platibanda.
As divisões lateraes apenas teem as janelas, que illuminam
as respectivas naves. Assim, nas linhas geraes,
a fachada define com nitidez as dimensões e as
disposições
internas da egreja.
Na divisão central, o portal pouco profundo, de
molduras ogivaes embocetadas e decrescentes, repousando
sobre columnellos eguaes, termina no vão da
porta, ornada de tympano de pedra. A parede d'esta
divisão da fachada cresce sobre o portal e quasi a
dois terços da altura cessa, deixando estreita passagem,
resguardada por uma platibanda, em frente da grande
janela, que dá luz á nave principal. Esta
passagem
liga entre si os terraços das naves lateraes. O corpo
medio da egreja, mais elevado do que os colateraes, é
amparado por arcobotantes, dos quaes os mais proximos
da fachada são mais rendilhados e leves.
A ornamentação é de extrema
sobriedade. Por cima
do portal e da janela, altas e estreitas arcaturas—melhor
lhe chamariamos talvez caixilhos ou almofadas—cujo
lavor pouco sobresae da silharia da parede,
parece sustentarem uma faixa de galões tecidos em
losangos. As platibandas do edificio offerecem fórmas
quadrilobadas, repousando sobre cornijas sustentadas
por pequenos modilhões ogivaes. Os botareos centraes
da fachada são ornados de caixilhos ou almofadas,
a partir de certa altura.
A simplicidade da ornamentação, despretenciosa e
pura, é encantadora e traduz no emprego geral das
[268]
arcaturas principalmente e dos caixilhos, bem como
na relação das portas e das janelas e na ausencia
de
rosaceas, os caracteres do ogival inglez, apontados
por Hope, na citação anteriormente feita
[12].
Fachada da capella do fundador.
É ainda de maior
simplicidade. A parte quadrada inferior está dividida
por quatro botareos, em cujos vãos se rasgam tres janelas.
Dos botareos centraes partem arcobotantes, que
terminam proximo das cabeças de outros oito botareos,
revestindo os angulos da torre octogonal; a cada
intervallo corresponde uma das oito respectivas janelas.
A ornamentação, muito sobria e do caracter da
anterior fachada, resume-se nas platibandas, desacompanhadas
de arcaturas. A torre central foi coroada
por um grande corucheo. Pena é que a
restauração do
Mosteiro não abrangesse até hoje este importante
complemento,
que tanto engrandeceria a fachada principal.
MOSTEIRO DA BATALHA—Portal do sul
Fachada do refeitorio. Por um muro
curto e liso,
apenas encimado pela platibanda já descripta, muro
que corresponde a uma pequena extensão do claustro
principal, liga-se a fachada simplicissima do refeitorio
e da cozinha com a da egreja. É um edificio longo,
[269]
dividido por nove botareos, entre os quaes se abrem
janelas ou frestas, seis do refeitorio e duas da cozinha.
São de verga inteira, sem ornamentação
alguma. Platibanda
similhante á do resto do edificio corôa tambem
esta construcção.
Como se vê, o conjunto das fachadas, offerecendo
original simplicidade, é muito sobrio nas linhas geraes
e mais ainda na ornamentação, em nada parecida
com
as disposições complicadas de outras
construcções
ogivaes, principalmente de caracter francez e allemão.
Seria isto ainda um indicio, se necessario fosse, da origem
do estylo do Mosteiro da Batalha.
Fachada sul. Desenham-se as duas
naves, a lateral
com as janelas sobre parede lisa: as duas primeiras
mascaradas em parte pela capella do fundador. A nave
central vê-se por cima, guarnecida de botareos, sustentados
por arcobotantes, encastrando as respectivas
janelas do
clerestory.
Na parte correspondente ao transepto, outro portal,
mais simples do que o primeiro, constitue a segunda
entrada da egreja, tendo por cima a grande janela que
anteriormente descrevemos. Na desproporção dos
respectivos
vãos mais se accentua, ainda, a
observação
de Hope sobre o ogival inglez. Seguem-se as absides
com estreitas janelas e, encostada ao fundo d'essas
absides, a construcção das
capellas imperfeitas.
Fachada norte. A este lado da egreja
está encostado
o claustro. A disposição d'esta fachada
é em tudo similhante
á precedente, salvo a elegante torre do relogio,
coroada de fina e rendilhada agulha.
[270]
O córte do edificio pelo claustro, gravura anteriormente
apresentada, completa a descripção das mais
importantes fachadas, porque as restantes se acham,
em parte ou no todo, mascaradas pelas
capellas
imperfeitas
e pelos edificios do antigo convento, ainda
hoje existentes.
III
A ornamentação architectonica do Mosteiro
A grande arte traduz-se nas linhas geraes, que a
ornamentação deve acompanhar,
realçando-as apenas,
sem lhes prejudicar a pureza e as elevadas qualidades
essenciaes. O excesso de ornatos constitue, em geral,
grave symptoma de decadencia na arte ou falta de
genio nos artistas.
Assim, uma das fórmas fundamentaes da belleza é
incontestavelmente o corpo humano; ora, a suprema
expressão d'esta unidade esthetica consiste em o representar
em completa nudez. A grande difficuldade
está incontestavelmente em realisal-o.
Os artistas gregos, os geniaes creadores da mais
perfeita esculptura do corpo humano, em que até hoje
não tiveram senão bem raros competidores,
descobriram
esta lei do bello e enunciaram-n'a em milhares de
creações, algumas das quaes, que resistiram
á acção
destruidora do tempo e dos homens, são ainda hoje
causa de sincera e profunda admiração. Eis por
que
elles representavam quasi sempre Venus e Apollo, symbolos
da belleza humana, em perfeito estado de nudez;
e quando excepcionalmente lhes envolveram os corpos
[271]
em leves estofos, a ornamentação contribuia para
avigorar
e realçar a perfeição das
fórmas e das carnes
nuas.
Uma das mais formosas estatuas classicas, semi-vestidas,
ainda existente, a Venus Callipygia do Museu
de Napoles, arregaça com a mão esquerda a fina
e leve tunica, deixando ver as linhas mais puras e
suaves do corpo humano, traduzidas admiravelmente
no antigo marmore de Paros, a que os seculos deram
quasi o tom avelludado e quente de uma carnadura
viva e palpitante. A casta Diana, a sabia e guerreira
Minerva não fogem a esta regra. Uma das melhores
estatuas da Galeria Chiaramonti no Vaticano, Diana
contemplando Eudymion adormecido, veste o
peplum
tão cingido, que por baixo d'elle se desenha o bello
torso; a tunica roçagante é tão fina e
sedosa, que atravez
do estofo transparente se vêem as fórmas delicadas
e perfeitas da casta deusa.
Assim, na esculptura como na architectura, o genio
grego demonstrou que nas linhas geraes reside a suprema
belleza, não sendo a ornamentação mais
do que
um accessorio, que, longe de as abafar e deturpar,
deve pelo contrario contribuir para as engrandecer e
realçar. A simplicidade, a pureza e a harmonia da
ornamentação
são, pois, qualidades indispensaveis dos
grandes estylos da arte
[13].
[272]
Os primitivos architectos ogivaes do Mosteiro da
Batalha executaram esta lei esthetica com verdadeiros
rasgos de genio. Assim, em edificio algum do mesmo
estylo, dos muitos que temos visto, a harmonia e
a pureza das linhas geraes tocam o grau da
perfeição,
attingido no monumento portuguez; nem é possivel
encontrar segundo, entre os de correspondente importancia,
tão sobrio e puro na ornamentação.
Estas
qualidades excepcionaes são exactamente as que originam
o seu incontestavel e elevado valor artistico.
A harmonia architectonica entre as linhas geraes e a
ornamentação é tão intima e
perfeita, que, ao primeiro
golpe de vista, o monumento portuguez produz a impressão
profunda de uma unidade esthetica.
É muito difficil, se não impossivel, com simples
palavras definir impressões. Certos movimentos do
espirito são comprehensiveis, porque, nascendo da
propria essencia da alma, todos os possuimos e os
sentimos em maior ou menor escala. A não ser isto,
tornar-se-iam muitas vezes enigmaticos, visto que a
linguagem humana, perfeita para a enunciação de
idéas, é um instrumento incompleto, quando
pretende
definir a intima e profunda natureza das
sensações e
dos sentimentos. Assim, esta expressão
unidade esthetica
poderá parecer obscura aos que não tenham larga
cultura intellectual, ou pelo menos não possuam poderosas
faculdades artisticas.
A nossa experiencia tem-nos demonstrado que em
taes casos uma simples comparação vale mais do
que
longas e didacticas dissertações. Evoquemos do
passado
[273]
de vinte e cinco seculos uma mulher d'essa belleza
singular, que serviu de modelo aos maiores esculptores
da Grecia; vistamol-a, depois, de qualquer
fórma. Ficará sempre uma mulher formosa. Mas o
penteado
elegante e alto, o
peplum afivelado
nos hombros
nús, caindo sobre a tunica leve e roçagante,
emfim,
esse vestuario que o genio grego creou para as linhas
geraes da belleza jonica, fará da mulher formosa uma
unidade esthetica.
Assim, o Mosteiro da Batalha produz-nos a impressão
encantadora das mulheres virgens, honestas e formosas,
ornadas com essa extrema e elegante simplicidade,
que é o reflexo exterior e harmonico de um puro
estado da alma.
Já falámos das fachadas do Mosteiro; bem longe
estamos d'esses enormes porticos profundos de caprichosa
ornamentação, coroados de grandes rosaceas,
e ladeados de torres immensas, cujas agulhas finas e
rendilhadas parece tocarem as mais altas nuvens. O
Mosteiro da Batalha não offerece esta rica
ornamentação.
Nem torres, com flechas arrojadas, nem profundos
porticos guarnecidos de grandes esculpturas de
phantasticas e mysticas personagens, possue o modesto
e singelo monumento!
A Cathedral de Milão é povoada por 6:000 estatuas
de todas as grandezas, dispersas pela vasta
construcção
em nichos de ricos e variadas fórmas. O Mosteiro
da Batalha tem apenas as doze estatuetas do portico;
em mais parte alguma se vê outra estatua, ou um nicho
deserto espera ainda a obra do esculptor!
[274]
O interior da egreja é, tambem, de absoluta simplicidade.
A ornamentação limita-se aos pontos, onde
era indispensavel: aos capiteis das columnas, aos tecidos
das janelas e, por excepção, aos lambrequins de
pedra que guarnecem o intradorso dos arcos das absides.
Os feixes de columnellos, de extrema elegancia e
delicadeza, que revestem os pilares das naves, sobem
a grande altura e ramificam-se nas abobadas, abrindo-se
em simples rede de nervuras singelas. A Cathedral
de Sevilha, no vastissimo cruzeiro e nos primeiros
vãos das naves, a de Milão, em toda a
extensão
da grande nave, offerecem as abobadas recamadas de
verdadeiras rendas de
pedra, entre os meandros de
complicadas nervuras.
As paredes nuas do templo, emolduradas pelos arcos
e pelos columnellos, crescem de baixo até acima sem
o mais simples ornamento, sem a mais ligeira moldura;
n'essas superficies immensas brilham, apenas, as
janelas de excellentes proporções, como refulgem
os
grandes diamantes, encastoados em velha prata oxidada.
A Egreja da Batalha possue a belleza ideal das
suas linhas geraes, a perfeição innegavel da
construcção
e a côr de velho marfim, que os seculos deram á
antiga pedra. Mais nada.
Em todo o Mosteiro reina egual simplicidade. Na
capella do fundador, cujas disposições
elegantissimas
já tentámos descrever, a
ornamentação é um pouco
mais rica nos lambrequins dos arcos da cupula interna.
Não falaremos no tumulo de D. João I e D. Filippa
[275]
e nos bellos arcocelios
dos tumulos dos infantes
seus filhos, porque na realidade não constituem verdadeiros
elementos de ornamentação architectonica.
MOSTEIRO DA BATALHA—Janela do Claustro principal
No claustro principal póde dizer-se que toda a
ornamentação
se concentra tambem nos pontos onde
era indispensavel: nos grandes tecidos dos arcos dos
porticos, na porta e nas janelas da casa do capitulo e
no pequeno pavilhão do lavabo, que existe proximo do
refeitorio.
Os tympanos dos arcos do claustro, sustentados por
finos columnellos, são em geral magnificos. Apresentamos
a gravura de dois arcos: um servindo de porta,
outro de janela. Em ambos, principalmente, no segundo,
ha vestigios e caracteres evidentes de renascença
manuelina.
A porta e as janelas da casa do capitulo são excellentes.
Na gravura do portico oriental do claustro
podem distinguir-se com certa nitidez estes elementos.
Do interior d'esta bella sala já falámos
precedentemente.
O pequeno pavilhão da fonte, ou lavabo, é talvez
o
ponto do Mosteiro onde os architectos empregaram
mais rica ornamentação, cujo caracter melhor se
comprehende
pela inspecção da respectiva gravura, o que
não conseguiriamos em larga
descripção.
Se da ornamentação das fachadas e do interior dos
edificios passamos para a dos coroamentos, a lei da
simplicidade e da harmonia não soffre
excepção.
Parecem
guarnecidos de renda ingleza, disse-nos um dia
alguem, expressando perfeitamente a impressão, que
[276]
elles produzem, pela figura que melhor se adequava
ás tendencias e aos habitos do proprio sexo.
De facto, os coroamentos dos edificios, formando
grandes linhas horisontaes em diversos planos, são
contornados por largas fachas rendilhadas, verdadeiras
platibandas, em geral de espaço em espaço
divididas
por pilastras lisas, encimadas de pequenos pinaculos.
Damos o desenho de
um motivo assás frequente.
O parapeito é guarnecido
de um bello entrelaçado,
onde predomina a flor de
lyz; o corpo da platibanda,
de evidentes quadrilobulos,
assenta sobre uma cornija,
sustentada por modilhões
arqueados.
Este desenho póde considerar-se
o
leit-motiv da
bella symphonia ornamental dos coroamentos dos edificios.
Por toda a parte foi o fio conductor, que dirigiu
e deu unidade á inspiração do
architecto. As fórmas
variam, de certo, um pouco; mas, quasi sem
excepção,
ha sempre em todas a acção e a reminiscencia
do trecho inicial.
Além d'esta ornamentação nada mais
têem hoje os
edificios senão dois pinaculos mais elevados e a agulha,
se tal nome merece o elegante e rendilhado corucheo
da pequena torre do relogio. N'outro tempo, a
capella do fundador foi, tambem, coberta por outro
[277]
corucheo mais consideravel, ignorando nós as
rasões
do seu desapparecimento. Julgamos que este importante
elemento architectonico deve ser reconstruido,
como o exige a linha geral da fachada do Mosteiro,
que assim ficaria muito mais completa e
majestosa[14].
MOSTEIRO DA BATALHA—Porta do Claustro principal
As tendencias horisontaes dos coroamentos, dispostos
em planos não muito differentes, a ausencia quasi
completa dos elementos verticaes de grande altura
dão ao conjunto do Mosteiro uma fórma
acastellada,
muito caracteristica do ogival inglez, que manifesta
fortemente, por exemplo, a Cathedral de York.
Este facto seria ainda mais um indicio, se necessario
fosse, da origem architectonica do monumento portuguez.
A impressão é, sobretudo, bem definida vendo
ao longe o desenho das suas grandes linhas em noite
clara de estrellas, ou de pouco luar; ora, este effeito
cresceria de intensidade, se o edificio ogival fosse
construido em logar elevado, em vez de occupar um
pequeno e fundo valle.
Não se supponha que esta impressão possa provir
da elevação do monumento sobre as
edificações proximas,
ou do tom escuro da grande molle desenhando-se
mysteriosa e solemnemente nas semi-trevas da
noute. Bem maior e mais alta é a Cathedral de Sevilha,
[278]
tambem desprovida de grandes e numerosos elementos
verticaes, e o seu enorme contorno não produz
egual impressão. Emquanto á Cathedral de
Milão o
effeito nocturno é surprehendente; mas de natureza
bem diversa, diremos mais, perfeitamente caracteristica
e propria d'aquelle admiravel colosso.
Sempre que nos foi possivel, não deixámos de ver
os grandes monumentos nas semi-trevas da noite, ou
á luz do luar. Não procuramos só o
effeito poetico,
ainda que esse é um dos fins das artes plasticas. A
physionomia dos antigos monumentos toma na penumbra
da noite uma grandeza especial; fala mais ao
sentimento, que tambem é origem de idéas e
excellente
mnemonica.
Assim, a impressão sentimental do Mosteiro da Batalha,
principalmente do claustro, á luz de um luar
claro, não se oblitera da memoria; como jámais
esquece
o effeito d'esse gigante ogival de Milão, visto de
longe á claridade suave do incomparavel luar de
Italia.
Milão estende-se sobre vasta planicie d'esse fertil
terreno de alluvião, de que é formada quasi toda
a
Lombardia. Do coração da cidade irrompe a grande
molle da Cathedral, dominando tudo em volta de si,
elevando-se, montanha de marmore branco, com as
fórmas phantasticas e caprichosas de um enorme
iceberg
dos mares septentrionaes. Pelo silencio da noite
o monumento parece velar o somno da cidade, protege-a
e fala-lhe quando o enorme sino do relogio,
collocado no alto da grande torre, marca solemnemente
[279]
as horas com graves sons, fortes, avelludados
e severos, que parece encherem o espaço entre os Alpes
e os Apenninos.
MOSTEIRO DA BATALHA—Portico oriental do Claustro principal
Tornando ao Mosteiro da Batalha, devemos concluir
dizendo que o pobre monumento portuguez não possue
ricos vitraes, essa ornamentação tão
bella e caracteristica
dos tempos medievaes. É certo que Mousinho
de Albuquerque, a quem já nos referimos, começou
a restauração methodica dos antigos vitraes, que
na
maior parte encontrou partidos. Este trabalho tem sido
continuado com algum exito; mas bem merecia o monumento
obra mais completa e perfeita.
Da ornamentação subsidiaria dos grandes
monumentos
religiosos, nada existe; nem um simples orgão,
que daria á bella egreja esse mystico encanto da
musica religiosa.
Assim, temos descripto o Mosteiro da Batalha não
com a intenção de lhe fazer completa monographia,
porque esse trabalho exigiria proporções na
descripção,
nos planos e nas gravuras bem superiores á do
presente livro, mas com o simples fim de darmos,
quanto nos foi possivel, exemplos nacionaes dos estylos
architectonicos.
Quizemos escrever um livro portuguez, feito exclusiva
e completamente em Portugal; tel-o-emos
conseguido?...
MOSTEIRO DA BATALHA—Fonte
CAPITULO
QUINTO
RELAÇÃO DOS ARCHITECTOS E MESTRES
Ainda julgamos ser util dar noticia dos nomes dos
mestres e architectos, que em differentes epocas dirigiram
as obras do Mosteiro da Batalha; nomes citados
em documentos, dos quaes hoje muitos se devem considerar
perdidos. Esta simples e incompleta enumeração
poderá talvez servir para guiar futuras
investigações
sobre o Mosteiro da Batalha.
Affonso Domingues. Apparecia em
documento de
1402, que o dava já por fallecido. Como a
construcção
começou em 1387, é muito provavel que fosse um
dos primeiros architectos do Mosteiro, se foi architecto.
Segundo a nossa opinião, expendida n'um dos anteriores
capitulos, Affonso Domingues foi o primeiro
vedor real das
construcções.
Mestre Ouguet,
Huet ou
Huguet. Apparecia como
testemunha, no citado documento de 1402. Depois,
documentos de 1450 e 1451 davam-n'o já como fallecido.
D. Francisco de S. Luiz affirma que bem póde ser
[282]
este mestre o Aquete, de que falla a tradição.
Raczynski
concorda com esta opinião. Emquanto a nós,
parece-nos
que esta hypothese é forçada, porque o nome
inglez sonicamente correspondente é Hewett e não
Hacket. D. Duarte em 1433 fez doação a este
mestre
de umas casas, que ficavam perto do Mosteiro; portanto
elle vivia ainda pelo menos n'este anno. Talvez a casa
doada fosse uma destruida ha poucos annos, sendo vendida
por baixo preço a ultima e bella janela antiga.
Martin Vasques. Apparecia em
documentos de 1450
e 1451, dando-o já como fallecido. D. Francisco de
S. Luiz colloca-o entre os successivos mestres do Mosteiro,
desde 1438 a 1448, anno em que morreu, suppondo,
ignoramos com que fundamento, que este mestre
e o seguinte foram os constructores do segundo
claustro, denominado de D. Affonso V.
Fernão de Evora. Era
sobrinho do precedente mestre.
Vinha mencionado em documentos de 1448 a
1473.
Mestre Guilherme. Por morte de
Fernão d'Evora,
foi nomeado mestre do Mosteiro por D. Affonso V
em 21 de outubro de 1477. (Sousa Viterbo,
Diccionario).
Matheus Fernandes. Era mestre do
Mosteiro, quando
em 1480 D. Affonso V lhe tirou o cargo para o dar a
João Rodrigues, cuja competencia declara superior.
O Sr. Sousa Viterbo pergunta se será outro Matheus
Fernandes, alem dos dois seguintes, ou se o
architecto, caído em desgraça, se rehabilitou
depois?
Parece-nos mais provavel a primeira hypothese.
[283]
João Rodrigues. Nomeado
em 1480 mestre do Mosteiro
por destituição do antecedente. Deve notar-se
que já em 1490 era mestre do Mosteiro o seguinte
Matheus Fernandes. (Sousa Viterbo,
Diccionario).
João da Arruda. Em 1485,
sendo mestre do Mosteiro,
foi mandado a Beja por D. João II para avaliar
certas propriedades. (Sousa Viterbo,
Diccionario).
Matheus Fernandes. Um documento de
1503 falava
d'este mestre, dizendo: «o muito honrado Matheus
Fernandes, vassalo de El-rei, juiz ordinario na villa
do Mosteiro de Santa Maria da Victoria e mestre de
obras do dito Mosteiro, por El-rei Nosso Senhor.» Em
documento de 1497 falava-se em Margarida Fernandes,
sua filha, o que leva a crer que o pae já era mestre
de obras do Mosteiro n'esse anno. Á entrada da
egreja da Batalha, descendo os degraus da porta principal
pode lêr-se ainda o seguinte epitaphio: «Aqui jaz
Matheus Fernandes, mestre que foi d'estas obras, e
sua mulher Izabel Guilhelme e levou-o Nosso Senhor
aos 10 dias de abril de 1515, ella levou-a...» A ultima
data não foi gravada.
D'aqui se póde concluir que Matheus Fernandes foi
mestre de obras do Mosteiro, desde o principio do reinado
de D. Manuel até 1515; ora, como n'esse periodo
a construcção das capellas imperfeitas foi muito
activa, póde, com bastante plausibilidade, attribuir-se-lhe
o respectivo plano. Sua mulher Isabel Guilhelme
é provavelmente irmã ou filha de Guilhelme
Belles, ou Belen, mestre vidraceiro que vivia de 1448 a 1473,
ou do precedente mestre Guilhelme, architecto.
[284]
Matheus Fernandes (filho). Succedeu
ao pae em
1516. Em documento de 1525, apparecia o nome
d'este mestre, dando-o vivo; logo não podia ser o
precedente,
devendo ser naturalmente seu filho. O nome
d'este mestre não se encontrava em mais documento
algum; d'onde D. Francisco de S. Luiz conclue que
foi afastado para outra obra.
Boutaca ou
Boytaca. Apparecia em documento de
1509, como cavalleiro fidalgo da casa de El-rei; era
tambem citado em documentos de 1512, 1514 e 1519.
D. Francisco de S. Luiz dá-o como fallecido em 1528.
Raczynski, sem citar auctoridades, affirma que este
mestre italiano foi o constructor do Mosteiro dos Jeronymos
em Belem. Varnhagen, em artigo publicado no
«Panorama», de 9 de dezembro de 1843, diz que em
documentos existentes na Torre do Tombo, descobriu
que este mestre italiano Potassi foi o constructor do
Mosteiro dos Jeronymos, bem como provavelmente o
da Egreja da Conceição Velha de Lisboa.
Em 1490 apparece um certo Diogo Boytaca, como
auctor do plano do Convento de Jesus, em Setubal,
cuja construcção começou n'esse anno.
A este mesmo
architecto concedeu D. Manuel, em 1498, a tença de
8$000 réis annuaes, a vencer depois do seu casamento.
Sabe-se que depois, em 1512, um Boutaca, residente,
ou pelo menos tendo propriedades, proximo do
Mosteiro da Batalha, era casado com Isabel Amriques.
Assim, foi rasoavel suppor que estes dois Butacas eram
um só individuo. Aconteceu, porém, que ha poucos
[285]
annos se procedeu a obras de restauração na
pequena
Egreja de Santa Maria da Victoria, que durante algum
tempo serviu de freguezia á villa nascente; ora,
subterradas no solo d'esta egreja, foram encontradas
duas lapides tumulares, que veem lançar grande
confusão
nos trabalhos dos archeologos.
A primeira lapide tem o seguinte epitaphio:
Sepultura, de mestre Boutac, cavalleiro da caza
d'El-Rei
nosso Senhor e mestre das obras do reino. Faleceu
a 6 de Dezembro de 157...
O ultimo algarismo da data é illegivel.
Na outra lapide, encontrada junto á primeira,
lê-se:
Sepultura de Isabel Amriques, mulher de mestre
Boutac. Falleceu em 23 d'Abril de 1522.
Assim, á primeira vista parece que este Boutac e sua
mulher são os individuos, anteriormente citados. Mas
para que isto seja possivel é necessario admittir que
Boutac morreu com 100 annos, pelo menos. De facto,
se elle foi o auctor do plano do Convento de Jesus,
em Setubal em 1490 e morreu em 1570, hypothese
mais favoravel, entre estas datas medeiam 80 annos.
Ora, qual seria a edade do architecto, aliás estrangeiro,
quando projectou tão grande obra?
Concedamos 20 annos a Boutac, se é o mesmo; viveu,
pois,
pelo menos, 100 annos. Como
isto não é
nada provavel, resta a hypothese de Boutac pae e
filho; mas, n'este caso deviam existir logo duas mulheres
do mesmo nome Isabel Amriques, morrendo a
a segunda 48 annos antes do marido!
O que nos parece singular, tambem, é a orthographia
[286]
tumular do nome, duas vezes escripto. Se o
c
final foi cedilhado, o som é bem proximo de Potassi.
D. Francisco de S. Luiz classifica Boutaca, entre os
mestres de artes ou officios desconhecidos; ora, é
indiscutivel
que foi architecto e tão importante que
chegou—elle
ou o filho?—a ser
mestre de obras do
reino.
João de Castilho.
Varnhagen, no seu opusculo sobre
o Mosteiro dos Jeronymos, em Belem, diz que João
de Castilho foi nomeado para as obras do Mosteiro
da Batalha em 4 de julho de 1528, por morte de Matheus
Fernandes, filho, o que não nos parece exacto.
Miguel da Arruda. Em 25 de junho de
1533 foi nomeado
por D. João III mestre do Mosteiro, pela renuncia
d'este cargo dada por João de Castilho. (Sousa
Viterbo,
Diccionario).
Dyonisio da Arruda. Sobrinho do
precedente, a
quem substituiu por sua morte. Foi nomeado por
D. João III em 25 de outubro de 1563. (Sousa Viterbo,
Diccionario).
Antonio Gomes. Apparecia como mestre
n'um documento
de 1548; n'outro documento de 1551 era,
apenas, mencionado como pedreiro. D. Francisco de
S. Luiz conclue d'este facto, com boa critica, que as
obras do Mosteiro eram muito pouco importantes
n'esse tempo.
Antonio Mendes. Figurava em
documento de 1578,
como cavalleiro fidalgo da casa de El-rei, Nosso Senhor;
na certidão da ciza, junta a este documento,
lia-se: «Antonio Mendes, mestre das obras de El-rei
Nosso Senhor». D. Francisco de S. Luiz crê que era
[287]
um simples titulo honorifico, dando apenas direito ao
vencimento de mestre de obras.
Guilhelme Bellés ou
Bellen. Apparecia em documentos
de 1448, 1463 e 1473, como mestre vidraceiro.
Este nome é estrangeiro, parecendo-nos de origem
franceza. Deve notar-se que a Cathedral de Bruges
foi sempre celebre pelos seus vitraes.
Mestre João. Apparecia
como vidraceiro em documentos
de 1489 e de 1528, tendo fallecido n'este anno
ou no precedente.
Antonio Faca. Apparecia em varios
documentos,
como mestre vidraceiro, sendo o primeiro de 1532.
Era já fallecido em 1543.
Antonio Faca (filho). Documentos de
1535 e 1538,
demonstravam que o mestre precedente tinha um filho
do mesmo nome, designado pelo
moço. Como este
nome apparecia em documentos de 1543, quando o
anterior era já fallecido, devemos concluir que o filho
succedeu ao pae como mestre vidraceiro. Era já fallecido
em 1596.
Antonio Faca (neto). Apparecia em
documentos de
1608, o que deixa presumir o parentesco apontado,
Este appellido parece-nos ser estrangeiro, talvez italiano
ou hespanhol.
Mestres de artes ou officios desconhecidos
Conjati. Documentos de 1428, 1431 e
1443.
Miguel. Documento de 1440.
Estaço, 1463.
Contemporaneo de Fernão d'Evora.
Conrate, 1428.
[288]
Officiaes de algumas artes e officios
Estevam Gomes, pedreiro, mestre
d'obras do Infante
D. Pedro, 1428.
João Affonso,
apparelhador, 1450.
Gil Eannes, imaginador, documentos
de 1465.
Affonso Lopes, imaginador,
documentos de 1534,
1544 e 1555.
Duarte Mendes, entalhador, documento
de 1535.
Henrique Francez, entalhador,
documento de 1535.
Pero Faca, entalhador, documentos de
1549 e 1561.
Francisco Faca, pintor, documentos
de 1566.
Alvaro Morato, pintor, documentos de
1592.
Muitos d'estes dados são extrahidos da Memoria de
D. Francisco de S. Luiz sobre o Mosteiro da Batalha.
Os documentos foram, pois, compulsados por este escriptor,
cuja auctoridade é incontestavel. Alguns provéem
do
Diccionario dos Architectos, Engenheiros e
Constructores Portuguezes, do Sr. Sousa Viterbo.
COLLOCAÇÃO
DAS PHOTO-GRAVURAS
|
|
Entre pag. |
1.ª |
Schema do uma basilica
romana |
48-49 |
2.ª |
Roma. Basilica de S. Paulo, fachada
principal |
54-55 |
3.ª |
Roma. Basilica de S. Paulo, fachada
lateral |
56-57 |
4.ª |
Roma. Basilica de S. Paulo,
interior |
58-59 |
5.ª |
Roma. Basilica de S. Lourenço,
fachada |
60-61 |
6.ª |
Roma. Basilica de S. Lourenço,
interior |
62-63 |
7.ª |
Constantinopla. Egreja de Santa Sophia,
exterior |
68-69 |
8.ª |
Constantinopla. Egreja de Santa Sophia,
interior |
72-73 |
9.ª |
Sé de Lisboa. Planta
geral |
148-149 |
10.ª |
Sé de Lisboa. Ruinas do terramoto de
1755 |
150-151 |
11.ª |
Sé de Lisboa. Fachada principal
restaurada |
152-153 |
12.ª |
Sé de Lisboa. Fachada lateral
restaurada |
164-165 |
13.ª |
Convento de Thomar. Fachada da
egreja |
202-203 |
14.ª |
Convento de Alcobaça. Fachada da
egreja |
212-213 |
15.ª |
Convento da Batalha. Vista
geral |
222-223 |
16.ª |
Convento da Batalha. Planta
geral |
248-249 |
17.ª |
Convento da Batalha. Córte longitudinal da
egreja |
258-259 |
18.ª |
Convento da Batalha. Córte transversal da
egreja |
260-261 |
19.ª |
Convento da Batalha. Córte do claustro
principal |
262-263 |
20.ª |
Convento da Batalha. Portico sul do
claustro |
264-265 |
21.ª |
Convento da Batalha. Fachada principal da
egreja |
266-267 |
22.ª |
Convento da Batalha. Portal do sul da
egreja |
268-269 |
23.ª |
Convento da Batalha. Janela do claustro principal |
274-275 |
24.ª |
Convento da Batalha. Porta do claustro
principal |
276-277 |
25.ª |
Convento da Batalha. Portico oriental do
claustro |
278-279 |
26.ª |
Convento da Batalha. Fonte no claustro
principal |
280-281 |
Estas gravuras, excepto a do n.º 12—
Fachada
lateral
da Sé de Lisboa,
restaurada—são das officinas do Sr.
Thomaz Bordallo. A do n.º 12,
aliás uma das mais difficeis, é das officinas do
Sr. Marinho. São, pois,
todas nacionaes.
INDICE
PARTE PRIMEIRA
Origens da architectura christã
Capitulo 1.º A lucta entre o paganismo e o
christianismo |
3 |
Capitulo 2.º Os tres primeiros seculos do
christianismo |
17 |
Capitulo 3.º As invasões dos
barbaros |
33 |
PARTE SEGUNDA
Os estylos christãos primitivos
V seculo ao X seculo
Capitulo 1.º Espirito e caracteres do
Estylo-Latino |
45 |
Capitulo 2.º Espirito e caracteres do
Estylo-Byzantino
|
63 |
Capitulo 3.º Acção
reciproca dos dois
estylos
christãos primitivos
|
81 |
PARTE TERCEIRA
Os estylos christãos definitivos
X seculo ao XV seculo
Capitulo 1.º Synthese social dos seculos XI e
XII |
101 |
Capitulo 2.º Espirito e caracteres do
Estylo-Romanico
|
119 |
Capitulo 3.º A Sé Patriarchal de
Lisboa e a sua
restauração
|
141 |
Capitulo 4.º Synthese social do seculo
XIII
|
167 |
Capitulo 5.º Espirito e caracteres do Estylo
Ogival |
181 |
Capitulo 6.º O Estylo Ogival entre
nós |
201 |
[292]
PARTE QUARTA
O Mosteiro de Santa Maria da Victoria
Capitulo 1.º Origens e
construcção do
mosteiro
|
223 |
Capitulo 2.º O estylo architectonico do
mosteiro |
233 |
Capitulo 3.º As epochas da
construcção
do
mosteiro
|
249 |
Capitulo 4.º Descripção
do
mosteiro
|
259 |
Capitulo 5.º Relação dos
architectos e
dos
mestres
|
281 |
Collocação
das photo-gravuras |
289 |
Notas:
[1]
O seguinte curioso facto demonstra a lenta
formação dos estylos
architectonicos. Em 1870, quando a cidade de Lyão esteve
ameaçada
pelos exercitos allemães, o Arcebispo Genouilhae fez a
promessa de reedificar
a pequena capella de Nossa Senhora de Fourvière, existente
n'uma montanha que domina a grandiosa cidade, se ella fosse poupada
pela guerra. O
milagre deu-se e o
voto cumpriu-se; sendo elevada uma
sumptuosa egreja n'esse ponto, onde por signal se disfructa um dos mais
bellos e extensos panoramas do mundo.
Os architectos Bossan e depois Perrin, amhos de incontestavel valor,
sonharam a
formação de um novo estylo, em que o genio da
arte classica
se alliasse ao mysticismo dos estylos christãos n'uma
unidade comprehensivel
pelo espirito moderno. Aos constructores não faltava talento
e sciencia para a tentativa, nem lhes escassearam recursos, porque
na egreja, aliás não muito grande, se
dispenderam, segundo informações
recebidas que não julgamos exageradas, mais de 9:000 contos.
Pois a
tentativa falhou por completo!
É extraordinario o effeito singular, até
desagradavel, que produziu
no nosso espirito aquella formidavel
mistura de elementos heterogeneos,
constituindo, sem a menor duvida, um
montão de fabulosas
riquezas e
de preciosos e admiraveis pormenores architectonicos!
Se nos fosse permittida a expressão, diriamos que
julgámos assistir
a uma
mascarada de estylos, porque,
havendo quasi todos, uns tomam
as feições dos outros, conservando algumas das
respectivas linhas e qualidades
fundamentaes. Ha de tudo, até o boi Apis ornamentando uma
porta interior em Estylo Egypcio!
Todavia, considerados isoladamente, quasi todos os elementos
são
admiraveis de concepção e de
execução. O caso é analysal-os
separados uns dos outros. Na fachada, por exemplo, tres lindissimos
arcos de fórma
ogival repousam sobre elevadas columnas de linha classica, onde todas
as proporções e modulos foram desprezados. Por
cima d'esta arcada rasga-se
uma galeria de caryatides classicas; mas... as estatuas são
oito
anjos em posições mysticas, perfeitamente eguaes
e com solemnidade
byzantina. O edificio é coroado por frontão
tambem de contorno classico,
cujo tympano é preenchido por altos relevos de caracter
byzantino.
Esta fachada é ladeada por duas torres, que têem
ares de romanicas,
não sendo afinal cousa alguma!
No interior reina egual confusão de estylos, e, para de tudo
haver,
grandes superficies das paredes são revestidas por pannos
tecidos ornamentaes.
Eis ao que se chegou pretendendo crear um estylo!
Descendo a montanha, a curta distancia, encontra-se a bella Cathedral
de S. João, um primor ogival como é regra em
quasi todas as
magnificas egrejas de Lyão. E todavia o Estylo Ogival fez-se
com elementos
de variados e successivos estylos!
A differença está em que a
acção dos seculos em lenta
evolução combinou
os elementos d'esses estylos, adoçou-lhes as antinomias e
esbateu-lhe
as linhas rudes dos caracteres; emfim, penetrou-os intimamente
n'um producto harmonico, como a fusão liga metaes
differentes n'uma
constituição physica, onde todos contribuem para
um composto homogeneo.
Assim, no seio de uma mulher se produz um novo ser, que se
parece com os antecessores, mantendo a propria originalidade.
Os novos estylos precisam de incubação no seio
dos seculos.
Este exemplo da Egreja de Fourvière deve ser citado e
apreciado
na Philosophia e na Historia da Arte.
[2]
Durante os trabalhos de restauração
da porta lateral foram descobertas
umas galerias subterraneas, evidentemente anteriores á
construcção
do edificio, porque estão cortadas pelos alicerces d'elle.
Estas galerias
têem cêrca de 1
m,5 de altura
por 0
m,80 de
largura, sendo revestidas
de silharia e abobadadas em arco circular com pedras regulares. As
que percorremos parece virem do lado do Castello de S. Jorge,
atravessam
a Rua do Limoeiro seguindo por baixo dos edificios annexos á
fachada
lateral-norte, até ao liminar da porta lateral da egreja.
Ahi a
galeria bifurca-se, lançando em curva um ramo para dentro da
egreja
e outro seguindo ao longo da parede do edificio, onde se encosta a
Capella
de Bartholomeu Joannes. O primeiro ramo está cortado pelo
carneiro,
onde jazem os restos do Cardeal Patriarcha de Lisboa D. Rodrigo
da Cunha, o segundo pelos alicerces da capella ou da torre; mas ambos
continuam manifestamente para alem d'estes pontos.
Será facil encontrar esta galeria fazendo no solo do
edificio annexo,
que fica á esquerda do vestibulo da porta lateral, um corte
parallelo á
face interna da parede occidental; a pequena altura
encontrar-se-á a
galeria, se um dia houver curiosidade de o fazer.
Segundo pensamos, esta galeria, que nunca foi cano de esgoto ou
aqueducto, é de construcção romana e
póde ser um caminho secreto,
que ligava o velho castello romano com qualquer outro ponto da cidade,
junto ás margens do Tejo.
Parece-nos muito provavel que os tão falados subterraneos da
Sé de
Lisboa se reduzam a esta galeria, que manifestamente percorre o subsolo
da egreja e porventura se ramifica no interior d'ella.
[3]
As principaes dimensões da egreja
são as seguintes:
|
|
metros |
Comprimento da
porta ao fim da
capella-mór |
59,20 |
Comprimento do
transepto |
35,00 |
Largura total das
tres
naves |
21,90 |
|
{ Altura |
18,70 |
Nave
central |
{ |
|
|
{ Largura |
9,60 |
|
|
|
|
{ Altura |
9,20 |
Nave lateral (duas eguaes) |
{ |
|
|
{ Largura |
6,25 |
|
|
|
|
{ Altura |
18,70 |
Transepto |
{ |
|
|
{ Largura |
7,80 |
|
|
|
|
{ Comprimento |
17,80 |
Capella-mór |
{ Altura |
15,65 |
|
{ Largura |
11,40 |
Os comprimentos e as larguras referem-se ás superficies
interiores
das paredes e aos eixos dos pilares; as alturas aos fechos das
abobadas.
[4]
Este famoso
arrendamento, feito pelo Ministerio das Obras
Publicas,
produz 10$000 réis annuaes ao Thesouro!
[5]
O convento tem servido de moradia a algumas familias,
cujos fogões
de cozinha foram alimentados por taboas arrancadas dos tectos
e naturalmente pelas portas
inuteis.
É provavel que o
uso
continue com
os effeitos previstos.
[6]
É versão geral por
40$000 réis.
[7]
A Suissa em outros tempos foi tambem victima da pilhagem
de
objectos nacionaes, artisticos e historicos; pois hoje não
só a administração
publica os defende, como os repatria, comprando-os quando é
possivel.
As gerações actuaes emendam a ignorancia e os
erros das gerações
passadas.
[8]
Observaremos n'este ponto que julgamos muito provavel o
esquecimento
de alguns monumentos dignos de menção.
Não os conhecemos
todos, e dos que conhecemos, muitos vimol-os sem detido estudo. Assim,
haja desculpa para lacunas e erros, excepto n'aquelles de que damos
maia larga informação.
Temos percorrido, apenas, uma parte do paiz; ora, um trabalho completo
e seguro d'esta natureza nem seria este o livro para o fazer, nem
o poderiamos tentar com algumas probabilidades de exito sem percorrer
todo o paiz, estudando a distribuição dos seus
monumentos e o valor
architectonico de cada um. A nossa vida, sempre um pouco trabalhosa,
não nos permittiu em tempo proprio a
realisação d'este desejo, se além
d'isso não existissem outras difficuldades obvias.
[9]
Varnhagen attribue esta janela a João de
Castilho e affirma ter
visto a data de 1533 gravada em qualquer pedra. O illustre engenheiro
condemna-lhe a esthetica com certa violencia, no que não tem
rasão alguma.
Esta
loggia, como muito bem lhe
chama Murphy, é um bello trecho
da renascença italiana, ornamentada com espheras armillares
e a
cruz de Christo; embora, talvez, um pouco em desharmonia com a porta
descripta, que lhe fica inferior. Foi esta discordancia que feriu em
excesso
o talentoso e mallogrado redactor do antigo
Panorama.
[10]
Todos estes cortes são
reproducções reduzidas dos do livro de Murphy
sobre a Batalha, publicado em Londres em 1795. Estão
sensivelmente
exactos e apesar da sua antiguidade são os
unicos que até hoje
se fizeram do nosso primeiro monumento ogival!
[11]
Principaes dimensões da Egreja da Batalha:
|
|
Metros |
|
{ Comprimento total com a capella-mór |
81,18 |
Corpo da egreja |
{ Largura das tres
naves |
21,97 |
|
{
Altura |
27,73 |
|
|
|
|
{
Comprimento |
36,12 |
Transepto |
{
Largura |
9,48 |
|
{
Altura |
27,73 |
|
|
|
|
{
Comprimento |
15,11 |
Capella-mór |
{
Largura |
8,10 |
|
{
Altura |
26,90 |
|
|
|
|
{
Comprimento |
56,59 |
Nave Central |
{
Largura |
9,48 |
|
{
Altura |
27,73 |
|
|
|
|
{
Comprimento |
56,59 |
Naves Lateraes |
{
Largura |
6,24 |
Duas
eguaes |
{
Altura |
19,40 |
|
|
|
|
{
Comprimento |
11,95 |
Absides lateraes |
{
Largura |
5,63 |
Quatro
eguaes |
{
Altura |
12,80 |
Todas as medições se referem á face
interior das paredes e aos
eixos das arcadas.
[12]
A gravura d'esta fachada é
reproducção da que apresenta Murphy
no citado livro, mas devidamente emendada, porque o original inglez
tem erros importantes. A da porta lateral é egualmente de
Murphy.
Adoptamol-as, porque para a descripção offerecem
mais nitidez de que
as photographias, visto que as fachadas do monumento não
foram tambem
ainda rigorosamente desenhadas. As restantes gravuras são
reducções
de algumas da obra sobre a Batalha, do Sr. Visconde de Condeixa.
[13]
Citaremos um facto curioso. Os artistas da
Exposição Universal de
1900, pretendendo fugir a estas leis fundamentaes, representaram a
cidade
de París por uma estatua vestida no estylo moderno. O bom
senso
popular deu-lhe o nome: fizeram uma
cocotte.
[14]
Este
corucheo, que indubitavelmente faria parte do
projecto primitivo,
para nós, pelos vestigios que encontramos nos
traços da capella,
não padece duvida haver existido.
Além d'isso, Murphy desenhou-o e com tal minuciosidade, que
o restaurador
actual terá apenas o trabalho do córte e
assentamento das pedras,
não sendo importante a despeza.
Lista de erros corrigidos
Aqui
encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos: