Nota de editor:
Devido à
quantidade de erros tipográficos existentes neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Maio 2011)
MEMORIA
DOS
FEITOS MACAENSES
CONTRA OS PIRATAS DA CHINA:
E DA
ENTRADA VIOLENTA DOS INGLEZES
NA CIDADE DE MACÁO:
AUCTOR
JOSÉ IGNACIO ANDRADE.
SEGUNDA EDIÇÃO.
LISBOA: NA TYPOGRAFIA LISBONENSE 1835.
Largo de S. Roque N. 12
A C. Dias.
Rien ne peut
arretêr dans leurs projets nouveaux
Ces Portugais ardens
qui volent sur les eaux,
O' com bien de héros guiderent leur
audace!
Que de faits immortels ont signalé leur
trace!
Esmenarde, C. V. pg. 26.
PROEMIO.
Quanto é arriscado escrever feitos gloriosos de homens, que
ainda vivem! Não só os seus inimigos, mas tambem
os feridos do orgulho, ou da inveja, saírão a
vociferar contra a mesma evidencia. Ha quem julgue mais prudente calar
as grandes acções
dos heroes em sua vida. Mas porque se ha de recusar
este premio ás pessoas, que o ganharam a risco da vida e
fazenda?
[1]
Por se temer a mordacidade dos
zoilos?
Eis a fraqueza, que não tenho. Transmittindo a verdade aos
vindouros, e dizendo o que fizeram os Portuguezes dignos deste nome; se
fôr censurado por alguns, louvarão outros o meu
zelo.
[5]
INTRODUCÇÃO.
De todos os espectaculos, que a industria humana tem dado ao mundo
nenhum mais admiravel do que a navegação. Entes
fracos e mortaes filhos da terra ousaram transportar-se sobre elemento
inestavel e perigoso, levantar edificios em cima das aguas, dominar os
ventos, e voar ás extremidades do mundo por baixo de Ceos
desconhecidos.
Mas qual é a sorte do homem? Dotado de
coração tão perverso, quanto o
espirito é grande; o crime assenta-se ao lado do genio. De
todas as
invenções sublimes tem os homens abusado. Dos
vegetaes extraíram venenos: do ouro a moeda que tudo
corrompe. As artes serviram-lhe para multiplicarem os meios de se
destruirem. A navegação é, sobre tudo,
origem de mortandades; o mar tornou-se campo de carnagem; e as ondas
foram ensanguentadas pela guerra.
As duas partes do globo oriente, e occidente,
[6]
terra e mar, são igualmente
o theatro das desgraças e crimes do homem: com a
differença, que dilatando as vistas e passos ao longo do
continente, descobrimos ruinas e despojos do ferro e fogo; campos e
ermos incultos; porém o mar sendo tumulo de grande parte da
humanidade, nenhum vestigio offerece de tantos estragos. Todos os dias
passa o navegador com despejo por cima das ondas, que tem engolido
milhares de homens.
Quem não desejará voltar aos tempos felizes de
ignorancia e parcimonia, em que nossos avós menos grandes,
porém menos criminosos, sem industria, mas sem remorsos,
viviam pobres e virtuosos, e morriam nos campos que os tinham visto
nascer.
[2]
Á custa das vidas portuguezas formaram os nossos
antepassados um estabelecimento na China: os nossos contemporaneos
foram de novo obrigados a ensanguentar as ondas para submetter
Cam-pau-sai ás leis do imperio; e a usar prudencia
consummada além
[7]
do
valor, a fim de livrar Macáo da invasão
britanica.==Nada ha mais proveitoso que a historia para adquirir
prudencia, (diz Jeronimo Osorio) nem mais poderoso do que ella para
despertar virtudes, mais saudavel para sanar as feridas da republica,
nem mais aprasivel para o deleitamento da vida. Mas segundo os homens
foram sempre, não crêm nunca feitos, quem
sahêm álém do seu
engenho e posses; nem ha meio que admittam o que sobrepuja os termos de
trivial esforço, e usada industria.==Todavia os feitos
exarados nesta memoria jámais serão desmentidos;
e podem despertar virtudes.
A China por nós ha muito tempo ignorada, depois inteiramente
desfigurada, e hoje melhor conhecida do que algumas provincias da
Europa, é o imperio mais antigo, extenso, e florecente do
globo. Pelo ultimo censo, feito no seculo passado, foram avaliados os
seus habitantes em duzentos milhões de almas. O rendimento
annual sobe a quinhentos milhões de cruzados. Sustenta
oitocentos mil soldados, e trezentos mil cavallos, que emprega nas
armas, e correios publicos.
[8]
Ha tempo immemoriavel são os imperadores tambem pontifices
do imperio; para que as authoridades civil, e religiosa nunca se achem
em conflicto. Adoram um Deus unico; e offerecem-lhe as primicias de um
campo lavrado, todos os annos em dia solemne, por suas proprias
mãos. Alento exemplar á agricultura, primeira
base da independencia e prosperidade nacional.
Pela maxima da tolerancia geral seguida no oriente, admittem-se os
bonzos de todas as religiões, e deixam-os espalhar os seus
desvarios: mas se chegam a amutinar o povo, são logo
enforcados. Assim os toleram e os reprimem. O imperador
Cham-hi mandou
gravar no frontispicio da sua capella:==O Chang-ti
não tem
principio nem fim: creou e governa tudo: é summamente bom e
justo.==
Os Chinezes em geral são polidos e virtuosos. O Imperador
tem uma só mulher legitima, mas póde segundo as
leis do Imperio ter grande numero de amasias. A sorte destas
é triste, por viverem encerradas. Pagam com a
privação em que vivem da
[9]
sociedade, a honra de satisfazer ao imperante, a
qual devem á formosura, e não ao nascimento, que
os Chinezes desapreciam, quando não é
accompanhado da virtude.
Os Coláos e mandarins letrados são mais estimados
no imperio do que os militares. Entre o grande numero dos primeiros ha
seis que acompanham a côrte. O coláo mais antigo e
de maior merito nomeia os mandarins para todos os empregos superiores,
e os manda punir se não cumprem com o seu dever; o segundo
cuida nos cultos, e dispõe as ceremonias da côrte;
o terceiro é o Ministro da
Justiça; o quarto administra a fazenda; o quinto preside no
ministerio da guerra, e determina tudo, quando é preciso
sustentala; o sexto tem a seu cargo as obras publicas.
Ha outros que deliberam com o Imperador sobre os negocios do Estado.
Além disso tem censores publicos de officio. Em cada uma
provincia ha um Suntó (delegado imperial) com tres mandarins
letrados debaixo das suas ordens. O primeiro conhece das causas civis e
criminaes; o segundo recebe
[10]
os
tributos; o terceiro mantém a segurança publica.
Para chegar a ser mandarim é preciso passar por tres
gráos, como os nossos de Bacharel, Licenciado, e Doutor:
destes são tirados os coláos.
O governo não é despotico como se pensa. Os
mandarins oppõem-se aos seus decretos, quando são
contrarios ás leis do Estado. Querendo certo Imperador
abusar do poder, um mandarim escreveo-lhe pelo modo
seguinte:—Senhor
sei que me arrisco em offender o vosso amor proprio, mas devo preferir
a morte á perda da honra: não posso deixar de vos
advertir, que o máo exemplo dado por vós ao
Imperio nos lança a todos no abysmo.—O Imperador
foi
generoso para não se agravar, mas não o foi para
mudar de conducta. Todos os mandarins esperaram occasião
para lhe mostrar serem dos sentimentos do primeiro.
Não tinha o Imperador filhos legitimos, e pelas leis do
Estado devem ser chamados á successão do Imperio
os bastardos, preferindo sempre o primogenito. O Imperador tinha grande
affeição a um dos outros: pretendeu
[11]
que o reconhecessem, com perjuizo do mais
velho. Os mandarins representaram ao Imperador a injustiça
que pretendia fazer: este por isso privou alguns dos empregos. Aquelles
publicaram um aviso dirigido a todos os mandarins anexos á
côrte para se acharem um dia aprazado no logar ordinario. Ahi
decidiram em junta que visto o Imperador desprezar as leis do Estado,
deviam elles desistir dos seus empregos e ir para suas casas viver como
particulares: assim o executaram.
O Imperador entrou em seus deveres: mandou aos mandarins que tornassem
aos seus empregos, que estava pelo que elles entendiam. Assim
obedeceram todos á lei. Os mandarins ganharam nesta
occasião honra por sua firmeza, e o Imperador por sua
prudencia.
O tribunal da historia, para tudo ser conforme, é surdo
ás supplicas, ou ameaços dos imperantes. Na sala
do tribunal ha um
cofre, onde cada historiador lança suas memorias sem as
communicar a pessoa alguma. No fim de cada reinado abre-se o deposito,
e dos escriptos alli achados formam os annaes
[12]
do Imperio: Para conhecer o espirito deste tribunal
basta o caso seguinte:
Tai-te-song, Imperador da
dynastia de Tang, rogou ao presidente do
tribunal, que lhe mostrasse as memorias que deviam formar a historia do
seu reinado. Senhor, deveis saber, que damos conta exacta dos vicios e
das virtudes dos Soberanos, e que deixariamos de ser livres se
consentissimos no que exigis—O Imperador
tornou:—Pois vós
que me sois tão obrigado, pretendeis levar á
posteridade
os meus defeitos?—Com summa dôr os escreverei, mas
é tal o dever do meu emprego, que me obriga a levar
á posteridade a pretenção, que hoje
tivestes de mim.—
Em todos os paizes as leis punem os crimes, na China fazem mais
premeiam a virtude. A noticia de uma acção
generosa, de uma virtude extremada, assim que se divulga em
qualquer
provincia, é obrigado o mandarim de policia a participala ao
Imperador: este manda logo áquelle subdito um signal, que o
distingue no caminho da virtude.
O certo é, que os vicios e as virtudes dos povos nascem da
sua legislação: esse conhecimento
[13]
deu talvez motivo a esta boa lei dos
Chinezes.—Para fecundar o germen da virtude, os mandarins
participam
da gloria, ou da vergonha das acções virtuosas ou
injustas commettidas em seu governo.
A moral, a obediencia ás leis, e o culto ao ente supremo,
formam a religião do Estado. O Imperador não
é só pontifice, mas
tambem o primeiro orador do Imperio. Seus decretos são quasi
sempre lições de moral.
Subsistem ha mais de quatro mil annos com a mesma forma de governo, as
mesmas leis e costumes, sempre estudiosos e apreciadores das letras.
Com tudo o povo é idolatra; os letrados deistas, sem
acreditarem em revelação alguma, nem na vida
eterna. Dados ao estudo das leis, desprezam por ellas os dogmas e ritos
de seus bonzos. Em verdade estes são ignorantes,
supersticiosos, credulos e ambiciosos de riquezas. A maior parte dos
Chinezes observam as seguintes maximas de Confucio.
Lembra-te que és homem, a tua
natureza
é fraca, podes succumbir. Afasta de ti os obstaculos que te
embaracem o caminho da virtude.
[14]
O homem bom occupa-se de suas virtudes: o máo de suas
riquezas. Aquelle trata do interesse da patria: este só no
seu cuida.
Faze aos outros o que desejas te façam: eis a unica lei que
te é precisa.
O silencio é indispensavel ao sabio; este despreza sempre os
rasgos da eloquencia por inuteis; explica-se por suas
acções. O ceo falla,
mas por que modo nos diz elle ser o Soberano principio de todas as
cousas? O seu movimento é a sua linguagem: creou e deu
impulso á natureza, e esta como filha sua obedece-lhe e
produz.
Quando se trata da saude da patria despreza-se o perigo da vida.
O ganho do imperante avalia-se pela felicidade publica.
Estas poucas regras bastam para se fazer perfeita idéa da
moral Chineza.
Por morte de Afonso de
Albuquerque,
em 1515,
succedeu-lhe no governo da India Lopo Soares de Albergaria: no
principio do anno de 1517, mandou este uma esquadra de nove
embarc,
em 1515,
succedeu-lhe no governo da India Lopo Soares de Albergaria: no
principio do anno de 1517, mandou este uma esquadra de nove
embarcações commandadas por
Fernão Peres de Andrade, levar ao Imperador dos
[15]
Chinezes o Embaixador Thomé Pires, como
El-Rei D. Manoel lhe tinha ordenado.
Por motivo de grande temporal arribou a frota a Malaca, e só
pôde sair daquelle porto, para estrear as quilhas portuguezas
no mar da China, em Junho do mesmo anno. Já os nossos
sabiam, pela amisade contrahida em Malaca, com os Chinezes, a que rumo
lhe demorava Cantão: foram ás ilhas visinhas
daquella cidade por onde enviaram o nosso Embaixador á
côrte.
Quando alli aportou o nosso Andrade, achou uma frota Chineza destinada
a combater os piratas, que infestavam aquelles mares. Sendo
Fernão Peres de Andrade benefico e destemido, anniquillava
preversos, e attrahia qual iman os discipulos de Confucio. Largou
aquelle Imperio deixando nelle as cem trombetas da fama apregoando sua
magnanimidade.
Do meu arco possante
Hoje o famoso Andrade
Alvo
será: seu nome triunfante
No porto surgirá da
Eternidade.[3]
[16]
Assim que largou de Cantão chegou alli Simão de
Andrade, com outros: procederam de forma, que perderam, em credito,
tudo quanto Fernão Peres tinha adquirido. Usaram
tão grandes violencias, que os Chinezes resolveram tratalos
como a piratas. Equiparam grande frota, e cercaram os portuguezes por
todos os lados. Se não fôra um temporal, que abrio
caminho por onde fugiram, ficariam todos prisioneiros.
Depois de tal desar das armas e da honra portugueza, chegou alli Afonso
Martins de Mello, ignorando o que se tinha passado. Assim que os
mandarins o descobriram reuniram a sua frota para atacalo. Martins de
Mello, dizia-lhe, que ia levar paz e não guerra; mas estes
só lhe respondiam por bocas de fogo. Travou-se o combate; os
nossos succumbiram. Assim que Martins de Mello vio perdidos todos os
recursos, cortou a linha inimiga como raio abrazador, e ganhou o mar
largo, deixando os Chinezes pasmados de tal audacia. Foi preciso que os
portuguezes com seu valor e prudencia, fizessem esquecer aos Chinezes a
memoria do immoral Simão, para
[17]
serem outra vez recebidos em seus portos.
Recuperada a boa fé entre as duas
nações obtiveram os portuguezes, em recompensa de
serviços prestados ao Imperio, o isthmo do Sul na ilha de
Macáo, para levantarem casas, debaixo de certas
condições; mas
fizeram
delle uma cidade a que
deram o nome da ilha.
Foi no anno de 1557, que o Imperador da China concedeu aos portuguezes
aforarem aquelle isthmo em premio de terem anniquilado a esquadra do
pirata Chang-Silau.
Em 1584 prometteram os macaenses obediencia a Filippe II,
porém a bandeira portugueza tremulou sempre nas fortalezas
de Macáo.
Em 1586 recebeu Macáo o titulo de cidade do nome de Deus na
China, e todas as liberdades e preeminencias, que tinha a cidade de
Evora, cujos foros se confirmaram em 1709.
Em 1622 tendo Macáo apenas 80 portuguezes, e alguns cafres,
foi atacado por 800 hollandezes: deixaram 500 mortos, e 100
prisioneiros; os restantes fugiram largando em
[18]
nosso poder 8 bandeiras, armas e bagagens.
Antes de fazerem o desembarque, pediram a dois navios inglezes, surtos
na bahia, para ajudalos; estes não duvidaram, mas exigiam o
fruto de todo o saque. Os hollandezes rejeitaram: julgaram muito
excessiva a ambição dos inglezes.
De 1557 até 1625 foi Macáo governado pelos
capitães de navios do Estado, que todos os annos iam de
viagem ao Japão, e faziam escala naquella cidade. Com esses
governadores teve prosperidade.
Em 1626 foi de Goa para Macáo D. Francisco Mascaranhas para
Governador com o titulo de Capitão Geral. Começou
no seu governo a desintelligencia com o Senado, e a
dissolução praticada pelos Governadores. Este foi
grande assassino, grande roubador e forçador cruel das
mulheres e filhas dos
cidadãos.
Levou os macaenses a tal
desesperação, que o mataram, a fim de se verem
livres de tão horrendo monstro.
Em 1641 chegou alli a noticia da feliz aclamação
do Senhor D. João IV: os
macaenses logo romperam os grilhões de Filippe, e
[19]
mandaram grande donativo á capital do Rei
legitimo.
Em 1709 soffreram segundo Verres; Diogo de Pinho Teixeira; chegou a
mandar bombardear o Senado, onde ferio e matou, por não
consentir em suas prepotencias.
Em 1726 chegou a Macáo o Embaixador Alexandre Metello de
Sousa Menezes, mandado por El-Rei D. João V. ao Imperador
da China. Os moradores daquella cidade cooperaram muito para
sustentar-se o decoro nacional naquella embaixada.
Em 1747 foi governar Macáo, Antonio José Telles:
espantou os algozes do Imperio Chinez por suas crueldades. Levou
aquelle estabelecimento aponto de perder-se.
Esta cidade celebre pela riqueza de seu trato, illustre pela fama de
nossas victorias, é situada na latitude de 22
1⁄4
gráos ao Nórte do Equador, e 122.° ao
Oriente de Lisboa. Seus habitantes pouco distam dos nossos
periecos; motivo talvez por que o
Padre Antonio
Vieira disse: que a espada dos portuguezes tinha chegado, onde
não alcançou a penna de Santo Agostinho. Tem de
extensão a cidade pouco mais
[20]
de uma legua. Do lado do Norte é defendida por grossa
muralha guarnecida de fortins: e do Sul por tres fortalezas. A de S.
Francisco na parte oriental da Praia Grande; a do Bom porto na ponta
occidental e a de Sant-Iago que defende a entrada da barra: tem mais
entre as primeiras duas, o forte de S. Pedro. No centro a fortaleza do
monte domina toda a cidade. Além destas fortalezas tem outra
sobre o monte da Sr.
a da Guia, fora dos muros da
cidade. As casas
são bem edificadas, mas as ruas desiguaes. O porto
é bom: podem entrar nelle navios em lastro de oitocentas
tonelladas. Tambem podem surgir ao largo náos de 74. A
povoação é de 20 mil individuos, a
maior parte Chinezes. O Governo é o Senado composto de dois
Juizes ordinarios, tres Vereadores, um Procurador, e um
Escrivão. O Governador militar ou Capitão Geral,
e o Ouvidor, são chamados ao Senado, quando ha negocios
politicos, ou de fazenda. Neste caso preside no Senado o
Capitão Geral, e tem voto de qualidade. A tudo o que
é relativo ao governo municipal preside o Vereador do mez.
Os macaenses são tão zelozos das suas liberdades,
[21]
que até na meza das
sessões do Governo tiraram ao Presidente a regalia de ficar
isolado no extremo della. Sendo nove os membros, collocaram a meza
dentro de uma tribuna de modo, que ficam tres de cada lado; a frente
é livre para entrar e sair.
Sobre a meza descança um extremo da vara da
Justiça, e o outro fica encostado na parede por cima da
cabeça do Ministro: um delles (Lazaro da Silva Ferreira)
assombrando-se com ella tocou-lhe de proposito para a fazer cair, e
mandou-a tirar, dizendo lhe ferira a cabeça. Os Senadores
mandaram por-lhe um gancho no extremo, e uma argola na parede para
segurar assim a insignia da Justiça. Outro dia o Ministro ao
entrar tocou-lhe para caindo lançala fora: ficou surpreso ao
ver, que estava segura. O Vereador do mez tirou-o do
embaraço dizendo:—Tributamos tão grande
respeito
a nossos maiores, que não podemos prescindir deste seu
costume; e presamos tanto a V. S.
a, que para
não o ferir a
vara da Justiça mandamo-la segurar.
Ha um Bispo, e um Batalhão de naturaes de Goa, commandados
por Officiaes macaenses;
[22]
guarnece as
fortalezas, e faz as rondas da cidade. Seus rendimentos são
os direitos da Alfandega.
As minhas viagens á China deram-me occasião para
conhecer os descendentes dos honrados portuguezes, que no tempo do
nosso captiveiro debaixo do pezado grilhão dos Filippes
tiverão a constancia e valor de conservar illesos os foros
nacionaes naquelle canto do mundo. Ainda que logravam a amizade dos
Chinezes, só tinham seus braços para se
defenderem das nações da Europa, que alli foram
atacalos. A historia diz pouco ácerca dos grandes feitos
macaenses daquella época.
[4]
Apenas dessas grandes
acções ha hoje pintadas algumas mais notaveis na
Sé e Senado de Macáo. Tudo o mais se tem perdido
com os heróes, que tão dignos eram de memoria
eterna.
Em 1808 foram os macaenses atacados por tal forma, que a não
terem herdado o valor de seus maiores, de certo succumbiriam
[Nota 1ª].
Fui testimunha de feitos mui gloriosos. Os
portuguezes
[23]
nesta época mostraram-se grandes
nas armas, e na politica; nas armas pelo valor com que tomaram a grande
esquadra de Campau-sai, na politica, pelo bem que se houveram com os
Chinezes e Inglezes. Salvaram Macáo de nadar em sangue;
acreditaram-se com os primeiros; e foram uteis aos segundos. Deixarei
tão nobres acções no esquecimento
á
maneira de nossos maiores? Não: farei diligencia para as
transmittir á posteridade. Se não forem uteis aos
presentes, se-lo-hão por certo aos vindouros. Não
ha cousa mais capaz de fortalecer nossas almas, do que as proezas de
nossos avós. Julgo de obrigação
referilas a nossos
nétos.
Macáo é monumento precioso da gloria portugueza.
Fernão Peres de Andrade, foi quem primeiro immortalisou os
portuguezes naquella parte do mundo. Ver-se-ha firmado pela
mão dos Chinezes, que ainda temos grande
consideração naquelle imperio.
Contendo esta memoria dois objectos differentes, julguei a proposito
lançalos em separado; ainda que um principia antes e acaba
depois do outro. Pegaram os macaenses ás mãos com
os piratas em 1805: A esquadra
[24]
ingleza
aportou em Macáo a 18 de Setembro de 1808, e saiu a 10 de
Dezembro do mesmo anno. O Tratado entre o Governo Chinez e o Macaense,
para a completa derrota da esquadra de Cam-pau-sai, foi assignado em 23
de Novembro de 1809, e concluido tão importante negocio em
Abril de 1810. Para o leitor vêr sem custo as grandes
difficuldades, que em Macáo se venceram, dividirei, esta
memoria em duas partes. Tractarei na primeira da
extincção dos piratas. Cousas ha nesta parte, que
se fossem praticadas em tempos mais tenebrosos, seriam tidas por
milagres, sendo só o esforço de almas valorosas
que mandaram seus braços com a penna e espada obrar taes
prodigios. Na segunda fallarei da invasão dos inglezes em
Macáo, da sua e nossa conducta, assim como da politica
Chineza, e do final resultado.
Em Athenas, eram os famosos oradores quem celebravam os heroes de
Salamina; e tinham por ouvintes os Socrates e os Pericles. Eu
não tenho os mesmos talentos, e tenho juizes não
menos temiveis. Mas em objecto desta natureza a eloquencia consiste em
ser sincero.
[25]
PRIMEIRA PARTE.
Ao valor dos Portuguezes deve o Imperio da China ver-se livre dos
piratas, que por duas vezes pertenderam dominalo. A primeira foi obra
dos Lusitanos do seculo XVI: a segunda de seus descendentes nossos
contemporaneos, a tempo que seus irmãos na Patria
anniquilavam as aguias do oppressor da Europa. Depois que no seculo XVI
os piratas foram destruidos, tentaram formar novo partido; e pouco a
pouco engrossaram seu numero e força de modo, que em
1805
estavam senhores de grande esquadra, bem guarnecida de artilheria, e
com perto de quarenta mil homens de tripulação.
Tendo morrido o Chefe dos piratas ficou sua mulher, não
só herdeira do posto, mas tambem da sua audacia no exercicio
da piratagem. Assim que tomou posse do commando de tão
grande poderio, dividio-o em duas esquadras, e deu o commando dellas a
dois parentes do marido, que mais se tinham acreditado debaixo das suas
ordens. A primeira e mais possante coube ao
[26]
celebre
Apócha,
que
depois se chamou
Cam-pau-sai, e onde sempre
residio a viuva.
Apau-tai foi commandar a segunda, composta de 130
embarcações, e com bandeira preta.
Cam-pau-sai, homem forte, ardiloso e emprehendedor, depois de ter
ganhado o affecto dos seus, teve arte de dispolos a executar qualquer
empreza que imaginasse. Com effeito concebeu projecto tão
elevado, que bem se pode comparar com o de Afonso de Albuquerque,
quando pertendeu tirar da Meca o corpo do Profeta, e mudar a
direcção do rio Nilo, fazendo-o desaguar no mar
roxo para anniquilar desse modo os Turcos no Egypto! Cam-pau-sai tentou
coroar-se Imperador dos Chinezes, e lançar a dynastia
Tartara para o Norte da grande muralha, que a divide da China.
Começou a fazer guerra tão atroz, que
não só paralisou o commercio maritimo nas costas
meredionaes do Imperio, mas tambem fazia desembarques no
continente, e arrasava todos os logares por onde passava.
Sendo a
Cidade de
Cantão a mais rica e a
mais commerciante, quiz embaraçar alli o negocio com os
europeos. Para esse fim veio postar
[27]
suas forças na emboccadura do rio Tygre, e em todos os
canaes que formam as ilhas visinhas de Macáo. Assombrando
assim Cam-pau-sai os mares das ilhas da China com seu poder,
não se limitou a perseguir seus irmãos Chinezes,
tambem se atreveu a insultar os navios da Europa.
Vendo o Governo de Macáo o risco em que ficava, rodeado de
immensa força inimiga, na estação em
que todos os navios da praça se achavam ausentes; mandou a
Bengalla fazer um brigue para ficar de guarda costa, em quanto estes
não se recolhiam: porque em os piratas sabendo,
não haverem navios dentro do porto, que os fossem
acommetter, chegavam quasi ao alcance da artilheria das nossas
fortalesas, para embaraçarem os mantimentos, que todos os
dias entram na Cidade.
Deu-se tanta pressa á factura do brigue, que do momento em
que se lançou a quilha no Estaleiro, até sair da
barra fóra,
só mediaram vinte e oito dias! Quando chegou a
Macáo estavam os piratas tam destemidos,
que o Governo julgou ser insufficiente tão
[28]
pequena força, para os afastar da Cidade.
Comprou mais o navio Arriaga, a que deu o nome de Ulises, e mandou-o
armar, abrindo-lhe uma bateria na coberta.
Assim que estas duas embarcações
começaram a bater os piratas, estes não ousavam
aproximar-se dellas. Com tudo ainda faziam damno ao commercio; porque
os nossos vasos não podiam entrar nos pequenos canaes, onde
elles o interceptavam. Alli podia a esquadra Imperial
fazer-lhe algum ataque; mas o respeito devido a Cam-pau-sai, tirava a
lembrança de o acommetterem. Passou o anno de 1806, e parte
de 1807, sem que os piratas arriscassem entrar em combate com os
nossos. Esperavam achalos separados, e em parte onde não se
podessem soccorrer; no entanto iam devastando a provincia de
Cantão.
Meado o anno de 1807 achou o nosso brigue em boa
posição para atacalo. Mandou uma
divisão commandada por um de seus Capitães mais
experimentados, que o fosse combater. Commandava o nosso brigue, o
valente e destemido
Pereira Barreto.
Já nesse tempo havia adquirido tam grande credito
[29]
entre os Chinezes, que lhe chamavam o Tygre do
mar.
[5] O
impavido
Barretotinha valor para
investir com toda a esquadra de Cam-pau-sai, quanto mais com uma de
suas divisões. Assim que a julgou ao alcance da artilheria,
virou sobre ella fez-lhe fogo tão vivo, e estrago
tão grande, que todos fugiram deixando a
Capitanía ás mãos com o
brigue. Vendo o forte
Barreto, que a
artilheria inimiga éra de maior
calibre, resolveu abordar o Taó
[6].
Deve
imaginar-se uma grande lancha dando abordagem a uma Náo.
Assim parecia o brigue junto ao Taó, e apenas tinha um
quinto da equipagem do navio inimigo. Todavia o forte
Barretodirige
a sua
embarcação á pôpa do
Taó. Quando se lhe botavam os arpéos
lançaram os piratas uma
balça de fogo dentro da prôa do brigue, que
decerto o abrazaria, se o previdente
Barreto
não corresse a lançala ao mar. A este tempo unem
se as embarcações;
Barretoé o primeiro que
trépa pelo Taó acima, e tão depressa
pôde firmar os pés sobre a tolda inimiga, cantou
victoria:
[30]
Saltando a fará
só com
lança e espada
De quatro centos mouros despejada[7]
Barretousava de espada colubrina, e
manejava de sorte que dos setenta homens, equipagem do brigue, os que
poderam subir disseram, que chegando acima, viram a tolda coberta de
mutilados! Achou o nosso heroe tão porfiada resistencia, que
todos foram mortos porém nenhum vencido, ou aprisionado. Os
que pertenderam escapar aos golpes do nosso Marte irado,
lançaram-se ao mar. O seu Chefe, vendo-se perdido desceu
á camara, pegou em sua mulher pelos cabellos, cortou-lhe a
cabeça com o alfange, e sepultou-se no mar com ella.
[8]
Este combate foi dado perto de Macáo;
Barretoconduzio
immediatamente a
preza ao porto. Os macaenses e muitos estrangeiros, foram logo dar o
parabem a tão valente Capitão, e ver o navio
inimigo. Ficaram horrorisados da carnagem, porque os piratas
só se rendiam com a morte. Haviam seculos, que já
se não faziam d'estas proezas; e
até
[31]
nos parecia impossivel,
que no tempo de Camões, D. Lourenço de Almeida
fosse bastante para debellar em uma Náo da Méca
quatro centos mouros. Mas ainda em nossos dias mostra o entendimento
supremo, que um portuguez só com seu braço
é sufficiente para destruir em um Taó mais de 300
Chinezes.
Esta verdade precisa quasi de tanto valor para escrevela, como para
obrala, ainda sendo evidente ao escriptor; mas é qualificada
pelos habitantes de uma cidade, onde residiam subditos de varias
nações. Já o nosso Diniz cantou as
victorias de outro Barreto; justo é que tão
divino estro sirva para
immortalisar os dois.
Lavremos pois, oh! Musa,
á
gran memoria
Com argivo buril
padrão sagrado:
Morda-se o tempo irado,
Que ella eterna
fará a
clara
historia
Alma que atraz da fama immenso espaço
Corre, veja em meus hymnos
Que em vão
não
sua
bellicoso braço.[9]
Por feito tão assombroso ficou Macáo em socego.
Os piratas retiraram-se para longe, mas sempre fazendo estrago em tudo
que podiam
[32]
vencer. A esquadra imperial com a noticia d'esta victoria
animou-se a sair de Cantão e aproximar-se de
Macáo, cruzeiro que ella já não ousava
fazer com receio dos piratas. A brilhante proeza do invicto
Barreto
fez desapparecer das ilhas da China aquella praga devastadora: por
consequencia o Governo de Macáo mandou recolher as suas
embarcações.
Sabendo-se na China, que o Sr. D. João VI tinha deixado
Portugal para reinar no Brazil; lembraram-se os macaenses de mandar
cumprimentar o Rei dos Lusos nas suas possessões do polo
antarctico. Apromptaram o navio Ulises, nomeando para ir saudar El-Rei,
pelo Senado, ao honrado cidadão Antonio Joaquim de Oliveira
Matos; e deram o commando da embarcação ao
denodado
Barreto. Destinando-se aquella enviatura a
obsequiar o Chefe dos Lusos, pensaram não ser pequeno mimo
fazer-lhe conhecer quem tanto honrava o nome portuguez. Foi o nosso
heroe recebido no Brazil, quasi da mesma sorte que os Dias, e os Gamas,
recolhendo-se de suas trabalhosas viagens, eram recebidos
pelos antigos
[33]
reis portuguezes. O Sr.
D. João VI o elevou de primeiro Tenente a Capitão
de Fragata: Premiou os macaenses: deu-lhes distinctivos, que foram
assaz estimados, talvez por se esquecerem das altas virtudes de seus
maiores, que os despresavam por bons costumes.
Affastado Cam-Pau-Sai de Macáo por temer os portuguezes,
não esfriou em sua empreza. Começou
então a proclamar a todos os do seu partido a tyrannica
oppressão, que sofria o imperio, por consentirem no
thorono a intrusa dinastia barbara. Demonstrou-lhe
quão facil éra depôr aquella,
restabelecer a Chineza, e fazer a cada um dos seus regulo do imperio.
Tal pericia desenvolveu na piratagem, e na persuasão, que
já os seus
não duvidavam ser elle o unico capaz de restaurar a
dignidade da Patria.
Andavam assim de animo affeito á guerra,
quando tiveram a feliz noticia, de já não existir
em Macáo o
tygre do mar.
Voaram como bando de Açores famintos a devorar
tudo quanto podiam encontrar pelas ilhas visinhas de Macáo.
Não esperando o Almirante Chinez aquelle infausto encontro,
cruzava afoito na
[34]
bocca do
Tyre. Assim que foi descoberto por Cam-pau-sai,
carregou sobre elle. Uma divisão imperial de 28 navios de 15
a 20 peças cada um, que não fugio para fazer-lhe
frente, ficou prisioneira. Soberbo com essa victoria,
começou de novo a investir as
embarcações da Europa, e as macaenses. Nesta
epoca alguns navios Americanos se poderam escapar ao abrigo das nossas
fortalezas.
Recolhendo-se de Goa o brigue do
Botelho, Capitão Manoel José
Vianna, foi visto dos piratas; carregaram sobre elle; mas acharam
tão grande resistencia naquelle esforçado
Capitão, que restando apenas seis homens da sua equipagem,
com elles fazia grande estrago ao inimigo. Com tudo o fogo abrandou,
pelo cansaço; mas vendo Apautai, que não arreavam
bandeira, mandou abordalos. O impavido Vianna ao ver-se rodeado de
torres ambulantes e coberto de lanças, longe de esmorecer,
tomou em sua alma o espirito de Duarte Pacheco; e á
imitação dos
nossos
Barretos, quantos inimigos lhe saltavam na
sua embarcação, tantos a sua espada
lançava no abysmo. Os Chinezes espantados já
não o julgavam
[35]
homem, mas
sim algum ente superior á especie humana. Parecia
invulneravel! Com tudo morreu no combate. Mas como? Cançado
de matar piratas.
Donde por boccas mil brota
Mavorte;
Entre horrorosos
brados
Em fogo, em fumo, em sangue
envolta a morte
Zarguchos,
flexas, que em chuveiro voam.[10]
Tal foi o combate supportado pelo Magnanimo Vianna. Com a sua morte
ganharam os piratas tal audacia, que tiveram a ousadia de passar com o
navio prisioneiro, e com a bandeira de rasto, á vista de
Macáo. A
sensação que fez esse triste espectaculo nos
moradores daquella cidade é inexplicavel. Juraram
não só retomar a sua
embarcação, mas tambem dar aos piratas o castigo
merecido. Os navios que então se achavam no porto capazes de
tal empreza, eram o brigue do
Senado, e o navio
Belisario. O
brigue achava-se desarmado, e desaparelhado, assim como o Belisario.
Seriam nove horas da manhã, quando
[36]
se
avistou o navio apresado; e antes de anoitecer já os nossos
iam no alcance da esquadra inimiga! Como foi possivel obrar tanto em
tão pouco tempo? Tudo se deveu á generosidade dos
macaenses, e ao estimulo dado pelo incançavel Arriaga. Este
digno Ministro, honra dos togados, e columna forte da gloria nacional,
não se limitou a ser o primeiro em votar, e concorrer com
meios para o desempenho desta empreza. Pesando a importancia da cidade,
e o perigo em que ella se achava, resolveu sobre sua defeza penhorar
todas as forças sem perdoar as despezas, diligencias ou
perigos. Foi com seus braços dar exemplo aos macaenses mais
distinctos, que todos trabalharam na
promptificação dos navios.
Era este varão entre os macaenses bem similhante
á alma dos estoicos, espalhada pelo universo. Estava em toda
a parte. Seria preciso eloquencia extremada e presencear todos os seus
illustres feitos, para elogiar
as altas qualidades deste preclaro varão: sem isso
não é possivel apparecerem tão
brilhantes como foram praticados.
[37]
Por não haver então em Macáo Official
de mar, que se julgasse dextro na politica, ainda que todos
sobrepujavam, no valor, deu-se o commando em chefe ao
Capitão de artilheria José Pinto Alcoforado de
Azevedo e Sousa. Sustentou este invicto heroe, em toda a lucta contra
os piratas, a dignidade portugueza de modo, que bem se parecia com o
primeiro Capitão Lusitano, que aportou naquelle imperio.
[Nota 2ª]
Theotonio da Silva Braga, commandava o navio Belisario. Caío
tão grande tufão na noite seguinte ao dia em que
saíram os navios, que se julgava telos submergido.
Ao amanhecer
subirão
os montes,
sobranceiros á cidade, anciosos por ver seus
campeões; avistaram o brigue do
Botelho, que tendo surgido em Lantáo
prisioneiro, e ficando-lhe abordo os portuguezes restantes do combate,
assim que o tufão soprou do Oriente, cortara, que tendo
surgido em Lantáo
prisioneiro, e ficando-lhe abordo os portuguezes restantes do combate,
assim que o tufão soprou do Oriente, cortaram as amarras e
vieram encalhar na Taipa. Os macaenses exultaram com este
successo, e muito mais por avistarem o brigue, e o Belisario, que pela
grande pericia de seus officiaes
tinhão
escapado á furia do
tufão.
[38]
Havia tambem uma lorcha armada em guerra
[11]
commandada por Antonio
José Gonçalves Caroxa: mancebo activo e
destemido. Era commando de difficil desempenho; por ser a
embarcação conductora dos viveres para os nossos,
levados por entre os inimigos em frequentes combates. A
força da lorcha constava de quatro pedreiros, um obuz de
doze, e trinta homens de tripulação. Algumas
vezes aconteceu estar encorporada aos nossos navios, quando batiam os
piratas. Se o acaso permittia accalmar o vento, nessas
occasiões fazia o nosso Caroxa maravilhas extremadas.
Desejava Cam-pau-sai encontralo, onde não podessem defendelo
os nossos, para mais a salvo descarregar sobre elle seu poder, e seu
odio. Teve quem lhe desse dia certo em que a lorcha havia passar por
logar, onde Cam-pau-sai podia satisfazer seus desejos. Amanheceu o dia
aprasado, e o novo
Aquilles Lusitanochegou ao
passo, que bem pode nomear-se Cabalão
[12]. Achou-o coberto de
inimigos: mas julgando urgente o desempenho
[39]
da sua commissão, tentou abrir caminho.
Ainda que a sua tripolação era toda de Chinezes,
tinha a sua disciplina: julgou que isso bastava.
Os inimigos tentaram rodealo; mas o intrepido Caroxa lançou
mãos ao obuz, e como o reparo era de pião, jogava
para todos os lados. Aos que se lhe aproximavam cortava-os com
metralha; e aos que estavam mais longe passava-os com balas. Mas os
navios inimigos eram tantos, que mal podia desbaratar a todos os que
lhe vinham ao alcance. Com tudo apezar de ver a maior parte da
tripolação morta, não esfriava no
empenho de vencer. Não usava render-se, nem fugir; cada vez
mais afouto pertendia desembaraçar o passo. Mas os restantes
da tripolação vendo passar-lhe as ballas pelo
vestido, sem lhe offender o corpo, e irem matar os seus companheiros;
por que não lhes succedesse o mesmo, ousaram
lançar-se a elle, e amarralo de pés e
mãos. Segurando assim o homem, que lhes parecia
invulneravel, fugiram para a cidade, onde o entregáram
cheios de espanto e de temor, dando por desculpa do seu arrojo, o muito
que
[40]
apreciavam a existencia do seu
commandante.
Os macaenses receberam o destemido Caroxa com
estimação digna dos importantes
serviços, que lhes fazia, e do valor com que se
immortalisava. Mas o conselheiro Arriaga sobresaía a todos.
Tinha maneiras singulares para introduzir heroismo nos homens, que
destinava a emprezas arriscadas. O sentimento lugubre, que mostrava
pela morte de um marinheiro habil, ou o elogio feito a outro que se
distinguia, dava a todos cobiça de se verem acatados e
elogiados por elle. Nesta occasião um abraço dado
no Caroxa, em nome da patria fortaleceu a alma deste Lusitano de modo,
que só elle em sua lorcha, com outra equipagem, se julgava
sufficiente para arrostar com todos os piratas.
Em verdade, onde as leis são respeitadas, a sociedade
é livre: e os homens serão livres em toda a
parte, que houver governo justo como era então o de
Macáo. Longe de envejar a seus concidadãos as
vantagens, grangiadas por sua industria, cuidava com muito desvelo em
augmenta-las. Não só deixava de opprimilos; mas
assegurava a sua liberdade;
[41]
bem precioso
ao homem, e necessario á sua ventura; tão
distante da licença perigosa, como da
humiliação servil. O governo providente apenas
liga as mãos aos homens para não se offenderem;
mas deixa-os trabalhar sem obstaculo para a sua felicidade; sabe que a
ignorancia não só deslumbra os homens mas tambem
os faz pusillanimes e desgraçados: a razão e a
liberdade melhoram o coração
e os faz virtuosos e resolutos.
Arriaga sabia que a justa destribuição dos
premios e das penas é a melhor acção
do governo sobre o povo: servio-se destas principaes molas do
coração humano, para animar a virtude e o merito;
e obrigar o interesse particular a promover o interesse publico. O
certo é que a virtude desapparece, quando o vicio
é honrado. Algumas vezes lhe ouvi eu que os favores dados
á incapacidade, são roubos feitos ao merecimento;
e as recompensas dadas a quem bem serve a patria são
dividas, que o governo paga por ella. Fui testimunha das
bençãos, que lhe
lançavam os macaenses pelo muito que se occupava da sua
ventura.—Fazia do merecimento dos homens
[42]
estimação tão justa, que nem
á conveniencia, nem ao estado ficava devedor: virtude nos
principes difficultosa, e nos ministros rara
[13].
Os temerarios, que tinham amarrado o invicto Caroxa, foram excluidos do
serviço portuguez. Tomou nova
tripolação e continuou a destruir os piratas.
Cam-pau-sai vio constantemente frustradas, quantas diligencias fez para
o tomar.
Logo que amainou o tufão, partiram os nossos em procura do
inimigo. Acharam reunidas as esquadras de Cam-pau-sai, e Apau-tai, nos
canaes de
Wam-poo,
em 15 de Septembro
de 1809. Assim que avistaram os navios Macaenses, suspenderam, mas os
nossos carregaram sobre elles. Cam-pau-sai empenhou-se no combate; fez
entrar nelle os seus melhores navios: mas o fogo violento das nossas
embarcações fazia-lhe tal estrago, que saindo
elles do alcance da nossa artilheria, poucas ficavam em estado de
entrar segunda vez no fogo. Com tudo cevados de raiva, e avidos de
gloria, a fim de illudir os povos do seu partido, ainda bem uns
não se
[43]
tinham retirado, já outros tomavam o logar vago.
Não sendo o Belisario construido para guerra tão
violenta, abrio com o impulso da artilheria; tornou-se incapaz de
combater: retirou-se. O invito Alcoforado não podendo vencer
força tão superior tambem se retirou, mas deixou
em cinzas muitas embarcações inimigas.
É sempre a guerra origem fecunda de calamidades, vexames, e
ruinas para os povos. Appareceu na China o torbulento Cam-pau-sai, para
estrago de seus moradores, e vexação dos
macaenses. É evidente, que
o conquistador, não é só inimigo dos
povos, onde recruta; mas tambem se torna flagello do genero humano. Sim
a guerra sobrecarrega os povos de impostos, e raras vezes o tumulto dos
combates deixa ouvir as supplicas da justiça.
[14]
Os macaenses tiveram nesta occasião motivo para julgar
quão forte éra o inimigo: e Cam-pau-sai a ufania
de fazer retirar dois navios portuguezes.
Apezar da perda que sofreu, ficou mais
[44]
altivo, e
mais assolador. Exaltou o espirito dos Chinezes de modo, que se
levantaram em Cantão partidos de descontentes. O
Suntó prevendo a ruina, que ameaçava o Imperio,
tratou com o Governo de Macáo para reforçar a
esquadra portugueza, e junta com a Chineza cruzar nos mares daquellas
ilhas, afim de livrar o commercio das duas cidades, e portos contiguos.
O Governo macaense testimunha do vexame em que se achavam os moradores
da cidade, e dos gastos que tinham feito em guerra tão
dilatada, mal podia convencionar com os Chinezes,
por
ser a empreza
mui dispendiosa. Com tudo o
magnanimo Arriaga, a quem nada
parecia
impossivel decidio o Governo macaense a tratar com o de
Cantão, e fez-se a convenção
seguinte:
[15]
O Governo das duas provincias de Cantão e Quang-si, e o de
Macáo, igualmente convencidos da precisão, que
tem de pôr fim
[45]
ás invasões dos piratas (os
quaes sem temor infestam os mares, que
cercam estas duas cidades) de restituirem a publica tranquillidade, e
as relações commerciaes,
formarão
uma guarda
costa, combinando a força dos dois governos: para esse fim
nomearam os seus plenipotenciarios: Cantão, os mandarins de
Nam-hay, Shon-key-chi, de Hiang-sam, Pom, e o da Caza branca, Chu:
Macáo ao Conselheiro Arriaga, e ao Procurador do Senado,
José Joaquim de Barros; os quaes depois de terem
respectivamente communicado os seus plenos poderes, e discutido a
materia, concluiram e ajustaram os artigos seguintes:
1.º Haverá uma guarda costa, de seis navios
portuguezes,
conbinada com uma esquadra imperial; cruzará
seis mezes, desde a bocca do tygre á cidade de
Macáo, a fim de embaraçar que os piratas
não entrem nos canaes, que até agora tem
infestado.
2.º O Governo chinez obriga-se a contribuir com oitenta mil
taés para ajudar o armamento dos navios portuguezes.
3.º O Governo de Macáo fará logo cruzar
os dois
navios, que tem armados, e apromptará
[46]
com brevidade os quatro restantes.
4.º Ambos os Governos devem ajudar-se em tudo o que for a bem
do
cruzeiro, o qual não se estenderá além
dos pontos
determinados.
5.º As presas seram repartidas entre os dois Governos.
6.º Quando a expedição finalisar
serão restituidos aos macaenses os seus antigos privilegios.
7.º As partes contractantes obrigam-se a cumprir tudo quanto
se
estipulou nos mencionados artigos sem alterar cousa alguma, e a
consideralos como ratificados em virtude de seus plenos poderes.
Macáo 23 de Novembro de 1809.
Shou-Key-chi.—Arriaga.
Pom.—Chu—Barros.
O governo de Macáo observou logo o
3º
artigo. Arriaga entrou a promover os aprestos dos navios restantes, mas
o thesouro do Senado não podia suprir a tão
grandes despesas. Arriaga tomou de seus amigos grandes sommas sobre o
seu credito: então e
artigo. Arriaga entrou a promover os aprestos dos navios restantes, mas
o thesouro do Senado não podia suprir a tão
grandes despesas. Arriaga tomou de seus amigos grandes sommas sobre o
seu credito: então era valor
[47]
de sobejo para os negociantes, que lhe offereceram quanto possuiam
[16].
Havia na cidade pouca gente para tripolar os navios se não
suprissem os prodigios obrados pela gente portugueza.
.....Tornando frio
De espanto o ardor immenso do oriente,
Que verá tanto obrar tão pouca
gente.
Mojatecão, observando e experimentando o valor dos
portuguezes em Diu, exclamou:—São dignos de que os
sirvam
as outras gentes. A fortuna do mundo está em serem
poucos.—Em verdade com cem portuguezes, e sete centos
manillas e
cambojas, se fez á véla a esquadra (seis dias
depois da convenção) levando por chefe o
destemido
Alcoforado, na galera inconquistavel. Luiz Carlos de Miranda commandava
a Pala, Anacleto José da Silva o Indiano, Antonio
José Gonçalves Caroxa, o brigue do Senado,
José Felis dos Remedios o navio S. Miguel, José
Alves o Belisario. Nesse mesmo dia attacáram
e dispersaram os piratas, que se retiraram para mais longe de
Macáo.
[48]
O governo de Cantão, não foi activo como o dos
macaenses; além disso a esquadra chineza nem uma
só vez chegou a auxiliar os nossos. Tanto medo tinham de
Cam-pau-sai, que nem ao lado dos portuguezes se atreviam acommettelo. O
governo de Macáo vendo assombrada toda a provincia de
Cantão, pelo grande vulto, que faziam os piratas, resolveu
despresar os soccorros da esquadra imperial, e anniquilar só
o grande poder de Cam-pau-sai. Mandou pelo chefe Alcoforado
intimar-lhe, que se entregasse á obediencia do imperador,
promettendo-lhe perdão, e gráo superior
na classe mandarina.
Entraram os chefes am correspondencia: o nosso pedia ao dos
piratas, que viesse a Macáo para tractarem de
convenção amigavel: declarando-lhe, que se
não conviesse com elle, poria em acção
todos os recursos da guerra, e não descançaria
sem exterminalo.
Campau-sai, respondeu:—Tenho presente a vossa carta:
não me
assusta. Desejo fazer a paz com os portuguezes, com tanto que
não entendam comigo. Quanto a submetter-me ao imperador,
jámais o farei, ainda
[49]
que
me assegureis e digais o que quizerdes. Sô
não terei duvida no que tenho
acima dito. Quando abraceis esse partido, podeis retirar-vos para
Macáo, e mandai-mo dizer para não entender com os
vasos portuguezes. Esta resposta de Cam-pau-sai, firmada no dia 18 de
Dezembro de 1809, foi moderada em razão de ter sido atacado
e batido pelos nossos em 11 do mesmo mez.
Em quanto estas cousas se passavam entre Alcoforado e Cam-pau-sai, deu
o imperador amnistia a todos os piratas, que se lhe entregassem.
Apau-tai receando o valor dos nossos, julgou conveniente entregar-se.
Concordou com os principaes da sua divisão: rendeu-se com
cento e trinta embarcações bem equipadas de
homens e de armas.
Trahido Cam-pau-sai pelo amigo, que mais estimava, ficou magoado por
ver a pouca perseverança dos homens, ainda mesmo os que tem
as mais intimas relações de interesse,
parentesco e amisade; mas era tal o seu animo, que nenhuma
desgraça o intimidava. Mais atrevido ainda mandou apromptar
a esquadra do seu commando a fim de concluir seus designios.
[50]
Alcoforado aproveitou-se da cobardia de Apau-tai, attacou, e fez
retirar Cam-pau-sai. Logo depois mandou-lhe dizer, que assim como
Apau-tai, o havia abandonado, assim o fariam os outros seus
companheiros; e diminuidas assim as suas forças seria
obrigado a entregar-se prisioneiro: que era melhor capitular
já, alcançando honra e interesse, como lhe tinha
promettido e affiançado. A esta segunda instancia respondeu
Cam-pau-sai pelo modo seguinte.
Hontem recebi uma carta vossa mui persuasiva: conheço o
desejo que tendes de me ver em Macáo: fico-vos agradecido
por tão singular obsequio e estimação.
Estando sobre os mares, como no centro de um reino, no qual empunho o
sceptro do poder, e governança para todos os que me
obedecem, vivo muito occupado. Não é simples
negocio o governo de um reino: eis o motivo por que não
cumpro o vosso desejo.
Agora todo o meu empenho é restaurar e possuir as terras
deste orbe: assim ficarão completos os meus desejos.
Digo-vos ingenuamente este é o fim a que me proponho. Tenho
[51]
muitas
embarcações, e mantimentos para longo tempo: nada
me falta. Vendo que me estimaes, por isso vos dou a conhecer o meu
projecto.
Se quizerdes emprestar-me quatro navios para fazer com elles o que me
aprouver, mais depressa restaurarei o imperio. Depois dar-vos-ei duas
o tres provincias a vosso contento. Asseguro-vos a fidelidade da
minha promessa. Se não podeis agora mandar-me os navios seja
quando vos convier.
Ha muitas pessoas, que me aconselham para render vassalagem a um
tartaro! São
exortações baldadas. Possuindo esta esquadra com
a divisa da bandeira vermelha, farei com ella os maiores
esforços para restaurar o imperio. Já mandei
apromptar a minha esquadra, para se dirigir á bocca do rio
tygre; a fim de bater os imperiaes. Tenho outros assumptos a
communicar-vos, porém agora não o posso fazer.
Basta o conteudo desta, para viveres na intelligencia do meu firme
proposito. Dezembro 26, de 1809.
Desenganado Alcoforado de que não conseguia a entrega dos
piratas sem
effusão
de
[52]
sangue,
começou de novo a batelos. Os nossos estavam já
tão praticos nos canaes das ilhas da China, que os piratas
apenas lhe escapavam nos pequenos rios, onde os nossos vasos
não podiam entrar. Cam-pau-sai usou entreter as
embarcações portuguezas com alguns
Taós, em quanto a dextrava os seus no
exercicio da artilharia, tomando por mestres os americanos inglezes,
que tinham aprisionado.
Era tão sagaz e ardiloso, que nos encobria seus planos com
extranho recato. Em 21 de Janeiro de 1810, julgou-se em estado de poder
vencer a frota macaense. Pairava esta junto á ilha de
Lantáo, quando entraram a levantar do oriente os piratas
alinhados em divisões. Nesta occasião obrou o
invicto
Alcoforado tão grandes prodigios, que só poderam
ser cantados antes, pelo nosso Diniz.
[53]
A fiel ave, que arma
vigilante
O grão furor a
Jove.
Quando
sobre os mortaes os raios chove
A dextra
coruscante,
Tão rapida ao rebanho temeroso
Não
cala, a garra abrindo, das estrellas,
Como o varão
famoso
Sobre as immensas velas
Cahe de grande ira armado
Treçando
denodado
A féra espada, e torna em seu estrago
O azul
oceano em roxo lago.[17]
Considere-se uma lagôa com seis leguas de diametro, semeada
de ilhas e syrtes, onde apenas Galerno encrepava a superficie das
aguas. A esquadra portugueza constando de seis navios, sendo o maior de
quatro centas tonelladas, e o mais pequeno de 120: guarnecidos todos
com 120 peças de artilheria; e 700 homens. A esquadra
inimiga, de 300 vasos, com mil e quinhentas peças de
artilheria, e mais de 20:000 homens aguerridos, commandados por chefe
valoroso e desesperado. Neste conflicto o famoso Alcoforado,
treçando denodado a féra espada mandou atacar.
Foi sentelha
[54]
electrica
lançada no coração dos seus
companheiros. Dirigiram-se os nossos á vanguarda das
columnas inimigas despresando suas hostilidades até chegar a
tiro de espingarda. Nessa distancia uma descarga de metralha punha em
fugida o navio, que a soffria. Alguns mais destemidos arribavam para
sotavento afim de metter os nossos entre dois fogos; manobra que estes
concertavam para lançar-lhes a morte por todos os lados. O
fumo mal lhes dixava vêr as
embarcações portuguezas, cercadas pelas suas. O
astuto e bravo pirata, julgava que dividindo os nossos poderia
destruilos; e o chefe portuguez julgando ter Marte em cada um de seus
companheiros quiz dar a todos motivo para demonstrarem a sua pericia e
desmedido valor. Ficaram deste modo os navios macaenses no centro de
cada circulo dos piratas: assim os raios despedidos do centro levavam
á circumferencia o estrago, o horror, e a morte. As balas da
circumferencia, raras vezes acertavam no ponto central: qualquer
desmancho nas pontarias fazia com que empregassem as balas nos seus
mesmos companheiros. Todos
[55]
os
Commandantes portuguezes adqueriram fama neste dia; mas ha acasos em
uma batalha, que fazem uns mais distinctos do que outros. O navio
commandado por
Luiz Carlos de Miranda, na maior
força do combate, deu em escôlho: Cam-pau-sai,
vendo aquelle navio encalhado, considerou-o em desordem; mandou
carregar sobre elle, a ver se podia principiar o seu triunfo por
destruilo. Mas o denodado Miranda, vendo perigos por todos os lados,
resolveu debellar o inimigo, ou não saír com vida
do conflicto. Entre o valor e a desesperação
(ultimo sentimento das almas grandes), disse a seus
companheiros:—Creio não haver entre nós
quem
regeite a immortal gloria, que este feliz dia lhe destina: assim
faça cada um o seu dever. Mandou empregar a gente da
mareação nas baterias, e diffundindo o seu valor
em toda a equipagem, fez tão grande estrago no inimigo, que
já este não tinha animo para acommettelo.
Emquanto debellava os piratas, o fluxo das aguas tirou o navio do
escôlho.
O Caroxa tambem fez cousas admiraveis. Deparou-lhe o acaso o
Taó do pagode.
[Nota
3ª] Logo
[56]
que assomou o
deposito do erro, virou sobre elle; e emquanto não o
lançou no abismo, não descançou. O
templo, os bonzos, os idolos tudo foi submergido no orco. Esta proeza
do atrevido Caroxa lançou o espanto e o horror no espirito
de todos os piratas. A vista dos seus deuses
espedaçados, e
levados, á discrição das aguas,
tirou-lhes de
todo o animo: apenas ousaram largar
as
velas todas, e por entre
syrtes foram abrigar-se na bocca do rio de Hiang-san: logar onde os
nossos vazos não podiam entrar.
Não ha cores assás vivas para demonstrar a sua
confusão na fugida. Cam-pau-sai medío
então as forças macaenses ainda mais pelo valor,
do que pelo seu atrevimento. Os nossos cantaram victoria! Mas
incançaveis na destruição do inimigo,
não deixaram
de perseguilo até á bocca do rio. Alli formou o
previdente Alcoforado apertado bloqueio a Cam-pau-sai. Só o
deixou saír para entregar-se.
Cam-pau-sai resolveu entregar-se, mas uma das principaes
condições éra de ser
Miguel de Arriaga fiador de tudo quanto se ajustasse no acto de
capitulação; e que só trataria
com os
[57]
imperiaes, estando elle presente.
Logo que o Governo de Macáo recebeu esta
participação do chefe Alcoforado, remetteo-a ao
Suntó, e este dirigio-a ao Imperador.
Succedeu nesta occasião um facto, que muita honra faz
á memoria do generoso Arriaga. Quando se tratava da entrega
dos piratas, chegou a Macáo, um novo
Ouvidor, e segundo a lei, Arriaga deu-lhe posse do
logar. Mas Cam-pau-sai, e os mandarins, logo que o souberam avisaram o
Governo de Macáo, não poderem entrar naquella
negociação
com o Ouvidor novo, mas sim com o antigo; já por saber este
melhor daquelle negocio, já porque só com elle
Cam-pau-sai capitularia. O Senado e todos os macaenses desejavam o
mesmo; pois éra publica a grande
reputação,
que Arriaga havia entre os Chinezes. Foi completa a vontade geral; e
é só em táes
occasiões, que padecendo a lei exultam os povos. O Ouvidor
Peixoto começou no exercicio das suas
funções: mas o famoso Arriaga continuou a tractar
deste importante negocio.
Em quanto os nossos bloqueavam a esquadra inimiga, e Arriaga ajustava a
capitulação
[58]
com os mandarins, aconteceu outro facto, que muito honra a memoria do
invicto Alcoforado. Logo que a frota portugueza saío de
Macáo, convidou elle o chefe dos piratas para entrar em
Macáo, e tractar alli da sua
capitulação: mas Cam-pau-sai confiado em suas
forças respondeu pela negativa como fica dito. Agora
vendo-se obrigado a fazer o que então recusou, pedio ao
nosso Alcoforado a mercê de honralo com uma visita para ter o
gosto de o conhecer pessoalmente.
Alcoforado mandou apromptar um escaler para satisfazer Cam-pau-sai mas
os seus espozeram-lhe ser grande temeridade entregar-se a um pirata.
Esta lembrança foi acompanhada da responsabilidade, e isso
obrigou Alcoforado a chamar os commandantes das mais
embarcações, communicou-lhes o convite de
Cam-pau-sai, e a deliberação, que havia tomado.
Todos acordaram com os
Officiaes
do seu navio, menos
elle, que fallou da maneira seguinte.—Grande é meu
contentamento por ver o empenho, que fazeis para não me
arriscar nesta visita; seja por estimardes a minha existencia, ou por
julgardes em mim
[59]
algum prestimo.
Confesso-vos, que tão grande é o vosso empenho,
quanto mais firme se torna a minha resolução:
já porque
recusando este convite ficará mui cerceada a nossa
reputação já porque seria o
primeiro signal de fraqueza da esquadra Macaense: se for
traída a minha boa fé, tereis novo
incentivo para anniquilardes o inimigo vingando-me. Asseguro-vos que
vendo-me Cam-pau-sai, em seu navio, de coração
socegado e alma firme, tremerá de
vós—Todos o
escutavam com attenção: e ás ultimas
palavras
cada um desejava ser Alcoforado: Mas a gloria de sacrificar-se pela
honra da Patria, e pela humanidade, só a ella
pertencia, naquella occasião. Despedio-se e partio para a
esquadra inimiga. Assim que passou a primeira
embarcação da vanguada
[Nota
4ª]:
Sonorosas trombetas incitavam
Os animos alegres
resonando:
Dos Chinas
os bateis o
mar
coalhavam,
Os toldos pelas aguas arrojando.
As bombardas horrisonas
bramavam
Com as nuves de fumo o sol toldando.[18]
[60]
Ao chegar Alcoforado ao navio de Cam-pau-sai, veio este recebelo ao
portaló, e o conduzio pela mão á
camara. Alli
trocáram as mais apuradas civilidades. Cam-pau-sai,
estudando o modo de obsequiar o nosso heroe, não achou outro
mais capaz de lisongear a sua alma, do que offerecer-lhe pela honra,
que lhe tinha feito, a liberdade de todos os prisioneiros europeos, que
tinha em sua esquadra. O presente foi recebido com
demonstrações proprias de captivar o offerente
pelas cadêas da amizade. Cam-pau-sai assegurou-lhe, ser
então o seu maior empenho não o ter por inimigo;
pois havia experimentado o valor dos portuguezes.
Demonstrou, que arriscando uma batalha, poderia ter a vantagem de
saír do bloqueio com as embarcações
mais veleiras, para onde não podessemos incommodalo;
porém que a honra daquella visita o tinha penhorado de modo,
que estava resolvido a entregar-se com toda a esquadra; vista a
promessa que lhe fizera o ministro Arriaga, de quem formava alto
conceito, e a quem de boa vontade se rendia.
[61]
Alcoforado afiançou a promessa do ministro, mostrando-se
pesaroso em não depender só delle a
capitulação para em tudo a
fazer a contento de Cam-pau-sai. Disse mais:—como chefe da
esquadra
macaense, tenho ordem para destruir a vossa, se tentardes
saír daqui: e serei obrigado a fazelo por ser
usança portugueza romper as linhas da amizade, quando assim
o urgem as precisões do estado. Espero de vós
não ter occasião para
rompelas. Assim o prometteu Cam-pau-sai; e o nosso Alcoforado,
levantou-se:
Lembrai-vos de como se despedio Luiz XI, quando visitou o nosso Affonso
V;
[19]
ajuntai-lhe os requintes das ceremonias asiaticas, e julgai da
separação destes guerreiros;
não querendo ceder um ao outro a primasia em affectos
delicados. Com tudo não pôde Alcoforado impedir a
Cam-pau-sai, de acompanhalo até ao escaler em que partio
para a sua frota. Ao entrar nella salvaram todos os navios, e os
marinheiros subiram ás vergas para todos a um tempo lhe
darem os emboras.
Em quanto os chefes se visitavam cuidava-se
[62]
em Macáo; no
ponto,
onde se faria a entrega da esquadra inimiga, visto ser da vontade de
Cam-pau-sai, entregala aos portuguezes. Lucas José de
Alvarenga, governador militar daquella cidade, obstou a que os
macaences tivessem mais esse dia de triunfo. Temeu gente, que
estremecia só de ouvir fallar das façanhas
portuguezas
[20].
Assim foi Arriaga obrigado a concluir este importante
negocio fóra de Macáo.
Avisou os mondarins,
Chu, e
Pom, que viessem ao pagode
[21]: ajustaram alli, que
o logar do congresso seria na villa de Hiang-san e fizeram aviso aos
delegados do imperador para se acharem alli em dia aprazado.
Juntaram-se os mandarins do destricto, os mandarins da côrte,
e o nosso Arriaga, que foi recebido entre elles com singular
distincção.
Já o congresso deliberava sobre a
capitulação, quando chegou de Macáo a
relação do que se tinha passado entre os chefes
das esquadras. A ousadia do atrevido Alcoforado não
só penhorou Cam-pau-sai, mas tambem
[63]
os
mandarins, que pasmados do que ouviam, ficaram por algum tempo notando
o gesto e maneiras com que o magnanimo Arriaga captivava as suas
vontades.
Tornando o congresso de novo os seus trabalhos, caminhou o negocio com
mais rapidez; pois dalli em diante estavam os mandarins quasi sempre de
accordo com o nosso ministro. Convieram em mandar a Cam-pau-sai, que
viesse com sua esquadra para Chumpin, onde elles se deviam tambem
reunir: e ordenaram ao chefe Alcoforado, que levantasse o bloqueio. As
ordens foram derigidas a Cam-pau-sai, em direitura, e a
José Pinto Alcoforado, pelo governador de Macáo:
homem pouco experiente dos costumes chinezes, e cobarde, por isso
demorou a ordem do congresso. No dia seguinte recebendo Cam-pau-sai, a
que lhe fora dirigida, levantou ancora e principiou a velejar para
fora. Alcoforado, ignorando as ordens do congresso, e vendo a esquadra
inimiga em movimento, mandou suspender a sua, e manobrar de modo
hostil. Cam-pau-sai, percebeu logo haver desintelligencia: ordenou
á sua frota, que amainasse e surgisse.
[64]
Sabendo-se no congresso da imprudencia do
timido Alvarenga, dirigio-se Arriaga a Macáo para animalo, e
os delegados do imperador tomaram a resolução de
ir á esquadra
portugueza certificar ao chefe o que se tinha tractado com o ministro.
Assim que o nosso Alcaforado vio
em sua
embarcação dois chinezes de cabaias amarellas,
conheceu a gerarquia dos hospedes; por ser côr privativa da
familia imperial. Tractou-os com a cortezia devida á
civilidade chineza. Rogaram ao chefe portuguez, não
compromettesse a palavra de Arriaga, nem a delles, para com o chefe dos
piratas, a quem tinham mandado dizer, que velejasse para Chumpin, e a
elle Alcaforado, que o deixasse
saír;
que a inexperiencia do governador, não devia
embaraçar a execução dos poderes dados
pelo Senado ao ministro Arriaga.
Alcoforado respondeu:—aprecío muito
a honra,
que me fazeis—e desejo, ainda mais, ser-vos util:
porém as leis militares entre nós executam-se sem
discrepancia. Tenho ordem do governo para bater a esquadra inimiga, se
tentar saír, em quanto não houver
[65]
outra em contrario, não posso deixar de
fazelo.
Os mandarins tornaram-lhe:—Homem recto e valoroso, conhecemos
os
serviços que tens feito ao imperio, e á tua
nação:
não offusques essa gloria deixando outra vez as costas da
China cobertas de piratas. Cam-pau-sai ainda tem grandes recursos:
não o irrites. Grande parte da provincia de Chin-cheu segue
o seu partido: sabes que é povoada de homens
marcantes,
robustos, e denodados; a gente creada sobre as ondas é
audaz, e ardilosa; em pouco tempo equiparão outra esquadra
para obrigar-te a levantar o bloqueio; assim apezar do teu valor, e do
esforço macaense, teremos guerra eterna. Pedimos-te, pelo
que mais estimas, modefiques as ordens que tens, a fim de Cam-pau-sai
não desconfiar da nossa palavra.—Nesta
occasião
chegou a ordem de Macáo, por diligencia de Arriaga, para
Alcoforado levantar o bloqueio, e seguir Cam-pau-sai
para
Chumpin. Mui
contentes ficaram os mandarins: partiram satisfeitos para o logar do
congresso, onde já acharam o nosso Arriaga. Mandou-se nova
ordem a
[66]
Cam-pau-sai;
no dia immediato surgio no logar aprazado.
Mandou-se a bordo cumprimentar o chefe dos piratas, e convida-lo a
entrar no congresso, onde devia firmar a sua
capitulação. Promptamente
chegou: ao entrar na salla dos congregados, conheceu por vestiario e
gesto, o nosso ministro: dirigio-se a elle e fallou desta maneira.
Grandes motivos me fazem render e tractar comvosco da minha
capitulação, para entrar na classe dos
Coláos, como mo promettestes pelo imperador. Mas
confesso-vos, que o principal foi conhecer o fulcro da lavanca
destruidora do meu poder. Já vos vi:
estou satisfeito. Devo muito á natureza, e á
minha assidua applicação; mas em tudo me acho
vencido por vós.—E virando-se para os
mandarins:—Tendes
por experiencia de 14 annos, quão poderoso e vigilante foi o
meu sceptro: sabei agora da minha bocca, que o valor portuguez foi quem
o destruira. Aqui me tendes em vossa presença: espero que me
trateis como a homem livre, e destemido—E tomou assento.
[67]
Disseram-lhe que para exemplo era preciso castigar
alguns
dos seus, que fossem mais criminosos.—Para
satisfazer a
esse requisito, darei os nomes de 14 faccinorosos, que existem na
esquadra. Paguem com suas cabeças as atrocidades que
fizeram, e eu desaprovei.—Sendo este o unico
embaraço que
havia, concluio-se o negocio.
Cam-pau-sai declarou ter ainda uma divisão de 80
embarcações, que antes de vir attacar a esquadra
macaense, tinha mandado para Chin-cheu receber os tributos do anno
passado; mas que por aviso seu viriam entregar-se.
Ordenadas assim as cousas principaes, tractaram da forma porque se
devia repartir a preza; visto são ser o artigo 1.º
da
convenção preenchido pelo Governo Chinez; e ter
só a esquadra macaense reduzido Cam-pau-sai a capitular.
Já o Ministro Arriaga tinha mostrado aos Chinezes,
quão valoroso e sensivel éra o seu
coração; mas então quiz mostrar-lhe
quanto éra liberal. De tudo quanto existia na esquadra de
Cam-pau-sai, exigio a melhor parte
[68]
das bombardas: tudo o mais deixou á
disposição do Imperador. Os companheiros de
Cam-pau-sai ficaram cidadãos chinezes; elle Coláo
do Imperio; e as cabeças dos 14 criminosos, para exemplo dos
malevolos, foram espetadas em paos no istmo que devide, a cidade, da
ilha de Macáo, onde ficaram até serem consumidas
pelo tempo.
Concluida a capitulação, disse Cam-pau-sai, ao
Conselheiro Arriaga:—Ainda tenho um favor a pedir-vos.
Pertendo ir a
Macáo, se me concederes licença, para ter o gosto
de ver todos os meus vencedores—O Ministro agradeceu: e
dissolveu-se o
congresso, saindo todos os seus membros cheios de alegria e
admiração: Arriaga, da inexplicavel civilidade e
sciencia dos mandarins da côrte, ou coláos!
Cam-pau-sai, da pessoa, e do espirito de Arriaga! Os coláos!
de Cam-pau-sai, e de Arriaga! Tudo lhe parecia prodigioso. Mal podiam
capacitar-se de ver livre o imperio do flagelo, que o tinha assolado em
14 annos continuos.
Assim que Arriaga entrou na cidade, tractou do triumfo dos heroes
macaenses, que
[69]
éra ao mesmo
tempo o seu. A caza deste illustre varão tinha para elles a
mesma
consideração, que o Capitolio para os romanos.
Não foi este triumfo tão aparatoso no exterior
como os de Cesar, ou o de D. João de Castro em Goa. Mas os
corações de todos os habitantes de
Macáo exultavam de prazer até alli nunco visto
nem sentido.
[Nota 5ª]
Em Maio chegou a Cantão a noticia de não querer
entregar-se a divisão rebelde, despresando a ordem do seu
antigo chefe. Avisou-se a Cam-pau-sai da conducta dos piratas, e
Pedio-se-lhe o desempenho da palavra dada no acto da
capitulação. Respondeu:—Rebellada a
divisão a primeira vez contra a minha ordem não
devo mandar-lhe outra. Tenho recurso mais prompto. Dai-me sessenta
embarcações das que foram minhas, deixai-mas
tripolar com os que já me obedeceram; e se não
trouxer os rebeldes dou a minha cabeça. Lembro-me que podeis
desconfiar da minha palavra: deixarei em refens o que possuo de mais
apreciavel; dois filhos que me deu a natureza. Se sois pai, avaliareis
a qualidade do penhor.
[70]
O Suntó: apezar das demonstrações de
firmesa e honrada conducta de Cam-pau-sai, recusou entregar-lhe a
esquadra que elle pedia. Mandou apromptar uma frota imperial de perto
de duzentas embarcações, e bem equipadas com
parte dos instrumentos de guerra que tinham sido de Cam-pau-sai.
Saío esta de Cantão e foi encontrar o inimigo. Em
pouco tempo veio entrar em Macáo fugida, e derrotada pela
divisão rebelde. Chegando esta noticia a Cantão,
o Suntó mandou perguntar ao Conselheiro Arriaga, o que
deveria fazer ácerca do offerecimento de
Cam-pau-sai.—Que
se estivesse no seu logar, tornou Arriaga, tinha aceitado os
serviços de Cam-pau-sai, logo que elle os offereceu, sem lhe
tomar refens; pois esperava delle tudo quanto é proprio de
honralo, e de utilisar ao imperio.—
O Suntó com tal resposta, mandou entregar a Cam-pau-sai
sessenta embarcações, e tudo quanto pedio. Largou
o novo Almirante de Cantão deixando a todos em expectativa.
Dirigio-se a Macáo, onde estava tudo prompto para recebelo.
Em dia assignalado foram os
[71]
commandantes
da nossa esquadra
[Nota
6ª] com os bons moradores da
cidade a caza do Ministro Arriaga. Ainda bem o não tinham
cumprimentado, annunciou-se a entrada de Cam-pau-sai. Foi conduzido
á Sala. Acabadas as civilidades requintadas, segundo o
costume Chinez disse:—Deus immortal, estão
completos os
meus ultimos desejos, vendo e abraçando heroes
tão sublimados—Brilhava o jubilo no rosto de todos
vendo Marte humilhado em sua presença.—Acha-se
neste
circulo o valoroso commandante da Lorcha Leão? Desejo
conhecelo—Aqui me tendes respondeu o
Caroxa.
Cam-pau-sai caminhou para
elle, abraçou-o: e virando-se para o Ministro
disse:—Este
homem fez mais damno ao meu poder, do que toda a vossa esquadra. Eu fui
vencido: mas quem disputando a gloria aos portuguezes dirigidos por
vós, ficará victorioso. Cedo vos mostrarei como
venço a outra gente.
—Tenho conhecido em vossas acções,
disse
Arriaga, que sois varão assignalado. Agradeço-vos
por todos o alto conceito, que de nós fazeis: affirmo-vos
ser o maior premio de nossas fadigas, ter-vos elevado á
ordem dos Coláos,
[72]
onde fareis a ventura da vossa patria,
e as delicias do Imperador. Imitai os vossos vencedores promptos sempre
a dar a vida pela restauração da gloria nacional,
pelos seus direitos, e pelos do seu Monarca legitimo. Lembrai-vos de
todas as acções que lhes vistes
praticar:
[Nota
7ª]
E julgareis qual
é mais excellente,
Se ser do
mundo rei, se de tal gente.[22]
Se a liberdade, a propriedade, e a segurança são
as unicas linhas, que prendem os homens á terra onde
habitam, e ao rei; senão ha amor de patria, onde
não existem estas vantagens; julgue-se pelo amor dos
Portuguezes ao rei e á patria, das qualidades do Senhor D.
João VI. Paga o amor que lhe temos usando do seu poder, para
oppôr barreiras fortes, e dar remedio ás
paixões dos subditos, sem que possamos conhecer as suas
proprias paixões.
[23]
[73]
Do vosso nome um
grão Rei
Neste
reino Lusitano
Se poz esta mesma lei:
Que diz o
seu Pelicano
Pela lei, e pela grei[24]
Em todo o tempo, que esteve em Macáo o celebre Cam-pau-sai,
foi surprendido pelas maneiras singulares com que o obsequiou o
ministro Arriaga: mas foi obrigado a saír de
Macáo para em breve desempenhar a sua commissão.
Em poucos dias encontrou a divisão rebelde, a quem fez saber
que era o Almirante da esquadra imperial pela seguinte:
Procclamão.
Camaradas e amigos, sei que duvidastes da minha ordem: fizestes bem.
Lembrastes-vos sem duvida, que era falsa; ou eu ter sido obrigado pela
força a escrevela. Não: assignei-a por minha
vontade. Se ainda o duvidais, vinde ouvilo da minha bocca. Dir-vos-hei
tambem os motivos, que me fizeram render. Neste mundo ha dois caminhos
a seguir, o do bem, ou o do mal. Todos desejamos seguir
[74]
o do bem, mas somos muitas vezes lançados pelo erro
em precipicios. Em outro tempo vos aconselhava eu a seguirdes o meu
partido; mas então ainda eu não havia encetado o
caminho do bem. Hoje conheço que marchava pela estrada do
erro, afastado da vontade do maior numero. O imperio tem
povoação summamente grande; e o nosso partido a
seu respeito é
summamente
pequeno. Não podeis negar-me, que é
preciso haver desmedida ambição nos poucos, que
pertendem apossar-se do que é de muitos. Não
é conforme ás leis do imperio, nem ás
do entendimento supremo. Todos devemos concorrer para a felicidade dos
outros homens; e no caminho em que andavamos
deivairados, faziamos a sua desgraça
[25].
Exposta assim a verdade a vossos olhos, espero não duvideis
abraçala; e quando useis tenacidade, em vosso erro,
experimentareis pela primeira vez o meu rigor.
Os rebeldes não attenderam ás rasões
de Cam-pau-sai: julgando-se superiores em força, cresceu, a
sua audacia; responderam com
[75]
despreso.
Cam-pau-sai dispoz os seus de tal sorte, que dando sobre os rebeldes,
em poucas horas os que não se afundaram,
ficaram prisioneiros. Navegou com elles para Macáo; a fim de
mostrar ao ministro Arriaga, e a todos os macaenses, a verdade do que
lhe havia dito.
Entrou alli a divisão rebelde em estado tão
deploravel pelo estrago soffrido no combate, que levou muitos dias a
concertar para ir a Cantão. Cam-pau-sai largando o nosso
porto, dirigio-se á
bocca do
tygre. Alli encontrou o mar cheio de
embarcações, que tinham vindo para o levar em
triumfo ao Suntó. É inexplicavel o contentamento,
que o povo d'aquella cidade teve nessa occasião. O
Suntó obsequiou
Cam-pau-sai
de
modo, que se o imperador viesse a Cantão, não
haveria mais nada a fazer-lhe para honra-lo. Dirigio á
côrte tão grandes
recommendações
ácerca do novo Almirante, que o imperador mandou, que fosse
a Pekim, para ter o gosto de velo.
Partio Cam-pau-sai; e foi dando interessante espectaculo a todas as
villas e cidades, por onde passava. Todos ambicionavam ver o
[76]
chefe dos piratas (que tanto havia
assustado o throno e o imperio) tornado uma das pessoas mais
interessantes ao mesmo imperio. Assim que entrou na capital foi
apresentado ao imperador: teve com elle larga
conversação: depois houve conselho de estado, em
que foi Cam-pau-sai um dos seus membros. Emprego superior aos ministros
de Estado.
Pode-se julgar por este facto, qual é a politica do Governo
Chinez. Já não tinha que temer no mar; com tudo
premiou Cam-pau-sai, não só para cumprir o que
havia promettido, mas tambem para se approveitar dos seus conhecimentos
e qualidades relevantes.
[26]
É provavel, que em quanto
elle for Conselheiro de Estado, não hajam piratas nos mares
da China. Tem adquerido tão grande
reputação na côrte, que não
só os particulares mas tambem o Imperador o tracta com
singular distincção.
Por mais que sejam plausiveis os motivos da guerra, sempre offende:
ainda custando só a vida de um homem, assim mesmo
é funesta.
[77]
A
estatua do vencedor é sempre banhada de lagrimas pelos
vencidos. Todavia esta guerra foi differente. Obrigados os macaenses
por
Ladrõesa defenderem
as vidas e a fazenda, mediram as forças mais pelo valor, do
que pelo numero; atacaram e venceram. Castigando malvados,
lançaram todos os mais ao seio da patria, nos
braços de seus
irmãos. Em logar de pranto de vencidos, derramaram lagrimas
de prazer trocando trabalhos e miserias por vida socegada. Nesta guerra
sempre os nossos attenderam mais á humanidade, do que
á vingança: fóra do conflicto
das batalhas, não houveram crueldades.
Quando o generoso Arriaga exigio, no acto da
capitulação, a melhor parte das bombardas de
Cam-pau-sai, foi com intento de presentear com ellas ao Senhor D.
João VI. Recolhendo-se a Macáo, declarou o seu
projecto no Senado que de boa vontade assentio.
Já em 1642 o senado de Macáo mandára a
El-Rei D. João IV, as bombardas tomadas aos hollandezes,
para com ellas romper de todo o jugo dos Filippes. O mesmo senado em
1811 mandou ao Senhor D. João VI, a artilheria
[78]
tomada aos piratas da China,
não só para mostrar-lhe a grande força
do inimigo vencido, mas tambem para com ella debellar as falanges de
Bonaparte.
A cidade de Macáo tinha perdido muitos dos seus privilegios.
Os chinezes, esquecidos do que os nossos antepassados tinham feito em
beneficio de seus maiores, já começavam a ver os
portuguezes com a mesma indifferença, com que olhavam para
os outros europeos. Mas a serie de factos brilhantes,
paraticados no espaço de cinco annos, fizeram
reviver a nossa antiga reputação naquelle
imperio.
[79]
Lendo a pagina 253 da relação abbreviada da
viagem de La-Perouse, as
falsidades alli escriptas em desabono dos
Macaenses, não posso deixar de as repelir. Começa
dizendo não ter
espressões para louvar o Governador de Macáo. A
paginas 255 rompe:—De grande importancia seria
Macáo a uma
nação justa, e que tivesse firmesa e
dignidade, contra o Governo Chinez, injusto, oppressor e cobarde! Alli
diz que o Governador de Macáo éra optimo, aqui o
Governo Portuguez não
é digno, nem justo; e o Governo Chinez, é
reputado por elle o peior do mundo!
Se La Perou-se
pertendeu fallar do Governo Portuguez em relação
a Macáo, tambem
não foi exacto. Que mais poderia fazer El-Rei, ou os seus
delegados, do que nomear, para governar Macáo, um homem, que
segundo o juizo do mesmo La Perouse, estava prompto a sacrificar-se
pela honra da
nação? La Perouse, queria
achar nos Macaenses firmesa, que desse a todos os europeos liberdade
para irem á China quebrar as leis do Imperio como elle mesmo
fez desembarcando pelles por contrabando. E atreve-se a dizer que o
Governo Chinez é injusto, oppressor e cobarde! Como se
poderão avaliar os costumes e o caracter das
nações pelo juizo de taes escriptores? A
Nação Chineza
é independente; não quer ter
communicação com
[80]
os Europeos; renuncía a ganancia do commercio exterior pelo
socego do Imperio. Todavia Le Perou-se, e outros europeos queriam achar
em
Macáo homens que fossem agriolhar em Pekim o mesmo
Imperador! Vesse nesta memoria pelos judiciosos discursos dos
Mandarins, quão falsas e injustas são as
invectivas de La Perouse contra os Chinezes e Macaenses.
Quando louvo Fernão Peres de Andrade e outros navegadores e
guerreiros, tomo por base a justiça e as suas virtudes.
Jámais escreveria este opusculo, se a guerra feita aos
piratas não tivesse por fundamento a defesa natural, e o bem
estar dos povos constituidos em sociedade.
Desta guerra resultou grande beneficio á humanidade. Eu
louvo só os Portuguezes que em épocas mais
felizes, para nós, se conduziram com valor e dignidade; e os
que em nossos dias os imitam. Afonso de Albuquerque foi respeitado
ainda mais pelas suas virtudes perfeitas e pela justiça, que
praticava, do que pelo extremado valor.
Era Cam-pau-sai tão extremoso em ardiz, que não
lhe escapou de enredar os seus no fanatismo para mais devotamente
chegar aos fins dos seus designios. Logo que os interesseiros bonzos
lhe afiançaram o bom resultado da empreza, lançou
[81]
mão desses instrumentos do
erro, que degradam o homem para a classe dos brutos fazendo-os tirar o
carro dos conquistadores quasi sempre seus verdugos, mandou erigir-lhe
um pagode na maior embarcação, e deu o commando
della ao
Capitão mais experimentado para defender de todo o risco o
templo dos idolos.
Aqui temos Cam-pau-sai, pescador dos mares da China feito protector dos
bonzos, e reputado seu chefe.
Deram passos tão agigantados na estrada da
superstituição, que já não
faziam guerra nem paz sem consultar o oraculo. Saíam todos
os commandantes de seus Taós para irem áquelle
onde se achava o pagode incensar os idolos, e ouvir do oraculo o que
deviam fazer; isto é o que o chefe dos piratas havia
concertado com o principal dos bonzos.
Estes delirios julgados propicios aos seus intentos, eram favoraveis
aos nossos. Em quanto elles praticavam taes momisses, o valor macaense
anniquilava pagode, idolos, bonzos, e supersticiosos.
Em quasi todas as circunstancias da vida, foi Alcoforado, digno de
eterna memoria: Na guerra fazia maravilhas extremadas; na paz, o juizo
de
[82]
Mr. Arago, dá bem a
conhecer o caracter do nosso heroe.
[27]
Eis como elle o pinta.
—Parabens, meu amigo; chegamos a Diely.
[28]
Dir-te-hei o modo porque
fomos hospedados. Ás
protestações de amisade cheias de
franqueza, a maneiras honestas e frequente agrado, é
difficil ajuntar mais polidez, nem mais desvelo para obsequiar-nos.
Desde o primeiro dia a generosidade do Governador, mandou á
nossa meza, com profusão, os manjares mais delicados. Queria
mostrar, dizia elle, o prazer que sentia em brindar os patricios dos
maiores sabios do mundo.
Jantares sumptuosos, presididos pelas açafroadas bondades do
paiz, cobertas de joias; festas encantadoras, onde reinava a
galantaria, mais franca e mais activa, faziam desapparecer as horas,
que voam nas azas do prazer.
O Governador achou ainda outro modo de augmentar as provas da sua
generosa affeição: fez
acceitar, a quasi todos, presentes; e fingia não lhes dar
valor para nos livrar de escrupulos. Chamava-se José Pinto
Alcoforado de Azevedo e Souza: mancebo amavel, jovial, e de
conhecimentos. O motivo de sua especie de degredo para
[83]
Timor, pelo que nos
deu a entender, procedeu de causas politicas.
[29] Ocupou-se com desvelo
em felicitar o paiz que lhe foi confiado: a sua
administração é doce. Os Rajaz
não são aviltados
pelo despotismo como succede em Coupang. Pelo
contratrio são tratados com amor.—
Já, em outras éras, menores virtudes de outro
Souza foram assim cantadas.
Le
généreux Souza, qui sut
domter l'amour
Dans ces climats ardens oú son feu nous
dévore,
Et q'aprés Scipion la vertu
nomme encore.
No dia 3 de Junho de 1810, cantou o honrado e benemerito
cidadão José Baptista de Miranda e Lima as
virtudes do nosso Arriaga pelo modo seguinte:
Á sombra de frondifera
oliveira,
Por ti, ha
tanto tempo, desejada,
(Graças ao creador Omnipotente.)
Te
vejo, cara patria
[1]
reclinada.
No pelago espaçoso, que te
cerca,
Ja
não vês tremular hostis pendões
[2].
Não ouves rebombar os horisontes
[3]
Com horrorosos tiros de
canhões
[4].
[84]
De salitroso
pó
[5]
que antes servia
Para ao longe mandar lethaes pelouros
Se ferreos tubos hoje tu carregas
[6],
É só por
festejar c'os seus estouros.
Centenares de
Taós
[7]
prenhes de tygres,
Que ao pé de ti
rasgavam cruelmente
[8]
Meninas e donzelas delicadas
A teu Pai
sujeitou
[9]
o Eterno Ente.
Teu benefico Pai, o Arriaga
[10]
Estes tygres de Hyrcania domou
E a frondente oliveira, que te cobre,
Cortando mil obstaculos, plantou.
Jámais pois
riscarão da fantasia
[11]
O nome deste Heroe da lusa gente:
E
agora, que celebras seu triumfo,
De verde palma vai cingir-lhe a
frente.
Da victoria este emblema para ornares,
Lindas flores
procura designantes
D'aquelles predicados appreciaveis,
Neste filho de
Lisia mui brilhantes.
O louro girasol, que sempre segue
O
planeta, que os outros illumina
[12]
Designa a bem notoria lealdade
Do
nosso Heroe á prole Bragantina.
Os rubros
amaranthos, que resistem
Ao vento, á calma, ao gelo,
symbolisam
A intrepida constancia nas empresas
[13],
Que o nome de
Arriaga immortalizam.
[85]
A candida açucena, que
dispende
Liberalmente o corceo, de
que gosa
É symbolo do seu singello peito
[14],
Emblema da sua
alma generosa.
O Lirio, que nascendo d'alta vara,
Sendo rei
da florida monarquia
Para baixo a sublime frente inclina,
Sua clemencia
designa, e cortezia
[15].
Das mais virtudes symbolos procura
N'outros lindos matizes dos jardins;
Não te
esqueças das rosas rubicundas,
Dos junquilhos, dos cravos,
dos Jasmins.
De ti receba agora esta
corôa
Bem que inferior ao seu merecimento;
Em quanto outra
melhor se lhe prepara
No reino superior ao firmamento.
Notas de
Antonio Francisco de Miranda e Sousa,
Deão da Sé de Macáo.
1.ª A
patria é
a cidade de Macáo.
2.ª As
bandeiras
vermelhas e pretas das duas columnas
inimigas.
3.ª
?
4.ª Mil e
oitocentas bombardas de diversos calibres entregou
Cam-pau-sai, e mais de mil Apau-tai, chefes dos piratas.
5.ª
Polvora, cuja fabrica Miguel de Arriaga estabeleceu em
Macáo em 1809, pelo Boticario J. J. dos Santos.
[86]
6.ª
Quando appareceu o retrato de El-Rei, na sala onde se
celebrava o
triunfo, e onde se achava a nobreza, o clero, e nos seus
contornos, a melhor parte do povo da cidade.
7.ª
Embarcações de guerra. Cam-pau-sai
entregou
3800 homens, Apautai 2000.
8.ª
Só no canal de Hiangsan mataram mais de 15000
pessoas.
9.ª
Entrega de Cam-pau-sai á benevolencia de Miguel
de
Arriaga, seu medianeiro para com o imperador da China.
10.ª
Miguel de Arriaga Brum da Silveira, ouvidor de
Macáo.
11.ª O
nome de Miguel de Arriaga será lembrado
não só na ilha de Macáo mas tambem no
imperio da China, pois o Suntó o mandou gravar em seus
annaes para haver delle eterna memoria.
12.ª
Grande e indefectivel zelo com que Arriaga trabalhou para
dirigir
o Senado e o Governador, contra os inglezes, a fim destes
não arrebatarem esta cidade á
nação portugueza.
13.ª
Contra a inveja, a intriga, e odio de alguns
que
mofaram da empreza. A constancia de Arriaga foi quem nos deu a
victoria.
14.ª A
candura, e inteiresa com que tratou a Cam-pau-sai, e ao
Suntó. Só o nosso Arriaga foi capaz de conciliar
amizade entre aquelles desavindos.
[87]
15.ª
Despresando difficuldades tratou sempre em
Macáo os
máos, com a mesma clemencia que usava para com os bons, e
tudo isso nascia da sua nobreza de coração e das
altas e perfeitas
virtudes que
possuia.
Em recompensa de tão relevantes serviços o
conservou El-Rei D. João VI, na ouvidoria de
Macáo, sem limete de tempo, e d'ahi
nasceram seus imfortunios, e sua morte prematura.
Entre os nossos heroes não haviam grandes patentes: a mais
subida era a do chefe, José Pinto Alcoforado de Azevedo e
Sousa: Capitão de artilheria. Em verdade para obrar grandes
cousas não são precisos gráos
elevados. No tempo dos
Andrades, Sousas, Pachecos e outros, que obraram prodigios custosos de
crer, por extraordinarios, tambem foram praticados por homens, que
sabiam honrar-se com o gráo do seu nome!
Para não ser extenso fallei só dos macaenses, que
fizeram acções extremadas. Se mencionasse
todos os que nos cinco annos da guerra contra os piratas, obraram
cousas uteis,
faria mui grosso
o volume; porque muitos foram elles, e
todos merecem elogio.
Quando os governos não excitam os homens á
gloria, os concidadãos tem em pouco a
estimação
[88]
publica. A maior parte dos homens são como o negociante
avaro: se armam não é com
esperança de immortalisar seu nome. Unicamente sensiveis ao
ganho temem, que o navio se afaste do caminho já sulcado;
por este sabem elles não haverem novas terras para
descobrir. Com tudo recommendam ao piloto, que se por algum temporal
for levado a ilha desconhecida, e obrigado a surgir, não a
explore nem reconheça os
habitantes:
tome agoa e largue as
velas ao seu
destino sem lhe importar descobertas
[30]
. Já não
ha Zarcos nem Gamas! Sobre os mares deste mundo, unicamente invejosos
de honras, empregos, e riquezas poucos homens embarcam a fim de
explorar a naturesa
[31]
. Todavia o governo de Macáo provou o
muito que tinha excitado os seus concidadãos á
gloria.
Estes para merecela, não receberam pensões,
arriscaram a vida e prestaram a fazenda.
Graças
aos macaenses; pela gloria que adqueriram, e pelo desinteresse que
mostraram, chegaram a par dos Castros e Albuquerques.
[89]
SEGUNDA PARTE.
INVASÃO DAS TROPAS INGLEZAS
EM MACÁO
E SUA
RETIRADA.
[90]
PROLOGO DA SEGUNDA PARTE.
A Virtude é o nexo da sociedade: e consiste em nos abstermos
de fazer mal; não privar pessoa alguma das vantagens que
desfructa; dar a cada um o que é devido; e promover a
felicidade dos outros em geral. O homem só merece o nome de
virtuoso se contribue para a utilidade e segurança da
sociedade.
A primeira das virtudes sociaes é a humanidade; esta pode
considerar-se o centro comum de todas as outras. Ella dá aos
entes da especie humana direitos sobre o nosso
coração.
Sim ella tem por base a sensibilidade, e esse sentimento
dispõe-nos a fazer aos outros todo o bem de que as nossas
faculdades são capazes. Seus effeitos são o amor,
a
beneficencia, a liberalidade, a indulgencia, e a piedade.
Quando a humanidade reside na sociedade em que vivemos, constitue o
amor da patria; isto é, produz a necessaria
affeição
nacional.
[91]
A força deve só respeitar-se como virtude; quando
defende a sociedade em que vivemos, quando se acha acompanhada de
grandeza d'alma, valor, e moderação. A actividade
tambem deve entrar na ordem das virtudes sociaes;
as
que tem por
objecto o bem da sociedade devem ser efficazes e não inertes
como outras quimericas e falsas, introduzidas pela impostura, ou
fanatismo. A sociedade só agradece
acções proveitosas: só essas
merecem a sua estimação e
reconhecimento.
A justiça é o vinculo da união social;
sustenta a balança em equilibrio entre os membros da
sociedade; remedeia os males que resultam da differença que
a natureza poz entre os homens; e faz servir essa mesma desigualdade ao
bem geral. A justiça pelas leis da equiedade e
sábia distribuição do
premio e do castigo excita a virtude, reprime o vicio, e chama
á ordem os que são tentados a obrar contra os
entes da sua especie.
Taes são as disposições que a
sociedade deve exigir dos seus membros; tudo nos mostra a sua
utilidade; são necessarias e invariaveis; pois tem por
fundamento a natureza
[92]
e as
precisões constantes da especie humana. Faltando a
justiça não ha ventura na sociedade; sem ella o
estado social torna-se mais desagradavel do que o estado selvagem.
É melhor viver só do que rodeado de homens
injustos.
A temprança é igualmente necessaria: a prudencia
nasce da razão ou da experiencia das cousas. A
razão eleva o homem ás causas, ensina-lhe a
estudar a sua influencia, e a prevêr os effeitos. Sim, a
razão compara os objectos, e despoja-os de apparencias
falsas; e aproveita-se do preterito, e do futuro para não
saír da meta conveniente na
occasião opportuna.
Do governo humano, activo, justo e prudente, resulta o bem estar da
sociedade; o seu maior cuidado é fazer gosar os
cidadãos, em paz e socego, o fructo dos seus trabalhos;
conservalos exemptos dos vicios internos, e das invasões
externas. O Senado de Macáo firme nestes principios, e
sabendo quanto os sobrecargas inglezes ambicionavam aquelle nosso
estabelecimento, poz-se em guarda contra os que pertendiam esbulha-lo
da
[93]
sua pósse, ou perturbar
o socego publico.
Aportando alli o Almirante Drury, com ordem de Lord Minto (Governador
de Bengalla) para introduzir tropas inglezas em Macáo, ainda
que elles diziam ser aquelle procedimento a nosso favor; com tudo o
Senado desconfiou do empenho com que pertendiam verificar a offerta.
Assim firme em sua resolução, sustentou entre os
Chinezes e os britanicos a seguinte correspondencia.
[95]
SEGUNDA PARTE
Assim que o Almirante Drury aportou em Macáo, remeteu uma
intimação de Lord
Minto, a Bernardo Aleixo (Governador de Macáo)
[32] e mandou
Robert, (primeiro sobrecarga da companhia) em
deputação ao
Governador. Robert fallou neste espirito.
[33]
—Sou mandado pelo Almirante Drury participar-vos, que o seu
intento
é empregar as forças do seu commando na defeza de
Macáo, contra os francezes! A
explicação desta medida feita a V. Exc. por Lord
Minto dispensa-me de repetir os motivos porque o Governo Britanico
assim procede.
O Almirante está disposto a conferir com vosco antes do
desembarque das tropas: com tudo é preciso que o Senado
esteja tambem disposto a cooperar com os inglezes para a
segurança desta cidade e do commercio; se o
[96]
plano proposto não tiver effeito por motivo do Senado, o
Almirante, a seu pesar; terá conducta opposta.
Setembro 11
É para notar o ameaço que faz o sobre carga na
primeira entre vista!
É grato ao meu coração, tornou
Bernardo Aleixo, ver o empenho que tomais em defender as
possessões
lusitanas: com tudo pela intima alliança dos nossos
monarcas, pelas ordens que tenho do Sr. D. João VI, e pelos
tratados feitos com os Chinezes, não devo consentir no
desembarque das vossas tropas, sem ordem superior.
Septembro
12
Não posso duvidar, replicou Drury, da vossa franquesa nem da
convicção em que estais da intimidade dos nossos
monarcas: sou sensivel á situação em
que vos achaes:
comtudo previno-vos, que pela grande distancia do logar donde podeis
receber ordem superior, não a tereis tão
cêdo, como
é de meu dever cumprir o que me foi determinado por Lord
Minto. Para a conclusão deste negocio desejo ter uma
conferencia com vosco.
Septembro 13
Não só na primeira
participação, mas tambem na primeira replica teve
o Senado
[97]
motivo bastante para
desconfiar das intenções britannicas; por tanto
officiou ao Almirante pelo modo seguinte:
[34]
Suppondo-vos certo da razão que me assiste para
não alterar as ordens que tenho; devo lisongiarme da vossa
persuasão tanto da lealdade no desempenho dos meus deveres,
como da certeza em que estou da intima alliança dos nossos
monarcas: assim espero que modifiqueis as
instruções de Lord Minto, em quanto
não chegam ordens do Brazil, ou de Goa. Eu tambem demorarei
a participação das vossas
intenções ao Governo Chinez:
intenções de dificil compreensão a
povos altivos e desconfiados.
Estimarei a vossa visita, farei tudo para satisfazer-vos, menos
consentir no desembarque das vossas tropas. Terei a
satisfação de aprender com vosco o modo de tirar
a estes povos o receio, que lhe ficou em 1802, e agora renovado pela
vossa pretenção.
[35]
O Imperio da China
é o protector desta cidade ha 270 annos; nada mais
é preciso para sua
[98]
defeza. Sendo a coacção origem de disturbios e
conhecendo vós a nossa razão, espero que se
houver máo resultado na vossa empreza, não o
imputareis ao governo de Macáo.
Setembro 14
Não havendo resposta do Almirante até o dia 16 o
Senado intimou um protesto aos sobrecargas, e disse mais:
Será infalivel a
complicação dos negocios britanicos, se o vosso
Almirante tentar contra os ajustes feitos em 1802 pelo Senado com o
Governo Chinez, para não admittir auxilio extrangeiro.
Sabendo agora pelo Governador de Bengalla, que tendes grande parte
nesta empreza, é do meu dever segnificar-vos, que no caso
não esperado, de continuarem as mesmas instancias para a
admissão das
vossas tropas
nesta cidade, farei
pôr em execução o que no protesto junto
declaro. É repugnante o vosso procedimento contra povos
fieis e amigos da Caza de Bragança desde a sua
restauração. Exijo que o protesto junto com a
copia desta carta seja remettido ao Almirante.
Não produzindo estes escriptos o effeito desejado, o Senado
enviou a participação seguinte
ao mandarim de Hiang-san.
[99]
A dez de Setembro surgiram em frente desta cidade, uma náo,
uma fragata, e um brigue da nação ingleza, sendo
chefe desta força o Almirante Drury. Trouxe uma carta de
Lord Minto, que diz mandar, da parte do seu rei, antigo alliado do
nosso, soldados para defenderem esta cidade de alguma
invasão franceza. O Almirante assegura não
exceder os limites de defesa; porém como o seu desembarque
nesta cidade, quebra os tractados deste governo com a celestial
dynastia, somos obrigados a fazer-vos este aviso a fim de o levares ao
Suntó, em virtude dos mesmos tractados.
O Governo de Macáo, animado do ardente desejo de manter as
relações politicas e commerciaes, que tem ligado
esta cidade com os Chinezes, e varias nações da
Europa; e tendo o mesmo empenho em continuar a merecer na
opinião das nações, propria e
extrangeiras, a consideração de leal e honrado,
titulo nunca recusado a este Senado: julgou preciso offerecer ao
publico a succinta e franca exposição dos factos
acontecidos desde a chegada do Almirante Drury a este porto
até hoje, no protesto seguinte.
[100]
A dez de Setembro de 1808, chegou ao porto desta cidade a frota
commandada pelo almirante Drury. A 11 recebi uma carta de Lord Minto,
onde refere os desastres de Portugal; e o favor recebido, pelo nosso
Rei, de George IV, para conservar as possessões da India e
China; e que sendo esta de muita importancia para os inglezes, devia
ser guarnecida com as suas tropas. Para esse fim mandava um
destacamento a esta cidade, e pedia pelo vinculo de antiga amizade, a
sua admissão e necessario arranjo.
No mesmo acto disse, que pelos motivos da amizade expendida
não deviam obrar de modo, que destruissem a independencia,
que deviam querer segurar; nem admittia ser eu violentado a fazer o que
não devo.
Esperava desta resposta alguma moderação, e mais
por saberem, que os chinezes não admittem novidades com que
possam julgar menos segura a sua independencia. Com tudo reagiram,
mandando intimar pelo chefe da companhia, que se não fossem
admittidas as tropas, seria differente o seu procedimento.
Firme nos meus principios, e na minha
[101]
primeira resolução, assegurei-lhe a
immutabilidade do meu pensar, e dos habitantes desta cidade, que
jámais deram motivo para serem invadidos e atropellados por
uma nação, que se dizia alliada: porém
que a ter logar aquella intimação
ameaçadora, eu me defenderia
conforme o direito natural, e os limites desta praça, que
sempre fora respeitada por todas as nações
costumadas a
descançar á sombra da bandeira portugueza.
Vendo que os inglezes não socegavam, e que eram baldados os
esforços da mais estudada prudencia; querendo salvar a
honra, e a paz constrangida pelo nosso mais antigo alliado;
não devo demorar por mais tempo a necessaria
participação ao governo chinez. Este como
protector da cidade fundada por sua concessão em seus
dominios, da qual recebe foro a seu contento; prestará com
brevidade os socorros precizos. Sou obrigado a participar-lhe todas as
circunstancias, não obstante saber
quão
tristes se tornarão as suas
providencias, se o almirante não cessar da sua contumacia.
O senado tomará como hostil o procedimento que tiver por fim
desembarcar tropas
[102]
inglezas nesta cidade; declara que se defenderá
até o ultimo extremo. Protesta contra taes procedimentos: a
responsabilidade recaírá sobre os aggressores. A
razão anima os habitantes desta cidade, que tanta honra e
gloria tem dado á nação portugueza em
sua não interrompida posse.
Setembro
16
Quem não esperaria
moderação nos
britannicos, pela leitura daquelle protesto?
Retorquiram!—Sendo os
offerecimentos liberaes de Lord Minto rejeitados pela desleal conducta
do governo macaense
[36],
e os esforços da nossa parte a fim
de livrar esta cidade da invasão franceza, e querendo
nós conservar boa intelligencia entre o governo chinez e a
nação britannica: somos arrastados pela
inexperada conducta dos macaenses a tomar medidas, que
podem offender os chinezes; mas o senado responderá por
tudo.
Achamos-nos levados ao penoso extremo de vos participar, que em breve
os soldados inglezes occuparão Maçáo.
A nossa tenção,
quando chegar esse momento, é desembarcar
[103]
tambem os marinheiros, e tomar posse da cidade á ponta de
bayoneta. Consideraremos qualquer opposição como
rebelião
directa. Para evitar o conflicto de soldados e marinheiros raivosos,
deve o Senado admittir já as tropas britannicas.
Setembro 19
Foi recebida esta intimação, quando chegava outra
dos mandarins do destricto, para não deixar o Senado,
desembarcar as tropas inglezas. O governador remetteu-a por copia ao
almirante, com a seguinte carta.
Agora me foi presente a vossa intimação! Com
pesar vejo nella,
tratada de
infiel a conducta do governo desta
cidade por não admittir, contra o seu dever,
guarnição ingleza! E que tomareis como acto
hostil qualquer resistencia da nossa parte, dando para unico remedio a
tantos males, introduzir aqui tropas britannicas! Tenho presente as
rasões que vos expuz; extranho caracterisares este governo
de mal intencionado no cumprimento dos seus deveres. Confesso que da
minha parte os tenho modificado, julgando continuar assim a distincta
amizade dos respectivos monarcas. Ponderei em pleno conselho a vossa
[104]
intimação: sendo
bem examinada a ultima parte em que dizeis cesserá o vosso
rigor, admittindo-se um destacamento inglez, desejo saber como fareis
isso sem nos dar motivo para desconfiar das
intenções britannicas; e sem que os chinezes se
offendam de tão escandaloso procedimento. Posso
assegurar-vos, que elle não só ha de ser
prejudicial a
Macáo: a companhia ingleza soffrerá tambem os
seus effeitos.
No dia 20 os sobrecargas Roberts, Patlle, Brameston, Helphinstone, e
Baring dirigiram ao governador a carta seguinte.—O protesto
de Vossa
Excellencia, será apresentado ao almirante, assim como a
intimação dos mandarins. Nós sabemos o
que elles são: o almirante não fará
caso delles. Sendo preciso concluirá este negocio com o
Suntó.
É memoravel nos annaes macaenses, o dia 20 de Setembro de
1808. Achavam-se ás mãos com os piratas da China,
e ameaçados, pelo almirante inglez, de serem atacados
á bayoneta. Mas quanto maiores eram as adversidades, mais se
engrandecia o animo dos macaenses... Assim que se publicou no Senado
[105]
a injusta, cruel, e atroz
intimação da força ingleza, gritaram
todos:—Só depois de morrermos na defesa destes
muros
levantados por nossos maiores, poderão entrar esses
barbaros, que não podendo tomar nossas casas pela
hypocrisia, tentam fazelo com ameaços. O capitão
mór José Joaquim de Barros, ardendo em lavaredas
de amor patriotico, disse para o governador;—Irei para o
logar mais
arriscado, lá darei a vida na defesa do meu
posto—Bernardo
Aleixo, consummado em prudencia, não soffreu ser vencido em
valor. Dirigio-se ao
Ministro
Arriaga, dizendo:—Honrado collega, com
taes companheiros não serão arrebatados
os lares
macaenses. Devemos acabar de ter contemplação com
homens, que mais parecem inimigos do que alliados. Deixo a minha
residencia da praia grande; vou tomar o meu logar na fortaleza do
monte, confiado em que ordenareis tudo para conservar o socego publico;
e fiquem todos na intelligencia, que ella não se
renderá em quanto eu existir.
Quem poderá escrever os dons naturaes e do estudo,
desenvolvidos pelo magnanimo
[106]
Arriaga
neste conflicto? Soube moderar o valor exaltado que tinha accendido
nos
peitos macaenses,
e persuadilos,
que não se
offendia em cousa
alguma a honra nacional, desembarcando a tropa ingleza, com
permissão do Senado; e
talvez isso
desse novo realce á gloria dos portuguezes;
afiançou não
ser longa a demora dos inglezes em
Macáo. Disse que todos sabiam ter o governo feito, quanto
estava ao seu alcance para livrar a cidade da invasão
ingleza; mas que em todo esse andamento haviam chegado os negocios a
tal extremo, que a julgava necessaria para ensinar os britanicos, pela
experiencia, que os macaenses não toleram invasores.
Socegaram os animos; deram-se todas as providencias para se effectuar o
desembarque sem disturbios. Entregaram-se as fortalezas a pessoas de
confiança. O Governador foi para a do monte: e o
Capitão mór para a de S.
Francisco.
Commandava então a
guarnição da praça, o Senhor
José Ozorio de Castro Cabral e Albuquerque; sempre mereceu
elogios do Governo por saber conciliar as qualidades militares com as
virtudes civicas.
[107]
No dia 21 ao romper da alva desembarcaram os Capitães
Robertson, e Claulfield, com plenos poderes para tractarem com o
Governo de Macáo, ácerca do desembarque da tropa;
e levaram a Bernardo Aleixo a carta seguinte.
Tive a honra de receber a vossa participação, diz
o Almirante, em que me informais da sabia e leal
determinação do Senado, em adimittir um
destacamento inglez na defesa desta cidade. É
grande o meu prazer entrar em Macáo como sincero amigo, e
sem
quebrar-se a antiga
amizade dos nossos monarcas.
Affirmo-vos que haveis achar nas tropas britanicas, obediencia e
respeito.
Quão differente linguagem da que empregou no dia 17! Em
quanto os macaenses não cederam á tenacidade
britanica, éram infieis; agora que pareciam afrouxar na
defesa dos seus direitos, são leaes e sabios! Ver-se-ha
mudarem de linguagem em pouco tempo.
No mesmo dia os delegados do Almirante, e os do Senado (Bernardo
Aleixo, e Miguel de Arriaga) convencionaram nos artigos seguintes.
[108]
1.º As leis do paiz regerão com toda a sua
plenitude.
2.º Os crimes contra os Chinezes, seguirão o
julgado
estabelecido.
3.º O destacamento inglez será subordinado ao
governo desta
cidade, combinando com o Capitão Robertson, em casos
extraordinarios.
4.º Nenhuma outra bandeira será arvorada em
Macáo, além da portugueza.
5.º As munições do destacamento
entrarão nos armazens publicos, ás ordens do
governo desta cidade. Os inglezes terão permissão
para beneficialas.
6.º Os navios que pelas leis do paiz tem livre entrada neste
porto
não serão
interrompidos, nem registados pelos britanicos: e os navios inglezes
ficarão no mesmo estado em que se achavam antes desta
convenção.
Depois de assignada, o Senado fará diligencia para evitar
complicação com o governo chinez. O governo de S.
M. Britanica fica responsavel ao Sr. D. João VI, pelas
consequencias deste tractado.
Desembarcaram as tropas sem tumulto;
[109]
aquartelaram-se na feitoria de Bernardo Gomes de Lemos, e nas
fortalezas da Guia, e do Bom-parto. O Almirante requereu estes dois
ultimos quarteis, para não haverem disturbios.
Antes de desembarcar as tropas dizia, que ellas guardariam obediencia e
respeito, assim que entrou com ellas na cidade, mudou de
lingoagem: temeu logo que os britanicos insultassem os
Chinezes. A intenção dos sobrecargas e do
Almirante, éra de ir pouco a pouco, escondidos na capa da
amizade, appossando-se de todas as fortalezas: e exigindo sempre, que o
Governo de Macáo avisasse ao de Cantão, que tudo
aquillo procedia da intima alliança entre as duas
Côroas de Portugal, e Gran-Bertanha.
No primeiro de Outubro, pedio o Almirante ao Senado, licença
para enviar ao Suntó o tractado feito com o Senado, antes de
entrarem as tropas inglezas em
Macáo.
Já a esse tempo o Suntó estava sciente de tudo
quanto se tinha feito em Macáo.
No dia 8, começou o almirante, com os seus, a dirigir
queixas ao governador, pelos
[110]
insultos,
que faziam os chinezes aos britannicos; e dirigiram-lhe a
participação seguinte.—Somos obrigados,
com
pezar nosso, a representar-vos a necessidade de mettermos o nosso
destacamento na fortaleza de monte, a fim de evitar a
communicação com os chinezes; por
quanto já espancaram alguns
officiaes, e esta manhãa insultaram
outros de modo, que se não estivessem dentro dos limites do
quartel, haveria grande desordem. Se o destacamento se
estabelecer na
fortaleza do
monte, acabar-se-ha a idéa de
perigo. Asseguramos-vos a repugnancia com que fazemos esta
applicação, mas somos a isso obrigados para
evitar males, que podem envolver os nossos governos com o dos chinezes,
de quem temos ouvido dizer está fazendo grandes preparativos
de guerra. Seria bom, que assim como publicastes a ordem de Goa para
receber o nosso destacamento, fizesseis o mesmo á
proclamação do vice-rei de Goa.
Os inglezes esperavam, sem duvida, achar os macaenses no estado em que
os havia descripto o capitão Laperouse: e que Bernardo
Aleixo não possuia o talento e virtudes exaradas
[111]
por aquelle celebre navegador nas paginas
da sua viagem. A carta seguinte tirou os inglezes da illusão
em que estavam.
Não tenho duvida em passar o vosso destacamento para a
fortalesa do monte: sendo necessaria para defeza contra os
francezes, está nos termos da ordem que recebi de Goa
[37]:
porém sendo o motivo dessa exigencia evitar a
communicação e disputa com os chinezes, estou
certo de que na feitoria, onde se acha aquartelada, observada a
disciplina que hade usar na fortaleza, conseguirá o mesmo
fim sem dar logar a ciumes da parte dos chinezes; causa sem duvida de
males maiores do que pretendeis evitar: e de mais, isso não
é conforme com o tractado, que fizemos.
—A desconfiança do governo chinez tem augmentado
pela
occupação das fortalezas da Guia, e Bom-parto com
tropas britanicas. Assim acrescerá mais em prejuizo do
commercio das duas nações, que na
união, com os chinezes tem igual parte nesta cidade. A
nação britanica não
consentirá em plano algum,
[112]
que destrua esta união: e
a mim
não é permittido admittir defeza opposta
á lealdade, que este governo tem á
constituição do
imperio, seu protector; e com direito sobre o territorio a que chama
parte do mesmo imperio.
Ainda que é forte a
razão que me
assiste, maior será o meu pesar, quando pareça
falta de condescendencia da minha vontade prompta em reconhecer os
serviços de S. Magestade Britanica, ao S. D. João
VI. Elles exigem, que espereis a resposta do governo chinez, aos
artigos da nossa convenção, que não
pode alterar-se para não sermos obrigados a fazer outra
participação. Sería
agora passo arriscado, pelo escrupulo dos Chinezes ácerca
das intenções britanicas. O
Senado já mais deixará de cooperar no que for
util á nação britanica. Agora mesmo
acaba de pedir aos mandarins do districto, providencias para evitar,
que os chinezes insultem os vossos officiaes.
Lisongeio-me constar-vos a publicidade que dei á ordem de
Goa. Tambem fiz publica
Lisongeio-me constar-vos a publicidade que dei á ordem de
Goa. Tambem fiz publicar a proclamação segundo o
costume deste governo. Vivei na intelligencia, que não
esconderei
[113]
o que vos possa
interessar, não offendendo o decóro desta cidade.
De 3 a 14 de Outubro recebeu o Senado varios avisos do Mandarin de
Hiang-san, aos quaes o procurador, José Joaquim de Barros,
respondeu neste espirito.—Eu o procurador da Cidade de
Macáo, mandarim de Hao-king, remetto-vos toda a nossa
correspondencia com os inglezes, a fim de conheceres a verdade. O
Senado remetteu ao Almirante todas as vossas chapas, (avisos) nestas
circunstancias é o que podemos fazer.—
O mandarim respondeu:—Pelo que respeita ás cartas
do
Almirante, ainda que as tenho feito interpretar, não posso
entender o seu verdadeiro sentido: espero que o declarareis ao portador
desta para minha intelligencia. A ordem do Vice-Rei de Gôa
não prevalece contra os tractados existentes do Governo
celestial com o vosso Rei. Em quanto ao desasocego dos moradores
chinezes em Macáo, depende de vós: fazei com que
os inglezes tornem para os seus navios, todos ficarão em
perfeita quietação.—
Outubro.
No dia 16 remetteu outro aviso.
[114]
—Sei que fôra apresentada a minha carta aos
inglezes para
saírem de Macáo, e que
responderam
terem vindo para defenderem Macáo dos francezes, visto
não o poder agora fazer o vosso Rei; e que para
saírem precisam que venham soldados portuguezes!
É inegavel ser Macáo territorio da China, assim
como ter-vo-lo
concedido a
celestial dynastia, attendendo a
virdes
de tão longe, e
quererdes repousar neste Imperio. Ha perto de tres seculos,
não só vos tracta sem differença de
seus povos, mas tambem como filhos enchendo-vos de beneficios.
[38] Os
francezes não costumam insultar as terras deste imperio:
quando usassem agora commetter essa injustiça, os inglezes
deviam lembrar-se, que temos mandarins de letras e de armas e poderoso
exercito para defender-vos, sendo preciso. Exponde estas verdades ao
Almirante, e aos sobrecargas, e intimai-lhe de minha parte que
embarquem o seu destacamento sem demora.—
No dia 17 sabendo o mesmo mandarim,
[115]
que os Chinezes emigravam de
Macáo assustados pelo ameaço da guerra, mandou
outra chapa ao procurador, offerecendo-lhe tropas para auxiliar os
portuguezes, e animar os Chinezes a fazerem o trato do costume, para
não soffrerem os habitantes da cidade por falta de
alimentos.
(18 de
Outubro.)—Mostrei a vossa chapa de hontem ao
Almirante
(tornou o
procurador
ao mandarim) assegurou-me ir a Cantão ultimar este negocio
com o Suntó. Desejo que vos empenheis no bom tractamento
para com elle, visto ir encarregado de negocio tão
importante.
No mesmo dia 17, recebeu o Governador a carta seguinte (dos
sobrecargas).—Capacitesse V. Exc.
a da
grande
importancia, que
é para as duas nações Portugueza e
ingleza, accommodar em breve a desintelligencia, que reina entre
nós e os Chinezes. A viagem do Almirante a
Cantão, dirige-se a esse fim; mas é preciso que
os seus intentos sejam sincenramente narrados ao Suntó.
Só
o padre Rodrigo o pode fazer como desejamos; assim rogamos a V. Exc.
faculdade para elle acompanhar
[116]
o
Almirante. O Governador concedeu a licença pedida.
Quando em Macáo se esperava que fossem diminuidas as
calamidades, augmentaram. Assim o demonstram os sobrecargas na carta
seguinte: basta meditala com reflexão para se conhecerem as
intenções britanicas.
—Soubemos esta manhãa—ter
chegado de Bombaim outro destacamento. O Almirante ordena que
desembarque immediatamente. Rogamos a V. Exc., que mande fazer os
arranjos necessarios para esse fim. Alcançaremos grandes
vantagens se persuadires os chinezes, que são tropas
mandadas pelo vosso Rei; e que desembarcadas estas
embarcarão as que se acham em terra. Para dar mais
força a esta lembrança pode V. Exc. mandar entrar
os navios com bandeira portugueza. As objecções
dos chinezes são de pouca entidade. Para este segundo
desembarque, escusa V. Exc. pedir-lhe venia. Pedimos licença
para manifestar a V. Exc. o escandaloso procedimento de alguns
macaenses infieis ao Senhor D. João VI; pois enviam aos
mandarins representações desfavoraveis
[117]
aos britanicos. Da sua má conducta
nascem os inconvenientes, que temos soffrido. Se V. Exc. não
dá remedio a tam grande mal, o Almirante enviará
para o Brazil as pessoas suspeitas.
[39]
Esta carta demonstra bem a
protecção levada pelos inglezes a
Macáo. 1.º soberba, 2.º falsidades,
3.º arrogancia
fraudulenta, 4º
calumnias, 5.º
despotismo da
sua consumada prudencia,
respondeu nestes termos.
(Outubro 21.)—Dizeis
ter
ordem do
Almirante para desambarcar
tropas novamente chegadas! E desejais, que eu dê a entender
aos chinezes, virem da parte do Sr. D. João VI! Nenhuma
duvida teria no seu desembarque, se as circunstancias decorridas depois
que desembarcaram as primeiras não tivessem de dia em dia
complicado mais este negocio com os mandarins. Effeituando-se este
segundo desembarque antes de conferir o Almirante com o
Suntó, pode transtornar o negocio, e ser funesto ao
commercio, já suspenso em Cantão. Accresce ter eu
agora recebido, ácerca dessa tropa, protesto, que devo tomar
em
[118]
muita
consideração. Esta cidade tem soffrido muito com
a vossa expedição; e a meu cargo está
vigiar por seus interesses. Não me consta haver aqui morador
algum infiel á Caza de Bragança, apesar de ser
dever
meu cuidar nessa indagação.
(Outubro 21.)—No
mesmo
dia,
escreveu o mandarin de Hiang-san, ao procurador de Macáo,
neste espirito.—Consta-me chegarem ahi mais tropas inglezas;
jámais deveis permittir o seu desembarque. Duvidamos muito
dos seus intentos. Se o consentirdes darei parte ao Suntó,
de que faltais ao vosso dever.
(Outubro.)—De 21
a 28
houveram
disturbios entre os inglezes e os chinezes. O procurador representou
aos mandarins, que não tinha leis por onde castigasse os
chinezes em casos taes; e que para isso exigia
providencias.—Aquelles
tornaram. Não são precisas leis para castigar
crimes, que jámais devem existir neste imperio. Embarquem os
inglezes, tudo fica remediado.—Não davam resposta,
á exigencia de providencias.
(Outubro.)—Em 29
escreveram os
sobrecargas ao Governador:—Sabemos com certeza
[119]
não serem as
partecipações de V.
Exc. (ácerca do auxilio britanico) expostas ao
Suntó como deviam; antes sim pelo contrario. Rogamos a V.
Exc. lhe declare o justo procedimento do governo britanico, e que esta
declaração seja remettida ao Almirante para elle
mesmo a entregar ao Suntó. Extranhamos a repugnancia de V.
Exc. em seguir o exemplo do Vice-Rei de Goa, isto é, animar
os portuguezes contra os nossos inimigos. Se os moradores desta cidade
fossem assim admoestados, desejariam o nosso auxilio em logar de o
aborrecer.—
(Outubro 30.)—Entre
as
difficuldades, que vos apresentei, tornou Bernardo Aleixo,
foi uma
a complicação com os chinezes. Tenho
conhecimento
do systema do seu governo por longa experiencia adquirida na pratica;
sei os vinculos que os unem a esta cidade; e por isso previ o
máo resultado da vossa empreza. Falleivos com franqueza, fui
considerado como desaffecto aos vossos projectos. Em 20 do mez passado
desclarasteis (ainda que pouco favoravel ao
exercicio do meu emprego) ser qual quer opposição
do
[120]
governo chinez,
desembaraçada pelo Almirante com o Suntó; agora
vejo depender deste governo a ultimação do
negocio.
O Senado trabalha para que não sejam reputados sinistros os
fins da vossa expedição: se tem havido
desconfiança nos mandarins, não é
motivada por este governo; pois tem patenteado com franqueza a sua
correspondencia entre vós e os chinezes.
Já vos disse, e agora o repito: dos macaenses, nem um
só deixa de respeitar a caza de Bragança,
costumada a encher esta cidade de beneficios em honra do seu governo, e
gloria de seus moradores. Porém como não lhe seja
vedado amar a tranquillidade publica do seu paiz, não deve
extranhar-se a cada um chorar a sua desgraça: sem blasfemar
da causa, aborrece os effeitos.
Os pais de familias lastimam a morte de seus filhos, pelo abandono das
amas chinezas—que se retiram. Os infelizes que tem na
labutação diaria o seu recurso, lastimam-se pela
escacez e carestia dos generos alimentares. Os mais abastados
lastimam-se por ver chegar o tempo de fazerem suas
negociações, e terem
[121]
ainda as mercadorias empatadas por falta de
gyro, ha cincoenta dias. Até os navios estão
ainda por fabricar á mingua de artifices, que tambem
fugiram. Os empregados publicos vendo parar o commercio, lastimam-se
por saberem, que delle tira o estado rendimento para pagar-lhes. Os
mesmos habitantes chinezes, dados ao commercio, tem emigrado e levado
até o mais inferior dos seus trastes. Isto era de esperar de
homens pacificos ao verem apparatos de guerra. Além disso
ameaçados pelos mandarins, que julgam a
constituição do imperio atacada pela vossa
imprudencia.
Á vista do exposto não admira haverem
descontentes, que deplorem a sua desgraça, e aspirem ao
socego deste fiel estabelecimento, que ha 252 annos tem sempre
respeitado as ordens do seu monarcha. Julgai por este quadro se um tal
povo necessita de proclamações para ser fiel ao
Rei a quem adora?
Assim que esta carta foi remetida, mandou o Senado ao procurador, que
exigisse do mandarim de Hiang-san, o motivo da queixa dos Inglezes; o
que fez pelo modo seguinte.—O
[122]
chefe da companhia
ingleza accusa-vos de não teres enviado as minhas chapas ao
Suntó, ou que mandando-as lhes viciastes o texto.
Não posso crer teres procedimento alheio do vosso emprego e
caracter. Espero que immediatamente apresenteis os originaes ao
Suntó: eu envio as copias ao almirante para as conferir
com elle, e ficar desse
modo illesa a vossa reputação.
Os sobrecargas responderam á carta de trinta pelo modo
seguinte:—A vossa carta encheu de magoa os nossos
corações pelas
circunstancias em que se acham os habitantes de Macáo; tudo
nasceu da conducta do Senado: se adoptasse o nosso systema,
não teria agora de vêr essas lastimas. Os
macaenses julgaram a proposito tomar medidas contra a nossa
expedição; e fizeram repetidas instancias ao
governo chinez, pedindo soccorro contra os hostis procedimentos
britannicos: o excessivo ciume dos chinezes, e o manejo do Senado
motivaram todos os males.—Em verdade dissemos, que o
almirante
removeria todos os obstaculos em Cantão; assim aconteceria
se o governo de Macáo se unisse cordialmente
[123]
com o almirante
.
Os esforços
que V. Ex.
a promette fazer em suas
applicações
ao governo chinez, são para nós de grande
importancia. Sabemos que hão-de produzir bom affeito.
Estamos persuadidos, que só o governo de Macáo
pode remover as presentes difficuldades e miserias.
Grande documento é este para augmentar, se é
possivel, a honra dos macaenses, pelo valimento que tem com os
chinezes. No principio da carta, invectivam os sobrecargas aos
macaenses; no fim pedem-lhe misericordia! Era tal a
ambição, ou a impudencia daquelles
bretões, que diziam em face ao governo de Macáo
serem motivadas as calamidades daquella cidade pela ignorancia dos
chinezes, e manejo do Senado! Quem não vê provir
tudo da tenacidade dos sobrecargas em quererem apossar-se daquelle
nosso estabelecimento? Quem poderá capacitar-se de ser
aquelle empenho unicamente sustentado para guardar Macáo aos
portuguezes? Em pouco sairá o almirante da
illusão em que o tinham os sobrecargas.
O ultimo paragrafo desta carta merece
[124]
particular attenção: O governador despresou as
argucias do primeiro, e respondeu ao segundo.—Vejo a
necessidade que
tendes de novo recurso deste governo ao de Cantão: O Senado
já enviou uma chapa ao mandarim do destricto, da qual se vos
remette copia, e de toda a nossa correspondencia com os chinezes, a
vosso respeito. Faço isto para ver se acabam as vossas
desconfianças.
Nesta intelligencia e com o mesmo desvelo (posto que até
agora equivoco) farei novas representações ao
governo chinez sempre que me indiqueis a forma de applacar a
tormenta, que vos ameaça, pela desconfiança dos
mandarins superiores.
Á vista do corpo disforme, que tomou este negocio, quem
não esperaria
moderação nos sobrecargas? A carta seguinte
mostra o contrario!
(Novembro 3.)
—Pertendem ainda quebrar as leis do imperio, introduzindo e
descarregando navios britannicos em Macáo.—Em
virtude de
ordens do almirante, dizem elles, participamos a V. Ex.
a
que mande
apromptar armazens para depositar nelles os generos vindos em nossas
[125]
embarcações.
Esta medida nasce da
oppoção
que os chinezes fazem ao auxilio dado por nós a esta cidade.
Esperamos que V. Ex.
a não recuse os
seus extremosos
esforços em nosso beneficio, vendo que os sacrificios do
governo de Macáo são bagatela em
comparação dos que temos soffrido pelo embargo do
commercio britannico (em Cantão) só por usarmos a
generosidade de querermos dar segurança a esta cidade: Assim
esperamos a ordem para a descarga, sem dilação.
Não tenho duvida em prestar a minha condescendencia
á vontade do almirante, respondeu Bernardo Aleixo, com tudo
sou forçado a dizer o que sendo publico, admira ser por
vós ignorado. As leis deste paiz só admittem
navios estrangeiros no caso de mera hospitalidade, segundo o direito
das gentes. Applica-se aos navios de entrada e saída de
Cantão, até poderem seguir o seu destino.
Achando-se em iguaes circunstancias, qualquer navio da companhia,
não haverá duvida na sua admissão;
porém se a descarga, que se pertende fazer em
Macáo provem da opposição dos chinezes
ao commercio britannico, tenho
[126]
grande
embaraço no cumprimento do meu desejo.
Os tractados desta cidade, com o governo chinez, permittem
só carregações neste
porto vindas em navios portuguezes, ou hespanhoes; se o commercio
inglez está prohibido em Cantão, como o poderei
admittir em Macáo, sendo dominio chinez, sómente
aforado aos portuguezes debaixo de certas
condições, que vós, dizendo auxiliar,
pretendeis romper?
Accresce não haver logar para tão grandes
carregações: por falta de gyro, acham-se todos os
armazens cheios de generos vindos na monção
ultima. Dizeis que são
grandes os vossos sacrificios, e os nossos bagatela! Os sacrificios,
neste sentido, não devem considerar-se pelo valor das
riquezas: por perderes muito não se segue, que
não sejam maiores os nossos sacrificios perdendo tudo.
Lançais as culpas das vossas perdas sobre nós, e
que faremos a vosso respeito? O tempo fará
justiça ao nosso procedimento
[40].
Agora (apezar de tudo) é tal o meu desvelo
[127]
em vos servir, que se
algum navio
se acha em estado de tornar indispensavel a sua descarga,
terá os soccorros necessarios como se pratica entre povos
civilisados; sem offensa dos laços domicilarios e
privativos, sustentados pelo esforço e gloria da
Nação
Portugueza.
Em todo o mez de Novembro houveram disturbios entre os chinezes e os
britannicos: aquelles não só maltractavam estes,
encontrando-os nas ruas, mas tambem lhe apedrejavam as
janallas. Por mais que o procurador do Senado exigisse
providencias dos mandarins, a resposta éra sempre a
mesma.—Sáiam os britannicos da cidade, e tudo
ficará em socego.—Quando os inglezes estavam mais
teimosos
em descarregar os seus navios em Macáo, baixou a seguinte
admoestação do Suntó aos sobre-cargas.
Sobre-cargas da companhia ingleza, sabei que a virtude do nosso
Imperador se manifesta como o céo, abrange tudo:
considerando elle que os reinos da Europa se tem mostrado, ha muito
tempo, obedientes e politicos, concedeu aos europeos licença
para negociar
[128]
em Cantão;
reputando-vos como individuos da mesma familia. Vós o tendes
experimentado, e sabeis, que nunca foi concedido ficardes permanentes
na China. Logo não devieis trazer navios cheios de soldados,
nem desembarcalos contra as leis do imperio. Macáo
é cidade edificada em terreno chinez: a dynastia passada
concedeu aos portuguezes estabelecerem-se alli; a presente, em virtude
da sua antiga posse, deixou-os ficar como d'antes; porém
debaixo de certas condições. A nenhuns outros
europeos se concedeu privilegio semilhante! Como pertendeis
vós agora persistir em Macáo? Dizeis recear
venham os francezes insultar os macaenses! Nunca se attreveram a
pertubar as terras deste imperio: e quando venham com
muito socego os esperaremos; vindo desfalecidos, e sendo poucos contra
muitos, sem batalha ficarão vencidos. Terão a
sorte da carne na banca do cosinheiro. Dizeis ser amigos dos
Portuguezes e que viesteis ajudalos contra os francezes! Porque
não obrasteis este excesso de amizade la na Europa, ou
porque não os esperais fora das ilhas da china para
os baterdes quando cheguem?
[129]
Não é justo estares em Macáo
quebrantando as leis do imperio, e dissolvendo a união
mutua, que deve existir em todos os seus dominios: desse modo perdeis o
direito, que haveis á nossa benevolencia. Por ventura
não sabeis o que vos é interessante? Podereis
existir sem commercio? Por certo não: pois quanto mais
depressa embarcardes os soldados, mais cedo se vos abrirão
as Alfandegas. Se retardares o seu embarque, não tereis
communicação com a terra. Ponderai bem o que vos
proponho, e não me incommodeis com mais
peditorios.—
Em quanto o governo de Macáo pedia aos mandarins do
districto, que o ajudassem a sanear as feridas abertas pelos inglezes,
nas leis do imperio, a fim de não se irritar contra elles o
Suntó, chegou outra chapa deste, pelo mandarim de Hiangsan,
em que dizia:—
Eu o Governador das duas provincias de Cantão e Kuansi,
faço saber ao mandarin de Hiang-san, que da entrada dos
soldados inglezes em Macáo, são culpados os seus
moradores; pois deviam tela embaraçado. Mas examinando o seu
antigo, e moderno
[130]
procedimento, achei
serem sempre gratos aos nossos Imperadores; por esse motivo
toléro o erro commettido.
Ácerca dos navios inglezes, já consultei o
Kuam-pu, a fim de lhes permittir descarga, e poderem negociar. Pelo que
pertence aos soldados, dei parte ao Imperador; eis a sua
resposta:—Se
os inglezes tiverem a ousadia de presistirem em sua
teima, lançaios fora com o nosso exercito.—Em
poucos dias
elle marchará sobre Macáo: no entanto recommendai
aos portuguezes a segurança da fortaleza do monte. Adverti
ao Procurador, que não se fie desses inglezes.
Como estes não fossem promptos na
execução das ordens do Suntó,
augmentou-se a soberba e desconfiança chineza de modo, que
julgaram tambem sermos culpados no insulto commettido pelos inglezes.
Desembarcarem estes as tropas já não
éra a maior
offensa: o que mais ferio o orgulho chinez, foi não
obedecerem
logo ao mando do Imperador. Tomaram os mandarins calor tão
ardente, que não deixavam passar um dia sem repetirem
intimações para que os inglezes
saíssem de Macáo: eis o seu
espirito.
[131]
Senhor Procurador, esses inglezes entrando em Macáo
apossaram-se das igrejas e das fortalezas! Em pouco tomarão
vossas cazas possuidas ha seculos; depois tirar-vos-hão
mulheres e filhos: não podemos soffrer tam grande offensa.
Marcham oitenta mil homens sobre os campos de Móa. (proximos
á cidade de Macáo) afim de os anniquilar.
Despresaram a graça feita pelo Suntó;
soffrerão o peso da força, que marcha contra
elles. Esses inglezes sendo homens não tem
coração humano; conhecem os males que tem feito,
e não se arrependem! Desejamos que todos vivam em paz, e
somos obrigados a mandar um exercito receando, que nem um só
inglez escape á morte! Fazei-lhe conhecer estas verdades, e
perguntai-lhe se ainda querem teimar contra a justiça, que
os ameaça.—O
procurador respondeu:—
—Tenho apresentado as mais essenciaes das vossas chapas aos
sobrecargas inglezes; não despresam as graças do
Suntó;
acham-se promptos para retirar-se; mas não o podem fazer de
repente. Os inglezes vieram com designio de nos auxiliar assim julgo
ser mal
[132]
fundada a vossa
desconfiança. Não precisamos do vosso exercito;
viria fazer maior damno á cidade. Sabeis quaes
são as leis que regem este nosso estabelecimento:
não deve entrar nelle, nem mesmo aproximar-se ás
muralhas desta cidade tropa chineza, sem que a pessa, e é
cousa, que ainda me não veio á
lembrança. Não é
justo imitares aos inglezes: estes diziam vir-nos auxiliar;
trouxeram-nos incommodos e perdas.—
É notavel a prudencia e a generosidade do Senado macaense
para com os inglezes, quando estes só lhe dirigiam offensas!
Ao mesmo tempo enviaram os sobrecargas a Bernardo Aleixo a carta
seguinte,
—A situação em que nos achamos
é
triste: temos recommendação do Almirante para
evitar hostilidades e fazer tudo quanto possa reconciliar-nos com os
chinezes. Se esta
recommendação for confirmada aos manderins, por
V. Exc. por certo diminuirá o seu rigor para com os
inglezes.
Nos maiores conflictos apparecia em publico o Magnanimo Arriaga e dava
socego a todos. Offereceu-se para convencionar com os
[133]
mandarins, sobre a retirada da
espedição britanica sem efusão de
sangue, donde resultou o tratado seguinte.
Bernardo Aleixo de Lemos e Faria, Miguel de Arriaga Brun da Silveira, e
o commandante das forças britanicas com os sobrecargas da
selecta companhia, desejando retirar o destacamento inglez,
decorosamente, ajustaram:
1.º O
Ministro Arriaga
tractará com
os mandarins ácerca da retirada das forças
britannicas, ficando o commercio inglez no mesmo estado em que se
achava, antes da sua entrada nesta cidade.
2.º Exigindo este negocio a cooperação
do
Almirante, Miguel de Arriaga irá a Wampo-o, para se concluir
alli do modo mais vantajoso ao vinculo das tres
nações.
3.º Concluido este negocio cessará a
prohibição de mantimentos para sustento dos
inglezes.
4.º Os mandarins farão suspender immediatamente a
marcha das tropas chinezas dirigidas a esta cidade.
(Dezembro 11.)
A presente convenção mostra a
confiança,
[134]
que o Ministro Arriaga
tinha em domar o orgulho e o rigor dos mandarins. Parece impossivel,
que só a politica a firmesa de caracter, e a urbanidade de
um homem pudesse conter a justiça chineza, sustentada por 80
mil homens! A carta seguinte dirigida a Bernardo Aleixo, dá
bem a conhecer o dominio que Arriaga tinha na vontade dos mandarins.
(Dezembro 11)—Depois
que
assignámos a convenção esta
manhã, fui ao pagode,
onde me esperavam os mandarins: tive larga discussão com
elles a fim de soltar difficuldades proprias a uma
nação escrupulosa e desconfiada; todavia
consentiram em tudo o que lhes propuz. Além disso
capaciteios das boas
intenções britannicas (apezar de terem sido
más para nós); naquella intelligencia
asseguraram-me ficar o commercio inglez no mesmo pé e
systema antigo—Despedidos os mandarins; tornou Arriaga
á
cidade contente por ter concluido negocio tão espinhoso por
meios tão honrosos para a nação
portugueza, como lisongeiros para o negociador.
Sabendo o mandarin de Hiang-san, que
[135]
o
novo governador Lucas José de Alvarenga, instava pela posse
do seu emprego, remetteu ao procurador a chapa seguinte.
—Da entrada dos inglezes até hoje, tem o antigo
governador
dirigido bem este negocio; agora constame, que o successor insta para
tomar posse e que o Sr. Bernardo Aleixo de Lemos e Faria o pretende
fazer: não é conveniente: os inglezes entraram no
tempo do seu governo, nelle devem saír. Sabemos que o novo
governador veio em navio inglez; quem nos assegura não ter
elle correspondencia com esses homens? Não é
justo nem conveniente tomar elle agora posse do governo. Em casos
extraordinarios nem sempre podem seguir-se as leis ordinarias: quando
os inglezes saírem de Macáo e ficarem todos em
socego, far-se-ha tudo segundo a lei e os costumes.
(Dezembro 11 de 1808.)
No mesmo dia partio Miguel de Arriaga, no brigue do Senado, para
Wam-poo. Em 24 horas chegou a bocca do rio Tygre: logo que da
náo se avistou suspendeu esta e veio ao encontro do brigue.
Em 14 de Dezembro, já de volta fez Arriaga, a
participação seguinte
[136]
a Bernardo Aleixo.—Assim que cheguei
á falla da náo, fiz saber ao almirante, qual era
a minha commissão: respondeu ter já ordenado o
embarque das tropas, e que desejava ser grato ás officiosas
declarações
anteriormente feitas pelo governo de Macáo; pois eram
veridicas e rasoaveis. Recebeu-me com a civilidade propria de sua
pessoa: disse que esperava do governo de
Mocáo o bom serviço de remover
qualquer difficuldade, que de novo apparecesse. Despedi-mo-nos com as
mesmas ceremonias da entrada, e não querendo elle ceder veio
acompanhar-me ao portaló.
Logo que o ministro Arriaga concluio a sua
negociação com o almirante, dirigio-lhe o
governador Bernardo Aleixo de Lemos e Faria a carta seguinte.
(Dezembro de 1808.)—Os
officios de
V. S., de 11 e 14, manifestam o grande trabalho, que teve na
conferencia com os mandarins: Pelo contexto dos mesmos se conhece a
excessiva applicação e desvelo com que V. S.,
além dos limites ordinarios, se empenhou em acalmar, com
heroico patriotismo, a cruel revolução que
ameaçava esta cidade.
[137]
Com o seu grande zelo e reconhecido talento, fez V. S. o mais
importante serviço á patria. Á
força de tão efficazes e
singulares deligencias
devem os inglezesfazer
a sua retirada sem effusão de sangue, e os macaenses o
socego da cidade.
(Dezembro de 1808.)—No
dia 16
começou a retirar-se o destacamento britannico; depois de se
effeituar o embarque de tudo quanto lhe pertencia, cuidaram logo os
sobrecargas em obter licença para desembarcar as suas
mercadorias em Cantão. No 1.º de Janeiro expedio o
Suntó a chapa seguinte.
—Qu-Hiung-Kuang, Suntó (vice-rei) de
Cantão, faz
saber a todos os europeos, que por desembarcarem soldados inglezes em
Macáo jámais se lhes devia permittir commerciar
neste imperio. Com tudo lembrando-nos que o seu rei offerecera tributo
ao nosso imperador, relevamos a offensa, que nos fizeram pela sua
entrada em Macáo. Agora depois de enviarem os soldados
ás suas terras, pedem os sobrecargas, arrependidos,
perdão com muita humildade, a fim de se lhes permittir
commerciar neste imperio. Conhecendo a misericordía
[138]
do nosso imperador, cedi
ás suas repetidas supplicas, deixando que desembarquem as
mercadorias, e possam vendelas nesta cidade. Devem receber esta
graça como um beneficio extraordinario. Assim mostramos, que
as leis chinezas tem enfraquecido com o tempo: no futuro
haverão medidas mais rigorosas. Daqui em diante se algum
europeo se atrever a quebrar as leis do imperio será
lançado fora para sempre.
Assim ficáram os inglezes no mesmo estado em que se achavam
antes de tentarem invadir Macáo; perdendo a companhia
enormes sommas dispendidas naquella empreza.
Tendo demonstrado com os sobrecargas desistiram
della, farei ver agora o motivo porque atentaram.
A grande influencia de Bonaparte na peninsula, obrigou El-Rei D.
João VI, a fechar os portos aos inglezes: esta medida fez
julgar aos bretões, que Bonaparte se apossaria de Portugal,
assim como o tinha feito da maior parte da Europa.
Considirando-nos debaixo do jugo do novo Filippe,
seu inimigo, seu inimigo, como
[139]
havia sido o antigo, praticaram a lição tomada
dos hollandezes; isto é pretenderam apossar-se do que ainda
tinhamos no Oriente.
Sendo os nossos estabelecimentos da Asia, interessantes aos inglezes,
não lhes convém possuilos outra
nação, que não seja a portugueza,
já pela sua antiga alliança, já por
não a temerem. Avisaram os agentes da companhia, para
guardarem as terras, que nos pertenciam naquella parte do mundo, a fim
de não serem tomadas pelos francezes; na
esperança de que voltando Portugal á sua
independencia, tudo ficaria como dantes; e se não podesse
livrar-se do jugo francez, herdarem elles o que haviamos ainda no
Oriente. Eis o motivo porque os inglezes invadiram Goa, e
Macáo, cidades que immortalisaram sempre o nome portuguez.
Accresce a estes successos da Europa, o desejo, que tinham os
sobrecargas inglezes de possuirem um estabelecimento na China; julgavam
desairoso ao seu poder, haverem os portuguezes na China o que os
britannicos não podiam alcançar. Sendo ricos
espalharam dinheiro na feira de Cantão, esperando que
[140]
havendo alguma desintelligencia entre
os portuguezes e os chinezes, estes os preferissem.
Os lusos soffrem grande critica pelo que praticaram nas suas conquistas
em seculos tenebrosos; com tudo são menos culpados do que os
inglezes; por quanto estes não são menos
violentos em seculo mais illustrado. Veja-se no quadro seguinte a
differença de ambição e despotismo das
duas
nações.
—Existe no Oriente imperio immenso, com mais de 100
milhões
de homens de castas, côres, e raças differentes:
é a India
ingleza. A Soberania não pertence á
nação; exemplo unico na historia do mundo;
é propriedade de uma companhia de negociantes! Viram-se os
cartiginezes enriquecidos pelo commercio, conquistaram
a Sicilia e a Hespanha; mas a republica, o corpo inteiro da
nação, foi quem adquerio pelas armas importantes
possessões. Em tempos modernos, a companhia hollandeza
adquirio grande esplendor; mas os seus estabelecimentos nas costas da
Asia, eram armações fortificadas, e
não colonias.
A companhia ingleza sem perder o commercio
[141]
dos portos de mar, estendeu o seu dominio a mais de trezentas
leguas pelo interior das terras. As regiões mais ferteis e
mais ricas do globo pertencem-lhe como fardos de fazenda
amantoados em seus armazens. O chefe, e delegados,
ostentam luxo asiatico, e reinam com orgulho.
Especulações mercantis elevaram este thesouro de
nova especie, que subsiste sem ser mantido como os outros pela gloria
dos Principes, respeito dos povos, ou pelo tempo que toléra
e consagra nefandas
usurpações.
As authoridades de tão grandes dominios, podem dizer-se, que
são vendidas em leilão, o mais vil inglez, em
tendo algumas livras e comprando acções da
companhia pode ficar membro desta sociedade, que tem fortalezas,
náos, e mais de cem mil soldados; além disso pode
vir e dirigir este poder colossal, que tem destruido o imperio do
Grão-Mogol, o do Teppo-Sail, e ameaçado algumas
vezes o Sofi da Persia e Grande As authoridades de tão
grandes dominios, podem dizer-se, que
são vendidas em leilão, o mais vil inglez, em
tendo algumas livras e comprando acções da
companhia pode ficar membro desta sociedade, que tem fortalezas,
náos, e mais de cem mil soldados; além disso pode
vir e dirigir este poder colossal, que tem destruido o imperio do
Grão-Mogol, o do Teppo-Sail, e ameaçado algumas
vezes o Sofi da Persia e Grande Lama
[41]!
Os portuguezes combateram na India os
[142]
sectarios de Mafoma livrando
desse modo a seus pacificos habitantes do captiveiro turco; os inglezes
servem-se dos braços sarracenos para agrilhoar os mal
fadados bramas.
Assim vê-se que se nessa época tenebrosa os
lusitanos obraram prodigios na India, vingando sobre os turcos os males
que lhe haviam soffrido em nossa terra, hoje não
desmerecemos na ordem dos nossos maiores; por quanto o Suntó
disse:—Nenhuns outros europeos
alcançarão (por merito) os privilegios concedidos
aos portuguezes.—Os sobrecargas confessaram, que
só o
Governo de Macáo podia remover as difficuldades e miserias
(que elles tinham motivado): o Almirante Drury tambem
disse:—Estou
muito obrigado ao governo de Macáo pelas suas
declarações
anteriores; por quanto eram veridicas e justas.—Taes
declarações confirmam a dignidade do caracter
Luzitano, em todos os tempos e logares.
Sabendo-se em Londres a conducta daquelles sobrecargas, foram outros
nomeados: chegando a Macáo esconderam o que se havia passado
alli em 1808, e fallaram do que viram
[143]
praticar em 1809, pelo modo seguinte.—As patrioticas
applicações e desvelos dos macaenses, adquiriram
a esta cidade muitas vantagens; ao governo portuguez gloria; e a todas
as nações commerciantes a liberdade dos mares da
China
[42].
Os povos chinezes congratulam-se com a
extincção do inimigo que por mais de 20 annos os
havia opprimido, por serem as forças maritimas do imperio
insufficientes para destruilo.—
Accrescentarei o que os sobrecargas não poderam escrever:
não foi menor a vantagem de Macáo e a gloria da
nação
portugueza, lançar fora daquella cidade as tropas inglezas,
que della se pertendiam apossar.
Vendo uma memoria do Sr. Lucas José de Alvarenga, Governador
que fôra de Macáo, sou obrigado a contestala para
desagravar os macaenses das offensas que alli lhes derige aquella
triste e
miseravel jactancioso.
Imprimio a sua memoria no Rio de Janeiro em 1828, e diz que lhe dera
motivo a isso outra
impressa em Lisboa
em 1824; por se
[144]
achar nella o seu nome inglorio. Sendo eu quem a
escreveu, devo mostrar a razão de não fallar em
louvor do Sr. Lucas.
Saí de Macáo para Lisboa em janeiro de 1808, e
o Sr. Lucas entrou naquella cidade em Setembro do mesmo anno.
Tornei a Macáo em Novembro de 1810, já elle tinha
saido dalli em Abril desse anno. Querendo recolher factos sobre a
extincção dos piratas, a fim de completar o meu
opusculo, tomeios das actas do Senado, e das pessoas conspicuas
daquella cidade. Haviam em tão pouca conta este cavalheiro,
que não se atreveram a confiar-lhe o governo das armas
senão depois de fazerem retirar as tropas inglezas, como
fica demonstrado, no officio do mandarim de Hiang-san.
O Sr. Lucas, a pag. 4 da sua memoria diz serem verdadeiros os factos
lançados na que se imprimira em Lisboa; isto é,
1.º O zelo e a actividade do
o
Ministro
Arriaga;
2.º o valor das pessoas empregadas na esquadra; 3.º
a existencia dos
tractados; 4.º a entrega dos piratas 5.º a
invasão e a
retirada das tropas inglezas; mas offende-se do silencio guardado
[145]
a seu respeito; e julga
haver nesse procedimento algum misterio.
Assim julga o Sr. Lucas não haver exactidão nesta
memoria por não fallar na sua entrada em Macáo,
no dia da sua saída, e talvez naquelle em que fôra
encontrado na Sé vestido com trajos de mulher. Confesso
não ter fallado do Sr. Lucas para não ennodoar um
escripto consagrado ás virtudes Luso-Macaenses, com a
irregular conducta de tal governador.
Como fallaria em louvor de um individuo desprezado não
só pela sua conducta, mas tambem pela sua cobardia? O Sr.
Lucas por fraco obstou ao mais glorioso triunfo que podiamos obter em
recompensa de tantas e tão longas fadigas: obstou que o
chefe dos piratas se entregasse com toda a sua esquadra no porto de
Macáo. Destas e outras
acções do Sr. Lucas devia eu fallar, se
escrevesse a historia de Macáo, mas eu apenas me encarreguei
de levar á posteridade dois factos dessa historia, a
destruição dos piratas, e o desembarque e
retirada das tropas britanicas. Não fazendo o Sr. Lucas
cousa boa
digna de
[146]
notar-se, julguei fazer
mercê ao Sr. Lucas, deixando-o no escuro em
que alli se lançou.
Sendo este opusculo destinado a louvar as acções
dos Luso-Macaenses, não devia
apparecer entre elles um brasileiro empenhado em fazer o contrario do
que os outros praticavam. Como se fallaria em louvor de um governador,
cuja administração foi tempo de martyrio para os
macaenses, não só pela falta de caracter do Sr.
Lucas, mas tambem pela grande rapina do ouvidor Peixoto?
É verdade innegavel ser tudo quanto alli se praticou de
maravilhoso, devido ao genio extenso e luminoso de Miguel de Arriaga.
Assim o provam as actas do Senado, as cartas de Cam-pau-sai, as de
Bernardo Aleixo, e o hymno cantado na presença dos bons
Macaenses, pelo benemerito cidadão José Baptista
de Lima, no dia em que estes celebraram o triumfo de Miguel de Arriaga
pela extincção dos piratas.
Quando fallei, em 1824, na 1.ª parte desta memoria,
ácerca
do bom governo Macaense referime á sua fórma e
aos annos em que influio nelle Miguel de Arriaga, e Bernardo
[147]
Aleixo. Agora vejo, com
admiração, o Sr. Lucas arrogar a sí os
louvores de outros, quando elle ainda nem ao menos tinha visto
Macáo!
O Sr. Lucas diz, a paginas 23 de sua memoria:—Sei em ultima
analyse
que não sei nada, e não sou nada—e a
paginas 7
diz:—Tendo eu sido autor de todos os negocios publicos e mui
particularmente este, sería bastante para dar
idéa do objecto contestado, e da falta de
exactidão da memoria impressa em 1824, do espirito,
conhecimentos, e fins com que foi escripta.—
O homem que não é nada, e não quer
nada pretende roubar a gloria dos que foram alguma cousa; contestar com
falsidades, documentos legaes e autenticos. Confessa a veracidade dos
factos impressos nesta memoria, e censura o seu autor por
não lhe dar a elle o que pertencia a outros! Eis a falta de
exactidão encontrada pelo Sr. Lucas: dahi nasce a sua
desconfiança ácerca do espirito,
conhecimentos e fins com que ella fôra escripta.
Póde viver certo
de que o
espirito
foi patriotico; os conhecimentos extraídos, parte das actas
do Senado, parte
adqueridos na
presença
[148]
dos factos; e os fins limitaram-se no gosto de levar
á posteridade os factos macaenses.
Arriaga, Bernardo Aleixo, Pereira Barreto, Alcoforado, e outros muitos
empregados naquella empreza, já o mundo os havia perdido
quando tive a honra de publicar pela imprensa as suas virtudes e
proezas; o Sr. Lucas não sendo nada e não
querendo nada, esperou que elles morressem para denegrir não
só as proezas, mas tambem as virtudes daquelles
varões illustres!
—Não posso deixar passar semelhante
expressão,
diz o Sr. Lucas a pag. 11, por conter noções
erroneas e falsas em perjuizo da honra e da gloria que me provem do
resultado de todos os brilhantes feitos na época
sómente do meu governo, e cujo brilhantismo principiou com a
minha chegada e acabou com a minha retirada!—
Ainda senão vio maior
jactancia. O Sr. Lucas chega aponto de alterar a
fórma
do governo só a fim de roubar a gloria
que não lhe pertence.
É elle mesmo quem confessa, apesar do
[149]
roubo que pretende fazer, a paginas
42 da sua memoria, não ter influencia no
governo.—O Senado,
diz elle, projectou mandar a galera Ulises ao Rio de
Janeiro, afim de cumprimentar El-Rei; oppuz-me; com tudo a galera
proseguio—Assim destroe o mesmo Sr. Lucas as suas argucias.
Em quasi todas as paginas da sua memoria lançou argumentos
contra-producentes.—Chegaram os piratas pela sua quantidade e
força, diz elle a paginas 43, a dominar os canaes de
Wampo-o; então por circunstancias, apesar das ordens
superiores que me embaraçavam a fazelo, expedi ordens em
Setembro de 1809 para serem batidos. O Sr. Lucas, em seus improvisos
desacredita os mesmos a quem pretende elogiar. As ordens superiores
referem-se ao Vice-Rei de Goa: porque motivo daria este ordem para
não se atacar os piratas? Estaria comprado por elles? Que
mais é preciso para saber-se
que
o Sr. Lucas não
cooperara
cousa alguma para a destruição dos piratas,
elle mesmo confessa que fôra
obrigado a
mandar ordens para serem batidos os piratas?
[150]
Em verdade o Senado, de quem Arriaga éra a alma, foi quem o
obrigou a mandar aquella ordem; logo fica demonstrado pelo mesmo Sr.
Lucas, que o brilhantismo daquella época não lhe
pertence, pois até para expedir a ordem para serem batidos
os piratas foi obrigado pelo Senado.
É certo, diz elle a pag. 46, que um dia depois que recebi
parte do commandante da esquadra, em que dava por verificada a entrega
de Cam-pau-sai,
partio Arriaga para a bocca do rio Tygre, dizendo ír a
negocio
particular, e é certo que indo, esteve com o
cabeça dos piratas; e é certo tambem que este
logo se retirou com toda a sua esquadra; e que a entrega se
não fez, quando a parte do commandante (Alcoforado) a dava
por verificada!—
Que mais se poderia dizer em desabono do Sr. Lucas, do que elle mesmo
escreveo? Pois quem diz fizera tudo, não sabendo nada! Quem
diz que o brilhantismo de Macáo principiara com a sua
chegada alli, e acabara com a sua retirada, confessa que tendo uma
esquadra vencedora debaixo das suas ordens,
[151]
deixara fugir o inimigo depois de se ter
já
entregado?
Então a quem comprou Arriaga na
sua viagem á bocca do rio Tigre,
ao
Chefe da esquadra
portugueza, ou
ao chefe dos
piratas? Compraria ambos? Tudo aquillo
é falso; mas quando fosse verdadeiro,
provaria
que
éra Miguel de Arriaga quem predominava em Macáo.
Os documentos improvisados pelo Sr. Lucas; e o Officio dirigido ao
Vice-rei, são partos do seu estro, quando se achava dominado
pelo furor de elogiar-se. O enviado inglez, no Rio de Janeiro,
servio-se delles para desacreditar Arriaga, e Bernardo Aleixo na
opinião de El-Rei; mas este desmascarou a intriga, premiou
os macaenses, e castigou o Vice-rei, por ter mandado a Macáo
o Sr. Lucas, que desde então já mais obteve
emprego algum.
Este cavalheiro além de pretender a gloria alheia, deixa ver
na sua memoria o azedume com que a escrevêra! Tentou deprimir
os macaenses, e denegrio a sua estirpe. Um brasileiro jámais
deve fallar em desabono ácerca de colonias povoadas por
degradados; por quanto assim que Pedro Alves Cabral descobrio
[152]
o Brazil despejaram-se as masmorras de
Portugal. Quando nossos maiores chegaram a edificar uma cidade no
imperio chinez, os criminozos de todo o reino eram diminutos para domar
a sanha dos
butecudos e tupinambas
nos sertões do Brazil.
Timor é o unico presidio que temos além da
Taprobana. Só Camões, pelo respeito devido ao
genio, obteve ficar em Macáo servindo o emprego de Juiz dos
orfãos naquella cidade, rica pela salubridade do clima,
pelos alimentos, pela forma do seu governo, e pelas virtudes de seus
moradores.
O Sr. Lucas não escreveu para fornecer
á historia cousas proprias a fazer os homens melhores;
pertendeu injuriar os macaenses com despreso da razão e da
justiça. As providencias que ele diz foram a
Macáo em 1783, são impoliticas e desconcertadas:
que outra cousa se poderia esperar de dois theologos no governo de um
reino? (Martinho de Mello,
e um frade)
visões, argucias,
e fogueiras.
Fallava Martinho de Mello, naquella época, dos
incontestaveis direitos que tem a corôa de Portugal sobre
Macáo! Que dirá o imperador
[153]
da China, a quem pagamos fóro?
Mas quando assim fosse, quem sustentou ha perto de 300 annos esses
direitos? Degradados? Por certo não. Martinho de Mello era
tão hospede na historia daquelle paiz, que ignorava haver um
decreto feito em 31 de Agosto de 1629, que prohibe a qualquer
degredado, que alli se refugie, servir os encargos da cidade,
e mesmo de eleger
para elles.
—O Senado de Macáo, composto de degradados que
para alli se
refugiam, diz Martinho de Mello, ou de outros similhantes,
ignorantissimos em materia de governo, não lhe importa cousa
alguma que diga respeito a o decoro nacional, nem ao
incontestavel direito da soberania, que Portugal tem áquelle
importante dominio!—
Fallar assim a povos residentes na China, não é
só grande impolitica mas tambem supina ignorancia das
materias de governo. Graças aos generozos macaenses, que
despresando as invectivas dos sejanos, tem sempre concorrido para tudo
quanto é decoroso e interessante a Portugal. O procedimento
daquelle ministro deixa ver que elle tinha mais
[154]
carencia de luzes e de virtudes, do que os homens
a quem offendeu.
Nem Martinho de Mello, nem o Sr. Lucas (da viola) jámais
poderiam fazer as proezas que em todos os tempos obraram os illustres
macaenses. Thomaz Vieira, natural de Macáo, sendo governador
daquella cidade em 1627, vendo-a sitiada pelos hollandezes, armou seis
pequenas embarcações e foi accommettelos. Abordou
uma grande náo, que tomou, fazendo horrivel mortandade no
inimigo; os restantes fugiram deixando triumfante o denodado Vieira.
Os macaenses sempre honraram e prestaram a Portugal, já
fazendo despezas avultadas com os nossos embaixadores ao imperador da
China, já mandando generosos presentes á capital
do reino luso, já derramando o proprio sangue a fim de
limpar as costas da China de piratas, já na defeza dos muros
levantados por seus maiores.
Os governadores exigentes das providencias, que alli mandou Martinho de
Mello, eram similhantes aos que desolaram Macáo em 1626,
1709, 1747, e mesmo ao Sr. Lucas
[155]
seu elogiador aprol da tyrannia. Para se avaliar dos homens que pedem
taes providencias, bastará ler a carta seguinte do Conde de
S. Vicente. Tem por objecto responder a El-Rei D.
Afonso
VI. sobre o
oitavo que mandava receber, de todos os rendimentos particulares;
tributo imposto em 1666 pelo vice-rei Antonio de Mello e Castro.
—Sr.: a India ve-se de muito longe, e ouve-se mui tarde:
assim
não me espanto da fórma com que muitas ordens se
expedem, nem do mal
com que outros se
guardam[43].
Já um grande
ministro disse:—A jurisdicção dos Reis
de
Portugal apenas chega a Santarem; dahi para cima tudo é dos
corregedores—Na India a dos vice-reis não chega a
tanto; o
mais é dos capitães das fortalezas! Os gentios
não tem fazendas, os canarins apenas cultivam para comer;
assim não ha de quem se receba esse oitavo. Das pedras
não se tira mel. Vossa Magestade deve mandar á
India quem lhe faça desses impossiveis, que eu
não sei mais do que chorar as miserias, que vejo. Se isto
vai de mim, venha outro; se
[156]
nasce dos povos,
tenha Vossa Magestade delles piedade. Goa 26 de Janeiro de 1668.
Se todos os vice-reis fallassem deste modo aos imperantes,
não íriam a Macáo
aquellas offenças em logar de providencias; os povos seriam
felizes, os portuguezes respeitados, e os Alvarengas mais commedidos.
Julgo ter dito quanto basta para fazer arrepender o Sr. Lucas de querer
arrogar asi a honra, que
não lhe pertence, e de ser ingrato aos macaenses que tanto
lhe soffreram. Para o Sr. Lucas avaliar, com mais conhecimento de
causa, o espirito e fins com que fora escripta esta memoria, ahi lhe
remetto a copia fiel de uma carta que dirigi ao Senado de
Macáo em 1826, assim como a sua resposta.
Carta dirigida
ao Senado de
Macáo.
Senhores, ainda que separado de vós ha doze annos pela
distancia immensa da Europa á China, o meu espirito esteve
sempre comvosco. Havendo no coração o germen de
[157]
todas as virtudes, e recebido da natureza
alma docil ás suas impressões, jámais
poderia esquecer-me das sublimes qualidades que possuis. Deviam ser
escriptas por outro Andrade como Jacinto Freire, mas tivesteis a
desventura de viverdes em seculo diminuto em escriptores capazes de dar
vida ás proezas dos heroes.
—Grandes e magnificos foram sem duvida os feitos dos
athenienses; mas
quanto a mim, diz Salustio, menores do que a fama. Havendo alli muitos
e grandes escriptores, as proezas dos athenienses foram celebradas no
mundo pelas maiores. Assim o valor dos que as fizeram passa por tal,
qual nos seus exagerados escriptos o figuraram esses preclaros
engenhos
[44]—Em
nosso tempo não acontece o mesmo; para
o mundo saber das vossas proesas na carreira da gloria servio-se da
minha tosca penna.
O livro que vos offereço é pequeno em volume,
porém grande em seu objecto: basta conter os grandes feitos
que praticasteis na
extincção dos piratas. Na segunda parte que ficou
[158]
a imprimir-se em Lisboa
ainda
alcançasteis mais gloria. Na primeira realçam os
vencedores de Cam-pau-sai, na segunda brilha o Senado com a
expulsão dos inglezes. Porém não
é elle a mesma cousa, o Leal Senado de Macáo, e
os cidadãos macaenses? Nesse tempo luctuoso viviam todos
animados do mesmo espirito; a todos se ouvia a mesma
voz:—Morrer,
dizeis, ou mostrar que descendemos dos Castros e dos
Almeidas.—
Desculpai, Srs., se desafio a vossa mágoa recordando-vos os
illustres collegas, que por longa serie de annos regeram com vosco esta
cidade.
Julgo-os com direito
á minha lembrança e
aos vossos elogios. Porque motivo usarão os oradores
celebrar só os poderosos? Por que não louvam
elles as pessoas abalisadas em merito e virtudes? Se é
preciso celebrar sempre os grandes, porque não se lembram
tambem dos homens que foram uteis? Não será digno
de louvor o magistrado que usando da espada de Astrêa, por
muitos annos, o fez com tanta prudencia, que não ferio
cidadão algum? Magistrado que havia
coração tão sensivel e humano, que
não se limitando
[159]
em fazer
a paz e a ventura de uma cidade, pretendia abranger com esses dons
á maior parte do mundo? Que abrazado no sancto amor da
patria, empenhava quanto possuia para engrandecela e glorificala? Em
fim o varão forte que assaltado por intrigas e calumnias de
ingratos, capazes de enfraquecer o espirito de Zeno, as supportava de
animo tranquillo? Vós sabeis que Miguel de Arriaga possuio
estas sublimes qualidades.
Quem, Senhores, deixará de louvar o illustre José
Joaquim de Barros, quando nesse mesmo recinto, agitando-se a
questão se deviam, ou não ter, accesso os
inglezes, exclamou.—Voto que não se deixem entrar;
desse-me
o lugar mais arriscado para defendelo; se a fortuna me for adversa,
gostoso darei a vida em honra da Pa
Quem, Senhores, deixará de louvar o illustre José
Joaquim de Barros, quando nesse mesmo recinto, agitando-se a
questão se deviam, ou não ter, accesso os
inglezes, exclamou.—Voto que não se deixem entrar;
desse-me
o lugar mais arriscado para defendelo; se a fortuna me for adversa,
gostoso darei a vida em honra da Patria
[45].
Qual de vós, macaenses, nessa crise perigosa houve
differentes sentimentos? Todos repulsasteis o inimigo por modo singular
e extraordinario.
Do monumento consagrado á vossa memoria, offereci um
exemplar ao Sr. D. João
[160]
VI; dizendo-lhe que certo de em parte alguma
depositar melhor as proezas macaenses do que em suas reaes
mãos, alli lhe entregava feitos praticados em dias, bem
similhantes aos do feliz tempo em que os lusitanos pelo caminho da
virtude subiram ao templo da immortalidade. Fiquei satisfeito por saber
depois, que El-Rei apreciára o livro, onde se acham exaradas
as proezas macaenses; porém será completo o meu
gosto se as julgardes levadas á posteridade por maneira
digna de vós.
Em verdade, Senhores, é preciso ser estupido para
não admirar o vosso animo, e barbaro para com o vosso
exemplo não sentir o estimulo da virtude. Coimbra, Mattos,
Limas, e outros, possuiram virtudes perfeitas: serviram por mais de
trinta annos os encargos desta cidade por modo, que nem Focio, ou
Aristides o fez melhor
Em verdade, Senhores, é preciso ser estupido para
não admirar o vosso animo, e barbaro para com o vosso
exemplo não sentir o estimulo da virtude. Coimbra, Mattos,
Limas, e outros, possuiram virtudes perfeitas: serviram por mais de
trinta annos os encargos desta cidade por modo, que nem Focio, ou
Aristides o fez melhor em Athenas
[46].
Macaenses, se os louvores provém de interesse, devem
despresar-se; se a lisonja tenta
[161]
enganar os poderosos,
deve temer-se; porém quando a
admiração tributa homenagem á virtude
deve estimar-se.
Assevero-vos que
nesse opusculo
liguei sempre a minha alma
ás vossas acções;
se lhes faltam pensamentos animados, por mingua de genio, tem o grito
da verdade, unico preciso para immortalisar-vos.
Resposta.
O Senado recebeo com satisfação a vossa memoria,
por ver nella immortalisados os feitos macaenses, na
estincção dos piratas, que infestavam o nosso
arquipelago. Em verdade vós ornasteis o vosso e o nosso
quadro com as flores e bellesas de Camões e dos Andrades. O
Senado não perderá
occasião, em que vos possa ser util em reconhecimento de
tão precioso presente.
Cartorio do Senado, 16 de Novembro de
1826
FIM.
Notas:
[1]
Sacrifico a minha vida e fortuna á vossa (dizia
Cicero ao povo Romano); só exijo em recompensa conserveis a
memoria dos
meus serviços
Catilinaria IV.
[2]
M. Thomas.
[3]
Diniz
Ode XV.
[4]
O reprehensivel descuido dos nossos auctores agora o
pagamos por castigo, ignorando os nossos proprios successos; e
sujeitando-nos a
crêr, e a estimar delles sómente aquella pequena
parte, que nos quizeram contar os inimigos, mais obrigados da
dôr, que da verdade.
D. F. M. C. 26.
[5]
Era este Illustre Varão de mediana altura,
reforçado, largo de ombros, mui cabelludo e tinha
olhos amarellos.
[6]
Navio de 20 bombardas com 300 homens.
[7]
Camões,
C. X. Est
82
[8]
Por
estas acções heroicas, ainda que
barbaras, pode julgar-se o valor dos inimigos que tinhamos a vencer.
[9]
Ode
XI. Epodo 4
[10]
Ode XV. Dinis.
[11]
Embarcação de 20 tonelladas.
[12]
Camões, C. X. Est. 12 e 13.
[13]
Jacintho F. de Andrade.
[14]
Cam-pau-sai flagelou as provincias meridionaes do Imperio
com repetidos tributos; e saques aos remissos.
[15]
Foi mui reprehensivel o modo porque obrigaram Arriaga a
dacontas do dinheiro, que seus inimigos
divulgavam ter elle levado dos cofres publicos, em sua
administração; sabendo-se em
Macáo, os sacreficios que elle tinha feito em honra da
Nação e a bem
daquella cidade. Graças eternas sejam dadas á sua
memoria.
Além de não dever nada aos cofres publicos, (
como mostrou a
Commissão nomeada para lhe tomar contas) ficou sendo credor
de 11 contos de réis; o que foi
publico nas gazetas de Macáo.
[16]
Com especialidade F. A. P. Thovar e Felis José
Coimbra.
[17]
Diuiz Ode
34
[18]
Camões, Canto 2, Est. 100.
[19]
Duarte Nunes de Leão, C. dos reis de Portugal.
[20]
L. J. de Alvarenga, queixa-se do mysterioso silencio
guardado a seu respeito nesta memoria. No fim della direi qual foi o
mysterio.
[21]
No suburbio da cidade.
[22]
Camões, Canto 1. Est X.
[23]
Este paragrafo foi composto no dia 9 de Maio de 1824; dia
em que o Senhor D. J. VI proclamou aos portuguezes de bordo da Nao
Windsor Castle; tomou aquelle asilo para escapar aos malevolos que o
tinham cercado desde o dia 30 de Abril.
[24]
Sá
de Miranda.
[25]
Allud e a uma maxima de
confucio.
[26]
O Imperador observou a seguinte maxima de
Confucio.—Respeitos que te levam vantagem
por natureza.
[27]
Promenade autour du monde, em 1817, 1818, 1819, 1820,
Carta 68.
[28]
Cidade portugueza na ilha de Timor. Procedia este
contentamento por terem saído de Coupang, cidade hollandeza
na parte
occidental da mesma ilha aonde Arago e seus companheiros foram mal
recebidos.
[29]
Duarte Pacheco, depois de fazer prodigios na Asia, a
inveja, a calumnia e a intriga trouxeram-o da Africa a Lisboa
em ferros. Albuquerque, de-pois de immortalisar a
nação a que pertencia, foi victima das
mesmas furias. Não admira ter Alcoforado em premio de seus
ma-Portantes serviços o governo da pestilente ilha de Timor,
onde morreu na flor da idade.
[30]
Como estariam hoje os brazileiros se Pedro Alves Cabral levasse
taes ordens.
[31]
Vede se esses homens que prestaram serviços, para terem
patria, recusaram as enormes pensões com que pertendem
inchar!
[32]
No protesto de Bernardo Aleixo se verá o
espirito da intimação.
[33]
Esta correspondencia foi extrahida, por integra, do
Senado, mas é dada aqui em espirito.
[34]
O Governador éra o orgão do Senado.
[35]
Já em 1802 quizeram os Inglezes abusar dos
nossos tractados com o governo Chinez.
[36]
É notavel o modo
civíl
e urbano
do governo de Macáo, e as maneiras asperas de
Roberts, etc. companhia.
[37]
Tinha chegado na antevespora ordem de Goa para entrarem os
inglezes em Macáo!
[38]
Note-se como fallam os mandarins a nosso respeito. Eis o
que prometti na introducção da primeira
parte.
[39]
Admira não dizer que os mandaria para
Botany-bay.
[40]
Bernardo Aleixo apelou para o tempo: esse inflexivel juiz
dos homens e das cousas já castigou os seus detractores.
[41]
M. de Levis.
[42]
Juizo dos sobrecargas, mandado a Londres.
[43]
É boa resposta ás providencias de
Martinho de Mello.
[44]
Versão do Sr. J. V. B. Feio.
[45]
Varão septuagenario.
[46]
Catão o censor, não possuio
tão grande somma de virtudes perfeitas, como havia o
benemerito cidadão Felis José
Coimbra.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
(*)
Correcções efectuadas com base na errada da obra
original.
Foram mantidas as
variações das palavras "La Perouse", "Le
Perou-se", "La Perou-se"...
Na
página
85, não existe ponto 3º//nota 3.
A
pontuação foi corrigida de acordo.
Exemplo:
colocação de pontos finais em vez de
vírgulas no final de frases.