Nota de editor:
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foram tomadas várias decisões quanto à
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mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Outubro 2011)
WENCESLAU DE MORAES
O CULTO DO CHÁ
(ILLUSTRAÇÕES DE YOSHIAKI)
KOBE
Typographia do "Kobe Herald"
Gravuras de Gotô Seikôdô
1905
A
Vicente Almeida d'Eça,
Sebastiäo Peres Rodrigues,
Bento Carqueja,
isto é, á Trindade benevolente, que ainda ha pouco,
de täo longe, me enviou dentro das folhas de um livro—as
Cartas do Japäo,—o perfume ineffavel da sua
amizade, offereço este outro livro, exotico pela forma,
exotico pelo texto, mas näo pelo sentimento de profunda
gratidäo, que inspirou esta primeira pagina.
Kobe, Junho de 1905.
Wenceslau de Moraes.
Falla-se do Japäo; nem, francamente, devera presumir-se
que eu ia referir-me a um paiz qualquer occidental,
onde a nossa raça branca floresce.
É no Oriente, e em especial no Extremo-Oriente, que as
coisas communs da creaçäo ou os usos e costumes triviaes da
vida säo susceptiveis de merecer um tal requinte de solemnidade
sentimental e de praxes de rito, que constituam um verdadeiro
culto. No espirito do europeu, despoetizado pela chateza dos
ideas da epoca, atribulado pelas multiplices exigencias da vida,
pervertido pela febre do negocio, näo medram de ha muito os
[8]
cultos. Especializando a observaçäo ao chá, havemos de convir
que este artigo de commercio, que de täo longe nos vem,
propositadamente
adulterado conforme o nosso gosto, no fim de contas
se resume n'uma detestavel infusäo que entrou em moda no
sport
social, simples pretexto para repastos pelintras, para reuniöes
banaes, para palestras väs.
A Asia é outra coisa: a muitos propositos immersa ainda
em barbarismo, se assim se quer dizer; com mil defeitos e mil
erros, que a sabia Europa aponta a dedo e algumas vezes corrige,
quando pode, com a logica dos seus conhoës de tiro rapido; o que
ella retem ainda, indiscutivelmente, esta Asia, é o caracter
ancestral, nada vulgar, nada rasteiro, palpitante de orgulhos de
raça, aprazendo-se em sonhos e em chimeras, acariciando a lenda,
divinizando as coisas, prodigalizando os cultos; o que é, em
todo o caso, uma maneira amavel, de ir comprehendendo a vida.
*
Oh, fé dos velhos tempos!...
Oh, santos patriarchas
de täo varios paizes
e täo differentes seitas,
tenazes campeöes, que fostes
incutindo nos simples a
crença, a esperança, o amor,—balsamos
consoladores das duras miserias d'este mundo,—como
eu vos amo, a
todos!...
[9]
Meus piedosos pensamentos elevam-se n'este momento a
Darumá. Segundo a tradiçäo da gente japoneza, Darumá, o
grande apostolo indiano do buddhismo, veio á China ahi pelo
começo do seculo VI da nossa era christä, e em terras
chinezas prégou em honra da verdade, illuminando o espirito
dos povos.
Consta que, por voluntaria desistencia das ephemeras
alegrias terreaes, Darumá votou-se
a passar a vida de joelhos
sobre o solo pedregoso, absorto em
contemplaçöes mysticas, sem mesmo
permittir-se o simples regalo de
dormir. Tantos annos permaneceu
de tal maneira, que as pernas se
lhe gastaram, claro está; e é assim,
sem pernas, só com a cabeça e
com o tronco, envolto n'um manto
carmezim, que ainda hoje é figurado.
A imagem tronou-se querida e
popular entre esta boa gente
japoneza; é mesmo um brinquedo corriqueiro entre as mäositas das
creanças,—os santos e os meninos vivem sempre em boa
companhia;—lembrando
o tal brinquedo o nosso
frade de sabugo,
pela teima em voltar, por mais voltas que lhe dêem, á sua postura
habitual. Deve ainda saber-se que Darumá tem dado assumpto,
desde remotos tempos até hoje, a pintores da mais alta valia;
Hokusai foi um d'elles, pintando um famoso Darumá sobre uma
folha de papel de cerca de duzentos metros quadrados de grandeza,
empregando oitenta litros de tinta no desenho e servindo-se de
cinco vassouras á laia de pinceis; estendida a tela sobre o campo,
[10]
no telhado de um templo a turba admirava a obra e applaudia o
mestre.
Mas voltêmos ao que aqui mais nos interessa, respeitante ao
venerando vulto que invoquei, ajoelhado sobre as pedras. Consta
mais que, em certa noite, as palpebras se lhe cerraram
de fadiga, e o bom Darumá deixou-se adormecer, para só
acordar pela manhä. Entäo, pedindo a alguem uma tesoira
ou instrumento parecido, cortou a si proprio as palpebras
indignas e arremeçou-as ao solo, n'um gesto de despeito...
As palpebras, por milagre, erraizaram, dando nascença
o a um gracioso arbusto nunca visto, que medrou mui
de prompto e cujas folhas, tratadas de infusäo pela agua
quente, fôram um remedio precioso contra o somno e contra
o cançaço das vigilias. Estava conhecido o chá; tem pois
na China a sua origem, e é coisa santa, como se acava de
provar. Crê quem quer; mas devo advertir que este livro foi
[11]
escripto para os crentes.
*
Da China, veio o chá para as terras de Nippon, mas näo se
sabe quando.
Velhas chronicas mencionam
(no dizer dos entendidos
n'este caso melindroso),
que em 729 da era Christä,
durante uma festa religiosa
de espavento, o imperador
Shomu offerecia chá a
bonzos de alta gerarchia;
mas fica-se ignorando se já
antes seria conhecido...
Parece que um bom abbade
buddista, Dengyo Daishi,
foi o primeiro que obteve
a planta em solo japonez,
em 805; o chá era entäo
já uma beberagem favorita
entre os bonzos chinezes,
que d'ella se serviam
durante as vigilias prolongadas
das suas praticas nocturnas. Mais recentemente, ainda
outro, bonzo, Eisei, tendo ido á China, de lá voltou, trazendo
as sementes preciosas, e no monte Sefuri, em Chikuzen, cuidou da
sua sementeira. Pouco depois, ainda mais outro bonzo (sempre
os bonzos!) de nome Mioyé, colhendo de Eisei os varios segredos
de cultura, novas sementes adquiriu, e em Toga-no-o em Uji,
[12]
logares visinhos de Kyoto, attentamente se entreve em cultivar o
chá; em Uji, de preferencia, fôram os resultados excellentes.
Dois seculos depois, cerca de 1400, o shogun (generalissimo)
Ashikawa Yoshimitsu imprimiu vigoroso impulso ás plantacôes
de Uji, as quaes tanto fôram prosperando, mercê da riqueza do
torräo, que de entäo até hoje o chá d'aquelle sitio tem sido
celebrado como o melhor de todo o imperio; d'elle exclusivamente
se serve o Imperador.
*
O Japäo é a terra das camelias:
camelia japonica, lá
diz o
latinorio dos botanicos.
Quando, por fins de novembro, começam os frios e as geadas
e pouco tarda que as neves alvejem nos dorsos das montanhas,
quando cessam as ultimas florescencias dos jardins, é entäo que
comecam ostentando-se as bellas flores d'esta esplendida familia
das camelias. Véem primeiro as sazankas, umas brancas, cutras
roseas, de mimosissimas petalas frisadas; seguem-se as camelias
[13]
simples, sanguineas, surdindo da rama espessa de arvores gigantes,
espalhadas pelos campos; e após véem as flores cuidadas, de luxo,
variando em innumeras formas, variando em innumeros tons,
desde o branco de leite ate ao roseo quasi negro. Entäo igualmente
desabrocha a pequenina flôr do chá, que tambem é uma
camelia, subtilmente perfumada, composta de cinco petalasinhas
alvas contornando e protegendo o feixe aureo dos estames.
*
Passando, em horas de ocio, junto dos campos de chá, dos
quaes sinto prazer em acercar-me, palestro com os aldeöes e
aprendo noçöes varias, respeitantes á delicada planta. Näo pode
ser transplantada, nem se multiplica por estaca ou por enxerto,
só por sementeira se propaga. Os paizes quentes, como os paizes
frios, säo-lhe nocivos; prospera nos climas temperados, nos sitios
lavados de ar e luz, visinhos dos cursos de agua, convindo
um ligeiro declive ao solo de cultura. Os arbustos säo dispostos
em renques parallelos, de norte a sul, para que o sol lhes bata
em cheio desde pela manhä até á noite; as plantas mais cuidadas
[14]
reclamam na primavera grandes toldos de palha, que abriguem
das geadas as tenras folhas dos rebentos. Durante o primeiro
anno, dispensam adubos, que depois se applicam em periodos
frequentes. A guerra aos vermes, aos insectos, exige zelos
incessantes. No fim de quatro annos, já o arbusto se presta á
primeira colheita; mas säo as velhas plantas, de cem annos, de
duzentos annos, as que melhor produzem.
*
Quem quizer tomar conhecimento com a planta de chá, nas
melhores condiçoës de prosperidade e em mais bellas galas de
aspecto pittoresco, tem de ir até Uji, distante quinze milhas de
Kyoto; escolhendo de preferencia um dos primeiros dîas de maio,
quando os rebentos novos começam vicejando, o que marca o
inicio da faina da colheita. Faina e festa: a povoaçäo inteira
acorda da sua modorra provinciana; desperta em esperanças,
em jubilos, em actividades incançaveis, para votar-se aos cuidados
da preciosa folha; deverá presumir-se, em bom criterio, que a
[15]
quadra remoçante da primavera em flores, com aromas nas brisas
e quenturas creadoras, constitue tambem um forte estimulo para
a alegria repentina que se pinta nos rostos de toda aquella gente.
O quadro é deveras aprazivel. Após uma banal estaçäo de
linha ferrea, estende-se a cidadesinha garrida, com as suas viella
muito limpas e a fila de lojinhas abarrotadas de varia mercancia.
Depois segue-se o rio, de aguas limpidas e frescas, rico de
tradiçöes de gloria; galga-se a ponte em arco, entra-se no
bairro das
chayas, dos hoteis, em tal quadra
povoados de freguezes
galhofeiros e de gentis mulheres, as
gueishas, que
cantam ou
dedilham no inseparavel
shamicen; e véem depois os
campos,
vastos campos de chá a succederem-se pelo horisonte fóra, cuidados
como jardins, em longos alinhamentos de arbustos, copados,
arredondados, lembrando enormes mangericos, de delicada rama
de um verde esculro bronzeado; no azul distante, alguns famosos
templos confusamente se recortam.
As moças de Uji estream
kimonos novos para o caso,
arregaçando
[16]
as mangas com fitas escarlates; amarram em turbante em
volta dos cabellos toalhas de côr azul e branca; e assim, esbeltas,
graciosissimas, em ranchos de dez, de doze companheiras,
dirigem-se ao trabalho. É entäo um encanto para os olhos ir a
gente surprehendel-as no afan do seu mister, dispersas pelas
campinas fóra, como borboletas; indo de um ramo a outro ramo,
de um arbusto a outro arbusto, por vezes occultando-se entre o
verde mais denso da folhagem. Os dedos roseos, miudinhos, a
escorrerem de orvalho e multiplicando-se em gestos delicados, väo
colhendo os rebentos tenros do chá e atirando-os a grandes ceiras
dispostas pelo chäo; as boccas väo sorrindo, patenteando as
enfiadas alvas dos dentinhos; os olhos esbrazeam em juvenis
amores inconfessados; as vozes unem-se ás vozes, em rythmos
commoventes de velhas cançöes locaes:
[17]
"Quando nasce o sol radioso
Por cima d'aquelle oiteiro,
Todas as aguas do rio
Parecem memo um brazeiro!...
"N'estas aguas do rio d'Uji
—Taö milagrosas que säo!—
Lavam-se todos os males
De que soffre o coraçäo...
No campo, as raparigas. Nas casas, os homens, as velhas, as
creanças. Será rara a familia que näo tenha interesses na labuta;
as grandes fabricas constituem excepçäo, como em todas as
primitivas industrias japonezas; em cada albergue se improvisa uma
manufactura, modesta, familial, onde todos trabalham, risonhos,
[18]
palestrando. O chá é escolhido, escaldado, posto a seccar, grelhado
em fornos, enroladas as folhas ou reduzido pó, depois empacotado,
guardado em latas, em caixas, em boiöes; um melindroso amanho
que requer mäos incançaveis, dedos prestimosos, cuidados inauditos,
segredos de processo, meticulosidades devotas que espantam os
profanos, nas quaes collabora a gente toda valida d'aquelles
arredores.
*
Tal é a industria graciosa e tal é o chá que os japonezes
bebem. Vêde agora como a civilizaçäo occidental contrasta com
os usos d'estes asiaticos. Téem os japonezes, para lá do Pacifico,
um grande consumidor do seu producto: é o
Yankee.
Tanto
mimo e tanto esmero na apanha da folha e preparoçöes que se
[19]
succedem näo
bastariam
para o chá que
os americanos
väo beber.
Vem de Uji
e
de outros
pontos, tal
como os japonezes
o preparam, para
as firmas estrangeiras
de
Kobe e de
Yokohama; é
entäo submetido
a novas
operaçöes, ao
sabor do fino
paladar de
Nova-York e
de Chicago.
Näo säo agora
as camponezas,
esbeltas
e trajando
roupas novas,
que acodem ao
mister; trabalham
machinas
[20]
a vopor, fumegam chaminés e guincham engrenagens; e occupa-se
no preparo um mundo feminino inqualificavel, escoria das cidades,
esfarrapado, piolhoso, horripilante, que a gente vê sahir das
fabricas á tarde como uma leva de mendigas, cheias de pó, de
pustulas, de miseria. O fabrico do chá ao gosto americano
consiste n'um segundo aquecimento em grandes fornos e na
addiçäo de varios productos, como o pó de uma certa pedra,
soopstone,
e o azul da Prussia. Assim é expedido.
*
A introducçäo e vulgarisaçäo do chá na terra japoneza deveu
grande incremanto uma industria desde remotos tempos exercida,
mas toscamente praticada,—a ceramica,—que
havia de alcançar com
o correr dos tempos um supremo
grau de perfeiçäo como arte nacional.
A conservaçäo
da preciosa
folha, exigindo
escrupulos
inauditos
para reter o
seu perfume, marcou o ponto de partida. Foi Toshiro,
um oleiro da aldeia de Seto, na provincia de Owari,
quem fabricou os primeiros boiöes para guardar o chá, empregando
processos que aprendera na China, respeitantes á perfeiçäo
da pasta e dos esmaltes. Passava-se isto ha sete seculos; e é
curioso registar que
seto-mono (objecto de Seto) é
ainda hoje o
nome consagrado para indicar qualquer artigo de ceramica.
Dos boiöes, passou-se gradualmente ás chavenas, aos bules, á
gentil e complicada baixella que a infusäo foi reclamando e o
[21]
luxo pondo em moda; e ora aqui está como a ceramica no Japäo,—faiança
ou porcellana,—que attingiu requintes de arte primorissima,
deveu ao chá e á agua morna os seus melhores
progressos.
*
Quando comecáram a tomar chá os japonezes, era este reduzido
a um impalpavel pó e com elle se fazia a beberagem; depois veio
o uso de empregar as folhas, apenas escolhidas e passadas pelos
fornos; e é esta, ainda hoje, a maneira mais commum de preparal-o.
No Japäo, toda a gente toma chá,—ricos e pobres, nobres e
plebeus:—bebe-se na occasiäo das refeiçöes e a toda a hora, a
[22]
pequeninos golos. No lar, quando entra o visitante, offerecese-lhe,
após as reverencias, uma almofada de regalo e uma
chavena de chá. O mercador, quando quer se amavel com
o freguez, serve-lhe antes de tudo uma chavena de chá, palestra,
falla da chuva e do bom tempo; só mais tarde se trata do
negocio. Nos templos famosos, em Kyoto por exemplo, o bonzo
offerece chá ao peregrino antes de lhe mostrar as reliquias
e os museus. Pelos caminhos mais agrestes, que väo serpeando
pelas collinas arriba, ha rusticos poisos espaçados aqui e acolá,
onde o caminheiro descança alguns minutos, bebe uma chavena de
chá, troca um sorriso, deixando em retorno um cobre sobre a esteira.
Um restaurante, na pittoresca linguagem japoneza, diz-se uma
chaya,—que quer dizer—casa de chá.—De sorte que a
chavena de
[23]
chá, que acompanha os
bons-dias dados a quem chega,
näo constitue
simplesmente
uma norma rutineira, um habito banal,
tornou-se como que o symbolo da doce hospitalidade japoneza, um
rito da bonhomia d'esta gente, exercido religiosamente entre
amigos, entre estranhos tambem, porque ao estranho, que larga á
porta as sandalias, vem ao nosso lar e nos saúda, deve-se ja um
sorriso e a sua parte de conforto.
*
Na casa, nua de moveis, porem mimosa de aceios requintados,
figura sempre o brazeiro sobre a esteira, enas brazas vae fervilhando
a chaleira de ferro cheia de agua; o
bon (uma
bandeja)
está cerca, contendo o bule, as cinco chavenas (cinco, porque?
talvez por serem cinco os dedos em cada mäosinha japoneza), os
[24]
cinco pires de madeira ou de metal, o cofre de estanho contendo
o chá em folhas e ainda o pequenino recipiente em porcellana
chamado
yuzamashi, cuja ordinaria serventia vae
muito em
breve conhecer-se. O sentimento artistico japonez deprava-se
naturalmente
na industria de hoje, em grande parte com destino
á exportaçäo para a Europa e para a America; é nos utensilios
communs de uso indigena, onde näo intervem
o modernismo, que
ainda reside o gosto esthetico, puro e inconfundivel, da gente
japoneza, revelando por si o complicado conjuncto de esmeros, de
elegancias, de chimeras, em que a alma d'este povo se deleita.
No que respeita o serviço de chá, é innarravel a gentileza de todo
este arsenal de bagatelas, minusculas, dando a impressäo de serem
destinadas a um banquete de bonecas!...
A agua passa da chaleira para o
yuzamashi, onde
arrefece,
pois é preceito fazer-se o chá com agua que ferveu, mas ja näo
ferve; prepara-se depois no bule a infusäo, que é offerecida aos
hospedes nas pequeninas taças de fina porcellana.
Eis a singela practica e eis a modesta offerta, actos da vida
intima näo poucas vizes repetidos durante cada dia, desde pela
manhä até á noite. Poderiam julgar-se sem meritos que valessem
[24]
do estranho um instante de attençäo e um commentario; mas näo
succede assim. Para a alegria dos olhos, a simples preparaçäo do
chá imprime um relevo delicioso á graciosidade innata na
musumé,
na attitude que lhe é mais habitual, de joelhos sobre a esteira,
junto do seu brazeiro. A mimica é impressiva, unica; privilegio
d'aquella figurinha meiga e ondulante e d'aquella buliçosa mäo,
de finissimos contornos, da japoneza, que é, em summa, a Eva
mais gentilmente pueril, mais captivantemente chimerica, mais
feminina emfim, de todas as Evas d'este mundo. Parece certo
que jamais o japonez, que ignora o beijo, haja poisado a bocca
n'aquella mäo que exhibe esplendores de graça para servir-lhe o
chá; o forasteiro, em intimidade serena, pode ensaiar o galenteio se
a phantasia o tenta; e entäo verá talvez, que a mäosita da
musumé,
reconhecida ao afago, se conchega de encontro aos labios, se
demora, como uma rola
[26]
docil gulosa de carinhos.
*
O chá japonez, servido invariamente sem leite e sem assucar,
que lhe prejudicariam o aroma, é a bebida mais suavemente
agradavel que possa offerecer-se ao nosso paladar (näo de todos
porem, ams um paladar sentimental, um tanto sonhador...
que n'isto dos nossos orgäos de sentir ha temperamentos, aptidöes
affectivas caracteristicas...). O
guyokuró, por
exemplo, que é
o mais celebrado chá de Uji e de todo o Japäo, instilla taes subtilezas
balsamicas de sabor, que mais parece um perfume; poderia
dizer-se que uma maravilhosa alchimia conseguiu liquifazer os
aromas
de flores—flores dos jardins, flores
silvestres,—transferido
do olphato ao paladar a impressäo do goso. Assim é o
guyokuró;
claro está que as palavras näo podem traduzir senäo por comparaçäo
as emoçöes sentidas; e esta, a do agradoce deliciosissimo
que nos fica nos labios, persistindo, como na memoria persiste uma
reminiscencia, uma saudade, é imcomparavel...
[27]
O chá joponez tem a virtude de mitigar a sêde. Assi se
explica o habito dos japonezes näo beberem agua; mesmo na força
dos calores, em pleno agosto, a chavena de chá, saboreada a
goles, lhes dá pleno consolo. Aponta-se-lhe mais outros condöes:
excita ligeiramente o organismo, combate o cançaço das vigilias,
predispöe ao bem estar, infiltra no cerebro näo sei que subtil
embriaguez,
lucida todavia, que nos torna mais affectivos ás sensaçöes
de agrado e mais aptos ás elaboraçöes do pensamento
*
A maneira de preparar a infusäo do chá em pó e a arte de
servil-o constituem a täo famosa cerimonia chamada do
chá-no-yu.
Foi assim que o uso do chá se introduzio no Japäo, como uma
pratica liturgica dos frades buddhistas da seita de Daisu, exercida
no proposito de prolongares as mysticas vigilhas preceituadas;
servia ao mesmo tempo de pretexto para reuniöes
intimas, que eram, imagina-se, um aprazivel desenfado á proverbial
monotonia do convento; sendo um meio efficaz de estreitar laços
[28]
de estima, pelas confidencias segredadas, pelos sorrisos beatificos
que se cruzavam, em quanto que a unica taça ia passando, de mäo
em mäo, de bocca em bocca, fraternalmente, até a esvaziar.
Mais tarde adoptou-se entre o povo o uso das folhas; mas
o
chá-no-yu persistiu nas bonzarias, propagando-se
tambem nos
costumes profanos, entäo com um exuberante luxo de apparato,
que muito apaixonou a alta nobreza. Pelos dias que correm,
ainda está em moda, sem distincçäo de classes; é um habito gentil
que ficou dos velhos tempos e a que todos podem entregar-se,
tido em valia pela delicadeza esthetica do scenario e ainda näo
despido do prestigio ortodoxo que lhe vem da remota tradiçäo.
O
chá-do-yu, se pode definir-se, é a arte de
preparar a
infusäo do chá em pó, com esses escrupulos de limpeza, com esses
requintes de elegancia de que só é capaz o japonez; sendo a bebida
offerecida a alguns amigos de eleiçäo, a drede reunidos n'um
recinto disposto para a paz do pensamento e para o agrado dos
sentidos.
[29]
Bom é dizer agora que os codigos referenets a materia täo
grave säo innumeros, diversas as escolas; e os grandes profissionaes,
chájin (homens do
chá), de
celebridade immoredoira,
centenas de volumes escreveram sobre o assumpto.
Tudo foi regulamentado e comporta um preceito, que näo é
licito esquecer. Non tempos aureos do
chá-no-yu o
pavilhäo que
recebia os hospedes era construido n'um jardin e obedecia a uma
architectura inconfundivel. No seu arranjo interno, para a côr
das paredes, para a disposiçäo de luz, para o numero das esteiras,
para a jarra com flores ou com um ramo de arvore, havia praxes
a seguir; o
kakemono (quadro suspenso da parede)
devia representar
uma paizagem que fôsse impressionar a pupilla com
carinho; ou antes uma simples sentença escripta por um pincel de
mestre calligraphico, pois nada commove tanto a aguda sensibilidate
d'esta gente como os seus caractéres de estranha construcçäo,
cada um equivalendo já a uma synthese de ideas e predispondo,
pela sentida contemplaçäo—ora
por uma desenvoltura
de traço, ora
por uma ondulaçäo
de curva,—ao vago
discorrer da alma
sonhadora...
[30]
O plano do jardin submettia-se a regras determinadas, pelas
quaes o engenho indigena se revelava em graças prodigiosas,
aqui pelos contornos do lago e pelas pontesinhas que o cruzavam,
alem pela escolha dos arbustos e das pedras, na intençäo ingenua
e amorosa de impôr á vista a illusäo de uma paizagem rustica,
reduzida a proporçöes minusculas. Mais do que isto: a alma das
coisas, o que de inexplicavel e de subtil parece emanar de um
conjuncto qualquer onde os olhos se poisem,—tranquillidade das
sombras, arrogancia de um tronco, ternura das relvas...—devia
resaltar suggestivamente do jardinsinho japonez, imprimir-lhe
um caracter, uma philosophia, acordando na mentalidade
dos visitantes um sentimento de paz, de triumpho, de saudade...
Claro está que as flores de luxo, como as rosas, como as camelias,
como as peonias, eram excluidas, por improprias da intençäo de
quadro agreste dada á scena.
Éra de estylo a monumental lanterna, tal como se encontra nos
templos, de pedra, tanto mais valiora quanto mais esverdeada e roida
de vetustos musgos, e espalhando pela noite vagas claridades coadas
[31]
pelas suas frestasinhas cobertas de papel; os japonezes deleitam-se
em contemplar, após uma nevada, as amplas cupulas em unbella
d'estas lanternas de templos e de jardins, receptaculos onde a neve
poisa e se demora, em fofos vello de formas extravagantes, de
deslumbrante alvura. Um outro accessorio se encontrava, cerca
do pavilhäo: o pedaço de rocha bruta com uma pequena cavidade
cheia de agua, onde os hospedes iam lavar as mäos antes de
entrarem, como em purificaçäo liturgica.
Até a linguagem empregada entre os convivas obedecia a
regras de pragmatica: os assumptos de religiäo ou de politica
eram banidos; a phrase devia modelar-se n'um agradavel discorrer,
sem ferir melindres de ninguem. A cortezia impunha-se:
preceituava-se que o hospede proferisse palavras de louvor pelo
que via,—alfaias de serviço, arranjo do aposento, horisontes em
volta,—mas sem insistencia em demasia, que poderia parecer
pouco sincera ou pelo menos importuna.
Variadissimos objectos devem encontrar-se no aposento, como
o brazeiro, o carväo
de reserva contido
n'um cestinho, a
chaleira, o abano de
pennas, o cachimbo,
o tabaco, o pincel, o
papel e a escrevaninha.
Os artigos
destinados particularmente
ao chá,
muitas vezes contidos
n'um estojo
especial, säo os seguintes:
[32]
a boceta com perfumes, que antes de tudo se
lançam sobre as brazas e embalsamam o ambiente; a jarra
com agua fria e a competente colher feita de um pedaço
de bambu; o chá em pó n'am cofresinho de charäo e a
colherinha adjunta; duas taças, de barro ou de porcellana,
uma usada no veräo, de côr clara, e outra escura, usada
no inverno; um curioso utensilio feito de finas lascas de
bambu reunidas em feixe, com que se agita na chavena a mistura
do chá em pó com a agua morna; finalmente a tigela onde se
lavam e o pedaço de seda de
finissimo tecido, com que se enxugam,
as peças empregadas.
É o dono da casa quem deve preparar o chá, solemnemente,
prescindindo do mais ligeiro auxilio dos criados; é elle que
o offerece aos convidados. A mäo executa setenta e cinco movimentos,
n'um
chá-no-yu havido por singelo... e trezentos,
quandorequeridas todas as formalidade ortodoxas.
*
No tempo do generalismo do Imperio, chamado Toyotomi
Hideyoshi, mais conhecido na historia pelo grande Taiko-sama,
quasi todos os genesaes eram
chajin, isto é,
ferventes apaixonados
da ceremonia do
chá-no-yu. Em 1585, o proprio
Taiko-sama
[33]
organisou um
chá-no-yu colossal
nas visinhanças
de
Kyoto, ainda
hoje memorado
como festa
de inigualavel esplendor:
uma
extensäo
de quinze kilometros
quadrados
era occupada
por
innumeros kiosques, aonde os generaes preparavam o chá; todos,
nobreza e plebe, os ricos e os mendigos,—um enxame humano!—tinham
entrada; Hideyoshi visitou todos os poisos e por suas
proprias mäos proparou chä, que offereceo aos chefes favoritos.
Relembrando o passado, justamente n'um periodo de effervescencias
guerreiras culminantes no Japäo, talvez pareça
estranho, talvez pareça comico, que esses rudes heróis de täo
grandes façanhas, os indomaveis veteranos das guerras na China
e na Coréa, despissem armaduras, tirassem os dois sabres da
cintura, para virem votar horas chimericas a aquecer a agua
sobre brazas e a preparar o chä... Mas o contraste, por si,
explica o facto: era precisamente essa dura existencia de batalhas
e de lances sangrentos, de inclemencias de vida nomada, de
longo cogitar em extratagemas e em argucias, que impunha aos
homens dirigentes a doce tregua do
chá-no-yu. O
convivio com
os partidarios e os amigos, o desfilas do povo alegre a reverente,
[34]
a verde paizagem de repoiso, a solemnidade hypnotica dos gestos,
tudo contribuia para offerecer um curto aprazimento áquella gente,
que assim ia apagando da memoria os amorgores soffridos, estretando
sympathias, retemperando forças para as proximas luctas.
*
O
chá-no-yu attingiu depois, durante a longa paz da
dynastia shogunal dos Tokugawa, uma epocha de exaggeros
faustuosos, de dissipaçöes paradoxaes. Escolhiam-se as baixellas
de entre objectos muitos antigos e firmados por um nome de
fabricante prestigioso, e por isso rarissimos, preciosissimos; e
estava entäo em moda offerecel-os, no momento das ruidosas
despedidas, ás bellas companheiras do festim, que haviam com as
suas guitarras, com as suas cançöes, com as suas graças profissionaes,
enfeitiçando os hospedes... Sorveram-se fortunas
n'este abysmo.
É de entäo que se conta que um amador empregou n'um
chá-no-yu utensilios no valor de trinta e oito mil
yens, o que
[35]
passa de quatro
mil libras esterlinas;
um outro
adquiria por
trinta mil yens
um só boiäo de
chá!...
Ha cerca
de tres ou quatro
annos, em
um leiläo de
Tokyo, um japonez
comprou por tres mil yens uma chavena de
chá-no-yu;
prova isto que ainda ha devotos
chajin
presentemente. Com
effeito, se o luxo sem limites que caracterizou o
chá-no-yu dos
bons tempos feudaes desappareceu para sempre com a mudança
de regimen e com a mudança de costumes, continuou todovia esta
elegante pratica merecendo uma alta estima. Hoje, os dois sexos
a ella se dedicam, e pode affirmar-se que faz parte da boa
educaçäo de uma menina, exigindo uns seis ou sete annos a sua
aprendizagem. As
gueishas tambem se instruem em tal
culto;
as celebres danças primaveraes da cidade de Kyoto, conhecidas
pela denominaçäo de
Miyako-odori, säo sempre
precedidas do
chá-no-yu,
em que é officiante uma das mais gentil
gueishas do
logar; e a multidäo acode, com devota deligencia, a saborear o
perfumado chá.
*
Näo me peçam agora, a mim, profano na materia e viageiro
fatigado de täo multiplices impressöes que tenho vindo colhendo
[36]
por este mundo fóra, uma opiniäo pessoal sobre o
chá-no-yu.
Estive uma vez, é certo, com dois ou tres amigos, em uma das
chayas de mais fama
da cidade de Kobe;
e Tama-Guiku (o
Malmequer-Precioso)
era a esplendida sacerdotiza
da cerimonia.
A impressäo que
d'aquella noite guardo
é indefinida, fugidia,
como de um vago sonho
que tivesse. Ficaram-me
reminiscencias indecisas
do luxo sombrio
e harmonioso e do
aceio extremo das
coisas impregnadas de
exotismo onde poisou
o meu olhar. Na
meia luz do placido
aposento, amplo e silencioso
como um templo,
contornava-se, distante,
um vulto de
mulher, de joelhos, envolta em sedas magnificas. As attencöes
fixavam-se especialmente, como que por attracçäo hypnotica,
nas suas mäos finissimas, alvejando no espaço
como se fossem de marfim, tomando de estranhos utensilios,
preparando näo sei que filtro de magia, poisando
[37]
em mimicas hieraticas, quaes mäos de mystica officiante de uma
religiäo desconhecida. Por fim, convidado a partilhar no
sacrificio, acceitava uma taça com chá que me era offerecida
e levava-a aos labios commovido, com näo sei que subitos
escrupulos de apostata mal firme...
Tama-Guiku concluira. Ergueu-se, deslumbrante de graças,
de atavios, de magestade. O seu rostinho meigo illuminava-se entäo
da exaltaçäo beatifica que lhe electrizava o espirito; dirigiu
sobre nós a ardencia negra dos seus olhos, saudou-nos reverente...
reverente, näo porque uma imfima cortezia sequer lhe
merecessemos,—pobres occidentais ignaros!—mas em estricta
abediencia aos preceitos rituaes; e
desappareceu da scena.
*
A proposito d'estas divagaçöes respeitantes ao chá e ao seu
culto, vem-me agora ao pensamento e ainda me compunge um
dramatico episodio da existencia intima japoneza, que contado
me foi ha cerca de tres annos. Vou tentar descrevel-o.
Éra no fim de maio. Eu achava-me em Kobe. Um meu
amigo japonez,
chajin apaixonado, partira para Uji,
onde devia
assistir a umas costumadas reuniöes votadas ao
chá-no-yu, em
casa de um parente, cuja filha, a gentilissima O-Hana, era
eximia na arte; entre nós ficára combinado que eu iria encontral-o,
passadas tres semanas, em Nara, a cujos velhos monumentos
queriamos votar horas de estudo.
Haviam decorrido apenas uns tres dias, quando do tal
sujeito recebi um bilhete, pouco mais ou menos n'estes termos:—"Pode
seguir para Nara, onde me encontrará. Falhou o
chá-no-yu.
O-Hana suicidou-se. Pesava sobre ella uma desdita igual
[38]
á pobre Hichi da lenda..."—
Ora, eu conhecia O-Hana; e a lenda, que por signal
constitue o thema de uma notavel peça de theatro, näo me era de
todo estranha.
*
Vamos por partes. A lenda é como segue.
Näo sei ha quantos seculos e nem sei em que logar,—nem
importa sabel-o,—havia em certa rua dois estabelecimentos
de negocio, dos que se chamam
Yaoya em
lingua do paiz, onde se vemdem variadas provisöes,—fructos,
legumes, hortaliças, ovos, peixe e muitas coisas mais.—Defrontavam
um com o outro. N'um, habitava certo casal com uma
filha unica, O-Hichi; n'outro, um outro casal com um só filho,
Kichisa. Quiz a mofina sorte que se enamorassem um do outro.
Mofina sorte? Sim, embora, á primeira vista, näo seja o caso
concebivel, quando se saiba que ambos eram jovens, gentis e
animados de doces enternecimentos amorosos. Eu me explico
todavia. Os velhos codigos nipponicos, ainda hoje respeitados,
impöem aos filhos o preceito de herdarem o
appellido de seus paes;
o filho mais velho herda a mais o encargo de chefe de familia,
com a administraçäo dos bens e a superintendencia no culto
piedoso devido aos parentes fallecidos. É por este processo que
as genealogias näo offerecem mysterios e as familias se eternizam,
conservando religiosamente o mesmo
appellido durante seculos
sem conto; cessando apenas no caso excepcional de todos os
descendentes acabarem, consanguineos ou näo, pois é de uso
corrente chamar ao lar, por adopçäo, filhos alheios. O filho
unico pode certamente casar, e a esposa recebe o appellido do
marido. A filha unica pode igualmente casar e entäo o esposo
[39]
recebe o appellido da mulher. Está-se agora percebendo como
para O-Hichi e Kichisa o problema se complicava em demazia,
por serem ambos filhos unicos. Um meio só se apresentava, o de
uma
das familias adoptar um filho estranho, sobre quem
recahissem os encargos de
uma supposta primogenitude. Mas o
alvitre era quasi impraticavel, por aquelles tempos feudaes que
iam correndo, dependendo da sancçäo suprema do daimyô, que
a negaria, por ser o caso novo; sem já contar com o orgulho
revoltado dos paes da noiva, ou dos paes do noivo, da familia
emfim que, para evitar de ser extincta, tivesse de investir um
filho alheio nos deveres que competem ao legitimo.
É certo que as duas familias se oppozeram com toda a vehemencia
a taes amores, e a casa se transformou para O-Hichi em duro
encerro e a estima dos seus em aggressöes continuas. Foi entäo
que a pobre
musumé, captiva n'uma alcova,
desesperada, louca
de amores, meditou em pôr fogo ao seu lar de tormentos, na
crença de que as chammas lhe trariam a liberdade e o ensejo de
reunir-se áquelle a quem votara todo o seu affecto. Errou porem
nos calculos, como succede tantas vezes quando se tem quinze
annos e o pensamento voêja no mundo das chimeras: descoberto
o seu crime apenas posto em pratica, foi trazida á justiça da
[40]
cidade e condemnada á morte.
Vem agora a proposito narrar um pormenor curioso, que é
de toda a tragedia o que mais me enternece. A misera seguia,
conforme o estylo, pelas ruas populosas, amarrada ao dorso de
uma besta, para ignominia propria e para licçäo do povo; mais
tarde seria executada. A meio da jornada expiatoria, os seus
longos cabellos soltos, como até entäo eram usados, cahiam-lhe
em desalinho sobre a fronte, cheios da poeira dos caminhos,
escorrendo de suor, fustigando-lhe as faces. Entäo, ou porque
quizesse poupar-se a um tormento a mais, ou—quem sabe?—por
um resto de garridice deminia, viram-n'a rasgar com
[41]
os bellos dedos tremulos um pedaço da seda carmezim do
forro do vestido, com quem amarrou junto á nuca, erguendo os
braços, esses pobres cabellos... A idea pareceu graciosa ás
raparigas, que se iam juntando em grupos curiosos para
observarem o cortejo; e desde entäo as japonezas começaram de
usar aquelle enfeite, que persiste até hoje e a que chamam
kikidashi—litteralmente: farrapo—em memoria de
O-Hichi, a
triste namorada de Kichisa...
*
Mas vamos depressa ao fim da historia.
Quando em Nara deparei com o meu amigo japonez, o
triste fim de O-Hana esclareceu-se em breve.
Havia em Uji duas familias abastadas, Fukumoto e Yamaguchi,
possuindo as mais bellas culturas de chá d'aquelles campos.
Os Fukumoto juravam que o seu chá éra o melhor de todo o
Imperio, e os Yamaguchi diziam do seu chá a mesma coisa;
eram no fim de contas uns caturras, professando um supino
[42]
orgulho do seu nome e um culto pelo mister a que se davam;
alem d'isto, ou por isto, pouco affeiçoados entre si, confirmando a
justiça d'aquelle ditado portuguez, com curso em todas as
longitudes do planeta...
dos officiaes do mesmo
officio.
O casal Fukumoto tinha um filha unica, O-Hana; o casal
Yamaguchi tinha um unico filho, Naotarô. Este era um perfeito
rapazola, amavel, intelligente, segundo affirma quem o viu. O-Hana
era uma
musumé em plena flôr da vida, educada em
todos
as gentis prendas do seu sexo. Ninguem como ella desprendia
suavissimos sons do
koto, a harpa nacional; nenhumas
mäos se
mostravam täo habeis de pinheiro ou de lirios floridos trazidos do
jardim; no
chá-no-yu era incomparavel.
[43]
Eu vi O-Hana uma só vez, nos parques de Kyoto, quando
em peregrinaçäo primaveral se vae contemplar, á luz da lua, a
celebre cerejeira de Guion, toda vestida de pequeninas petalas.
O-Hana éra uma d'essas japonezinhas embebidas de enlevo
e de exotismo, taes como vós as conheceis dos leques, dos biombos.
Isto basta, á falta de melhor, para definir-lhe o vulto em miniatura,
esguio e ondulante, coberto de sedas preciosas; e para imaginar-lhe
o rosto pallido em forma de pevide de meläo, os olhinhos
cerrados, os finos traços das sobrancelhas em viez, a boquinha
sorridente, rubra, lembrando uma cereja, e o penteado... o
penteado colossal como uma enorme borboleta de azeviche, que
lhe houvesse pousado, de azas abertas, sobre a nuca. Ria,
curvava-se em mesuras, em meneios, agitando no ar as descommunaes
mangas do
kimono; e lá ia seguindo o seu caminho
entre
um bando de amigas, antes ziquezagueando, a passos miudinhos,
indécisos, sem intuito. E eu ia pensando que alli estava, em
carne e osso, a companheira deliciosissima, anjo de graças e
fada de sorrisos, para quem podesse offerecer-lhe—japonez
claramente,—uma
[44]
casinha de papel em extremos de limpeza, com
duas esteiras sobre o chäo, um bule com chá, um prato com
confeitos, uma jarra com ramos vicejantes; e á frente o
jadinsinho,—bambus
tufados, azaleas em flor, pedras musgosas, o
pequinono lago, onde peixes vermelhos nadassem pachorrentos e
räs coaxassem em noites estivaes...—
O-Hana e Naotarô amaram-se.. Näo se sabe porque.
Porque eram ambos jovens, visinhos, conhecidos; e em circunstancias
semelhantes a juventude attrahe a juventude...
Quando esta inclinaçäo foi conhecida, as duas familias
irromperam em näo dissimulados azedumes. O casamento era
impossivel. Se a adopçäo de um filho alheio podia resolver
em theoria o problema, quem vinha sujeitar-se ao sacrificio? Os
Yamaguchi? Os Fukumoto? Mas nem uns nem outros, com
os diabos!... Os nomes das duas familias, procedentes de
uma linhagem täo remota que em väo se tentaria investigar-lhes
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a origem, gosavam em todo o Imperio de um prestigo inconfundivel,
conquistado durante annos sem conto pela pobidade
mercantil dos seus negocios,
pela excellencia do chá da sua
lavra, pela nobre chientela nos castelos; podendo apenas pôr-se em
duvida, se o chá dos Yamaguchi preferival ao chá dos Fukumoto.
Ora,—mercê de um capricho de estouvados,—investir, por uma
adopçäo do acaso, um estranho na posse de tal nome, e ungil-o
dos
nobres encargos que competem a um futuro chefe de
familia—Fukumoto
ou Yamaguchi,—nem por brincadeira se propunha!...
Que O-Hana e Naotarô se casassem, intendia-se; era
esse mesmo o seu dever, de perpetuar pela prole os nomes dos
avós; mas confiassem no bom tacto dos paes, que saberiam escolher-lhes
noivos do seu agrado e em condiçöes de näo virem
parturbar a paz das familias e ferir o amor das tradiçöes.
Muito bem. Quando os dois namorados se convenceram da
impossibilidade de viverem um para outro, tiveram certa noite
uma furtiva entrevista á beira do Ujigawa, a pittoresca ribeira,
que entäo serpeava em grande cheia de aguas, resultado das
ultimas chuvas copiosas. Deram-se as mäos, parece; sorriam-se
um para o outro; näo se sabe o que segredaram entre si, porque
[46]
ninguem esta alli para os ouvir...
Quando, ao romper do dia, as moças de Uji seguiam para a
apanha do chá, em ranchos galhofeiros, quedaram-se de repente
junto ao rio, cheias do espanto, de pavor, vendo a boiar dois
corpos detidos na maranha dos juncos, rigidos, lividos, mortos,
porem sorrindo ainda e dando-se ainda as mäos...
*
"N'estas aguas do rio d'Uji,
—Täo milagrosas que säo!—
Lavam-se todos os males
De que soffre o coraçäo...
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