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Rita
Farinha (Agosto 2012)
Porto: Typ. de A. J. da
Silva Teixeira, Cancella Velha, 70
EÇA DE QUEIROZ
OS MAIAS
EPISODIOS DA VIDA ROMANTICA
VOLUME I
PORTO
Livraria Internacional de Ernesto Chardron
CASA EDITORA
LUGAN & GENELIOUX, Successores
1888
Todos os direitos reservados
OBRAS DO MESMO AUCTOR
O Crime do Padre Amaro,
edição inteiramente refundida,
recomposta, e differente na fórma e na
acção
da edição primitiva. 1 grosso
vol. |
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O Primo Bazilio.
3.ª
edição. 1 grosso
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O Mandarim.
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edição. 1
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A Reliquia.
1 grosso
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OS MAIAS
VOLUME I
OS MAIAS
I
A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa,
no outono de 1875, era conhecida na visinhança da
rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro
das Janellas Verdes, pela
casa do
Ramalhete ou simplesmente
o
Ramalhete. Apesar d'este fresco
nome
de vivenda campestre, o
Ramalhete,
sombrio casarão
de paredes severas, com um renque de estreitas varandas
de ferro no primeiro andar, e por cima uma
timida fila de janellinhas abrigadas á beira do telhado,
tinha o aspecto tristonho de Residencia Ecclesiastica
que competia a uma edificação do reinado da sr.
a
D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo
assimilhar-se-hia a um Collegio de Jesuitas. O nome
de Ramalhete provinha de certo d'um revestimento
quadrado de azulejos fazendo painel no logar heraldico
[2]
do Escudo d'Armas, que nunca chegara a ser
collocado, e representando um grande ramo de girasoes
atado por uma fita onde se distinguiam letras
e numeros d'uma data.
Longos annos o Ramalhete permanecera deshabitado,
com teias d'aranha pelas grades dos postigos
terreos, e cobrindo-se de tons de ruina. Em 1858
Monsenhor Buccarini, Nuncio de S. Santidade, visitara-o
com idéa d'installar lá a Nunciatura, seduzido
pela gravidade clerical do edificio e pela paz dormente
do bairro: e o interior do casarão agradara-lhe
tambem, com a sua disposição
apalaçada, os tectos
apainelados, as paredes cobertas de
frescos onde já
desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos
Cupidinhos. Mas Monsenhor, com os seus habitos de
rico prelado romano, necessitava na sua vivenda os
arvoredos e as agoas d'um jardim de luxo: e o Ramalhete
possuia apenas, ao fundo d'um terraço de
tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado ás hervas
bravas, com um cypreste, um cedro, uma cascatasinha
secca, um tanque entulhado, e uma estatua
de marmore (onde Monsenhor reconheceu logo Venus
Citherêa) ennegrecendo a um canto na lenta humidade
das ramagens silvestres. Além d'isso, a renda
que pedio o velho Villaça, procurador dos Maias, pareceu
tão exagerada a Monsenhor, que lhe perguntou
sorrindo se ainda julgava a Egreja nos tempos de
Leão X. Villaça respondeu—que tambem a nobreza
não estava nos tempos do sr. D. João V. E o
Ramalhete
continuou deshabitado.
[3]
Este inutil pardieiro (como lhe chamava Villaça
Junior, agora por morte de seu pae administrador
dos Maias) só veio a servir, nos fins de 1870, para
lá se arrecadaram as mobilias e as louças
provenientes
do palacete de familia em Bemfica, morada quasi
historica, que, depois de andar annos em praça,
fôra
então comprada por um commendador brazileiro.
N'essa occasião vendera-se outra propriedade dos
Maias, a
Tojeira; e algumas raras
pessoas que em Lisboa
ainda se lembravam dos Maias, e sabiam que desde
a Regeneração elles viviam retirados na sua
quinta
de Santa Olavia, nas margens do Douro, tinham perguntado
a Villaça se essa gente estava atrapalhada.
—Ainda teem um pedaço de pão, disse
Villaça sorrindo,
e a manteiga para lhe barrar por cima.
Os Maias eram uma antiga familia da Beira, sempre
pouco numerosa, sem linhas collateraes, sem parentellas—e
agora reduzida a dois varões, o senhor
da casa, Affonso da Maia, um velho já, quasi um antepassado,
mais edoso que o seculo, e seu neto Carlos
que estudava medicina em Coimbra. Quando Affonso
se retirara definitivamente para Santa Olavia,
o rendimento da casa excedia já cincoenta mil cruzados:
mas desde então tinham-se accumulado as
economias de vinte annos de aldêa; viera tambem a
herança d'um ultimo parente, Sebastião da Maia,
que
desde 1830 vivia em Napoles, só, occupando-se de
numismatica;—e o procurador podia certamente
sorrir com segurança quando fallava dos Maias e da
sua fatia de pão.
[4]
A venda da
Tojeira fôra
realmente aconselhada
por Villaça: mas nunca elle approvara que Affonso
se desfizesse de Bemfica—só pela rasão
d'aquelles
muros terem visto tantos desgostos domesticos. Isso,
como dizia Villaça, acontecia a todos os muros. O
resultado era que os Maias, com o Ramalhete inhabitavel,
não possuiam agora uma casa em Lisboa; e
se Affonso n'aquella edade amava o socego de Santa
Olavia, seu neto, rapaz de gosto e de luxo que passava
as ferias em Paris e Londres, não quereria,
depois de formado, ir sepultar-se nos penhascos do
Douro. E com effeito, mezes antes de elle deixar
Coimbra, Affonso assombrou Villaça annunciando-lhe
que decidira vir habitar o Ramalhete! O procurador
compoz logo um relatorio a enumerar os inconvenientes
do casarão: o maior era necessitar tantas
obras e tantas despezas; depois, a falta d'um jardim
devia ser muito sensivel a quem sahia dos arvoredos
de Santa Olavia; e por fim alludia mesmo a uma
lenda, segundo a qual eram sempre fataes aos Maias
as paredes do Ramalhete, «ainda que (acrescentava
elle n'uma phrase meditada) até me envergonho de
mencionar taes frioleiras n'este seculo de Voltaire, Guisot
e outros philosophos liberaes...»
Affonso riu muito da phrase, e respondeu que
aquellas razões eram excellentes—mas elle desejava
habitar sob tectos tradiccionalmente seus; se eram
necessarias obras, que se fizessem e largamente;
e emquanto a lendas e agoiros, bastaria abrir de par
em par as janellas e deixar entrar o sol.
[5]
S. ex.
a mandava:—e, como esse inverno ia secco,
as obras começaram logo, sob a
direcção d'um Esteves,
architecto, politico, e compadre de Villaça. Este
artista enthusiasmára o procurador com um projecto
de escada apparatosa, flanqueada por duas figuras
symbolisando as conquistas da Guiné e da India.
E estava ideando tambem uma cascata de louça
na sala de jantar—quando, inesperadamente, Carlos
appareceu em Lisboa com um architecto-decorador
de Londres, e, depois de estudar com elle á pressa
algumas ornamentações e alguns tons de estofos,
entregou-lhe
as quatro paredes do Ramalhete, para elle
ali crear, exercendo o seu gosto, um interior confortavel,
de luxo intelligente e sobrio.
Villaça resentiu amargamente esta
desconsideração
pelo artista nacional; Esteves foi berrar ao seu Centro
politico que isto era um paiz perdido. E Affonso
lamentou tambem que se tivesse despedido o Esteves,
exigiu mesmo que o encarregassem da construcção
das cocheiras. O artista ia acceitar—quando foi nomeado
governador civil.
Ao fim d'um anno, durante o qual Carlos viera
frequentemente a Lisboa collaborar nos trabalhos,
«dar os seus retoques estheticos»—do antigo
Ramalhete
só restava a fachada tristonha, que Affonso não
quizera alterada por constituir a phisionomia da
casa. E Villaça não duvidou declarar que Jones
Bule
(como elle chamava ao inglez) sem despender despropositadamente,
aproveitando até as antigualhas de
Bemfica, fizera do Ramalhete «um museu.»
[6]
O que surprehendia logo era o pateo, outr'ora tão
lobrego, nú, lageado de pedregulho—agora resplandecente,
com um pavimento quadrilhado de marmores
brancos e vermelhos, plantas decorativas,
vazos de Quimper, e dois longos bancos feudaes que
Carlos trouxera de Hespanha, trabalhados em talha,
solemnes como córos de cathedral. Em cima, na antecamara,
revestida como uma tenda de estofos do
Oriente, todo o rumor de passos morria: e ornavam-n'a
divans cobertos de tapetes persas, largos
pratos mouriscos com reflexos metalicos de cobre,
uma harmonia de tons severos, onde destacava,
na brancura immaculada do marmore, uma figura de
rapariga friorenta, arripiando-se, rindo, ao metter o
pésinho n'agoa. D'ahi partia um amplo corredor, ornado
com as peças ricas de Bemfica, arcas gothicas,
jarrões da India, e antigos quadros devotos. As melhores
salas do Ramalhete abriam para essa galeria.
No salão nobre, raramente usado, todo em brocados
de velludo côr de musgo d'outono, havia uma bella
téla de Constable, o retrato da sogra de Affonso, a
condessa de Runa, de tricorne de plumas e vestido
escarlate de caçadora ingleza, sobre um fundo de
paisagem enevoada. Uma sala mais pequena, ao lado,
onde se fazia musica, tinha um ar de seculo XVIII
com seus moveis enramelhetados d'ouro, as suas
sedas de ramagens brilhantes: duas tapeçarias de
Gobelins, desmaiadas, em tons cinzentos, cobriam as
paredes de pastores e d'arvoredos.
Defronte era o bilhar, forrado d'um couro moderno
[7]
trazido por Jones Bule, onde, por entre a desordem de
ramagens verde-garrafa, esvoaçavam cegonhas prateadas.
E, ao lado, achava-se o
fumoir, a
sala mais
commoda do Ramalhete: as ottomanas tinham a fôfa
vastidão de leitos; e o conchego quente, e um pouco
sombrio dos estofos escarlates e pretos era alegrado
pelas cores cantantes de velhas faienças hollandezas.
Ao fundo do corredor ficava o escriptorio de Affonso,
revestido de damascos vermelhos como uma
velha camara de prelado. A macissa meza de pau
preto, as estantes baixas de carvalho lavrado, o solemne
luxo das encadernações, tudo tinha ali uma
feição
austera de paz estudiosa—realçada ainda por um
quadro attribuido a Rubens, antiga reliquia da casa,
um Christo na Cruz, destacando a sua nudez de
athleta sobre um ceu de poente revolto e rubro. Ao
lado do fogão Carlos arranjara um canto para o avô
com um biombo japonez bordado a ouro, uma pelle
d'urso branco, e uma veneravel cadeira de braços,
cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos Maias
no desmaio da trama de sêda.
No corredor do segundo andar, guarnecido com
retratos de familia, estavam os quartos de Affonso.
Carlos despozera os seus, n'um angulo da casa, com
uma entrada particular, e janellas sobre o jardim:
eram tres gabinetes a seguir, sem portas, unidos
pelo mesmo tapete: e, os recostos acolchoados, a
sêda que forrava as paredes, faziam dizer ao
Villaça
que aquillo não eram aposentos de medico—mas
de dançarina!
[8]
A casa, depois de arranjada, ficou vazia emquanto
Carlos, já formado, fazia uma longa viagem pela Europa;—e
foi só nas vesperas da sua chegada, n'esse
lindo outono de 1875, que Affonso se resolveu emfim
a deixar Santa Olavia e vir installar-se no Ramalhete.
Havia vinte e cinco annos que elle não via Lisboa;
e, ao fim de alguns curtos dias, confessou ao
Villaça que estava suspirando outra vez pelas suas
sombras de Santa Olavia. Mas, que remedio! Não
queria viver muito separado do neto; e Carlos agora,
com idéas sérias de carreira activa, devia
necessariamente
habitar Lisboa... De resto, não desgostava
do Ramalhete, apezar de Carlos, com o seu
fervor pelo luxo dos climas frios, ter prodigalisado
de mais as tapeçarias, os pesados reposteiros, e os
velludos.
Agradava-lhe tambem muito a visinhança,
aquella dôce quietação de suburbio
adormecido ao
sol. E gostava até do seu quintalejo. Não era de
certo o jardim de Santa Olavia: mas tinha o ar
sympathico, com os seus girasoes perfilados ao pé
dos degraus do terraço, o cypreste e o cedro envelhecendo
juntos como dois amigos tristes, e a Venus
Cytherêa parecendo agora, no seu tom claro de
estatua de parque, ter chegado de Versalhes, do fundo
do grande seculo... E desde que a agoa abundava, a
cascatasinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas,
com os seus tres pedregulhos arranjados em
despenhadeiro bucolico, melancolisando aquelle fundo
de quintal soalheiro com um pranto de nayade domestica,
esfiado gota a gota na bacia de marmore.
[9]
O que desconsolara Affonso, ao principio, fôra a
vista do terraço—d'onde outr'ora, de certo, se abrangia
até ao mar. Mas as casas edificadas em redor,
nos ultimos annos, tinham tapado esse horizonte explendido.
Agora, uma estreita tira de agoa e monte
que se avistava entre dois predios de cinco andares,
separados por um córte de rua, formava toda a paizagem
defronte do Ramalhete. E, todavia, Affonso
terminou por lhe descobrir um encanto intimo. Era
como uma téla marinha, encaixilhada em cantarias
brancas, suspensa do céu azul em face do terraço,
mostrando, nas variedades infinitas de côr e luz, os
episodios fugitivos d'uma pacata vida de rio: ás vezes
uma véla de barco da Trafaria fugindo airosamente
á
bolina; outras vezes uma galera toda em panno,
entrando n'um favor da aragem, vagarosa, no vermelho
da tarde; ou então a melancolia d'um grande paquete,
descendo, fechado e preparado para a vaga,
entrevisto um momento, desapparecendo logo, como
já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias,
no pó d'ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de
um couraçado inglez... E sempre ao fundo o pedaço
de monte verde-negro, com um moinho parado
no alto, e duas casas brancas ao rez d'agoa, cheias
de expressão—ora faiscantes e despedindo raios das
vidraças accezas em braza; ora tomando aos fins de
tarde um ar pensativo, cobertas dos rosados tenros
de poente, quasi similhantes a um rubor humano;
e d'uma tristeza arripiada nos dias de chuva, tão
sós,
tão brancas, como nuas, sob o tempo agreste.
[10]
O terraço communicava por tres portas
envidraçadas
com o escriptorio—e foi n'essa bella camara
de prelado que Affonso se acostumou logo a passar
os seus dias, no recanto aconchegado que o neto lhe
preparara ternamente, ao lado do fogão. A sua longa
residencia em Inglaterra dera-lhe o amor dos suaves
vagares junto do lume. Em Santa Olavia as chaminés
ficavam accezas até Abril; depois ornavam-se de
braçadas
de flôres, como um altar domestico; e era ainda
ahi, n'esse aroma e n'essa frescura, que elle gozava
melhor o seu cachimbo, o seu Tacito, ou o seu querido
Rabelais.
Todavia, Affonso ainda ia longe, como elle dizia,
de ser um velho borralheiro. N'aquella edade, de
verão ou de inverno, ao romper do sol, estava a
pé,
sahindo logo para a quinta, depois da sua boa
oração
da manhã que era um grande mergulho na agoa
fria. Sempre tivera o amor supersticioso da agoa; e
costumava dizer que nada havia melhor para o homem—que
sabor d'agoa, som d'agoa, e vista d'agoa.
O que o prendera mais a Santa Olavia fôra a sua
grande riqueza d'agoas vivas, nascentes, repuxos,
tranquillo espelhar d'agoas paradas, fresco murmurio
de agoas regantes... E a esta viva tonificação da
agoa attribuia elle o ter vindo assim, desde o começo
do seculo, sem uma dôr e sem uma doença, mantendo
a rica tradição de saude da sua familia, duro,
resistente aos desgostos e annos—que passavam por
elle, tão em vão, como passavam em
vão, pelos seus
robles de Santa Olavia, annos e vendavaes.
[11]
Affonso era um pouco baixo, macisso, de hombros
quadrados e fortes: e com a sua face larga de
nariz aquilino, a pelle córada, quasi vermelha, o cabello
branco todo cortado á escovinha, e a barba de
neve aguda e longa—lembrava, como dizia Carlos,
um varão esforçado das edades heroicas, um D.
Duarte
de Menezes ou um Affonso d'Albuquerque. E isto
fazia sorrir o velho, recordar ao neto, gracejando,
quanto as apparencias illudem!
Não, não era Menezes, nem Albuquerque; apenas
um antepassado bonacheirão que amava os seus livros,
o conchego da sua poltrona, o seu
whist ao
canto do fogão. Elle mesmo costumava dizer, que era
simplesmente um egoista:—mas nunca, como agora
na velhice, as generosidades do seu coração
tinham
sido tão profundas e largas. Parte do seu rendimento
ia-se-lhe por entre os dedos, esparsamente, n'uma caridade
enternecida. Cada vez amava mais o que é
pobre e o que é fraco. Em Santa Olavia, as
creanças
corriam para elle, dos portaes, sentindo-o acariciador
e paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor:—e
era dos que não pisam um formigueiro, e se compadece
da sêde
d'uma planta.
Villaça costumava dizer que lhe lembrava sempre
o que se conta dos patriarchas, quando o vinha encontrar
ao canto da chaminé, na sua coçada quinzena
de velludilho, sereno, risonho, com um livro na mão,
o seu velho gato aos pés. Este pesado e enorme
angorá, branco com malhas louras, era agora (desde
a morte de
Tobias, o soberbo
cão de S. Bernardo)
[12]
o fiel companheiro de Affonso. Tinha nascido em
Santa Olavia, e recebera então o nome de Bonifacio:
depois, ao chegar á edade do amor e da caça,
fora-lhe
dado o appellido mais cavalheiresco de D. Bonifacio
de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara
definitivamente no remanso das dignidades ecclesiasticas,
e era o Reverendo Bonifacio...
Esta existencia nem sempre assim correra com a
tranquillidade larga e clara d'um bello rio de verão.
O antepassado, cujos olhos se enchiam agora d'uma
luz de ternura diante das suas rosas, e que ao canto
do lume relia com gosto o seu Guisot, fôra, na
opinião
de seu pae, algum tempo, o mais feroz Jacobino
de Portugal! E todavia, o furor revolucionario do pobre moço
consistira em lêr Rousseau, Volney, Helvetius,
e a Encyclopedia; em atirar foguetes de lagrimas
á Constituição; e ir, de chapeu
á liberal e alta
gravata azul, recitando pelas lojas maçonicas Odes
abominaveis ao Supremo Architecto do Universo. Isto,
porém, bastára para indignar o pae. Caetano da
Maia
era um portuguez antigo e fiel que se benzia ao
nome de Robespierre, e que, na sua apathia de fidalgo
beato e doente, tinha só um sentimento vivo—o
horror, o odio ao Jacobino, aquem attribuia todos
os males, os da patria e os seus, desde a perda
das colonias até ás crises da sua gota. Para
extirpar
da nação o Jacobino, déra elle o seu
amor ao sr. infante
D. Miguel, Messias forte e Restaurador providencial...
[13]
E ter justamente por filho um Jacobino,
parecia-lhe uma provação comparavel só
ás de Job!
Ao principio, na esperança que o menino se emendasse,
contentou-se em lhe mostrar um carão severo
e chamar-lhe com
sarcasmo—
cidadão!
Mas
quando
soube que seu filho, o seu herdeiro, se misturara á
turba que, n'uma noite de festa civica e de luminarias,
tinha apedrejado as vidraças apagadas do sr. Legado
d'Áustria, enviado da Santa Alliança—considerou
o
rapaz um Marat e toda a sua colera rompeu. A gota
cruel, cravando-o na poltrona, não lhe deixou espancar
o mação, com a sua bengala da India, á
lei de
bom pae portuguez: mas decidiu expulsal-o de sua
casa, sem mezada e sem benção, renegado como um
bastardo! Que aquelle pedreiro livre não podia ser
do seu sangue!
As lagrimas da mamã amolleceram-n'o; sobretudo
as razões d'uma cunhada de sua mulher, que vivia
com elles em Bemfica, senhora irlandeza de alta
instrucção,
Minerva respeitada e tutelar, que ensinara
inglez ao menino e o adorava como um bébé.
Caetano
da Maia limitou-se a desterrar o filho para a
quinta de Santa Olavia; mas não cessou de chorar no
seio dos padres, que vinham a Bemfica, a desgraça da
sua casa. E esses santos lá o consolavam, affirmando-lhe
que Deus, o velho Deus d'Ourique, não permittiria
jámais que um Maia pactuasse com Belzebut e
com a Revolução! E, á falta de Deus
Padre, lá estava
Nossa Senhora da Soledade, padroeira da casa e madrinha
do menino, para fazer o bom milagre.
[14]
E o milagre fez-se. Mezes depois, o Jacobino, o
Marat, voltava de Santa Olavia um pouco contricto,
enfastiado sobretudo d'aquella solidão, onde os
chás do
brigadeiro Senna eram ainda mais tristes que o terço
das primas Cunhas. Vinha pedir ao pae a benção, e
alguns mil cruzados, para ir a Inglaterra, esse paiz
de vivos prados e de cabellos d'ouro de que lhe fallara
tanto a tia Fanny. O pae beijou-o, todo em lagrimas,
accedeu a tudo fervorosamente, vendo ali a
evidente, a gloriosa intercessão de Nossa Senhora da
Soledade! E o mesmo Frei Jeronymo da Conceição
seu confessor, declarou este
milagre—não inferior
ao de Carnaxide.
Affonso partiu. Era na primavera—e a Inglaterra
toda verde, os seus parques de luxo, os copiosos
confortos, a harmonia penetrante dos seus nobres costumes,
aquella raça tão séria e
tão forte—encantaram-n'o.
Bem depressa esqueceu o seu odio aos sorumbaticos
padres da Congregação, as horas ardentes
passadas no café dos Romulares a recitar Mirabeau,
e a Republica que quizera fundar, classica e voltarianna,
com um triumvirato de Scipiões e festas ao
Ente Supremo. Durante os dias da
Abrilada estava
elle nas corridas d'Epsom, no alto d'uma sege de
posta, com um grande nariz postiço, dando
hurrahs
medonhos-bem indifferente aos seus irmãos de
Maçonaria, que a essas horas o sr. infante
espicaçava
a chuço, pelas viellas do Bairro Alto, no seu
rijo cavallo d'Alter.
Seu pae morreu de subito, elle teve de regressar
[15]
a Lisboa. Foi então que conheceu D. Maria Eduarda
Runa, filha do conde de Runa, uma linda morena,
mimosa e um pouco adoentada. Ao fim do luto casou
com ella. Teve um filho, desejou outros; e começou
logo, com bellas idéas de patriarcha moço, a
fazer
obras no palacete de Bemfica, a plantar em redor
arvoredos, preparando tectos e sombras á descendencia
amada que lhe encantaria a velhice.
Mas não esquecia a Inglaterra:—e tornava-lh'a
mais appetecida essa Lisboa miguelista que elle via,
desordenada como uma Tunis barbaresca; essa rude
conjuração apostolica de frades e bolieiros,
atroando
tavernas e capellas; essa plebe beata, suja e feroz,
rolando do
lausperenne para o curro,
e anciando tumultuosamente
pelo principe que lhe encarnava tão
bem os vicios e as paixões...
Este espectaculo indignava Affonso da Maia; e muitas
vezes, na paz do serão, entre amigos, com o pequeno
nos joelhos, exprimiu a indignação da sua alma
honesta. Já não exigia de certo, como em rapaz,
uma
Lisboa de Catões e de Mucios-Scevolas. Já
admittia
mesmo o esforço d'uma nobreza para manter o seu
privilegio historico; mas então queria uma nobreza
intelligente e digna, como a Aristocracia tory (que o
seu amor pela Inglaterra lhe fazia idealisar), dando
em tudo a direcção moral, formando os costumes e
inspirando a litteratura, vivendo com fausto e fallando
com gosto, exemplo de idéas altas e espelho de maneiras
patricias... O que não tolerava era o mundo
de Queluz, bestial e sordido.
[16]
Taes palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E
quando se reuniram as côrtes geraes, a policia invadiu
Bemfica, «a procurar papeis e armas escondidas.»
Affonso da Maia, com o seu filho nos braços e a
mulher tremendo ao lado—viu, impassivelmente e
sem uma palavra, a busca, as gavetas arrombadas
pela coronha das escopetas, as mãos sujas do malsim
rebuscando os colxões do seu leito. O sr. juiz
de fóra não descobriu nada: acceitou mesmo na
copa um calice de vinho, e confessou ao mordomo
«que os tempos iam bem duros...» Desde essa
manhã
as janellas do palacete conservaram-se cerradas;
não se abriu mais o portão nobre para sahir o
coche
da senhora; e d'ahi a semanas, com a mulher e com
o filho, Affonso da Maia partia para Inglaterra e para
o exilio.
Ahi installou-se, com luxo, para uma longa demora,
nos arredores de Londres, junto a Richmond,
ao fundo d'um parque, entre as suaves e calmas paisagens
de Surrey.
Os seus bens, graças ao credito do conde de Runa,
antigo mimoso de D. Carlota Joaquina, hoje conselheiro
rispido do sr. D. Miguel, não tinham sido confiscados;
e Affonso da Maia podia viver largamente.
Ao principio os emigrados liberaes, Palmella e a
gente do
Belfast, ainda o vieram
desassocegar e consumir.
A sua alma recta não tardou a protestar
vendo a separação de castas, de gerarchias,
mantidas
ali na terra estranha entre os vencidos da mesma
[17]
idéa—os fidalgos e os desembargadores vivendo no
luxo de Londres á forra, e a plebe, o exercito, depois
dos padecimentos da Galliza, succumbindo agora á
fome, á vermina, á febre nos barracões
de Plymouth.
Teve logo conflictos com os chefes liberaes; foi accusado
de vintista e demagogo; descreu por fim do
liberalismo. Isolou-se então—sem fechar todavia a
sua bolsa, d'onde sahiam ás cincoenta, ás cem
moedas...
Mas quando a primeira expedição partiu, e
pouco a pouco se foram vasando os depositos de emigrados,
respirou emfim—e, como elle disse, pela
primeira vez lhe soube bem o ar d'Inglaterra!
Mezes depois sua mãe, que ficara em Bemfica, morria
d'uma apoplexia: e a tia Fanny veiu para Richmond
completar a felicidade d'Affonso, com o seu
claro juizo, os seus caracóes brancos, os seus modos
de discreta Minerva. Alli estava elle pois no
seu sonho, n'uma digna residencia ingleza, entre
arvores seculares, vendo em redor nas vastas relvas
dormirem ou pastarem os gados de luxo, e sentindo
em torno de si tudo são, forte, livre e solido,—como
o amava o seu coração.
Teve relações; estudou a nobre e rica litteratura
ingleza; interessou-se, como convinha a um fidalgo
em Inglaterra, pela cultura, pela cria dos cavallos,
pela pratica da caridade;—e pensava com prazer
em ficar ali para sempre n'aquella paz e n'aquella
ordem.
Sómente Affonso sentia que sua mulher não era
feliz. Pensativa e triste, tossia sempre pelas salas.
[18]
Á noite sentava-se ao fogão, suspirava e ficava
calada...
Pobre senhora! a nostalgia do paiz, da parentella,
das egrejas, ia-a minando. Verdadeira lisboeta, pequenina
e trigueira, sem se queixar e sorrindo pallidamente,
tinha vivido desde que chegara n'um odio
surdo áquella terra d'herejes e ao seu idioma barbaro:
sempre arripiada, abafada em pelles, olhando
com pavor os ceus fuscos ou a neve nas arvores, o
seu coração não estivera nunca alli,
mas longe, em
Lisboa, nos adros, nos bairros batidos do sol. A sua
devoção (a devoção dos
Runas!) sempre grande,
exaltara-se, exacerbara-se áquella hostilidade ambiente
que ella sentia em redor contra os «papistas».
E só se satisfazia á noite, indo refugiar-se no
sotão com as creadas portuguezas, para resar o
terço
agachada n'uma esteira—gosando ali, n'esse murmurio
d'ave-marias em paiz protestante, o
encanto de
uma conjuração catholica!
Odiando tudo o que era inglez, não consentira que
seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao collegio de
Richmond. Debalde Affonso lhe provou que era um
collegio catholico. Não queria: aquelle catholicismo
sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens
do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas—não
lhe parecia a religião. A alma do seu Pedrinho
não abandonaria ella á heresia;—e para o educar
mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capellão
do Conde de Runa.
O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas,
sobretudo
[19]
a cartilha: e a face d'Affonso da Maia cobria-se
de tristeza, quando ao voltar d'alguma caçada
ou das ruas de Londres, d'entre o forte rumor da
vida livre—ouvia no quarto dos estudos a voz dormente
do reverendo, perguntando como do fundo
d'uma treva:
—Quantos são os inimigos da alma?
E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:
—Tres. Mundo, Diabo e Carne...
Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia alli
o reverendo Vasques, obeso e sordido, arrotando do
fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre
o
joelho...
Ás vezes Affonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia
a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho—para
o levar, correr com elle sob as arvores do Tamisa,
dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume
crasso da cartilha. Mas a mamã accudia de dentro,
em terror, a abafal-o n'uma grande manta: depois
lá fóra o menino, acostumado ao collo das creadas
e
aos recantos estofados, tinha medo do vento e das arvores:
e pouco a pouco, n'um passo desconsolado,
os dois iam pisando em silencio as folhas seccas—o
filho todo acobardado das sombras do bosque vivo,
o pae vergando os hombros pensativo, triste d'aquella
fraqueza do filho...
Mas o menor esforço d'elle para arrancar o rapaz
áquelles braços de mãe que o
amolleciam, áquella cartilha
mortal do padre Vasques—trazia logo á delicada
senhora accessos de febre. E Affonso não se atrevia
já
[20]
a contrariar a pobre doente, tão virtuosa, e que o
amava tanto! Ia então lamentar-se para o pé da
tia
Fanny: a sabia irlandeza mettia os oculos entre as
folhas do seu livro, tratado d'Addisson ou poema de
Pope, e encolhia melancolicamente os hombros. Que
podia ella fazer!...
Por fim a tosse de Maria Eduarda foi augmentando—como
a tristeza das suas palavras. Já fallava da
«sua ambição derradeira», que
era ver o sol uma vez
mais! Por que não voltariam a Bemfica, ao seu lar,
agora que o sr. Infante estava tambem desterrado
e que havia uma grande paz? Mas a isso Affonso
não cedeu: não queria ver outra vez as suas
gavetas
arrombadas a coronhadas—e os soldados do sr.
D. Pedro não lhe davam mais garantias que os malsins
do sr. D. Miguel.
Por esse tempo veio um grave desgosto á casa:
a tia Fanny morreu, d'uma pneumonia, nos frios de
março; e isto ennegreceu mais a melancolia de Maria
Eduarda, que a amava muito tambem—por ser irlandeza
e catholica.
Para a distrahir, Affonso levou-a para a Italia, para
uma deliciosa
villa ao pé
de Roma. Ahi não lhe faltava
o sol: tinha-o ponctual e generoso todas as manhãs,
banhando largamente os terraços, dourando
loureiraes e myrtos. E depois, lá em baixo, entre
marmores, estava a coisa preciosa e santa, o Papa!
Mas a triste senhora continuava a choramigar.
O que realmente appetecia era Lisboa, as suas novenas,
os santos devotos do seu bairro, as procissões
[21]
passando n'um rumor de pachorrenta penitencia por
tardes de sol e de poeira...
Foi necessario calmal-a, voltar a Bemfica.
Ahi começou uma vida desconsolada. Maria Eduarda
definhava lentamente, todos os dias mais pallida, levando
semanas immovel sobre um canapé, com as
mãos transparentes cruzadas sobre as suas grossas
pelles d'Inglaterra. O padre Vasques, apoderando-se
d'aquella alma aterrada para quem Deus era um amo
feroz, tornára-se o grande homem da casa. De resto
Affonso encontrava a cada momento pelos corredores
outras figuras canonicas, de capote e solideo,
em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum
magro capuchinho parasitando no bairro; a casa tinha
um bafio de sachristia; e dos quartos da senhora
vinha constantemente, dolente e vago, um rumor de
ladainha.
Todos aquelles santos varões comiam, bebiam o
seu vinho do Porto na copa. As contas do administrador
appareciam sobrecarregadas com as mesadas
piedosas que dava a senhora: um Frei Patricio surripiára-lhe
duzentas missas de cruzado por alma do Sr.
D. José I...
Esta carolice que o cercava ia lançando Affonso
n'um atheismo rancoroso: quereria as egrejas fechadas
como os mosteiros, as imagens escavacadas a machado,
uma matança de reverendos... Quando sentia
na casa a voz de resas, fugia, ia para o fundo da
quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire:
ou então partia a desabafar com o seu velho
[22]
amigo, o coronel Sequeira, que vivia n'uma quinta a
Queluz.
O Pedrinho no entanto estava quasi um homem.
Ficara pequenino e nervoso como Maria Eduarda,
tendo pouco da raça, da força dos Maias; a sua
linda
face oval d'um trigueiro calido, dois olhos maravilhosos
e irresistiveis; promptos sempre a humedecer-se,
faziam-n'o assemelhar a um bello arabe. Desenvolvera-se
lentamente, sem curiosidades, indifferente
a brinquedos, a animaes, a flores, a livros. Nenhum
desejo forte parecera jámais vibrar n'aquella
alma meia adormecida e passiva: só ás vezes dizia
que gostaria muito de voltar para a Italia. Tomára
birra ao Padre Vasques, mas não ousava desobedecer-lhe.
Era em tudo um fraco; e esse abatimento
continuo de todo o seu ser resolvia-se a espaços
em crises de melancolia negra, que o traziam dias e
dias mudo, murcho, amarello, com as olheiras fundas
e já velho. O seu unico sentimento vivo, intenso,
até
ahi, fôra a paixão pela mãe.
Affonso quizera-o mandar para Coimbra. Mas, á
idéa de se separar do seu Pedro, a pobre senhora
cahira de joelhos deante d'Affonso, balbuciando e
tremendo: e elle, naturalmente, lá cedeu perante essas
mãos supplicantes, essas lagrimas que cahiam
quatro a quatro pela pobre face de cera. O menino
continuou em Bemfica dando os seus lentos passeios
a cavallo, de creado de farda atraz, começando
já a ir beber a sua genebra aos botequins de
Lisboa... Depois foi despontando n'aquella
organisação
[23]
uma grande tendencia amorosa: aos dezenove
annos teve o seu bastardosinho.
Affonso da Maia consolava-se pensando que, apesar
de tão desgraçados mimos, não faltavam
ao rapaz
qualidades: era muito esperto, são, e, como todos os
Maias, valente: não havia muito que elle só, com
um
chicote, dispersara na estrada tres saloios de varapau
que lhe tinham chamado
palmito.
Quando a mãe morreu, n'uma agonia terrivel de
devota, debatendo-se dias nos pavores do inferno,
Pedro teve na sua dôr os arrebatamentos d'uma loucura.
Fizera a promessa hysterica, se ella escapasse,
de dormir durante um anno sobre as lageas do pateo:
e levado o caixão, sahidos os padres, cahio n'uma
angustia soturna, obtusa, sem lagrimas, de que não
queria emergir, estirado de bruços sobre a cama
n'uma obstinação de penitente. Muitos mezes ainda
não o deixou uma tristeza vaga: e Affonso da Maia
já se desesperava de ver aquelle rapaz, seu filho
e seu herdeiro, sahir todos os dias a passos de
monge, lugubre no seu luto pesado, para ir visitar a
sepultura da mamã...
Esta dôr exagerada e morbida cessou por fim; e
succedeu-lhe, quasi sem transição, um periodo de
vida dissipada e turbulenta, estroinice banal, em que
Pedro, levado por um romantismo torpe, procurava
affogar em lupanares e botequins as saudades da
mamã. Mas essa exhuberancia anciosa que se desencadeara
tão subitamente, tão tumultuosamente, na sua
natureza desequilibrada, gastou-se depressa tambem.
[24]
Ao fim d'um anno de disturbios no Marrare, de façanhas
nas esperas de toiros, de cavallos esfalfados,
de pateadas em S. Carlos, começaram a reapparecer
as antigas crises de melancolia nervosa; voltavam
esses dias taciturnos, longos como desertos, passados
em casa a bocejar pelas salas, ou sob alguma
arvore da quinta todo estirado de bruços, como despenhado
n'um fundo de amargura. N'esses periodos
tornava-se tambem devoto: lia Vidas de Santos, visitava
o Lausperenne: eram d'esses bruscos abatimentos
d'alma que outr'ora levavam os fracos aos mosteiros.
Isto penalisava Affonso da Maia: preferia saber
que elle recolhera de Lisboa, de madrugada, exhausto
e bebedo,—do que vel-o, de ripanço debaixo do
braço, com um ar velho, marchando para a Egreja
de Bemfica.
E havia agora uma idéa que, a seu pesar, às vezes
o torturava: descobrira a grande parecença de
Pedro com um avô de sua mulher, um Runa, de quem
existia um retrato em Bemfica: este homem extraordinario,
com que na casa se mettia medo ás creanças,
enlouquecera—e julgando-se Judas enforcara-se
n'uma figueira...
Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da
Maia amava! Era um amor á Romeu, vindo de repente
n'uma troca de olhares fatal e deslumbradora,
uma d'essas paixões que assaltam uma existencia,
a assolam como um furacão, arrancando a vontade,
a rasão, os respeitos humanos e empurrando-os de
roldão aos abysmos.
[25]
N'uma tarde, estando no Marrare, vira parar defronte,
á porta de M.
me Levaillant, uma
caleche azul
onde vinha um velho de chapéo branco, e uma senhora
loira, embrulhada n'um chale de Cashmira.
O velho, baixote e reforçado, de barba muito grisalha
talhada por baixo do queixo, uma face tisnada
d'antigo embarcadiço e o ar gôche, desceu todo
encostado
ao trintanario como se um rheumatismo o tolhesse,
entrou arrastando a perna o portal da modista;
e ella voltando de vagar a cabeça olhou um
momento o Marrare.
Sob as rosinhas que ornavam o seu chapeu preto
os cabellos loiros, d'um oiro fulvo, ondeavam de leve
sobre a testa curta e classica: os olhos maravilhosos
illuminavam-n'a toda; a friagem fazia-lhe mais pallida
a carnação de marmore: e com o seu perfil
grave de estatua, o modelado nobre dos hombros e
dos braços que o chale cingia—pareceu a Pedro
n'esse
instante alguma cousa d'immortal e superior á terra.
Não a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de
bigodes negros, vestido de negro, que fumava encostado
á outra hombreira, n'uma
pose de tedio—vendo
o violento interesse de Pedro, o olhar acceso
e perturbado com que seguia a caleche trotando
Chiado acima, veiu tomar-lhe o braço, murmurou-lhe
junto á face na sua voz grossa e lenta:
—Queres que te diga o nome, meu Pedro? O
nome, as origens, as datas e os feitos principaes?
E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar,
uma garrafa de Champagne?
[26]
Veiu o Champagne. E o Alencar, depois de passar
os dedos magros pelos anneis da cabelleira e pelas
pontas do bigode, começou, todo recostado e dando
um puchão aos punhos:
—Por uma dourada tarde d'outomno...
—André, gritou Pedro ao creado, martellando o
marmore da mesa, retira o Champagne!
O Alencar bradou, imitando o actor Epiphanio:
—O quê! Sem saciar a avidez de meu labio?...
Pois bem, o Champagne ficaria: mas o amigo Alencar,
esquecendo que era o poeta das
Vozes
d'Aurora,
explicaria aquella gente da caleche azul n'uma linguagem
christã e pratica!...
—Ahi vae, meu Pedro, ahi vae!
Havia dois annos, justamente quando Pedro perdera
a mamã, aquelle velho, o papá Monforte, uma
manhã rompera subitamente pelas ruas e pela sociedade
de Lisboa n'aquella mesma caleche com
essa bella filha ao seu lado. Ninguem os conhecia.
Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no
palacete dos Vargas; e a rapariga principiou a apparecer
em S. Carlos, fazendo uma impressão—uma
impressão de causar aneurismas, dizia o Alencar!
Quando ella atravessava o salão os hombros vergavam-se
no deslumbramento de auréola que vinha
d'aquella magnifica creatura, arrastando com um
passo de Deusa a sua cauda de côrte, sempre decotada
como em noites de gala, e apesar de solteira
resplandecente de joias. O papá nunca lhe dava o
braço: seguia atraz, entalado n'uma grande gravata
[27]
branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais
embarcadiço na claridade loira que sahia da filha,
encolhido e quasi apavorado, trazendo nas mãos o oculo,
o
libretto, um saco de
bonbons, o leque e o seu
proprio guardachuva. Mas era no camarote, quando
a luz cahia sobre o seu collo eburneo e as suas tranças
de oiro, que ella offerecia verdadeiramente a
encarnação
d'um ideal da Renascença, um modelo de
Ticiano... Elle, Alencar, na primeira noite em que
a vira, exclamara, mostrando-a a ella e ás outras,
ás trigueirotas da assignatura:
—Rapazes! é como um ducado de ouro novo entre
velhos patacos do tempo do Sr. D. João VI!
O Magalhães, esse torpe pirata, pozera o dito n'um
folhetim do
Portuguez. Mas o dito
era d'elle, Alencar!
Os rapazes, naturalmente, começaram logo a rondar
o palacete de Arroios. Mas nunca n'aquella casa
se abria uma janella. Os criados interrogados disseram
apenas que a menina se chamava Maria, e que
o senhor se chamava Manoel. Emfim uma creada,
amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem era
taciturno, tremia deante da filha, e dormia n'uma
rêde; a senhora, essa, vivia n'um ninho de sedas
todo azul-ferrête, e passava o seu dia a ler novellas.
Isto não podia satisfazer a sofreguidão de
Lisboa.
Fez-se uma devassa methodica, habil, paciente...
Elle, Alencar, pertencera á devassa.
E souberam-se horrores. O papá Monforte era dos
Açores; muito moço, uma facada n'uma rixa, um
cadaver a uma esquina tinham-n'o forçado a fugir
[28]
a bordo d'um brigue americano. Tempos depois um
certo Silva, procurador da casa de Taveira, que o
conhecera nos Açores, estando na Havana a estudar a
cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar
nas Ilhas encontrára lá o Monforte (que
verdadeiramente
se chamava Forte) rondando pelo caes, de
chinellas de esparto, á procura de embarque para a
Nova-Orleans. Aqui havia uma treva na historia do
Monforte. Parece que servira algum tempo de feitor
n'uma plantação da Virginia... Emfim, quando
reappareceu
á face dos céos commandava o brigue
Nova
Linda, e levava cargas de pretos para o Brazil, para
a Havana e para a Nova Orleans.
Escapara aos cruzeiros inglezes, arrancára uma
fortuna da pelle do africano, e agora rico, homem
de bem, proprietario, ia ouvir a Corelli a S. Carlos.
Todavia esta terrivel chronica, como dizia o Alencar,
obscura e mal provada, claudicava aqui e além...
—E a filha? perguntou Pedro, que o escutara,
serio e pallido.
Mas isso não o sabia o amigo Alencar. Onde a
arranjara assim tão loira e bella? Quem fôra a
mamã?
Onde estava? Quem a ensinara a embrulhar-se com
aquelle gesto real no seu chale de Cashmira?...
—Isso, meu Pedro, são
mysterios que jámais poude Lisboa
astuta devassar e só Deus sabe!
Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquella legenda
de sangue e negros, o enthusiasmo pela Monforte
[29]
calmou. Que diabo! Juno tinha sangue de assassino,
a
beltà do Ticiano era
filha de negreiro! As
senhoras, deliciando-se em villipendiar uma mulher
tão loira, tão linda e com tantas joias,
chamaram-lhe
logo a
negreira! Quando ella
apparecia agora no theatro,
D. Maria da Gama affectava esconder a face detraz
do leque, porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo
quando ella usava os seus bellos rubis) o sangue
das facadas que dera o papázinho! E tinham-n'a
calumniado abominavelmente. Assim, depois de passarem
em Lisboa o primeiro inverno, os Monfortes
sumiram-se: pois disse-se logo, com furor, que estavam
arruinados, que a policia perseguia o velho,
mil perversidades... O excellente Monforte, que soffre
de rheumatismos articulares, achava-se tranquillamente,
ricamente, tomando as aguas dos Piryneus...
Fora lá que o Mello os conhecera...
—Ah! o Mello conhece-os? exclamou Pedro.
—Sim, meu Pedro, o Mello os conhece.
Pedro d'ahi a um momento deixou o Marrare; e
n'essa noite, antes de recolher, apesar da chuva fria
e miuda, andou rondando uma hora, com a
imaginação
toda accesa, o palacete dos Vargas apagado e
mudo. Depois, d'ahi a duas semanas o Alencar, entrando
em S. Carlos ao fim do primeiro acto do
Barbeiro, ficou assombrado ao ver
Pedro da Maia
installado na frisa da Monforte, á frente, ao lado de
Maria, com uma camelia escarlate na casaca—egual
ás d'um ramo pousado no rebordo de velludo.
Nunca Maria Monforte apparecera mais bella: tinha
[30]
uma d'essas
toilettes excessivas e
theatraes que offendiam
Lisboa, e faziam dizer ás senhoras que ella se
vestia «como uma comica». Estava de seda
côr de
trigo, com duas rosas amarellas e uma espiga nas
tranças, opalas sobre o collo e nos braços; e
estes
tons de ceara madura batida do sol, fundindo-se com
o ouro dos cabellos, illuminando-lhe a carnação
eburnea,
banhando as suas fórmas de estatua, davam-lhe
o esplendor d'uma Ceres. Ao fundo entreviam-se os
grandes bigodes loiros do Mello, que conversava de
pé com o papá Monforte—escondido como sempre
no canto negro da frisa.
O Alencar foi observar «o caso» do camarote dos
Gamas. Pedro voltára á sua cadeira, e de
braços cruzados
contemplava Maria. Ella conservou algum tempo
a sua attitude de Deusa insensivel; mas, depois, no
duetto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos
azues e profundos se fixaram n'elle, gravemente e
muito tempo. O Alencar, correu ao Marrare, de braços
ao ar, a berrar a novidade.
Não tardou de resto a fallar-se em toda a Lisboa
da paixão de Pedro da Maia pela
negreira. Elle tambem
namorou-a publicamente, á antiga, plantado a
uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com
os olhos cravados na janella d'ella, immovel e pallido
d'extasi.
Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas
de papel—poemas desordenados que ia compôr
para o Marrare: e ninguem lá ignorava o destino
d'aquellas paginas de linhas encruzadas que se accumulavam
[31]
deante d'elle sobre o taboleiro da genebra.
Se algum amigo vinha á porta do café perguntar
por Pedro da Maia, os criados já respondiam
muito naturalmente:
—O sr. D. Pedro? Está a escrever á menina.
E elle mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe
a mão, exclamava radiante, com o seu bello e
franco sorriso:
—Espera ahi um bocado, rapaz, estou a escrever
á Maria!
Os velhos amigos de Affonso da Maia que vinham
fazer o seu
whist a Bemfica,
sobretudo o Villaça, o
administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade
da casa, não tardaram em lhe trazer a nova d'aquelles
amores do Pedrinho. Affonso já os suspeitava: via
todos os dias um criado da quinta partir com um
grande ramo das melhores camelias do jardim;
todas as manhãs cedo encontrava no corredor o
escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirar
regaladamente o perfume d'um enveloppe com
sinete de lacre dourado;—e não lhe desagradava que
um sentimento qualquer, humano e forte, lhe fosse
arrancando o filho á estroinice bulhenta, ao jogo,
ás
melancolias sem rasão em que reapparecia o negro
ripanço...
Mas ignorava o nome, a existencia sequer dos Monfortes;
e as particularidades que os amigos lhe revelaram,
aquella facada nos Açores, o chicote de feitor
na Virginia, o brigue
Nova Linda,
toda a sinistra legenda
do velho contrariou muito Affonso da Maia.
[32]
Uma noite que o coronel Sequeira, á mesa do
whist,
contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando
a cavallo, «ambos muito bem e muito
distingués»,
Affonso, depois d'um silencio, disse com um ar enfastiado:
—Emfim, todos os rapazes teem as suas amantes...
Os costumes são assim, a vida é assim, e
seria absurdo querer reprimir taes cousas. Mas essa
mulher, com um pae d'esses, mesmo para amante
acho má.
O Villaça suspendeu o baralhar das cartas, e ageitando
os oculos d'ouro exclamou com espanto:
—Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor,
é uma menina honesta!...
Affonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos
começaram a tremer-lhe; e voltando-se para o administrador,
n'uma voz que tremia um pouco tambem:
—O Villaça de certo não suppõe que
meu filho
queira casar com essa creatura...
O outro emmudeceu. E foi o Sequeira que murmurou:
—Isso não, está claro que não...
E o jogo continuou algum tempo em silencio.
Mas Affonso da Maia principiou a andar descontente.
Passavam-se semanas que Pedro não jantava em Bemfica.
De manhã, se o via, era um momento, quando
elle descia ao almoço, já com uma luva
calçada, apressado
e radiante, gritando para dentro se estava sellado
o cavallo; depois, mesmo de pé, bebia um gole de
chá,
perguntava a correr «se o papá queria alguma
cousa»,
[33]
dava um geito ao bigode deante do grande espelho
de Veneza sobre o fogão, e lá partia, enlevado.
Outras
vezes todo o dia não sahia do quarto: a tarde descia,
accendiam-se as luzes; até que o pae, inquieto, subia,
ia encontral-o estirado sobre o leito, com a cabeça
enterrada
nos braços.
—Que tens tu?—perguntava-lhe.
—Enchaqueca,—respondia n'um tom surdo e
rouco.
E Affonso descia indignado, vendo em toda aquella
angustia covarde alguma carta que não viera, ou talvez
uma rosa offerecida que não fôra posta nos
cabellos...
Depois, por vezes, entre dois
robbers ou conversando
em volta da bandeja do chá, os seus amigos
tinham observações que o inquietavam, partindo
d'aquelles homens que habitavam Lisboa, lhe conheciam
os rumores—emquanto elle passava alli, inverno
e verão, entre os seus livros e as suas rosas. Era o
excellente Sequeira que perguntava porque não
faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, á
Allemanha, ao Oriente? Ou o velho Luiz Runa, o
primo d'Affonso, que, a proposito de cousas indifferentes,
rompia lamentando os tempos em que o
Intendente da policia podia livremente expulsar de
Lisboa as pessoas importunas... Evidentemente alludiam
á Monforte, evidentemente julgavam-n'a perigosa.
No verão, Pedro partiu para Cintra; Affonso soube
que os Monfortes tinham lá alugado uma casa. Dias
[34]
depois o Villaça appareceu em Bemfica, muito preoccupado:
na vespera Pedro visitara-o no cartorio,
pedira-lhe informações sobre as suas
propriedades,
sobre o meio de levantar dinheiro. Elle lá lhe dissera
que em setembro, chegando á sua maioridade, tinha
a legitima da mamã...
—Mas não gostei d'isto, meu senhor, não gostei
d'isto...
—E porque, Villaça? O rapaz quererá dinheiro,
quererá dar presentes á creatura... O amor
é um
luxo caro, Villaça.
—Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus
o ouça!
E aquella confiança tão nobre de Affonso da Maia
no orgulho patricio, nos brios de raça de seu filho,
chegava a tranquillisar Villaça.
D'ahi a dias, Affonso da Maia viu emfim Maria
Monforte. Tinha jantado na quinta do Sequeira ao pé
de Queluz, e tomavam ambos o seu café no mirante,
quando entrou pelo caminho estreito que seguia o
muro a caleche azul com os cavallos cobertos de
redes. Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate,
trazia um vestido côr de rosa cuja roda, toda em
folhos, quasi cobria os joelhos de Pedro sentado ao
seu lado: as fitas do seu chapéo, apertadas n'um
grande laço que lhe enchia o peito, eram tambem
côr
de rosa: e a sua face, grave e pura como um marmore
grego, apparecia realmente adoravel, illuminada
pelos olhos d'um azul sombrio, entre aquelles
tons rosados. No assento defronte, quasi todo tomado
[35]
por cartões de modista, encolhia-se o Monforte, de
grande chapéo panamá, calça de ganga,
o mantelete
da filha no braço, o guarda sol entre os joelhos. Iam
callados, não viram o mirante; e, no caminho verde
e fresco, a caleche passou com balanços lentos, sob
os ramos que roçavam a sombrinha de Maria. O Sequeira
ficara com a chavena de café junto aos labios,
de olho esgazeado, murmurando:
—Caramba! É bonita!
Affonso não respondeu: olhava cabisbaixo aquella
sombrinha escarlate, que agora se inclinava sobre Pedro,
quasi o escondia, parecia envolvel-o todo—como
uma larga mancha de sangue alastrando a caleche
sob o verde triste das ramas.
O outono passou, chegou o inverno, frigidissimo.
Uma manhã, Pedro entrou na livraria onde o pae
estava lendo junto ao fogão; recebeu-lhe a
benção,
passou um momento os olhos por um jornal aberto,
e voltando-se bruscamente para elle:
—Meu pae,—disse, esforçando-se por ser claro
e decidido—venho pedir-lhe licença para casar com
uma senhora que se chama Maria Monforte.
Affonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e
n'uma voz grave e lenta:
—Não me tinhas fallado d'isso... Creio que é a
filha
d'um assassino, d'um negreiro, a quem chamam
tambem a
negreira...
—Meu pae!...
Affonso ergueu-se diante d'elle, rigido e inexoravel
como a encarnação mesma da honra domestica.
[36]
—Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de
vergonha.
Pedro, mais branco que o lenço que tinha na mão,
exclamou todo a tremer, quasi em soluços:
—Pois póde estar certo, meu pae, que hei de casar!
Sahiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor
gritou pelo escudeiro, muito alto para que o
pae ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas
ao hotel da Europa.
Dois dias depois Villaça entrou em Bemfica, com as
lagrimas nos olhos, contando que o menino casára
n'essa madrugada—e segundo lhe dissera o Sergio,
procurador do Monforte, ia partir com a noiva para
a Italia.
Affonso da Maia sentára-se n'esse instante á mesa
do almoço, posta ao pé do fogão: ao
centro, um ramo
esfolhava-se n'um vaso do Japão, á chamma forte
da
lenha: e junto ao talher de Pedro estava o numero
da
Grinalda, jornal de versos que
elle costumava receber...
Affonso ouviu o procurador, grave e mudo,
continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo.
—Já almoçou, Villaça?
O procurador, assombrado d'aquella serenidade,
balbuciou:
—Já almocei, meu senhor...
Então Affonso, apontando para o talher de Pedro,
disse ao escudeiro:
—Póde tirar d'alli esse talher, Teixeira. D'aqui
por diante ha só um talher á mesa... Sente-se,
Villaça,
sente-se.
[37]
O Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indifferença
o talher do menino. Villaça sentára-se.
Tudo em redor era correto e calmo como nas outras
manhãs em que almoçara em Bemfica. Os passos do
escudeiro não faziam ruido no tapete fofo; o lume
estalava alegremente, pondo retoques d'ouro nas pratas
polidas; o sol discreto que brilhava fóra no azul
d'inverno fazia scintillar crystaes de geada nas ramas
seccas; e á janella o papagaio, muito patulêa e
educado
por Pedro, rosnava injurias aos Cabraes.
Por fim Affonso ergueu-se; esteve olhando abstrahidamente
a quinta, os pavões no terrasso; depois
ao sahir da sala tomou o braço de Villaça,
apoiou-se
n'elle com força, como se lhe tivesse chegado a primeira
tremura da velhice, e no seu abandono sentisse
alli uma amizade segura. Seguiram o corredor,
callados. Na livraria Affonso foi occupar a sua poltrona
ao pé da janella, começou a encher de vagar o
seu cachimbo. Villaça, de cabeça baixa, passeava
ao
comprido das altas estantes, nas pontas dos pés, como
no quarto d'um doente. Um bando de pardaes veiu
gralhar um momento nos ramos d'uma alta arvore
que roçava a varanda. Depois houve um silencio, e
Affonso da Maia disse:
—Então, Villaça, o Saldanha lá foi
demittido do
Paço?...
O outro respondeu, vaga e machinalmente:
—É verdade, meu senhor, é verdade...
E não se fallou mais de Pedro da Maia.
II
Pedro e Maria, no entanto, n'uma felicidade de novella,
iam descendo a Italia, a pequenas jornadas, de
cidade em cidade, n'essa via sagrada que vae desde
as flores e das messes da planicie lombarda até ao
molle paiz de romanza, Napoles, branca sob o azul.
Era lá que tencionavam passar o inverno, n'esse ar
sempre tepido junto a um mar sempre manso, onde
as preguiças de noivado teem uma suavidade mais
longa... Mas um dia, em Roma, Maria sentiu o appetite
de Paris. Parecia-lhe fatigante o viajar assim, aos
balouços das caleças, só para ir ver
lazzaroni engolir
fios de macarrão. Quanto melhor seria habitar um
ninho acolchoado nos Campos Elyseos, e gozarem
alli um lindo inverno de amor! Paris estava seguro,
agora, com o principe Luiz Napoleão... Além
d'isso,
[40]
aquella velha Italia classica enfastiava-a já: tantos
marmores
eternos, tantas
madonas
começavam (como
ella dizia pendurada languidamente do pescoço de
Pedro) a dar tonturas á sua pobre cabeça!
Suspirava
por uma boa loja de modas, sob as chammas
do gaz, ao rumor do boulevard... Depois tinha medo
da Italia onde todo mundo conspirava.
Foram para França.
Mas por fim aquelle Paris ainda agitado, onde
parecia restar um vago cheiro de polvora pelas ruas,
onde cada face conservava um calor de batalha, desagradou
a Maria. De noite accordava com a
Marselheza;
achava um ar feroz á policia; tudo permanecia
triste; e as duquezas, pobres anjos, ainda não ousavam
vir ao
Bois, com medo dos operarios,
corja insaciavel!
Emfim demoraram-se lá até a primavera,
no ninho que ella sonhára, todo de velludo azul,
abrindo sobre os Campos Elyseos.
Depois principiou a fallar-se de novo em
revolução,
em golpe d'estado. A admiração absurda de Maria
pelos novos uniformes da
garde-mobile fazia Pedro nervoso.
E quando ella appareceu gravida, anciou por
a tirar d'aquelle Paris batalhador e fascinante, vir abrigal-a
na pacata Lisboa adormecida ao sol.
Antes de partir porém escreveu ao pae.
Fôra um conselho, quasi uma exigencia de Maria.
A recusa de Affonso da Maia ao principio desesperara-a.
Não a affligia a desunião domestica: mas
aquelle
não affrontoso de
fidalgo puritano marcara
muito publicamente, muito brutalmente, a sua origem
[41]
suspeita! Odiou o velho: e tinha apressado o casamento,
aquella partida triumphante para Italia, para
lhe mostrar bem que nada valiam genealogias, avós
godos, brios de familia—deante dos seus braços
nus... Agora porém que ia voltar a Lisboa, dar
soirées,
crear côrte, a reconciliação tornava-se
indispensavel;
aquelle pae retirado em Bemfica, com o
rigido orgulho de outras edades, faria lembrar constantemente,
mesmo entre os seus espelhos e os seus
estofos, o brigue
Nova Linda
carregado de negros...
E queria mostrar-se a Lisboa pelo braço d'esse sogro
tão nobre e tão ornamental, com as suas barbas
de Viso-rei.
—Dize-lhe que já o adoro, murmurava ella curvada
sobre a escrivaninha acariciando os cabellos
de Pedro. Dize-lhe que se tiver um pequeno lhe hei
de pôr o nome d'elle... Escreve-lhe uma carta bonita,
hein!
E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao papá.
O pobre rapaz amava-o. Fallou-lhe commovido da
esperança de ter um filho varão; as
desintelligencias
deviam findar em torno do berço d'aquelle pequeno
Maia que alli vinha, morgado e herdeiro do
nome... Contava-lhe a sua felicidade, com uma effusão
de namorado indiscreto: a historia da bondade
de Maria, das suas graças, da sua
instrucção, enchia
duas paginas: e jurava-lhe que apenas chegasse não
tardaria uma hora em ir atirar-se aos seus pés...
Com effeito, apenas desembarcou, correu n'um trem
a Bemfica. Dois dias antes o pae partira para S.
ta
Olavia:
[42]
isto pareceu-lhe uma desfeita—e feriu-o acerbamente.
Fez-se então entre o pae e o filho uma grande
separação.
Quando lhe nasceu uma filha Pedro não lh'o
participou—dizendo dramaticamente ao Villaça «que
já não tinha pae!» Era uma linda
bébé, muito gorda,
loira e côr de rosa, com os bellos olhos negros dos
Maias. Apesar do desejo de Pedro, Maria não a quiz
crear; mas adorava-a com phrenesi; passava dias
de joelhos ao pé do berço, em extasi, correndo as
suas mãos cheias de pedrarias pelas carninhas tenras;
pondo-lhe beijos de devota nos pésinhos, na rosquinha
das côxas, balbuciando-lhe n'um enlevo nomes
de grande amor, e perfumando-a já, enchendo-a
já de laçarotes.
E n'estes delirios pela filha, brotava, mais amarga,
a sua colera contra Affonso da Maia. Considerava-se
então insultada em si mesma e n'aquelle cherubim
que lhe nascera. Injuriava o velho grosseiramente,
chamava-lhe o
D. Fuas, o
Barbatanas...
Pedro um dia ouviu isto, e escandalisou-se: ella
replicou desabridamente: e deante d'aquella face
abrazada, onde entre lagrimas os olhos azues pareciam
negros de colera, elle só poude balbuciar timidamente:
—É meu pae, Maria...
Seu pae! E á face de toda a Lisboa tratava-a
então
como uma concubina! Podia ser um fidalgo, as
maneiras eram de villão. Um
D.
Fuas, um
Barbatanas,
nada mais!...
[43]
Arrebatou a filha, e abraçada n'ella, romperam as
queixas por entre os prantos:
—Ninguem nos ama, meu anjo! Ninguem te quer!
Tens só a tua mãe! Tratam-te como se fosses
bastarda!
A bebé, sacudida nos braços da mãe,
desatou a
gritar. Pedro correu, envolveu-as ambas no mesmo
abraço, já enternecido, já humilde; e
tudo terminou
n'um longo beijo.
E elle, por fim, no seu coração, justificava
aquella
colera de mãe que vê desprezado o seu anjo. De
resto, mesmo alguns amigos de Pedro, o Alencar, o
D. João da Cunha, que começavam agora a
frequentar
Arroios, riam d'aquella obstinação de pae
gothico,
amuado na provincia, porque sua nora não tivera
avós mortos em Aljubarrota! E onde havia outra em
Lisboa, com aquellas
toilettes,
aquella graça, recebendo
tão bem? Que diabo, o mundo marchara, sahira-se
já das attitudes empertigadas do seculo XVI!
E o proprio Villaça, um dia que Pedro lhe fôra
mostrar a pequerruchinha adormecida entre as rendas
do seu berço, sensibilisou-se, veio-lhe uma das suas
faceis lagrimas, declarou, com a mão no
coração,
que aquillo era uma caturrice do sr. Affonso da Maia!
—Pois peior para elle! não querer ver um anjo
d'estes! disse Maria, dando deante do espelho um
lindo geito ás flores do cabello. Tambem não faz
cá
falta...
E não fazia falta. N'esse outubro, quando a pequena
completou o seu primeiro anno, houve um grande
[44]
baile na casa de Arroios, que elles agora occupavam
toda, e que fôra ricamente remobilada. E as senhoras
que outr'ora tinham horror á
negreira, a D. Maria
da Gama que escondia a face por traz do leque,
lá vieram todas, amaveis e decotadas, com o beijinho
prompto, chamando-lhe «querida», admirando as
grinaldas
de camelias que emmolduravam os espelhos
de quatrocentos mil réis, e gozando muito os gelados.
Começara então uma existencia festiva e luxuosa,
que, segundo dizia o Alencar, o intimo da casa, o
cortesão de Madame, «tinham um saborsinho d'orgia
distinguée como os poemas
de Byron.» Eram realmente
as
soirées mais alegres
de Lisboa: ceiava-se á
uma hora com Champagne; talhava-se até tarde um
monte forte; inventavam-se quadros
vivos, em que
Maria se mostrara soberanamente bella sob as roupagens
classicas de Helena ou no luxo sombrio do
luto oriental de Judith. Nas noites mais intimas, ella
costumava vir fumar com os homens uma cigarrilha
perfumada. Muitas vezes, na sala de bilhar, as palmas
estalaram, vendo-a bater á carambola franceza
D. João da Cunha, o grande taco da epoca.
E no meio d'esta festança, atravessada pelo sopro
romantico da Regeneração, lá se via
sempre, taciturno
e encolhido, o papá Monforte, d'alta gravata
branca, com as mãos atraz das costas, rondando pelos
cantos, refugiado pelos vãos das janellas, mostrando-se
só para salvar alguma bobèche que ía
estalar—e
não desprendendo nunca da filha o olho embevecido
e senil.
[45]
Nunca Maria fôra tão formosa. A maternidade
dera-lhe
um esplendor mais copioso; e enchia verdadeiramente,
dava luz áquellas altas salas de Arroios, com
a sua radiante figura de Juno loira, os diamantes das
tranças, o eburneo e o lacteo do collo nu, e o rumor
das grandes sedas. Com rasão, querendo ter, á
maneira
das damas da Renascença, uma flôr que a
symbolisasse,
escolhera a tulipa real opulenta e ardente.
Citavam-se os requintes do seu luxo, roupas brancas,
rendas do valor de propriedades!... Podia fazel-o!
o marido era rico, e ella sem escrupulo arruinal-o-hia,
a elle e ao papá Monforte...
Todos os amigos de Pedro, naturalmente, a amavam.
O Alencar esse proclamava-se com alarido seu
«cavalleiro e seu poeta». Estava sempre em Arroios,
tinha lá o seu talher: por aquellas salas soltava as
suas phrases ressoantes, por esses sophás arrastava
as suas
poses de melancolia. Ia
dedicar a Maria (e
nada havia mais extraordinario que o tom langoroso
e plangente, o olho turvo, fatal, com que elle pronunciava
este nome—
Maria!) ia
dedicar-lhe
o seu poema,
tão annunciado, tão
esperado—
Flor de Martyrio!
E citavam-se as estrophes que lhe fizera ao
gosto cantante do tempo:
Vi-te essa noite no explendor das sallas
Com as loiras tranças volteando louca...
A paixão do Alencar era innocente: mas, dos outros
intimos da casa, mais d'um de certo balbuciara
já a sua declaração no
boudoir azul em que ella recebia
[46]
ás tres horas, entre os seus vasos de tulipas;
as suas amigas porém, mesmo as peiores, affirmavam
que os seus favores nunca teriam passado de alguma
rosa dada n'um vão de janella, ou de algum
longo e suave olhar por traz do leque. Pedro todavia
começava a ter horas sombrias. Sem sentir ciumes,
vinha-lhe ás vezes, de repente, um tedio d'aquella
existencia de luxo e de festa, um desejo violento de
sacudir da sala esses homens, os seus intimos, que
se atropellavam assim tão ardentemente em volta dos
hombros decotados de Maria.
Refugiava-se então n'algum canto, trincando com
furor o charuto: e ahi, era em toda a sua alma
um tropel de cousas dolorosas e sem nome...
Maria sabia perceber bem na face do marido «estas
nuvens», como ella dizia. Corria para elle, tomava-lhe
ambas as mãos, com força, com dominio:
—Que tens tu, amor? Estás amuado!
—Não, não estou amuado...
—Olha então para mim!...
Collava o seu bello seio contra o peito d'elle; as
suas mãos corriam-lhe os braços n'uma caricia
lenta
e quente, dos pulsos aos hombros; depois, com um
lindo olhar, estendia-lhe os labios. Pedro colhia n'elles
um longo beijo, e ficava consolado de tudo.
Durante esse tempo Affonso da Maia não sahia das
sombras de St.
a Olavia, tão esquecido
para lá
como
se estivesse no seu jazigo. Já se não fallava
d'élle;
em Arroios,
D. Fuas estava roendo a
teima. Só Pedro
ás vezes perguntava a Villaça «como ia
o papá.»
[47]
E as noticias do administrador enfureciam sempre
Maria: o papá estava optimo; tinha agora um cosinheiro
francez explendido; St.
a Olavia enchera-se de
hospedes, o Sequeira, André da Ega, D. Diogo Coutinho...
—O
Barbatanas trata-se! ia elle
dizer ao pae com
rancor.
E o velho negreiro esfregava as mãos, satisfeito de
o saber assim feliz em St.
a Olavia; porque nunca
cessara
de tremer á idéa de ver em Arroios, deante de si,
aquelle fidalgo tão severo e de vida tão pura.
Quando porém Maria teve outro filho, um pequeno,
o socego que então se fez em Arroios trouxe de
novo muito vivamente ao coração de Pedro a imagem
do pae abandonado n'aquella tristeza do Douro. Fallou
a Maria de reconciliação, a medo, aproveitando
a fraqueza da convalescença. E a sua alegria foi
grande, quando Maria, depois de ficar um momento
pensativa, respondeu:
—Creio que me havia de fazer feliz tel-o aqui...
Pedro, enthusiasmado com um assentimento tão
inesperado, pensou em abalar para St.
a Olavia.
Mas
ella tinha um plano melhor: Affonso, segundo dizia
o Villaça, devia recolher em breve a Bemfica; pois
bem, ella iria lá com o pequeno, toda vestida de
preto, e de repente, atirando-se-lhe aos pés, pedir-lhe-hia
a benção para seu neto! Não podia
falhar!
Não podia, realmente; e Pedro viu alli uma alta
inspiração
de maternidade...
Para abrandar desde jà o papá, Pedro quiz dar ao
[48]
pequeno o nome de Affonso. Mas n'isso Maria não
consentiu. Andava lendo uma novella de que era heroe
o ultimo Stuart, o romanesco principe Carlos
Eduardo; e, namorada d'elle, das suas aventuras e
desgraças, queria dar esse nome a seu filho... Carlos
Eduardo da Maia! Um tal nome parecia-lhe conter
todo um destino de amores e façanhas.
O baptisado teve de ser retardado; Maria adoecera
com uma angina. Foi muito benigna porém; e d'ahi a
duas semanas Pedro podia já sahir para uma caçada
na sua quinta da
Tojeira, adiante
d'Almada. Devia
demorar-se dois dias. A partida arranjara-se unicamente
para obsequiar um italiano, chegado por
então a Lisboa, distincto rapaz que lhe fôra
apresentado
pelo secretario da Legação Ingleza, e com quem
Pedro sympathisara vivamente; dizia-se sobrinho dos
Principes de Soria; e vinha fugido de Napoles, onde
conspirára contra os Bourbons e fôra condemnado
á
morte. O Alencar e D. João Coutinho iam tambem á
caçada—e a partida foi de madrugada.
N'essa tarde, Maria jantava só no seu quarto,
quando sentiu carruagens parando á porta, um grande
rumor encher a escada; quasi immediatamente Pedro
apparecia-lhe tremulo e enfiado:
—Uma grande desgraça, Maria!
—Jesus!
—Feri o rapaz, feri o napolitano!...
—Como?
Um desastre estupido!... Ao saltar um barranco,
a espingarda dispara-se-lhe, e a carga, zás, vae cravar-se
[49]
no napolitano! Não era possivel fazer curativos
na
Tojeira, e voltaram logo a
Lisboa. Elle naturalmènte
não consentira que o homem que tinha ferido recolhesse
ao hotel: trouxera-o para Arroios, para o
quarto verde por cima, mandara chamar o medico,
duas enfermeiras para o velar, e elle mesmo lá ia
passar a noite...
—E elle?
—Um heroe!... Sorri, diz que não é nada, mas
eu vejo-o pallido como um morto. Um rapaz adoravel!
Isto só a mim, Senhor! E então o Alencar que
ia mesmo ao pé d'elle... Podia antes ter ferido o
Alencar, um rapaz intimo, de confiança! até a
gente
se ria. Mas não, zás, logo o outro, o de
cerimonia...
Uma sege, n'esse instante, entrava o pateo.
—É o medico!
E Pedro abalou.
Voltou, d'ahi a pouco mais tranquillo. O Dr. Guedes
quasi rira d'aquella bagatella, uma chumbada no
braço, e alguns grãos perdidos nas costas.
Promettera-lhe
que d'ahi a duas semanas podia caçar outra
vez na
Tojeira; e o principe estava
já fumando o seu
charuto. Bello rapaz! Parecia sympathisar com o papá
Monforte...
Toda essa noite Maria dormiu mal, na excitação
vaga que lhe dava aquella idéa d'um principe enthusiasta,
conspirador, condemnado á morte, ferido agora
por cima do seu quarto.
Logo de manhã cedo—apenas Pedro sahira a fazer
transportar, elle mesmo, do hotel, as bagagens
[50]
do napolitano—Maria mandou a sua criada franceza
de quarto, uma bella moça d'Arles, acima, saber da
parte d'ella como S. Alteza passara, e «ver que figura
tinha». A arlesiana appareceu, com os olhos brilhantes,
a dizer á senhora, nos seus grandes gestos de
Provençal,
que nunca vira um homem tão formoso! Era
uma pintura de Nosso Senhor Jesus Christo! Que pescoço,
que brancura de marmore! Estava muito pallido
ainda; agradecia enternecido os cuidados de
Madame Maia; e ficara a ler o jornal encostado aos
travesseiros...
Maria, desde então, não pareceu interessar-se
mais
pelo ferido. Era Pedro que vinha, a cada instante,
fallar-lhe d'elle, enthusiasmado por aquella existencia
pathetica de principe conspirador, partilhando já
o seu odio aos Bourbons, encantado com a similitude
de gostos que encontrava n'elle, o mesmo amor da
caça, dos cavallos, das armas. Agora logo de
manhã,
subia para o quarto do Principe, de
robe-de-chambre,
e cachimbo na boca, e passava lá horas n'uma camaradagem,
fazendo
grogs quentes—permittidos
pelo
Dr. Guedes. Levava mesmo para lá os seus amigos,
o Alencar, o D. João da Cunha. Maria sentia-lhes por
cima as risadas. Ás vezes tocava-se viola. E o velho
Monforte, pasmado para o heroe, não cessava de
lhe rondar o leito.
A Arlesiana, essa, tambem a cada momento apparecia
lá a levar toalhas de rendas, um assucareiro
que ninguem reclamara, ou algum vaso com flores
para alegrar a alcova... Maria, por fim, perguntou
[51]
a Pedro, muito seria, se além de todos os amigos da
casa, duas enfermeiras, dois escudeiros, o papá
e elle Pedro—era necessaria tambem constantemente
a sua propria criada no quarto de Sua Alteza!
Não era. Mas Pedro riu muito á idea de que a
Arlesiana
se tivesse namorado do principe. N'esse caso
Venus era-lhe propicia! O napolitano tambem a achava
picante:
un très joli brin de
femme, tinha elle dito.
A bella face de Maria impallideceu de colera. Julgava
tudo isso de mau gosto, grosseiro, impudente! Pedro
fôra realmente um doido em trazer assim para a
intimidade de Arroios um estrangeiro, um fugido, um
aventureiro! Demais, aquella troça em cima, entre
grogs quentes, com guitarra, sem respeito por ella
ainda toda nervosa, toda fraca da convalescença,
indignava-a!
Apenas Sua Alteza podesse accommodar-se
com almofadas n'uma sege, queria-o fóra, na estalagem...
—O que ahi vae! Jesus! o que ahi vae!... disse
Pedro.
—É assim.
E de certo foi muito severa tambem com a Arlesianna,
por que n'essa tarde Pedro encontrou a moça
aos ais no corredor, limpando ao avental os olhos
affogueados.
D'ahi a dias, porém, o napolitano, já
convalescente,
quiz recolher ao seu hotel. Não vira Maria: mas em
agradecimento da sua hospitalidade mandou-lhe um
admiravel ramo, e, com uma galanteria de principe
artista da Renascença, um soneto em italiano enrolado
[52]
entre as flores e tão perfumado como ellas:
comparava-a
a uma nobre dama da Syria dando a gota
de agua da sua bilha ao cavalleiro arabe, ferido na
estrada ardente; comparava-a á Beatriz do Dante.
Isto affigurou-se a todos de uma rara distincção,
e, como disse o Alencar, um rasgo á Byron.
Depois, na
soirée do
baptisado de Carlos Eduardo,
dada d'ahi a uma semana, o napolitano mostrou-se, e
impressionou tudo. Era um homem esplendido, feito
como um Apollo, de uma pallidez de marmore rico:
a sua barba curta e frisada, os seus longos cabellos
castanhos, cabellos de mulher, ondeados e com reflexos
de ouro, apartados á nazarena—davam-lhe
realmente, como dizia a Arlesianna, uma physionomia
de bello Christo.
Dançou apenas uma contradança com Maria, e
pareceu,
na verdade, um pouco taciturno e orgulhoso:
mas tudo n'elle fascinava, a sua figura, o seu mysterio,
até o seu nome de Tancredo. Muitos
corações de
mulher palpitavam quando elle, encostado a uma hombreira,
de claque na mão, uma melancolia na face, exhalando
o encanto pathetico de um condemnado á
morte, derramava lentamente pela sala o langor sombrio
do seu olhar de velludo. A marqueza d'Alvenga,
para o examinar de perto, pediu o braço a Pedro, e
foi applicar-lhe, como a um marmore de museo, a
sua luneta de ouro.
—É de appetite! exclamou ella. É uma imagem!...
E são amigos, são amigos, Pedro?
—Somos como dois irmãos d'armas, minha senhora.
[53]
N'essa mesma soirée, o Villaça
informára Pedro
que o pae era esperado no dia seguinte em Bemfica.
E Pedro, logo que se recolheram, fallou a Maria em
«irem fazer a grande scena ao papá.»
Ella, porém,
recusou, e com as razões mais imprevistas, as mais
sensatas. Tinha cogitado muito! Reconhecia agora
que um dos motivos d'aquella teima do papá—ultimamente
chamava-lhe sempre o papá—era essa extraordinaria
existencia de Arroios...
—Mas filha, disse Pedro, escuta, nós não vivemos
tambem em plena orgia... Alguns amigos que
veem.
Pois sim, pois sim... Mas, realmente, estava
decidida a ter um interior mais calmo e mais domestico.
Era mesmo melhor p'ra os bébés. Pois bem, queria
que o papá estivesse convencido d'essa
transformação,
para que as pazes fossem mais faceis e eternas.
—Deixa passar dois ou tres mezes... Quando elle
souber como nós vivemos quietinhos, eu o trarei, socega...
É bom tambem que seja quando meu pae
partir para as aguas, para os Pyrineos. Que o pobre
papá, coitado, tem medo do teu... Filho, não
achas
assim melhor?
—És um anjo, foi a resposta de Pedro, beijando-lhe
ambas as mãos.
Toda a antiga maneira de Maria pareceu com effeito
ir mudando. Suspendera as
soirées.
Começou a passar
as noites muito recolhidas, com alguns intimos,
no seu
boudoir azul. Já
não fumava; abandonara o
bilhar; e vestida de preto, com uma flôr nos cabellos,
[54]
fazia
crochet ao pé do
candieiro. Estudava-se musica
classica quando vinha o velho Cazoti. O Alencar, que,
imitando a sua dama, entrara tambem na gravidade,
recitava traducções de Klopstock. Fallava-se com
sisudez
de politica; Maria era muito regeneradora.
E todas essas noites, Tancredo lá estava, indolente
e bello, desenhando alguma flôr para ella bordar, ou
tangendo à guitarra canções populares
de Napoles.
Todos alli o adoravam; mas ninguem mais que o velho
Monforte, que passava horas, enterrado na sua
alta gravata, contemplando o Principe com enternecimento.
Depois, de repente, erguia-se, atravessava a
sala, ia-se debruçar sobre elle, palpal-o, sentil-o,
respiral-o,
murmurando no seu francez de embarcadiço:
—
Ça aller bien... Hein? Beaucoup
bien... Ora
estimo...
E estas correntes bruscas de affecto communicavam-se
decerto, porque n'esse momento Maria tinha
sempre um dos seus lindos sorrisos para o papá ou
vinha beijal-o na testa.
De dia occupava-se de cousas serias. Organisara
uma util associação de caridade, a
Obra pia dos cobertores,
com o fim de fazer no inverno ás familias necessitadas
distribuições de agasalhos; e presidia no
salão de Arroios, com uma campainha, as reuniões
em
que se elaboravam os estatutos. Visitava os pobres.
Ia tambem amiudadas vezes a uma devoção
ás Egrejas,
toda vestida de preto, a pé, com um véo muito
espesso no rosto.
O esplendor da sua belleza apparecia agora velado
[55]
por uma sombra tocante de ternura grave: a
Deusa idealisava-se em Madona; e não era raro ouvil-a
de repente suspirar sem razão.
Ao mesmo tempo a sua paixão pela filha crescia.
Tinha então dois annos e estava realmente adoravel;
vinha todas as noites um momento á sala, vestida
com um luxo de princeza; e as exclamações, os
extasis de Tancredo não findavam! Fizera-lhe o retrato
a carvão, a esfuminho, a aguarella; ajoelhava-se
para lhe beijar a mãosinha côr de rosa, como
ao
bambino sagrado. E Maria, agora,
apesar dos protestos
de Pedro, dormia sempre com ella entre os
braços.
Ao começo d'esse setembro o velho Monforte partiu
para os Pyrineos. Maria chorou, dependurada do
pescoço do velho, como se elle largasse de novo para
as travessias de Africa.
Ao jantar, porém, chegou já consolada e radiante;
e Pedro voltou a fallar da reconciliação,
parecendo-lhe
bom o momento de ir a Bemfica recuperar para sempre
aquelle papá tão teimoso...
—Ainda não, disse ella reflectindo, olhando o
seu calice de Bordeus. Teu pae é uma especie de
santo, ainda o não merecemos... Mais para o inverno.
Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva,
Affonso da Maia estava no seu escriptorio lendo,
quando a porta se abriu violentamente, e, alçando
[56]
os olhos do livro, viu Pedro deante de si. Vinha todo
enlameado, desalinhado, e na sua face livida, sob
os cabellos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho
ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra
atirou-se aos braços do pae, rompeu a chorar perdidamente.
—Pedro! que succedeu, filho?
Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o,
á idéa do filho livre para sempre dos Monfortes,
voltando-lhe, trazendo á sua solidão os dois
netos,
toda uma descendencia para amar! E repetia, tremulo
tambem, desprendendo-o de si com grande amor:
—Socega, filho, que foi?
Pedro então cahiu para o canapé, como cae um
corpo morto; e levantando para o pae um rosto devastado,
envelhecido, disse, palavra a palavra, n'uma voz
surda:
—Estive fóra de Lisboa dois dias... Voltei esta
manhã... A Maria tinha fugido de casa com a pequena...
Partiu com um homem, um italiano... E
aqui estou!
Affonso da Maia ficou deante do filho, quedo, mudo,
como uma figura de pedra; e a sua bella face, onde
todo o sangue subira enchia-se pouco a pouco, de
uma grande colera. Viu, n'um relance, o escandalo,
a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela
lama. E era aquelle filho que, despresando a sua auctoridade,
ligando-se a essa creatura, estragara o
sangue da raça, cobria agora a sua casa de vexame.
E alli estava! alli jazia sem um grito, sem um furor,
[57]
um arranque brutal de homem trahido! Vinha atirar-se
para um sophá, chorando miseravelmente! Isto indignou-o,
e rompeu a passeiar pela sala, rigido
e aspero, cerrando os labios para que não lhe escapassem
as palavras de ira e de injuria que lhe enchiam
o peito em tumulto...—Mas era pae: ouvia, alli ao
seu lado, aquelle soluçar de funda dôr; via tremer
aquelle pobre corpo desgraçado que elle outr'ora emballara
nos braços;—parou junto de Pedro, tomou-lhe
gravemente a cabeça entre as mãos, e beijou-o
na testa, uma vez, outra vez, como se elle fosse ainda
creança, restituindo-lhe alli e para sempre a sua
ternura inteira.
—Tinha razão, meu pae, tinha razão, murmurava
Pedro entre lagrimas.
Depois ficaram callados. Fóra, as pancadas successivas
da chuva batiam a casa, a quinta, n'um clamor
prolongado; e as arvores, sob as janellas, ramalhavam
n'um vasto vento de inverno.
Foi Affonso que quebrou o silencio:
—Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu,
filho? Não é só chorar...
—Não sei nada, respondeu Pedro n'um longo
esforço. Sei que fugiu. Eu sahi de Lisboa na segunda
feira. N'essa mesma noite, ella partiu de casa n'uma
carruagem, com uma maleta, o cofre de joias, uma
creada italiana que tinha agora, e a pequena. Disse
á governante e á ama do pequeno que ia ter
comigo.
Ellas estranharam, mas que haviam de dizer?...
Quando voltei, achei esta carta.
[58]
Era um papel já sujo, e desde essa manhã de
certo muitas vezes relido, amarrotado com furia. Continha
estas palavras:
«É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo,
esquece-me que não sou digna de ti, e levo
a Maria que me não posso separar d'ella.»
—E o pequeno, onde está o pequeno? exclamou
Affonso.
Pedro pareceu recordar-se:
—Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.
O velho correu, logo; e d'ahi a pouco apparecia,
erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa
branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo,
de olhos muito negros, com uma adoravel bochecha
fresca e côr de rosa. Todo elle ria, grulhando, agitando
o seu guiso de prata. A ama não passou da
porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxasinha
na mão.
Affonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e
accommodou o neto no collo. Os olhos enchiam-se-lhe
de uma bella luz de ternura; parecia esquecer a agonia
do filho, a vergonha domestica; agora só havia
ali aquella facesinha tenra, que se lhe babava nos
braços...
—Como se chama elle?
—Carlos Eduardo, murmurou a ama.
—Carlos Eduardo, hein?
Ficou a olhal-o muito tempo, como procurando
n'elle os signaes da sua raça: depois tomou-lhe na
sua as duas mãosinhas vermelhas que não largavam
[59]
o guiso, e muito grave, como se a creança o percebesse,
disse-lhe:
—Olha bem para mim. Eu sou o avô. É necessario
amar o avô!
E áquella forte voz, o pequeno, com effeito, abriu
os seus lindos olhos para elle, serios de repente,
muito fixos, sem medo das barbas grisalhas: depois
rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a
mãosinha,
e martellou-lhe furiosamente a cabeça com o
guiso.
Toda a face do velho sorria áquella viçosa
alegria;
apertou-o ao seu largo peito muito tempo, poz-lhe
na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu
primeiro beijo d'avô; depois, com todo o cuidado, foi
collocal-o nos braços da ama.
—Vá, ama, vá... A Gertrudes já
lá anda a
arranjar-lhe o quarto, vá vêr o que é
necessario.
Fechou a porta, e veiu sentar-se junto do filho
que se não movera do canto do sophá, nem
despregára
os olhos do chão.
—Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha
que nos não vemos ha tres annos, filho...
—Ha mais de tres annos, murmurou Pedro.
Ergueu-se, allongou a vista á quinta, tão triste
sob a chuva; depois, derramando-a morosamente pela
livraria, considerou um momento o seu proprio retrato,
feito em Roma aos doze annos, todo de velludo
azul, com uma rosa na mão. E repetia ainda
amargamente:
—Tinha razão, meu pae, tinha razão...
[60]
E pouco a pouco, passeiando e suspirando, começou
a fallar d'aquelles ultimos annos, o inverno passado
em Paris, a vida em Arroios, a intimidade do
italiano na casa, os planos de reconciliação, por
fim
aquella carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade,
arremessando-lhe o nome do outro!... No
primeiro momento tivera só idéas de sangue e
quizera
perseguil-os. Mas conservava um clarão de razão.
Seria ridiculo, não é verdade? De certo a fuga
fora
d'antemão preparada, e não havia de ir correndo
as
estalagens da Europa á busca de sua mulher... Ir
lamentar-se á policia, fazel-os prender? Uma imbecillidade;
nem impedia que ella fosse já por esses
caminhos fóra dormindo com outro... Restava-lhe
sómente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera
alguns annos, e fugira com um homem. Adeus!
Ficava-lhe um filho, sem mãe, com um mau nome.
Paciencia! Necessitava esquecer, partir para uma
longa viagem, para a America talvez; e o pae veria,
havia de voltar consolado e forte.
Dizia estas cousas sensatas, passeiando devagar,
com o charuto apagado nos dedos, n'uma voz que se
calmava. Mas de repente parou deante do pae, com
um riso secco, um brilho-feroz nos olhos.
—Sempre desejei ver a America, e é boa occasião
agora... É uma occasião famosa, hein? Posso
até naturalisar-me, chegar a presidente, ou
rebentar...
Ah! Ah!
—Sim, mais tarde, depois pensarás n'isso, filho,
accudiu o velho assustado.
[61]
N'esse momento a sineta do jantar começou a tocar
lentamente, ao fundo do corredor.
—Ainda janta cedo, hein? disse Pedro.
Teve um suspiro cançado e lento, murmurou:
—Nós jantavamos ás sete...
Quiz então que o pae fosse para a mesa. Não havia
motivo para que se não jantasse. Elle ia um bocado
acima, ao seu antigo quarto de solteiro... Ainda lá
tinha a cama, não é verdade? Não,
não queria tomar
nada...
—O Teixeira que me leve um calice de genebra...
Ainda cá está o Teixeira, coitado!
E vendo Affonso sentado, repetiu, já impaciente:
—Vá jantar meu pae, vá jantar, pelo amor de
Deus...
Saiu. O pae ouviu-lhe os passos por cima, e o
ruido de janellas desabridamente abertas. Foi então
andando para a sala de jantar, onde os criados
que pela ama sabiam de certo o desgosto se moviam
em pontas de pés, com a lentidão contristada
d'uma
casa onde ha morte. Affonso sentou-se á mesa só;
mas já lá estava outra vez o talher de Pedro;
rosas
de inverno esfolhavam-se n'um vaso do Japão; e o
velho papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosamente
no
poleiro.
Affonso tomou uma colher de sopa, depois rolou
a sua poltrona para junto do fogão; e ali ficou envolvido
pouco a pouco n'aquelle melancolico crepusculo
de dezembro, com os olhos no lume, escutando o sudoeste
contra as vidraças, pensando em todas as cousas
[62]
terriveis que assim invadiam n'um tropel pathetico
á sua paz de velho. Mas no meio da sua dôr,
funda como era, elle percebia um ponto, um recanto
do seu coração onde alguma cousa de muito doce,
de muito novo, palpitava com uma frescura de renascimento,
como se algures, no seu ser, estivesse
rompendo, burbulhando uma nascente rica de alegrias
futuras; e toda a sua face sorria á chama alegre,
revendo a bochechinha rosada, sob as rendas brancas
da touca...
Pela casa no entanto tinham-se accendido as luzes.
Já inquieto subiu ao quarto do filho; estava tudo
escuro, tão humido e frio, como se a chuva caisse
dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quando chamou,
a voz de Pedro veiu do negro da janella; estava
lá, com a vidraça aberta, sentado fóra
na varanda,
voltado para a noite brava, para o sombrio
rumor das ramagens, recebendo na face o vento, a
agua, toda a invernia agreste.
—Pois estás aqui filho! exclamou Affonso. Os criados
hão de querer arranjar o quarto, desce um momento...
Estás todo molhado, Pedro!
Apalpava-lhe os joelhos, as mãos regeladas. Pedro
ergueu-se com um estremeção, desprendeu-se,
impaciente
d'aquella ternura do velho.
—Querem arranjar o quarto, hein? Faz-me bem
o ar, faz-me tão bem!
O Teixeira trouxe luzes, e atraz d'elle appareceu
o criado de Pedro, que chegára n'esse momento de
Arroios, com um largo estojo de viagem recoberto
[63]
de oleado. As malas tinha-as deixado em baixo; e o
cocheiro viera tambem, como nenhum dos senhores
estava em casa...
—Bem, bem, interrompeu Affonso. O sr. Villaça
lá irá amanhã, e elle dará
as ordens.
O criado então, em bicos de pés, foi
depôr o estojo
sobre o marmore da commoda: ainda lá restavam
antigos frascos de toilette de Pedro: e os castiçaes
sobre a meza allumiavam o grande leito triste de solteiro
com os colxões dobrados ao meio.
A Gertrudes toda atarefada entrara com os braços
carregados de roupa de cama; o Teixeira bateu vivamente
os travesseiros; o criado d'Arroios pousando
o chapéo a um canto, e sempre em ponta de pés,
veiu ajudal-os tambem. Pedro no entanto, como somnambulo,
voltara para a varanda, com a cabeça á
chuva, attraido por aquella treva da quinta que se
cavava em baixo com um rumor de mar bravo.
Affonso, então, puxou-lhe o braço quasi com
aspereza.
—Pedro! Deixa arranjar o quarto! Desce um momento.
Elle seguiu maquinalmente o pae á livraria, mordendo
o charuto apagado que desde tarde conservava
na mão. Sentou-se longe da luz, ao canto do
sophá, ali ficou mudo e entorpecido. Muito tempo
só os passos lentos do velho, ao comprido das altas
estantes, quebraram o silencio em que toda a sala
ia adormecendo. Uma braza morria no fogão. A noite
parecia mais aspera. Eram de repente vergastadas
[64]
d'agua contra as vidraças, trazidas n'uma rajada,
que longamente, n'um clamor teimoso, faziam escoar
um diluvio dos telhados; depois havia uma calma tenebroza,
com uma susurração distante de vento fugindo
entre ramagens: n'esse silencio as goteiras
punham um pranto lento; e logo uma corda de
vendaval corria mais furioso, envolvia a casa n'um
bater de janellas, redomoinhava, partia com silvos
desolados.
—Está uma noite de Inglaterra, disse Affonso,
debruçando-se
a espertar o lume.
Mas a esta palavra Pedro erguera-se, impetuosamente.
De certo o ferira a idéa de Maria, longe,
n'um quarto alheio, agazalhando-se-lhe no leito do
adulterio entre os braços do outro. Apertou um instante
a cabeça nas mãos, depois veiu junto do pae,
com o passo mal firme, mas a voz muito calma.
—Estou realmente cançado, meu pae, vou-me deitar.
Boa noite... Amanhã conversaremos mais.
Beijou-lhe a mão e saiu de vagar.
Affonso demorou-se ainda ali, com um livro na mão,
sem ler, attento só a algum rumor que viesse de
cima; mas tudo jazia em silencio.
Deram dez horas. Antes de se recolher foi ao
quarto onde se fizera a cama da ama. A Gertrudes
o criado de Arroios, o Teixeira, estavam lá cochichando
ao pé da commoda, na penumbra que dava
um folio posto deante do candieiro; todos se esquivaram
em pontas de pés quando lhe sentiram os
passos, e a ama continuou a arrumar em silencio os
[65]
gavetões. No vasto leito, o pequeno dormia como
um Menino Jesus cançado, com o seu guiso apertado
na mão. Affonso não ousou beijal-o, para o
não acordar
com as barbas asperas; mas tocou-lhe na rendinha
da camisa, entalou a roupa contra a parede,
deu um geito ao cortinado, enternecido, sentindo toda
a sua dôr calmar-se n'aquella sombra de alcova onde
o seu neto dormia.
—É necessario alguma cousa, ama? perguntou, abafando
a voz.
—Não, meu senhor...
Então, sem ruido, subiu ao quarto de Pedro. Havia
uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia,
á luz de duas vellas, com o estojo aberto ao
lado. Pareceu espantado de ver o pae: e na face que
ergueu, envelhecida e livida, dois sulcos negros faziam-lhe
os olhos mais refulgentes e duros.
—Estou a escrever, disse elle.
Esfregou as mãos, como arripiado da friagem do
quarto, e accrescentou:
—Amanhã cedo é necessario que o
Villaça vá a
Arroios... Estão lá os criados, tenho
lá dois cavalos
meus, emfim uma porção de arranjos. Eu estou-lhe
a escrever. É numero 32 a casa d'elle, não
é? O
Teixeira ha de saber... Boas noites, papá, boas noites.
No seu quarto, ao lado da livraria, Affonso não
poude socegar, n'uma oppressão, uma
inquietação
que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro
escutar: agora, no silencio da casa e do
[66]
vento que calmara, ressoavam por cima lentos e continuos
os passos de Pedro.
A madrugada clareava, Affonso ia adormecendo—quando
de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se
do leito, despido e gritando: um creado acudia
tambem com uma lanterna. Do quarto de Pedro
ainda entreaberto vinha um cheiro de polvora; e aos
pés da cama, caido de bruços, n'uma
poça de sangue
que se ensopava no tapete, Affonso encontrou seu filho
morto, apertando uma pistola na mão.
Entre as duas vélas que se extinguiam, com fogachos
lividos, deixára-lhe uma carta lacrada com estas
palavras sobre o enveloppe, n'uma letra firme:
Para
o papá.
D'ahi a dias fechou-se a casa de Bemfica. Affonso
da Maia partia com o neto e com todos os criados
para a quinta de S.
ta Olavia.
Quando Villaça, em fevereiro, foi lá acompanhar o
corpo de Pedro, que ia ser depositado no jazigo de
familia, não pôde conter as lagrimas ao avistar
aquella vivenda onde passára tão alegres nataes.
Um baetão preto recobria o brazão d'armas, e esse
panno de esquife parecia ter distingido todo o seu negrume
sobre a fachada muda, sobre os castanheiros
que ornavam o pateo; dentro os criados abafavam a
voz, carregados de luto; não havia uma flor nas jarras;
o proprio encanto de S.
ta Olavia, o fresco
cantar das
[67]
aguas vivas por tanques e repuchos, vinha agora com
a cadencia saudosa de um choro. E Villaça foi encontrar
Affonso na livraria, com as janellas cerradas
ao lindo sol de inverno, caido para uma poltrona, a
face cavada sob os cabellos crescidos e brancos, as
mãos magras e ociosas sobre os joelhos.
O procurador veiu dizer para Lisboa que o velho
não durava um anno.
III
Mas esse anno passou, outros annos passaram.
Por uma manhã de abril, nas vesperas de Paschoa,
Villaça chegava de novo a S.
ta
Olavia.
Não o esperavam tão cedo; e como era o primeiro
dia bonito d'essa primavera chuvosa os senhores andavam
para a quinta. O mordomo, o Teixeira, que ia
já embranquecendo, mostrou-se todo satisfeito de ver
o sr. administrador com quem ás vezes se correspondia,
e conduziu-o á sala de jantar onde a velha governante,
a Gertrudes, tomada de surpreza, deixou
cair uma pilha de guardanapos e para lhe saltar ao
pescoço.
As tres portas envidraçadas estavam abertas para
o terraço, que se estendia ao sol, com a sua balustrada
de marmore coberta de trepadeiras: e Villaça, adiantando-se
[70]
para os degraus que desciam ao jardim, mal
poude reconhecer Affonso da Maia n'aquelle velho de
barba de neve, mas tão robusto e corado, que vinha
subindo a rua de romanzeiras com o seu neto pela
mão.
Carlos, ao avistar no terraço um desconhecido,
de chapéo alto, abafado n'um cache-nez de pelucia,
correu a miral-o, curioso—e achou-se arrebatado
nos braços do bom Villaça, que largara o guarda
sol,
o beijava pelo cabello, pela face, balbuciando:
—Oh meu menino, meu querido menino! Que lindo
que está! que crescido que está...
—Então, sem avisar, Villaça? exclamava Affonso
da Maia, chegando de braços abertos. Nós
só o esperavamos
para a semana, creatura!
Os dois velhos abraçaram-se; depois um momento
os seus olhos encontraram-se, vivos e humidos, e tornaram
a apertar-se commovidos.
Carlos ao lado, muito serio, todo esbelto, com as
mãos enterradas nos bolsos das suas largas bragas
de flanella branca, o casquete da mesma flanella posta
de lado sobre os bellos anneis do cabello negro—continuava
a mirar o Villaça, que com o beiço tremulo,
tendo tirado a luva, limpava os olhos por baixo
dos oculos.
—E ninguem a esperal-o, nem um criado lá em
baixo no rio! dizia Affonso. Emfim, cá o temos, é
o
essencial... E como você está rijo,
Villaça!
—E v. ex.
a meu senhor! balbuciou o
administrador,
engulindo um soluço. Nem uma ruga! Branco
[71]
sim, mas uma cara de moço... Eu nem o conhecia!...
Quando me lembro, a ultima vez que o vi... E cá
isto! cá esta linda flor!...
Ia abraçar Carlos outra vez enthusiasmado, mas
o rapaz fugiu-lhe com uma bella risada, saltou do
terraço, foi pendurar-se d'um trapesio armado entre
as arvores, e ficou lá, balançando-se em
cadencia,
forte e airoso, gritando: «tu és o
Villaça!»
O Villaça, de guarda sol debaixo do braço,
contemplava-o
embevecido.
—Está uma linda creança! Faz gosto! E parece-se
com o pae. Os
mesmos olhos, olhos
dos Maias, o cabello
encaracolado... Mas ha de ser muito mais homem!
—É são, é rijo, dizia o velho
risonho, anediando
as barbas. E como ficou o seu rapaz, o Manuel?
Quando é esse casamento? Venha você cá
para dentro,
Villaça, que ha muito que conversar...
Tinham entrado na sala de jantar, onde um lume
de lenha na chaminé de azulejo esmorecia na fina e
larga luz de abril; porcelanas e pratas resplandeciam
nos aparadores de pau santo; os canarios pareciam
doudos de alegria.
A Gertrudes, que ficára a observar, acercou-se,
com as mãos cruzadas sob o avental branco, familiar,
terna.
—Então, meu senhor, aqui está um regalo,
vêr outra
vez este ingrato em S.
ta Olavia!
E, com um clarão de sympathia na face, alva e redonda
como uma velha lua, ornada já de um buço branco:
[72]
—Ah! sr. Villaça, isto agora é outra cousa!
Até
os canarios cantam! E tambem eu cantava, se ainda
podesse...
E foi saindo, subitamente commovida, já com vontade
de chorar.
O Teixeira esperava, com um riso superior e mudo
que lhe ia d'uma á outra ponta dos seus altos collarinhos
de mordomo.
—Eu creio que prepararam o quarto azul ao sr.
Villaça, hein? disse Affonso. No quarto em que
você
costumava ficar dorme agora a viscondessa...
Então o Villaça apressou-se a perguntar pela
sr.
a
viscondessa. Era uma Runa, uma prima da mulher
de Affonso, que, no tempo em que os poetas de Caminha
a cantavam, casára com um fidalgote gallego,
o sr. visconde de Urigo-de-la-Sierra, um borracho,
um brutal que lhe batia: depois, viuva e pobre, Affonso
recolhera-a por dever de parentella, e para haver
uma senhora em S.
ta Olavia.
Ultimamente passara mal... Mas, olhando o relogio,
Affonso interrompeu a relação d'esses achaques.
—Villaça, vá-se arranjar, depressa, que d'aqui a
pouco é o jantar.
O administrador surprehendido olhou tambem o
relogio, depois a mesa já posta, os seis talheres, o
cesto de flores, as garrafas de Porto.
—Então v. ex.
a agora janta de
manhã? Eu pensei
que era o almoço...
—Eu lhe digo, o Carlos necessita ter um regimen.
De madrugada está já na quinta; almoça
ás sete; e
[73]
janta á uma hora. E eu, emfim, para vigiar as maneiras
do rapaz...
—E o sr. Affonso da Maia, exclamou Villaça, a
mudar de habitos, n'essa edade! O que é ser avô,
meu senhor!
—Tolice! não é isso... É que me faz
bem. Olhe que
me faz bem!... Mas avie-se Villaça, avie-se que Carlos
não gosta de esperar... Talvez tenhamos o abbade.
—O Custodio? Rica cousa! Então, se v. ex.
a
me
dá licença...
Apenas no corredor, o mordomo, ancioso por conversar
com o sr. administrador, perguntou-lhe, desembaraçando-o
do guarda sol e do chale-manta:
—Com franqueza, como nos acha por cá, pela
quinta sr. Villaça?
—Estou contente, Teixeira, estou contente. Pode-se
vir por gosto a S.
ta Olavia.
E, pousando familiarmente a mão no hombro do
escudeiro, piscando o olho ainda humido:
—Tudo isto é o menino. Fez reviver o patrão!
O Teixeira riu respeitosamente. O menino realmente
era a alegria da casa...
—Olá! Quem toca por cá? exclamou
Villaça,
parando nos degraus da escada, ao ouvir em cima
um afinar gemente de rebeca.
—É o sr. Brown, o inglez, o preceptor do menino...
Muito habilidoso, é um regalo ouvil-o; toca
ás vezes á noite na sala, o sr. juiz de direito
acompanha-o
na concertina... Aqui, sr. Villaça, o quarto
de v. s.
a...
[74]
—Muito bonito, sim senhor!
O verniz dos moveis novos brilhava na luz das
duas janellas, sobre o tapete alvadio semeado de florsinhas
azues: e as bambinellas, os reposteiros de
cretóne, repetiam as mesmas folhagens azuladas sobre
fundo claro. Este conforto fresco e campestre deleitou
o bom Villaça.
Foi logo apalpar os cretónes, esfregou o marmore
da commoda, provou a solidez das cadeiras. Eram as
mobilias compradas no Porto, hein? Pois, elegantes.
E, realmente, não tinham sido caras. Nem elle fazia
idéa! Ficou ainda em bicos de pés a examinar duas
aguarellas inglezas representando vaccas de luxo,
deitadas na relva, á sombra de ruinas romanticas.
O Teixeira, observou-lhe, com o relogio na mão:
—Olhe que v. s.
a tem só dez
minutos... O menino
não gosta de esperar.
Então o Villaça decidiu-se a desenrolar o
cache-nez;
depois tirou o seu pesado collete de malha de lã;
e pela camisa entreaberta via-se ainda uma flanella
escarlate por causa dos rheumatismos, e os bentinhos
de seda bordada. O Teixeira desapertava as correias
da maleta; ao fundo do corredor, a rebeca atacara
o
Carnaval de Veneza; e atravez das
janellas fechadas
sentia-se o grande ar, a frescura, a paz dos
campos, todo o verde d'abril.
Villaça, sem oculos, um pouco arripiado, passava
a ponta da toalha molhada pelo pescoço, por traz da
orelha, e ia dizendo:
—Então, o nosso Carlinhos não gosta de esperar,
[75]
hein? Já se sabe, é elle quem governa... Mimos e
mais mimos, naturalmente...
Mas o Teixeira muito grave, muito serio, desilludiu
o sr. administrador. Mimos e mais mimos, dizia
s. s.
a? Coitadinho d'elle, que tinha sido
educado
com uma vara de ferro! Se elle fosse a contar ao
sr. Villaça! Não tinha a creança cinco
annos já dormia
n'um quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs,
zás, para dentro d'uma tina d'agua fria, ás vezes
a gear lá fóra... E outras barbaridades. Se
não
se soubesse a grande paixão do avô pela
creança,
havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe,
elle, Teixeira, chegara a pensal-o... Mas não,
parece que era systema inglez! Deixava-o correr,
cair, trepar ás arvores, molhar-se, apanhar soalheiras,
como um filho de caseiro. E depois o rigor com
as comidas! Só a certas horas e de certas cousas...
E ás vezes a creancinha, com os olhos abertos, a
aguar! Muita, muita dureza.
E o Teixeira accrescentou:
—Emfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas
que nós approvassemos a educação que
tem levado,
isso nunca approvámos, nem eu, nem a Gertrudes.
Olhou outra vez o relogio, preso por uma fita negra
sobre o collete branco, deu alguns passos lentos
pelo quarto: depois, tomando de sobre a cama a sobrecasaca
do procurador, foi-lhe passando a escova
pela gola, de leve e por amabilidade, em quanto dizia,
junto ao toucador onde o Villaça acamava as duas
longas repas sobre a calva:
[76]
—Sabe v. s.
a apenas veiu o mestre inglez, o que
lhe ensinou? A remar! A remar, sr. Villaça, como
um barqueiro! Sem contar o trapesio, e as habilidades
de palhaço; eu n'isso nem gosto de fallar...
Que eu sou o primeiro a dizel-o: o Brown é boa
pessoa, calado, asseado, excellente musico. Mas é o
que eu tenho repetido á Gertrudes: póde ser muito
bom para inglez, não é para ensinar um fidalgo
portuguez...
Não é. Vá v. s.
a
fallar a esse
respeito com
a sr.
a D. Anna Silveira...
Bateram de manso á porta, o Teixeira emmudeceu.
Um escudeiro entrou, fez um signal ao mordomo, tirou-lhe
do braço respeitosamente a sobrecasaca, e
ficou com ella junto do toucador, onde o Villaça, vermelho
e apressado, luctava ainda com as repas rebeldes.
O Teixeira, da porta, disse com o relogio na mão:
—É o jantar. Tem v. s.
a dois
minutos, sr.
Villaça.
E o administrador d'ahi a um momento abalava
tambem, abotoando ainda o casaco pelas escadas.
Os senhores já estavam todos na sala. Junto do
fogão, onde as achas consumidas morriam na cinza
branca, o Brown percorria o
Times.
Carlos, a cavallo
nos joelhos do avô, contava-lhe uma grande historia
de rapazes e de bulhas; e ao pé o bom abbade Custodio,
com o lenço de rapé esquecido nas
mãos, escutava,
de bocca aberta, n'um riso paternal e terno.
—Olhe quem alli vem, abbade, disse-lhe Affonso.
O abbade voltou-se, e deu uma grande palmada
na côxa:
[77]
—Esta é nova! Então é o nosso
Villaça? E não
me tinham dito nada! Venham de lá esses ossos,
homem!...
Carlos pulava nos joelhos do avô, muito divertido
com aquelles longos abraços que juntavam as duas
cabeças dos velhos—uma com as repas achatadas
sobre a calva, outra com uma grande corôa aberta
n'uma matta de cabello branco. E como elles, de
mãos dadas, continuavam a admirar-se, a estudarem
um no outro as rugas dos annos, Affonso disse:
—Villaça! a sr.
a viscondessa...
O administrador porém procurou-a debalde, com
os olhos abertos pela sala. Carlos ria, batendo as mãos:—e
Villaça descobriu-a emfim a um canto,
entre o aparador e a janella, sentada n'uma cadeirinha
baixa, vestida de preto, timida e queda, com os
braços rechonchudos pousados sobre a obesidade da
cinta. O rosto anafado e molle, branco como papel,
as roscas do pescoço, cobriram-se-lhe subitamente
de rubor; não achou uma palavra para dizer ao
Villaça,
e estendeu-lhe a mão papuda e pallida, com
um dedo embrulhado n'um pedaço de seda negra.
Depois ficou a abanar-se com um grande leque de
lentejoulas, o seio a arfar, os olhos no regaço, como
exhausta d'aquelle esforço.
Dois escudeiros tinham começado a servir a sopa,
o Teixeira esperava, perfilado por traz do alto espaldar
da cadeira de Affonso.
Mas Carlos cavalgava ainda o avô, querendo acabar
outra historia. Era o Manuel, trazia uma pedra
[78]
na mão... Elle primeiro pensára ir ás
boas; mas
os dois rapazes começaram a rir... De maneira que
os correu a todos...
—E maiores que tu?
—Tres rapagões, vôvô, póde
perguntar á tia Pedra...
Ella viu, que estava na eira. Um d'elles trazia
uma foice...
—Está bom, senhor, está bom, ficamos
inteirados...
Vá, desmonte, que está a sopa a esfriar. Upa!
upa!
E o velho, com o seu aspecto resplandecente
de patriarcha feliz, veiu sentar-se ao alto da meza, sorrindo
e dizendo:
—Já se vae fazendo pesado, já não
está para
collo...
Mas reparou então no Brown, e tornando a erguer-se
fez a apresentação do procurador.
—O sr. Brown, o amigo Villaça... Peço
perdão,
descuidei-me, foi culpa d'aquelle cavalheiro lá ao fundo
da meza, o sr. D. Carlos de mata-sete!
O perceptor, solidamente abotoado na sua longa
sobrecasaca militar, deu toda a volta á meza, rigido
e teso, para vir sacudir o Villaça n'um tremendo
shake-hands; depois, sem uma
palavra, reoccupou o
seu logar, desdobrou o guardanapo, cofiou os formidaveis
bigodes, e foi então que disse ao Villaça,
com o seu forte accento inglez:
—
Muito bello dia... glorioso!
—Tempo de rosas, respondeu o Villaça, comprimentando,
intimidado diante d'aquelle athleta.
[79]
Naturalmente, n'esse dia, fallou-se da jornada de
Lisboa, do bom serviço da malla-posta, do caminho
de ferro que se ia abrir... O Villaça já viera
no comboyo até ao Carregado.
—De causar horror, hein? perguntou o abbade,
suspendendo a colher que ia levar á bocca.
O excellente homem nunca saira de Resende; e
todo o largo mundo, que ficava para além da penumbra
da sua sachristia e das arvores do seu passal,
lhe dava o terror d'uma Babel. Sobre tudo essa estrada
de ferro, de que tanto se fallava...
—Faz arripiar um bocado, affirmou com experiencia
Villaça. Digam o que disserem, faz arripiar!
Mas o abbade assustava-se sobre tudo com as inevitaveis
desgraças d'essas machinas!
O Villaça então lembrou os desastres da
mala-posta.
No de Alcobaça, quando tudo se virou, ficaram
esmagadas duas irmãs de caridade! Emfim de
todos os modos havia perigos. Podia-se quebrar uma
perna a passear no quarto...
O abbade gostava do progresso... Achava até necessario
o progresso. Mas parecia-lhe que se queria
fazer tudo á lufa-lufa... O paiz não estava para
essas
invenções; o que precisava eram boas
estradinhas...
—E economia! disse o Villaça, puxando para si os
pimentões.
—Bucellas? murmurou-lhe sobre o hombro o escudeiro.
O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe
[80]
á luz a côr rica, provou-o com a ponta
do
labio, e piscando o olho para Affonso:
—É do nosso!
—Do velho, disse Affonso. Pergunte ao Brown...
Hein, Brown, um bom nectar?
—
Magnificente! exclamou o perceptor
com uma
energia fogosa.
Então Carlos, estendendo o braço por cima da
meza, reclamou tambem Bucellas. E a sua razão era
haver festa por ter chegado o Villaça. O avô
não
consentiu; o menino teria o seu calice de Collares,
como de costume, e um só. Carlos crusou os
braços
sobre o guardanapo que lhe pendia do pescoço, espantado
de tanta injustiça! Então nem para festejar
o Villaça poderia apanhar uma gotinha de Bucellas?
Ahi estava uma linda maneira de receber os hospedes
na quinta... A Gertrudes dissera-lhe que como
viera o sr. administrador, havia de pôr á noite
para
o chá o fato novo de velludo. Agora observavam-lhe
que não era festa, nem caso para Bucellas...
Então
não entendia.
O avô, que lhe bebia as palavras, enlevado, fez subitamente
um carão severo.
—Parece-me que o senhor está palrando de mais.
As pessoas grandes é que palram à meza.
Carlos recolheu-se logo ao seu prato, murmurando
muito mansamente:
—Está bom, vovô, não te zangues.
Esperarei para
quando for grande...
Houve um sorriso em volta da meza. A propria
[81]
viscondessa, deleitada, agitou preguiçosamente o leque:
o abbade, com a sua boa face banhada em extasi
para o menino, apertava as mãos cabelludas contra
o peito, tanto aquillo lhe parecia engraçado: e Affonso
tossia por traz do guardanapo, como limpando
as barbas—a esconder o riso, a admiração que lhe
brilhava nos olhos.
Tanta vivacidade surprehendeu tambem Villaça.
Quiz ouvir mais o menino, e pousando o seu talher:
—E diga-me, Carlinhos, já vae adiantado nos seus
estudos?
O rapaz, sem o olhar, repoltreou-se, mergulhou
as mãos pelo cós das flanellas, e respondeu com
um
tom superior:
—Já faço ladear a
Brigida.
Então o avô, sem se conter, largou a rir, cahido
para o espaldar da cadeira:
—Essa é boa! Eh! Eh! Já faz ladear a
Brigida!
E é verdade, Villaça, já a faz
ladear... Pergunte ao
Brown; não é verdade, Brown? E a eguasita
é uma
piorrita, mas fina...
—Oh vovô, gritou Carlos já excitado, dize ao
Villaça,
anda. Não é verdade que eu era capaz de governar
o
dog-cart?
Affonso reassumio um ar severo.
—Não o nego... Talvez o governasse, se lh'o
consentissem. Mas faça-me favor de se não gabar
das
suas façanhas, porque um bom cavalleiro deve ser
modesto... E sobre tudo não enterrar assim as
mãos
pela barriga abaixo...
[82]
O bom Villaça, no entanto, dando estalinhos aos
dedos, preparava uma observação. Não
se podia de
certo ter melhor prenda que montar a cavallo com
as regras... Mas elle queria dizer se o Carlinhos
já entrava com o seu Phedro, o seu Tito Liviosinho...
—Villaça, Villaça, advertiu o abbade, de garfo
no
ar e um sorriso de santa malicia, não se deve fallar
em latim aqui ao nosso nobre amigo... Não admitte,
acha que é antigo... Elle, antigo é...
—Ora sirva-se d'esse fricassé, ande abbade, disse
Affonso, que eu sei que é o seu fraco, e deixe lá
o
latim...
O abbade obedeceu com deleite; e escolhendo no
molho rico os bons pedaços de ave, ia murmurando:
—Deve-se começar pelo latimsinho, deve-se
começar
por lá... É a base; é a basesinha!
—Não! latim mais tarde! exclamou o Brown,
com um gesto possante. Prrimeiro forrça! Forrça!
Musculo...
E repetio, duas vezes, agitando os formidaveis punhos:
—Prrimeiro musculo, musculo!...
Affonso appoiava-o, gravemente. O Brown estava
na verdade. O latim era um luxo d'erudito... Nada
mais absurdo que começar a ensinar a uma creança
n'uma lingua morta quem foi Fabio, rei dos Sabinos,
o caso dos Grachos, e outros negocios d'uma nação
extincta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber
o
que é a chuva que o molha, como se faz o
pão que
[83]
come, e todas as outras cousas do Universo em que
vive...
—Mas emfim os classicos, arriscou timidamente
o abbade.
—Qual classicos! O primeiro dever do homem é
viver. E para isso é necessario ser são, e ser
forte.
Toda a educação sensata consiste n'isto: crear a
saude, a força e os seus habitos, desenvolver exclusivamente
o animal, armal-o d'uma grande superioridade
physica. Tal qual como se não tivesse alma.
A alma vem depois... A alma é outro luxo. É um
luxo de gente grande...
O abbade coçava a cabeça, com o ar arripiado.
—A instrucçãosinha é necessaria,
disse elle. Você
não acha, Villaça? Que v. ex
a,
sr. Affonso da
Maia,
tem visto mais mundo do que eu... Mas emfim a
instrucçãosinha...
—A instrucção para uma creança
não é recitar
Tityre, tu patulae recubans...
É saber factos, noções,
cousas uteis, cousas praticas...
Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, n'um
signal ao Villaça, mostrou-lhe o neto que palrava
inglez com o Brown. Eram de certo feitos de força,
uma historia de briga com rapazes que elle lhe estava
a contar, animado e jogando com os punhos. O perceptor
approvava, retorcendo os bigodes. E á mesa
os senhores com os garfos suspensos, por traz os
escudeiros de pé e guardanapo no braço, todos,
n'um
silencio reverente, admiravam o menino a fallar inglez.
[84]
—Grande prenda, grande prenda, murmurou Villaça,
inclinando-se para a Viscondessa.
A excellente senhora córou, atravez d'um sorriso.
Parecia assim mais gorda, toda acaçapada na cadeira,
silenciosa, comendo sempre; e, a cada gole de Bucellas,
refrescava-se languidamente com o seu grande
leque negro e lentejoulado.
Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Affonso
fez uma
saude ao Villaça.
Todos os copos se ergueram
n'um rumor de amizade. Carlos quiz gritar
Hurrah! O avô, com um
gesto reprehensivo, immobilisou-o;
e na pausa satisfeita que se fez, o pequeno
disse com uma grande convicção:
—Oh avô, eu gosto do Villaça. O
Villaça é nosso
amigo.
—Muito, e ha muitos annos, meu senhor! exclamou
o velho procurador, tão commovido que mal podia
erguer o calice na mão.
O jantar findava. Fóra, o sol deixára o terrasso
e
a quinta verdejava na grande doçura do ar tranquillo,
sob o azul ferrete. Na chaminé só restava uma
cinza branca: os lilazes das jarras exhalavam um
aroma vivo, a que se misturava o do creme queimado,
tocado de um fio de limão: os creados, de colletes
brancos, moviam o serviço d'onde se escapava
algum som argentino: e toda a alva toalha adamascada
desapparecia sob a confusão da sobremesa onde
os tons dourados do vinho do Porto brilhavam entre
as compoteiras de crystal. A Viscondessa affogueada
abanava-se. Padre Custodio enrolava devagar
[85]
o guardanapo, a sua batina coçada luzia nas pregas
das mangas.
Então Affonso, sorrindo ternamente, fez a ultima
saude.
—Viva v. s.
a snr. Carlos de Matta-sete!
—Sr. Vôvô! dizia o pequeno escorropichando o copo.
A cabeçinha de cabellos negros,
a velha face de
barbas de neve, saudavam-se das extremidades da
mesa—em quanto todos sorriam, no enternecimento
d'aquella cerimonia. Depois o abbade, de palito na
bocca, murmurou as
graças. A Viscondessa,
cerrando
os olhos, juntou tambem as mãos. E Villaça que
tinha
crenças religiosas não gostou de vêr
Carlos, sem se
importar com as graças, saltar da cadeira, vir atirar-se
ao pescoço do avô, fallar-lhe ao ouvido.
—Não senhor! não senhor! dizia o velho.
Mas o rapaz, abraçando-o mais forte, dava-lhe grandes
razões, n'um murmurio de mimo dôce como um
beijo, que ia pondo na face do velho uma fraqueza
indulgente.
—É por ser festa, disse elle emfim vencido. Mas
veja lá, veja lá...
O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou Villaça
pelos braços, fêl-o redemoinhar, e foi cantando
n'um
rythmo seu:
—Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!... Vou
buscar a Therezinha, inha, inha, inha!
—É a noiva, disse o avô, erguendo-se da mesa.
Já
tem amores, é a pequena das Silveiras... O café
para o terraço, Teixeira.
[86]
O dia fóra convidava, adoravel, d'um azul suave,
muito puro e muito alto, sem uma nuvem. Defronte do
terraço os geranios vermelhos estavam já abertos;
as verduras dos arbustos, muito tenras ainda, d'uma
delicadeza de renda, pareciam tremer ao menor sopro;
vinha por vezes um vago cheiro de violetas, misturado
ao perfume adocicado das flôres do campo; o
alto repuxo cantava; e nas ruas do jardim, bordadas
de buxos baixos, a areia fina faiscava de leve áquelle
sol timido de primavera tardia, que ao longe envolvia
os verdes da quinta, adormecida a essa hora de sesta
n'uma luz fresca e loura.
Os tres homens sentaram-se á mesa do café.
Defronte
do terraço, o Brown, de bonet escossez posto
ao lado e grande cachimbo na bocca, puchava ao alto
a barra do trapezio para Carlos se balouçar.
Então
o bom Villaça pedio para voltar as costas. Não
gostava
de vêr gymnasticas; bem sabia que não havia
perigo;
mas mesmo nos cavallinhos, as cabriolas, os arcos,
atordoavam-n'o; sahia sempre com o estomago embrulhado...
—E parece-me imprudente, sobre o jantar...
—Qual! é só balouçar-se... Olhe para
aquillo!
Mas Villaça não se moveu, com a face sobre a
chavena.
O abbade, esse, admirava, de labios entreabertos,
e o pires cheio de café esquecido na mão.
—Olhe para aquillo Villaça, repetio Affonso. Não
lhe faz mal, homem!
O bom Villaça voltou-se, com esforço. O pequeno
[87]
muito alto no ar, com as pernas retesadas contra a
barra do trapezio, as mãos ás cordas, descia
sobre
o terraço, cavando o espaço largamente, com os
cabellos
ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo
em pleno sol; todo elle sorria; a sua blusa, os
calções enfunavam-se á aragem; e
via-se passar,
fugir, o brilho dos seus olhos muito negros e muito
abertos.
—Não está mais na minha mão,
não gosto, disse
o Villaça. Acho imprudente!
Então Affonso bateu as palmas, o abbade gritou
bravo, bravo. Villaça
voltou-se para applaudir, mas
Carlos tinha já desapparecido; o trapezio parava, em
oscillações lentas; e o Brown, retomando o
Times que
pozera ao lado sobre o pedestal d'um busto, foi descendo
para a quinta envolvido n'uma nuvem de fumo
do cachimbo.
—Bella cousa, a gymnastica! exclamou Affonso da
Maia, accendendo com satisfação outro charuto.
Villaça já ouvira que enfraquecia muito o peito.
E o abbade, depois de dar um sorvo ao café, de lamber
os beiços, soltou a sua bella phrase, arranjada
em maxima:
—Esta educação faz athletas mas não
faz christãos.
Já o tenho dito...
—Já o tem dito abbade, já! exclamou Affonso
alegremente.
Diz-m'o todas as semanas... Quer você
saber, Villaça? O nosso Custodio matta-me o bicho
do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A
cartilha!...
[88]
Custodio ficou um momento a olhar Affonso, com
uma face desconsolada e a caixa de rapé aberta na
mão; a irreligião d'aquelle velho fidalgo, senhor
de
quasi toda a freguezia, era uma das suas dôres:
—A cartilha, sim meu senhor, ainda que v. ex.
a
o diga assim com esse modo escarnica... A cartilha.
Mas já não quero fallar na cartilha... Ha outras
cousas. E se o digo tantas vezes, sr. Affonso da Maia,
é pelo amor que tenho ao menino.
E recomeçou a discussão, que voltava sempre ao
café, quando Custodio jantava na quinta.
O bom homem achava horroroso que n'aquella
edade um tão lindo moço, herdeiro d'uma casa
tão
grande, com futuras responsabilidades na sociedade,
não soubesse a sua doutrina. E narrou logo ao
Villaça
a historia da D. Cecilia Macedo: esta virtuosa
senhora, mulher do escrivão, tendo passado deante
do portão da quinta, avistara o Carlinhos, chamara-o,
carinhosa e amiga de creanças como era, e
pedira-lhe que lhe dissesse o
acto de
contricção. E
que respondeu o menino?
Que nunca em tal ouvira
fallar! Estas cousas entristeciam. E o sr. Affonso
da Maia achava-lhe graça, ria-se! Ora alli estava o
amigo Villaça que podia dizer se era caso para jubilar.
Não, o sr. Affonso da Maia tinha muito saber,
e correra muito mundo; mas d'uma cousa não o podia
convencer, a elle pobre padre que nem mesmo o
Porto vira ainda, é que houvesse felicidade e bom
comportamento na vida sem a moral do cathecismo.
E Affonso da Maia respondia com bom humor:
[89]
—Então que lhe ensinava você, abbade, se eu lhe
entregasse o rapaz? Que se não deve roubar o dinheiro
das algibeiras, nem mentir, nem maltratar
os inferiores, por que isso é contra os mandamentos
da lei de Deus, e leva ao inferno, hein? É isso?...
—Ha mais alguma cousa...
—Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria
que se não deve fazer, por ser um peccado que
offende a Deus, já elle sabe que se não deve
praticar,
por que é indigno d'um cavalheiro e d'um homem
de bem...
—Mas, meu senhor...
—Ouça abbade. Toda a differença é
essa. Eu
quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude
e honrado por amor da honra; mas não por medo ás
caldeiras de Pero Botelho, nem com o engodo de
ir para o reino do céu...
E accrescentou, erguendo-se e sorrindo:
—Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abbade,
é quando vem, depois de semanas de chuva, um
dia d'estes, ir respirar pelos campos e não estar aqui
a discutir moral. Portanto arriba! e se o Villaça
não
está muito cançado, vamos dar ahi um giro pelas
fazendas...
O abbade suspirou como um santo que vê a negra
impiedade dos tempos e Belzebut arrebatando as
melhores rezes do rebanho; depois olhou a chavena
e sorveu com delicias o resto do seu café.
Quando Affonso da Maia, Villaça e o abbade recolheram
do seu passeio pela freguezia, escurecera, havia
[90]
luzes pelas salas, e tinham chegado já as Silveiras,
senhoras ricas da quinta da
Lagoaça.
D. Anna Silveira, a solteira e mais velha, passava
pela talentosa da familia, e era em pontos de doutrina
e de etiqueta uma grande auctoridade em Resende.
A viuva, D. Eugenia, limitava-se a ser uma
excellente e pachorrenta senhora, de agradavel
nutrição,
trigueirota e pestanuda; tinha dois filhos, a Theresinha,
a
noiva de Carlos, uma rapariguinha
magra
e viva com cabellos negros como tinta, e o morgadinho,
o Eusebiosinho, uma maravilha muito fallada
n'aquelles sitios.
Quasi desde o berço este notavel menino revelara
um edificante amor por alfarrabios e por todas as coisas
do saber. Ainda gatinhava e já a sua alegria era estar
a um canto, sobre uma esteira, embrulhado n'um
cobertor, folheando
in-folios, com o
craneosinho calvo
de sabio curvado sobre as lettras garrafaes de boa
doutrina: depois de crescidinho tinha tal proposito
que permanecia horas immovel n'uma cadeira, de
perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca appetecera
um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe
cadernos de papel, onde o precoce letrado, entre o
pasmo da mamã e da titi, passava dias a traçar
algarismos,
com a lingoasinha de fora.
Assim na familia tinha a sua carreira destinada:
era rico, havia de ser primeiro bacharel, e depois
desembargador. Quando vinha a Santa Olavia,
a tia Annica installava-o logo á mesa, ao pé do
candieiro,
a admirar as pinturas d'um enorme e rico volume,
[91]
os
Costumes de todos os Povos do
Universo. Já
lá estava essa noite, vestido como sempre de escossez,
com o
plaid de flamejante xadrez
vermelho e negro
posto a tiracollo e preso ao hombro por uma dragona;
para que conservasse o ar nobre d'um Stuart, d'um
valoroso cavalleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam
o bonet onde se arqueava com heroismo uma
rutilante penna de gallo; e nada havia mais melancolico
que a sua facesinha trombuda, a que o excesso
de lombrigas dava uma molleza e uma amarellidão
de manteiga, os seus olhinhos vagos e azulados, sem
pestanas como se a sciencia lh'as tivesse já consummido,
pasmando com sisudez para as camponesas da Sicilia,
e para os guerreiros ferozes do Montenegro
appoiados a escupetas, em pincaros de serranias.
Deante do canapé das senhoras lá se achava tambem
o fiel amigo, o dr. delegado, grave e digno homem,
que havia cinco annos andava ponderando e
meditando o casamento com a Silveira viuva, sem
se decidir—contentando-se em comprar todos os
annos mais meia duzia de lençoes, ou uma peça
mais
de bretanha, para arredondar o bragal. Estas compras
eram discutidas em casa das Silveiras, á brazeira:
e as allusões recatadas, mas inevitaveis, ás
duas fronhasinhas, ao tamanho dos lençoes, aos cobertores
de papa para os conchegos de janeiro—em
logar de inflammar o magistrado, inquietavam-n'o.
Nos dias seguintes apparecia preoccupado—como se
a perspectiva da santa consummação do matrimonio
lhe désse o arrepio de uma façanha a emprehender,
[92]
o ter de agarrar um toiro, ou nadar nos cachões do
Douro. Então, por qualquer rasão especiosa,
adiava-se
o casamento até ao S. Miguel seguinte. E alliviado,
tranquillo, o respeitavel Dr. continuava a acompanhar
as Silveiras a chás, festas de egreja ou pezames,
vestido de preto, affavel, serviçal, sorrindo a
D. Eugenia, não desejando mais prazeres que os
d'essa convivencia paternal.
Apenas Affonso entrou na sala deram-lhe logo noticia
do contratempo: o dr. juiz de direito e a senhora
não podiam vir, por que o magistrado tivera a dôr;
e as Brancos tinham mandado recado a desculpar-se,
coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazer
desesete annos que morrera o mano Manuel...
—Bem, disse Affonso, bem. A dôr, a tristeza, o mano
Manuel... Fazemos nós um voltaretesinho de quatro.
Que diz o nosso dr. delegado?
O excellente homem dobrou a sua fronte calva,
murmurando que «estava ás ordens.»
—Então ao dever, ao dever! exclamou logo o abbade,
esfregando as mãos, no ardor já da partida.
Os parceiros dirigiram-se á saleta do jogo—que
um reposteiro de damasco separava da sala, franzido
agora, deixando ver a mesa verde, e nos circulos de
luz que cahiam dos
abat-jour os
baralhos abertos
em leque. D'ahi a um momento o dr. delegado voltou,
risonho, dizendo que «os deixara para um roquesinho
de tres»; e retomou o seu logar ao lado
de D. Eugenia, cruzando os pés debaixo da cadeira
e as mãos em cima do ventre. As senhoras estavam
[93]
fallando da dôr do dr. juiz de direito. Costumava
dar-lhe todos os tres mezes: e era condemnavel a sua
teima em não querer consultar medicos. Quanto mais
que elle andava acabado, ressequindo, amarellando—e
a D. Augusta, a mulher, a nutrir á larga, a ganhar
côres!... A Viscondessa, enterrada em toda a sua
gordura ao canto do canapé, com o leque aberto sobre
o peito, contou que em Hespanha vira um caso
egual: o homem chegara a parecer um esqueleto, e
a mulher uma pipa; e ao principio fôra o contrario;
até sobre isso se tinham feito uns versos...
—Humores, disse com melancolia o dr. delegado.
Depois fallou-se nas Brancos; recordou-se a morte
de Manuel Branco, coitadinho, na flor de idade! E
que perfeição de rapaz! E que rapaz de juizo! D.
Anna
Silveira não se esquecera, como todos os annos, de
lhe accender uma lamparina por alma, e de lhe resar
tres padre-nossos. A viscondessa pareceu toda
afflicta por se não ter lembrado... E ella que tinha
o proposito feito!
—Pois estive para t'o mandar dizer! exclamou
D. Anna. E as Brancos que tanto o agradecem, filha!
—Ainda está a tempo, observou o magistrado.
D. Eugenia deu uma malha indolente no
crochet de
que nunca se separava, e murmurou com um suspiro:
—Cada um tem os seus mortos.
E no silencio que se fez, saiu do canto do canapé
outro suspiro, o da viscondessa, que de certo se recordára
do fidalgo d'Urigo de la Sierra, e murmurava:
[94]
—Cada um tem os seus mortos...
E o digno dr. delegado terminou por dizer egualmente,
depois de passar reflectidamente a mão pela
calva:
—Cada um tem os seus mortos!
Uma somnolencia ia pesando. Nas serpentinas douradas,
sobre as consoles, as chammas das velas erguiam-se
altas e tristes. Eusebiosinho voltava com
cautella e arte as estampas dos
Costumes de todos os
Povos. E na saleta de jogo, atravez do reposteiro
aberto, sentia-se a voz já arrenegada do abbade, rosnando
com um rancor tranquillo, «passo, que é o que
tenho feito toda a santa noite!»
N'esse momento Carlos arremettia pela sala dentro
arrastando a sua noiva, a Theresinha, toda no ar
e vermelha de brincar; e logo a grulhada das suas
vozes reanimou o canapé dormente.
Os noivos tinham chegado d'uma pittoresca e perigosa
viagem, e Carlos parecia descontente de sua
mulher; comportara-se d'uma maneira atroz; quando
elle ia governando a mala-posta, ella quizera empoleirar-se
ao pé d'elle na almofada... Ora senhoras
não viajam na almofada.
—E elle atirou-me ao chão, titi!
—Não é verdade! De mais a mais é
mentirosa!
Foi como quando chegámos á estalagem... Ella
quiz-se deitar, e eu não quiz... A gente, quando se
apeia de viagem, a primeira cousa que faz é tratar
do gado... E os cavallos vinham a escorrer...
A voz de D. Anna interrompeu, muito severa:
[95]
—Está bom, está bom, basta de tolices!
Já cavallaram
bastante. Senta-te ahi ao pé da sr.
a
Viscondessa,
Thereza... Olhe essa travessa do cabello...
Que desproposito!
Sempre detestára ver a sobrinha, uma menina delicada de
dez annos, brincar assim com o Carlinhos.
Aquelle bello e impetuoso rapaz, sem doutrina e sem
proposito, aterrava-a; e pela sua imaginação de
solteirona
passavam sem cessar idéas, suspeitas de ultrages
que elle poderia fazer á menina. Em casa, ao
agasalhal-a antes de vir para S.
ta Olavia,
recommendava-lhe
com força que não fosse com o Carlos para
os recantos escuros! que o não deixasse mecher-lhe
nos vestidos!... A menina, que tinha os olhos muito
langorosos, dizia: «Sim, titi.» Mas, apenas na
quinta,
gostava de abraçar o seu maridinho. Se eram casados,
por que não haviam de fazer néné, ou
ter
uma loja e ganharem a sua vida aos beijinhos? Mas
o violento rapaz só queria guerras, quatro cadeiras
lançadas a galope, viagens a terras de nomes barbaros
que o Brown lhe ensinava. Ella, despeitada,
vendo o seu coração mal comprehendido,
chamava-lhe
arrieiro; elle ameaçava
boxal-a, á ingleza;—e separavam-se
sempre arrenegados.
Mas quando ella se accomodou ao lado da Viscondessa,
gravesinha e com as mãos no regaço—Carlos
veiu logo estirar-se ao pé d'ella, meio deitado para
as costas do canapé, bamboleando as pernas.
—Vamos, filho, tem maneiras, rosnou-lhe muito
secca D. Anna.
[96]
—Estou cançado, governei quatro cavallos, replicou
elle, insolente e sem a olhar.
De repente porém, d'um salto, precipitou-se sobre
o Eusebiosinho. Queria-o levar á Africa, a combatter
os selvagens: e puchava-o já pelo seu bello
plaid de
cavalleiro d'Escossia, quando a mamã accudiu atterrada.
—Não, com o Eusebiosinho não, filho!
Não tem
saude para essas cavalladas... Carlinhos, olhe que
eu chamo o avô!
Mas o Eusebiosinho, a um repellão mais forte, rolara
no chão, soltando gritos medonhos. Foi um
alvoroço,
um levantamento. A mãe, tremula, agachada
junto d'elle, punha-o de pé sobre as perninhas molles,
limpando-lhe as grossas lagrimas, já com o lenço,
já com beijos, quasi a chorar tambem. O delegado,
consternado, apanhara o bonet escossez, e cofiava
melancolicamente a bella pena de gallo. E a
Viscondessa apertava ás mãos ambas o enorme seio,
como se as palpitações a suffocassem.
O Eusebiosinho foi então preciosamente collocado
ao lado da titi; e a severa senhora, com um fulgôr
de colera na face magra, apertando o leque fechado
como uma arma, preparava-se a repellir o Carlinhos
que, de mãos atraz das costas e aos pulos em roda
do canapé, ria, arreganhando para o Eusebiosinho um
labio feroz. Mas n'esse momento davam nove horas,
e a desempenada figura do Brown appareceu á porta.
Apenas o avistou, Carlos correu a refugiar-se por
detraz da Viscondessa, gritando:
[97]
—Ainda é muito cedo, Brown, hoje é festa,
não
me vou deitar!
Então Affonso da Maia, que se não movera aos
uivos lacinantes do Silveirinha, disse de dentro, da
mesa do voltarete, com severidade:
—Carlos, tenha a bondade de marchar já para a
cama.
—Oh vôvô, é festa, que está
cá o Villaça!
Affonso da Maia pousou as cartas, atravessou a
sala sem uma palavra, agarrou o rapaz pelo braço,
e arrastou-o pelo corredor—em quanto elle, de calcanhares
fincados no soalho, resistia, protestando com
desespero:
—É festa, vôvô... É uma
maldade!... O Villaça
póde-se escandalisar... Oh vôvô, eu
não tenho somno!
Uma porta fechando-se abafou-lhe o clamor. As
senhoras censuraram logo aquella rigidez: ahi estava
uma cousa incomprehensivel; o avô deixava-lhe
fazer todos os horrores, e recusava-lhe então o bocadinho
da soirée...
—Oh sr. Affonso da Maia, por que não deixou estar
a creança?
—É necessario methodo, é necessario methodo,
balbuciou elle, entrando, todo pallido do seu rigor.
E á mesa do voltarete, apanhando as cartas com
as mãos tremulas, repetia ainda:
—É necessario methodo. Creanças á
noite dormem.
D. Anna Silveira voltando-se para o Villaça—que
cedera o seu lugar ao dr. delegado e vinha palestrar
com as senhoras—teve aquelle sorriso mudo
[98]
que lhe franzia os labios, sempre que Affonso da Maia
fallava em «methodos.»
Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e
abrindo o leque, declarou, a transbordar d'ironia,
que, talvez por ter a intelligencia curta, nunca
comprehendera a vantagem dos «methodos»... Era
á ingleza, segundo diziam: talvez provassem bem em
Inglaterra; mas ou ella estava enganada, ou S.
ta
Olavia era no reino de Portugal...
E como Villaça inclinava timidamente a cabeça,
com a sua pitada nos dedos, a esperta senhora, baixo
para que Affonso dentro não ouvisse, desabafou. O sr.
Villaça naturalmente não sabia, mas aquella
educação
do Carlinhos nunca fôra approvada pelos amigos da
casa. Já a presença do Brown, um heretico, um
protestante,
como perceptor na familia dos Maias, causara
desgosto em Resende. Sobretudo quando o sr. Affonso
tinha aquelle santo do abbade Custodio, tão
estimado, homem de tanto saber... Não ensinaria
á creança habilidades de acrobata; mas havia de
lhe
dar uma educação de fidalgo, preparal-o para
fazer
boa figura em Coimbra.
N'esse momento, o abbade, suspeitando uma corrente
d'ar, erguera-se da mesa de jogo a fechar o
reposteiro: então, como Affonso já não
podia ouvir,
D. Anna ergueu a voz:
—E olhe que o Custodio teve desgosto, sr. Villaça.
Que o Carlinhos, coitadinho, nem uma palavra sabe de
doutrina... Sempre lhe quero contar o que succedeu
com a Macedo.
[99]
Villaça já sabia.
—Ah já sabe? Lembras-te viscondessa? Com a
Macedo, do acto de contricção...
A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo
ao ceu atravez do tecto.
—Horroroso! continuou D. Anna. A pobre mulher
chegou lá a nossa casa embuchada... E eu fez-me
impressão. Até sonhei com aquillo tres noites a
fio...
Calou-se um momento. Villaça, embaraçado,
acanhado,
fazia girar a caixa de rapé nos dedos, com
os olhos postos no tapete. Outro langor de somnolencia
passou na sala; D. Eugenia, com as palpebras pesadas,
fazia de vez em quando uma malha molle no
crochet;
e a noiva de Carlos, estirada para o canto do
sophá, já dormia, com a boquinha aberta, os seus
lindos
cabellos negros caindo-lhe pelo pescoço.
D. Anna, depois de bocejar de leve, retomou a sua
idéa:
—Sem contar que o pequeno está muito atrazado.
A não ser um bocado de inglez, não sabe nada...
Nem tem prenda nenhuma!
—Mas é muito esperto, minha rica senhora! accudiu
Villaça.
—É possivel, respondeu seccamente a intelligente
Silveira.
E, voltando-se para Euzebiosinho, que se conservava
ao lado d'ella, quieto como se fosse de gesso:
—Oh filho, dize tu aqui ao sr. Villaça aquelles lindos
versos que sabes... Não sejas atado, anda!... Vá,
Euzebio, filho, sê bonito...
[100]
Mas o menino, mollengão e tristonho, não se
descollava
das saias da titi: teve ella de o pôr de pé,
amparal-o, para que o tenro prodigio não alluisse
sobre as perninhas flacidas; e a mamã prometteu-lhe
que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite
com ella...
Isto decidio-o: abrio a bocca, e como d'uma torneira
lassa veio de lá escorrendo, n'um fio de voz, um recitativo
lento e babujado:
É noite, o astro saudoso
Rompe a custo um plumbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, humido véo...
Disse-a toda—sem se mexer, com as mãosinhas
pendentes, os olhos mortiços pregados na titi. A
mamã fazia o compasso com a agulha do
crochet; e a
viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto,
banhada no langor da melopea, ia cerrando
as palpebras.
—Muito bem, muito bem! exclamou o Villaça, impressionado,
quando o Euzebiosinho findou coberto
de suor. Que memoria! Que memoria! É um prodigio!...
Os creados entravam com o chá. Os parceiros tinham
findado a partida; e o bom Custodio, de pé,
com a sua chavena na mão, queixava-se amargamente
da maneira porque aquelles senhores o tinham esfollado.
Como ao outro dia era domingo, e havia missa
[101]
cedo, as senhoras retiraram-se ás nove e meia. O
serviçal dr. delegado dava o braço a D. Eugenia;
um creado da quinta allumiava adiante com o lampeão;
e o moço das Silveiras levava ao collo o Eusebiosinho
que parecia um fardo escuro, abafado
em mantas, com um chale amarrado na cabeça.
Depois da ceia Villaça acompanhou ainda um momento
Affonso da Maia á livraria, onde, antes de recolher,
elle tomava sempre á ingleza o seu cognac
e soda.
O aposento, a que as velhas estantes de pau preto
davam um ar severo, estava adormecido tepidamente,
na penumbra suave, com as cortinas bem fechadas,
um resto de lume na chaminé, e o globo do
candieiro pondo a sua claridade serena na mesa coberta
de livros. Em baixo, os repuchos cantavam alto
no silencio da noite.
Emquanto o escudeiro rolava para o pé da poltrona
de Affonso, n'uma mesa baixa, os crystaes e as garrafas
de soda, Villaça, com as mãos nos bolsos, de
pé
e pensativo, olhava a braza da acha que morria na
cinza branca. Depois ergueu a cabeça, para murmurar,
como ao acaso:
—Aquelle rapazito é esperto...
—Quem? O Euzebiosinho? disse Affonso, que se
accomodava junto ao fogão, enchendo alegremente
o cachimbo. Eu tremo de o ver cá, Villaça! O
Carlos
não gosta d'elle, e tivemos ahi um desgosto horroroso...
[102]
Foi já ha mezes. Havia uma procissão e
o Eusebiosinho ia de anjo... As Silveiras, excellentes
mulheres, coitadas, mandaram-n'o cá para o mostrar
á viscondessa, já vestido de anjo. Pois senhores,
distrahimo-nos, e o Carlos que o andava a rondar
apodera-se d'elle, leva-o para o sotão, e, meu caro
Villaça... Em primeiro logar ia-o matando porque
embirra com anjos... Mas o peior não foi isso.
Imagine você o nosso terror, quando nos apparece
o Eusebiosinho aos berros pela titi, todo desfrizado,
sem uma aza, com a outra a bater-lhe os calcanhares
dependurada de um barbante, a corôa de
rosas enterrada até ao pescoço, e os
galões de ouro,
os tulles, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste
em frangalhos!... Emfim, um anjo depennado e sovado...
Eu ia dando cabo do Carlos.
Bebeu metade da sua soda, e passando a mão
pelas barbas, accrescentou, com uma satisfação
profunda:
—É levado do diabo, Villaça!
O administrador, sentado agora á borda de uma
cadeira, esboçou uma risadinha muda; depois ficou
calado, olhando Affonso, com as mãos nos joelhos,
como esquecido e vago. Ia abrir os labios, hesitou
ainda, tossio de leve; e continuou a seguir pensativamente
as faiscas que erravam sobre as achas.
Affonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas
para o lume, recomeçara a fallar do Silveirinha.
Tinha tres ou quatro mezes mais que Carlos, mas
estava enfesado, estiolado, por uma educação
á portugueza:
[103]
d'aquella edade ainda dormia no chôco com
as criadas, nunca o lavavam para o não constiparem,
andava couraçado de rolos de flanellas! Passava os
dias nas saias da titi a decorar versos, paginas inteiras
do
Cathecismo de
Perseverança. Elle por curiosidade
um dia abrira este livreco e vira lá, «que
o sol é que anda em volta da terra (como antes de
Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhãs dá
as
ordens ao sol, para onde ha d'ir e onde ha de parar,
etc., etc.» E assim lhe estavam arranjando uma
almasinha de bacharel...
Villaça teve outra risadinha silenciosa. Depois,
como subitamente decidido, ergueu-se, fez estalar
os dedos, disse estas palavras:
—V. ex.
a sabe que appareceu a Monforte?
Affonso, sem mover a cabeça, reclinado para as
costas da poltrona, perguntou tranquillamente, envolvido
no fumo do cachimbo:
—Em Lisboa?
—Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar, esse
rapaz que escreve, e que era muito de Arroios...
Esteve até em casa d'ella.
E ficaram calados. Havia annos que entre elles
se não pronunciara o nome de Maria Monforte. Ao
principio, quando se retirara para Santa Olavia, a
preoccupação ardente de Affonso da Maia
fôra tirar-lhe
a filha que ella levara. Mas a esse tempo ninguem
sabia onde Maria se refugiara com o seu principe:
nem pela influencia das legações, nem pagando
regiamente a policia secreta de Paris, de Londres,
[104]
de Madrid, se poude descobrir a «toca da fera» como
disia então o Villaça. Ambos decerto tinham
mudado
de nome; e, dadas essas naturezas bohemias, quem
sabe se não errariam agora pela America, pela India,
em regiões mais exoticas? Depois, pouco a pouco,
Affonso da Maia descorçoado com aquelles esforços
vãos, todo occupado do neto que crescia bello e forte
ao seu lado, no enternecimento continuo que elle lhe
dava foi esquecendo a Monforte e a sua outra neta,
tão distante, tão vaga, a quem ignorava as
feições,
de quem mal sabia o nome. E agora de repente a
Monforte apparecia outra vez em Paris! e o seu pobre
Pedro estava morto! e aquella creança que dormia ao
fundo do corredor nunca vira sua mãe...
Erguera-se, passeiava na livraria, pesado e lento,
com a cabeça baixa. Junto á mesa, ao
pé do candieiro,
o Villaça ia percorrendo um a um os papeis da sua
carteira.
—E está em Paris com o italiano? perguntou Affonso
do fundo sombrio do aposento.
O Villaça ergueu a cabeça de sobre a carteira, e
disse:
—Não senhor, está com quem lhe paga.
E como Affonso se aproximava da mesa, sem uma
palavra, Villaça, dando-lhe um papel dobrado, accrescentou:
—Todas estas cousas são muito graves, sr. Affonso
da Maia, e eu não quiz fiar-me só na minha
memoria.
Por isso pedi ao Alencar, que é um excellente
rapaz, que me escrevesse n'uma carta tudo o que
[105]
me contou. Assim temos um documento. Eu não sei
mais do que ahi está escripto. Póde V. Ex.
a
ler...
Affonso desdobrou as duas folhas de papel. Era
uma historia simples, que o Alencar, o poeta das
Vozes d'Aurora, o estylista de
Elvira, ornára de flores
e de galões dourados como uma capella em dia de
festa.
Uma noite, ao sahir da
Maison d'Or,
elle vira a
Monforte saltar d'um
coupé com dois homens de
gravata
branca; tinham-se logo reconhecido; e um momento
ficaram hesitando, um defronte do outro, debaixo
do candieiro de gaz, no
trottoir.
Foi ella que,
muito decidida, rindo, estendeu a mão ao Alencar,
pediu-lhe que a visitasse, deu-lhe a
adresse, o nome
por que devia perguntar: M.
me de l'Estorade. E
no
seu
boudoir, na manhã
seguinte a Monforte fallou largamente
de si: vivera tres annos em Vienna d'Austria
com Tancredo, e com o papá que se lhes fôra
reunir—e que lá continuava de certo, como em Arroios,
refugiando-se pelos cantos das salas, pagando
as
toilettes da filha, e dando
palmadinhas ternas no
hombro do amante como outr'ora no hombro do
marido. Depois tinham estado em Monaco; e ahi,
dizia o Alencar, «n'um drama sombrio de paixão que
ella me fez entrever» o napolitano fora morto em
duello. O papá morrera tambem n'esse anno, deixando
apenas da sua fortuna uns magros contos de
réis, e a mobilia da casa em Vienna: o velho arruinara-se
com o luxo da filha, com as viagens, com as
perdas de Tancredo ao
baccarat.
Passára então um
[106]
tempo em Londres: e d'ahi viera habitar Paris, com
Mr. de l'Estorade, um jogador, um espadachim, que
acabou de a arrasar, e que a abandonou legando-lhe
esse nome de l'Estorade, que lhe era a elle d'ora em
diante inutil porque passava a adoptar outro mais
sonoro de
Vicomte de Manderville.
Emfim, pobre, formosa,
doida, excessiva, lançara-se na existencia
d'aquellas mulheres de quem, dizia o Alencar, «a
pallida Margarida Gautier, a gentil
Dama das
Camelias
é o typo sublime, o symbolo poetico, a quem
muito será perdoado porque muito amaram.» E o
poeta terminava: «ella está ainda no esplendor da
belleza, mas as rugas virão, e então que
avistará
em redor de si? As rosas seccas e ensanguentadas
da sua coroa de esposa. Sahi d'aquelle
boudoir perfumado,
com a alma dilacerada, meu Villaça! Pensava
no meu pobre Pedro, que lá jaz sob o raio de
luar, entre as raizes dos cyprestes. E, desilludido
d'esta cruel vida, vim pedir ao absintho, no
boulevard,
uma hora de esquecimento.»
Affonso da Maia deu um repellão á carta, menos
enojado das torpezas da historia, que d'aquelles lyrismos
relambidos.
E recomeçou a passear, emquanto o Villaça
recolhia
religiosamente o documento que tinha relido muitas
vezes, na admiração do sentimento, do estylo,
do ideal d'aquella pagina.
—E a pequena? perguntou Affonso.
—Isso não sei. O Alencar não lhe
fallaría na filha,
nem elle mesmo sabe que ella a levou. Ninguem o
[107]
sabe em Lisboa. Foi um detalhe que passou desapercebido
no grande escandalo. Mas emquanto a mim,
a pequena morreu. Senão, siga V. ex.
a
o meu raciocinio...
Se a menina fosse viva, a mãe podia reclamar
a legitima que cabe á creança... Ella sabe a
casa que V. ex.
a tem; ha de haver dias, e
são frequentes
na vida d'essas mulheres, em que lhe falte
uma libra... Com o pretexto da educação da
menina,
ou de alimentos, já nos tinha importunado...
Escrupulos não tem ella. Se o não faz
é que a filha
morreu. Não lhe parece a V. ex.
a?
—Talvez, disse Affonso.
E accrescentou, parando deante de Villaça—que
olhava outra vez a braza morta tirando estalinhos dos
dedos:
—Talvez... Sopônhamos que morreram ambas,
e não se falle mais n'isso.
Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se.
E durante os dias que Villaça passou em
S.
ta Olavia não se proferiu mais o
nome de Maria
Monforte.
Mas, na vespera da partida do administrador para
Lisboa, Affonso subio ao quarto d'elle, a entregar-lha
as amendoas da Paschoa que Carlos mandava a
Villaça Junior, um alfinete de peito com uma magnifica
saphira—e disse-lhe em quanto o outro, sensibilisado,
balbuciava os agradecimentos:
—Agora outra cousa, Villaça. Tenho estado a pensar.
Vou escrever a meu primo Noronha, ao André
que vive em Paris como você sabe, pedir-lhe que
[108]
procure essa creatura, e que lhe offereça dez ou
quinze contos de réis, se ella me quizer entregar a
filha... No caso, está claro, que esteja viva... E
quero que você saiba d'esse Alencar a morada da
mulher em Paris.
O Villaça não respondeu, occupado a metter entre
as camisas, bem no fundo da maleta, a caixinha com
o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou deante d'Affonso,
a coçar reflectidamente o queixo.
—Então que lhe parece, Villaça?
—Parece-me arriscado.
E deu as suas razões. A menina devia ir nos seus
treze annos. Estava uma mulher, com o seu temperamento
formado, o caracter feito, talvez os seus habitos...
Nem fallaria o portuguez. As saudades da
mãe haviam de ser terriveis... Emfim, o sr. Affonso
de Maia trazia uma extranha para casa...
—Você tem rasão, Villaça. Mas a mulher
é uma
prostituta, e a pequena é do meu sangue.
N'esse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor
pelo vovô, precipitou-se no quarto, esguedelhado,
escarlate como uma romã.—O Brown tinha achado
uma corujasinha pequena! Queria que o vovô viesse,
ver, andara a buscal-o por toda a casa... Era de morrer
a rir... Muito pequena, muito feia, toda pellada,
e com dois olhos de gente grande! E sabiam
onde havia o ninho...
—Vem depressa, ó vovô! Depressa, que é
necessario
ir pol-a no ninho, por causa da coruja velha
que se póde affligir... O Brown está-lhe a dar
azeite.
[109]
Oh Villaça vem ver! O vovô, pelo amor de Deus! Tem
uma cara tão engraçada! Mas depressa, depressa,
que
a coruja velha póde dar pela falta!...
E impaciente com a lentidão risonha do vôvo,
tanta
indifferença pela inquietação da
coruja velha, abalou
atirando com a porta.
—Que bom coração! exclamou o
Villaça commovido.
A pensar nas saudades da coruja... A mãe
d'elle é que não tem saudades! Sempre o disse,
é
uma fera!
Afonso encolheu tristemente os hombros. Iam já
no corredor quando elle, parando um momento, baixando
a voz:
—Tem-me esquecido de lhe contar, Villaça, o Carlos
sabe que o pae que se matou...
Villaça arredondou os olhos d'espanto. Era verdade.
Uma manhã entrara-lhe pela livraria, e
dissera-lhe:—ó
vovô, o papá matou-se com uma
pistola!—Naturalmente
algum creado que lh'o contara...
—E vossa excellencia?
—Eu... Que havia de fazer? Disse-lhe que sim.
Em tudo tenho obedecido ao que Pedro me pediu,
n'essas quatro ou cinco linhas da carta que me deixou.
Quiz ser enterrado em S.
ta Olavia, ahi
está.
Não
queria que o filho jámais soubesse da fuga da
mãe;
e por mim, de certo, nunca o saberá. Quiz que dois
retratos que havia d'ella em Arroios fossem destruidos;
como você sabe, obtiveram-se e destruiram-se.
Mas não me pedio que occultasse ao rapaz o seu
fim. E por isso, disse ao pequeno a verdade: disse-lhe
[110]
que n'um momento de loucura, o papá tinha dado
um tiro em si...
—E
elle?
—E elle, replicou Affonso sorrindo, perguntou-me
quem lhe tinha dado a pistola, e torturou-me toda
uma manhã para lhe dar tambem uma pistola... E
ahi está o resultado d'essa revelação:
é que tive de
mandar vir do Porto uma pistóla de vento...
Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda
pelo avó, os dois apressaram-se a ir admirar a corujazinha.
Villaça ao outro dia partiu para Lisboa.
Passadas duas semanas, Affonso recebia uma carta
do administrador, trasendo-lhe, com a
adresse da Monforte,
uma revelação imprevista. Tinha voltado a casa
do Alencar; e o poeta, recordando outros incidentes
da sua visita a M.
me de l'Estorade, contara-lhe
que
no
boudoir d'ella havia um adoravel
retrato de creança,
de olhos negros, cabello d'azeviche, e uma pallidez de
nacar. Esta pintura ferira-o, não só por ser d'um
grande pintor inglez, mas por ter, pendente sob o
caixilho como um voto funerario, uma linda coroa de
flores de cera brancas e roxas. Não havia outro quadro
no
boudoir: e elle perguntara
á Monforte se era
um retrato ou uma phantasia. Ella respondera que
era o retrato da filha que lhe morrera em Londres.
«Estão assim dissipadas todas as duvidas,
accrescentava
o Villaça. O pobre anjinho está n'uma patria.
melhor. E para ella,
bem
melhor!»
Affonso, todavia, escreveu a André de Noronha.
[111]
A resposta tardou. Quando o primo André procurara
M.
me de l'Estorade, havia semanas que ella
partira
para Allemanha, depois de vender mobilia e cavallos.
E no
Club Imperial, a que elle
pertencia, um
amigo que conhecia bem M.
me de l'Estorade e a
vida
galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com
um certo Catanni, acrobata do Circo d'Inverno nos
Campos Elyseos, homem de fórmas magnificas, um
Appolo de feira, que todas as cocottes se disputavam
e que a Monforte empolgára. Naturalmente corria
agora a Allemanha com a companhia de cavallinhos.
Affonso da Maia, enojado, remetteu esta carta ao
Villaça sem um commentario. E o honrado homem
respondeu: «Tem V. ex.
a
rasão, é
atroz: e mais
vale suppor que todos morreram, e não gastar mais
cera com tão ruins defuntos...» E depois n'um
post-scriptum
accrescentava: «Parece certo abrir-se em
breve o caminho de ferro até ao Porto: em tal caso,
com permissão de V. Ex.
a, ahi irei e
o meu rapaz
a pedirmos-lhe alguns dias d'hospitalidade.»
Esta carta foi recebida em S.
ta Olavia um
domingo,
ao jantar. Affonso lera alto o P. S. Todos se alegraram,
na esperança de ver o bom Villaça em breve
na quinta; e fallou-se mesmo em arranjar um grande
pic-nic, rio acima.
Mas, terça feira á noite, chegava um telegramma
de
Manuel Villaça annunciando que o pae morrera, n'essa
manhã, d'uma apoplexia: dois dias depois vinham
mais longos e tristes pormenores. Fora depois do almoço
[112]
que, de repente, Villaça se sentira muito
suffocado,
e com tonturas: ainda tivera forças d'ir ao quarto
respirar um pouco d'ether: mas ao voltar á sala cambaleava,
queixava-se de vêr tudo amarello, e caiu de
bruços, como um fardo, sobre o canapé. O seu
pensamento,
que se extinguia para sempre, ainda n'esse
momento se occupou da casa que ha trinta annos
administrava: balbuciou, a respeito d'uma venda de
cortiça, recomendações que o filho
já não poude perceber:
depois deu um grande ai; e só tornou a abrir
os olhos, para murmurar no derradeiro sopro estas
derradeiras palavras:
Saudades ao
patrão!
Affonso da Maia ficou profundamente afectado,
e em S.
ta Olavia, mesmo entre os creados, a
morte
de Villaça foi como um lucto domestico. Uma d'essas
tardes, o velho, muito melancolico, estava na livraria
com um jornal esquecido nas mãos, os olhos cerrados—quando
Carlos, que ao lado rabiscava carantonhas
n'um papel, veio passar-lhe um braço pelo
pescoço, e como comprehendendo os seus pensamentos
perguntou-lhe se o Villaça não voltaria a vel-os
à quinta.
—Não filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos
a vêr.
O pequeno, entre os joelhos e os braços do velho,
olhava o tapete, e, como recordando-se, murmurou
tristemente:
—O Villaça, coitado... Dava estalinhos com os
dedos... Oh vovô, para onde o levaram?
—Para o cemiterio, filho, para debaixo da terra.
[113]
Então Carlos desprendeu-se devagar do
abraço
do avô, e muito sério, com os olhos n'elle:
—Ó vovô! porque não lhe mandas fazer
uma
capellinha bonita, toda de pedra, com uma figura,
como tem o papá?
O velho achegou-o ao peito, beijou-o, commovido:
—Tens razão, filho. Tens mais coração
que eu!
Assim o bom Villaça teve no cemiterio dos Prazeres
o seu jazigo—que fôra a alta ambição
da
sua existência modesta.
Outros annos tranquillos passaram sobre Santa
Olavia.
Depois uma manhã de julho, em Coimbra, Manuel
Villaça (agora administrador da casa) trepava
as escadas do Hotel Mondego, onde Affonso se hospedára
com o neto, e entrava-lhe pela sala, vermelho,
suando, berrando:
—
Neminè!
Neminè!
Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame!
Teixeira que tinha acompanhado os senhores
de Santa Olavia correu á porta, abraçou-se quasi
chorando no menino, agora mais alto que elle, e
muito formoso na sua batina nova.
Em cima no quarto, Manuel Villaça, soprando
ainda, limpando as bagas de suor, exclamava:
—Ficou tudo espantado, snr. Affonso
da Maia!
[114]
Os lentes até estavam commovidos. Ih Jesus! que
talento! Vem a ser um grande homem, é o que
todo o mundo disse... E que faculdade vai elle seguir,
meu senhor?
Affonso, que passeava, todo tremulo, respondeu
com um sorriso:
—Não sei, Villaça... Talvez nos formemos ambos
em Direito.
Carlos assomou á porta, radiante, seguido do
Teixeira e do outro escudeiro—que trazia
champagne
n'uma salva.
—Então venha cá, seu maroto, disse Affonso
muito branco, com os braços abertos. Bom exame,
hein?... Eu...
Mas não pôde proseguir: as lagrimas, duas a
duas, corriam-lhe pela barba branca.
IV
Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia
o dr. Trigueiros houvera sempre n'aquelle menino
realmente uma «vocação para
Esculapio».
A «vocação»
revelára-se bruscamente um dia
que elle descobriu no sotão, entre rumas de velhos
alfarrabios, um rolo manchado e antiquado de estampas
anatomicas; tinha passado dias a recortal-as,
pregando pelas paredes do quarto figados, liaças
de intestinos, cabeças de perfil «com o recheio
á
mostra». Uma noite mesmo rompera pela sala em
triumpho, a mostrar ás Silveiras, ao Euzebio, a pavorosa
lithographia de um feto de seis mezes no
utero materno. D. Anna recuou, com um grito,
collando o leque á face: e o dr. delegado, escarlate
tambem, arrebatou prudentemente Euzebiosinho
[116]
para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mão.
Mas o que escandalisou mais as senhoras foi a indulgencia
de Affonso.
—Então que tem, então que tem? dizia elle
sorrindo.
—Que tem, snr. Affonso da Maia!? exclamou
D. Anna. São indecencias!
—Não ha nada indecente na natureza, minha
rica senhora. Indecente é a ignorancia... Deixar
lá o
rapaz. Tem curiosidade de saber como é esta pobre
machina por dentro, não ha nada mais louvavel...
D. Anna abanava-se, suffocada. Consentir taes
horrores nas mãos da criança!... Carlos
começou
a apparecer-lhe como um libertino «que já sabia
coisas»; e não consentiu mais que a Therezinha
brincasse só com elle pelos corredores de Santa
Olavia.
As pessoas sérias porém, o dr. juiz de direito, o
proprio abbade, lamentando, sim, que não houvesse
mais recato, concordavam que aquillo mostrava
no pequeno uma grande queda para a medicina.
—Se péga, dizia então com um gesto prophetico
o dr. Trigueiros, temos d'alli coisa grande!
E parecia pegar.
Em Coimbra, estudante do Lyceu, Carlos deixava
os seus compendios de logica e rhetorica para se
occupar de anatomia: n'umas ferias, ao abrir das
malas, a Gertrudes fugiu espavorida vendo alvejar
entre as dobras d'um casaco o riso d'uma caveira:
e se algum criado da quinta adoecia, lá estava Carlos
logo revolvendo o caso em velhos livros de medicina
[117]
da livraria, sem lhe largar a beira do catre,
fazendo diagnosticos que o bom dr. Trigueiros escutava
respeitoso e pensativo. Diante do avô já chamava
mesmo ao menino «o seu talentoso collega».
Esta inesperada carreira de Carlos (pensára-se
sempre que elle tomaria capello em Direito) era
pouco approvada entre os fieis amigos de Santa
Olavia. As senhoras sobretudo lamentavam que um
rapaz que ia crescendo tão formoso, tão bom
cavalleiro,
viesse a estragar a vida receitando emplastros,
e sujando as mãos no jorro das sangrias. O
dr. juiz de direito confessou mesmo um dia a sua
descrença de que o snr. Carlos da Maia quizesse
«ser medico a sério».
—Ora essa! exclamou Affonso. E porque não ha
de ser medico a sério? Se escolhe uma profissão
é
para a exercer com sinceridade e com ambição,
como os outros. Eu não o educo para vadio, muito
menos para amador; educo-o para ser util ao seu
paiz...
—Todavia, arriscou o dr. juiz de direito com um
sorriso fino, não lhe parece a v. exc.
a
que ha outras
coisas, importantes tambem, e mais proprias
talvez, em que seu neto se poderia tornar util?...
—Não vejo, replicou Affonso da Maia. N'um paiz
em que a occupação geral é estar
doente, o maior
serviço patriotico é incontestavelmente saber
curar.
—V. exc.
a tem resposta para tudo, murmurou
respeitosamente o magistrado.
E o que justamente seduzia Carlos na medicina
era essa vida «a sério», pratica e util,
as escadas
[118]
de doentes galgadas á pressa no fogo de uma vasta
clinica, as existencias que se salvam com um golpe
de bisturí, as noites veladas á beira de um
leito,
entre o terror de uma familia, dando grandes batalhas
á morte. Como em pequeno o tinham encantado
as fórmas pittorescas das vísceras—attrahiam-no
agora estes lados militantes e heroicos da sciencia.
Matriculou-se realmente com enthusiasmo. Para
esses longos annos de quieto estudo o avô
preparára-lhe
uma linda casa em Cellas, isolada, com graças
de cottage inglez, ornada de persianas verdes,
toda fresca entre as arvores. Um amigo de Carlos
(um certo João da Ega) poz-lhe o nome de
«Paços
de Cellas», por causa de luxos então raros na
Academia,
um tapete na sala, poltronas de marroquim,
panoplias d'armas, e um escudeiro de libré.
Ao principio este esplendor tornou Carlos venerado
dos fidalgotes, mas suspeito aos democratas;
quando se soube porém que o dono d'estes confortos
lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer,
e considerava tambem o paiz uma
choldra
ignobil—os
mais rigidos revolucionarios começaram a
vir aos Paços de Cellas tão familiarmente como ao
quarto do Trovão, o poeta bohemio, o duro socialista,
que tinha apenas por mobilia uma enxerga e
uma Biblia.
Ao fim d'alguns mezes, Carlos, sympathico a todos,
conciliára Dandys e Philosophos: e trazia muitas
vezes no seu
break, lado a lado, o
Serra Torres,
um monstro que já era addido honorario em
[119]
Berlim e todas as noites punha casaca, e o famoso
Craveiro que meditava a
Morte de
Satanaz, encolhido
no seu gabão d'Aveiro, com o seu grande
barrete de lontra.
Os Paços de Cellas, sob a sua apparencia
preguiçosa
e campestre, tornaram-se uma fornalha de
actividades. No quintal fazia-se uma gymnastica
scientifica. Uma velha cozinha fôra convertida em
sala d'armas—porque n'aquelle grupo a esgrima
passava como uma necessidade social. Á noite, na
sala de jantar, moços sérios faziam um
whist sério:
e no salão, sob o lustre de crystal, com o
Figaro,
o
Times e as
Revistas de Paris e de Londres
espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao piano tocando
Chopin ou Mozart, os litteratos estirados pelas
poltronas—havia ruidosos e ardentes cavacos, em
que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo,
o Papado, Bismark, o Amor, Hugo e a Evolução,
tudo por seu turno flammejava no fumo do tabaco,
tudo tão ligeiro e vago como o fumo. E as
discussões metaphysicas, as proprias certezas
revolucionarias
adquiriam um sabor mais requintado
com a presença do criado de farda desarrolhando
a cerveja, ou servindo croquettes.
Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas
mesas, com as folhas intactas, os seus expositores
de medicina. A Litteratura e a Arte, sob todas as
fórmas, absorveram-no deliciosamente. Publicou
sonetos no
Instituto—e um artigo
sobre o Parthenon:
tentou, n'um
atelier improvisado, a
pintura a
oleo: e compoz contos archeologicos, sob a influencia
[120]
da
Salammbô.
Além d'isso todas as tardes passeava
os seus dois cavallos. No segundo anno levaria
um
R se não fosse tão
conhecido e rico. Tremeu,
pensando no desgosto do avô: moderou a
dissipação
intellectual, acantoou-se mais na sciencia que
escolhera: immediatamente lhe deram um
accessit.
Mas tinha nas veias o veneno do dilettantismo: e
estava destinado, como dizia João da Ega, a ser um
d'esses medicos litterarios que inventam doenças
de que a humanidade papalva se presta logo a
morrer!
O avô, ás vezes, vinha passar uma, duas semanas
a Cellas. Nos primeiros tempos a sua presença,
agradavel aos cavalheiros da partilha de
whist, desorganisou
o cavaco litterario. Os rapazes mal ousavam
estender o braço para o copo da cerveja; e os
vossa excellencia isto,
vossa excellencia aquillo, regelavam
a sala. Pouco a pouco, porém, vendo-o
apparecer em chinelas e de cachimbo na boca, estirar-se
na poltrona com ares sympathicos de patriarcha
bohemio, discutir arte e litteratura, contar
anecdotas do seu tempo d'Inglaterra e d'Italia, começaram
a consideral-o como um camarada de barbas
brancas. Diante d'elle já se fallava de mulheres
e de estroinices. Aquelle velho fidalgo, tão rico,
que lêra Michelet e o admirava—chegou mesmo
a enthusiasmar os democratas. E Affonso gozava
alli tambem horas felizes, vendo o seu Carlos centro
d'aquelles moços de estudo, de ideal e de veia.
Carlos passava as ferias grandes em Lisboa, ás
vezes em Paris ou Londres; mas por Nataes e Pascoas
[121]
vinha sempre a Santa Olavia, que o avô mais
só se entretinha a embellezar com amor. As salas
tinham agora soberbos pannos d'Arraz, paizagens
de Rousseau e Daubigny, alguns moveis de luxo e
d'arte. Das janellas a quinta offerecia aspectos nobres
de parque inglez: através dos macios taboleiros
de relva, davam curvas airosas as ruas areadas:
havia marmores entre as verduras; e gordos
carneiros de luxo dormiam sob os castanheiros.
Mas a existencia n'este meio rico não era agora
tão alegre: a viscondessa, cada dia mais nutrida,
cahia em somnos congestivos logo depois do jantar;
o Teixeira primeiro, a Gertrudes depois, tinham
morrido, ambos de pleurizes, ambos no entrudo:
e já se não via tambem á mesa a
bondosa
face do abbade, que lá jazia sob uma cruz de pedra,
entre os goivos e as rosas de todo o anno. O
dr. juiz de direito com a sua concertina passára
para a Relação do Porto; D. Anna Silveira, muito
doente, nunca sahia; a Therezinha fizera-se uma
rapariguinha feia, amarella como uma cidra; o Euzebiosinho,
mollengão e tristonho, já sem vestigios
sequer do seu primeiro amor aos alfarrabios e ás
letras, ia casar na Regoa. Só o dr. delegado, esquecido
n'aquella comarca, estava o mesmo, mais
calvo talvez, sempre affavel, amando sempre a pachorrenta
Eugenia. E quasi todas as tardes, o velho
Trigueiros se apeava da sua egoa branca ao
portão para vir cavaquear com o collega.
As ferias, realmente, só eram divertidas para
Carlos quando trazia para a quinta o seu intimo, o
[122]
grande João da Ega, a quem Affonso da Maia se
affeiçoára muito, por elle e pela sua
originalidade,
e por ser sobrinho d'André da Ega, velho amigo
da sua mocidade e, muitas vezes outr'ora, hospede
tambem em Santa Olavia.
Ega andava-se formando em Direito, mas devagar,
muito pausadamente—ora reprovado, ora perdendo
o anno. Sua mãi, rica, viuva e beata, retirada
n'uma quinta ao pé de Celorico de Basto com
uma filha, beata, viuva e rica tambem, tinha apenas
uma noção vaga do que o Joãozinho
fizera, todo
esse tempo, em Coimbra. O capellão affirmava-lhe
que tudo havia de acabar a contento, e que o menino
seria um dia doutor como o papá e como o
titi: e esta promessa bastava á boa senhora, que
se occupava sobretudo da sua doença de entranhas
e dos confortos d'esse padre Seraphim. Estimava
mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures,
longe da quinta, que elle escandalisava com a
sua irreligião e as suas facecias hereticas.
João da Ega, com effeito, era considerado não
só
em Celorico, mas tambem na Academia que elle espantava
pela audacia e pelos ditos, como o maior
atheu, o maior demagogo, que jámais apparecera
nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por systema
exagerou o seu odio á Divindade, e a toda a
Ordem social: queria o massacre das classes-médias,
o amor livre das ficções do matrimonio, a
repartição
das terras, o culto de Satanaz. O esforço
da intelligencia n'este sentido terminou por lhe influenciar
as maneiras e a physionomia; e, com a
[123]
sua figura esgrouviada e sêcca, os pêllos do bigode
arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado
de vidro entalado no olho direito—tinha realmente
alguma coisa de rebelde e de satanico. Desde a
sua entrada na Universidade renovára as
tradições
da antiga Bohemia: trazia os rasgões da batina
cozidos a linha branca; embebedava-se com carrascão;
á noite, na Ponte, com o braço erguido,
atirava injurias a Deus. E no fundo muito sentimental,
enleado sempre em amores por meninas de
quinze annos, filhas de empregados, com quem ás
vezes ia passar a soirée, levando-lhes cartuchinhos
de dôce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o appetecido
nas familias.
Carlos escarnecia estes idyllios futricas; mas tambem
elle terminou por se enredar n'um episodio
romantico com a mulher d'um empregado do governo
civil, uma lisboetasinha, que o seduziu pela
graça d'um corpo de boneca e por uns lindos olhos
verdes. A ella o que a fanatisára fôra o luxo, o
groom, a egoa ingleza de Carlos.
Trocaram-se cartas;
e elle viveu semanas banhado na poesia aspera
e tumultuosa do primeiro amor adultero. Infelizmente
a rapariga tinha o nome barbaro de Hermengarda;
e os amigos de Carlos, descoberto o segredo,
chamavam-lhe já
Eurico o
presbytero, dirigiam
para Cellas missivas pelo correio com este
nome odioso.
Um dia Carlos, andava tomando o sol na Feira,
quando o empregado do governo civil passou junto
d'elle com o filhinho pela mão. Pela primeira vez
[124]
via tão de perto o marido de Hermengarda. Achou-o
enxovalhado e macilento. Mas o pequerrucho era
adoravel, muito gordo, parecendo mais roliço por
aquelle dia de janeiro sob os agasalhos de lã azul,
tremelicando nas pobres perninhas rôxas de frio,
e rindo na clara luz—rindo todo elle, pelos olhos,
pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas das
faces. O pae amparava-o; e o encanto, o cuidado
com que o rapaz ia assim guiando os passos do
seu filho, impressionou Carlos. Era no momento
em que elle lia Michelet—e enchia-lhe a alma a
veneração litteraria da santidade domestica.
Sentiu-se
canalha em andar alli de cima do seu
dog-cart,
a preparar friamente a vergonha, e as lagrimas
d'aquelle pobre pae tão inoffensivo no seu
paletot coçado! Nunca mais respondeu ás cartas
em que Hermengarda lhe chamava
seu
ideal. Decerto
a rapariga se vingou, intrigando-o; porque o
empregado do governo civil, d'ahi por diante, dardejava
sobre elle olhares sangrentos.
Mas a grande «topada sentimental de Carlos»,
como disse o Ega, foi quando elle, ao fim d'umas
ferias, trouxe de Lisboa uma soberba rapariga
hespanhola, e a installou n'uma casa ao pé de Cellas.
Chamava-se Encarnacion. Carlos alugou-lhe
ao mez uma vittoria com um cavallo branco e
Encarnacion fanatisou Coimbra como a apparição
d'uma
Dama das Camelias, uma
flôr de luxo das
civilisações superiores. Pela Calçada,
pela estrada
da Beira, os rapazes paravam, pallidos de emoção,
quando ella passava, reclinada na vittoria, mostrando
[125]
o sapato de setim, um pouco da meia de
sêda, languida e desdenhosa, com um cãosinho
branco no regaço.
Os poetas da Academia fizeram-lhe versos em
que Encarnacion foi chamada
Lirio
d'Israel,
Pomba
da Arca, e
Nuvem da
Manhã. Um estudante
de theologia, rude e sebento transmontano, quiz
casar com ella. Apesar das instancias de Carlos,
Encarnacion recusou; e o theologo começou a
rondar Cellas, com um navalhão, para «beber o
sangue» ao Maia. Carlos teve de lhe dar bengaladas.
Mas a creatura, desvanecida, tornou-se intoleravel,
fallando sem cessar d'outras paixões que
inspirára
em Madrid e em Lisboa, do muito que lhe
dera o conde de tal, o marquez sicrano, da grande
posição da sua familia ainda aparentada com
os Medina-C
œli:
os seus sapatos de setim verde
eram tão antipathicos como a sua voz estridula:
e quando tentava elevar-se ás
conversações que ouvia,
rompia a chamar ladrões aos republicanos, a
celebrar os tempos de D. Isabel, a sua
gracia, o
seu
salero—sendo muito conservadora
como todas
as prostitutas. João da Ega odiava-a. E Craveiro
declarou que não voltava aos Paços de
Cellas emquanto por lá apparecesse aquelle montão
de carne, pago ao arratel, como a de vacca.
Emfim, uma tarde Baptista, o famoso criado de
quarto de Carlos surprehendeu-a com um Juca
que fazia de dama no Theatro Academico. Ahi estava,
emfim, um pretexto! E, convenientemente
[126]
paga, a parenta dos Medina-C
œli,
o
Lirio
d'Israel,
a admiradora dos Bourbons, foi recambiada a Lisboa
e á rua de S. Roque, seu elemento natural.
Em agosto, no acto da formatura de Carlos,
houve uma alegre festa em Cellas. Affonso viera
de Santa Olavia, Villaça de Lisboa; toda a tarde
no quintal, d'entre as acacias e as bella-sombras,
subiram ao ar mólhos de foguetes; e João da Ega,
que levára o seu ultimo
R no seu
ultimo anno,
não descansou, em mangas de camisa, pendurando
lanternas venezianas pelos ramos, no trapesio
e em roda do poço, para a illuminação
da noite.
Ao jantar, a que assistiam lentes, Villaça, enfiado e
tremulo, fez um
speech; ia citar o
nosso
immortal
Castilho quando sob as janellas rompeu, a grande
ruido de tambor e pratos, o
Hymno
Academico.
Era uma serenata.—Ega, vermelho, de batina
desabotoada, a luneta para traz das costas, correu
á sacada, a perorar:
—Ahi temos o nosso Maia, Carolus Eduardus
ab Maia, começando a sua gloriosa carreira, preparado
para salvar a humanidade enferma—ou acabar
de a matar, segundo as circumstancias! A
que parte remota d'estes reinos não chegou já a
fama do seu genio, do seu
dog-cart,
do sebaceo
accessit que lhe ennodôa o
passado, e d'este vinho
do Porto, contemporaneo dos heroes de 20, que
eu, homem de revolução e homem de carraspana,
eu, João da Ega, Johanes ab Ega...
O grupo escuro em baixo desatou aos
vivas. A
philarmonica, outros estudantes, invadiram os Paços.
[127]
Até tarde, sob as arvores do quintal, na
sala
atulhada de pilhas de pratos, os criados correram
com salvas de dôce, não cessou d'estalar o
champagne.
E Villaça, limpando a testa, o pescoço,
abafado de calor, ia dizendo a um, a outro, a si
mesmo tambem:
—Grande coisa, ter um curso!
E então Carlos Eduardo partira para a sua longa
viagem pela Europa. Um anno passou. Chegára
esse outono de 1875: e o avô installado emfim
no Ramalhete esperava por elle anciosamente. A
ultima carta de Carlos viera de Inglaterra, onde
andava, dizia elle, a estudar a admiravel
organisação
dos hospitaes de crianças. Assim era: mas
passeava tambem por Brighton, apostava nas corridas
de Goodwood, fazia um idyllio errante pelos
lagos da Escocia, com uma senhora hollandeza,
separada de seu marido, veneravel magistrado da
Haya, uma M.
me Rughel, soberba creatura de
cabellos
d'ouro fulvo, grande e branca como uma
nympha de Rubens.
Depois começaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete,
caixas successivas de livros, outras de instrumentos
e apparelhos, toda uma bibliotheca e
todo um laboratorio—que trazia o Villaça, manhãs
inteiras, aturdido pelos armazens da alfandega.
—O meu rapaz vem com grandes idéas de trabalho,
dizia Affonso aos amigos.
[128]
Havia quatorze mezes que elle o não via, o
«seu rapaz», a não ser n'uma
photographia mandada
de Milão, em que todos o acharam magro
e triste. E o coração batia-lhe forte, na linda
manhã de outono, quando do terraço do Ramalhete,
de binoculo na mão, viu assomar vagarosamente,
por traz do alto predio fronteiro, um
grande paquete do
Royal Mail que,
lhe trazia o
seu neto.
Á noite os amigos da casa, o velho Sequeira,
D. Diogo Coutinho, o Villaça—não se fartavam
d'admirar «o bem que a viagem fizera a Carlos».
Que differença da photographia! Que forte, que
saudavel!
Era decerto um formoso e magnifico moço, alto,
bem feito, de hombros largos, com uma testa de
marmore sob os anneis dos cabellos pretos, e os
olhos dos Maias, aquelles irresistiveis olhos do
pai, de um negro liquido, ternos como os d'elle e
mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanho-escura,
rente na face, aguçada no queixo—o
que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos
cantos da boca, uma physionomia de bello cavalleiro
da Renascença. E o avô, cujo olhar risonho e
humido transbordava d'emoção, todo se orgulhava
de o vêr, de o ouvir, n'uma larga veia, fallando da
viagem, dos bellos dias de Roma, do seu mau humor
na Prussia, da originalidade de Moscow, das
paizagens da Hollanda...
—E agora? perguntou-lhe o Sequeira, depois de
um momento de silencio em que Carlos estivera bebendo
[129]
o seu cognac e soda. Agora que tencionas tu
fazer?
—Agora, general? respondeu Carlos, sorrindo e
pousando o copo. Descançar primeiro e depois passar
a ser uma gloria nacional!
Ao outro dia, com effeito, Affonso veiu encontral-o
na sala de bilhar—onde tinham sido collocados os
caixotes—a despregar, a desempacotar, em mangas
de camisa e assobiando com enthusiasmo. Pelo chão,
pelos sophás, alastrava-se toda uma litteratura em
rumas de volumes graves; e aqui e além, por entre a
palha, através das lonas descozidas, a luz faiscava
n'um crystal, ou reluziam os vernizes, os metaes polidos
de apparelhos. Affonso pasmava em silencio para
aquelle pomposo apparato do saber.
—E onde vaes tu accommodar este museo?
Carlos pensara em arranjar um vasto laboratorio
alli perto no bairro, com fornos para trabalhos chimicos,
uma sala disposta para estudos anatomicos e
physiologicos, a sua bibliotheca, os seus apparelhos,
uma concentração methodica de todos os
instrumentos
de estudo...
Os olhos do avô illuminavam-se ouvindo este plano
grandioso.
—E que não te prendam questões de dinheiro,
Carlos! Nós fizemos n'estes ultimos annos de Santa
Olavia algumas economias...
—Boas e grandes palavras, avô! Repita-as ao
Villaça.
As semanas foram passando n'estes planos de
installação.
[130]
Carlos trazia realmente
resoluções sinceras
de trabalho: a sciencia como mera ornamentação
interior
do espirito, mais inutil para os outros que as
proprias tapessarias do seu quarto, parecia-lhe apenas
um luxo de solitario: desejava ser util. Mas as
suas ambições fluctuavam, intensas e vagas; ora
pensava
n'uma larga clinica; ora na composição macissa
de um livro iniciador; algumas vezes em experiencias
physiologicas, pacientes e reveladoras... Sentia em
si, ou suppunha sentir, o tumulto de uma força, sem
lhe discernir a linha d'applicação.
«Alguma cousa de
brilhante,» como elle dizia: e isto para elle, homem
de luxo e homem d'estudo, significava um conjuncto
de representação social e de actividade
scientifica; o
remecher profundo de idéas entre as influencias delicadas
da riqueza; os elevados vagares da philosophia
entremeados com requintes de
sport e
de gosto; um
Claude Bernard que fosse tambem um Morny... No
fundo era um
dilletante.
Villaça fôra consultado sobre a localidade propria
para o laboratorio; e o procurador, muito lisongeado,
jurou uma diligencia incançavel. Primeira cousa a
saber, o nosso doutor tencionava fazer clinica?...
Carlos não decidira fazer
exclusivamente clinica:
mas desejava de certo dar consultas, mesmo gratuitas,
como caridade e como pratica. Então Villaça
suggeriu
que o consultorio estivesse separado do laboratorio.
—E a minha razão é esta: a vista de apparelhos,
machinas, cousas, faz esmorecer os doentes...
[131]
—Tem você razão, Villaça! exclamou
Affonso. Já
meu pae dizia: poupe-se ao boi a vista do malho.
—Separados, separados, meu senhor, affirmou o
procurador n'um tom profundo.
Carlos concordou. E Villaça bem depressa descobriu,
para o laboratorio, um antigo armazem, vasto e
retirado, ao fundo de um pateo, junto ao largo das Necessidades.
—E o consultorio, meu senhor, não é aqui, nem
acolá; é no Rocio, alli em pleno Rocio!
Esta idéa do Villaça não era
desinteressada. Grande
enthusiasta da
Fusão,
membro do Centro progressista,
Villaça Junior aspirava a ser vereador da camara,
e mesmo em dias de satisfação superior (como
quando o seu anniversario natalicio vinha annunciado
no
Illustrado, ou quando no Centro
citava com applauso
a Belgica) parecia-lhe que tantas aptidões
mereciam do seu partido uma cadeira em S. Bento.
Um consultorio gratuito, no Rocio, o consultorio
do dr. Maia, «do seu Maia» reluziu-lhe logo
vagamente
como um elemento de influencia. E tanto se
agitou, que d'ahi a dois dias tinha lá alugado um
primeiro andar d'esquina.
Carlos mobilou-o com luxo. N'uma antecamara,
guarnecida de banquetas de marroquim, devia estacionar,
á franceza, um creado de libré. A sala de
espera dos doentes alegrava com o seu papel verde
de ramagens prateadas, as plantas em vasos de Rouen,
quadros de muita côr, e ricas poltronas cercando a
jardineira coberta de collecções do
Charivari, de vistas
[132]
estereoscopicas, d'albuns de actrizes semi-nuas; para
tirar inteiramente o ar triste de consultorio até um
piano mostrava o seu teclado branco.
O gabinete de Carlos ao lado era mais simples,
quasi austero, todo em velludo verde-negro, com estantes
de pau preto. Alguns amigos que começavam
a cercar Carlos, Taveira, seu contemporaneo e agora
visinho do Ramalhete, o Cruges, o marquez de Souzellas,
com quem percorrera a Italia—vieram vêr
estas maravilhas. O Cruges correu uma escala no
piano e achou-o abominavel; Taveira absorveu-se
nas photographias d'actrizes; e a unica
approvação
franca veiu do marquez, que depois de contemplar
o divan do gabinete, verdadeiro movel de serralho,
vasto, voluptuoso, fôfo, experimentou-lhe a doçura
das molas e disse, piscando o olho a Carlos:
—A calhar.
Não pareciam acreditar n'estes preparativos. E todavia
eram sinceros. Carlos até fizera annunciar o consultorio
nos jornaes; quando viu porem o seu nome
em letras grossas, entre o de uma engommadeira á
Boa Hora e um reclamo de casa de hospedes,—encarregou
Villaça de retirar o annuncio.
Occupava-se então mais do laboratorio, que decidira
installar no armazem, ás Necessidades. Todas
as manhãs, antes de almoço, ía visitar
as obras.
Entrava-se por um grande pateo, onde uma bella
sombra cobria um poço, e uma trepadeira se mirrava
nos ganchos de ferro que a prendiam ao muro. Carlos
já decidira transformar aquelle espaço em fresco
[133]
jardinete inglez; e a porta do casarão encantava-o,
ogival e nobre, resto de fachada d'ermida, fazendo
um accesso veneravel para o seu sanctuario de
sciencia. Mas dentro os trabalhos arrastavam-se sem
fim; sempre um vago martellar preguiçoso n'uma
poeira alvadia; sempre as mesmas coifas de ferramentas
jazendo nas mesmas camadas de aparas!
Um carpinteiro esgouroviado e triste parecia estar
alli, desde seculos, aplainando uma taboa eterna com
uma fadiga langorosa; e no telhado os trabalhadores
que andavam alargando a claraboia, não cessavam
de assobiar, no sol d'inverno, alguma lamuria de
fado.
Carlos queixava-se ao sr. Vicente, o mestre d'obras,
que lhe asseverava invariavelmente «como d'ahi a
dois dias havia de s. ex.
a vêr a
differença.» Era um
homem de meia edade, risonho, de fallar doce, muito
barbeado, muito lavado, que morava ao pé do Ramalhete,
e tinha no bairro fama de republicano. Carlos,
por sympathia, como visinho, apertava-lhe sempre
a mão: e o sr. Vicente, considerando-o por isso um
«avançado», um democrata, confiava-lhe
as suas esperanças.
O que elle desejava primeiro que tudo era
um 93, como em França...
—O que, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca,
honrada, e roliça face do demagogo.
—Não, senhor, um navio, um simples navio...
—Um navio?
—Sim, senhor, um navio fretado á custa da
nação,
em que se mandasse pela barra fóra o rei, a familia
[134]
real, a
cambada dos ministros, dos
politicos, dos
deputados, dos intrigantes, etc. e etc.
Carlos sorria, ás vezes argumentava com elle.
—Mas está o sr. Vicente bem certo, que apenas
a
cambada, como tão
exactamente diz, desapparecesse
pela barra fóra, ficavam resolvidas todas as
cousas e tudo atolado em felicidade?
Não, o sr. Vicente não era tão
«burro» que assim
pensasse. Mas, supprimida a cambada, não via s. ex.
a?
Ficava o paiz desatravancado; e podiam então
começar
a governar os homens de saber e de progresso...
—Sabe v. ex.
a qual é o nosso mal?
Não
é má vontade
d'essa gente; é muita somma de ignorancia. Não
sabem. Não sabem nada. Elles não são
maus, mas são
umas cavalgaduras!
—Bem, então essas obras, amigo Vicente, dizia-lhe
Carlos, tirando o relogio e despedindo-se d'elle
com um valente
shakehands, veja se
me andam. Não
lh'o peço como proprietario, é como
correligionario.
—D'aqui a dois dias ha de v. ex.
a vêr
a
differença,
respondia o mestre d'obras, desbarretando-se.
No Ramalhete, pontualmente ao meio dia, tocava
a sineta do almoço. Carlos encontrava quasi sempre
o avô já na sala de jantar, acabando de percorrer
algum jornal junto ao fogão, onde a tepida suavidade
d'aquelle fim de outono não permittia accender
lume, mas verdejando todo de plantas d'estufa.
Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam
suavemente, no seu luxo macisso e sobrio,
as baixellas antigas; pelas tapeçarias ovaes dos muros
[135]
apainelados corriam scenas de ballada, caçadores
medivaes soltando o falcão, uma dama entre pagens
alimentando os cysnes de um lago, um cavalleiro de
viseira callada seguindo ao longo d'um rio; e contrastando
com o tecto escuro de castanho entalhado
a meza resplandecia com as flôres entre os crystaes.
O reverendo Bonifacio, que desde que se tornara
dignatario da Egreja comia com os senhores, lá estava
já, magestosamente sentado sobre a alvura nevada
da toalha, á sombra de algum grande ramo.
Era alli, no aroma das rosas, que o veneravel gato
gostava de lamber, com o seu vagar estupido, as
sopas de leite servidas n'um covilhete de Strasburgo,
depois agachava-se, traçava por diante do peito a
fofa pluma da sua cauda, e, de olhos cerrados, os bigodes
tesos, todo elle uma bola entufada de pello
branco malhado de ouro, gosava de leve uma sesta
macia.
Affonso,—como confessava, sorrindo e humilhado—ía-se
tornando com a velhice um
gourmet
exigente;
e acolhia, com uma concentração de critico,
as obras d'arte do
chef francez que
tinham agora,
um cavalheiro de mau genio, todo bonapartista, muito
parecido com o imperador, e que se chamava Mr. Theodore.
Os almoços no Ramalhete eram sempre delicados
e longos; depois, ao café, ficavam ainda conversando;
e passava da uma hora, da hora e meia,
quando Carlos, com uma exclamação,
precipitando-se
sobre relogio, se lembrava do seu consultorio. Bebia
[136]
um calice de Chartreuse, accendia á pressa um
charuto:
—Ao trabalho, ao trabalho! exclamava.
E o avô, enchendo de vagar o seu cachimbo, invejava-lhe
aquella occupação, emquanto elle ficava alli a
vadiar toda a manhã...
—Quando esse eterno laboratorio estiver acabado,
talvez vá para lá passar um bocado, occupar-me de
chimica.
—E ser talvez um grande chimico. O avô tem já a
feitio.
O velho sorria.
—Esta carcassa já não dá nada, filho.
Está pedindo
eternidade!
—Quer alguma cousa da Baixa, de Babylonia?
perguntava Carlos, abotoando á pressa as suas luvas
de governar.
—Bom dia de trabalho.
—Pouco provavel...
E no
dog-cart, com aquella linda
egoa, a
Tunante,
ou no
phaeton com que maravilhava
Lisboa, Carlos
lá partia em grande estylo para a Baixa, para «o
trabalho.»
O seu gabinete, no consultorio, dormia n'uma paz
tepida entre os espessos velludos escuros, na penumbra
que faziam as stores de seda verde corridas. Na
sala, porém, as tres janellas abertas bebiam á
farta a
luz; tudo alli parecia festivo; as poltronas em torno
da jardineira estendiam os seus braços, amaveis e
convidativas; o teclado branco do piano ria e esperava,
[137]
tendo abertas por cima as
Canções de
Gounod;
mas não apparecia jámais um doente. E
Carlos,—exactamente
como o creado que, na ociosidade da antecamara,
dormitava sobre o
Diario de
Noticias, acaçapado
na banqueta—accendia um cigarro Laferme, tomava
uma Revista, e estendia-se no divan. A prosa porém
dos artigos estava como embebida do tedio moroso
do gabinete: bem depressa bocejava, deixava
caír o volume.
Do Rocio, o ruido das carroças, os gritos errantes
de pregões, o rolar dos americanos, subiam, n'uma
vibração mais clara, por aquelle ar fino de
novembro:
uma luz macia, escorregando docemente do azul
ferrete, vinha doirar as fachadas enxovalhadas, as cópas
mesquinhas das arvores de municipio, a gente
vadiando pelos bancos: e essa sussurração lenta
de
cidade preguiçosa, esse ar avelludado de clima rico,
pareciam ir penetrando pouco a pouco n'aquelle abafado
gabinete e resvelando pelos velludos pesados,
pelo verniz dos moveis, envolver Carlos n'uma indolencia
e n'uma dormencia... Com a cabeça na almofada,
fumando, alli ficava, n'essa quietação de
sesta, n'um scismar que se ía desprendendo, vago e
tenue, como o tenuo e leve fumo que se eleva d'uma
brazeira meia apagada; até que com um esforço
sacudia
este torpor, passeiava na sala, abria aqui e além
pelas estantes um livro, tocava no piano dois compassos
de walsa, espriguiçava-se—e, com os olhos
nas flores do tapete, terminava por decidir que aquellas
duas horas de consultorio eram estupidas!
[138]
—Está ahi o carro? ía perguntar ao creado.
Accendia bem depressa outro charuto, calçava as
luvas, descia, bebia um largo sorvo de luz e ar, tomava
as guias e largava, murmurando comsigo:
—Dia perdido!
Foi uma d'essas manhãs que preguiçando assim no
sophá com a
Revista dos Dois
Mundos na mão, elle ouviu
um rumor na antecamara, e logo uma voz bem
conhecida, bem querida, que dizia por trás do reposteiro:
—Sua Alteza Real está visivel?
—Oh Ega! gritou Carlos, dando um salto do sophá.
E cahiram nos braços um do outro, beijando-se na
face, enternecidos.
—Quando chegaste tu?
—Esta manhã. Caramba! exclamava Ega, procurando
pelo peito, pelos hombros, o seu quadrado
de vidro, e entalando-o emfim no olho. Caramba! Tu
vens esplendido d'esses Londres, d'essas
civilisações
superiores. Estás com um ar Renascença, um ar
Valois...
Não ha nada como a barba toda!
Carlos ria, abraçando-o outra vez.
—E d'onde vens tu, de Celorico?
—Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino,
doente... O figado, o baço, uma infinidade de visceras
compromettidas. Emfim, doze annos de vinhos e
aguas ardentes...
[139]
Depois fallaram das viagens de Carlos, do Ramalhete,
da demora do Ega em Lisboa... Ega vinha
para sempre. Tinha dito do alto da diligencia, ás varzeas
de Celorico, o adeus de eternidade.
—Imagina tu, Carlos, amigo, a historia deliciosa
que me succede com minha mãe... Depois de Coimbra,
naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver
para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos.
Qual, não caíu! Fiquei na quinta, fazendo
epigrammas
ao padre Seraphim e a toda a côrte do céu.
Chega julho, e apparece nos arredores uma epidemia
de anginas. Um horror, creio que vocês lhe chamam
diphtericas... A mamã salta immediatamente
à conclusão que é a minha
presença, a presença do
atheo, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que
offendeu Nosso Senhor e attrahiu o flagello. Minha
irmã concorda. Consultam o padre Seraphim. O homem,
que não gosta de me vêr na quinta, diz que
é
possivel que haja indignação do Senhor—e minha
mãe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa
aberta, que venha para Lisboa, que a arruine, mas
que não esteja alli chamando a ira divina. No dia seguinte
bati para a Foz...
—E a epidemia...
—Desappareceu logo, disse o Ega, começando a
puxar devagar dos dedos magros uma longa luva côr
de canario.
Carlos mirava aquellas luvas do Ega; e as polainas
de casemira; e o cabello que elle trazia crescido com
uma mecha frisada na testa; e na gravata de setim
[140]
uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega
dandy, vistoso, paramentado, artificial e com pó
d'arroz—e Carlos deixou emfim escapar a
exclamação
impaciente que lhe bailava nos labios:
—Ega, que extraordinario casaco!
Por aquelle sol macio e morno de um fim de outono
portuguez, o Ega, o antigo bohemio de batina
esfarrapada, trazia uma pelliça, uma sumptuosa
pelliça
de principe russo, agasalho de trenò e de neve,
ampla, longa, com alamares trespassados á Brandeburgo,
e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado
e dos pulsos de thisico uma rica e fôfa espessura de
pelles de marta.
—É uma boa pelliça, hein? disse elle logo,
erguendo-se,
abrindo-a, exhibindo a opulencia do forro.
Mandei-a vir pelo Strauss... Beneficios da epidemia.
—Como podes tu supportar isso?
—É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.
Tornou a recostar-se no sophá, adiantando o sapato
de verniz muito bicudo, e, de monocolo no olho, examinou
o gabinete.
—E tu que fazes? conta-me lá... Tens isto explendido!
Carlos fallou dos seus planos, de altas idéas de
trabalho, das obras do laboratorio...
—Um momento, quanto te custou tudo isto? exclamou
o Ega interrompendo-o, erguendo-se para ir
apalpar o velludo dos reposteiros, mirar os torneados
da secretária de pau preto.
[141]
—Não sei. O Villaça é que deve
saber...
E Ega, com as mãos enterradas nos vastos bolsos
da pelliça, inventariando o gabinete, fazia
considerações:
—O velludo dá seriedade... E o verde escuro é
a côr suprema, é a côr esthetica... Tem
a sua expressão
propria, enternece e faz pensar... Gosto
d'este divan. Movel de amor...
Foi entrando para a sala dos doentes, de vagar, de
luneta no olho, estudando os ornatos.
—Tu és o grandioso Salomão, Carlos! O papel
é
bonito... E o cretonesinho agrada-me.
Apalpou-o tambem. Uma begonia, manchada da
sua ferrugem de prata, n'um vaso de Rouen, interessou-o.
Queria saber o preço de tudo; e diante do
piano, olhando o livro de musica aberto, as
Canções
de Gounod, teve uma surpreza enternecida:
—Homem, é curioso... Cá me apparece! A
Barcarolla!
É deliciosa, hein?...
Dites, la jeune belle,
Ou voulez-vous aller?
La voile...
Estou um bocado rouco... Era a nossa canção na
Foz!
Carlos teve outra exclamação, e crusando os
braços
diante d'elle:
—Tu estás extraordinario, Ega! Tu és outro
Ega!...
A proposito da Foz... Quem é essa Madame Cohen,
que estava tambem na Foz, de quem tu, em cartas
successivas, verdadeiros poemas, que recebi em Berlin,
[142]
na Haia, em Londres, me fallavas como os arrobos
do
Cantico dos Canticos?
Um leve rubor subiu ás faces do Ega. E limpando
negligentemente o monocolo ao lenço de seda branca:
—Uma judia. Por isso usei o lyrismo biblico. É a
mulher do Cohen, has de conhecer, um que é director
do
Banco Nacional...
Démos-nos bastante. É sympathica...
Mas o marido é uma besta... Foi uma
flitartion de praia.
Voila tout.
Isto era dito aos bocados, passeiando, puchando o
lume ao charuto, e ainda córado.
—Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocês
no Ramalhete? O avô Affonso? Quem vae por lá?...
No Ramalhete, o avô fazia o seu
whist com os velhos
parceiros. Ia o D. Diogo, o decrepito leão, sempre
de rosa ao peito, e frisando ainda os bigodes...
Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estoirar
de sangue, á espera da sua apoplexia... Ia o conde
de Steinbroken...
—Não conheço. Refugiado?... Polaco?...
—Não, ministro da Filandia... Queria-nos alugar
umas cocheiras e complicou esta simples
transacção
com tantas finuras diplomaticas, tantos documentos,
tantas cousas com o sello real da Filandia, que
o pobre Villaça aturdido, para se desembaraçar,
remetteu-o
ao avô. O avô, desnorteado tambem, offereceu-lhe
as cocheiras de graça. Steinbroken considera isto
um serviço feito ao rei da Filandia, á Filandia,
vae
visitar o avô, em grande estado, com o secretario da
legação, o consul, o vice-consul...
[143]
—Isso é sublime!
—O avô convida-o a jantar... E como o homem é
muito fino, um gentleman, enthusiasta da Inglaterra,
grande entendedor de vinhos, uma auctoridade no
wisth, o avô adopta-o. Não sae do Ramalhete.
—E de rapazes?
De rapazes, apparecia Taveira, sempre muito correcto,
empregado agora no Tribunal de Contas:
um Cruges, que o Ega não conhecia, um diabo adoidado,
maestro, pianista, com uma pontinha de genio;
o marquez de Souzellas...
—Não ha mulheres?
—Não ha quem as receba. É um covil de
solteirões.
A viscondessa, coitada...
—Bem sei. Um apopleté...
—Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos tambem
o Silveirinha, chegou-nos ultimamente o Silveirinha...
—O de Resende, o cretino?
—O cretino. Enviuvou, vem da Madeira, ainda um
bocado thisico, todo carregado de luto... Um funebre.
O Ega, repoltreado, com aquelle ar de tranquilla e
solida felicidade que Carlos já notara, disse puchando
lentamente os punhos:
—É necessario reorganisar essa vida. Precisamos
arranjar um cenaculo, uma bohemiasinha dourada,
umas
soirées de inverno,
com arte, com litteratura...
Tu conheces o Craft?
—Sim, creio que tenho ouvido fallar...
Ega teve um grande gesto. Era indispensavel conhecer
[144]
o Craft! O Craft era simplesmente a melhor
cousa que havia em Portugal...
—É um inglez, uma especie de doido?...
Ega encolheu os hombros. Um doido!... Sim, era
essa a opinião da rua dos Fanqueiros; o indigena,
vendo uma originalidade tão forte como a de Craft,
não podia explical-a senão pela doidice. O Craft
era
um rapaz extraordinario!... Agora tinha elle chegado
da Suecia, de passar tres mezes com os estudantes
de Upsala. Estava tambem na Foz... Uma individualidade
de primeira ordem!
—É um negociante do Porto, não é?
—Qual negociante do Porto! exclamou o Ega erguendo-se,
franzindo a face, enojado de tanta ignorancia.
O Craft é filho d'um
clergiman da egreja ingleza
do Porto. Foi um tio, um negociante de Calcutá
ou d'Australia, um Nababo, que lhe deixou a
fortuna. Uma grande fortuna. Mas não negoceia, nem
sabe o que isso é. Dá largas ao seu temperamento
byroneano, é o que faz. Tem viajado por todo o universo,
collecciona obras d'arte, bateu-se como voluntario
na Abyssinia e em Marrocos, emfim vive,
vive na
grande, na forte, na heroica accepção da palavra.
É
necessario conhecer o Craft. Vaes-te babar por elle...
Tens razão, caramba, está calor.
Desembaraçou-se da opulenta pelliça, e appareceu
em peitilho de camisa.
—O que! tu não trazias nada por baixo? exclamou
Carlos. Nem collete?
—Não; então não a podia aguentar...
Isto é para
[145]
o effeito moral, para impressionar o indigena... Mas,
não ha negal-o, é pesada!
E immediatamente voltou á sua idéa: apenas
Craft chegasse do Porto relacionavam-se, organisava-se
um Cenaculo, um Decameron d'arte e dilletantismo,
rapazes e mulheres—tres ou quatro mulheres
para cortarem, com a graça dos decotes, a severidade
das philosophias...
Carlos ria-se d'esta idéa do Ega. Tres mulheres
de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornar um cenaculo!
Lamentavel illusão de um homem de Celorico!
O marquez de Souzella tinha tentado, e para
uma vez só, uma cousa bem mais simples—um jantar
no campo com actrizes. Pois fôra o escandalo mais
engraçado e mais caracteristico: uma não tinha
creada e queria levar comsigo para a festa uma
tia e cinco filhos; outra temia que, acceitando, o
brazileiro lhe tirasse a mezada; uma consentiu, mas
o amante, quando soube, deu-lhe uma cóça. Esta
não
tinha vestido para ir; aquella pretendia que lhe garantissem
uma libra; houve uma que se escandalisou
com o convite como com um insulto. Depois, os chulos,
os queridos, os pôlhos, complicaram medonhamente
a questão; uns exigiam ser convidados, outros
tentavam desmanchar a festa; houve partidos, fizeram-se
intrigas,—emfim esta cousa banal, um
jantar com actrizes, resultou em o Tarquinio do
Gymnasio levar uma facada...
—E aqui tens tu Lisboa.
—Emfim, exclamou o Ega, se não apparecerem
[146]
mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo
o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, idéas,
philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias,
estylo, industrias, modas, maneiras, pilherias,
tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A
civilisação
custa-nos carissima com os direitos da alfandega: e
é em segunda mão, não foi feita para
nós, fica-nos
curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilisados
como os negros de S. Thomé se suppõem
cavalheiros,
se suppõem mesmo
brancos,
por usarem com a
tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma
choldra torpe. Onde puz eu a charuteira?
Desembaraçado da magestade que lhe dava a pelissa
o antigo Ega reapparecia, perorando com os
seus gestos aduncos de Mephistopheles em verve,
lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar
as suas grandes phrases, n'uma lucta constante
com o monocolo, que lhe caía do olho, que elle procurava
pelo peito, pelos hombros, pelos rins, retorcendo-se,
deslocando-se, como mordido por bichos.
Carlos animava-se tambem, a fria sala aquecia; discutiam
o Naturalismo, Gambetta, o Nihilismo; depois,
com ferocidade e á uma, malharam sobre o paiz...
Mas o relogio ao lado bateu quatro horas; immediatamente
Ega saltou sobre a pelissa, sepultou-se
n'ella, aguçou o bigode ao espelho, verificou a
pose,
e, encouraçado nos seus alamares, sahio com um arsinho
de luxo e d'aventura.
—John, disse Carlos que o achava esplendido e
o ia seguindo ao patamar, onde estás tu?
[147]
—No
Universal, esse sanctuario!
Carlos abominava o
Universal,
queria que elle
viesse para o Ramalhete.
—Não me convém...
—Em todo o caso vaes hoje lá jantar, vêr o
avô.
—Não posso. Estou compromettido com a besta do
Cohen... Mas vou lá ámanhã
almoçar.
Já nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monocolo,
gritou para cima:
—Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o
meu livro!
—O quê! está prompto? exclamou Carlos, espantado.
—Está esboçado, á brocha larga...
O
Livro do Ega! Fôra em
Coimbra, nos dois ultimos
annos, que elle começára a fallar do seu livro,
contando o plano, soltando titulos de capitulos,
citando pelos cafés phrases de grande sonoridade. E
entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega
como devendo iniciar, pela fórma e pela idéa, uma
evolução litteraria. Em Lisboa (onde elle vinha
passar
as ferias e dava ceias no Silva) o livro fôra annunciado
como um acontecimento. Bachareis, contemporaneos
ou seus condiscipulos, tinham levado de
Coimbra, espalhado pelas provincias e pelas ilhas
a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa
noticia chegára ao Brazil... E sentindo esta anciosa
espectativa em torno do seu livro—o Ega decidira-se
emfim a escrevel-o.
Devia ser uma epopêa em prosa, como elle dizia,
[148]
dando, sob episodios symbolicos, a historia das grandes
phases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se
Memorias d'um Atomo, e tinha a
fórma d'uma
autobiographia. Este atomo (o atomo do Ega, como
se lhe chamava a serio em Coimbra) apparecia no
primeiro capitulo, rolando ainda no vago das Nebuloses
primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente,
na massa de fogo que devia ser mais tarde
a Terra: emfim, fazia parte da primeira folha de
planta que surgiu da crosta ainda molle do globo.
Desde então, viajando nas incessantes
transformações
da substancia, o atomo do Ega entrava na rude
structura do Orango, pae da humanidade—e mais
tarde vivia nos labios de Platão. Negrejava no burel
dos santos, refulgia na espada dos heroes, palpitava
no coração dos poetas. Gota de agua nos lagos
de Galiléa, ouvira o fallar de Jesus, aos fins da
tarde, quando os apostolos recolhiam as redes; nó
de madeira na tribuna da Convenção, sentira o
frio
da mão de Robespierre. Errara nos vastos anneis de
Saturno; e as madrugadas da terra tinham-n'o orvalhado,
petala resplandecente de um dormente e
languido lyrio. Fôra omnipresente, era omnisciente.
Achando-se finalmente no bico da penna do Ega, e
cançado d'esta jornada atravez do Ser, repousava—escrevendo
as suas
Memorias... Tal era este
formidavel
trabalho—de que os admiradores do Ega, em
Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de
respeito:
—É uma Biblia!
V
No escriptorio de Affonso da Maia ainda durava,
apesar de ser tarde, a partida de whist. A mesa estava
ao lado da chaminé, onde a chamma morria nos
carvões escarlates, no seu recanto costumado, abrigada
pelo biombo japonez, por causa da bronchite de
D. Diogo e do seu horror ao ar.
Esse velho dandy,—a quem as damas de outras
eras chamavam o «Lindo Diogo», gentil toureiro que
dormira n'um leito real—acabava justamente de
ter um dos seus accessos de tosse, cavernosa, aspera,
dolorosa, que o sacudiam como uma ruina, que
elle abafava no lenço, com as veias inchadas, rôxo
até
á raiz dos cabellos.
Mas passára. Com a mão ainda tremula, o decrepito
leão limpou as lagrimas que lhe embaciavam os
[150]
olhos avermelhados, compoz a rosa de musgo na botoeira
da sobrecasaca, tomou um golo da sua agua
chasada, e perguntou a Affonso, seu parceiro, n'uma
voz rouca e surda:
—Paus, hein?
E de novo, sobre o panno verde, as cartas foram
cahindo n'um d'aquelles silencios que se seguiam ás
tosses de D. Diogo. Sentia-se só a
respiração assobiada,
quasi silvante, do general Sequeira, muito infeliz
essa noite, desesperado com o Villaça seu parceiro,
resingão, e com todo o sangue na face.
Um tom fino retiniu, o relogio Luiz XV foi ferindo.
alegremente, vivamente, a meia noite;—depois a
toada argentina do seu minuete vibrou um momento
e morreu. Houve de novo um silencio. Uma renda
vermelha recobria os globos de dois grandes candieiros
Carcel; e a luz assim coada, cahindo sobre
os damascos vermelhos das paredes, dos assentos,
fazia como uma doce refracção côr de
rosa, um vaporoso
de nuvem em que a sala se banhava e dormia:
só, aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das
estantes, rebrilhava em silencio o ouro d'um Sèvres,
uma pallidez de marfim, ou algum tom esmaltado de
velha majolica.
—O que! ainda encarniçados! exclamou Carlos que
abrira o reposteiro, entrava, e com elle o rumor
distante de bolas de bilhar.
Affonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeça,
a perguntar com interesse:
—Como vae ella? Está socegada?
[151]
—Está muito melhor!
Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga
de origem alsacianna, casada com o Marcellino
padeiro, muito conhecida no bairro pelos seus bellos
cabellos, loiros, e penteados sempre em tranças soltas.
Tinha estado á morte com uma pneumonia; e
apesar de melhor, como a padaria ficava defronte,
Carlos ainda ás vezes á noite atravessava a rua
para
a ir vêr, tranquillisar o Marcellino, que, defronte do
leito e de gabão pelos hombros, suffocava soluços
d'amante, escrevinhando no livro de contas.
Affonso interessara-se anciosamente por aquella
pneumonia; e agora estava realmente agradecido á
Marcellina por ter sido salva por Carlos. Fallava
d'ella commovido; gabava-lhe a linda figura, o aceio
alsacianno, a prosperidade que trouxera á padaria...
Para a convalescença, que se
approximava,
já lhe
mandára até seis garrafas de Chateau-Margaux.
—Então fóra de perigo, inteiramente
fóra de perigo?—perguntou
Villaça, com os dedos na caixa do
rapé, sublinhando muito a sua sollicitude.
—Sim, quasi rija—disse Carlos, que se approximara
da chaminé, esfregando as mãos, arrepiado.
É que a noite, fóra, estava regelada! Desde o
anoitecer
geava, d'um céu fino e duro, transbordando de
estrellas que rebrilhavam como pontas afiadas d'aço;
e nenhum d'aquelles cavalheiros, desde que se entendia,
conhecera jámais o thermometro tão baixo. Sim,
Villaça lembrava-se d'um janeiro peor no inverno
de 64...
[152]
—É necessario carregar no
punch,
hein, general!—exclamou
Carlos, batendo galhofeiramente nos hombros
macissos do Sequeira.
—Não me opponho, rosnou o outro, que fixava
com concentração e rancor um valete de copas
sobre
a meza.
Carlos, ainda com frio, remexeu, esfuracou os carvões:
uma chuva d'oiro cahiu por baixo, uma chamma
mais forte ressaltou, rugiu, alegrando tudo, avermelhando
em redor as pelles de urso onde o Reverendo
Bonifacio, espapado, torrava ao calor, ronronava de
gôso.
—O Ega deve estar radiante, dizia Carlos com os
pés á chamma. Tem, emfim, justificada a pellissa.
A
proposito, algum dos senhores tem visto o Ega estes
ultimos dias?
Ninguem respondeu, no interesse subito que causava
a cartada. A longa mão de D. Diogo recolhia de
vagar a vasa—e languidamente, no mesmo silencio,
soltou uma carta de paus.
—Ó Diogo! ó Diogo! gritou Affonso,
estorcendo-se,
como se o trespassasse um ferro.
Mas conteve-se. O general, cujos olhos despediam
faiscas, collocou o seu valete; Affonso, profundamente
infeliz, separou-se do rei de paus; Villaça bateu de
estalo com o az. E immediatamente foi em redor uma
discussão tremenda sobre a puchada de D. Diogo—em
quanto Carlos, a quem as cartas sempre enfastiavam,
se debruçava a coçar o ventre fofo do veneravel
Reverendo.
[153]
—Que perguntavas tu, filho? disse emfim Affonso
erguendo-se, ainda irritado, a buscar tabaco para o
cachimbo, sua consolação nas derrotas. O Ega?
Não,
ninguem o viu, não tornou a apparecer! Está
tambem
um bom ingrato, esse John...
Ao nome do Ega, Villaça, parando de baralhar as
cartas, erguera a face curiosa:
—Então sempre é certo que elle vae montar casa?
Foi Affonso que respondeu, sorrindo e accendendo
o cachimbo:
—Montar casa, comprar
coupé, deitar
libré, dar
soirées litterarias,
publicar um poema, o diabo!
—Elle esteve lá no escriptorio, dizia Villaça
recomeçando
a baralhar. Esteve lá a indagar o que tinha
custado o consultorio, a mobilia de velludo, etc.
O velludo verde deu-lhe no gôto... Eu, como é um
amigo da casa, lá lhe prestei
informações, até lhe
mostrei as contas.—E respondendo a uma pergunta
do Sequeira:—Sim, a mãe tem dinheiro, e creio
que lhe dá o bastante. Que em quanto a mim, elle
vem-se metter na politica. Tem talento, falla bem, o
pae já era muito regenerador... Alli ha
ambição.
—Alli ha mulher, disse D. Diogo, collocando com
peso esta decisão e accentuando-a com uma caricia
languida á ponta frisada dos bigodes brancos.
Lê-se-lhe
na cara, basta vêr-lhe a cara... Alli ha mulher.
Carlos sorria, gabando a penetração de D. Diogo,
o seu fino olho á Balzac; e Sequeira, logo, franco
como velho soldado, quiz saber quem era a Dulcinea.
[154]
Mas o velho dandy declarou, da profundidade da sua
experiencia, que essas cousas nunca se sabiam, e era
preferivel não se saberem. Depois passando os dedos
magros e lentos pela face, deixou cahir d'alto e com
condescendencia este juizo:
—Eu gosto do Ega, tem apresentação; sobretudo
tem
degagè...
Tinham recebido as cartas, fez-se um silencio na
meza. O general, vendo o seu jogo, soltou um grunhido
surdo, arrebatou o cigarro do cinzeiro, e puxou-lhe
uma fumaça furiosa.
—Os senhores são muito viciosos, vou vêr a gente
do bilhar, disse Carlos. Deixei o Steinbroken engalfinhado
com o marquez, a perder já quatro mil réis.
Querem o
punch aqui?
Nenhum dos parceiros respondeu.
E em torno do bilhar Carlos encontrou o mesmo
silencio de solemnidade. O marquez, estirado sobre
a tabella, com a perna meia no ar, o começo de
calva alvejando á luz crua que cahia dos
abat-jours,
de porcelana, preparava a carambola decisiva. Cruges,
que apostára por elle, deixára o divan, o
cachimbo
turco, e, coçando com um gesto nervoso a
grenha crespa que lhe ondeava até á gola do
jaquetão,
vigiava a bola inquieto, com os olhinhos piscos,
o nariz espetado. Do fundo da sala, destacando em
preto, o Silveirinha, o Eusebiosinho de S.
ta
Olavia,
estendia tambem o pescoço, affogado n'uma gravata
de viuvo de merino negro e sem collarinho, sempre
macambuzio, mais mollengo que outr'ora, com as mãos
[155]
enterradas nos bolsos—tão funebre que tudo n'elle
parecia complemento do luto pesado, até o preto do cabello
chato, até o preto das lunetas de fumo. Junto ao
bilhar, o parceiro do marquez, o conde Steinbroken,
esperava: e apesar do susto, da emoção d'homem
do norte aferrado ao dinheiro, conservava-se correcto,
encostado ao taco, sorrindo, sem desmanchar a
sua linha britanica,—vestido como um inglez, inglez
tradicional d'estampa, com uma sobrecasaca justa
de manga um pouco curta, e largas calças de xadrez
sobre sapatões de tacão raso.
—Hurrah! gritou de repente Cruges. Os dez tostõesinhos
para cá, Silveirinha!
O marquez carambolára, ganhando a partida, e
triumphava tambem:
—Você trouxe-me a sorte, Carlos!
Steinbroken depozera logo o taco, e alinhava já sobre
a tabella, lentamente, uma a uma, as quatro
placas perdidas.
Mas o marquez, de giz na mão, reclamava-o para
outras refregas, esfaimado d'ouro filandez.
—Nada mach!... Vôcê hoje 'stá
têrivêl! dizia o
diplomata, no seu portuguez fluente, mas de accento
barbaro.
O marquez insistia, plantado diante d'elle, de taco
ao hombro como uma vara de campino, dominando-o
com a sua macissa, desempenada estatura. E ameaçava-o
de destinos medonhos n'uma voz possante
habituada a ressoar nas lezirias; queria-o arruinar
ao bilhar, forçal-o a empenhar aquelles bellos anneis,
[156]
leval-o elle, ministro da Filandia e representante
d'uma raça de reis fortes, a vender senhas á
porta
da Rua dos Condes!
Todos riam; e Steinbroken tambem, mas com um
riso franzido e difficil, fixando no marquez o olhar
azul-claro, claro e frio, que tinha no fundo da sua
myopia a dureza d'um metal. Apesar da sua sympathia
pela illustre casa de Souzella, achava estas familiaridades,
estas tremendas chalaças, incompativeis
com a sua dignidade e com a dignidade da Filandia.
O marquez, porém, coração d'ouro,
abraçava-o já pela
cinta, com expansão:
—Então se não quereis mais bilhar, um bocadinho
de canto, Steinbroken amigo!
A isto o ministro accedeu, affavel, preparando-se
logo, dando caricias ligeiras ás suissas, e aos anneis
do cabello d'um loiro de espiga desbotada.
Todos os Steinbrokens, de paes a filhos (como
elle dissera a Affonso) eram bons barytonos: e isso
trouxera á familia não poucos proventos sociaes.
Pela
voz captivara seu pae o velho rei Rudolpho III, que o
fizera chefe das caudelarias, e o tinha noites inteiras
nos seus quartos, ao piano, cantando psalmos lutheranos,
coraes escolares, sagas da Dallecarlia—em
quanto o taciturno monarcha cachimbava e bebia,
até que saturado de emoção religiosa,
saturado de
cerveja preta, tombava do sophá, soluçando e
babando-se.
Elle mesmo, Steinbroken, levara parte da
sua carreira ao piano, já como addido, já como
segundo
secretario. Feito chefe de missão, absteve-se:
[157]
foi só quando vio o
Figaro celebrar repetidamente as
walsas do principe Artoff, embaixador da Russia em
Paris, e a voz de
basso do conde de
Baspt, embaixador
d'Austria em Londres, que elle, seguindo tão
altos exemplos, arriscou, aqui e alem, em
soirées mais
intimas, algumas melodias filandezas. Emfim cantou
no Paço. E desde então exerceu com zelo, com
formalidades,
com praxes, o seu cargo de «barytono
plenipotenciario,» como dizia o Ega. Entre homens,
e com os reposteiros corridos, Steinbroken não duvidava
todavia cantarolar o que elle chamava «cançonetas
brejêras»—o
Amant
d'Amanda, ou uma certa
ballada ingleza:
On the Serpentine,
Oh my Caroline...
Oh!
Este
oh! como elle o expellia,
gemido, bem puxado,
n'um movimento de batuque, expressivo e todavia
digno... Isto entre rapazes e com os reposteiros
fechados.
N'essa noite, porém, o marquez, que o conduzia
pelo braço á sala do piano, exigia uma d'aquellas
canções da Filandia, de tanto sentimento e que
lhe
faziam tão bem á alma...
—Uma que tem umas palavrinhas de que eu gosto,
frisk,
gluzk... La ra lá,
lá, lá!
—A Primavera, disse o diplomata sorrindo.
Mas antes de entrar na sala, o marquez soltou o
braço de Steinbroken, fez um signal ao Silveirinha
[158]
para o fundo do corredor—e ahi, sob um sombrio
painel de
Santa Magdalena no deserto
penitenciando-se
e mostrando nudezas ricas de nympha lubrica,
interpellou-o quasi com aspereza:
—Vamos nós a saber. Então, decide-se ou
não?
Era uma negociação que havia semanas se arrastava
entre elles, a respeito d'uma parelha d'egoas.
Silveirinha nutria o desejo de montar carruagem;
e o marquez procurava vender-lhe umas egoas brancas,
a que elle dizia «ter tomado enguiço, apesar de
serem dois nobres animaes». Pedia por ellas um conto
e quinhentos mil réis. Silveirinha fôra avisado
pelo
Sequeira, por Travassos, por outros entendedores,
que era
uma espiga: o marquez tinha
a sua moral
propria para negocios de gado, e exultaria em
intrujar
um pichote. Apesar de advertido, Eusebio cedendo
á influencia da grossa voz do marquez, da
robustez do seu phisico, da antiguidade do seu titulo,
não ousava recusar. Mas hesitava; e n'essa
noite deu a resposta usual de forreta, coçando o
queixo, cosido ao muro:
—Eu verei, marquez... Um conto e quinhentos
é dinheiro...
O marquez ergueu dois braços ameaçadores como
duas trancas:
—Homem, sim ou não! Que diabo... Dois animaes
que são duas estampas... Irra! Sim ou não!
Eusebio ageitou as lunetas, rosnou:
—Eu verei... Elle é dinheiro. Sempre
é dinheiro...
[159]
—Queria você, talvez, pagal-as com feijões?
Você
leva-me a commetter um excesso!
O piano resoou, em dois accordes cheios, sob os
dedos do Cruges; e o marquez, baboso por musica,
immediatamente largou a questão das egoas, recolheu
em pontas de pés. Eusebiosinho ainda ficou a
remoer, a coçar o queixo; emfim, ás primeiras
notas
de Steinbroken, veiu pousar como uma sombra
silenciosa entre a hombreira e o reposteiro.
Afastado do piano segundo o seu costume, curvado,
com a cabelleira como pousada ás costas, Cruges
feria o acompanhamento, d'olhos cravados no livro
de
Melodias Filandezas. Ao lado,
empertigado,
quasi official, com o lenço de seda na mão, a
mão
fincada contra o peito, Steinbroken soltava um canto
festivo, n'um movimento de tarantella triumphante,
em que passavam, como um entrechocar de seixos,
esses bocados de palavras de que o marquez gostava,
frisk,
slécht,
clikst,
glukst. Era a
Primavera—fresca
e silvestre, primavera do norte em paiz de
montanhas, quando toda uma aldêa dança em
córos
sob os fuscos abetos, a neve se derrete em cascatas,
um sol pallido avelluda os musgos, e a brisa traz o
aroma das resinas... Nos graves e cheios, as cantoneiras
de Steinbroken ruborisavam-se, inchavam.
Nos tons agudos todo elle se ía alçando sobre a
ponta dos pés, como levado no compasso vivo; despegava
então a mão do peito, alargava um gesto, as
bellas joias dos seus anneis faiscavam.
O marquez, com as mãos esquecidas nos joelhos,
[160]
parecia beber o canto. Na face de Carlos passava um
sorriso enternecido pensando em Madame Rughel,
que viajara na Filandia, e cantava ás vezes aquella
Primavera nas suas horas de
sentimentalismo flamengo...
Steinbroken soltou um
stacato agudo,
isolado
como uma voz n'um alto,—e immediatamente, afastando-se
do piano, passou o lenço sobre as fontes,
sobre o pescoço, rectificou com um puchão a linha
da sobrecasaca, e agradeceu o acompanhamento ao
Cruges n'um silencioso
shake-hands.
—Bravo! bravo! berrava o marquez, batendo as
mãos como malhos.
E outros applausos resoaram á porta, dos parceiros
do whist, que tinham findado a partida. Quasi
immediatamente os escudeiros entravam com um
serviço frio de croquettes e sandwiches, offerecendo
St. Emilion ou Porto; e sobre uma meza, entre os
renques de calices, a puncheira fumegou n'um aroma
doce e quente de cognac e limão.
—Então, meu pobre Steinbroken, exclamou Affonso,
vindo-lhe bater amavelmente no hombro, ainda
dá d'esses bellos cantos a estes bandidos, que o maltratam
assim ao bilhar?
—Fui essfôladito, si, essfôladito. Agradecido,
nô,
prefiro um copita Porto...
—Hoje fomos nós as victimas, disse-lhe o general
respirando com delicia o seu punch.
—Você tãbem, meu genêral?
—Sim, senhor, tambem me cascaram...
[161]
E que dizia o amigo Steinbroken ás noticias da
manhã? perguntava Affonso. A queda de Mac-Mahon,
a eleição de Grevy... O que o alegrava n'isto,
era o
desapparecimento definitivo do antipathico senhor de
Broglie e da sua
clique. A
impertinencia d'aquelle
academico estreito, querendo impôr a opinião de
dois
ou tres salões doutrinarios á França
inteira, a toda
uma Democracia! Ah, o
Times
cantava-lh'as!
—E o
Punch? Não viu o
Punch? Oh, delicioso!...
O ministro pousara o calice, e esfregando cautelosamente
as mãos disse n'uma meia voz grave a sua
phrase, a phrase definitiva com que julgava todos
os acontecimentos que apparecem em telegrammas:
—É gràve... É eqsessivemente
gràve...
Depois fallou-se de Gambetta; e como Affonso lhe
attribuia uma dictadura proxima, o diplomata tomou
mysteriosamente o braço de Sequeira, murmurou
a palavra suprema com que definia todas as personalidades
superiores, homens d'estado, poetas, viajantes
ou tenores.
—É um homẽ mûto forte. É um homẽ
eqsessivemente
forte!
—O que elle é, é um ronha! exclamou o general,
escorropichando o seu calice.
E todos tres deixaram a sala, discutindo ainda a
republica—em quanto Cruges continuava ao piano,
vagueando por Mendelsshon e por Choppin, depois
de ter devorado um prato de croquettes.
O marquez e D. Diogo, sentados no mesmo sophà,
um com a sua chasada d'invalido, outro com um copo
[162]
de S.
t Emilion, a que aspirava o
bouquet, fallavam
tambem de Gambetta. O marquez gostava de Gambetta:
fôra o unico que durante a guerra mostrara ventas
de homem; lá que tivesse «comido» ou que
«quizesse
comer» como diziam,—não sabia nem lhe importava.
Mas era teso! E o sr. Grevy tambem lhe parecia
um cidadão serio, optimo para chefe do Estado...
—Homem de sala? perguntou languidamente o velho
leão.
O marquez só o vira na Assembléa, presidindo e
muito digno...
D. Diogo murmurou, com um melancolico desdem
na voz, no gesto, no olhar:
—O que eu queria a toda essa canalha era a
saude, marquez!
O marquez consolou-o, galhofeiro e amavel. Toda
essa gente, parecendo forte por se occupar de cousas
fortes, no fundo tinha asthma, tinha pedra, tinha
gota... E o Dioguinho era um Hercules...
—Um Hercules! O que é, é que você
apaparica-se
muito... A doença é um mau habito em que a gente
se põe. É necessario reagir... Você
devia fazer gymnastica,
e muita agua fria por essa espinha. Você,
na realidade, é de ferro!
—Enferrujadote, enferrujadote...—replicou o
outro, sorrindo e desvanecido.
—Qual enferrujadote! Se eu fosse cavallo ou mulher,
antes o queria a você que a esses badamecos
que por ahi andam meio podres... Já não ha homens
da sua tempera, Dioguinho!
[163]
—Já não ha nada, disse o outro grave e
convencido,
e como o derradeiro homem nas ruinas d'um
mundo.
Mas era tarde, ía-se agasalhar, recolher, depois
de acabar a sua chasada. O marquez ainda se demorou,
preguiçando no sophá, enchendo lentamente o
cachimbo, dando um olhar áquella sala que o encantava
com o seu luxo Luiz XV, os seus florídos e os
seus dourados, as cerimoniosas poltronas de Beauvais
feitas para a amplidão das anquinhas, as
tapeçarias
de Gobelins de tons desmaiados, cheias de galantes
pastoras, longes de parques, laços e lãs de
cordeiros,
sombras d'idyllios mortos, transparecendo n'uma
trama de seda... Áquella hora, no adormecimento
que ía pesando, sob a luz suave e quente das velas
que findavam, havia ali a harmonia e o ar de
um outro seculo: e o marquez reclamou do Cruges
um minuete, uma gavotta, alguma cousa que evocasse
Versalhes, Maria Antonietta, o rythmo das bellas maneiras
e o aroma dos empoados. Cruges deixou morrer
sob os dedos a melodia vaga que estava diluindo
em suspiros, preparou-se, alargou os braços—e
atacou, com um pedal solemne, o
Hymno da
Carta. O marquez fugiu.
Villaça e Euzebiozinho conversavam no corredor,
sentados n'uma das arcas baixas de carvalho lavrado.
—A fazer politica? perguntou-lhes o marquez ao
passar.
Ambos sorriram; Villaça respondeu jocosamente:
—É necessario salvar a patria!
[164]
Eusebio pertencia tambem ao centro progressista,
aspirava a influencia eleitoral no circulo de Resende,
e alli ás noites no Ramalhete faziam conciliabulos.
N'esse momento porém fallavam dos Maias: Villaça
não duvidava confiar ao Silveirinha, homem de propriedade,
visinho de S.
ta Olavia, quasi creado com
Carlos, certas cousas que lhe desagradavam na casa,
onde a auctoridade da sua palavra parecia diminuir;
assim, por exemplo, não podia approvar o ter Carlos
tomado uma frisa de assignatura.
—Para que, exclamava o digno procurador, para
que, meu caro senhor? Para lá não pôr
os pés, para
passar aqui as noites... Hoje diz que ha enthusiasmo,
e elle ahi esteve. Tem ido lá, eu sei? duas ou
três
vezes... E para isto dá cá uns poucos de centos
de
mil réis. Podia fazer o mesmo com meia duzia de libras!
Não, não é governo. No fim a frisa
é para o
Ega, para o Taveira, para o Cruges... Olhe, eu não
me utiliso d'ella; nem o amigo. É verdade, que o
amigo está de luto.
Eusebio pensou, com despeito, que se podia metter
para o fundo da frisa—se tivesse sido convidado.
E murmurou, sem conter um sorriso molle:
—Indo assim, até se podem encalacrar...
Uma tal palavra, tão humilhante, applicada aos
Maias, á casa que elle administrava, escandalisou
Villaça. Encalacrar! Ora essa!
—O amigo não me comprehendeu... Ha despezas
inuteis, sim, mas, louvado Deus, a casa póde bem
com ellas! É verdade que o rendimento gasta-se todo,
[165]
até o ultimo ceitil; os cheques voam, voam, como folhas
seccas; e até aqui o costume da casa foi pôr de
lado, fazer bolo, fazer reserva. Agora o dinheiro derrete-se...
Eusebio rosnou algumas palavras sobre os trens
de Carlos, os nove cavallos, o cocheiro inglez, os
grooms... O procurador acudiu:
—Isso, amigo, é de razão. Uma gente d'estas deve
ter a sua representação, as suas cousas bem
montadas.
Ha deveres na sociedade... É como o sr. Affonso...
Gasta muito, sim, come dinheiro. Não é com
elle, que lhe conheço aquelle casaco ha vinte annos...
Mas são esmolas, são pensões,
são emprestimos
que nunca mais vê...
—Desperdicios...
—Não lh'o censuro... É o costume da casa; nunca
da porta dos Maias, já meu pae dizia, sahiu ninguem
descontente... Mas uma frisa, de que ninguem usa!
só para o Cruges, só para o Taveira!...
Teve de se callar. Justamente ao fundo do corredor
assomava o Taveira, abafado até aos olhos na
gola d'uma ulster, d'onde sahiam as pontas d'um
cachenez de seda clara. O escudeiro
desembaraçou-o
dos agasalhos; e elle, de casaca e collete branco,
limpando o bonito bigode humido da geada, veiu
apertar a mão ao caro Villaça, ao amigo Eusebio,
arrepiado,
mas achando o frio elegante, desejando a
neve e o seu
chic...
—Nada, nada, dizia Villaça todo amavel, cá o
nosso solzinho portuguez sempre é melhor...
[166]
E foram entrando no
fumoir, onde se
ouviam as
vozes do marquez, de Carlos, n'uma das suas sabias
e prolixas cavaqueiras sobre cavallos e sport.
—Então? que tal? A mulher? foi a
interrogação
que acolheu o Taveira.
Mas antes de dar noticia da estreia da Morelli, a
dama nova, Taveira reclamou alguma cousa quente.
E enterrado n'uma poltrona junto do fogão, com os
sapatos de verniz estendidos para as brazas, respirando
o aroma do punch, saboreando uma cigarette,
declarou emfim que não tinha sido um
fiasco.
—Que ella, a meu vêr, é uma insignificancia,
não
tem nada, nem voz, nem escola. Mas, coitada, estava
tão atrapalhada, que nos fez pena. Houve indulgencia,
deram-se-lhe umas palmas... Quando fui ao
palco, ella estava contente...
—Vamos a saber, Taveira, que tal é ella? inquiria
o marquez.
—Cheia, dizia o Taveira collocando as palavras
como pinceladas; alta; muito branca; bons olhos;
bons dentes...
—E o pésinho?—E o marquez, já com os olhos
accesos, passava de vagar a mão pela calva.
Taveira não reparara no pé. Não era
amador de
pés...
—Quem estava? perguntou Carlos, indolente e
bocejando.
—A gente do costume... É verdade, sabes quem
tomou a frisa ao lado da tua? Os Gouvarinhos. Lá
appareceram hoje...
[167]
Carlos não conhecia os Gouvarinhos. Em redor explicaram-lhe:
o conde de Gouvarinho, o par do reino,
um homem alto, de lunetas,
poseur...
E a condessa,
uma senhora inglesada, de cabello côr de cenoura,
muito bem feita... Emfim, Carlos não conhecia.
Villaça encontrava o conde no centro progressista,
onde elle era uma columna do partido. Rapaz
de talento, segundo o Villaça. O que o espantava
é
que elle podesse ter assim frisa de assignatura,
atrapalhado como estava: ainda não havia tres mezes
lhe tinham protestado uma letra de oitocentos
mil réis, no tribunal do commercio...
—Um asno, um caloteiro! disse o marquez com nojo.
—Passa-se lá bem, ás terças
feiras...—disse
Taveira, mirando a sua meia de seda.
Depois fallou-se do duello do Azevedo da
Opinião
com o Sá Nunes, auctor d'
El-Rei
Bolacha, a grande
magica da Rua dos Condes, e ultimamente ministro
da marinha: tinham-se tratado furiosamente nos jornaes
de
pulhas e de
ladrões: e havia dez
interminaveis
dias que estavam desafiados e que Lisboa, em
pasmaceira, esperava o sangue. Cruges ouvira que
Sá Nunes não se queria bater, por estar de luto
por
uma tia; dizia-se tambem que o Azevedo partira
precipitadamente para o Algarve. Mas a verdade, segundo
Villaça, era que o ministro do reino, primo do
Azevedo, para evitar o recontro, conservava a casa
dos dois cavalheiros bloqueada pela policia...
—Uma canalha! exclamou o marquez com um dos
seus resumos brutaes que varriam tudo.
[168]
—O ministro não deixa de ter razão, observou
Villaça.
Isto ás vezes, em duellos, póde bem succeder
uma desgraça...
Houve um curto silencio. Carlos, que caía de somno,
perguntou ao Taveira, atravez d'outro bocejo, se vira
o Ega no theatro.
—Podera! La estava de serviço, no seu posto, na
frisa dos Cohens, todo puxado...
—Então essa cousa do Ega com a mulher do
Cohen, disse o marquez, parece clara...
—Transparente, diaphana! um crystal!...
Carlos, que se erguera a accender uma cigarette
para despertar, lembrou logo a grande maxima de
D. Diogo: essas cousas nunca se sabiam, e era preferivel
não se saberem! Mas o marquez, a isto, lançou-se
em considerações pesadas. Estimava que o
Ega
se atirasse; e via ahi um facto
de represalia social,
por o Cohen ser judeu e banqueiro. Em geral
não gostava de judeus; mas nada lhe offendia tanto
o gosto e a razão como a especie
banqueiro. Comprehendia
o salteador de clavina, n'um pinheiral;
admittia o communista, arriscando a pelle sobre uma
barricada. Mas os argentarios, os
Fulanos e
C.as faziam-n'o
encavacar... E achava que destruir-lhes a
paz domestica era acto meritorio!
—Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que
olhara o relogio. E eu aqui, empregado publico, tendo
deveres para com o Estado, logo ás dez horas da
manhã.
—Que diabo, se faz no tribunal de contas? perguntou
Carlos. Joga-se? Cavaquea-se?
[169]
—Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo...
Até contas!
Affonso da Maia já estava recolhido. Sequeira e
Steinbroken tinham partido; e D. Diogo, no fundo
da sua velha traquitana, lá fôra tambem a tomar
ainda gemada, a pôr ainda o emplastro, sob o olho
solicito da Margarida, sua cozinheira e seu derradeiro
amor. E os outros não tardaram a deixar o Ramalhete.
Taveira, de novo sepultado na
ulster, trotou até
casa, uma vivendasinha perto com um bonito jardim.
O marquez conseguiu levar Cruges no
coupé, para lhe
ir fazer musica a casa, no orgão, até
ás tres ou quatro
horas, musica religiosa e triste, que o fazia chorar,
pensando nos seus amores e comendo frango
frio com fatias de salame. E o viuvo, o Eusebiosinho,
esse, batendo o queixo, tão morosa e soturnamente
como se caminhasse para a sua propria sepultura, lá
se dirigiu ao lupanar onde tinha uma
paixão.
O laboratorio de Carlos estava prompto—e muito
convidativo, com o seu soalho novo, fornos de tijolo
fresco, uma vasta meza de marmore, um amplo
divan de clina para o repouso depois das grandes
descobertas, e em redor, por sobre peanhas e prateleiras,
um rico brilho de metaes e crystaes; mas as
semanas passavam, e todo esse bello material de
experimentação,
sob a luz branca da claraboia, jazia
virgem e ocioso. Só pela manhã um servente
ía ganhar
o seu tostão diario, dando lá uma volta
preguiçosa
com um espanador na mão.
[170]
Carlos realmente não tinha tempo de se occupar
do laboratorio; e deixaria a Deus mais algumas semanas
o privilegio exclusivo de saber o segredo das
cousas—como elle dizia rindo ao avô. Logo pela
manhã cedo ía fazer as suas duas horas d'armas
com
o velho Randon; depois via alguns doentes no bairro
onde se espalhara, com um brilho de legenda, a cura
da Marcellina—e as garrafas de Bordeus que lhe
mandara Affonso. Começava a ser conhecido como medico.
Tinha visitas no consultorio—ordinariamente
bachareis, seus contemporaneos, que sabendo-o rico
o consideravam gratuito, e lá entravam, murchos e
com má cara, a contar a velha e mal disfarçada
historia
de ternuras funestas. Salvara d'um garrotilho a
filha d'um brazileiro, ao Aterro—e ganhara ahi a
sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho
ganhava um homem da sua familia. O dr. Barbedo
convidara-o a assistir a uma operação
ovariotomica. E
emfim (mas esta consagração não a
esperava realmente
Carlos tão cedo) alguns dos seus bons collegas,
que até ahi, vendo-o só a governar os seus
cavallos
inglezes, fallavam do «talento do Maia»—agora
percebendo-lhe estas migalhas de clientella, começavam
a dizer «que o Maia era um asno.» Carlos
já
fallava a serio da sua carreira. Escrevera, com laboriosos
requintes d'estylista, dois artigos para a
Gazeta
Medica; e pensava em fazer um livro
d'idéas geraes,
que se devia chamar
Medicina Antiga e
Moderna.
De resto occupava-se sempre dos seus cavallos, do
seu luxo, do seu bric-a-brac. E atravez de tudo isto,
[171]
em virtude d'essa fatal dispersão de curiosidade que,
no meio do caso mais interessante de pathologia, lhe
fazia voltar a cabeça, se ouvia fallar d'uma estatua ou
d'um poeta, attrahia-o singularmente a antiga idéa
do Ega, a creação d'uma Revista, que
dirigisse o
gosto, pezasse na politica, regulasse a sociedade, fosse
a força pensante de Lisboa...
Era porém inutil lembrar ao Ega este bello plano.
Abria um olho vago, respondia:
—Ah, a Revista... Sim, está claro, pensar n'isso!
Havemos de fallar, eu apparecerei...
Mas não apparecia no Ramalhete, nem no consultorio;
apenas se avistavam, ás vezes, em S. Carlos,
onde o Ega, todo o tempo que não passava no camarote
dos Cohens, vinha invariavelmente refugiar-se
no fundo da frisa de Carlos, por trás de Taveira ou
do Cruges; d'onde podesse olhar de vez em quando
Rachel Cohen—e ali ficava, silencioso, com a cabeça
appoiada ao tabique, repousando e como saturado
de felicidade...
O dia (dizia elle) tinha-o todo tomado: andava procurando
casa, andava estudando mobilias... Mas era
facil encontral-o pelo Chiado e pelo Loreto, a rondar
e a farejar—ou então no fundo de tipoias de
praça,
batendo a meio galope, n'um espalhafato de aventura.
O seu dandysmo requintava; arvorara, com o desplante
soberbo d'um Brummel, casaca de botões amarellos
sobre collete de setim branco; e Carlos entrando
uma manhã cedo no
Universal, deu com elle
pallido de colera, a despropositar com um creado,
[172]
por causa d'uns sapatos mal envernisados. Os seus
companheiros constantes, agora, eram um Damaso Salcede,
amigo do Cohen, e um primo da Rachel Cohen,
mocinho imberbe, d'olho esperto e duro, já com ares
de emprestar a trinta por cento.
Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa,
discutia-se ás vezes Rachel, e as opiniões
discordavam.
Taveira achava-a «deliciosa!»—e dizia-o rilhando
o dente: ao marquez não deixava de parecer
appetitosa, para uma vez, aquella carnezinha
faisandée
de mulher de trinta annos: Cruges chamava-lhe
uma «lambisgoia relamboria». Nos jornaes, na
secção
do
High-life, ella era
«uma das nossas primeiras elegantes»:
e toda a Lisboa a conhecia, e a sua luneta
d'ouro presa por um fio d'ouro, e a sua caleche azul
com cavallos pretos. Era alta, muito pallida, sobre
tudo ás luzes, delicada de saude, com um quebranto
nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a
sua pessoa, um ar de romance e de lyrio meio
murcho: a sua maior belleza estava nos cabellos, magnificamente
negros, ondeados, muito pesados, rebeldes
aos ganchos, e que ella deixava habilmente
cahir n'uma massa meia solta sobre as costas, como
n'um desalinho de nudez. Dizia-se que tinha litteratura,
e fazia phrases. O seu sorriso lasso, pallido,
constante, dava-lhe um ar de insignificancia. O pobre
Ega adorava-a.
Conhecera-a na Foz, na Assembléa; n'essa noite,
cervejando com os rapazes, ainda lhe chamou
camelia
melada; dias depois já adulava o marido; e
agora
[173]
esse demagogo, que queria o massacre em massa das
classes medias, soluçava muita vez por causa d'ella,
horas inteiras, cahido para cima da cama.
Em Lisboa, entre o Gremio e a Casa Havaneza, já
se começava a fallar «do arranjinho do
Ega». Elle
todavia procurava pôr a sua felicidade ao abrigo de
todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas
precauções tanta sinceridade como prazer
romantico
do mysterio: e era nos sitios mais desageitados,
fóra de portas, para os lados do Matadouro,
que ía furtivamente encontrar a creada que lhe
trazia as cartas d'ella... Mas em todos os seus modos
(mesmo no disfarce affectado com que espreitava
as horas) transbordava a immensa vaidade d'aquelle
adulterio elegante. De resto sentia bem que os seus
amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam em
pleno drama: era mesmo talvez por isso, que, diante
de Carlos e dos outros, nunca até ahi mencionara o
nome d'ella, nem deixara jámais escapar um lampejo
de exaltação.
Uma noite, porém, acompanhando Carlos até ao
Ramalhete, noite de lua calma e branca, em que caminhavam
ambos callados, Ega, invadido decerto por
uma onda interior de paixão, soltou desabafadamente
um suspiro, alargou os braços, declamou com os olhos
no astro, um tremor na voz:
Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l'amour c'est la vie!
Isto fugira-lhe dos labios como um começo de
confissão;
Carlos ao lado não disse nada, soprou ao ar
o fumo do charuto.
[174]
Mas Ega sentiu-se decerto ridiculo, porque se calmou,
refugiou-se immediatamente no puro interesse
litterario:
—No fim de contas, menino, digam lá o que disserem,
não ha senão o velho Hugo...
Carlos, comsigo, lembrava furores naturalistas do
Ega, rugindo contra Hugo, chamando-lhe «saco-roto
de espiritualismo», «boca-aberta de
sombra»,
«avôsinho lyrico», injurias peiores.
Mas n'essa noite o grande phraseador continuou:
—Ah o velho Hugo! o velho Hugo é o campeão
heroico de verdades eternas... É necessario um bocado
d'ideal, que diabo!... De resto o ideal
póde
ser real...
E foi, com esta palinodia, acordando os silencios
do Aterro.
Dias depois Carlos, no consultorio, acabava de despedir
um doente, um Viegas, que todas as semanas
vinha alli fazer a fastidiosa chronica da sua dyspepsia—quando
do reposteiro da sala d'espera lhe surgiu
o Ega, de sobrecasaca azul, luva
gris-perle e um rolo
de papel na mão.
—Tens que fazer, doutor?
—Não, ía a sahir, janota!
—Bem. Venho-te impingir prosa... Um bocado do
Atomo... Senta-te ahi. Ouve
lá.
Immediatamente abancou, afastou papeis e livros,
desenrolou o manuscripto, espalmou-o, deu um puxão
ao collarinho—e Carlos, que se pousara á borda do
divan, com a face espantada e as mãos nos joelhos,
[175]
achou-se quasi sem transição transportado dos
rugidos
do ventre do Viegas para um rumor de populaça,
n'um bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg.
—Mas espera lá! exclamou elle. Deixa-me respirar.
Isso não é o começo do livro! Isso
não é o
cahos...
Ega então recostou-se, desabotoou a sobrecasaca,
respirou tambem.
—Não, não é o primeiro episodio...
Não é o cahos.
É já no seculo XV... Mas n'um livro d'estes
póde-se
começar pelo fim... Conveiu-me fazer este episodio:
chama-se a
Hebrea.
A Cohen! pensou Carlos.
Ega tornou a alargar o collarinho—e foi lendo,
animando-se, ferindo as palavras para as fazer viver,
soltando grandes cheios de voz nas sonoridades finaes
dos periodos. Depois da sombria pintura d'um bairro
medival de Heidelberg, o famoso Atomo, o
Atomo do
Ega, apparecia alojado no
coração do esplendido
principe Franck, poeta, cavalleiro, e bastardo do imperador
Maximiliano. E todo esse coração de heroe
palpitava pela judia Esther, perola maravilhosa do
Oriente, filha do velho rabbino Salomão, um grande
doutor da Lei, perseguido pelo odio theologico do
Geral dos Dominicanos.
Isto contava-o o Atomo n'um monologo, tão recamado
d'imagens como um manto da Virgem está recamado
d'estrellas—e que era uma declaração d'elle,
Ega, á mulher do Cohen. Depois abria-se um intermedio
[176]
pantheista: rompiam coros de flores, coros de
astros, cantando na linguagem da luz, ou na eloquencia
dos perfumes, a belleza, a graça, a pureza, a alma
celeste de Esther—e de Rachel... Emfim, chegava
o negro drama da perseguição: a fuga da familia
hebraica,
atravéz de bosques de bruxas e brutas aldêas
feudaes; a apparição, n'uma encrusilhada, do
principe
Franck que vem proteger Esther, de lança alta, no
seu grande corcel; o tropel da turba fanatica, correndo
a queimar o rabbino e os seus livros herejes;
a batalha, e o principe atravessado pelo chuço d'um
reitre, indo morrer no peito
d'Esther, que morre com
elle n'um beijo. Tudo isto se precipitava como um
sonoro e tumultuoso soluço; e era tratado com as
maneiras modernas d'estylo, o esforço atormentado
inchando a expressão, as camadas de côr atiradas
á
larga para fazer ressaltar o tom de vida...
Ao findar o
Atomo exclamava, com a
vasta solemnidade
d'um cheio d'orgão:—«assim arrefeceu, parou,
aquelle coração de heroe que eu habitava; e
evaporado
o principio de vida, eu, agora livre, remontei
aos astros, levando comigo a essencia pura d'esse
amor immortal.»
—Então?...—disse Ega, esfalfado, quasi tremulo.
Carlos só poude responder:
—Está ardente.
Depois elogiou a serio alguns lances, o coro das
florestas, a leitura do
Ecclesiastes, de noite, entre as
ruinas da torre d'Othon, certas imagens d'um grande
vôo lyrico.
[177]
Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o
manuscripto, reabotoou a sobrecasaca, e já de
chapéu
na mão:
—Então, parece-te apresentavel?...
—Vaes publicar?
—Não, mas emfim...—e ficou n'esta reticencia,
fazendo-se corado.
Carlos comprehendeu tudo dias depois, encontrando
na
Gazeta do Chiado uma
descripção «da leitura feita
em casa do ex.
mo sr. Jacob Cohen, pelo nosso
amigo
João da Ega, de um dos mais brilhantes episodios
do seu livro—
As memorias d'um
atomo.» E o jornalista
accrescentava, dando a sua impressão pessoal:
«é uma pintura dos sofrimentos porque passaram,
nos tempos da intolerancia religiosa, aquelles que
seguem a Lei d'Israel. Que poder de imaginação!
Que fluencia d'estylo! O effeito foi extraordinario,
e quando o nosso amigo fechou o manuscripto ao
succumbir da protagonista—vimos lagrimas em todos
os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica!»
Oh, furor do Ega! Rompeu n'essa tarde pelo consultorio,
pallido, desorientado...
—Estas bestas! Estas bestas d'estes jornalistas!
Leste?
Lagrimas em todos os olhos da numerosa e
estimavel
colonia hebraica! Faz cahir a cousa em ridiculo...
E depois a
fluencia d'estylo. Que
burros! Que idiotas!
Carlos, que cortava as folhas d'um livro, consolou-o.
Aquella era a maneira nacional de fallar d'obras
d'arte... Não valia a pena bramar...
[178]
—Não, palavra, tinha vontade de quebrar a cara
áquelle folliculario!
—E porque lh'a não quebras?
—É um amigo dos Cohens.
E foi grunhindo improperios contra a imprensa, a
passos de tigre pelo gabinete. Por fim irritado com
a indifferença de Carlos:
—Que diabo estás tu ahi a ler?
Nature
parasitaire
des accidents de l'impaludisme... Que
blague, a medicina!
Dize-me uma cousa. Que diabo serão umas
picadas que me veem aos braços, sempre que vou a
adormecer?...
—Pulgas, bichos, vermina...—murmurou Carlos
com os olhos no livro.
—Animal! rosnou Ega, arrebatando o chapéu.
—Vaes-te, John?
—Vou, tenho que fazer!—E junto do reposteiro,
ameaçando o céu com o guarda-chuva, chorando
quasi
de raiva:—Estes burros d'estes jornalistas! São a
escoria da sociedade!
D'ahi a dez minutos reappareceu, bruscamente: e
já com outra voz, n'um tom de caso serio:
—Ouve cá. Tinha-me esquecido. Tu queres ser
apresentado aos Gouvarinhos?
—Não tenho um interesse especíal, respondeu
Carlos,
erguendo os olhos do livro, depois de um silencio.
Mas não tenho tambem uma repugnancia especial.
—Bem, disse Ega. Elles desejam conhecer-te, sobretudo
a condessa faz empenho... Gente intelligente,
[179]
passa-se lá bem... Então, decidido!
Terça feira vou-te buscar ao Ramalhete, e vamo-nos
gouvarinhar.
Carlos ficou pensando n'aquella proposta do Ega,
na maneira como elle sublinhára o
empenho da condessa.
Lembrava-se agora que ella era muito intima
da Cohen: e ultimamente, em S. Carlos, n'aquella
facil visinhança de frisa, surprehendera certos olhares
d'ella... Mesmo, segundo o Taveira, ella realmente
fazia-lhe um olhão. E
Carlos achava-a picante,
com os seus cabellos crespos e ruivos, o narizinho
petulante, e os olhos escuros, d'um grande brilho,
dizendo mil cousas. Era deliciosamente bem feita—e
tinha uma pelle muito clara, fina e doce á vista,
a que se sentia mesmo de longe o setim.
Depois d'aquelle dia tristônho de aguaceiros, elle
resolvera passar um bom serão de trabalho, ao canto
do fogão, no conforto do seu robe-de-chambre. Mas
ao café, os olhos da Gouvarinho começaram a
faiscar-lhe
por entre o fumo do charuto, a fazer-lhe
um
olhão,
collocando-se tentadoramente entre elle e a sua noite
d'estudo, pondo-lhe nas veias um vivo calor de mocidade...
Tudo culpa do Ega, esse Mephistopheles de Celorico!
Vestiu-se, foi a S. Carlos. Ao sentar-se porém á
boca da frisa, preparado, de collete branco e perola
negra na camisa,—em logar dos cabellos crespos e
ruivos, avistou a carapinha retinta de um preto, um
preto de doze annos, trombudo e lusidio, de grande
collarinho á mamã sobre uma jaqueta de
botões amarellos;
[180]
ao lado outro preto, mais pequeno, com o
mesmo uniforme de collegio, enterrava pela venta
aberta o dedo calçado de pellica branca. Ambos elles
lhe relancearam os olhos bogalhudos, côr de prata
embaciada. A pessoa que os acompanhava, escondida
para o fundo, parecia ter um catharro ascoroso.
Dava-se a
Lucia em beneficio, com a
segunda dama.
Os Cohens não tinham vindo—nem o Ega. Muitos
camarotes estavam desertos, em toda a tristeza do
seu velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com
um bafo de sudoeste, parecia penetrar alli, derramando
o seu pesadume, a morna sensação da sua humidade.
Nas cadeiras, vasias, havia uma mulher solitaria,
vestida de setim claro; Edgardo e Lucia desafinavam;
o gaz dormia, e os arcos das rebecas, sobre
as cordas, pareciam ir adormecendo tambem.
—Isto está lugubre, disse Carlos ao amigo Cruges,
que occupava o escuro da frisa.
Cruges, amodorroado n'um accesso de
spleen, com
o cotovello sobre as costas da cadeira, os dedos por
entre a cabelleira, todo elle embrulhado em crepes,
sobrepostos de melancolia, respondeu, como do fundo
d'um sepulchro:
—Pesadote.
Por indolencia, Carlos ficou. E pouco a pouco,
aquelle preto de que os seus olhos se não podiam
despegar, alli enthronisado na poltrona de reps verde
da Gouvarinho, com a manga da jaqueta plantada no
rebordo onde costumava alvejar um lindo braço,—foi-lhe
arrastando, a seu pesar, a imaginação para a
[181]
pessoa d'ella; relembrou
toilettes
com que ella alli estivera;
e nunca lhe pareceram tão picantes, como
agora que os não via, os seus cabellos ruivos, côr
de braza ás luzes, d'um encrespado forte, como crestados
da chamma interna. A carapinha do preto, essa,
em logar de risca tinha um sulco cavado á thesoura
na massa de lã espessa. Quem seriam, por que estavam
alli, aquelles africanos de perfil trombudo?
—Tu já reparaste n'esta extraordinaria carapinha,
Cruges?
O outro, que se não mexera da sua attitude de estatua
tumular, grunhiu da sombra um monosyllabo surdo.
Carlos respeitou-lhe os nervos.
De repente, ao desafinar mais aspero d'um coro,
Cruges deu um salto.
—Isto só a pontapé... Que empreza esta! rugio
elle, envergando furiosamente o paletot.
Carlos foi leval-o no coupé á rua das Flores,
onde
elle morava com a mãe e uma irmã; e
até ao Ramalhete
não cessou de lamentar comsigo o seu serão
d'estudo perdido.
O creado de Carlos, o Baptista, (familiarmente, o
Tista) esperava-o, lendo o jornal,
na confortavel antecamara
dos «quartos do menino», forrada de velludo
côr de cereja, ornada de retratos de cavallos e panoplias
de velhas armas, com divans do mesmo velludo,
e muito allumiada a essa hora por dois candieiros
de globo pousados sobre columnas de carvalho,
onde se enrolavam lavores de ramos de vide.
Carlos tinha desde os onze annos este creado de
[182]
quarto, que viera com o Brown para S.
ta Olavia,
depois
de ter servido em Lisboa, na Legação ingleza,
e ter acompanhado o ministro, sir Hercules Morrisson,
varias vezes a Londres. Foi em Coimbra, nos
Paços de Cellas, que Baptista começou a ser um
personagem:
Affonso correspondia-se com elle de S.
ta Olavia.
Depois viajou com Carlos; enjoaram nos mesmos
paquetes, partilharam dos mesmos
sandwiches no
buffete das gares; Tista tornou-se um confidente.
Era hoje um homem de cincoenta annos, desempenado,
robusto, com um collar de barba grisalha por
baixo do queixo, e o ar excessivamente
gentleman.
Na rua, muito direito na sua sobrecasaca, com o par
de luvas amarellas espetado na mão, a sua bengala
de cana da India, os sapatos bem envernisados, tinha
a consideravel apparencia de um alto funccionario.
Mas conservava-se tão fino e tão
desembaraçado, como
quando em Londres aprendera a walsar e a
boxar
na rude balburdia dos salões-dançantes, ou como
quando mais tarde, durante as ferias de Coimbra,
acompanhava Carlos a Lamego e o ajudava a saltar
o muro do quintal do sr. escrivão de fazenda—aquelle
que tinha uma mulher tão garota.
Carlos foi buscar um livro ao gabinete d'estudo,
entrou no quarto, estendeu-se, cançado, n'uma poltrona.
Á luz opalina dos globos, o leito entre-aberto
mostrava, sob a seda dos cortinados, um luxo effeminado
de bretanhas, bordados e rendas.
—Que ha hoje no
Jornal da Noite?
perguntou elle
bocejando, em quanto Baptista o descalçava.
[183]
—Eu li-o todo, meu senhor, e não me pareceu
que houvesse cousa alguma. Em França continúa
socego...
Mas a gente nunca póde saber, porque estes
jornaes portuguezes imprimem sempre os nomes estrangeiros
errados.
—São umas bestas. O sr. Ega hoje estava furioso
com elles...
Depois, em quanto Baptista preparava com esmero
um
grog quente, Carlos já
deitado, aconchegado,
abriu preguiçosamente o livro, voltou duas folhas, fechou-o,
tomou uma cigarette, e ficou fumando com as
palpebras cerradas, n'uma immensa beatitude. Atravéz
das cortinas pesadas sentia-se o sudoeste que
batia o arvoredo, e os aguaceiros alagando os vidros.
—Tu conheces os srs. condes de Gouvarinho,
Tista?
—Conheço o Pimenta, meu senhor, que é creado
de quarto do sr. conde... Creado de quarto e serve
a meza.
—E que diz então esse Tormenta? perguntou Carlos,
n'uma voz indolente, depois d'um silencio.
—Pimenta, meu senhor! O Manuel é Pimenta. O
sr. Gouvarinho chama-lhe Romão, por que estava
acostumado ao outro creado que era Romão. E já
isto
não é bonito, porque cada um tem o seu nome. O
Manuel é Pimenta. O Pimenta não está
contente...
E Baptista, depois de collocar junto da cabeceira a
salva com o
grog, o assucareiro, as
cigarettes, transmittiu
as revelações do Pimenta. O conde de Gouvarinho,
além de muito massador e muito pequinhento,
[184]
não tinha nada de cavalheiro: dera um fato de cheviot
claro ao Romão (ao Pimenta), mas tão
coçado e
tão cheio de riscas de tinta, de limpar a penna á
perna e ao hombro, que o Pimenta deitou o presente
fóra. O conde e a senhora não se davam bem:
já no
tempo do Pimenta, uma occasião, á mesa, tinham-se
pegado de tal modo que ella agarrou do copo e do
prato, e esmigalhou-os no chão. E outra qualquer teria feito
o mesmo; por que o sr. conde, quando começava
a repisar, a remoer, não se podia aturar. As
questões eram sempre por causa de dinheiro. O
Tompson velho estava farto de abrir os cordões á
bolsa...
—Quem é esse Tompson velho, que nos apparece
agora, a esta hora da noite? perguntou Carlos, a seu
pesar interessado.
—O Tompson velho é o pae da sr.
a
condessa. A
sr.
a condessa era uma miss Tompson, dos Tompson
do Porto. O sr. Tompson não tem querido ultimamente
emprestar nem mais um real ao genro: de
sorte que, uma vez, já no tempo do Pimenta tambem,
o sr. conde, furioso, disse á senhora que ella e o pae
se deviam lembrar que eram gente de commercio
e que fora elle que fizera d'ella uma condessa; e com
perdão de v. Ex.
a, a senhora condessa
ali mesmo
á
mesa mandou o condado á tabúa... Estas cousas
não estão no genero do Pimenta.
Carlos bebeu um gole de grog. Bailava-lhe nos labios
uma pergunta, mas hesitava. Depois reflectiu na
puerilidade de tão rigidos escrupulos, a respeito d'uma
[185]
gente, que ao jantar, diante do escudeiro, quebrava
a porcelana, mandava á tabua o titulo dos antepassados.
E perguntou:
—Que diz o sr. Pimenta da senhora condessa,
Baptista? Ella diverte-se?
—Creio que não, meu senhor. Mas a creada de
confiança d'ella, uma escosseza, essa é
desobstinada.
E não fica bem á senhora condessa ser assim
tão intima
com ella...
Houve um silencio no quarto, a chuva cantou mais
forte nos vidros.
—Passando a outro assumpto, Baptista. Vamos a
saber, ha quanto tempo, não escrevo eu a madame
Rughel?
Baptista tirou do bolso interior da sua casaca um
livro de apontamentos, aproximou-se da luz, encavalou
a luneta no nariz, e verificou, com methodo, estas
datas:—«Dia 1 de janeiro, telegramma expedido
com felicitações do começo d'anno a
madame Rughel, Hotel d'Albe, Champs Élyseés,
Paris. Dia 3,
telegramma recebido de madame Rughel, reciprocando
comprimentos, exprimindo amizade, annunciando partida
para Hamburgo. Dia 15, carta lançada ao correio,
para madame Rughel,
William-Strasse, Hamburgo,
Allemagne. Depois—mais nada. De modo que havia
já cinco semanas que o menino não escrevia a
madame Rughel...
—É necessario escrever ámanhã, disse
Carlos..
Baptista tomou uma nota.
Depois, entre uma fumaça languida, a voz de
[186]
Carlos ergueu-se de novo na paz dormente do
quarto:
—Madame Rughel era muito bonita, não é verdade,
Baptista? É a mulher mais bonita que tu tens
visto na tua vida!
O velho creado metteu o livro no bolso da casaca,
e respondeu, sem hesitar, muito certo de si:
—Madame Rughel era uma senhora de muita
vista. Mas a mulher mais linda em que tenho posto
os olhos, se o menino dá licença, era aquella
senhora
do coronel de hussards que vinha ao quarto do hotel
em Vienna.
Carlos atirou a cigarette para a salva—e escorregando
pela roupa abaixo, todo invadido por uma onda
de recordações alegres, exclamou da profundidade
do seu conforto, no antigo tom de emphase bohemia
dos Paços de Cellas.
—O sr. Baptista não tem gosto nenhum! Madame
Rughel era uma nympha de Rubens, senhor! Madame
Rughel tinha o explendor d'uma deusa da Renascença,
senhor! Madame Rughel devia ter dormido
no leito imperial de Carlos Quinto...—Retire-se,
senhor!
Baptista entalou mais o
couvre-pieds, relanceou pelo
quarto um olhar solicito, e, contente, da ordem em
que as cousas adormeciam, saíu, levando o candieiro.
Carlos não dormia: e não pensava na coronela de
hussards, nem em madame Rughel. A figura que no
escuro dos cortinados lhe apparecia, n'um vago dourado
que provinha do reflexo de seus cabellos soltos,
[187]
era a Gouvarinho—a Gouvarinho que não tinha o
explendor d'uma deusa da Renascença como madame
Rughel, nem era a mulher mais linda em que Baptista
pozera os seus olhos como a coronela de hussards:
mas, com o seu nariz petulante e a sua boca grande,
brilhava mais e melhor que todas na imaginação de
Carlos—porque elle esperara-a essa noite e ella não
tinha apparecido.
Na terça-feira promettida Ega não veiu buscar
Carlos
para se irem
gouvarinhar. E foi
Carlos que d'ahi
a dias, entrando como por acaso no
Universal, perguntou
rindo ao Ega:
—Então quando nos
gouvarinhamos?
N'essa noite, em S. Carlos, n'um entre-acto dos
Huguenotes, Ega apresentou-o ao sr.
conde de Gouvarinho,
no corredor das frizas. O conde, muito amavel,
lembrou logo que já tivera, mais de uma vez, o
prazer de passar pela porta de S.
ta Olavia,
quando
ia vêr os seus velhos amigos, os Tedins, a Entre-Rios—uma
formosa vivenda tambem. Fallaram então do
Douro, da Beira, compararam outras paisagens. Para
o conde, nada havia, no nosso Portugal, como os
campos do Mondego: mas a sua parcialidade era perdoavel,
pois n'esses ferteis vales nascera e se creara:
e fallou um momento de Formozelha, onde tinha casa,
onde vivia edosa e doente sua mãe, a sr.
a
condessa
viuva...
Ega, que affectara beber as palavras do conde, começou
então uma controversia, sustentando como se
se tratasse dos dogmas d'uma fé, a belleza superior
[188]
do Minho, «esse paraiso idillico.» O conde sorria:
via
ali, como elle observou a Carlos, batendo amavelmente
no hombro do Ega, a rivalidade das duas provincias.
Emulação fecunda, de resto, no seu pensar...
—Ahi está, por exemplo, dizia elle, o ciume entre
Lisboa e Porto. É uma verdadeira dualidade como
a que existe entre a Hungria e a Austria... Ouço
por ali lamental-a. Pois bem, eu, se fosse poder, instigal-a-hia,
acirral-a-hia, se v. ex.
as me permittem a
expressão. N'esta lucta das duas grandes cidades do
reino, podem outros vêr despeitos mesquinhos, eu
vejo elementos de progresso. Vejo civilisação!
Proferia estas cousas como do alto d'um pedestal,
muito acima dos homens, deixando-as providamente
caír dos thesouros do seu intellecto á maneira de
dons inestimaveis. A voz era lenta e rotunda; os cristaes
da sua luneta d'ouro faiscavam vistosamente; e
no bigode encerado, na pera curta, havia ao mesmo
tempo alguma cousa de doutoral e de casquilho.
Carlos dizia: «Tem v. ex.
a
razão, sr.
conde.» O
Ega dizia: «Você vê essas cousas d'alto,
Gouvarinho».
Elle cruzara as mãos por baixo das abas da casaca—e
estavam todos tres muito serios.
Depois o conde abriu a porta da friza, Ega desappareceu.
E d'ahi a um momento, Carlos, apresentado
como «visinho de camarote», recebia da sr.
a
condessa
um grande
shake-hand, em que
tilintaram uma infinidade
d'aros de prata e de
blangles indios
sobre a sua
luva preta de doze botões.
A sr.
a condessa, um pouco corada, ligeiramente
[189]
nervosa, lembrou logo a Carlos que o vira no verão
passado em Paris, no salão baixo do Café Inglez:
até
por signal estava n'essa noite um velho abominavel
com duas garrafas vazias diante de si, e contando
alto, para uma meza defronte, historias horrorosas do
sr. Gambetta: um sujeito ao lado protestou; o outro
não fez caso, era o velho duque de Grammont. O
conde passou os dedos lentos pela testa, com um ar
quasi angustioso: não se lembrava de nada d'isso!
Queixou-se logo amargamente da sua falta de memoria.
Uma cousa tão indispensavel em quem segue a
vida publica, a memoria! e elle desgraçadamente,
não possuia nem um atomo. Por exemplo, lera (como
todo o homem devia lêr) os vinte volumes da
Historia
Universal de Cesar Cantu; lêra-os com
attenção,
fechado no seu gabinete, absorvendo-se na obra. Pois,
senhores, escapara-lhe tudo—e ali estava sem saber
historia!
—V. ex.
a tem boa memoria, sr. Maia?
—Tenho uma rasoavel memoria.
—Inapreciavel bem de que goza!
A condessa voltara-se para a platéa, coberta com
o leque, com o ar constrangido, como se aquellas palavras
pueris do marido a diminuissem, a desfeiassem...
Carlos então fallou da opera. Que bello escudeiro
huguenote fazia o Pandolli! A condessa não
aturava o Corcelli, o tenor, com as suas notas asperas
e aquella obesidade que o tornava
buffo. Mas
tambem (lembrava Carlos) onde havia hoje tenores?
Passara essa grande raça dos Marios, homens de belleza,
[190]
de inspiração, realisando os grandes typos
lyricos.
Nicolini era já uma degeneração...
Isto fez lembrar
a Patti. A condessa adorava-a, e a sua graça de
fada, e a sua voz semelhante a uma chuva d'ouro!...
Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil cousas; em certos
movimentos, o cabello crespamente ondeado, tomava
tons de oiro vermelho: e em torno d'ella errava,
no calor do gaz e da enchente, um aroma exagerado
de verbena. Estava de preto, com uma gargantilha,
de rendas negras, á Valois, affogando-lhe o
pescoço
onde pousavam duas rosas escarlates. E toda a sua
pessoa tinha um arsinho de provocação e de
ataque.
De pé, callado, grave, o conde batia a coxa com a
claque fechada.
O quarto acto começara, Carlos ergueu-se; e os
seus olhos encontraram defronte, na frisa do Cohen,
o Ega, de binoculo, observando-o, mirando a condessa
e fallando a Rachel, que sorria, movia o leque com
um ar dolente e vago.
—Nós recebemos ás terças feiras,
disse a condessa
a Carlos—e o resto da phrase perdeu-se n'um murmurio
e n'um sorriso.
O conde acompanhou-o fóra, ao corredor.
—É sempre uma honra para mim, dizia elle caminhando
ao lado de Carlos, fazer o conhecimento das
pessoas que valem alguma cousa n'este paiz ... V.
ex.
a é d'esse numero, bem raro
infelizmente.
Carlos protestou, risonho. E o outro, na sua voz
lenta e rotunda:
—Não o lisongeio. Eu nunca lisongeio... Mas a
[191]
v. ex.
a podem-se dizer estas cousas, porque
pertence
á
elite: a
desgraça de Portugal é a falta de gente,
Isto é um paiz sem pessoal. Quer-se um bispo? Não
ha um bispo. Quer-se um economista? Não ha um
economista. Tudo assim! Veja v. ex.
a mesmo nas
profissões
subalternas. Quer-se um bom estofador? Não
ha um bom estofador...
Um cheio de instrumentos e vozes, d'um tom sublime,
passando pela porta da frisa entreaberta, cortou-lhe
umas ultimas palavras sobre a defficiencia
dos photographos... Escutou, com a mão no ar:
—É o
coro dos punhaes,
não? Ah vamos a ouvir...
Ouve-se sempre isto com proveito. Ha philosophia
n'esta musica... É pena que lembre tão vivamente
os tempos da intolerancia religiosa, mas ha alli incontestavelmente
philosophia!
VI
Carlos, n'essa manhã, ia visitar de surpreza a casa
do Ega, a famosa «Villa Balzac», que esse
phantasista
andára meditando e dispondo desde a sua chegada
a Lisboa, e onde se tinha emfim installado.
Ega dera-lhe esta denominação litteraria, pelos
mesmos motivos porque a alugára n'um suburbio
longiquo, na solidão da Penha de França,—para
que
o nome de Balzac, seu padroeiro, o silencio campestre,
os ares limpos, tudo alli fosse favoravel ao estudo,
ás horas d'arte e d'ideal. Por que ia fechar-se
lá, como n'um claustro de lettras, a findar as
Memorias
d'um Atomo! Sómente, por causa das
distancias,
tinha tomado ao mez um coupé da companhia.
Carlos teve difficuldades em encontrar a «Villa
Balzac»: não era, como tinha dito Ega no
Ramalhete,
[194]
logo adiante do largo da Graça um
chaletsinho retirado,
fresco, assombreado, sorrindo entre arvores.
Passava-se primeiro a Cruz dos Quatro Caminhos; depois
penetrava-se n'uma vereda larga, entre quintaes,
descendo pelo pendor da collina, mas accessivel a
carruagens; e ahi, n'um recanto, ladeada de muros,
apparecia emfim uma cazota de paredes enxovalhadas,
com dois degraus de pedra á porta, e transparentes
novos d'um escarlate estridente.
N'essa manhã, porém, debalde Carlos deu
puxões
desesperados á corda da campainha, martellou a aldrava
da porta, gritou a toda a voz por cima do
muro do quintal e das copas das arvores o nome do
Ega:—a «Villa Balzac» permaneceu muda, como
deshabitada, no seu retiro rustico. E todavia pareceu
a Carlos que, justamente antes de bater, ouvira o
estalar de rolhas de
Champagne.
Quando Ega soube esta tentativa, mostrou-se indignado
com os criados, que assim abandonavam a
casa, lhe davam um ar suspeito de Torre de Nesle...
—Vae lá ámanhã, se ninguem responder,
escala
as janellas, pega fogo ao predio, como se fossem apenas
as Tulherias.
Mas no dia seguinte, quando Carlos chegou, já
a «Villa Balzac» o esperava, toda em festa:
á porta
«o pagem», um garoto de
feições horrívelmente viciosas,
perfilava-se na sua jaqueta azul de botões de
metal, com uma gravata muito branca e muito teza;
as duas janellas em cima, abertas, mostrando o reps
verde das bambinellas, bebiam á larga todo o ar do
[195]
campo e o sol de inverno: e no topo da estreita escada,
tapetada de vermelho, Ega, n'um prodigioso
robe-de-chambre, de um estofo adamascado do seculo
dezoito, vestido de côrte de alguma das suas avós,
exclamou dobrando a fronte ao chão:
—Bem vindo, meu principe, ao humilde tegurio
do philosopho!
Ergueu, com um gesto rasgado, um reposteiro
de reps verde, d'um verde feio e triste, e introduziu
o «principe» na sala onde tudo era verde tambem:
o reps que recobria uma mobilia de nogueira, o
tecto de taboado, as listas verticaes do papel da parede,
o pano franjado da mesa, e o reflexo d'um espelho
redondo, inclinado sobre o sophá.
Não havia um quadro, uma flôr, um ornato, um
livro—apenas sobre a jardineira uma estatueta de
Napoleão I, de pé, equilibrado sobre o orbe
terrestre,
n'essa conhecida attitude em que o heroe, com
um ar pansudo e fatal, esconde uma das mãos por
traz das costas, e enterra a outra nas profundidades
do seu collete. Ao lado uma garrafa de
Champagne,
encarapuçada de papel dourado, esperava entre dois
copos esguios.
—Para que tens tu aqui Napoleão, John?
—Como alvo de injurias, disse Ega. Exercito-me
sobre elle a fallar dos tyrannos...
Esfregou as mãos, radiante. Estava n'essa manhã
em alegria e em verve. E quiz immediatamente mostrar
a Carlos o seu quarto de cama: ahi reinava um
cretone de ramagens alvadias sobre fundo vermelho;
[196]
e o leito enchia, esmagava tudo. Parecia ser o motivo,
o centro da «Villa Balzac»; e n'elle se esgotara
a imaginação artistica do Ega. Era de madeira,
baixo como um divan, com a barra alta, um
roda-pé de renda, e d'ambos os lados um luxo de
tapetes de felpo escarlate; um largo cortinado de
seda da India avermelhada envolvia-o n'um apparato
de tabernaculo; e dentro, á cabeceira, como n'um
lupanar, reluzia um espelho.
Carlos, muito seriamente, aconselhou-lhe que tirasse
o espelho. Ega deu a todo o leito um olhar silencioso
e dôce, e disse depois de passar uma pontinha
de lingua pelo beiço:
—Tem seu chic...
Sobre a mesinha de cabeceira erguia-se um montão
de livros: a
Educação de
Spencer ao lado de
Beaudelaíre, a
Logica de Stuart Mill
por cima do
Cavalleiro da Casa Vermelha. No
marmore da commoda
havia outra garrafa de Champagne entre dous
copos; o toucador, um pouco em desordem, mostrava
uma enorme caixa de pó d'arroz no meio de plastrons
e gravatas brancas do Ega, e um masso de ganchos
do cabello ao lado de ferros de frisar.
—E onde trabalhas tu, Ega, onde fazes tu a grande
arte?
—Alli! disse o Ega, alegremente, apontando para
o leito.
Mas foi mostrar logo o seu recantosinho estudioso,
formado por um biombo, ao lado da janella, e tomado
todo por uma mesa de pé de gallo, onde Carlos
[197]
assombrado descobriu, entre o bello papel de cartas
do Ega, um
Diccionario de Rimas...
E a visita á casa continuou.
Na sala de jantar, quasi nua, caiada de amarello,
um armario de pinho envidraçado abrigava melancolicamente
um serviço barato de louça nova; e do
fecho da janella pendia um vestuario vermelho, que
parecia roupão de mulher.
—É sobrio e simples—exclamou o Ega—como
compete áquelle que se alimenta d'uma codea d'Ideal
e duas garfadas de Philosophia. Agora, á cosinha!...
Abriu uma porta. Uma frescura de campos entrava
pelas janellas abertas; e entreviam-se arvores de
quintal, um verde de terrenos vagos, depois lá em
baixo o branco de casarias rebrilhando ao sol; uma
rapariga muito sardenta e muito forte sacudiu o gato
do collo, ergueu-se, com o
Jornal de
Noticias na mão.
Ega apresentou-a, n'um tom de farça:
—A sr.
a Josepha, solteira, de temperamento
sanguineo,
artista culinaria da «Villa Balzac», e como se
póde observar pelo papel que lhe pende das garras,
cultora das boas letras!
A moça sorria, sem embaraço, habituada de certo
a estas familiaridades bohemias.
—Eu hoje não janto cá, senhora Josepha,
continuava
o Ega no mesmo tom. Este formoso mancebo
que me acompanha, duque do Ramalhete, e
principe de Santa Olavia, dá hoje de papar ao seu
amigo e philosopho... E, como quando eu recolher,
talvez a senhora Josepha esteja entregue ao somno
[198]
da innocencia, ou á vigilia da devassidão, aqui
lhe ordeno
que me tenha amanhã para meu
lunch duas
formosas perdizes.
E subitamente, n'uma outra voz, com um olhar
que ella devia perceber:
—Duas perdizesinhas bem assadas e bem córadinhas.
Frias, está claro... O costume.
Travou do braço de Carlos, voltaram á sala.
—Com franqueza, Carlos, que te parece a «Villa
Balzac»?
Carlos respondeu como a respeito do episodio da
Hebrea:
—Está ardente.
Mas elogiou o aceio, a vista da casa e a frescura
dos cretones. De resto, para um rapaz, para uma
cella de trabalho...
—Eu, dizia o Ega, passeiando pela sala, com as
mãos enterradas nos bolsos do seu prodigioso robe
de chambre, eu não tolero o
bibelot, o
bric-à-brac, a
cadeira archeologica, essas mobilias d'arte... Que
diabo, o movel deve estar em harmonia com a idéa
e o sentir do homem que o usa! Eu não penso, nem
sinto como um cavalleiro do seculo XVI, para que
me hei de cercar de cousas do seculo XVI? Não ha
nada que me faça tanta melancolia, como ver n'uma
sala um veneravel contador do tempo de Francisco I
recebendo pela face conversas sobre eleições e
altas de
fundos. Faz-me o effeito d'um bello heroe de armadura
d'aço, viseira cahida e crenças profundas no
peito, sentado a uma mesa de voltarete a jogar copas.
[199]
Cada seculo tem o seu genio proprio e a sua
attitude propria. O seculo XIX concebeu a Democracia
e a sua attitude é esta...—E enterrando-se d'estalo
n'uma poltrona, espetou as pernas magras para
o ar.—Ora esta attitude é impossivel n'um escabello
do tempo do Prior do Crato. Menino, toca a beber
o
Champagne.
E como Carlos olhava a garrafa desconfiado, Ega
accudiu:
—É excellente, que pensas tu? Vem directamente
da melhor casa d'Epernay, arranjou-m'o o Jacob.
—Que Jacob?
—O Jacob Cohen, o Jacob.
Ia cortar as guitas da rolha, quando o atravessou
uma subita recordação, e pousando a garrafa outra
vez, entalando o monocolo no olho:
—É verdade! Então, n'outro dia, que tal, em
casa dos Gouvarinhos? Eu infelizmente não poude ir.
Carlos contou a
soirée.
Havia dez pessoas, espalhadas
pelas duas salas, n'um zum-zum dormente, á meia
luz dos candieiros. O conde massara-o indiscretamente
com a politica, admirações idiotas por um
grande orador, um deputado de Mesão Frio, e
explicações
sem fim sobre a reforma da instrucção. A
condessa, que estava muito constipada, horrorisou-o,
dando sobre a Inglaterra, apesar de ingleza, as opiniões
da rua de Cedofeita. Imaginava que a Inglaterra
é um paiz sem poetas, sem artistas, sem ideaes,
occupando-se só de amontoar libras... Emfim, seccara-se.
[200]
—Que diabo! murmurou o Ega n'um tom de viva
desconsolação.
A rolha estalou, elle encheu os copos em silencio;
e n'uma
saude muda os dois amigos
beberam o
Champagne—que
Jacob arranjara ao Ega, para o Ega se
regalar com Rachel.
Depois, de pé, com os olhos no tapete, agitando
de vagar o copo novamente cheio onde a espuma
morria, Ega tornou a murmurar, n'aquella entoação
triste de inesperado desapontamento:
—Que ferro!...
E após um momento:
—Pois menino, pensei que a Gouvarinho te appetecía...
Carlos confessou que nos primeiros dias, quando
Ega lhe fallara d'ella, tivera um caprichosinho, interessara-se
por aquelles cabellos côr de brasa...
—Mas agora, mal a conheci, o capricho foi-se...
Ega sentara-se, com o copo na mão; e depois de
contemplar algum tempo as suas meias de seda, escarlates
como as d'um prelado, deixou cair, muito serio,
estas palavras:
—É uma mulher deliciosa, Carlinhos.
E, como Carlos encolhia os hombros, Ega insistio:
a Gouvarinho era uma senhora de intelligencia
e de gosto; tinha originalidade, tinha audacia, uma
pontinha de romantismo muito picante...
—E, como corpinho de mulher, não ha melhor que
aquillo de Badajoz para cá!
—Vae-te d'ahi, Mephistopheles de Celorico!
[201]
E Ega, divertido, cantarolou:
Je suis Mephisto...
Je suis Mephisto...
Carlos no entanto, fumando preguiçosamente, continuava
a fallar na Gouvarinho e n'essa brusca saciedade
que o invadira, mal trocara com ella tres palavras
n'uma sala. E não era a primeira vez que
tinha d'estes falsos arranques de desejo, vindo quasi
com as formas do amor, ameaçando absorver, pelo
menos por algum tempo, todo o seu ser, e resolvendo-se
em tedio, em «secca». Eram como os fogachos
de polvora sobre uma pedra; uma fagulha atêa-os,
n'um momento tornam-se chamma vehemente que parece
que vae consumir o Universo, e por fim fazem
apenas um rastro negro que suja a pedra. Seria o
seu um d'esses corações de fraco, molles e
flaccidos,
que não podem conservar um sentimento, o deixam
fugir, escoar-se pelas malhas lassas do tecido relles?
—Sou um ressequido! disse elle sorrindo. Sou um
impotente de sentimento, como Satanaz... Segundo
os padres da Egreja, a grande tortura de Satanaz é
que não póde amar...
—Que phrases essas, menino! murmurou Ega.
Como phrases? Era uma atroz realidade! Passava
a vida a ver as paixões falharem-lhe nas mãos
como
phosphoros. Por exemplo, com a coronela de hussards
em Vienna! Quando ella faltou ao primeiro
rendez-vous,
chorara lagrimas como punhos, com a cabeça
enterrada no travesseiro e aos coices á roupa. E d'ahi
[202]
a duas semanas, mandava postar o Baptista á janella
do hotel, para elle se safar, mal a pobre coronela
dobrasse a esquina! E com a hollandeza, com Madame
Rughel, peior ainda. Nos primeiros dias foi uma
insensatez: queria-se estabelecer para sempre na
Hollanda, casar com ella (apenas ella se divorciasse),
outras loucuras; depois os braços que ella lhe deitava
ao pescoço, e que lindos braços, pareciam-lhe
pesados
como chumbo...
—Passa fóra, pedante! E ainda lhe escreves! gritou
Ega.
—Isso é outra cousa. Ficamos amigos, puras
relações
de intelligencia. Madame Rughel é uma mulher
de muito espirito. Escreveu um romance, um d'esses
estudos intimos e delicados, como os de Miss Brougthon:
chama-se as
Rosas Murchas. Eu nunca
li, é
em hollandez...
—As
Rosas Murchas! em
hollandez! exclamou
Ega apertando as mãos na cabeça.
Depois vindo plantar-se diante de Carlos, de monocolo
no olho:
—Tu és extraordinario, menino!... Mas o teu
caso é simples, é o caso de D. Juan. D. Juan
tambem
tinha essas alternações de chamma e cinza. Andava
á busca do seu ideal, da
sua
mulher, procurando-a
principalmente, como de justiça, entre as mulheres
dos outros. E
après avoir
couché, declarava que se
tinha enganado, que não era aquella. Pedia desculpa
e retirava-se. Em Hespanha experimentou assim mil
e tres. Tu és simplesmente, como elle, um devasso;
[203]
e has de vir a acabar desgraçadamente como elle,
n'uma tragedia infernal!
Esvasiou outro copo de
Champagne, e
a grandes
passadas pela sala:
—Carlinhos da minha alma, é inutil que ninguem
ande á busca da
sua
mulher. Ella virá. Cada um tem
a
sua mulher, e necessariamente tem
de a encontrar.
Tu estás aqui, na Cruz dos Quatro Caminhos, ella
está talvez em Pekin: mas tu, ahi a raspar o meu
reps com o verniz dos sapatos, e ella a orar no templo
de Confucio, estaes ambos insensivelmente, irresistivelmente,
fatalmente, marchando um para o
outro!... Estou eloquentissimo hoje, e temos dito
cousas idiotas. Toca a vestir. E, em quanto eu adorno
a carcassa, prepara mais phrases sobre Satanaz!
Carlos ficou na sala verde, acabando o charuto—em
quanto dentro o Ega batia com as gavetas, lançando,
a todo o desafinado da sua voz roufenha, a
Barcarolla de Gounod. Quando
appareceu, vinha de
casaca, gravata branca, enfiando o paletot—com o
olho brilhante do
Champagne.
Desceram. O pagem lá estava á porta perfilado,
ao pé do coupé de Carlos, que esperara. E a sua
fardeta
azul de botões amarellos, a magnifica parelha
baia reluzindo como um setim vivo, as pratas dos arreios,
a magestade do cocheiro louro com o seu ramo
na libré, tudo alli fazia, junto da «Villa
Balzac», um
quadro rico que deleitou o Ega.
—A vida é agradavel, disse elle.
O coupé partiu, ia entrar no largo da Graça,
[204]
quando uma caleche de praça, aberta, o cruzou a
largo trote. Dentro um sujeito de chapéo baixo ía
lendo um grande jornal.
—É o Craft! gritou Ega, debruçando-se pela
portinhola.
O coupé parou. Ega de um pulo estava na calçada,
correndo, bradando:
—Oh Craft! oh Craft!
Quando, d'ahi a um momento, sentiu duas vozes
approximarem-se, Carlos desceu tambem do coupé,
achou-se em face d'um homem baixo, louro, de pelle
rosada e fresca, e apparencia fria. Sob o fraque correcto
percebia-se-lhe uma musculatura de athleta.
—O Carlos, o Craft, gritou o Ega, lançando esta
apresentação com uma simplicidade classica.
Os dois homens, sorrindo, tinham-se apertado a
mão. E Ega insistia para que voltassem todos á
Villa
Balzac, fossem beber a outra garrafa de
Champagne,
a celebrar o
advento do Justo! Craft
recusou, com o
seu modo calmo e placido; chegara na vespera do
Porto, abraçara já o nobre Ega, e aproveitava
agora
a viagem áquelle bairro longinquo para ir vêr o
velho
Shlegen, um allemão que vivia á Penha de
França.
—Então outra cousa! exclamou Ega. Para conversarmos,
para que vocês se conheçam mais, venham
vocês jantar comigo amanhã ao Hotel Central. Dito,
hein? Perfeitamente. Ás seis.
Apenas o coupé partiu de novo, Ega rompeu nas
costumadas admirações pelo Craft, encantado com
aquelle
encontro que dava mais um retoque luminoso
[205]
á sua alegria. O que o enthusiasmava no Craft
era aquelle ar imperturbavel de gentleman correcto,
com que elle egualmente jogaria uma partida de bilhar,
entraria n'uma batalha, arremetteria com uma
mulher, ou partiria para a Patagonia...
—É das melhores cousas que tem Lisboa. Vaes-te
morrer por elle... E que casa que elle tem nos Olivaes,
que sublime bric-a-brac!
Subitamente estacou, e com um olhar inquieto, uma
ruga na testa:
—Como diabo soube elle da
Villa
Balzac?
—Tu não fazes segredo d'ella, hein?
—Não... Mas tambem não a puz nos annuncios! E
o Craft chegou hontem, ainda não esteve com ninguem
que eu conheça... É curioso!
—Em Lisboa sabe-se tudo...
—Canalha de terra! murmurou Ega.
O jantar no Central foi addiado, porque o Ega, alargando
pouco a pouco a idéa, convertera-o agora n'uma
festa de ceremonia em honra do Cohen.
—Janto lá muitas vezes, disse elle a Carlos, estou
lá todas as noites... É necessario repagar a
hospitalidade...
Um jantar no Central é o que basta. E
para o effeito moral, pespego-lhe á meza o marquez
e a besta do Steinbroken. O Cohen gosta de gente
assim...
Mas o plano teve ainda de ser alterado: o marquez
partira para a Gollegã, e o pobre Steinbroken estava
[206]
soffrendo d'um incommodo de entranhas. Ega pensou
no Cruges e no Taveira—mas receiou a cabelleira
desleixada do Cruges, e alguns dos seus ataques de
amargo
spleen que estragaria o
jantar. Terminou por
convidar dois intimos do Cohen; mas teve então de
supprimir o Taveira, que estava de mal com um d'esses
cavalheiros por palavras que tinham trocado em casa
da «Lola gorda».
Decididos os convidados, fixado o jantar para uma
segunda feira, Ega teve uma conferencia com o
maitre de hotel do Central, em que
lhe recommendou
muita flôr, dois ananazes para enfeitar a meza, e exigiu
que um dos pratos do
menu, qualquer
d'elles,
fosse
à la Cohen; e elle
mesmo suggeriu uma idéa:
tomates farcies à la
Cohen...
N'essa tarde, ás seis horas, Carlos, ao descer a
rua do Alecrim para o Hotel Central, avistou Craft
dentro da loja de bric-a-brac do tio Abrahão.
Entrou. O velho judeo, que estava mostrando a
Craft uma falsa faiença do Rato, arrancou logo da
cabeça o sujo barrete de borla, e ficou curvado em
dois, diante de Carlos, com as duas mãos sobre o
coração.
Depois, n'uma linguagem exotica, misturada d'inglez,
pediu ao seu bom senhor D. Carlos da Maia,
ao seu digno senhor, ao seu
beautiful
gentleman, que
se dignasse examinar uma maravilhasinha que lhe
tinha reservada; e o seu muito
generous
gentleman
tinha só a voltar os olhos, a maravilhasinha estava
alli ao lado, n'uma cadeira. Era um retrato d'hespanhola,
[207]
apanhado a fortes brochadellas de primeira
impressão, e pondo, sobre um fundo audaz de côr de
rosa murcha, uma face gasta de velha garça, picada
das bexigas, caiáda, ressudando vicio, com um sorriso
bestial que promettia tudo.
Carlos, tranquillamente, offereceu dez tostões. Craft
pasmou d'uma tal prodigalidade; e o bom Abrahão,
n'um riso mudo que lhe abria entre a barba grisalha
uma grande boca d'um só dente, saboreou muito a
«chalaça dos seus ricos senhores.» Dez
tostõesinhos!
Se o quadrinho tivesse por baixo o nomesinho de
Fortuny, valia dez continhos de réis. Mas não
tinha
esse nomesinho bemdito... Ainda assim valia dez
notasinhas de vinte mil réis...
—Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma!
exclamou Carlos.
E sahiram, deixando o velho intrujão á porta,
curvado em dois, com as mãos sobre o
coração, desejando
mil felicidades aos seus generosos fidalgos...
—Não tem uma unica cousa boa, este velho
Abrahão,
disse Carlos.
—Tem a filha, disse o Craft.
Carlos achava-a bonita, mas horrivelmente suja.
Então, a proposito do Abrahão, fallou a Craft
d'essas
bellas collecções dos Olivaes, que o Ega, apesar
do
desdem que affectava pelo
bibelot e
pelo movel d'arte,
lhe descrevera como sublimes.
Craft encolheu os hombros.
—O Ega não entende nada. Mesmo em Lisboa,
não se póde chamar ao que eu tenho uma
collecção.
[208]
É um bric-a-brac d'acaso... De que, de resto, me
vou desfazer!
Isto surprehendeu Carlos. Comprehendera das palavras
do Ega ser essa uma collecção formada com
amor, no laborioso decurso de annos, orgulho e cuidado
d'uma existencia de homem...
Craft sorrio d'aquella legenda. A verdade era que
só em 1872, elle começara a interessar-se pelo
bric-a-brac;
chegava então da America do Sul; e o que
fora comprando, descobrindo aqui e além, accumulara-o
n'essa casa dos Olivaes, alugada então por
phantasia, uma manhã que aquelle pardieiro, com o
seu bocado de quintal em redor, lhe parecera pittoresco,
sob o sol de abril. Mas agora se podesse desfazer-se
do que tinha, ia dedicar-se então a formar
uma collecção homogenea e compacta d'arte do
seculo
desoito.
—Aqui nos Olivaes?
—Não. N'uma quinta que tenho ao pé do Porto,
junto mesmo ao rio.
Entravam então no peristilo do Hotel Central—e
n'esse momento um coupé da Companhia, chegando
a largo trote do lado da rua do Arsenal, veiu estacar
á porta.
Um esplendido preto, já grisalho, de casaca e
calção,
correu logo á portinhola; de dentro um rapaz
muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para
os braços uma deliciosa cadelinha escosseza, de pellos
esguedelhados, finos como seda e côr de prata; depois
apeando-se, indolente e
poseur,
offereceu a mão
[209]
a uma senhora alta, loura, com um meio véo muito
apertado e muito escuro que realçava o explendor
da sua carnação eburnea. Craft e Carlos
affastaram-se,
ella passou diante d'elles, com um passo soberano
de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atraz
de si como uma claridade, um reflexo de cabellos
d'ouro, e um aroma no ar. Trazia um casaco collante
de velludo branco de Genova, e um momento sobre
as lages do peristillo brilhou o verniz das suas bottinas.
O rapaz ao lado, esticado n'um fato de xadresinho
inglez, abria negligentemente um telegramma;
o preto seguia com a cadelhinha nos braços. E no silencio
a voz de Craft murmurou:
—
Trés chic.
Em cima, no gabinete que o creado lhes indicou,
Ega esperava, sentado no divan de marroquim, e conversando
com um rapaz baixote, gordo, frisado como
um noivo de provincia, de camelia ao peito e plastron
azul celeste. O Craft conhecia-o; Ega apresentou a
Carlos o sr. Damaso Salcêde, e mandou servir vermouth,
por ser tarde, segundo lhe parecia, para esse
requinte litterario e satanico do
absintho...
Fôra um dia d'inverno suave e luminoso, as duas
janellas estavam ainda abertas. Sobre o rio, no céu
largo, a tarde morria, sem uma aragem, n'uma paz
elysea, com nuvensinhas muito altas, paradas, tocadas
de côr de rosa; as terras, os longes da outra
banda já se iam affogando n'um vapor avelludado, do
tom de violeta; a agoa jazia liza e luzidia como uma
bella chapa d'aço novo; e aqui e alem, pelo vasto
ancoradouro,
[210]
grossos navios de carga, longos paquetes
estrangeiros, dois couraçados inglezes, dormiam, com
as mastreações immoveis, como tomados de
preguiça,
cedendo ao affago do clima doce...
—Vimos agora lá em baixo, disse Craft indo sentar-se
no divan, uma esplendida mulher, com uma
esplendida cadellinha
griffon, e
servida por um esplendido
preto!
O sr. Damaso Salcêde, que não despegava os olhos
de Carlos, acudiu logo:
—Bem sei! Os Castro Gomes... Conheço-os muito...
Vim com elles de Bordeus... Uma gente muito
chic que vive em Paris.
Carlos voltou-se, reparou mais n'elle, perguntou-lhe,
affavel e interessando-se:
—O senhor Salcêde chegou agora de Bordeus?
Estas palavras pareceram deleitar Damaso como
um favor celeste: ergueu-se immediatamente, approximou-se
do Maia, banhado n'um sorriso:
—Vim aqui ha quinze dias, no
Orenoque. Vim de
Paris... Que eu em podendo é lá que me pilham!
Esta gente conheci-a em Bordeus. Isto é, verdadeiramente
conheci-a a bordo. Mas estavamos todos no
Hotel de Nantes... Gente
muito chic: creado de
quarto, governanta ingleza para a filhita, femme de
chambre, mais de vinte malas... Chic a valer! Parece
incrivel, uns brazileiros... Que ella na voz não
tem
sutaque nenhum, falla como
nós. Elle sim, elle
muito
sutaque... Mas elegante
tambem, v. ex.
a não
lhe pareceu?
[211]
—Vermouth? perguntou-lhe o creado, offerecendo
a salva.
—Sim, uma gotinha para o appetite. V. ex.
a
não
toma, sr. Maia? Pois eu, assim que posso, é direitinho
para Paris! Aquillo é que é terra! Isto aqui
é
um chiqueiro... Eu, em não indo lá todos os
annos,
acredite v. Ex.
a, até
começo a andar doente.
Aquelle
boulevarsinho, hein!... Ai, eu goso
aquillo!... E
sei gosar, sei gosar, que eu conheço aquillo a palmo...
Tenho até um tio em Paris.
—E que tio! exclamou Ega, approximando-se. Intimo
do Gambetta, governa a França... O tio do Damaso
governa a França, menino!
Damaso, escarlate, estourava de gôso.
—Ah, lá isso influencia tem. Intimo do Gambetta,
tratam-se por tu, até vivem quasi juntos... E não
é
só com o Gambetta; é com o Mac-Mahon, com o
Rochefort,
com o outro de que me esquece agora o
nome, com todos os republicanos, emfim!... É tudo
quanto elle queira. V. ex.
a não o
conhece? É um
homem
de barbas brancas... Era irmão de minha mãe,
chama-se Guimarães. Mas em Paris chamam-lhe Mr.
de Guimaran...
N'esse momento a porta envidraçada abriu-se de
golpe, Ega exclamou: «Saude ao poeta»!
E appareceu um individuo muito alto, todo abotoado
n'uma sobrecasaca preta, com uma face escaveirada,
olhos encovados, e sob o nariz aquilino, longos,
espessos, romanticos bigodes grisalhos: já todo
calvo na frente, os anneis fôfos d'uma grenha muito
[212]
secca cahiam-lhe inspiradamente sobre a golla: e em
toda a sua pessoa havia alguma cousa de antiquado,
de artificial e de lugubre.
Estendeu silenciosamente dous dedos ao Damaso,
e abrindo os braços lentos para Craft, disse n'uma
voz arrastada, cavernosa, atheatrada:
—Então és tu, meu Craft! Quando chegaste tu,
rapaz?
Dá-me cá esses ossos honrados, honrado inglez!
Nem um olhar dera a Carlos. Ega adiantou-se,
apresentou-os:
—Não sei se são relações.
Carlos da Maia... Thomaz
d'Alencar, o nosso poeta...
Era elle! o illustre cantor das
Vozes
d'Aurora, o
estylista de
Elvira, o dramaturgo do
Segredo do Commendador.
Deu dois passos graves para Carlos, esteve-lhe
apertando muito tempo a mão em silencio—e
sensibilisado, mais cavernoso:
—V. Ex.
a, já que as etiquetas
sociaes querem que
eu lhe dê excellencia, mal sabe a quem apertou agora
a mão...
Carlos, surprehendido, murmurou:
—Eu conheço muito de nome...
E o outro com o olho cavo, o labio tremulo:
—Ao camarada, ao inseparavel, ao intimo de Pedro
da Maia, do meu pobre, do meu valente Pedro!
—Então, que diabo, abracem-se! gritou Ega.
Abracem-se, com um berro, segundo as regras...
Alencar já tinha Carlos estreitado ao peito, e quando
o soltou, retomando-lhe as mãos, sacudindo-lh'as, com
uma ternura ruidosa:
[213]
—E deixemo-nos já de excellencias! que eu vi-te
nascer, meu rapaz! trouxe-te muito ao collo! sujaste-me
muita calça! Co'os diabos, dá cá outro
abraço!
Craft olhava estas cousas vehementes, impassivel;
Damaso parecia impressionado; Ega apresentou um
copo de
vermouth ao poeta:
—Que grande scena, Alencar! Jesus, Senhor!
Bebe, para te recuperares da emoção...
Alencar esgotou-o d'um trago: e declarou aos amigos
que não era a primeira vez que via Carlos. Já
o admirara no seu phaeton, muitas vezes, e aos
seus bellos cavallos inglezes. Mas não se quizera dar
a conhecer. Elle nunca se atirava aos braços de ninguem,
a não ser das mulheres... Foi encher outro
calice de
vermouth, e com elle na
mão, plantado diante
de Carlos, começou, n'um tom pathetico:
—A primeira vez que te vi, filho, foi no Pote das
Almas! Estava eu no Rodrigues, esquadrinhando alguma
d'essa velha litteratura, hoje tão despresada...
Lembro-me até que era um volume das
Eclogas do
nosso delicioso Rodrigues Lobo, esse verdadeiro poeta
da natureza, esse rouxinol tão portuguez, hoje,
está
claro, mettido a um canto, desde que para ahi appareceu
o Satanismo, o Naturalismo e o Bandalhismo,
e outros esterquilinios em
ismo...
N'esse momento
passaste, disseram-me quem eras, e cahiu-me o livro
da mão... Fiquei alli uma hora, acredita, a pensar,
a rever o passado...
E atirou o
vermouth ás
goellas. Ega, impaciente,
[214]
olhava o relogio. Um creado, entrando, accendeu o
gaz; a mesa surgiu da penumbra, com um brilho de
cristaes e louças, um luxo de camelias em ramos.
No entanto Alencar (que á luz viva parecia mais
gasto e mais velho) começara uma grande historia,
e como fôra elle o primeiro que vira Carlos depois
de nascer, e como fôra elle que lhe dera o nome.
—Teu pae, dizia elle, o meu Pedro, queria-te pôr
o nome d'Affonso, d'esse santo, d'esse varão d'outras
edades, Affonso da Maia! Mas tua mãe que tinha lá
as
suas idéas teimou em que havias de ser Carlos. E
justamente por causa d'um romance que eu lhe emprestára;
n'esses tempos podiam-se emprestar romances
a senhoras, ainda não havia a pustula e o
puz... Era um romance sobre o ultimo Stuart, aquelle
bello typo do principe Carlos Eduardo, que vocês,
filhos, conhecem todos bem, e que na Escossia,
no tempo de Luiz XIV... Emfim, adiante! Tua mãe,
devo dizel-o, tinha litteratura e da melhor. Consultou-me,
consultava-me sempre, n'esse tempo eu era
alguem, e lembro-me de lhe ter
respondido... (Lembro-me
apesar de já lá irem vinte e cinco annos...
Que digo eu? Vinte e sete! Vejam vocês isto, filhos,
vinte e sete annos!) Emfim, voltei-me para tua
mãe, e disse-lhe, palavras textuaes: «Ponha-lhe o
nome de Carlos Eduardo, minha rica senhora, Carlos
Eduardo, que é o verdadeiro nome para o frontespicio
d'um poema, para a fama d'um heroismo ou para
o labio d'uma mulher!»
Damaso, que continuava a admirar Carlos, deu
[215]
bravos estrondosos; Craft bateu
ligeiramente os dedos;
e o Ega, que rondava a porta, nervoso, de relogio
na mão, soltou de lá um
muito
bem desenxabido.
Alencar, radiante com o seu effeito, derramava em
roda um sorriso que lhe mostrava os dentes estragados.
Abraçou outra vez Carlos, atirou uma palmada
ao coração, exclamou:
—Caramba, filhos, sinto uma luz cá dentro!
A porta abriu-se, o Cohen entrou, todo apressado,
desculpando-se logo da sua demora—emquanto Ega,
que se precipitara para elle, lhe ajudava a despir o
palletot. Depois apresentou-o a Carlos—a unica pessoa
alli de quem o Cohen não era intimo. E dizia,
tocando o botão da campainha electrica:
—O marquez não pôde vir, menino, e o pobre
Steinbroken, coitado, está com a sua gôtta, a
gôtta de
diplomata, de lord e de banqueiro... A gôtta que
tu has de ter, velhaco!
Cohen, um homem baixo, apurado, de olhos bonitos,
e suissas tão pretas e luzidias que pareciam
ensopadas em verniz, sorria, descalçando as luvas,
dizendo, que, segundo os inglezes, havia tambem a
gôtta de gente pobre; e era essa naturalmente a que
lhe competia a elle...
Ega, no entanto, travara-lhe do braço, collocara-o
preciosamente á mesa, á sua direita: depois
offereceu-lhe
um botão de camelia d'um ramo: o Alencar
florio-se tambem—e os creados serviram as ostras.
Fallou-se logo do crime da Mouraria, drama fadista
que impressionava Lisboa, uma rapariga com o ventre
[216]
rasgado á navalha por uma companheira, vindo
morrer na rua em camisa, dois faias esfaqueando-se,
toda uma viella em sangue—uma
sarrabulhada como
disse o Cohen, sorrindo e provando o Bucellas.
Damaso teve a satisfação de poder dar detalhes;
conhecera a rapariga, a que dera as facadas, quando
ella era amante do visconde da Ermidinha... Se era
bonita? Muito bonita. Umas mãos de duqueza... E
como aquillo cantava o
fado! O peior
era que mesmo
no tempo do visconde, quando ella era chic, já se
empiteirava... E o visconde, honra lhe seja, nunca
lhe perdera a amisade; respeitava-a, mesmo depois
de casado ía vel-a, e tinha-lhe promettido que se ella
quizesse deixar o
fado lhe punha uma
confeitaria
para os lados da Sé. Mas ella não queria. Gostava
d'aquillo, do Bairro Alto, dos cafés de
lepes,
dos chulos...
Esse mundo de fadistas, de faias, parecia a Carlos
merecer um estudo, um romance... Isto levou logo
a fallar-se do
Assommoir, de Zola e
do realismo:—e
o Alencar immediatmente, limpando os bigodes dos
pingos de sôpa, supplicou que se não discutisse,
á
hora aceada do jantar, essa litteratura
latrinaria. Alli
todos eram homens d'aceio, de sala, hein? Então, que
se não mencionasse o
excremento!
Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos
e vivazes, tirados a milhares de edições; essas
rudes analyses, apoderando-se da Egreja, da Realeza,
da Bureocracia, da Finança, de todas as cousas santas,
dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão,
[217]
como a cadaveres n'um amphitheatro; esses estylos
novos, tão precisos e tão ducteis, apanhando em
flagrante
a linha, a côr, a palpitação mesma da
vida;
tudo isso (que elle, na sua confusão mental, chamava
a
Idéa nova) caindo assim
de chofre e escangalhando
a cathedral romantica, sob a qual tantos annos elle
tivera altar e celebrara missa, tinha desnorteado
o pobre Alencar e tornara-se o desgosto litterario
da sua velhice. Ao principio reagiu. «Para pôr um
dique definitivo á torpe maré», como
elle disse em
plena Academia, escreveu dois folhetins crueis; ninguem
os leu; a «maré torpe» alastrou-se, mais
profunda,
mais larga. Então Alencar refugiou-se na
moralidade
como n'uma rocha solida. O naturalismo, com
as suas alluviões de obscenidade, ameaçava
corromper
o pudor social? Pois bem. Elle, Alencar, seria o
paladino da Moral, o gendarme dos bons costumes.
Então o poeta das
Vozes
d'Aurora, que durante vinte
annos, em cançoneta e ode, propozera commercios
lubricos a todas as damas da capital; então o romancista
de
Elvira que, em novella e drama,
fizera a propaganda
do amor illegitimo, representando os deveres
conjugaes como montanhas de tedio, dando a todos
os maridos formas gordurosas e bestiaes, e a todos
os amantes a belleza, o esplendor e o genio dos antigos
Apollos; então Thomaz Alencar que (a acreditarem-se
as confissões autobiographicas da
Flôr de
Martyrio) passava elle proprio uma existencia medonha
de adulterios, lubricidades, orgias, entre velludos
e vinhos de Chypre—d'ora em diante austero,
[218]
incorruptivel, todo elle uma torre de pudicicia, passou
a vigiar attentamente o jornal, o livro, o theatro. E
mal lobrigava symptomas nascentes de realismo n'um
beijo que estalava mais alto, n'uma brancura de saia
que se arregaçava de mais—eis o nosso Alencar que
soltava por sobre o paiz um grande grito de alarme,
corria á penna, e as suas imprecações
lembravam (a
academicos faceis de contentar) o rugir de Isaias. Um
dia porém, Alencar teve uma d'estas
revelações que
prostram os mais fortes; quanto mais elle denunciava
um livro como immoral, mais o livro se vendia como
agradavel! O Universo pareceu-lhe cousa torpe, e o
auctor de
Elvira encavacou...
Desde então reduziu a expressão do seu rancor ao
minimo, a essa phrase curta, lançada com nojo:
—Rapazes, não se mencione o
excremento!
Mas n'essa noite teve o regosijo de encontrar alliados.
Craft não admittia tambem o naturalismo, a realidade
feia das cousas e da sociedade estatelada
nua n'um livro. A arte era uma idealisação! Bem:
então que mostrasse os typos superiores d'uma humanidade
aperfeiçoada, as fórmas mais bellas do viver
e do sentir... Ega horrorisado apertava as mãos
na cabeça—quando do outro lado Carlos declarou
que o mais intoleravel no realismo eram os seus grandes
ares scientificos, a sua pretenciosa esthetica deduzida
d'uma philosophia alheia, e a invocação de
Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo,
de Stuart Mill e de Darwin, a proposito d'uma lavadeira
que dorme com um carpinteiro!
[219]
Assim atacado, entre dois fogos, Ega trovejou: justamente
o fraco do realismo estava em ser ainda
pouco scientifico, inventar enredos, crear dramas,
abandonar-se á phantasia litteraria! a fórma pura
da
arte naturalista devia ser a monographia, o estudo
secco d'um typo, d'um vicio, d'uma paixão, tal qual
como se se tratasse d'um caso pathologico, sem pittoresco
e sem estylo!...
—Isso é absurdo, dizia Carlos, os caracteres só
se podem manifestar pela acção...
—E a obra d'arte, accrescentou Craft, vive apenas
pela fórma...
Alencar interrompeu-os, exclamando que não eram
necessarias tantas philosophias.
—Vocês estão gastando cêra com ruins
defuntos,
filhos. O realismo critica-se d'este modo: mão no
nariz! Eu quando vejo um d'esses livros, enfrasco-me
logo em agua de colonia. Não discutamos o
excremento.
—
Sole normande? perguntou-lhe o
creado, adiantando
a travessa.
Ega ía fulminal-o. Mas, vendo que o Cohen dava um
sorriso enfastiado e superior a estas controversias de
litteraturas, calou-se; occupou-se só d'elle, quiz saber
que tal elle achava aquelle S.
t Emilion; e,
quando
o viu confortavelmente servido de
sole
normande, lançou
com grande alarde de interesse esta pergunta:
—Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos
cá... O
emprestimo faz-se ou não se faz?
E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que
[220]
aquella questão do emprestimo era grave. Uma
operação
tremenda, um verdadeiro episodio historico!...
O Cohen collocou uma pitada de sal á beira do
prato, e respondeu, com auctoridade, que o emprestimo
tinha de se realisar
absolutamente.
Os emprestimos
em Portugal constituiam hoje uma das fontes de
receita, tão regular, tão indispensavel,
tão sabida como
o imposto. A unica occupação mesmo dos
ministerios
era esta—
cobrar o imposto e
fazer o emprestimo. E
assim se havia de continuar...
Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe
que, d'esse modo, o paiz ia alegremente e lindamente
para a
banca-rota.
—N'um galopesinho muito seguro e muito a direito,
disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso,
ninguem
tem illusões, meu caro senhor. Nem os proprios
ministros da fazenda!... A
banca-rota é inevitavel:
é como quem faz uma somma...
Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira,
hein! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois
de lhe encher o calice de novo, fincara os cotovellos
na meza para lhe beber melhor as palavras.
—A
banca-rota é
tão certa, as cousas estão tão
dispostas para ella—continuava o Cohen—que seria
mesmo facil a qualquer, em dois ou tres annos,
fazer fallir o paiz...
Ega gritou sofregamente pela
receita. Simplesmente
isto: manter uma agitação revolucionaria
constante;
nas vesperas de se lançarem os emprestimos
haver duzentos maganões decididos que cahissem á
[221]
pancada na municipal e quebrassem os candieiros
com vivas á Republica; telegraphar isto em letras
bem gordas para os jornaes de Paris, Londres e do
Rio de Janeiro; assustar os mercados, assustar o brazileiro,
e a
banca-rota estalava.
Sómente, como elle
disse, isto não convinha a ninguem.
Então Ega protestou com vehemencia. Como não
convinha a ninguem? Ora essa! Era justamente o
que convinha a todos! Á
banca-rota seguia-se uma
revolução, evidentemente. Um paiz que vive da
inscripção,
em não lh'a pagando, agarra no cacete; e
procedendo por principio, ou procedendo apenas por
vingança—o primeiro cuidado que tem é varrer a
monarchia que lhe representa o
calote, e com ella o
crasso pessoal do constitucionalismo. E passada a
crise, Portugal livre da velha divida, da velha gente,
d'essa collecção grotesca de bestas...
A voz do Ega sibillava... Mas, vendo assim tratados
de
grotescos, de
bestas, os homens d'ordem que fazem
prosperar os Bancos, Cohen pousou a mão no
braço do seu amigo e chamou-o ao bom-senso. Evidentemente,
elle era o primeiro a dizel-o, em toda
essa gente que figurava desde 46 havia mediocres e
patetas,—mas tambem homens de grande valor!
—Ha talento, ha saber, dizia elle com um tom de
experiencia. Você deve reconhecel-o, Ega... Você
é
muito exagerado! Não senhor, ha talento, ha saber.
E, lembrando-se que algumas d'essas
bestas eram
amigos do Cohen, Ega reconheceu-lhes talento e saber.
O Alencar porém cofiava sombriamente o bigode.
[222]
Ultimamente pendia para idéas radicaes, para
a democracia humanitaria de 1848: por instincto,
vendo o romantismo desacreditado nas letras, refugiava-se
no romantismo politico, como n'um asylo
paralello:
queria uma republica governada por genios,
a fraternisação dos povos, os Estados Unidos da
Europa...
Além d'isso, tinha longas queixas d'esses
politiquotes, agora gente de Poder, outr'ora seus camaradas
de redacção, de café e de
batota...
—Isso, disse elle, lá a respeito de talento e de saber,
historias... Eu conheço-os bem, meu Cohen...
O Cohen acudiu:
—Não senhor, Alencar, não senhor! Você
tambem
é dos taes... Até lhe fica mal dizer isso...
É exageração.
Não senhor, ha talento, ha saber.
E o Alencar, peranta esta intimação do Cohen, o
respeitado
director do
Banco Nacional, o marido
da divina
Rachel, o dono d'essa hospitaleira casa da rua do Ferregial
onde se jantava tão bem, recalcou o despeito—admittiu
que não deixava de haver talento e saber.
Então, tendo assim, pela influencia do seu Banco,
dos bellos olhos da sua mulher e da excellencia do
seu cosinheiro, chamado estes espiritos rebeldes ao
respeito dos Parlamentares e á
veneração da Ordem,
Cohen condescendeu em dizer, no tom mais suave
da sua voz, que o paiz necessitava reformas...
Ega porém, incorrigivel n'esse dia, soltou outra
enormidade:
—Portugal não necessita refórmas, Cohen,
Portugal
o que precisa é a invasão hespanhola.
[223]
Alencar, patriota à antiga, indignou-se. O Cohen,
com aquelle sorriso indulgente de homem superior
que lhe mostrava os bonitos dentes, vio alli apenas
«um dos paradoxos do nosso Ega.» Mas o Ega fallava
com seriedade, cheio de razões. Evidentemente,
dizia elle, invasão não significa perda absoluta
de independencia.
Um receio tão estupido é digno só de
uma
sociedade tão estupida como a do
Primeiro
de Dezembro.
Não havia exemplo de seis milhões de habitantes
serem engolidos, de um só trago, por um paiz
que tem apenas quinze milhões de homens. Depois
ninguem consentiria em deixar cahir nas mãos de
Hespanha, nação militar e maritima, esta bella
linha
de costa de Portugal. Sem contar as allianças que teriamos,
a troco das colonias—das colonias que só
nos servem, como a prata de familia aos morgados arruinados,
para ir empenhando em casos de crise...
Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma
invasão, n'um momento de guerra europea, seria levarmos
uma sova tremenda, pagarmos uma grossa
indemnisação, perdermos uma ou duas provincias,
ver talvez a Galliza estendida até ao Douro...
—
Poulet aux champignons, murmurou o
creado,
apresentando-lhe a travessa.
E em quanto elle se servia, perguntavam-lhe dos
lados onde via elle a
salvação
do paiz, n'essa catastrophe
que tornaria povoação hespanhola Celorico
de Basto, a nobre Celorico, berço de heroes,
berço
dos Egas...
—N'isto: no ressuscitar do espirito publico e do
[224]
genio portuguez! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados,
tinhamos de fazer um esforço desesperado
para viver. E em que bella situação nos
achavamos!
Sem monarchia, sem essa caterva de politicos, sem
esse tortulho da
inscripção,
porque tudo desapparecia,
estavamos novos em folha, limpos, escarollados,
como se nunca tivessemos servido. E recomeçava-se
uma historia nova, um outro Portugal, um Portugal
serio e intelligente, forte e decente, estudando, pensando,
fazendo civilisação como outr'ora... Meninos,
nada regenera uma nação como uma medonha
tarêa...
Oh Deus d'Ourique, manda-nos o castelhano! E você,
Cohen, passe-me o S.
t Emilion.
Agora, n'um rumor animado, discutia-se a invasão.
Ah, podia-se fazer uma bella resistencia! Cohen
affiançava o dinheiro. Armas, artilheria, iam comprar-se
á America—e Craft offereceu logo a sua
collecção
de espadas do seculo XVI. Mas generaes? Alugavam-se.
Mac-Mahon, por exemplo, devia estar barato...
—O Craft e eu organisamos uma guerrilha, gritou
Ega.
—Ás ordens, meu coronel.
—O Alencar, continuava Ega, é encarregado de
ir despertar pela provincia o patriotismo, com cantos
e com odes!
Então o poeta, pousando o calice, teve um movimento
de leão que sacode a juba:
—Isto é uma velha carcassa, meu rapaz, mas não
está só para odes! Ainda se agarra uma
espingarda,
e como a pontaria é boa, ainda vão a terra um par
[225]
de gallegos... Caramba, rapazes, só a idéa
d'essas
cousas me põe o coração negro! E como
vocés podem
fallar n'isso, a rir, quando se trata do paiz, d'esta
terra onde nascemos, que diabo! Talvez seja má, de
accordo, mas, caramba! é a unica que temos, não
temos
outra! É aqui que vivemos, é aqui que
rebentamos...
Irra, fallemos d'outra cousa, fallemos de
mulheres!
Dera um repellão ao prato, os olhos humedeciam-se-lhe
de paixão patriotica...
E no silencio que se fez Damaso, que desde as
informações
sobre a rapariga do Ermidinha emmudecera,
occupado a observar Carlos com religião, ergueu
a voz pausadamente, disse, com um ar de bom
senso e de finura:
—Se as cousas chegassem a esse ponto, se pozessem
assim feias, eu cá, á cautela, ía-me
raspando
para Paris...
Ega triumphou, pulou de gosto na cadeira. Eis alli,
no labio synthetico de Damaso, o grito espontaneo e
genuino do brio portuguez! Raspar-se, pirar-se!...
Era assim que d'alto a baixo pensava a sociedade
de Lisboa, a malta constitucional, desde El-Rei nosso
Senhor até aos cretinos de secretaria!...
—Meninos, ao primeiro soldado hespanhol que
appareça á fronteira, o paiz em massa foge como
uma lebre! Vae ser uma debandada unica na historia!
Houve uma indignação, Alencar gritou:
—Abaixo o traidor!
[226]
Cohen interveiu, declarou que o soldado portuguez
era valente, á maneira dos turcos—sem disciplina,
mas teso. O proprio Carlos disse, muito serio:
—Não senhor... Ninguem ha de fugir, e ha de
se morrer bem.
Ega rugiu. Para quem estavam elles fazendo essa
pose heroica? Então
ignoravam que esta raça, depois
de cincoenta annos de constitucionalismo, creada por
esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos lyceus,
roída de syphlis, apodrecida no bolôr das
secretarias,
arejada apenas ao domingo pela poeira do
Passeio, perdera o musculo como perdera o caracter,
e era a mais fraca, a mais covarde raça da Europa?...
—Isso são os lisboetas, disse Craft.
—Lisboa é Portugal, gritou o outro. Fóra de
Lisboa
não ha nada. O paiz está todo entre a Arcada e
S. Bento!...
A mais miseravel raça da Europa! continuava
elle a berrar. E que exercito! Um regimento, depois
de dois dias de marcha, dava entrada em massa no
hospital! Com seus olhos tinha elle visto, no dia da
abertura das Côrtes, um marujo sueco, um rapagão
do Norte, fazer debandar, a soccos, uma companhia
de soldados; as praças tinham litteralmente largado
a fugir, com a patrona a batter-lhe os rins; e o official,
enfiado de terror, metteu-se para uma escada,
a vomitar!...
Todos protestaram. Não, não era possivel... Mas
se elle tinha visto, que diabo!... Pois sim, talvez,
mas com os olhos fallazes da phantasia...
[227]
—Juro pela saude da mamã! gritou Ega furioso.
Mas emmudeceu. O Cohen tocara-lhe no braço. O
Cohen ía fallar.
O Cohen queria dizer que o futuro pertence a
Deus. Que os hespanhoes porém pensassem na
invasão
isso parecia-lhe certo—sobretudo se viessem,
como era natural, a perder Cuba. Em Madrid todo o
mundo lh'o dissera. Já havia mesmo negocios de fornecimentos
entabolados...
—Hespanholadas, gallegadas! rosnou Alencar, por
entre dentes, sombrio e torcendo os bigodes.
—No
Hotel de Paris, continuou Cohen, em
Madrid,
conheci eu um magistrado, que me disse com
um certo ar que não perdia a esperança de se vir
estabelecer de todo em Lisboa; tinha-lhe agradado
muito Lisboa, quando cá estivera a banhos. E em
quanto a mim, estou que ha muitos hespanhoes que
estão á espera d'este augmento de territorio para
se empregarem!
Então Ega cahiu em extasi, apertou as mãos contra
o peito. Oh que delicioso traço! Oh que admiravelmente
observado!
—Este Cohen! exclamava elle para os lados. Que
finamente observado! Que traço adoravel! Hein, Craft?
Hein, Carlos? Delicioso!
Todos cortezmente admiraram a finura do Cohen.
Elle agradecia, com o olho enternecido, passando pelas
suissas a mão onde reluzia um diamante. E n'esse
momento os creados serviam um prato de ervilhas
n'um molho branco, murmurando:
[228]
—
Petits pois a la Cohen.
A la Cohen? Cada um verificou o seu
menu mais
attentamente. E lá estava, era o legume:
petits pois
a la Cohen! Damaso, enthusiasmado, declarou isto
«chic a valer!» E fez-se, com o Champagne que se
abria, a primeira saude ao Cohen!
Esquecera-se a banca rota, a invasão, a patria—o
jantar terminava alegremente. Outras
saudes crusaram-se,
ardentes e loquazes: o proprio Cohen, com
o sorriso de quem cede a um capricho de creança,
bebeu á Revolução e á
Anarchia, brinde complicado,
que o Ega erguera, já com o olho muito brilhante.
Sobre a toalha, a sobremeza alastrava-se, destroçada;
no prato do Alencar as pontas de cigarros misturavam-se
a bocados de ananaz mastigado. Damaso,
todo debruçado sobre Carlos, fazia-lhe o elogio da parelha
ingleza, e d'aquelle
phaeton que era
a cousa
mais linda que passeiava Lisboa. E logo depois do
seu brinde de demagogo, sem razão, Ega arremettera
contra Craft, injuriando a Inglaterra, querendo excluil-a
d'entre as nações pensantes,
ameaçando-a de
uma revolução social que a ensoparia em sangue: o
outro respondia com acenos de cabeça, imperturbavel,
partindo nozes.
Os creados serviram o café. E como havia já tres
longas horas que estavam á meza, todos se ergueram,
acabando os charutos, conversando, na animação
viva que dera o
Champagne. A sala,
de tecto
baixo, com os cinco bicos de gaz ardendo largamente,
enchera-se de um calor pesado, onde se ia espalhando
[229]
agora o aroma forte das chartreuses e dos licores
por entre a nevoa alvadia do fumo.
Carlos e Craft, que abafavam, foram respirar para
a varanda; e ahi recomeçou logo, n'aquella communidade
de gostos que os começava a ligar, a conversa
da rua do Alecrim sobre a bella collecção dos
Olivaes.
Craft dava detalhes; a cousa rica e rara que
tinha era um armario hollandez do seculo XVI; de
resto, alguns bronzes, faianças e boas armas...
Mas ambos se voltaram ouvindo, no grupo dos outros,
junto á meza, estridencias de voz, e como um
conflicto que rompia: Alencar, sacudindo a grenha,
gritava contra a
palhada
philosophica; e do outro
lado, com o calice de cognac na mão, Ega, pallido e
affectando uma tranquillidade superior, declarava toda
essa babuge lyrica que por ahi se publica digna da
policia correccional...
—Pegaram-se outra vez, veiu dizer Damaso a Carlos,
approximando-se da varanda. É por causa do
Craveiro. Estão ambos divinos!
Era com effeito a proposito de poesia moderna, de
Simão Craveiro, do seu poema a
Morte de
Satanaz.
Ega estivera citando, com enthusiasmo, estrophes do
episodio da
Morte, quando o grande
esqueleto symbolico
passa em pleno sol no Boulevard, vestido como
uma cocotte, arrastando sedas rumorosas
«E entre duas costellas, no
decotte,
Tinha um bouquet de rosas!»
E o Alencar, que detestava o Craveiro, o homem
da
Idéa nova, o paladino
do Realismo, triumphara,
[230]
cascalhara, denunciando logo n'essa simples estrophe
dois erros de grammatica, um verso errado, e
uma imagem roubada a Beaudelaire!
Então Ega, que bebera um sobre outro dois calices
de cognac, tornou-se muito provocante, muito pessoal.
—Eu bem sei por que tu fallas, Alencar, dizia elle
agora. E o motivo não é nobre. É por
causa do epigramma
que elle te fez:
O Alencar d'Alemquer,
Acceso com a primavera...
—Ah, vocês nunca ouviram isto? continuou elle
voltando-se, chamando os outros. É delicioso, é
das
melhores cousas do Craveiro. Nunca ouviste, Carlos?
É sublime, sobre tudo esta estrophe:
O Alencar d'Alemquer
Que quer? Na verde campina
Não colhe a tenra bonina
Nem consulta o malmequer...
Que quer? Na verde campina
O Alencar d'Alemquer
Quer menina!
Eu não me lembro do resto, mas termina com um
grito de bom senso, que é a verdadeira critica de
todo esse lyrismo pandilha:
O Alencar d'Alemquer
Quer cacete!
Alencar passou a mão pela testa livida, e com o
olho cavo fito no outro, a voz rouca e lenta:
—Olha, João da Ega, deixa-me dizer-te uma cousa,
meu rapaz... Todos esses epigrammas, esses dichotes
lorpas do rachitico e dos que o admiram, passam-me
[231]
pelos pés como um enxurro de cloaca... O que faço
é arregaçar as calças!
Arregaço as calças... Mais
nada, meu Ega. Arregaço as calças!
E arregaçou-as realmente, mostrando a ceroula,
n'um gesto brusco e de delirio.
—Pois quando encontrares enchurros d'esses, gritou-lhe
o Ega, agacha-te e bebe-os! Dão-te sangue
e força ao lyrismo!
Mas Alencar, sem o ouvir, berrava para os outros,
esmurrando o ar:
—Eu, se esse Craveirete não fosse um rachitico,
talvez me entretivesse a rolal-o aos pontapés por esse
Chiado abaixo, a elle e á versalhada, a essa lambisgonhice
excrementicia com que seringou Satanaz! E
depois de o besuntar bem de lama, esborrachava-lhe
o craneo!
—Não se esborracham assim craneos, disse de lá
o Ega n'um tom frio de troça.
Alencar voltou para elle uma face medonha. A
colera e o cognac incendiavam-lhe o olhar; todo elle
tremia:
—Esborrachava-lh'o, sim, esborrachava, João da
Ega! Esborrachava-lh'o assim, olha, assim mesmo!—Rompeu
a atirar patadas ao soalho, abalando a
sala, fazendo tilintar crystaes e louças.—Mas
não
quero, rapazes! Dentro d'aquelle craneo só ha excremento,
vomito, puz, materia verde, e se lh'o esborrachasse,
por que lh'o esborrachava, rapazes, todo
o miollo podre sahia, empestava a cidade, tinhamos o
cholera! Irra! Tinhamos a peste!
[232]
Carlos, vendo-o tão excitado, tornou-lhe o braço,
quiz calmal-o:
—Então, Alencar! Que tolice... Isso vale lá a
pena!...
O outro desprendeu-se, arquejante, desabotoou a
sobrecasaca, soltou o ultimo desabafo:
—Com effeito, não vale a pena ninguem zangar-se
por causa d'esse Craveirote da
Idéa
nova, esse caloteiro,
que se não lembra que a porca da irmã
é uma
meretriz de doze vintens em Marco de Canavezes!
—Não, isso agora é de mais, pulha! gritou Ega,
arremeçando-se, de punhos fechados.
Cohen e Damaso, assustados, agarraram-n'o. Carlos
puchara logo para o vão da janella o Alencar que se
debatia, com os olhos chammejantes, a gravata solta.
Tinha cahido uma cadeira; a correcta sala, com os
seus divans de marroquim, os seus ramos de camelias,
tomava um ar de taverna, n'uma bulha de faias,
entre a fumaraça de cigarros. Damaso, muito pallido,
quasi sem voz, ía d'um a outro:
—Oh meninos, oh meninos, aqui, no Hotel Central!
Jesus!... Aqui no Hotel Central!...
E, d'entre os braços do Cohen, Ega berrava, já
rouco:
—Esse pulha, esse covarde... Deixe-me, Cohen!
Não, isso hei de esbofeteal-o!... A D. Anna Craveiro, uma
santa!...
Esse calumniador... Não, isso hei de esganal-o!...
Craft, no entanto, impassivel, bebia aos golos a sua
chartreuse. Já presenceára, mais vezes, duas
litteraturas
rivaes engalphinhando-se, rolando no chão, n'um
[233]
latir de injurias: a torpeza do Alencar sobre a
irmã do outro fazia parte dos costumes de critica
em Portugal: tudo isso o deixava indifferente, com
um sorriso de desdem. Além d'isso sabia que a
reconciliação
não tardaria, ardente e com abraços. E
não tardou. Alencar sahiu do vão da janella,
atraz de
Carlos, abotoando a sobrecasaca, grave e como arrependido.
A um canto da sala, Cohen fallava ao Ega
com auctoridade, severo, á maneira d'um pae: depois
voltou-se, ergueu a mão, ergueu a voz, disse que
alli todos eram cavalheiros: e como homens de talento
e de coração fidalgo os dois deviam
abraçar-se...
—Vá, um
shake-hands,
Ega, faça isso por mim!...
Alencar, vamos, peço-lh'o eu!
O auctor de
Elvira deu um passo, o
auctor das
Memorias d'um Atomo estendeu a
mão: mas o primeiro
aperto foi gôche e molle. Então Alencar, generoso
e rasgado, exclamou que entre elle e o Ega não
devia
ficar uma nuvem! Tinha-se
excedido... Fôra o
seu desgraçado genio, esse calor de sangue, que durante
toda a existencia só lhe trouxera lagrimas! E
alli declarava bem alto que Anna Craveiro era uma
santa! Tinha-a conhecido em Marco de Canavezes, em
casa dos Peixotos... Como esposa, como mãe, Anna
Craveiro era impeccavel. E reconhecia, do fundo
d'alma, que o Craveiro tinha carradas de talento!...
Encheu um copo de
Champagne,
ergueu-o alto,
diante do Ega, como um calice de altar:
—Á tua, João!
Ega, generoso tambem, respondeu:
[234]
—Á tua, Thomaz!
Abraçaram-se. Alencar jurou que ainda na vespera,
em casa de D. Joanna Coutinho, elle dissera
que não conhecia ninguem mais scintillante que o Ega!
Ega affirmou logo que em poemas nenhuns corria,
como nos do Alencar, uma tão bella veia lyrica. Apertaram-se
outra vez, com palmadas pelos hombros.
Trataram-se de
irmãos na
arte, trataram-se de
genios!...
—São extraordinarios, disse Craft baixo a Carlos,
procurando o chapéo. Desorganisam-me, preciso ar!...
A noite alongava-se, eram onze horas. Ainda se
bebeu mais cognac. Depois Cohen sahiu levando o
Ega. Damaso e Alencar desceram com Carlos—que
ia recolher a pé pelo Aterro.
Á porta, o poeta parou com solemnidade.
—Filhos, exclamou elle tirando o chapéo e refrescando
largamente a fronte, então? Parece-me
que me portei como um gentleman!
Carlos concordou, gabou-lhe a generosidade...
—Estimo bem que me digas isso, filho, porque tu
sabes o que é ser gentleman! E agora vamos lá por
esse Aterro fóra... Mas deixa-me ir alli primeiro
comprar um pacote de tabaco...
—Que typo! exclamou Damaso, vendo-o affastar-se.
E a cousa ía-se pondo feia...
E immediatamente, sem transição,
começou a fazer
elogios a Carlos. O sr. Maia não imaginava ha quanto
tempo elle desejava conhecel-o!
—Oh senhor...
[235]
—Creia v. ex.
a... Eu não sou de
sabujices... Mas
pode v. ex.
a perguntar ao Ega, quantas vezes o
tenho
dito: v. ex.
a é a cousa melhor que ha
em Lisboa!
Carlos, baixava a cabeça, mordendo o riso. Damaso,
repetia, do fundo do peito.
—Olhe que isto é sincero, sr. Maia! Acredite
v. ex.
a que isto é do
coração!
Era realmente sincero. Desde que Carlos habitava
Lisboa, tivera alli, n'aquelle moço gordo e bochechudo,
sem o saber, uma adoração muda e profunda;
o proprio verniz dos seus sapatos, a côr das suas
luvas eram para o Damaso motivo de veneração, e
tão importantes como principios. Considerava Carlos
um typo supremo de
chic, do seu
querido
chic,
um Brummel, um d'Orsay, um Morny,—uma «d'estas
cousas que só se vêem lá
fóra», como elle dizia
arregalando os olhos. N'essa tarde sabendo que vinha
jantar com o Maia, conhecer o Maia, estivera duas
horas ao espelho experimentando gravatas, perfumara-se
como para os braços d'uma mulher;—e por
causa de Carlos mandara estacionar alli o coupé,
ás dez horas, com o cocheiro de ramo ao peito.
—Então essa senhora brazileira vive aqui? perguntou
Carlos, que dera dous passos, olhava uma
janella allumiada no segundo andar.
Damaso seguiu-lhe o olhar.
—Vive lá do outro lado. Estão aqui ha quinze
dias... Gente
chic... E ella
é de appetecer, v. ex.
a
reparou? Eu a bordo atirei-me... E ella dava cavaco!
Mas tenho andado muito preso desde que cheguei,
[236]
jantar aqui, soirée acolá, umas
aventurasitas...
Não tenho podido cá vir, deixei-lhes
só bilhetes; mas
trago-a d'olho, que ella demora-se... Talvez venha
cá ámanhã, estou cá agora a
sentir umas cocegas...
E se me pilho só com ella, zás, ferro-lhe logo um
beijo! Que eu cá, não sei se v. ex.
a
é a mesma
cousa, mas eu cá, com mulheres, a minha theoria é
esta: attracão! Eu cá, é logo:
attracão!
N'esse momento Alencar voltava do estanco, de
charuto na boca. Damaso despediu-se, atirando muito
alto ao cocheiro, para que Carlos ouvisse, a adresse
da Morelli, a segunda dama de S. Carlos.
—Bom rapaz, este Damaso, dizia Alencar, travando
de braço de Carlos, ao seguirem ambos pelo
Aterro. É lá muito dos Cohens, muito querido na
sociedade. Rapaz de fortuna, filho do velho Silva, o
agiota, que esfolou muito teu pae; e a mim tambem. Mas
elle assigna Salcede; talvez nome da mãe; ou talvez
inventado. Bom rapaz... O pae era um velhaco! Parece
que estou a ouvir o Pedro dizer-lhe com o seu
ar de fidalgo, que o tinha e do grande: «Silva judeu,
dinheiro, e a rôdo!»... Outros tempos, meu Carlos,
grandes tempos. Tempos de gente!
E então por esse longo Aterro, triste no ar escuro,
com as luzes do gaz dormente luzindo em fila d'enterro,
Alencar foi fallando d'esses «grandes tempos»
da sua mocidade e da mocidade de Pedro; e, atravéz
das suas phrases de lyrico, Carlos sentia vir como um
aroma antiquado d'esse mundo defunto... Era quando
os rapazes ainda tinham um resto de calor das
[237]
guerras civis, e o calmavam indo em bando varrer botequins
ou rebentando pilecas de sejes em galopadas
para Cintra. Cintra era então um ninho de amores,
e sob as suas romanticas ramagens as fidalgas abandonavam-se
aos braços dos poetas. Ellas eram Elviras,
elles eram Antonys. O dinheiro abundava; a côrte
era alegre; a Regeneração litterata e galante ia
engrandecer
o paiz, bello jardim da Europa; os bachareis
chegavam de Coimbra, frementes de eloquencia;
os ministros da corôa recitavam ao piano; o mesmo
sopro lyrico inchava as odes e os projectos de lei...
—Lisboa era bem mais divertida, disse Carlos.
—Era outra cousa, meu Carlos! Vivia-se! Não existiriam
esses ares scientificos, toda essa palhada philosophica,
esses badamecos positivistas... Mas havia
coração, rapaz! Tinha-se faisca! Mesmo n'essas
cousas
da politica... Vê esse chiqueiro agora ahi, essa
malta de bandalhos... N'esse tempo ía-se alli á
camara
e sentia-se a inspiração, sentia-se o rasgo!...
Via-se luz nas cabeças!... E depois, menino, havia
muitissimo boas mulheres.
Os hombros descahiam-lhe na saudade d'esse
mundo perdido. E parecia mais lugubre, com a sua
grenha d'inspirado sahindo-lhe de sob as abas largas
do chapéo velho, a sobrecasaca coçada e mal feita
collando-se-lhe lamentavelmente ás ilhargas.
Um momento caminharam em silencio. Depois, na
rua das Janellas Verdes, o Alencar
quiz
refrescar. Entraram
n'uma pequena venda, onde a mancha amarella
d'um candieiro de petroleo destacava n'uma penumbra
[238]
de subterraneo, allumiando o zinco humido
do balcão, garrafas nas prateleiras, e o vulto triste
da patroa com um lenço amarrado nos queixos. Alencar
parecia intimo no estabelecimento: apenas soube
que a sr.
a Candida estava com dôr de
dentes, aconselhou
logo remedios, familiar, descido das nuvens romanticas,
com os cotovellos sobre o balcão. E quando
Carlos quiz pagar a canna branca zangou-se, bateu
a sua placa de dois tostões sobre o zinco polido,
exclamou, com nobreza:
—Eu é que faço a honra da bodega, meu Carlos!
Nos palacios os outros pagarão... Cá na
taberna
pago eu!
Á porta tomou o braço de Carlos. Depois d'alguns
passos lentos no silencio da rua, parou de novo, e murmurou
n'uma voz vaga, contemplativa, como repassada
da vasta solemnidade da noite:
—Aquella Rachel Cohen é divinamente bella, menino!
Tu conhecel'a?
—De vista.
—Não te faz lembrar uma mulher da Biblia? Não
digo lá uma d'essas viragos, uma Judith, uma Dalila...
Mas um d'esses lyrios poeticos da Biblia...
É seraphica!
Era agora a paixão platonica do Alencar, a sua
dama, a sua Beatriz...
—Tu viste ha tempos, no
Diario
Nacional, os
versos que eu lhe fiz?
«Abril chegou! Sê
minha»
Dizia o vento á rosa.
[239]
Não me sahiu mau! Aqui ha uma maliciasinha:
Abril
chegou, sê minha... Mas logo:
dizia o vento á rosa.
Comprehendes? Calhou bem este effeito. Mas não
imagines lá outras cousas, ou que lhe faço a
côrte...
Basta ser a mulher do Cohen, um amigo, um irmão... E
a Rachel, para mim, coitadinha, é como uma
irmã...
Mas é divina. Aquelles olhos, filho, um velludo liquido!...
Tirou o chapeu, refrescou a fronte vasta. Depois
n'outro tom, e como a custo:
—Aquelle Ega tem muito talento... Vae lá muito
aos Cohens... A Rachel acha-lhe graça...
Carlos parára, estavam defronte do Ramalhete.
Alencar deu um olhar á severa frontaria de convento,
adormecida, sem um ponto de luz.
—Tem bom ar esta vossa casa... Pois entra tu,
meu rapaz, que eu vou andando por aqui para a
minha toca. E quando quizeres, filho, lá me tens na
rua do Carvalho, 52, 3.º andar. O predio é meu, mas
eu occupo o terceiro andar. Comecei por habitar no
primeiro, mas tenho ido trepando... A unica cousa
mesmo que tenho trepado, meu Carlos, é de andares...
Teve um gesto, como desdenhando essas miserias.
—E has de ir lá jantar um dia. Não te posso dar
um banquete, mas has de ter uma sopa e um assado...
O meu Matheus, um preto, (um amigo!) que
me serve ha muito anno, quando ha que cosinhar,
sabe cosinhar! Fez muito jantar a teu pae, ao meu
pobre Pedro... Que aquillo foi casa de alegria, meu
[240]
rapaz. Dei lá cama e mesa, e dinheiro para a algibeira,
a muita d'essa canalha que hoje por ahi trota
em coupé da companhia e de correio atraz... E agora,
quando me avistam, voltam para o lado o focinho...
—Isso são imaginações, disse Carlos
com amisade.
—Não são, Carlos, respondeu o poeta, muito
grave,
muito amargo. Não são. Tu não sabes a
minha vida.
Tenho soffrido muito repellão, rapaz. E não o
merecia!
Palavra, que o não merecia.
Agarrou o braço de Carlos, e com a voz abalada:
—Olha que esses homens que por ahi figuram
embebedavam-se comigo, emprestei-lhes muito pinto,
dei-lhes muita ceia... E agora são ministros, são
embaixadores, são personagens, são o diabo. Pois
offereceram-te elles um bocado do
bolo agora que o
teem na mão? Não. Nem a mim. Isto é
duro, Carlos,
isto é muito duro, meu Carlos. E que diabo, eu
não queria que me fizessem conde, nem que me
dessem uma embaixada... Mas ahi alguma cousa
n'uma secretaria... Nem um chavelho! Emfim, ainda
há para o bocado do pão, e para a meia
onça do
tabaco... Mas esta ingratidão tem-me feito cabellos
brancos... Pois não te quero massar mais, e que
Deus te faça feliz como tu mereces, meu Carlos!
—Tu não queres subir um bocado, Alencar?
Tanta franqueza enterneceu o poeta.
—Obrigado, rapaz, disse elle, abraçando Carlos.
E agradeço-te isso, porque sei que vem do
coração...
Todos vocês teem coração...
Já teu pae o tinha, e
largo, e grande como o d'um leão! E agora crê uma
[241]
cousa: é que tens aqui um amigo. Isto não
é palavriado,
isto vem de dentro... Pois adeus, meu rapaz.
Queres tu um charuto?
Carlos acceitou logo, como um presente do ceu.
—Então ahi tens um charuto, filho! exclamou
Alencar com enthusiasmo.
E aquelle charuto dado a um homem tão rico, ao
dono do Ramalhete, fazia-o por um momento voltar
aos tempos em que n'esse Marrare elle estendia
em redor a charuteira cheia, com o seu grande ar
de Manfredo triste. Interessou-se então pelo charuto.
Accendeu elle mesmo um phosphoro. Verificou se ficava
bem acceso. E que tal, charuto rasoavel? Carlos
achava um excellente charuto!
—Pois ainda bem que te dei um bom charuto!
Abraçou-o outra vez; e estava batendo uma hora,
quando elle emfim se affastou, mais ligeiro, mais
contente de si, trauteando um trecho de
fado.
Carlos no seu quarto, antes de se deitar, acabando
o pessimo charuto do Alencar estirado n'uma chaise-longue,
em quanto Baptista lhe fazia uma chavena de
chá, ficou pensando n'esse estranho passado que lhe
evocara o velho lyrico...
E era sympathico o pobre Alencar! Com que cuidado
exagerado, ao fallar de Pedro, d'Arroios, dos
amigos e dos amores d'então, elle evitara pronunciar
sequer o nome de Maria Monforte! Mais de uma
vez, pelo Aterro fóra, estivera para lhe
dizer:—pódes
[242]
fallar da mamã, amigo Alencar, que eu sei perfeitamente
que ella fugiu com um italiano!
E isto fêl-o insensivelmente recordar da maneira
como essa lamentavel historia lhe fôra revelada, em
Coimbra, n'uma noite de troça, quasi grotescamente.
Por que o avô, obdecendo á carta testamentaria de
Pedro, contara-lhe um romance decente: um casamento
de paixão, incompatibilidades de naturezas,
uma separação cortez, depois a retirada da
mamã
com a filha para a França, onde tinham morrido ambas.
Mais nada. A morte de seu pae fôra-lhe apresentada
sempre como o brusco remate d'uma longa
nevrose...
Mas Ega sabia tudo, pelos tios... Ora uma noite
tinham ceiado ambos; Ega muito bebedo, e n'um
accesso de idealismo, lançara-se n'um paradoxo tremendo,
condemnando a honestidade das mulheres
como origem da decadencia das raças: e dava por
prova os bastardos, sempre intelligentes, bravos,
gloriosos! Elle, Ega, teria orgulho se sua mãe, sua
propria mãe, em logar de ser a santa burgueza que
resava o terço á lareira, fosse como a
mãe de Carlos,
uma inspirada, que por amor d'um exilado abandonara
fortuna, respeitos, honra, vida! Carlos, ao ouvir
isto, ficara petrificado, no meio da ponte, sob
o calmo luar. Mas não poude interrogar o Ega, que
já taramellava, agoniado, e que não tardou a
vomitar-lhe
ignobilmente nos braços. Teve de o arrastar
á casa das Seixas, despil-o, aturar-lhe os beijos e a
ternura borracha, até que o deixou abraçado ao
travesseiro,
[243]
babando-se, balbuciando—«que queria ser
bastardo, que queria que a mamã fosse uma
marafona!...»
E elle mal podera dormir essa noite, com a idéa
d'aquella mãe, tão outra do que lhe haviam
contado,
fugindo nos braços d'um desterrado—um polaco talvez!
Ao outro dia, cedo, entrava pelo quarto do Ega,
a pedir-lhe, pela sua grande amisade, a verdade
toda...
Pobre Ega! Estava doente: fez-se branco como o
lenço que tinha amarrado na cabeça com pannos de
agua sedativa: e não achava uma palavra, coitado!
Carlos, sentado na cama, como nas noites de cavaco,
tranquillisou-o. Não vinha alli offendido, vinha alli
curioso!
Tinham-lhe occultado um episodio extraordinario
da sua gente, que diabo, queria sabel-o! Havia
romance? Para alli o romance!
Ega, então, lá ganhou animo, lá
balbuciou a sua
historia—a que ouvira ao tio Ega—a paixão de Maria
por um principe, a fuga, o longo silencio d'annos
que se fizera sobre ella...
Justamente as ferias chegavam. Apenas em S.
ta
Olavia,
Carlos contou ao avô a bebedeira do Ega, os seus
discursos doidos, aquella revelação vinda entre
arrotos.
Pobre avô! Um momento nem poude fallar—e
a voz por fim veiu-lhe tão debil e dolente como se
dentro do peito lhe estivesse morrendo o coração.
Mas narrou-lhe, detalhe a detalhe, o feio romance todo
até áquella tarde em que Pedro lhe apparecera,
livido,
coberto de lama, a cahir-lhe nos braços, chorando
[244]
a sua dôr com a fraqueza d'uma creança.—E
o desfecho d'esse amor culpado, accrescentara o avô,
fôra a morte da mãe em Vienna d'Austria, e a morte
da pequenita, da neta que elle nunca vira, e que a
Monforte levara... E eis ahi tudo. E assim, aquella
vergonha domestica estava agora enterrada, alli, no
jazigo de S.
ta Olavia, e em duas sepulturas
distantes,
em paiz estrangeiro...
Carlos recordava-se bem que n'essa tarde, depois
da melancolica conversa com o avô, devia elle
experimentar uma egoa ingleza: e ao jantar não se
fallou senão da egoa que se chamava
Sultana. E a
verdade era que d'ahi a dias tinha esquecido a mamã.
Nem lhe era possivel sentir por esta tragedia senão
um interesse vago e como litterario. Isso passara-se
havia vinte e tantos annos, n'uma sociedade quasi
desapparecida. Era como o episodio historico de uma
velha chronica de familia, um antepassado morto em
Alcacer-Kebir, ou uma das suas avós dormindo n'um
leito real. Aquillo não lhe dera uma lagrima, não
lhe
pozera um rubor na face. De certo, prefiriria poder
orgulhar-se de sua mãe, como d'uma rara e nobre
flôr de honra: mas não podia ficar toda a vida a
amargurar-se
com os seus erros. E porque? A sua honra
d'elle não dependia dos impulsos falsos ou torpes
que tivera o coração d'ella. Peccara, morrera,
acabou-se.
Restava, sim, aquella idéa do pae, findando
n'uma poça de sangue, no desespero d'essa
traição.
Mas não conhecera seu pae: tudo o que possuia d'elle
e da sua memoria, para amar, era uma fria tela mal
[245]
pintada, pendurada no quarto de vestir, representando
um moço moreno, de grandes olhos, com luvas
de camurça amarellas e um chicote na mão...
De sua mãe não ficara nem um daguerreotypo, nem
sequer um contorno a lapis. O avô tinha-lhe dito que
era loura. Não sabia mais nada. Não os conhecera;
não lhes dormira nos braços; nunca recebera o
calor
da sua ternura. Pae, mãe, eram para elle como symbolos
d'um culto convencional. O papá, a mamã, os
seres amados, estavam alli todos—no avô.
Baptista trouxera o chá, o charuto do Alencar acabara;—e
elle continuava na chaise-longue, como amollecido
n'estas recordações, e cedendo já,
n'um meio
adormecimento, á fadiga do longo jantar... E
então,
pouco a pouco, diante das suas palpebras cerradas,
uma visão surgiu, tomou côr, encheu todo o
aposento. Sobre o rio, a tarde morria n'uma paz elysia.
O peristillo do Hotel Central alargava-se, claro ainda.
Um preto grisalho vinha, com uma cadelinha no collo.
Uma mulher passava, alta, com uma carnação
eburnea,
bella como uma Deusa, n'um casaco de velludo
branco de Genova. O Craft dizia ao seu lado
très-chic.
E elle sorria, no encanto que lhe davam estas imagens,
tomando o relevo, a linha ondeante, e a coloração
de cousas vivas.
Eram tres horas quando se deitou. E apenas adormecera,
na escuridão dos cortinados de seda, outra
vez um bello dia de inverno morria sem uma aragem,
banhado de côr de rosa: o banal peristillo de
Hotel alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro
[246]
preto voltava, com a cadellinha nos braços; uma mulher
passava, com um casaco de velludo branco de
Genova, mais alta que uma creatura humana, caminhando
sobre nuvens, com um grande ar de Juno que
remonta ao Olympo: a ponta dos seus sapatos de
verniz enterrava-se na luz do azul, por trás as saias
batiam-lhe como bandeiras ao vento. E passava sempre...
O Craft dizia
très-chic.
Depois tudo se confundia,
e era só o Alencar, um Alencar colossal, enchendo
todo o céu, tapando o brilho das estrellas com a sua
sobrecasaca negra e mal feita, os bigodes esvoaçando
ao vendaval das paixões, alçando os
braços, clamando
no espaço:
Abril chegou, sê minha!
VII
No Ramalhete, depois do almoço, com as tres janellas
do escriptoro abertas bebendo a tepida luz do
bello dia de março, Affonso da Maia e Craft jogavam
uma partida de xadrez ao pé da chaminé
já
sem lume, agora cheia de plantas, fresca e festiva
como um altar domestico. N'uma facha obliqua de sol,
sobre o tapete, o Reverendo Bonifacio, enorme e fôfo,
dormia de leve a sua sesta.
Craft tornara-se, em poucas semanas, intimo no
Ramalhete. Carlos e elle, tendo muitas similitudes de
gosto e de idéas, o mesmo fervor pelo
bric-a-brac e
pelo
bibelot, o uso apaixonado da
esgrima, egual dilettantismo
d'espirito, uniram-se immediatamente em
relações de superficie, faceis e amaveis.
Affonso, por
seu lado começara logo a sentir uma estima elevada
[248]
por aquelle gentleman de boa raça ingleza, como
elle os admirava, cultivado e forte, de maneiras graves,
de habitos rijos, sentindo finamente e pensando
com rectidão. Tinham-se encontrado ambos enthusiastas
de Tacito, de Macaulay, de Burke, e até dos poetas
lakistas; Craft era grande no xadrez; o seu carater
ganhara nas longas e trabalhadas viagens a rica
solidez d'um bronze; para Affonso da Maia «aquillo
era deveras um homem». Craft, madrugador, sahia
cedo dos Olivaes a cavallo, e vinha assim ás vezes
almoçar de surpreza com os Maias; por vontade de
Affonso jantaria lá sempre;—mas ao menos as noites
passava-as invariavelmente no Ramalhete, tendo
emfim, como elle dizia, encontrado em Lisboa um recanto
onde se podia conversar bem sentado, no meio
de idéas, e com boa educação.
Carlos sahia pouco de casa. Trabalhava no seu
livro. Aquella revoada de clientella que lhe dera esperanças
d'uma carreira cheia, activa, tinha passado
miseravelmente, sem se fixar; restavam-lhe tres doentes
no bairro; e sentia agora que as suas carruagens,
os cavallos, o Ramalhete, os habitos de luxo,
o condemnavam irremediavelmente ao
dillettantismo.
Já o fino dr. Theodosio lhe dissera um dia, francamente:
«você é muito elegante p'ra medico! As
suas
doentes, fatalmente, fazem-lhe olho! Quem é o burguez
que lhe vae confiar a esposa dentro d'uma alcova?...
Você aterra o pater-familias!» O laboratorio
mesmo prejudicara-o. Os collegas diziam que
o Maia, rico, intelligente, avido de innovações,
de
[249]
modernismos, fazia sobre os doentes experiencias
fataes. Tinha-se troçado muito a sua idéa,
apresentada
na
Gazeta Medica, a
prevenção das epidemias
pela inoculação dos virus. Consideravam-no um
phantasista.
E elle, então, refugiava-se todo n'esse livro sobre
a medicina antiga e moderna, o
seu
livro, trabalhado
com vagares d'artista rico, tornando-se o interesse
intellectual de um ou dous annos.
N'essa manhã, em quanto dentro proseguia grave
e silenciosa a partida de xadrez, Carlos no terrasso,
estendido n'uma vasta cadeira india de bambu, á sombra
do toldo, acabava o seu charuto, lendo uma
Revista
ingleza, banhado pela caricia tepida d'aquelle
bafo de primavera que avelludava o ar, fazia já desejar
arvores e relvas...
Ao lado d'elle, n'uma outra cadeira de bambu,
tambem de charuto na boca, o sr. Damaso Salcede
percorria o
Figaro. De perna
estirada, n'uma indolencia
familiar, tendo o amigo Carlos ao seu lado,
vendo junto ao terrasso as rosas das roseiras de
Affonso, sentindo por trás, atravez das janellas abertas,
o rico e nobre interior do Ramalhete—o filho do
agiota saboreava alli uma d'essas horas deliciosas
que ultimamente encontrava na intimidade dos Maias.
Logo na manhã seguinte ao jantar do Central, o
sr. Salcede fôra ao Ramalhete deixar os seus bilhetes,
objectos complicados e vistosos, tendo ao angulo,
n'uma dobra simulada, o seu retratosinho em
photographia, um capacete com plumas por cima do
nome—DAMASO CANDIDO DE SALCEDE, por baixo
[250]
as suas honras—
Commendador de
Christo, ao fundo
a sua adresse—
Rua de S. Domingos, á
Lapa; mas
esta indicação estava riscada, e ao lado, a tinta
azul,
esta outra mais apparatosa—
Grand
Hotel, Boulevard
des Capucines, Chambre N.º 103. Em seguida
procurou
Carlos no consultorio, confiou ao creado outro
cartão. Emfim, uma tarde, no Aterro, vendo passar
Carlos a pé, correu para elle, pendurou-se d'elle,
conseguiu acompanhal-o ao Ramalhete.
Ahi, logo desde o pateo, rompeu em admirações
extaticas, como dentro d'um museu, lançando, diante
dos tapetes, das faienças e dos quadros, a sua grande
phrase—«
chic a
valer!» Carlos levou-o para o
fumoir,
elle aceitou um charuto; e começou a explicar,
de perna traçada, algumas das suas opiniões e
alguns
dos seus gostos. Considerava Lisboa chinfrin, e só
estava bem em Paris—sobre tudo por causa do genero
«femea» de que em Lisboa se passavam fomes:
ainda que n'esse ponto a Providencia não o tratava
mal. Gostava tambem do
bric-a-brac;
mas apanhava-se
muita espiga, e as cadeiras antigas, por exemplo, não
lhe pareciam commodas para a gente se sentar. A
leitura entretinha-o, e ninguem o pilhava sem livros
á cabeceira da cama; ultimamente andava ás voltas
com Daudet, que lhe diziam ser muito
chic, mas elle
achava-o confusote. Em rapaz perdia sempre as noites,
até ás quatro ou cinco da madrugada, no delirio!
Agora não, estava mudado e pacato; emfim, não
dizia que de vez em quando não se abandonasse a
um excessozinho; mas só em dias duples... E as
[251]
suas perguntas foram terriveis. O sr. Maia achava
chic ter um
cab inglez? Qual era mais elegante,
assim
para um rapaz de sociedade que quizesse ir passar
o verão lá fóra, Nice ou Trouville?...
Depois ao sahir,
muito serio, quasi commovido, perguntou ao sr.
Maia (se o sr. Maia não fazia segredo) quem era o seu
alfaiate.
E desde esse dia, não o deixou mais. Se Carlos apparecia
no theatro, Damaso immediatamente arrancava-se
da sua cadeira, ás vezes na solemnidade d'uma
bella aria, e pisando os botins dos cavalheiros, amarrotando
a compostura das damas, abalava, abria
d'estalo a
claque, vinha-se
installar na frisa, ao lado
de Carlos, com a bochecha corada, camelia na casaca,
exhibindo os botões de punho que eram duas
enormes bolas. Uma ou duas vezes que Carlos entrara
casualmente no Gremio, Damaso abandonou logo a partida,
indifferente á indignação dos
parceiros, para se
vir collar á ilharga do Maia, offerecer-lhe marrasquino
ou charutos, seguil-o de sala em sala como um rafeiro.
N'uma d'essas occasiões, tendo Carlos soltado
um trivial gracejo, eis o Damaso rompendo em risadas
soluçantes, rebolando-se pelos sophás, com as
mãos nas ilhargas, a gritar que rebentava! Juntaram-se
socios; elle, suffocado, repetia a pilheria; Carlos
fugiu vexado. Chegou a odial-o; respondia-lhe só
com monossyllabos; dava voltas perigosas com o
dog-cart
se lhe avistava de longe a bochecha, a coxa roliça.
Debalde: Damaso Candido Salcede filara-o, e
para sempre.
[252]
Depois, um dia, Taveira appareceu no Ramalhete
com uma extraordinaria historia. Na vespera, no Gremio
(tinham-lhe contado, elle não presenceara) um
sujeito, um Gomes, n'um grupo onde se commentavam
os Maias, erguera a voz, exclamara que Carlos
era um asno! Damaso, que estava ao lado mergulhado
na
Ilustração,
levantou-se, muito pallido, declarou
que, tendo a honra de ser amigo do sr. Carlos
da Maia, quebrava a cara com a bengala ao sr. Gomes
se elle ousasse babujar outra vez esse cavalheiro; e
o sr. Gomes tragou, com os olhos no chão, a affronta,
por ser rachitico de nascença—e porque era inquilino
de Damaso e andava muito atrasado na renda.
Affonso da Maia achou este feito brilhante: e foi por
desejo seu que Carlos trouxe o sr. Salcede uma
tarde a jantar ao Ramalhete.
Este dia pareceu bello a Damaso como se fosse
feito de azul e oiro. Mas melhor ainda foi a manhã
em que Carlos, um pouco incommodado e ainda deitado,
o recebeu no quarto, como entre rapazes... D'ahi
datava a sua intimidade: começou a tratar Carlos por
você. Depois, n'essa
semana, revelou aptidões uteis.
Foi despachar á alfandega (Villaça achava-se no
Alemtejo)
um caixote de roupa para Carlos. Tendo apparecido
n'um momento em que Carlos copiava um artigo
para a
Gazeta Medica offereceu a sua
boa letra,
letra prodigiosa, de uma belleza lithographica; e d'ahi
por diante passava horas á banca de Carlos, applicado
e vermelho, com a ponta da lingua de fóra, o
olho redondo, copiando apontamentos,
transcripções
[253]
de Revistas, materiaes para o livro... Tanta dedicação
merecia um
tu de familiaridade.
Carlos deu-lh'o.
Damaso, no entanto, imitava o Maia com uma minuciosidade
inquieta, desde a barba que começava
agora a deixar crescer até á forma dos sapatos.
Lançara-se
no
bric-a-brac. Trazia sempre o
coupé cheio
de lixos archeologicos, ferragens velhas, um bocado
de tijolo, a aza rachada de um bule... E se avistava
um conhecido, fazia parar, entreabria a portinhola
como um addito de sacrario, exhibia a preciosidade:
—Que te parece?
Chic a valer!...
Vou mostral-a
ao Maia. Olha-me isto, hein! Pura meia edade, do
reinado de Luiz XIV. O Carlos vae-se roer de inveja!
N'esta intimidade de rosas havia todavia para Damaso
horas pesadas. Não era divertido assistir em
silencio, do fundo d'uma poltrona, ás infindaveis
discussões
de Carlos e de Craft sobre arte e sobre sciencia.
E, como elle confessou depois, chegara a encavacar
um pouco quando o levaram ao laboratorio
para fazer no seu corpo experiencias de
electricidade...—«Pareciam
dois demonios engalphinhados
em mim, disse elle á sr.
a condessa de
Gouvarinho;
e eu então que embirro com o spiritismo!...»
Mas tudo isto ficava regiamente compensado,
quando á noite, n'um sophá, do Gremio, ou ao
chá
n'uma casa amiga, elle podia dizer, correndo a mão
pelo cabello:
—Passei hoje um dia divino com o Maia. Fizemos
armas,
bric-a-brac, discutimos... Um
dia,
chic! Ámanhã
[254]
tenho uma manhã de trabalho com o Maia...
Vamos
ás colxas.
N'esse domingo, justamente, deviam ir ás colxas,
ao Lumiar. Carlos concebera um
boudoir, todo revestido
de colxas antigas de setim, bordadas a dous
tons especiaes, perola e botão d'ouro. O tio
Abrahão
esquadrinhava-as por toda a Lisboa e pelos suburbios;
e n'essa manhã viera annunciar a Carlos a existencia
de duas preciosidades,
so beautiful! oh! so
lovely!
em casa de umas senhoras Medeiros que esperavam
o sr. Maia ás duas horas...
Já tres vezes Damaso tossira, olhara o relogio,—mas,
vendo Carlos confortavelmente mergulhado
na
Revista, recahia tambem na sua
indolencia de homem
chic, investigando o
Figaro. Emfim, dentro, o
relogio Luiz XV cantou argentinamente as duas...
—Esta é boa, exclamou Damaso ao mesmo tempo,
com uma palmada na coxa. Olha quem aqui me apparece!
A Suzanna! A minha Suzanna!
Carlos não despegara os olhos da pagina.
—Oh Carlos, accrescentou elle, fazes favor? Ouve.
Ouve esta que é boa. Esta Suzanna é uma pequena
que eu tive em Paris... Um romance! Apaixonou-se
por mim, quiz-se envenenar, o diabo!... Pois diz
aqui o
Figaro que debutou nas
Folies-Bergeres. Falla
n'ella... É boa, hein? E era rapariguita
chic... E
o
Figaro diz que ella teve
aventuras, naturalmente
sabia o que se passou comigo... Todo o mundo sabia
em Paris. Ora a Suzanna!... Tinha bonitas pernas.
E custou-me a vêr livre d'ella!
[255]
—Mulheres! murmurou Carlos, refugiando-se mais
no fundo da
Revista.
Damaso era interminavel, torrencial, inundante a
fallar das «suas conquistas», n'aquella solida
satisfação
em que vivia de que todas as mulheres, desgraçadas
d'ellas, soffriam a fascinação da sua pessoa
e da sua toilette. E em Lisboa, realmente, era exacto.
Rico, estimado na sociedade, com
coupè e parelha,
todas as meninas tinham para elle um olhar doce. E
no
démi-monde, como elle
dizia, «tinha prestigio a valer.»
Desde moço fôra celebre, na capital, por
pôr
casas a hespanholas; a uma mesmo dera carruagem
ao mez; e este fausto excepcional tornara-o bem depressa
o D. João V dos prostibulos. Conhecia-se tambem
a sua ligação com a viscondessa da Gafanha, uma
carcassa esgalgada, caiada, rebocada, gasta por todos
os homens validos do paiz: ía nos cincoenta annos,
quando chegou a vez do Damaso—e não era decerto
uma delicia ter nos braços aquelle esqueleto rangente
e lubrico; mas dizia-se que em nova dormira n'um
leito real, e que augustos bigodes a tinham lambuzado;
tanta honra fascinou Damaso, e collou-se-lhe
ás saias com uma fidelidade tão sabuja, que a
decrepita
creatura, farta, enojada já, teve de o enxotar
á força e com desfeitas. Depois gozou uma
tragedia:
uma actriz do
Principe Real, uma
montanha de carne,
apaixonada por elle, n'uma noite de ciume e de genebra,
engoliu uma caixa de phosphoros; naturalmente
d'ahi a horas estava boa, tendo vomitado abominavelmente
sobre o collete do Damaso que chorava
[256]
ao lado—mas desde então este homem de
amor julgou-se fatal! Como elle dizia a Carlos, depois
de tanto drama na sua vida quasi tremia, tremia
verdadeiramente de fitar uma mulher...
—Passaram-se scenas com esta Suzanna! murmurou
elle depois de um silencio em que estivera catando
pelliculas nos beiços.
E, com um suspiro, retomou o
Figaro.
Houve outra
vez um silencio no terrasso. Dentro, a partida continuava.
Para lá da sombra do toldo, agora, o sol ía
aquecendo, batendo a pedra, os vasos de louça branca,
n'uma refracção d'ouro claro em que palpitavam as
azas das primeiras borboletas voando em redor dos
craveiros sem flor: em baixo, o jardim verdejava,
immovel na luz, sem um bolir de ramo, refrescado
pelo cantar do repuxo, pelo brilho liquido da agoa do
tanque, avivado, aqui e além, pelo vermelho ou o
amarello das rosas, pela carnação das ultimas
camelias...
O bocado de rio que se avistava entre os predios
era azul ferrete como o céu: e entre rio e céu
o monte punha uma grossa barra verde-escura, quasi
negra no resplendor do dia, com os dois moinhos
parados no alto, as duas casinhas alvejando em baixo,
tão luminosas e cantantes que pareciam viver. Um
repouso dormente de domingo envolvia o bairro:
e, muito alto, no ar, passava o claro repique d'um
sino.
—O duque de Norfolk chegou a Paris, disse Damaso
n'um tom entendido e traçando a perna. O
duque de Norfolk é
chic,
não é verdade, ó Carlos?
[257]
Carlos, sem erguer os olhos, lançou para os céus
um gesto, como exprimindo o infinito do
chic!
Damaso largara o
Figaro para metter
um charuto
na boquilha; depois desapertou os ultimos botões
do collete, deu um puchão á camisa para mostrar
melhor a marca que era um S enorme sob uma corôa
de conde, e de palpebra cerrada, com o beiço trombudo,
ficou mamando gravemente a boquilha...
—Tu estás hoje em belleza, Damaso, disse-lhe Carlos
que deixara tambem a
Revista e o
contemplava
com melancolia.
Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao
verniz dos sapatos, á meia côr de carne, e
revirando
para Carlos o bogalho azulado da orbita:
—Eu agora ando bem... Mas, muito
blazè.
E foi realmente com um ar
blazè que se ergueu a
ir buscar a uma mesa de jardim, ao lado, onde estavam
jornaes e charutos, a
Gazeta
Illustrada, «para
vêr o que ia pela patria.» Apenas lhe deitou os
olhos soltou uma exclamação.
—Outro debute? perguntou Carlos.
—Não, é a besta do Castro Gomes!
A
Gazeta Illustrada annunciava que
«o sr. Castro
Gomes, o cavalheiro brasileiro que no Porto fôra victima
da sua dedicação por occasião da
desgraça occorrida
na Praça Nova, e de que o nosso correspondente
J. T. nos deu uma descripção tão
opulenta de
colorido realista, acha-se restabelecido e é hoje esperado
no Hotel Central. Os nossos parabens ao arrojado
gentleman.»
[258]
—Ora está s. ex.
a restabelecida!
exclamou Damaso,
atirando para o lado o jornal. Pois deixa estar,
que agora é a occasião de lhe dizer na cara o que
penso... Aquelle pulha!
—Tu exageras, murmurou Carlos, que se apoderara
vivamente do jornal, e relia a noticia.
—Ora essa! exclamou Damaso, erguendo-se. Ora
essa! Queria vêr, se fosse comtigo... É uma besta!
É um selvagem!
E repetiu mais uma vez a Carlos essa historia que
o magoava. Desde a sua chegada de Bordeus, logo
que o Castro Gomes se installara no Hotel Central
elle fôra deixar-lhe bilhetes duas vezes—a ultima
na manhã seguinte ao jantar do Ega. Pois bem, s. ex.
a
não se dignara agradecer a visita! Depois elles tinham
partido para o Porto; fôra ahi que, passeiando só
na
Praça Nova, vendo a parelha de uma caleche desbocada,
duas senhoras em gritos, Castro Gomes se lançára
ao freio dos cavallos—e, cuspido contra as
grades, tinha deslocado um braço. Teve de ficar no
Porto, no Hotel, cinco semanas. E elle immediatamente
(sempre com o olho na mulher) mandara-lhe
dois telegrammas: um de sentimento, lamentando;
outro de interesse, pedindo noticias. Nem a um, nem
a outro, o animal respondeu!
—Não, isso—exclamava Salcede, passeiando pelo
terraço, e recordando estas injurias—hei de lhe fazer
uma desfeita!... Não pensei ainda o quê, mas ha
de amargar-lhe... Lá isso,
desconsiderações não admitto
a ninguem! a ninguem!
[259]
Arredondava o olho, ameaçador. Desde o seu feito
no Gremio, quando o rachitico apavorado emmudecera
diante d'elle, Damaso ia-se tornando feroz. Pela menor
cousa fallava em «quebrar caras.»
—A ninguem! repetia elle, com puxões ao collete.
Desconsiderações, a ninguem!
N'esse momento ouviu-se dentro, no escriptorio, a
voz rapida do Ega—e quasi immediatamente elle
appareceu, com um ar de pressa, e atarantado.
—Olá, Damasosinho!... Carlos, dás-me aqui em
baixo uma palavra?
Desceram do terraço, penetraram no jardim, até
junto de duas olaias em flôr.
—Tu tens dinheiro?—foi ahi logo a exclamação
anciosa do Ega.
E contou a sua terrivel atrapalhação. Tinha uma
letra
de noventa libras que se vencia no dia seguinte.
Além d'isso, vinte e cinco libras que devia ao Eusebiosinho,
e que elle lhe reclamara n'uma carta indecente:
e era isto que desesperava o Ega...
—Quero pagar a esse canalha, e quando o vir
collar-lhe a carta á cara com um escarro. Além
d'isso
a letra! E tenho para tudo isto quinze tostões...
—O Eusebiosinho é homem de ordem... Emfim,
queres cento e quinze libras, disse Carlos.
Ega hesitou, com uma côr no rosto. Já devia
dinheiro
a Carlos. Estava-se sempre dirigindo áquella
amisade, como a um cofre inexgotavel...
—Não, bastam-me oitenta. Ponho o relogio no
prego, e a pelissa, que já não faz frio...
[260]
Carlos sorriu, subiu logo ao quarto a escrever
um cheque—em quanto Ega procurava cuidadosamente
um bonito botão de rosa para florir a sobrecasaca.
Carlos não tardou, trazendo na mão o cheque,
que alargara até cento e vinte libras, para o Ega
ficar
armado...
—Seja pelo amor de Deus, menino! disse o outro,
embolsando o papel, com um bello suspiro de
allivio.
Immediatamente trovejou contra o Eusebiosinho,
esse villão! Mas tinha já uma
vingança. Ia remetter-lhe
a somma toda em cobre, n'um sacco de carvão,
com um rato morto dentro, e um bilhete, começando
assim:—
ascorosa lombriga e immunda osga, ahi te
atiro ao focinho, etc...
—Como tu podes consentir aqui, usando as tuas
cadeiras, respirando o teu ar, aquelle ser repulsivo!...
Mas era até sujo mencionar o Eusebiosinho!...
Quiz saber dos trabalhos de Carlos, do grande livro.
Fallou tambem do seu
Atomo:—e, por
fim, n'uma
voz differente, applicando o monocolo a Carlos:
—Dize-me outra cousa. Porque não tens tu voltado
aos Gouvarinhos?
Carlos tinha só esta rasão: não se
divertia lá.
Ega encolheu os hombros. Parecia-lhe aquillo uma
puerilidade...
—Tu não percebeste nada, exclamou elle. Aquella
mulher tem uma paixão por ti... Basta que se pronuncie
o teu nome, sobe-lhe todo o sangue á cara.
E como Carlos ria, incredulo, Ega, muito grave,
[261]
deu a sua palavra de honra. Ainda na vespera, estava-se
fallando de Carlos, e elle espreitara-a. Sem
ser um Balzac, nem uma broca de observação, tinha
a visão correcta: pois bem, lá lhe vira na face,
nos
olhos, toda a expressão de um sentimento sincero...
—Não estou a fazer romance, menino... Gosta
de ti, palavra! Tenl-a quando quiseres.
Carlos achava deliciosa aquella naturalidade mephistophelica
com que Ega o induzia a quebrar uma
infinidade de leis religiosas, moraes, sociaes, domesticas...
—Ah bem, exclamou Ega, se tu me vens com essa
blague da cartilha e do codigo,
então não fallemos mais
n'isso! Se apanhaste a sarna da virtude, com comichões
por qualquer cousa, então era uma vez um homem,
vae para a Trappa commentar o
Ecclesiastes...
—Não—disse Carlos, sentando-se n'um banco sob
as arvores, ainda com uns restos da preguiça do
terraço—o
meu motivo não é tão nobre.
Não vou lá,
porque acho o Gouvarinho um massador.
Ega teve um sorriso mudo.
—Se a gente fosse a fugir das mulheres que tem
maridos massadores...
Sentou-se ao lado de Carlos, começou a riscar em
silencio o chão areado; e sem erguer os olhos, deixando
cahir as palavras, uma a uma, com melancolia:
—Antes de hontem, toda a noite, a pé firme, das
dez á uma, estive a ouvir a historia da demanda do
Banco Nacional!
Era quasi uma confidencia, e como o desabafo dos
[262]
tedios secretos em que se debatia, n'aquelle mundo
dos Cohens, o seu temperamento de artista. Carlos
enterneceu-se.
—Meu pobre Ega, então toda a demanda?
—Toda! E a leitura do relatorio da assembléa geral!
E interessei-me! E tive opiniões!... A vida é
um inferno.
Subiram ao terraço. Damaso reoccupara a sua cadeira
de vime, e, com um canivetesinho de madreperola,
estava tratando das unhas.
—Então decidiu-se? perguntou elle logo ao Ega.
—Decidiu-se hontem! Não ha
cotillon.
Tratava-se de uma grande soirée mascarada que íam
dar os Cohens, no dia dos annos de Rachel. A
idéa d'esta festa sugerira-a o Ega, ao principio com
grandes proporções de gala artistica, a
ressurreição
historica de um sarau no tempo de D. Manuel. Depois
viu-se que uma tal festa era irrealisavel em Lisboa—e
desceu-se a um plano mais sobrio, um simples
baile
costumé, a
capricho...
—Tu, Carlos, já decidiste como vaes?
—De dominó, um severo dominó preto, como
convém
a um homem de sciencia...
—Então, exclamou Ega se se trata de sciencia,
vae de rabona e chinellas de ourello!... A sciencia
faz-se em casa e de chinellas... Nunca ninguem descobriu
uma lei do Universo mettido dentro de um
dominó... Que sensaboria, um dominó!...
Justamente a sr.
a D. Rachel desejava evitar, no
seu
baile, essa monotonia dos dominós. E em Carlos
não
[263]
havia desculpa. Não o prendiam vinte ou trinta libras;
e, com aquelle esplendido physico de cavalleiro da
Renascença,
devia ornar a sala pelo menos com um soberbo
Francisco I.
—É n'isto, ajuntava elle com fogo, que está a
belleza de uma soirée de mascaras! Não lhe
parece,
você, Damaso? Cada um deve aproveitar a sua figura...
Por exemplo, a Gouvarinho vae muito bem.
Teve uma inspiração: com aquelle cabello ruivo, o
nariz curto, as maçãs do rosto salientes,
é Margarida
de Navarra...
—Quem é Margarida de Navarra? perguntou Affonso
da Maia, apparecendo no terraço com Craft.
—Margarida, a duqueza d'Angouleme, a irmã de
Francisco I, a Margarida das Margaridas, a perola dos
Valois, a padroeira da Renascença, a sr.
a
condessa
de Gouvarinho!...
Rio muito, foi abraçar Affonso, explicou-lhe que
se discutia o baile dos Cohens. E appellou logo para
elle, para o Craft tambem, acerca do nefando dominó
de Carlos. Não estava aquelle mocetão, com os
seus
ares de homem d'armas, talhado para um soberbo
Francisco I, em toda a gloria de Marignan?
O velho deu um olhar enternecido á belleza do
neto.
—Eu te digo, John, talvez tenhas razão; mas Francisco
I, rei de França, não se póde apear de
uma tipoia
e entrar n'uma sala, só. Precisa côrte, arautos,
cavalleiros, damas, bobos, poetas... Tudo isso é
difficil.
[264]
Ega curvou-se. Sim senhor, d'accordo! Alli estava
uma maneira intelligente de comprehender o baile
dos Cohens!
—E tu, de que vaes? perguntou-lhe Affonso.
Era um segredo. Tinha a theoria de que, n'aquellas
festas, um dos encantos consistia na surpreza: dois
sujeitos por exemplo que tendo jantado juntos, de
jaquetão, no Bragança, se encontram á
noite, um na
purpura imperial de Carlos V, outro com a escopeta
de bandido da Calabria...
—Eu cá não faço segredo, disse
ruidosamente Damaso.
Eu cá vou de selvagem.
—Nú?
—Não. De Nelusko na
Africana. Oh sr. Affonso da
Maia, que lhe parece? Acha
chic?
—
Chic não exprime bem,
disse Affonso sorrindo.
Mas
grandioso, é,
decerto.
Quizeram então saber como ía Craft. Craft
não ía
de cousa nenhuma; Craft ficava nos Olivaes, de robe
de chambre.
Ega encolheu os hombros com tedio, quasi com colera.
Aquellas indifferenças pelo baile dos Cohens
feriam-n'o como injurias pessoaes. Elle estava dando
a essa festa o seu tempo, estudos na bibliotheca, um
trabalho fumegante de imaginação; e pouco a pouco
ella tomava aos seus olhos a importancia de uma
celebração
d'arte, provando o genio de uma cidade.
Os «dominós», as
abstenções, pareciam-lhe evidencias
de inferioridade de espirito. Citou então o exemplo
do Gouvarinho: alli estava um homem de
occupações,
[265]
de posição politica, nas vesperas de ser
ministro,
que não só ía ao baile, mas estudara o
seu
costume:
estudara, e ía muito bem, ía de
marquez de Pombal!
—Reclame para ser ministro, disse Carlos.
—Não o precisa, exclamou Ega. Tem todas as
condições para ser ministro: tem voz sonora, leu
Mauricio Block, está encalacrado, e é um asno!...
E no meio das risadas dos outros, elle, arrependido
de demolir assim um cavalheiro que se interessava
pelo baile dos Cohens, acudiu logo:
—Mas é muito bom rapaz, e não se dá
ares nenhuns!
É um anjo!
Affonso reprehendia-o, risonho e paternal:
—Ora tu, John, que não respeitas nada...
—O desacato é a condição do
progresso, sr. Affonso
da Maia. Quem respeita decahe. Começa-se por admirar
o Gouvarinho, vae-se a gente esquecendo, chega
a reverenciar o monarcha, e quando mal se precata
tem descido a venerar o Todo-Poderoso!... É necessario
cautela!
—Vae-te embora, John, vae-te embora! Tu és o
proprio Anti-Christo...
Ega ía responder, exhuberante e em veia—mas
dentro o tinir argentino do relogio Luiz XV, com o
seu gentil minuete, emmudeceu-o.
—O que? quatro horas!
Ficou aterrado, verificou no seu proprio relogio,
deu em redor rapidos, silenciosos apertos de mão,
desappareceu como um sopro.
Todos de resto estavam pasmados de ser tão tarde!
[266]
E assim passara a hora de ir ao Lumiar vêr as colxas
antigas das senhoras Medeiros...
—Quer você então meia hora de florete, Craft?
perguntou Carlos.
—Seja: e é necessario dar a
lição ao Damaso...
—É verdade, a lição...—murmurou
Damaso,
sem enthusiasmo, com um sorriso murcho.
A sala de esgrima era uma casa terrea, debaixo
dos quartos de Carlos, com janellas gradeadas para
o jardim, por onde resvalava, atravez das arvores,
uma luz esverdinhada. Em dias enevoados era necessario
accender os quatro bicos de gaz. Damaso seguiu,
atraz dos dois, com uma lentidão de rez desconfiada.
Aquellas lições, que elle sollicitara por amor do
chic, íam-se-lhe tornando
odiosas. E n'essa tarde,
como sempre, apenas se enchumaçou com o plastrão
d'anta, se cobriu com a caraça de arame, começou
a
transpirar, a fazer-se branco. Diante d'elle Craft,
de florete na mão, parecia-lhe cruel e bestial, com
aquelles seus hombros de Hercules sereno, o olhar
claro e frio. Os dois ferros rasparam. Damaso estremeceu
todo.
—Firme, gritou-lhe Carlos.
O desgraçado equilibrava-se sobre a perna roliça;
o florete de Craft vibrou, rebrilhou, voou sobre
elle; Damaso recuou, suffocado, cambaleando e com
o braço frouxo...
—Firme! berrava-lhe Carlos.
Damaso, exhausto, abaixou a arma.
[267]
—Então que querem vocês, é nervoso!
É por ser
a brincar... Se fosse a valer, vocês veriam.
Assim acabava sempre a lição; e ficava depois
abatido sobre uma banqueta de marroquim, arejando-se
com o lenço, pallido como a cal dos muros.
—Vou-me até casa, disse elle d'ahi a pouco, fatigado
de tanto crusar de ferro. Queres alguma cousa,
Carlinhos?
—Quero que venhas cá jantar ámanhã...
Tens o
marquez.
—
Chic a valer... Não
faltarei.
Mas faltou. E, como toda essa semana aquelle moço
ponctual não appareceu no Ramalhete, Carlos sinceramente
inquieto, julgando-o moribundo, foi uma
manhã a casa d'elle, á Lapa. Mas ahi, o creado
(um
gallego achavascado e triste, que, desde as suas
relações
com os Maias, Damaso trazia entalado n'uma
casaca e mortalmente aperreado em sapatos de verniz)
affirmou-lhe que o sr. Damasosinho estava de boa
saude, e até sahira a cavallo. Carlos veiu então
ao
tio Abrahão; o tio Abrahão tambem não
avistara, havia
dias, aquelle bom senhor Salcede,
that beautiful
gentleman! A curiosidade de Carlos levou-o ao Gremio:
no Gremio nenhum creado vira ultimamente o
sr. Salcede. «Está por ahi de lua de mel com
alguma
bella andaluza» pensou Carlos.
Chegara ao fim da rua do Alecrim quando viu o
conde de Steinbroken que se dirigia ao Aterro, a pé,
seguido da sua vittoria a passo. Era a segunda vez
que o diplomata fazia exercicio depois do seu desgraçado
[268]
ataque de entranhas. Mas não tinha
já vestigios
da doença: vinha todo rosado e loiro, muito solido na
sua sobrecasaca, e com uma bella rosa de chá na botoeira.
Declarou mesmo a Carlos que estava «más
forrte». E não lamentava os soffrimentos, porque
elles
lhe tinham dado o meio de apreciar as sympathias
que gosava em Lisboa. Estava enternecido. Sobre
tudo o cuidado de S. M.—o augusto cuidado de
S. M.—fizera-lhe melhor que «todos os drogues de
botique»! Realmente nunca as relações
entre esses
dois paizes, tão estreitamente alliados, Portugal e a
Filandia, tinham sido «màs firmes, pur assi
dizerre,
màs intimes, que durrante seu ataque de
intestinaes»!
Depois, travando do braço a Carlos, alludiu commovido
ao offerecimento de Affonso da Maia, que pozera
á sua disposição S.
ta
Olavia, para
elle se restabelecer
n'esses ares fortes e limpos do Douro. Oh,
esse convite tocara-o
au plus profond de son
cœur.
Mas, infelizmente, S.
ta Olavia era longe,
tão longe!...
Tinha de se contentar com Cintra, d'onde podia vir
todas as semanas, uma, duas vezes, vigiar a
Legação.
C'était ennuyeux, mais...
A Europa estava n'um
d'esses momentos de crise, em que homens d'estado,
diplomatas, não podiam affastar-se, gosar as menores
ferias. Precisavam estar alli, na brecha, observando,
informando...
—C'est très grave, murmurou elle, parando, com
um pavor vago no olhar azulado... C'est excessivement
grave!
[269]
Pediu a Carlos que olhasse em torno de si para a
Europa. Por toda a parte uma confusão, um
gachis.
Aqui a questão do Oriente; alem o socialismo; por
cima o Papa, a complicar tudo... Oh, très grave!
—Tenez, la France, par exemple... D'abord Gambetta.
Oh, je ne dis pas non, il est très fort, il est
excessivement fort... Mais...
Voilà! C'est très
grave...
Por outro lado os radicaes,
les nouvelles
couches...
Era excessivamente grave...
—Tenez, je vais vous dire une chose, entre nous!
Mas Carlos não escutava, nem sorria já. Do fim do
Aterro approximava-se, caminhando depressa, uma
senhora—que elle reconheceu logo, por esse andar
que lhe parecia de uma deusa pisando a terra, pela
cadellinha côr de prata que lhe trotava junto ás
saias,
e por aquelle corpo maravilhoso, onde vibrava, sob
linhas ricas de marmore antigo, uma graça quente,
ondeante e nervosa. Vinha toda vestida de escuro,
n'uma toilette de
serge muito
simples que era como
o complemento natural da sua pessoa, collando-se
bem sobre ella, dando-lhe, na sua correcção, um
ar
casto e forte; trazia na mão um guarda-sol inglez,
apertado e fino como uma cana; e toda ella, adiantando-se
assim no luminoso da tarde, tinha, n'aquelle
caes triste de cidade antiquada, um destaque
estrangeiro, como o requinte raro de civilisações
superiores.
Nenhum véo, n'essa tarde, lhe assombreava
o rosto. Mas Carlos não poude detalhar-lhe as
feições;
apenas d'entre o esplendor eburneo da carnação
sentiu
[270]
o negro profundo de dois olhos que se fixaram
nos seus. Insensivelmente deu um passo para a seguir.
Ao seu lado Steinbroken, sem vêr nada, estava
achando Bismarch assustador.
Á maneira que ella se
affastava, parecia-lhe maior, mais bella: e aquella
imagem falsa e litteraria de uma deusa marchando
pela terra prendia-se-lhe á
imaginação. Steinbroken
ficara aterrado com o discurso do Chanceller no Reichstag...
Sim, era bem uma deusa. Sob o chapéo,
n'uma fórma de trança enrolada, apparecia o tom
do
seu cabello castanho, quasi louro á luz; a cadelinha
trotava ao lado, com as orelhas direitas.
—Evidentemente, disse Carlos, Bismarck é inquietador...
Steinbroken porém já deixara Bismarck.
Steinbroken
agora atacava lord Beaconsfield.
—Il est très fort... Oui, je vous l'accorde, il est
excessivement fort... Mais voilà... Ou va-t-il?
Carlos olhava para o caes de Sodré. Mas tudo lhe
parecia deserto. Steinbroken antes de adoecer, justamente,
tinha dito ao ministro dos negocios estrangeiros
aquillo mesmo: lord Beaconsfield é muito
forte, mas para onde vae elle? O que queria elle?...
E s. ex.
a tinha encolhido os hombros... S. ex.
a
não
sabia...
—Eh, oui! Beaconsfield est très fort... Vous
avez lu son speech chez le Lord-Maire? Epatant, mon
cher, epatant!... Mais voilà... Où va-t-il?
—Steinbroken, não me parece que seja prudente
deixar-se estar aqui a arrefecer no Aterro...
[271]
—Devérras? exclamou o diplomata, passando logo
a mão rapidamente pelo estomago e pelo ventre.
E não se quiz demorar um instante mais! Como
Carlos ía recolher tambem, offereceu-lhe um logar
na vittoria até ao Ramalhete.
—Venha então jantar comnosco, Steinbroken.
—Charmé, mon cher, charmé...
A vittoria partiu. E o diplomata agazalhando as pernas
e o estomago n'um grande plaid escossez:
—Pôs, Maia, fezemos um bello passêo... Mas este
Atêrro no é deverrtido.
Não era divertido o Aterro!... Carlos achara-o
n'essa tarde o mais delicioso logar da terra!
Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas dera alguns
passos entre as arvores, viu-a logo. Mas não
vinha só; ao seu lado o marido, esticado, apurado
n'uma jaqueta de casimira quasi branca, com uma
ferradura de diamantes no setim negro da gravata,
fumava, indolente e languido, e trazia a cadellinha
debaixo do braço. Ao passar, deu um olhar surprehendido
a Carlos—como descobrindo emfim entre os
barbaros um ser de linha civilisada, e disse-lhe algumas
palavras baixo, a ella.
Carlos encontrara outra vez os seus olhos, profundos
e serios: mas não lhe parecera tão bella; trazia
uma outra toilette menos simples, de dois tons, côr de
chumbo e côr de creme, e no chapéo, d'abas grandes
á ingleza, vermelhava alguma cousa, flôr ou penna.
N'essa tarde não era a deusa descendo das nuvens
d'ouro que se enrolavam alem sobre o mar; era
[272]
uma bonita senhora estrangeira que recolhia ao seu
hotel.
Voltou ainda tres vezes ao Aterro, não a tornou
a vêr; e então envergonhou-se, sentiu-se humilhado
com este interesse romanesco que o trazia assim,
n'uma inquietação de rafeiro perdido, farejando o
Aterro, da rampa de Santos ao caes de Sodré, á
espera
de uns olhos negros e de uns cabellos louros de
passagem em Lisboa, e que um paquete da
Royal
Mail levaria uma d'essas manhãs...
E pensar que toda essa semana deixara o seu trabalho
abandonado sobre a meza! E que todas as tardes,
antes de sahir, se demorava ao espelho, estudando
a gravata! Ah, miseravel, miseravel natureza...
Ao fim d'essa semana, Carlos estava no consultorio,
já para sahir, calçando as luvas, quando o
creado entreabriu o reposteiro, e murmurou com alvoroço:
—Uma senhora!
Appareceu um menino muito pallido, de caracoes
louros, vestido de velludo preto—e atraz uma mulher,
toda de negro, com um véo justo e espesso
como uma mascara.
—Creio que vim tarde, disse ella, hesitando, junto
da porta. O sr. Carlos da Maia ía sahir...
Carlos reconheceu a Gouvarinho.
—Oh senhora condessa!
Desembaraçou logo o divan dos jornaes e das brochuras;
[273]
ella olhou um momento, como indecisa, aquelle
amplo e molle assento de serralho; depois sentou-se
á borda e de leve, com o pequeno junto de si.
—Venho trazer-lhe um doente, disse ella sem erguer
o véu, como fallando do fundo d'aquella toilette
negra que a dissimulava. Não o mandei chamar, por
que realmente pouco é, e tinha hoje de passar por
aqui... Além d'isso, o meu pequeno é muito
nervoso;
se vê entrar o medico, parece-lhe que vae morrer.
Assim é como uma visita que se faz... E não tens
medo, não é verdade, Charlie?
O pequeno não respondeu; de pé, quedo ao lado
da mamã; mimoso e debil sob os caracoes d'anjo que
lhe cahiam até aos hombros, devorava Carlos com
uns grandes olhos tristes.
Carlos poz um interesse quasi terno na sua pergunta:
—Que tem elle?
Havia dias, apparecera-lhe uma empigem no pescoço.
Além disso, por traz da orelha, tinha como
uma dureza de caroço. Aquillo inquietava-a. Ella era
forte, de uma boa raça, que dera athletas e velhos
de grande edade. Mas na familia do marido, em todos
os Gouvarinhos, havia uma anemia hereditaria. O
conde mesmo, com aquella solida apparencia, era um
achacado. E ella, receiando que a influencia debilitante
de Lisboa não conviesse a Charlie, estava com
o vago projecto de lhe fazer ir passar algum tempo
ao campo, em Formoselha, a casa da avó.
Carlos, approximando ligeiramente a cadeira, estendeu
os braços a Charlie:
[274]
—Ora venha cá o meu lindo amigo, para vermos isso.
Que magnifico cabello elle tem, senhora condessa!...
Ella sorrio. E Charlie, seriosinho, bem ensinado,
sem aquelle terror do medico de que fallara a mamã,
veio logo, desapertou delicadamente o seu grande
collarinho, e, quasi entre os joelhos de Carlos, dobrou
o pescoço macio e alvo como um lyrio.
Carlos vio apenas uma pequena mancha côr de
rosa desvanecendo-se; do «caroço»
não havia vestigio;
e então uma ligeira vermelhidão subiu-lhe ao
rosto, procurou vivamente os olhos da condessa, como
comprehendendo tudo, querendo vêr n'elles a
confissão
do sentimento que a trouxera alli com um pretexto
pueril, sob aquella toilette negra, aquelles véos
que a mascaravam...
Mas ella permaneceu impenetravel, sentada á borda
do divan, com as mãos crusadas, attenta, como esperando
as suas palavras, n'um vago susto de mãe.
Carlos abotoou o collarinho do pequeno, e disse:
—Não é absolutamente nada, minha senhora.
No entanto, fez perguntas de medico sobre o regimen
e a natureza de Charlie. A condessa, n'um tom
pesaroso, queixou-se de que a educação da
creança
não fosse, como ella desejava, mais forte e mais viril;
mas o pae oppunha-se ao que elle chamava «a
aberração ingleza», a agua fria, os
exercicios a todo
o ar, a gymnastica...
—A agoa fria e a gymnastica, disse Carlos sorrindo,
teem melhor reputação do que merecem...
É o seu unico filho, senhora condessa?
[275]
—É, tem os mimos de morgado, disse ella passando
a mão pelos cabellos louros do pequeno.
Carlos assegurou-lhe que, apezar do seu aspecto
nervoso e delicado, Charlie não devia dar-lhe cuidado;
nem havia necessidade de o exilar para os ares
de Formoselha... Depois ficaram um momento callados.
—Não imagina como me tranquillisou, disse ella,
erguendo-se, dando um geito ao veu. De mais a mais
é um gosto vir consultal-o... Não ha aqui o menor
ar de doença, nem de remedios... E realmente tem
isto muito bonito...—accrescentou, dando um olhar
lento em redor aos velludos do gabinete.
—Tem justamente esse defeito, exclamou Carlos
rindo. Não inspira nenhum respeito pela minha sciencia...
Eu estou com idêas d'alterar tudo, pôr aqui um
crocodilho empalhado, corujas, retortas, um esqueleto,
pilhas d'in-folios...
—A cella de Fausto.
—Justamente, a cella de Fausto.
—Falta-lhe Mephistopheles, disse ella alegremente,
com um olhar que brilhou sob o véo.
—O que me falta é Margarida!
A senhora condessa, com um lindo movimento, encolheu
os hombros, como duvidando discretamente;
depois tomou a mão de Charlie, e deu um passo
lento para a porta, puxando outra vez o véo.
—Como v. ex.
a se interessa pela minha
installação,
acudiu Carlos querendo retel-a, deixe-me mostrar-lhe
a outra sala.
[276]
Correu o reposteiro. Ella approximou-se, murmurou
algumas palavras, approvando a frescura dos cretones,
a harmonia dos tons claros: depois o piano
fel-a sorrir.
—Os seus doentes dançam quadrilhas?
—Os meus doentes, senhora condessa, respondeu
Carlos, não são bastante numerosos para formar
uma
quadrilha. Raras vezes mesmo tenho dois para uma
valsa... O piano está simplesmente alli para dar
idêas alegres; é como uma promessa tacita de
saude,
de futuras
soirèes, de
bonitas arias do
Trovador, em
familia...
—É engenhoso, disse ella dando familiarmente alguns
passos na sala, com Charlie collado aos vestidos.
E Carlos, caminhando ao lado d'ella:
—V. ex.
a não imagina como eu sou
engenhoso!
—Já n'outro dia me disse... Como foi que disse?
Ah! que era muito inventivo quando odiava.
—Muito mais quando amo, disse elle rindo.
Mas ella não respondeu: parára junto do piano,
remexeu um momento as musicas espalhadas, feriu
duas notas no teclado.
—É um chocalho.
—Oh, senhora condessa!
Ella seguiu, foi examinar um quadro a oleo, copiado
de Landseer—um focinho de cão de S. Bernardo,
macisso e bonacheirão, adormecido sobre as
patas. Quasi roçando-lhe o vestido, Carlos sentia o fino
perfume de verbena que ella usava sempre exageradamente:
e, entre aquelles tons negros que a cobriam,
[277]
a sua pelle parecia mais clara, mais doce á vista, e
attrahindo como um setim.
—Este é um horror, murmurou ella, voltando-se;
mas disse-me o Ega que ha quadros lindos no Ramalhete...
Fallou-me sobretudo d'um Greuze e d'um
Rubens... É pena que se não possam vêr
essas maravilhas.
Carlos lamentava tambem que uma existencia de
solteirões lhes impedisse, a elle e ao avô, de
receberem
senhoras. O Ramalhete estava tomando uma
melancolia de mosteiro. Se assim continuassem mais
alguns mezes, sem que se sentisse alli um calor de
vestido, um aroma de mulher, vinha a nascer a herva
pelos tapetes.
—É por isso, accrescentou elle muito serio, que
eu vou obrigar o avô a casar-se.
A condessa riu, os seus lindos dentes miudinhos
alvejaram na sombra do véo.
—Gosto da sua alegria, disse ella.
—É uma questão de regimen. V. ex.
a
não é alegre?
Ella encolheu os hombros, sem saber... Depois,
batendo com a ponta do guarda-sol na sua botina de
verniz que brilhava sobre o tapete claro, murmurou
com os olhos baixos, deixando ir as palavras, n'um
tom d'intimidade e de confidencia:
—Dizem que não, que sou triste, que tenho
spleen...
O olhar de Carlos seguira o d'ella, pousara-se na
botina de verniz que calçava delicadamente um pé
fino e comprido: Charlie, entretido, mexia nas teclas
do piano—e elle baixou a voz para lhe dizer:
[278]
—É que a senhora condessa tem um mau regimen.
É necessario tratar-se, voltar aqui, consultar-me...
Tenho talvez muito que lhe dizer!
Ella interrompeu-o vivamente, erguendo para elle
os olhos, d'onde se escapou um clarão de ternura
e de triumpho:
—Venha-m'o antes dizer um d'estes dias, tomar
chá comigo, ás cinco horas... Charlie!
O pequeno veiu logo dependurar-se-lhe do braço.
Carlos, acompanhando-a abaixo á rua, lamentava a
fealdade da sua escada de pedra:
—Mas vou mandar tapetar tudo para quando a senhora
condessa volte a dar-me a honra de me vir
consultar...
Ella gracejou, toda risonha:
—Ah não! O sr. Carlos da Maia prometteu-nos a
todos a saude... E naturalmente não espera que seja
eu que venha cá tomar chá comsigo...
—Oh, minha senhora, eu quando começo a esperar,
não ponho limites nenhuns ás minhas
esperanças...
Ella parou, com o pequeno pela mão, olhou para
elle, como pasmada, encantada com aquella grandiosa
certeza de si mesmo.
—Então vae por ahi além, por ahi
além...?
—Vou por ahi além, por ahi além, minha senhora!
Estavam no ultimo degrau, diante da claridade e
do rumor da rua.
—Mande-me chegar um coupé.
Um cocheiro, ao aceno de Carlos, lançou logo a tipoia.
[279]
—E agora, disse ella sorrindo, mande-o ir á egreja
da Graça.
—A senhora condessa vai beijar o pé do Senhor
dos Passos?
Ella corou de leve, murmurou:
—Ando fazendo as minhas devoções...
Depois saltou ligeiramente para o coupé—deixando
Charlie, que Carlos ergueu nos braços e lhe collocou
ao lado, paternalmente.
—Que Deus a leve em sua santa guarda, senhora
condessa!
Ella agradeceu com um olhar, um movimento de
cabeça—ambos tão doces como caricias.
Carlos subio: e, sem tirar o chapéo, ficou ainda
enrolando uma cigarrette, passeando n'aquella sala
sempre deserta, sempre fria, onde ella deixara agora
alguma cousa do seu calor e do seu aroma...
Realmente gostava d'aquella audacia d'ella—ter
vindo assim ao consultorio, toda escondida, quasi
mascarada n'uma grande toilette negra, inventando
um caroço no pescocinho são de Charlie, para o
vêr,
para dar um nó brusco e mais apertado n'aquelle
leve fio de relações que elle tão
negligentemente
deixara cahir e quebrar...
O Ega d'esta vez não phantasiara: aquelle bonito
corpo offerecia-se, tão claramente como se se despisse.
Ah! se ella fosse de sentimentos errantes e
faceis—que bella flôr a colher, a respirar, a deitar
fóra depois! Mas não: como dizia o Baptista, a
senhora
condessa nunca se tinha divertido. E o que
[280]
elle não queria era achar-se envolvido n'uma
paixão
ciosa, uma d'essas ternuras tumultuosas de mulher de
trinta annos, de que depois se desembaraçaria
difficilmente...
Nos braços d'ella o seu coração
ficaria
mudo: e apenas esgotada a primeira curiosidade,
começaria o tedio dos beijos que se não desejam,
a
horrivel massada do prazer a frio. Depois, teria de
ser intimo da casa, receber pelo hombro as palmadas
do senhor conde, ouvir-lhe a voz morosa distillando
doutrina... Tudo isto o assustava... E, todavia,
gostara d'aquella audacia! Havia ali uma pontinha
de romantismo, muito irregular, e pícante... E
devia ser deliciosamente bem feita... A sua
imaginação
despia-a, enrolava-se-lhe no setim das fórmas
onde sentia ao mesmo tempo alguma cousa de maduro
e de virginal... E outra vez, como nas primeiras noites
que os vira em S. Carlos, aquelles cabellos tentavam-n'o,
assim avermelhados, tão crespos e quentes...
Sahiu. E dera apenas alguns passos na rua Nova
do Almada, quando avistou o Damaso, n'um coupé
lançado
a grande trote, que o chamava, mandava parar,
com a face á portinhola, vermelho e radiante:
—Não tenho podido lá ir, exclamou elle,
apoderando-se-lhe
da mão, apenas Carlos se approximou, e
apertando-lh'a com enthusiasmo. Tenho andado n'um
turbilhão!.. Eu te
contarei! Um romance divino...
Mas eu te contarei!.. Tem cuidado
com a roda! Bate
lá, ó
Calção!
A parelha abalou; elle ainda se debruçou da portinhola,
agitou a mão, gritou no rumor da rua:
[281]
—Um romance divino,
chic a valer!
Justamente, dias depois, no Ramalhete, na sala de
bilhar, Craft que acabava de «bater» o marquez,
perguntou,
pousando o taco e accendendo o cachimbo:
—E noticias do nosso Damaso? Já se esclareceu
esse lamentavel desapparecimento?...
Carlos então contou como o encontrára, afogueado
e triumphante, atirando-lhe da portinhola do coupé,
em plena rua Nova do Almada, a noticia de um
romance
divino!
—Bem sei, disse o Taveira.
—Como sabes?... exclamou Carlos.
Taveira vira-o na vespera, n'um grande landeau
da Companhia, com uma esplendida mulher, muito
elegante e que parecia estrangeira...
—Ora essa! gritou Carlos. E com uma cadelinha
escoceza?
—Exactamente, uma cadelinha escoceza, um
griffon
côr de prata... Quem são?
—E um rapaz magro, de barba muito preta, com
um ar inglezado?
—Justamente... Muito correcto, um ar
sport...
Que gente
é?
—Uma gente brazileira, penso eu.
Eram os Castros Gomes, de certo! Isto parecia-lhe
espantoso. Havia apenas duas semanas que no
terraço o Damaso, de punhos fechados, bramara contra
os Castro Gomes e as suas
«desconsiderações»!
Ia pedir outros pormenores ao Taveira—mas o marquez
ergueu a voz do fundo da poltrona onde se
[282]
estirára, e quiz saber a opinião de Carlos sobre
o
grande acontecimento d'essa manhã na
Gazeta
Illustrada.—Na
Gazeta Illustrada?... Carlos
não sabia,
essa manhã não vira jornal nenhum.
—Então não lhe digam nada, gritou o marquez.
Venha a surpreza! Cá ha a
Gazeta? Manda buscar
a
Gazeta!
Taveira puxou o cordão da campainha;—e quando
o escudeiro trouxe a
Gazeta, elle
apoderou-se d'ella,
quiz fazer uma leitura solemne.
—Deixa-lhe vêr primeiro o retrato, berrou o marquez,
erguendo-se.
—Primeiro o artigo! exclamava o Taveira, defendendo-se,
com o jornal atraz das costas.
Mas cedeu, e poz o papel deante dos olhos de Carlos,
largamente, como um sudario desdobrado. Carlos
reconheceu logo o retrato do Cohen... E a prosa que
se alastrava em redor, encaixilhando a face escura
de suissas retintas, era um trabalho de seis columnas,
em estylo emplumado e cantante, celebrando até aos
céus as virtudes domesticas do Cohen, o genio financeiro
do Cohen, os ditos d'espirito do Cohen, a mobilia
das salas do Cohen; havia ainda um paragrapho
alludindo á festa proxima, ao grande sarau de
mascaras do Cohen. E tudo isto vinha assignado—J.
da E.—as iniciaes de João da Ega!
—Que tolice! exclamou Carlos, com tedio, atirando
o jornal para cima do bilhar.
—É mais que tolice, observou Craft; é uma falta
de senso moral.
[283]
O marquez protestou. Gostava do artigo. Achava-o
brilhante, e de velhaco!... E de resto em Lisboa
quem dava por uma falta de senso moral?...
—Você, Craft, não conhece Lisboa! Todo o mundo
acha isto muito natural. É intimo da casa, celebra os
donos. É admirador da mulher, lisongea o marido.
Está na logica cá da terra... Você
verá que successo
isto vae ter... E lá que o artigo está lindo,
isso está!
Tomou-o de cima do bilhar, leu alto o trecho sobre
o boudoir côr de rosa de madame Cohen: «respira-se
alli (dizia o Ega) alguma cousa de perfumado,
intimo e casto, como se todo aquelle côr de rosa
exhalasse de si o aroma que a rosa tem»!
—Isto, caramba, é lindo em toda a parte! exclamou
o marquez. Tem muito talento, aquelle diabo!
Tomara eu ter o talento que elle tem!...
—Nada d'isso impede, repetiu Craft, cachimbando
tranquillamente, que seja uma extraordinaria falta de
senso moral.
—Pura e simplesmente insensato! disse Cruges,
desenroscando-se do canto d'um sophá, para deixar
cahir ás syilabas esta pesada opinião.
O marquez investiu com elle.
—Que entende você d'isso, seu maestro? O artigo
é sublime! E saiba mais: é de finorio!
O maestro, com preguiça de argumentar, foi-se enroscar
em silencio ao outro canto do sophá.
E então o marquez, de pé e bracejando, appellou
para Carlos, e quiz saber o que é que Craft em principio
entendia por
senso moral.
[284]
Carlos, que dava pela sala passos impacientes, não
respondeu, tomou o braço do Taveira, levou-o para
o corredor.
—Dize-me uma cousa: onde viste tu o Damaso,
com essa gente? Para que lado iam?
—Iam pelo Chiado abaixo; ante-hontem, ás duas
horas... Estou convencido que iam para Cintra. Levavam
uma maleta no landau, e atraz ia uma criada n'um
coupé com uma mala maior... Aquillo cheirava a ida
a Cintra. E a mulher é divina! Que toilette, que ar,
que chic!.. É uma Venus, menino!... Como conheceria
elle aquillo?...
—Em Bordeus, n'um paquete, não sei onde!
—Eu do que gostei foi dos ares que elle se ia
dando por aquelle Chiado! Cumprimento para a direita,
cumprimento para a esquerda... A debruçar-se,
a fallar muito baixo para a mulher, com olho terno,
alardeando conquista...
—Que besta! exclamou Carlos, batendo com o pé
no tapete.
—Chama-lhe besta, disse o Taveira. Vem a Lisboa,
por acaso, uma mulher civilisada e decente, e é
elle que a conhece, e é elle que vae com ella para
Cintra! Chama-lhe besta!... Anda d'ahi, vamos á
partidinha de dominó.
Taveira ultimamente introduzira o dominó no Ramalhete—e
havia agora alli, ás vezes, partidas ardentes,
sobretudo quando apparecia o marquez. Porque
a paixão do Taveira era bater o marquez.
Mas foi necessario que o marquez acabasse de bracejar,
[285]
de desenrolar o arrazoado com que estava
acabrunhando o Craft—que do fundo da poltrona,
de cachimbo na mão e com um ar de somno, respondia
por monossyllabos. Era ainda a proposito do
artigo do Ega, da definição de
senso moral. Já tinha
fallado de Deus, de Garibaldi, até do seu famoso perdigueiro
Finorio; e agora definia a
Consciencia... Segundo
elle, era o medo da policia. Tinha o amigo
Craft visto já alguem com remorsos? Não, a
não ser no
theatro da Rua dos Condes, em dramalhões...
—Acredite você uma cousa, Craft—terminou elle
por dizer, cedendo ao Taveira que o puchava para a
meza—isto de consciencia é uma questão de
educação.
Adquire-se como as boas maneiras; soffrer em
silencio por ter trahido um amigo, aprende-se exactamente
como se aprende a não metter os dedos no
nariz. Questão d'educação... No resto
da gente é
apenas medo da cadeia, ou da bengala... Ah! vocês
querem levar outra sova ao dominó como a de sabbado
passado? Perfeitamente, sou todo vosso...
Carlos, que estivera passando de novo os olhos
pelo artigo do Ega, approximou-se tambem da meza.
E estavam sentados, remexiam as pedras—quando
á porta da sala appareceu o conde de Steinbroken,
de casaca e crachá, gran-cruz sobre o colete branco,
loiro como uma espiga, esticado e resplandecente. Tinha
jantado no Paço, e vinha acabar no Ramalhete a
sua soirée, em familia...
Então o marquez que o não via desde o famoso
ataque de intestinos, abandonou o dominó, correu
[286]
a abraçal-o ruidosamente—e sem o deixar sequer
sentar, nem estender a mão aos outros, implorou-lhe
logo uma das suas bellas canções filandezas, uma
só, d'aquellas que lhe faziam tão bem
á alma!...
—Só a
Ballada,
Steinbroken... Eu tambem não
me posso demorar, que tenho aqui a partida á espera.
Só a
Ballada!...
Vá, salta lá para dentro para o
piano, Cruges...
O diplomata sorria, dizia-se cançado, tendo já
feito
musica deliciosa no Paço com Sua Magestade. Mas
nunca sabia resistir áquelle modo folgazão do
marquez—e
lá foram para a sala do piano, de braço
dado, seguidos pelo Cruges, que levara uma eternidade
a desenroscar-se do canto do sophá. E d'ahi
a um momento, atravez dos resposteiros meio corridos,
a bella voz de barytono do diplomata espalhava
pelas salas, entre os suspiros do piano, a emballadora
melancolia da
Ballada, com a sua
lettra
traduzida em francez, que o marquez adorava, e em
que se fallava das nevoas tristes do Norte, de lagos
frios e de fadas loiras...
Taveira e Carlos, no entanto, tinham começado
uma grande partida de dominó, a tostão o ponto.
Mas Carlos n'essa noite não se interessava, jogando
distrahido, a cantarolar tambem baixo bocados tristes
da
Ballada: depois, quando
já Taveira tinha só
uma pedra diante de si, e elle estava comprando interminavelmente
as que restavam, voltou-se para o
lado, para o Craft, a perguntar se o hotel da Lawrence,
em Cintra, estava aberto todo o anno...
[287]
—A ida do Damaso para Cintra deu-te no goto,
rosnou Taveira impaciente. Anda, joga!
Carlos, sem responder, pousou mollemente uma
pedra.
—Dominó! gritou Taveira.
E em triumpho, aos pulos, contou elle mesmo os
sessenta e oito pontos que Carlos perdia.
Justamente o marquez entrava, e a victoria do Taveira
indignou-o.
—Agora nós, exclamou elle, puxando vivamente
uma cadeira. Oh Carlos, deixe-me você dar aqui
uma sova n'este ladrão. Depois jogamos de tres...
Como queres tu isto, Taveirete? A dous tostões o
ponto? Ah, queres só a tostão... Muito bem, eu te
ensinarei. Anda, desembaraça-te já d'esse
dôble-seis,
miseravel...
Carlos ficou ainda um momento olhando o jogo, com
uma cigarette apagada nos dedos, o mesmo ar distrahido:
de repente, pareceu tomar uma decisão, atravessou
o corredor, entrou na sala de musica. Steinbroken
fôra ao escriptorio vêr Affonso da Maia, e a
partida de whist; e Cruges só, entre as duas
vélas
do piano, com os olhos errantes pelo tecto, improvisava
para si, melancolicamente.
—Dize cá, Cruges, perguntou-lhe Carlos, queres
vir ámanhã a Cintra?
O teclado callou-se, o maestro ergueu um olhar
espantado! Carlos nem o deixou fallar.
—Está claro que queres, não te faz
senão bem vir
a Cintra... Ámanhã lá estou
á porta, com o break.
[288]
Mette sempre uma camisa n'uma maleta, que talvez
passemos lá a noite... Ás oito em ponto, hein?...
E
não digas nada lá dentro.
Carlos voltou para a sala, ficou a olhar a partida
de dominó. Agora havia um largo silencio. O marquez
e Taveira moviam lentamente as pedras, sem
uma palavra, com um ar de rancor surdo. Em cima
do pano verde do bilhar as bolas brancas dormiam
juntas, sob a luz que cahia dos abat-jours de porcelana.
Um som de piano, dolente e vago, passava por
vezes. E Craft, com o braço descahido ao longo da
poltrona, dormitava, beatificamente.
VIII
Na manhã seguinte, ás oito horas pontualmente,
Carlos parava o break na rua das Flores, diante do
conhecido portão da casa do Cruges. Mas o trintanario,
que elle mandara acima bater á campainha do
terceiro andar, desceu com a estranha nova de que
o sr. Cruges já não morava ali. Onde diabo morava
então o sr. Cruges? A criada dissera que o sr. Cruges
vivia agora na rua de S. Francisco, quatro portas
adiante do Gremio. Durante um momento, Carlos,
desesperado, pensou em partir só para Cintra. Depois
lá largou para a rua de S. Francisco,
amaldiçoando
o maestro, que mudara de casa sem avisar, sempre
vago, sempre tenebroso!... E era em tudo assim. Carlos
nada sabia do seu passado, do seu interior, das suas
affeições, dos seus habitos. O marquez uma noite
[290]
levara-o ao Ramalhete, dizendo ao ouvido de Carlos
que estava alli um genio. Elle encantara logo todo
o mundo pela modestia das suas maneiras e a sua
arte maravilhosa ao piano: e todo o mundo no Ramalhete
começou a tratar Cruges por
maestro, a fallar tambem
do Cruges como de um genio, a declarar que
Choppin nunca fizera obra egual á
Meditação de
Outono
do Cruges. E ninguem sabia mais nada. Fôra
pelo Damaso que Carlos conhecera a casa do Cruges
e soubera que elle vivia lá com a mãe, uma
senhora
viuva, ainda fresca, e dona de predios na Baixa.
Ao portão da rua de S. Francisco, Carlos teve de esperar
um quarto de hora. Primeiro appareceu furtivamente
ao fundo da escada uma criada em cabello,
que espreitou o break, os criados de farda, e fugiu
pelos degraus acima. Depois veiu um creado em mangas
de camisa trazer a maleta do senhor e um chaile
manta. Emfim, o maestro desceu, a correr,
quasi
aos trambulhões, com um cache-nez de seda na mão
o guarda-chuva debaixo do braço, abotoando atarantadamente
o paletot.
Quando vinha pulando os ultimos degraus, uma voz
esganiçada de mulher gritou-lhe de cima:
—Olha não te esqueçam as queijadas!
E Cruges subiu precipitadamente para a almofada,
para o lado de Carlos, rosnando que, com a
preoccupação
de se levantar tão cedo, tivera uma insomnia
abominavel...
—Mas que diabo de idéa é essa de mudar de casa,
sem avisar a gente, homem?—exclamou Carlos, atirando-lhe
[291]
para cima dos joelhos um bocado do
plaid
que o agasalhava, porque o maestro parecia arrepiado.
—É que esta casa tambem é nossa, disse
simplesmente
Cruges.
—Está claro, ahi está uma razão!
murmurou Carlos
rindo e encolhendo os hombros.
Partiram.
Era uma manhã muito fresca, toda azul e branca,
sem uma nuvem, com um lindo sol que não aquecia,
e punha nas ruas, nas fachadas das casas, barras alegres
de claridade dourada. Lisboa acordava lentamente:
as saloias ainda andavam pelas portas com
os seus ceirões d'hortaliças: varria-se de vagar
a testada
das lojas: no ar macio morria a distancia um
toque fino de missa.
Cruges, tendo acabado de arranjar o cache-nez e de
abotoar as luvas, estendeu um olhar á esplendida
parelha baia reluzindo como um setim sob o faiscar
de prata dos arreios, aos criados com os seus ramos
nas librés, a todo aquelle luxo correcto e rolando em
cadencia—onde fazia mancha o seu paletot: mas o
que o impressionou foi o aspecto resplandecente de
Carlos, o olhar acceso, as bellas côres, o bello
riso,
o quer que fosse de vibrante e de luminoso, que, sob
o seu simples veston de xadrezinho castanho, n'aquella
almofada burgueza de break, lhe dava um arranque
de heroe jovial, lançando o seu carro de guerra...
Cruges farejou uma aventura, soltou logo a pergunta
que desde a vespera lhe ficara nos labios.
[292]
—Com franqueza, aqui para nós, que idéa foi esta
de ir a Cintra?
Carlos gracejou. O maestro jurava o segredo pela
alma melodiosa de Mozart, e pelas
fugas de Bach?
Pois bem, a idéa era vir a Cintra, respirar o ar de
Cintra, passar o dia em Cintra... Mas, pelo amor de
Deus, que o não revelasse a ninguem!
E accrescentou, rindo:
—Deixa-te levar, que não te has de arrepender...
Não, Cruges não se arrependia. Até
achava delicioso
o passeio, gostara sempre muito de Cintra...
Todavia não se lembrava bem, tinha apenas uma
vaga idéa de grandes rochas e de nascentes d'aguas
vivas... E terminou por confessar que desde os nove
annos não voltara a Cintra.
O que! o maestro não conhecia Cintra?... Então
era necessario ficarem lá, fazer as
peregrinações
classicas, subir á Pena, ir beber agua á Fonte
dos
Amores, barquejar na varzea...
—A mim o que me está a appetecer muito é
Sitiaes;
e a manteiga fresca.
—Sim, muita manteiga, disse Carlos. E burros,
muitos burros... Emfim, uma ecloga!
O break rodava na estrada de Bemfica: iam passando
muros enramados de quintas, casarões tristonhos
de vidraças quebradas, vendas com o seu
masso de cigarros á porta dependurado de uma
guita: e a menor arvore, qualquer bocado de relva
com papoulas, um fugitivo longe de collina verde,
[293]
encantavam Cruges. Ha que tempos elle não via o
campo!
Pouco a pouco o sol elevara-se. O maestro desembaraçou-se
do seu grande cache-nez. Depois, encalmado,
despiu o paletot—e declarou-se morto de fome.
Felizmente estavam chegando á Porcalhota.
O seu vivo desejo seria comer o famoso coelho
guisado,—mas, como era cedo para esse acepipe, decidiu-se,
depois de pensar muito, por uma bella pratada
de ovos com chouriço. Era uma cousa que não
provava havia annos, e que lhe daria a sensação
de
estar na aldêa... Quando o patrão, com um ar
importante
e como fazendo um favor, pousou sobre a
meza sem toalha a enorme travessa com o petisco,
Cruges esfregou as mãos, achando aquillo deliciosamente
campestre.
—A gente em Lisboa estraga a saude! disse elle.
puxando para o prato uma montanha de ovo e chouriço.
Tu não tomas nada?...
Carlos, para lhe fazer companhia, acceitou uma chavena
de café.
D'ahi a pouco Cruges, que devorava, exclamou com
a bocca cheia:
—O Rheno tambem deve ser magnifico!
Carlos olhou-o espantado e rindo. A que vinha
agora alli o Rheno?... É que o maestro, desde que
sahira as portas, estava cheio de idéas de viagens e
de paisagens; queria vêr as grandes montanhas onde
ha neve, os rios de que se falla na Historia. O seu
ideal seria ir á Allemanha, percorrer a pé, com
uma
[294]
mochilla, aquella patria sagrada dos seus deuses, de
Beethoven, de Mozart, de Wagner...
—Não te appetecia mais ir á Italia? perguntou
Carlos accendendo o charuto.
O maestro esboçou um gesto de desdem, teve uma
das suas phrases sybillinas:
—Tudo contradanças!...
Carlos então fallou de um certo plano de ir á
Italia,
com o Ega, no inverno. Ir á Italia, para o Ega, era
uma hygiene intellectual: precisava calmar aquella
imaginação tumultuosa de nervoso peninsular entre
a placida magestade dos marmores...
—O que elle precisava antes de tudo era chicote,
rosnou o Cruges.
E voltou a fallar do caso da vespera, do famoso artigo
da
Gazeta. Achava aquillo, como elle
dissera, pura
e simplesmente insensato, e de uma sabujice indecorosa.
E o que o affligia é que o Ega, com aquelle talento,
aquella verve fumegante, não fizesse nada...
—Ninguem faz nada, disse Carlos espreguiçando-se.
Tu, por exemplo, que fazes?
Cruges, depois de um silencio, rosnou encolhendo
os hombros:
—Se eu fizesse uma boa opera, quem é que m'a
representava?
—E se o Ega fizesse um bello livro, quem é que
lh'o lia?
O maestro terminou por dizer:
—Isto é um paiz impossivel... Parece-me que tambem
vou tomar café.
[295]
Os cavallos tinham descançado, Cruges pagou a
conta, partiram. D'ahi a pouco entravam na charneca
que lhes pareceu infindavel. D'ambos os lados, a perder
de vista, era um chão escuro e triste; e por
cima um azul sem fim, que n'aquella solidão parecia
triste tambem. O trote compassado dos cavallos batia
monotonamente a estrada. Não havia um rumor:
por vezes um passaro cortava o ar, n'um vôo brusco,
fugindo do ermo agreste. Dentro do break um dos criados
dormia; Cruges, pesado dos ovos com chouriço,
olhava, vaga e melancolicamente, as ancas lustrosas
dos cavallos.
Carlos, no entanto, pensava no motivo que o trazia
a Cintra. E realmente não sabia bem porque vinha:
mas havia duas semanas que elle não avistava certa
figura que tinha um passo de deusa pisando a terra,
e que não encontrava o negro profundo de dois
olhos que se tinham fixado nos seus: agora suppunha
que ella estava em Cintra, corria a Cintra. Não
esperava nada, não desejava nada. Não sabia se a
veria, talvez ella tivesse já partido. Mas vinha: e era
já delicioso o pensar n'ella assim por aquella estrada
fóra, penetrar, com essa doçura no
coração, sob as
bellas arvores de Cintra... Depois, era possivel
que d'ahi a pouco, na velha Lawrence, elle a cruzasse
de repente no corredor, roçasse talvez o seu
vestido, ouvisse talvez a sua voz. Se ella lá estivesse,
decerto viria jantar á sala, aquella sala que
elle conhecia tão bem, que já lhe estava
appetecendo
tanto, com as suas pobres cortininhas de cassa, os
[296]
ramos toscos sobre a meza, e os dois grandes candieiros
de latão antigo... Ella entraria alli, com o
seu bello ar claro de Diana loira; o bom Damaso,
apresentaria o seu amigo Maia; aquelles olhos negros
que elle vira passar de longe como duas estrellas,
pousariam mais de vagar nos seus; e, muito simplesmente,
á ingleza, ella estender-lhe-hia a mão...
—Ora até que finalmente! exclamou Cruges, com
um suspiro de allivio e respirando melhor.
Chegavam ás primeiras casas de Cintra, havia já
verduras na estrada, e batia-lhes no rosto o primeiro
sopro forte e fresco da serra.
E a passo, o break foi penetrando sob as arvores
do Ramalhão. Com a paz das grandes sombras, envolvia-os
pouco a pouco uma lenta e emballadora sussurração
de ramagens, e como o diffuso e vago murmurio
de agoas correntes. Os muros estavam cobertos
de heras e de musgos: atravez da folhagem, faiscavam
longas flechas de sol. Um ar subtil e avelludado circulava,
rescendendo ás verduras novas; aqui e além,
nos ramos mais sombrios, passaros chilreavam de
leve; e n'aquelle simples bocado de estrada, todo salpicado
de manchas do sol, sentia-se já, sem se vêr,
a religiosa solemnidade dos espessos arvoredos, a
frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que
cae das penedias e o repouso fidalgo das quintas de verão...
Cruges respirava largamente, voluptuosamente.
—A Lawrence onde é? Na serra?—perguntou elle
com a idéa repentina de ficar alli um mez n'aquelle
paraiso.
[297]
—Nós não vamos para a Lawrence, disse Carlos
sahindo bruscamente do seu silencio, e espertando
os cavallos. Vamos para o Nunes, estamos lá muito
melhor!
Era uma idéa que lhe viera de repente, apenas
passara as primeiras casas de S. Pedro, e o break
começara a rolar n'aquellas estradas onde a cada
momento elle a poderia encontrar. Tomara-o uma
timidez, a que se misturava um laivo de orgulho,
o receio melindrado de ser indiscreto, seguindo-a assim
a Cintra, ainda que ella o não reconhecesse, indo
installar-se sob as mesmas telhas, apoderando-se de
um logar á mesma meza... E ao mesmo tempo repugnou-lhe
a idéa de lhe ser apresentado pelo Damaso:
via-o já, bochechudo e vestido de campo, a
esboçar
um gesto de ceremonia, a mostrar o
seu amigo
Maia,
a tratal-o por tu, affectando intimidades com ella, cocando-a
com um olho terno... Isto seria intoleravel.
—Vamos para o Nunes, que se come melhor!
Cruges não respondeu, mudo, enlevado, recebendo
como uma impressão religiosa de todo aquelle esplendor
sombrio de arvoredo, dos altos fragosos da
serra entrevistos um instante lá em cima nas nuvens,
d'esse aroma que elle sorvia deliciosamente, e do sussurro
doce de aguas descendo para os valles...
Só ao avistar o Paço descerrou os labios:
—Sim senhor, tem
cachet!
E foi o que mais lhe agradou—este macisso e
silencioso palacio, sem florões e sem torres,
patriarchalmente
[298]
assentado entre o casario da villa, com as
suas bellas janellas manuelinas que lhe fazem um
nobre semblante real, o valle aos pés, frondoso e
fresco, e no alto as duas chaminés collossaes, disformes,
resumindo tudo, como se essa residencia fosse
toda ella uma cosinha talhada ás
proporções de uma
gula de Rei que cada dia come todo um Reino...
E apenas o break parou á porta do Nunes, foi-lhe
ainda dar um olhar, timido e de longe—receiando
alguma palavra rude da sentinella.
Carlos no entanto, saltando logo da almofada, tomou
á parte o criado do hotel, que descera a recolher
as maletas.
—Vossê conhece o sr. Damaso Salcede? Sabe se
elle está em Cintra?
O creado conhecia muito bem o sr. Damaso Salcede.
Ainda na vespera pela manhã o vira entrar defronte,
no bilhar, com um sujeito de barbas pretas...
Devia estar na Lawrence, porque só com raparigas e
em pandiga é que o sr. Damaso vinha para o Nunes.
—Então, depressa, dous quartos! exclamou Carlos,
com uma alegria de creança, certo agora que
ella estava
em Cintra. E uma sala particular, só para nós,
para almoçarmos!
Cruges, que se approximava, protestou contra esta
sala solitaria. Preferia a meza redonda. Ordinariamente
na meza redonda encontram-se typos...
—Bem, exclamou Carlos, rindo e esfregando as
mãos, põe o almoço na sala de jantar,
põe-n'o até
na Praça... E muita manteiga fresca para o sr. Cruges!
[299]
O cocheiro levou o break, o creado sobraçou as
maletas. Cruges, enthusiasmado com Cintra, rompeu
pela escada acima, a assobiar—conservando aos hombros
o chaile-manta, de que se não queria separar,
porque lh'o emprestara a mamã. E apenas chegou
á porta da sala do jantar, estacou, ergueu os
braços,
teve um grito.
—Oh Euzebiosinho!
Carlos correu, olhou... Era elle, o viuvo, acabando
de almoçar, com duas raparigas hespanholas.
Estava no topo da meza, como presidindo, diante
de uns restos de pudim e de pratos de fructa, amarellado,
despenteado, carregado de luto, com a larga
fita das lunetas pretas passada por traz da orelha, e
uma rodela de taffetá negro sobre o pescoço
tapando
alguma espinha rebentada.
Uma das hespanholas era um mulherão trigueiro,
com signaes de bexigas na cara; a outra muito franzina,
de olhos meigos, tinha uma roseta de febre, que
o pó de arroz não desfarçava. Ambas
vestiam de
setim preto, e fumavam cigarro. E na luz e na frescura
que entrava pela janella, pareciam mais gastas,
mais molles, ainda pegajosas da lentura morna dos
colxões, e cheirando a bafio de alcova. Pertencendo
á sucia havia um outro sujeito, gordo, baixo, sem
pescoço, com as costas para a porta e a cabeça
sobre
o prato, babujando uma metade de laranja.
Durante um momento, Euzebiosinho ficou interdito
com o garfo no ar; depois lá se ergueu, de guardanapo
na mão, veiu apertar os dedos aos amigos, balbuciando
[300]
logo uma justificação embrulhada, a ordem
do medico para mudar de ares, aquelle rapaz que o
acompanhara, e que quizera trazer raparigas... E
nunca parecera tão funebre, tão relles, como
resmungando
estas cousas hypocritas, encolhido á sombra
de Carlos.
—Fizeste muito bem, Eusebiosinho, disse Carlos
por fim, batendo-lhe no hombro. Lisboa está um horror,
e o amor é cousa doce.
O outro continuava a justificar-se. Então a hespanhola
magrita, que fumava, afastada da meza e com
a perna traçada, elevou a voz, perguntou ao Cruges
se elle não lhe fallava. O maestro affirmou-se um momento,
e partiu de braços abertos para a sua amiga
Lolla. E foi, n'esse canto da meza, uma grulhada
em hespanhol, grandes apertos de mão, e
hombre, que
no se le ha visto! e mira, que me he accordado de ti!
e
caramba, que reguapa estas...
Depois a Lolla, tomando
um arsinho espremido, apresentou o outro
mulherão, la señorita Concha...
Vendo isto, impressionado com tanta familiaridade—o
sujeito obeso, que apenas levantara um instante
a cabeça do prato, decidiu-se a examinar mais attentamente
os amigos do Euzebio: crusou o talher, limpou
com o guardanapo a bocca, a testa e o pescoço,
encavallou laboriosamente no nariz uma grande luneta
de vidros grossos, e erguendo a face larga, balofa e
côr de cidra, examinou detidamente Cruges, e depois
Carlos, com uma impudencia tranquilla.
Eusebiosinho apresentou o seu amigo Palma: e o
[301]
seu amigo Palma, ouvindo o nome conhecido de Carlos
da Maia, quiz logo mostrar diante de um gentleman,
que era um gentleman tambem. Arrojou para
longe o guardanapo, arredou para fóra a cadeira; e
de pé, estendendo a Carlos os dedos molles e de
unhas roidas, exclamou, com um gesto para os restos
da sobremeza:
—Se. v. ex.
a é servido, é
sem ceremonia... Que
isto quando a gente vem a Cintra, é para abrir o
appetite e fazer bem á barriga...
Carlos agradeceu, e ia retirar-se. Mas Cruges, que
se animava e gracejava com a Lolla, fez tambem do
outro lado da meza a sua apresentação:
—Carlos, quero que conheças aqui a lindissima
Lolla, relações antigas, e a señorita
Concha, que eu
tive agora o prazer...
Carlos saudou respeitosamente as damas.
O mulherão da Concha rosnou seccamente os
buenos
dias: parecia de mau humor, pesada do
almoço,
amodorrada para alli, sem dizer uma palavra, com os
cotovellos fincados na meza, os olhos pestanudos meio
cerrados, ora fumando, ora palitando os dentes. Mas
a Lolla foi amavel, fez de senhora, ergueu-se, offereceu
a Carlos a mãosita suada. Depois retomando o
cigarro, dando um geito ás pulseiras de ouro, declarou
com um requebro d'olhos, que conhecia de ha
muito Carlos...
—No ha estado ustêd con Encarnacion?
Sim, Carlos tivera essa honra... E que era feito
d'ella, d'essa bella Encarnacion?
[302]
A Lolla sorriu com finura, tocou no cotovello do
maestro. Não acreditava que Carlos ignorasse o que
era feito da Encarnacion... Emfim, terminou por dizer
que a Encarnacion estava agora com o Saldanha.
—Mas olhe que não é com o duque de Saldanha!
exclamou Palma, que se conservara de pé, com a
bolsa do tabaco aberta sobre a meza, fazendo um
grande cigarro.
A Lolita, com um modo secco, replicou que o Saldanha
não seria duque, mas era um
chico muy
decente...
—Olha, disse o Palma lentamente, de cigarro na
bocca e tirando a isca da algibeira, duas boas bofetadas
na cara lhe dei eu ainda não ha tres semanas...
Pergunta ao Gaspar, o Gaspar assistiu...
Foi até no Montanha... Duas bofetadas que lhe foi
logo o chapéo parar ao meio da rua... O sr. Maia
ha de conhecer o Saldanha... Ha de conhecer, que
elle tambem tem um carrito e um cavallo.
Carlos fez um gesto indicando que não; e despedia-se
de novo, saudando as damas, quando Cruges o
chamou ainda, retendo-o mais um instante, em quanto
satisfazia uma curiosidade: queria saber qual d'aquellas
meninas era a
esposa do amigo
Eusebio.
Assim interpellado, o viuvo encordoou, rosnou com
uma voz morosa, sem erguer as lunetas da laranja que
descascava, que estava alli de passeio, não tinha
esposa, e ambas aquellas meninas pertenciam ao amigo
Palma...
[303]
E ainda elle mascava as ultimas palavras, quando
Concha, que digeria de perna estendida, se endireitou
bruscamente como se fosse saltar, atirou um murro
á borda da meza, e com os olhos chammejantes, desafiou
o Eusebio a que repetisse aquillo! Queria que
elle repetisse! Queria que dissesse se tinha vergonha
d'ella, e de dizer que a tinha trazido a Cintra!... E
como o Eusebio, já enfiado, tentava gracejar, fazer-lhe
uma festa—ella despropositou, atirou-lhe os peiores
nomes, dando sempre punhadas na meza, com
uma furia que lhe torcia a bocca, lhe punha duas
manchas de sangue no carão trigueiro. A Lolita, vexada,
puchava-lhe pelo braço: a outra deu-lhe um
repellão;
e, mais excitada com a estridencia da propria
voz, esvasiou-se de toda a bilis, chamou-lhe porco,
accusou-o de forreta, usou-o como um trapo vil.
Palma afflicto, debruçado sobre a meza, exclamava
n'um tom ancioso:
—Ó Concha, escuta lá!... Ouve lá!...
Concha, eu
te explico...
De repente, ella ergueu-se, a cadeira tombou para
o lado: e o mulherão abalou pela sala fóra, a
grande
cauda de setim varreu desabridamente o soalho, ouviu-se
dentro estalar uma porta. No chão ficara caindo
um pedaço da mantilha de renda.
O creado que entrava do outro lado com a cafeteira
estacou, afiando o olho curioso, farejando o escandalo;
depois, calado e seccamente, foi servindo em
roda o café.
Durante um momento houve um silencio. Apenas
[304]
porém o criado sahiu—a Lolita e o Palma, agitados
mas abafando a voz, atacaram o Eusebiosinho. Elle
portara-se muito mal! Aquillo não fôra de
cavalheiro!
Tinha trazido a rapariga a Cintra, devia-a respeitar,
não a ter renegado assim, á bruta, diante de
todos...
—
Esto no se hace, dizia a Lolita,
de pé, gesticulando,
com os olhos brilhantes, voltada para Carlos,
ha sido una cosa muy
fêa!..
E como o Cruges lamentava, sorrindo, ter sido a
causa involuntaria da catastrophe—ella baixou a voz,
contou que a Concha era uma furia, viera a Cintra
com pouca vontade, e desde manhã estava de
muy
malo humor... Pero lo de Silbeira habia sido una
gran pulhice...
Elle, coitado, com a cabeça cahida e as orelhas em
braza, remexia desoladamente o seu café; não se
lhe
viam os olhos escondidos pelas lunetas pretas, mas
percebia-se-lhe o grosso soluço que lhe affogava a garganta.
Então Palma pouzou a chavena, lambeu os beiços,
e de pé no meio da sala, com a face luzidia, o
collete desabotoado, fez n'um tom entendido o resumo
d'aquelle desgosto.
—Tudo provém d'isto, e desculpe-me você dizel-o,
Silveira: é que você não sabe tratar
com hespanholas!
A esta cruel palavra o viuvo succumbiu. A colher
cahiu-lhe dos dedos. Ergueu-se, acercou-se de Carlos
e de Cruges, como refugiando-se n'elles, vindo reconfortar-se
ao calor da sua amizade,—e desabafou,
[305]
estas palavras angustiosas escaparam-se-lhe dos labios:
—Vejam vocês! vem a gente a um sitio d'estes
para gosar um bocado de poesia, e no fim é uma
d'estas!...
Carlos bateu-lhe melancolicamente no hombro:
—A vida é assim, Eusebiosinho.
Cruges fez-lhe uma festa nas costas:
—Não se póde contar com prazeres, Silveirinha.
Mas Palma, mais pratico, declarou que era forçoso
arranjarem-se as cousas. Virem a Cintra, para questões
e amuos, isso não! N'aquellas pandegas queria-se
harmonia, chalaça, e gosar. Couces, não.
Então
ficava-se em Lisboa, que era mais barato.
Chegou-se a Lolla, passou-lhe os dedos pela face,
com amor:
—Anda Lolita, vae tu lá dentro á Concha,
dize-lhe
que se não faça tola, que venha tomar
café... Anda,
que tu sabe-l'a levar... Dize-lhe que peço eu!
Lolita esteve um momento escolhendo duas boas
laranjas, foi dar um geito ao cabello diante do espelho,
apanhou a cauda—e sahiu, atirando a Carlos, ao
passar, um olhar e um sorrisinho.
Apenas ficaram sós, Palma voltou-se para o Eusebio,
e deu-lhe conselhos muito serios sobre o systema
de tratar hespanholas. Era necessario leval-as
por bons modos; por isso é que ellas se pellavam por
portuguezes, porque lá em Hespanha era á
bordoada...
Emfim, elle não dizia que em certos casos,
duas boas bolachas, mesmo um bom par de bengaladas,
[306]
não fossem uteis... Sabiam, por exemplo, os
amigos, quando se devia bater? Quando ellas não gostavam
da gente, e se faziam ariscas. Então, sim. Então
zás, tapona, que ellas ficavam logo pelo beiço...
Mas depois bons modos, delicadeza, tal qual como
com francezas...
—Acredite você isto, Silveira. Olhe que eu tenho
experiencia. E o sr. Maia que lhe diga se isto não
é
verdade, elle que tem tambem experiencia e sabe viver
com hespanholas!
E isto foi dito com tanto calor, tanto respeito—que
Cruges desatou a rir, fez rir Carlos tambem.
O sr. Palma, um pouco chocado, compoz mais as
lunetas, e olhou para elles:
—Os senhores riem-se? Imaginam que eu que estou
a mangar? Olhem que eu comecei a lidar com
hespanholas aos quinze annos! Não, escusam de rir,
que n'isso ninguem me ganha! Lá o que se chama ter
geito para hespanholas, cá o meco! E, vamos lá,
que
não é facil! É necessario ter um certo
talento!...
Olhem, o Herculano é capaz de fazer bellos artigos e
estylo catita... Agora tragam-n'o cá para lidar com
hespanholas e veremos! Não dá meia...
Eusebiosinho no entanto fôra duas vezes escutar
á porta. Todo o hotel cahira n'um grande silencio,
a Lolita não voltava. Então Palma aconselhou um
grande passo:
—Vá você lá dentro, Silveira, entre
pelo quarto,
e assim sem mais nem menos, chegue-se ao pé
d'ella...
[307]
—E tapona? perguntou Cruges, muito seriamente,
gosando o Palma.
—Qual tapona! Ajoelhe e peça perdão... N'este
caso é pedir perdão... E como pretexto, Silveira,
leve-lhe você mesmo o café.
Eusebiosinho, com um olhar ancioso e mudo, consultou
os seus amigos. Mas o seu coração já
decidira:
e d'ahi a um momento, com o pedaço de mantilha
n'uma das mãos, a chavena de café na outra,
enfiado
e commovido, lá partia a passos lentos pelo corredor
a pedir perdão á Concha.
E, logo atraz d'elle, Carlos e Cruges deixaram a
sala, sem se despedirem do sr. Palma—que de resto,
indifferente tambem, já se accommodara à meza a
preparar regaladamente o seu grog.
Eram duas horas quando os dous amigos sahiram
emfim do hotel, a fazer esse passeio a Sitiaes—que
desde Lisboa tentava tanto o maestro. Na praça, por
defronte das lojas vasias e silenciosas, cães vadios
dormiam ao sol: atravez das grades da cadêa os presos
pediam esmola. Creanças, enxovalhadas e em farrapos,
garotavam pelos cantos; e as melhores casas
tinham ainda as janellas fechadas, continuando o seu
somno de inverno, entre as arvores já verdes. De vez
em quando apparecia um bocado da serra, com a sua
muralha de ameias correndo sobre as penedias, ou
via-se o castello da Pena, solitario, lá no alto. E por
[308]
toda a parte o luminoso ar de abril punha a doçura
do seu velludo.
Defronte do hotel da Lawrence, Carlos retardou o
passo, mostrou-o ao Cruges.
—Tem o ar mais sympathico, disse o maestro.
Mas valeu muito a pena ir para o Nunes, só para
vêr aquella scena... E então com quê o
sr. Carlos
da Maia tem experiencia de hespanholas?
Carlos não respondeu, os seus olhos não se
despegavam
d'aquella fachada banal, onde só uma janella
estava aberta com um par de botinas de duraque
seccando ao ar. Á porta, dous rapazes inglezes, ambos
de knicker-bokers, cachimbavam em silencio; e
defronte, sentados sobre um banco de pedra, dous
burriqueiros ao lado dos burros, não lhes tiravam o
olho de cima, sorrindo-lhes, cocando-os como uma
presa.
Carlos ia seguir, mas pareceu-lhe ouvir, distante
e melancolico, sahindo do silencio do hotel, um vago
som de flauta; e parou ainda, remexendo as suas
recordações, quasi certo de Damaso lhe ter dito
que
a bordo Castro Gomes tocava flauta...
—Isto é sublime! exclamou do lado o Cruges, commovido.
Parara diante da grade d'onde se domina o valle.
E d'ali olhava, enlevadamente, a rica vastidão de
arvoredo cerrado, a que só se veem os cimos redondos,
vestindo um declive da serra como o musgo
veste um muro, e tendo aquella distancia, no brilho
da luz, a suavidade macia de um grande musgo escuro.
[309]
E n'esta espessura verde-negra havia uma frontaria
de casa que o interessava, branquejando, affogada
entre a folhagem, com um ar de nobre repouso,
debaixo de sombras seculares... Um momento teve
uma idéa de artista: desejou habital-a com uma mulher,
um piano e um cão da Terra-nova.
Mas o que o encantava era o ar. Abria os braços,
respirava a tragos deliciosos:
—Que ar! Isto dá saude, menino! Isto faz reviver!...
Para o gosar mais docemente, sentou-se adiante,
n'um bocado de muro baixo, defronte de um alto terraço
gradeado, onde velhas arvores assombreiam
bancos de jardim, e estendem sobre a estrada a frescura
das suas ramagens, cheias do piar das aves. E
como Carlos lhe mostrava o relogio, as horas que
fugiam para ir vêr o palacio, a Pena, as outras bellezas
de Cintra—o maestro declarou que preferia estar
ali, ouvindo correr a agua, a vêr monumentos caturras...
—Cintra não são pedras velhas, nem cousas
gothicas...
Cintra é isto, uma pouca de agua, um bocado
de musgo... Isto é um paraiso!...
E, n'aquella satisfação que o tornava loquaz,
acrescentou,
repetindo a sua chalaça:
—E v. ex.
a deve sabel-o, sr. Maia, porque tem
experiencia de hespanholas!...
—Poupa-me, respeita a natureza, murmurou Carlos,
que riscava pensativamente o chão com a bengala.
[310]
Ficaram callados. Cruges agora admirava o jardim,
por baixo do muro em que estavam sentados. Era
um espesso ninho de verdura, arbustos, flores e arvores,
suffocando-se n'uma prodigalidade de bosque silvestre,
deixando apenas espaço para um tanquesinho
redondo, onde uma pouca de agua, immovel e gelada,
com dous ou tres nenufares, se esverdinhava
sob a sombra d'aquella ramaria profusa. Aqui e alem,
entre a bella desordem da folhagem, distinguiam-se
arranjos de gosto burguez, uma volta de ruasita estreita
como uma fita, faiscando ao sol, ou a banal palidez
de um gesso. N'outros recantos, aquelle jardim
de gente rica, exposto ás vistas, tinha retoques
pretenciosos de estufa rara, aloes e cactos, braços
aguardasolados de auraucarias erguendo-se d'entre
as agulhas negras dos pinheiros bravos, laminas de
palmeira, com o seu ar triste de planta exilada, roçando
a rama leve e perfumada das olaias floridas
de côr de rosa. A espaços, com uma
graça discreta,
branquejava um grande pé de margaridas; ou em
torno de uma rosa, solitaria na sua haste, palpitavam
borboletas aos pares.
—Que pena que isto não pertença a um artista!
murmurou o maestro. Só um artista saberia amar
estas flores, estas arvores, estes rumores...
Carlos sorriu. Os artistas, dizia elle, só amam na
natureza os effeitos de linha e côr; para se interessar
pelo bem-estar de uma tulipa, para cuidar de que
um craveiro não soffra sede, para sentir magoa de
que a geada tenha queimado os primeiros rebentões
[311]
das acacias—para isso só o burguez, o burguez que
todas as manhãs desce ao seu quintal com um
chapéo
velho e um regador, e vê nas arvores e nas plantas
uma outra familia muda, por que elle é tambem responsavel...
Cruges, que escutara distrahidamente, exclamou:
—Diabo! É necessario que não me
esqueçam as
queijadas!
Um som de rodas interrompeu-os, uma caleche
descoberta desembocou a trote do lado de Sitiaes.
Carlos ergueu-se logo, certo de que era
ella, e que
elle ia vêr os seus bellos olhos brilhar e fugir como
duas estrellas. A caleche passou, levando um ancião
de barbas de patriarcha, e uma velha ingleza com
o regaço cheio de flores, e o
véo azul fluctuando ao
ar. E logo atraz, quasi no pó que as rodas tinham erguido,
appareceu, caminhando pensativamente, de
mãos atraz das costas, um homem alto, todo de preto,
com um grande chapéo Panamá sobre os olhos. Foi
Cruges que reconheceu os longos bigodes romanticos,
que gritou:
—Olha o Alencar! Oh! grande Alencar!...
Durante um momento, o poeta ficou assombrado,
com os braços abertos, no meio da estrada. Depois,
com a mesma effusão ruidosa, apertou Carlos contra
o coração, beijou o Cruges na face—porque
conhecia
Cruges desde pequeno, Cruges era para elle como
um filho. Caramba! Eis ahi uma surpreza que elle
não trocava pelo titulo de duque! Ora o alegrão
de os
vêr ali! Como diabo tinham elles vindo ali parar?
[312]
E não esperou a resposta, contou elle logo a sua
historia. Tivera um dos seus ataques de garganta,
com uma ponta de febre, e o Mello, o bom Mello,
recommendara-lhe mudança d'ares. Ora elle, bons
ares, só comprehendia os de Cintra: porque alli
não
eram só os pulmões que lhe respiravam bem, era
tambem o coração, rapazes!... De sorte que viera
na vespera, no omnibus.
—E onde estás tu, Alencar? perguntou logo Carlos.
—Pois onde queres tu que eu esteja, filho? Lá estou
com a minha velha Lawrence. Coitada! está bem
velha! mas para mim é sempre uma amiga, é quasi
uma irmã!... E vocês, que
diabo? Para onde vão
vocês, com essas flores nas lapellas?
—A Sitiaes. Vou mostrar Sitiaes ao
maestro.
Então tambem elle voltava a
Sitiaes! Não tinha
nada que fazer senão sorver bom ar, e scismar... Toda
a manhã andara alli, vagamente, pendurando sonhos
dos ramos das arvores. Mas agora já os não
largava;
era mesmo um dever ir elle proprio fazer ao maestro
as honras de Sitiaes...
—Que aquillo é sitio muito meu, filhos! Não ha
alli arvore que me não conheça... Eu
não vos quero
começar já a impingir versos; mas emfim,
vocês lembram-se
de uma cousa que eu fiz a Sitiaes, e de que
por ahi se gostou...
Quantos luares eu lá vi!
Que doces manhãs d'abril!
E os ais que soltei alli
Não foram sete, mas mil!
[313]
Pois então já vocês vêem,
rapazes, que tenho razão
para conhecer Sitiaes...
O poeta lançou ao ar um vago suspiro, e durante um
instante caminharam todos tres callados.
—Dize-me uma cousa, Alencar, perguntou Carlos
baixo, parando, e tocando no braço do poeta. O Damaso
está na Lawrence?
Não, que elle o tivesse visto. Verdade seja que na
vespera, apenas chegara, fôra-se deitar, fatigado; e
n'essa manhã almoçara só com dois
rapazes inglezes.
O unico animal que avistara fôra um lindo cãosinho
de
luxo, ladrando no corredor...
—E vocês onde estão?
—No Nunes.
Então o poeta parando de novo, contemplando Carlos
com sympathia:
—Que bem que fizeste em arrastar cá o maestro, filho!...
Quantas vezes eu tenho dito áquelle diabo, que se
mettesse no omnibus, viesse passar dous dias a Cintra.
Mas ninguem o tira de martelar o piano. E olha tu
que mesmo para a musica, para compor, para entender
um Mozart, um Choppin, é necessario ter visto
isto, escutado este rumor, esta melodia da ramagem...
Baixou a voz, apontando para o maestro, que caminhava
adiante, enlevado:
—Tem muito talento, tem muita idéa melodica!...
Olha que andei com aquillo ás cabritas... E a
mãe,
menino, foi muitissimo boa mulher.
—Vejam vocês isto! gritou Cruges que parara,
esperando-os. Isto é sublime.
[314]
Era apenas um bocadito d'estrada, apertada entre
dous velhos muros cobertos d'hera, assombreada
por grandes arvores entrelaçadas, que lhe faziam um
toldo de folhagem aberto á luz como uma renda: no
chão tremiam manchas de sol: e, na frescura e no silencio,
uma agoa que se não via ia fugindo e cantando.
—Se tu queres sublime, Cruges, exclamou Alencar,
então tens de subir á serra. Ahi tens o
espaço,
tens a nuvem, tens a arte...
—Não sei, talvez goste mais d'isto, murmurou o
maestro.
A sua natureza de timido preferiria, de certo, estes
humildes recantos, feitos de uma pouca de folhagem
fresca e de um pedaço de muro musgoso, logares
de quietação e de sombra, onde se aninha com
um conforto maior o scismar dos indolentes...
—De resto, filho, continuou Alencar, tudo em Cintra
é divino. Não ha cantinho que não seja
um poema...
Olha, alli tens tu, por exemplo, aquella linda
florinha azul...—e, ternamente, apanhou-a.
—Vamos andando, vamos andando, murmurou Carlos
impaciente, e agora, desde que o poeta fallara do
cãosinho de luxo, mais certo de que ella estava na
Lawrence, e que a ia brevemente encontrar.
Mas, ao chegar a Sitiaes, Cruges teve uma desillusão
diante d'aquelle vasto terreiro coberto de herva,
com o palacete ao fundo, enxovalhado, de vidraças
partidas, e erguendo pomposamente sobre o arco, em
pleno ceu, o seu grande escudo de armas. Ficara-lhe
[315]
a idéa, de pequeno, que Sitiaes era um montão
pittoresco
de rochedos, dominando a profundidade de um
valle; e a isto misturava-se vagamente uma
recordação
de luar e de guitarras... Mas aquillo que elle alli
via era um desapontamento.
—A vida é feita de desapontamentos, disse Carlos,
Anda para diante!
E apressou o passo atravez do terreiro, em quanto
o maestro, cada vez mais animado, lhe gritava a chalaça
do dia:
—E v. ex.
a deve sabel-o, sr. Maia, porque tem
experiência de hespanholas!...
Alencar, que se demorara atraz a accender o cigarro,
estendeu o ouvido, curioso, quiz saber o que
era isso de hespanholas? O maestro contou-lhe o encontro
no Nunes e os furores da Concha.
Iam ambos caminhando por uma das alamedas lateraes,
verde e fresca, de uma paz religiosa, como um
claustro feito de folhagem. O terreiro estava deserto;
a herva que o cobria, crescia ao abandono, toda estrellada
de botões de ouro brilhando ao sol, e de malmequersinhos
brancos. Nenhuma folha se movia:
atravez da ramaria ligeira o sol atirava mólhos de
raios de ouro. O azul parecia recuado a uma distancia
infinita, repassado de silencio luminoso; e só se
ouvia, ás vezes, monotona e dormente, a voz de um
cuco nos castanheiros.
Toda aquella vivenda, com a sua grade enferrujada
sobre a estrada, os seus florões de pedra roídos
da chuva, o pesado brazão rococó, as janellas
cheias
[316]
de teias de aranha, as telhas todas quebradas, parecia
estar-se deixando morrer voluntariamente n'aquella
verde solidão,—amuada com a vida, desde
que d'alli tinham desapparecido as ultimas graças do
tricorne e do espadim, e os derradeiros vestidos de
anquinhas tinham roçado essas relvas... Agora Cruges
ía descrevendo ao Alencar a figura do Eusebiosinho,
com a chavena de café na mão, a ir pedir
perdão á Concha; e a cada momento o poeta, com o
seu grande chapéo panamá, se agachava a colher
florinhas
silvestres.
Quando passaram o Arco, encontraram Carlos sentado
n'um dos bancos de pedra, fumando pensativamente
a sua cigarette. O palacete deitava sobre aquelle
bocado de terraço a sombra dos seus muros tristes;
do valle subia uma frescura e um grande ar; e algures,
em baixo, sentia-se o prantear de um repuxo. Então
o poeta, sentando-se ao lado do seu amigo, fallou
com nojo do Eusebiosinho.—Ahi está uma torpeza
que elle nunca commettera, trazer meretrizes a Cintra!
Nem a Cintra, nem a parte nenhuma... Mas
muito menos a Cintra! Sempre tivera, todo o mundo
devia ter, a religião d'aquellas arvores e o amor d'aquellas
sombras...
—E esse Palma, accrescentou elle, é um traste!
Eu conheço-o; elle teve uma especie de jornal, e
já
lhe dei muita bofetada na rua do Alecrim. Foi uma
historia curiosa... Ora eu t'a conto Carlos... Aquelle
canalha! quando me lembro!... Aquella vil bolinha
de materia putrida!... Aquelle chouricinho de pus!
[317]
Levantou-se, passando a mão nervosa sobre os bigodes,
já excitado pela lembrança d'aquella velha
desordem, vergastando o Palma com nomes ferozes,
todo n'uma d'essas fervuras de sangue que eram a
sua desgraça.
Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava
a grande planicie de lavoura que se estendia em baixo,
rica e bem trabalhada, repartida em quadrados verde-claros
e verde-escuros, que lhe faziam lembrar um
panno feito de remendos assim que elle tinha na
meza do seu quarto. Tiras brancas de estradas serpeavam
pelo meio: aqui e além, n'uma massa de arvoredo,
branquejava um casal: e a cada passo, n'aquelle
solo onde as aguas abundam, uma fila de pequenos
olmos revelava algum fresco ribeiro, correndo e reluzindo
entre as hervas. O mar ficava ao fundo, n'uma
linha unida, esbatida na tenuidade diffusa da bruma
azulada: e por cima arredondava-se um grande azul
lustroso como um bello esmalte, tendo apenas, lá no
alto, um farraposinho de nevoa, que ficara alli esquecido,
e que dormia enovellado e suspenso na luz...
—Tive nojo! exclamava o Alencar, rematando fogosamente
a sua historia. Palavra que tive nojo! Atirei-lhe
a bengala aos pés, crusei os braços e disse-lhe:
ahi tem você a bengala, seu covarde, a mim
bastam-me as mãos!
—Que diabo, não me hão de esquecer as queijadas!
murmurou Cruges, para si mesmo, affastando-se
do parapeito.
Carlos erguera-se tambem, olhava o relogio. Mas
[318]
antes de deixar Sitiaes, Cruges quiz explorar o outro
terraço ao lado: e, apenas subira os dous velhos degraus
de pedra, soltou de lá um grito alegre:
—Bem dizia eu! cá estão elles... E
vocês a dizer
que não!
Foram-n'o encontrar triumphante, diante de um
montão de penedos, polidos pelo uso, já com um
vago feitio de assentos, deixados ali outr'ora, poeticamente,
para dar ao terraço uma graça agreste de selva
brava. Então, não dizia elle? Bem dizia elle que
em
Sitiaes havia penedos!
—Se eu me lembrava perfeitamente!
Penedo
da
Saudade, não é que se chama,
Alencar?
Mas o poeta não respondeu. Diante d'aquellas pedras
crusara os braços, sorria dolorosamente; e immovel,
sombrio no seu fato negro, com o panamá
carregado para a testa, envolveu todo aquelle recanto
n'um olhar lento e triste.
Depois, no silencio, a sua voz ergueu-se, saudosa
e dolente:
—Vocês lembram-se, rapazes, nas
Flôres e Martyrios,
de uma das cousas melhores que lá tenho, em
rimas livres, chamada
6 de Agosto?
Não se lembram
talvez... Pois eu vol-a digo, rapazes!
Machinalmente tirara do bolso o lenço branco. E
com elle fluctuante na mão, puxando Carlos para junto
de si, chamando do outro lado o Cruges, baixou a
voz como n'uma confidencia sagrada, recitou, com
um ardor surdo, mordendo as syllabas, tremulo,
n'uma paixão ephemera de nervoso:
[319]
Vieste! Cingi-te ao peito.
Em redor que noite escura!
Não tinha rendas o leito,
Nem tinha lavores na barra
Que era só a rocha dura...
Muito ao longe uma guitarra
Gemia vagos harpejos...
(Vê tu que não me esqueceu)...
E a rocha dura aqueceu
Ao calor dos nossos beijos!
Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras
brancas batidas do sol, atirou para lá um gesto triste,
e murmurou:
—Foi alli.
E affastou-se, alquebrado sob o seu grande chapéo
panamá, com o lenço branco na mão.
Cruges, que
aquelles romantismos impressionavam, ficou a olhar
para os penedos como para um sitio historico. Carlos
sorria. E quando ambos deixaram esse recanto do
terraço—o poeta, agachado junto do arco, estava
apertando o atilho da ceroula.
Endireitou-se logo, já toda a emoção o
deixara,
mostrava os maus dentes n'um sorriso amigo, e exclamou,
apontando para o arco:
—Agora, Cruges, filho, repara tu n'aquella tela
sublime.
O maestro embasbacou. No vão do arco, como dentro
de uma pesada moldura de pedra, brilhava, á luz
rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma
composição
quasi phantastica, como a illustração de uma
bella lenda de cavallaria e de amor. Era no primeiro
plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado
[320]
de botões amarellos; ao fundo, o renque cerrado de
antigas arvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo
da grade uma muralha de folhagem reluzente; e
emergindo abruptamente d'essa copada linha de bosque
assoalhado, subia no pleno resplendor do dia,
destacando vigorosamente n'um relevo nitido sobre
o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra,
toda côr de violeta escura, coroada pelo castello da
Pena, romantico e solitario no alto, com o seu parque
sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as
cupulas brilhando ao sol como se fossem feitas de
ouro...
Cruges achou aquelle quadro digno de Gustavo
Doré. Alencar teve uma bella phrase sobre a
imaginação
dos arabes. Carlos, impaciente, foi-os apressando para diante.
Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo
de subir á Pena. Alencar, por si, ía tambem com
prazer. A Pena para elle era outro ninho de
recordações.
Ninho? Devia antes dizer cemiterio... Carlos
hesitava, parado junto da grade. Estaria ella na Pena?
E olhava a estrada, olhava as arvores, como se podesse
adivinhar pelas pegadas no pó, ou pelo mover
das folhas, que direcção tinham tomado os passos
que
elle seguia... Por fim teve uma idéa.
—Vamos indo primeiro á Lawrence. E depois se
quizermos ir á Pena, arranjam-se lá os burros...
E nem mesmo quiz escutar o Alencar, que tivera,
tambem uma idéa, fallava de Collares, de uma visita
ao seu velho Carvalhosa; accelerou o passo para a
[321]
Lawrence, emquanto o poeta tornava a arranjar o
atilho da ceroula, e o maestro, n'um enthusiasmo bucolico,
ornava o chapéo de folhas de hera.
Defronte da Lawrence, os dois burriqueiros, de cigarro
na bocca, não tendo podido apoderar-se dos
inglezes, preguiçavam ao sol.
—Vocês sabem, perguntou-lhes Carlos, se uma
familia, que está aqui no hotel, foi para a Pena?...
Um dos homens pareceu adivinhar, exclamou logo,
desbarretando-se.
—Sim, senhor, foram para lá ha bocado, e
aqui está o burrinho tambem para v. Ex.
a,
meu
amo!
Mas o outro, mais honesto, negou. Não senhor, a
gente que fôra para a Pena estava no Nunes...
—A familia que o senhor diz foi agora ali para
baixo, para o palacio...
—Uma senhora alta?
—Sim senhor.
—Com um sujeito de barba preta?
—Sim senhor.
—E uma cadellinha?
—Sim senhor.
—Tu conheces o sr. Damaso Salcede?
—Não senhor... É o que tira retratos?
—Não, não tira retratos... Tomae lá.
Deu-lhes uma placa de cinco tostões; e voltou ao
encontro dos outros, declarando que realmente era
tarde para subirem á Pena.
—Agora o que tu deves vêr, Cruges, é o palacio.
[322]
Isso é que tem originalidade e cachet! Não
é verdade,
Alencar?...
—Eu vos digo, filhos, começou o auctor de
Elvira,
historicamente fallando...
—E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou
Cruges.
—Justamente! exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas;
é necessario não perder tempo; a caminho!
Deixou os outros ainda indecisos, abalou para o
palacio, em quatro largas passadas estava lá. E logo
da praça avistou, saindo já o portão,
passando rente
da sentinella, a famosa familia hospedada na Lawrence
e a sua cadellinha de luxo. Era, com effeito, um
sujeito de barba preta, e de sapatos de lona branca;
e, ao lado d'elle, uma matrona enorme, com um mantelete
de seda, cousas de ouro pelo pescoço e pelo
peito, e o cãosinho felpudo ao collo. Vinham ambos
rosnando o quer que fosse, com mau modo um para
o outro, e em hespanhol.
Carlos ficou a olhar para aquelle par com a melancolia
de quem contempla os pedaços d'um bello marmore
quebrado. Não esperou mais pelos outros, nem
os quiz encontrar. Correu á Lawrence por um caminho
differente, avido de uma certeza:—e ahi, o criado
que lhe appareceu, disse-lhe que o sr. Salcede e os
srs. Castro Gomes tinham partido na vespera para
Mafra...
—E de lá?...
O criado ouvira dizer ao sr. Damaso que de lá
voltavam a Lisboa.
[323]
—Bem, disse Carlos atirando o chapéo para cima
da meza, traga-me você um calice de cognac, e uma
pouca d'agua fresca.
Cintra, de repente, pareceu-lhe intoleravelmente deserta
e triste. Não teve animo de voltar ao palacio,
nem quiz sahir mais d'ali; e arrancando as luvas
passeiando em volta da meza de jantar, onde murchavam
os ramos da vespera, sentia um desejo desesperado
de galopar para Lisboa, correr ao Hotel Central,
invadir-lhe o quarto, vêl-a, saciar os seus olhos
n'ella!... Porque, o que o irritava agora era não
poder encontrar, na pequenez de Lisboa, onde toda
a gente se acotovella, aquella mulher que elle procurava
anciosamente! Duas semanas farejara o Aterro
como um cão perdido: fizera
perigrinações ridiculas
de theatro em theatro: n'uma manhã de domingo
percorrera as missas! E não a tornara a vêr. Agora
sabia-a em Cintra, voava a Cintra, e não a via tambem.
Ella cruzava-o uma tarde, bella como uma
deusa transviada no Aterro, deixava-lhe cahir n'alma
por accaso um dos seus olhares negros, e desapparecia,
evaporava-se, como se tivesse realmente remontado
ao céo, d'ora em diante invisivel e sobrenatural:
e elle ali ficava, com aquelle olhar no coração,
perturbando
todo o seu ser, orientando surdamente os
seus pensamentos, desejos, curiosidades, toda a sua
vida interior, para uma adoravel desconhecida, de
quem elle nada sabia senão que era alta e loira, e
que tinha uma cadellinha escosseza... Assim acontece
com as estrellas d'acaso! Ellas não são d'uma
[324]
essencia diferente, nem contéem mais luz que as outras:
mas, por isso mesmo que passam fugitivamente
e se esvaem, parecem despedir um fulgor mais divino,
e o deslumbramento que deixam nos olhos é
mais perturbador e mais longo... Elle não a tornara
a vêr. Outros viam-n'a. O Taveira vira-a. No Gremio,
ouvira um alferes de lanceiros fallar d'ella, perguntar
quem era, porque a encontrava todos os dias. O
alferes encontrava-a todos os dias. Elle não a via, e
não socegava...
O criado trouxe o cognac. Então Carlos, preparando
vagarosamente o seu refresco, conversou com elle,
fallou um momento dos dois rapazes inglezes, depois
da hespanhola obesa... Emfim, dominando uma
timidez, quasi córando, fez, atravez de grandes silencios,
perguntas sobre os Castro Gomes. E cada resposta
lhe parecia uma acquisição preciosa. A senhora
era muito madrugadora, dizia o criado: ás sete
horas tinha tomado banho, estava vestida, e sahia só.
O sr. Castro Gomes, que dormia n'um quarto separado,
nunca se mexia antes do meio dia; e, á noite,
ficava uma eternidade á meza, fumando cigarettes e
molhando os beiços em copinhos de cognac e agua. Elle
e o sr. Damaso jogavam o dominó. A senhora tinha
montões de flôres no quarto; e tencionavam ficar
até
domingo, mas fôra ella que apressára a partida...
—Ah, disse Carlos depois de um silencio, foi a senhora
que apressou a partida?...
—Sim, senhor, com cuidado na menina que tinha
ficado em Lisboa... V. ex.
a toma mais cognac?
[325]
Com um gesto Carlos recusou, e veiu sentar-se no
terraço. A tarde descia, calma, radiosa, sem um estremecer
de folhagem, cheia de claridade dourada,
n'uma larga serenidade que penetrava a alma. Elle
tel-a-hia pois encontrado, ali mesmo n'aquelle terraço,
vendo tambem cahir a tarde—se ella não estivesse
impaciente por tornar a vêr a filha, algum
bébésinho
loiro que ficára só com a ama. Assim, a brilhante
deusa era tambem uma boa mamã; e isto
dava-lhe um encanto mais profundo, era assim que
elle gostava mais d'ella, com este terno estremecimento
humano nas suas bellas fórmas de marmore.
Agora, já ella estava em Lisboa; e imaginava-a nas
rendas do seu
peignoir, com o
cabello enrolado à
pressa, grande e branca, erguendo ao ar o bébé
nos
seus explendidos braços de Juno, e fallando-lhe com
um riso d'ouro. Achava-a assim adoravel, todo o seu
coração fugia para ella... Ah! poder ter o
direito
de estar junto d'ella, n'essas horas d'intimidade, bem
junto, sentindo o aroma da sua pelle, e sorrindo tambem
a um bébé. E, pouco a pouco, foi-lhe surgindo
na alma um romance, radiante e absurdo: um sopro
de paixão, mais forte que as leis humanas, enrolava
violentamente, levava juntos o seu destino e o d'ella;
depois, que divina existencia, escondida n'um ninho
de flôres e de sol, longe, n'algum canto da Italia...
E, toda a sorte de idéas d'amor, de
devoção absoluta,
de sacrificio, invadiam-n'o deliciosamente—emquanto
os seus olhos se esqueciam, se perdiam, enlevados
na religiosa solemnidade d'aquelle bello fim
[326]
da tarde. Do lado do mar subia uma maravilhosa côr
d'ouro pallido, que ia no alto diluir o azul, dava-lhe
um branco indeciso e opalino, um tom de desmaio
doce; e o arvoredo cobria-se todo de uma tinta loura,
delicada e dormente. Todos os rumores tomavam uma
suavidade de suspiro perdido. Nenhum contorno se
movia como na immobilidade de um extase. E as casas,
voltadas para o poente, com uma ou outra janella
accesa em braza, os cimos redondos das arvores apinhadas,
descendo a serra n'uma espessa debandada
para o valle, tudo parecera ficar de repente parado
n'um recolhimento melancolico e grave, olhando a partida
do sol, que mergulhava lentamente no mar...
—Oh Carlos, tu estás ahi?
Era em baixo, na estrada, a voz grossa do Alencar
gritando por elle. Carlos appareceu á varanda do
terraço.
—Que diabo estás tu ahi a fazer, rapaz? exclamou
Alencar, agitando alegremente o seu panamá. Nós
lá estivemos à espera, no covil real... Fomos ao
Nunes...
Iamos agora procurar-te á cadeia!
E o poeta riu largamente da sua pilheria—emquanto
Cruges, ao lado, de mãos atraz das costas, e
a face erguida para o terraço, bocejava desconsoladamente.
—Vim
refrescar, como tu dizes,
tomar um pouco
de cognac, que estava com sêde.
Cognac? eis ahi o mimo por que o
pobre
Alencar
estivera anciando toda a tarde, desde Sitiaes. E galgou
logo as escadas do terraço—depois de ter gritado
[327]
para dentro, para a sua velha Lawrence, que
lhe mandasse acima
meia da fina.
—Viste o Paço, hein, Cruges? perguntou Carlos
ao maestro, quando elle appareceu, arrastando os
passos. Então, parece-me que o que nos resta a fazer
é jantar, e abalar...
Cruges concordou. Voltava do palacio com um ar
murcho, fatigado d'aquelle vasto casarão historico,
da voz monotona do cicerone mostrando a cama de
S. M. El-Rei, as cortinas do quarto de S. M. a Rainha,
«melhores que as de Mafra,» o tira-botas de S. A.;
e trazia de lá uma pouca d'essa melancolia que erra,
como uma atmosphera propria, nas residencias reaes.
E aquella natureza de Cintra, ao escurecer, dizia
elle, começava a entristecel-o.
Então concordaram em jantar ali, na Lawrence, para
evitar o espectaculo torpe do Palma e das damas,
mandar vir á porta o break, e partir depois ao nascer
do luar. Alencar, aproveitando a carruagem, recolhia
tambem a Lisboa.
—E, para ser festa completa, exclamou elle, limpando
os bigodes do cognac, emquanto vocês vão
ao Nunes pagar a conta, e dar ordens para o break,
eu vou-me entender lá abaixo á cosinha com a
velha
Lawrence, e preparar-vos um
bacalhau á
Alencar,
recipe meu... E vocês verão o que é um
bacalhau! Porque,
lá isso, rapazes, versos os farão outros melhor;
bacalhau, não!
Atravessando a praça, Cruges pedia a Deus que
não encontrassem mais o Eusebiosinho. Mas, apenas
[328]
pozeram os pés nos primeiros degraus do Nunes, ouviram
em cima o chalrar da sucia. Estavam na ante-sala,
já todos reconciliados, a Concha contente—e installados
aos dois cantos de uma meza, com cartas. O
Palma, munido d'uma garrafa de genebra, fazia uma
batotinha para o Eusebio; e as duas
hespanholas, de
cigarro na bocca, jogavam languidamente a bisca.
O viuvo, enfiado, perdia. No monte, que começára
miseravelmente com duas corôas, já luzia ouro; e
Palma triumphava, chalaceiando, dando beijocas na
sua moça. Mas, ao mesmo tempo, fazia de cavalheiro,
fallava de dar a desforra, ficar ali, sendo necessario,
até de madrugada.
—Então vv. ex.
as não se
tentam? Isto
é para passar o
tempo... Em Cintra tudo serve... Valete! Perdeu
você outro mico no rei. Deve a libra mais quinze
tostões, sô Silveira!
Carlos passára, sem responder, seguido pelo criado—no
momento em que Euzebiosinho, furioso, já desconfiado,
quiz verificar, com as lunetas negras sobre
o baralho, se lá estavam todos os reis.
Palma alastrou as cartas largamente, sem se zangar.
Entre amigos, que diabo, tudo se admittia! A
sua hespanhola, essa sim, escandalisou-se, defendendo
a honra do seu homem: então Palmita havia de ter
empalmado o rei? Mas, a Concha, zelava o dinheiro
do seu viuvo, exclamava que o rei podia estar perdido...
Os reis estavam lá.
Palma atirou um calice de genebra ás goelas, e
recomeçou a baralhar magestosamente.
[329]
—Então v. ex.
a não se
tenta? repetia elle para
o
maestro.
Cruges, com effeito, parára, roçando-se pela
meza,
com o olho nas cartas e no ouro do monte, já sem
força, remexendo o dinheiro nas algibeiras. Subitamente
um az decidiu-o. Com a mão nervosa, escorregou-lhe
uma libra por baixo, jogando cinco tostões,
e de porta. Perdeu logo. Quando Carlos voltou do
quarto com o criado que descia as malas, o maestro
estava em pleno vicio, com a libra entalada, os olhos
accezos, o ar esguedelhado.
—Então tu?...—exclamou Carlos com severidade.
—Já desço, rosnou o maestro.
E, á pressa, foi á paz da libra, n'um terno
contra
o rei. Cartada de colicas! como disse o Palma: e foi
com emoção que elle começou a puxar as
cartas, espremendo-as
uma a uma, n'um vagar mortal. A apparição
de um bico arrancou-lhe uma praga. Era apenas
um duque, Eusebiosinho perdia mais uma placa.
Palma teve um suspirinho de alivio; e, escondendo
com ambas as mãos o baralho, erguendo as lunetas
faiscantes para o maestro:
—Então, sempre continúa toda a libra?
—Toda.
Palma teve outro suspiro, d'anciedade; e, mais pallido,
voltou bruscamente as cartas.
—Rei! gritou elle, empolgando o ouro.
Era o rei de paus, a sua hespanhola bateu as palmas,
o maestro abalou furioso.
[330]
Na Lawrence o jantar prolongou-se até ás oito
horas,
com luzes;—e o Alencar fallou sempre. Tinha esquecido
n'esse dia as desillusões da vida, todos os
rancores litterarios, estava n'uma veia excellente; e
foram historias dos velhos tempos de Cintra,
recordações
da sua famosa ida a Paris, cousas picantes de
mulheres, bocados da chronica intima da
Regeneração...
Tudo isto com estridencias de voz, e
filhos
isto! e
rapazes
aquillo! e gestos que faziam oscillar
as chammas das vellas, e grandes copos de Collares emborcados
de um trago. Do outro lado da meza, os
dois inglezes, correctos nos seus fraques negros, de
cravos brancos na botoeira, pasmavam, com um ar
embaraçado a que se misturava desdem, para esta
desordenada exhuberancia de meridional.
A apparição do bacalhau foi um triumpho:—e a
satisfação
do poeta tão grande, que desejou mesmo, caramba,
rapazes, que ali estivesse o Ega!
—Sempre queria que elle provasse este bacalhau!
Já que me não aprecia os versos, havia de me
apreciar
o cozinhado, que isto é um bacalhau de artista
em toda a parte!... N'outro dia fil-o lá em casa dos
meus Cohens; e a Rachel, coitadinha, veiu para mim
e abraçou-me... Isto, filhos, a poesia e a cozinha
são
irmãs! Vejam vocês Alexandre Dumas...
Dirão vocês
que o pae Dumas não é um poeta... E
então d'Artagnan? D'Artagnan é um poema...
É a faisca
é
a phantasia, é a inspiração,
é o sonho, é o arrobo!
Então, pôço, já
vêem vocês, que é poeta!... Pois
vocês
hão-de vir um dia d'estes jantar commigo, e ha-de
[331]
vir o Ega, e hei-de-vos arranjar umas perdizes á hespanhola,
que vos hão-de nascer castanholas nos dedos!...
Eu, palavra, gosto do Ega! Lá essas cousas
de realismo e romantismo, historias... Um lyrio é
tão natural como um persevejo... Uns preferem
fedôr
de sargeta; perfeitamente, destape-se o cano publico...
Eu prefiro pós de marechala n'um seio branco;
a mim o seio, e, lá vae á vossa. O que se quer,
é coração. E o Ega tem-n'o. E tem
faisca, tem rasgo,
tem estylo... Pois, assim é que elles se querem, e,
lá vae á saude do Ega!
Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou
mais baixo:
—E, se aquelles inglezes continuam a embasbacar
para mim, vae-lhes um copo na cara, e é aqui um
vendaval, que ha-de a Gran-Bretanha ficar sabendo
o que é um poeta portuguez!...
Mas não houve vendaval, a Gran-Bretanha ficou
sem saber o que é um poeta portuguez, e o jantar
terminou n'um café tranquillo. Eram nove horas, fazia
luar, quando Carlos subiu para a almofada do
break.
Alencar, embuçado n'um capote, um verdadeiro capote
de padre de aldêa, levava na mão um ramo de
rosas: e agora, guardara o seu panamá na
maleta,
trazia um bonet de lontra. O maestro, pesado do jantar,
com um começo de
spleen,
encolheu-se a um canto
do break, mudo, enterrado na gola do paletot, com a
manta da mamã sobre os joelhos. Partiram. Cintra
ficava dormindo ao luar.
[332]
Algum tempo o break rodou em silencio, na belleza
da noite. A espaços, a estrada apparecia banhada
d'uma claridade quente que faiscava. Fachadas de
casas, caladas e pallidas, surgiam, d'entre as arvores
com um ar de melancolia romantica. Murmurios
de agoas perdiam-se na sombra; e, junto dos muros
enramados, o ar estava cheio d'aroma. Alencar accendera
o cachimbo, e olhava a lua.
Mas, quando passaram as casas de S. Pedro, e entraram
na estrada, silenciosa e triste, Cruges mexeu-se,
tossiu, olhou tambem para a lua, e murmurou
d'entre os seus agasalhos:
—Oh Alencar, recita para ahi alguma cousa...
O poeta condescendeu logo—apesar de um dos
criados ir ali ao lado d'elles, dentro do break. Mas,
que havia elle de recitar, sob o encanto da noite
clara? Todo o verso parece frouxo, escutado diante
da lua! Emfim, ía dizer-lhe uma historia bem verdadeira
e bem triste... Veiu sentar-se ao pé do Cruges,
dentro do seu grande capotão, esvaziou os restos
do cachimbo, e, depois de acariciar algum tempo os
bigodes, começou, n'um tom familiar e simples:
Era o jardim d'uma vivenda antiga,
Sem arrebiques d'arte ou flôres de luxo;
Ruas singellas d'alfazema e buxo,
Cravos, roseiras...
—Com mil raios! exclamou de repente o Cruges,
saltando de dentro da manta, com um berro que
[333]
emmudeceu o poeta, fez voltar Carlos na almofada,
assustou o trintanario.
O break parára, todos o olhavam suspensos; e, no
vasto silencio da charneca, sob a paz do luar, Cruges,
succumbido, exclamou:
—Esqueceram-me as queijadas!
IX
O dia famoso da soirée dos Cohens, ao fim d'essa
semana tão luminosa e tão doce, amanheceu
enevoado
e triste. Carlos, abrindo cedo a janella sobre
o jardim, vira um céu baixo que pesava como se
fosse feito de algodão em rama enxovalhado: o arvoredo
tinha um tom arripiado e humido; ao longe
o rio estava turvo, e no ar molle errava um halito
morno de sudoeste. Decidira não sahir—e desde as
nove horas, sentado á banca, embrulhado no seu
vasto robe-de-chambre de velludo azul, que lhe
dava o bello ar de um principe artista da Renascença,
tentava trabalhar: mas, apesar de duas chavenas de
café, de cigarettes sem fim, o cerebro, como o
céu
fóra, conservava-se-lhe n'essa manhã afogado em
nevoas.
Tinha d'estes dias terriveis; julgava-se então
[336]
«uma besta»; e a quantidade de folhas de papel,
dilaceradas,
amarfanhadas, que lhe juncavam o tapete
aos pés, davam-lhe a sensação de ser
todo elle uma
ruina.
Foi realmente um allivio, uma tregoa n'aquella lucta
com as idéas rebeldes, quando Baptista annunciou
Villaça, que lhe vinha fallar de uma venda de montados
no Alemtejo, pertencentes á sua legitima.
—Negociosinho, disse o administrador, pousando
o chapéo a um canto da mesa e dentro um rolo de
papeis, que lhe mette na algibeira para cima de dois
contos de réis... E não é mau
presente, logo assim
pela manhã...
Carlos espreguiçou-se, crusando fortemente as
mãos
por trás da cabeça:
—Pois olhe, Villaça, preciso bem de dous contos
de réis, mas preferia que me trouxesse ahi alguma
lucidez de espirito... Estou hoje d'uma estupidez!
Villaça considerou-o um momento, com malicia.
—Quer v. ex.
a dizer que antes queria escrever
uma bonita pagina do que receber assim perto de
quinhentas libras? São gostos, meu senhor, são
gostos...
Elle é bom sahir-se a gente um Herculano ou
um Garrett, mas dous contos de réis, são dous
contos
de réis... Olhe que sempre valem um folhetim.
Emfim, o negocio é este.
Explicou-lh'o, sem se sentar, apressado, emquanto
Carlos, de braços cruzados, considerava quanto era
medonho o alfinete de peito que Villaça trazia (um
macacão de coral comendo uma pera de ouro) e distinguia
[337]
vagamente, atravez da sua neblina mental, que
se tratava de um visconde de Torral e de porcos...
Quando Villaça lhe apresentou os papeis, assignou-os
com um ar moribundo.
—Então não fica para almoçar,
Villaça? disse
elle, vendo o procurador metter o seu rolo de papeis
debaixo do braço.
—Muito agradecido a v. ex.
a Tenho de me
encontrar
com o nosso amigo Eusebio... Vamos ao ministerio
do reino, elle tem lá uma pertenção...
Quer
a commenda da Conceição... Mas este governo
está
desgostoso com elle.
—Ah, murmurou Carlos com respeito e atravez
d'um bocejo, o governo não está contente com o
Eusebiosinho?
—Não se portou bem nas eleições.
Ainda ha dias,
o ministro do reino me dizia, em confidencia: «O Eusebio
é rapaz de merecimento, mas atravessado...»
V. ex.
a n'outro dia, disse-me o Cruges,
encontrou-o
em Cintra.
—Sim, lá estava a fazer jus á commenda da
Conceição.
Quando Villaça saiu Carlos retomou lentamente a
penna, e ficou um momento, com os olhos na pagina
meio-escripta, coçando a barba, desanimado e esteril.
Mas quasi em seguida appareçeu Affonso da Maia,
ainda de chapéo, á volta do seu passeio matinal
no
bairro, e com uma carta na mão, que era para Carlos,
e que elle achara no escriptorio misturada ao seu correio.
Além d'isso, esperava encontrar ali o Villaça.
[338]
—Esteve ahi, mas deitou a correr, para ir arranjar
uma commenda para o Eusebiosinho—disse Carlos,
abrindo a carta.
E teve uma surpreza, vendo no papel—que cheirava
a verbena como a condessa de Gouvarinho—um
convite do conde para jantar no sabbado seguinte,
feito em termos de sympathia tão escolhidos que eram
quasi poeticos; tinha mesmo uma phrase sobre a amisade,
fallava dos
atomos em gancho de
Descartes. Carlos
desatou a rir, contou ao avô que era um par do
reino que o convidava a jantar, citando Descartes...
—São capazes de tudo, murmurou o velho.
E dando um olhar risonho, aos manuscriptos espalhados
sobre a banca:
—Então, aqui, trabalha-se, hein?
Carlos encolheu os hombros:
—Se é que se póde chamar a isto trabalhar...
Olhe ahi para o chão. Veja esses destroços... Em
quanto se trata de tomar notas, colligir documentos,
reunir materiaes, bem, lá vou indo. Mas quando se
trata de pôr as idéas, a
observação, n'uma fórma de
gosto e de symetria, dar-lhe côr, dar-lhe relevo,
então...
Então foi-se!
—Preoccupação peninsular, filho, disse Affonso
sentando-se ao pé da mesa, com o seu chapéo
desabado
na mão. Desembaraça-te d'ella. É o que
eu dizia
n'outro dia ao Craft, e elle concordava... O portuguez
nunca póde ser homem de idéas, por causa da
paixão da fórma. A sua mania é fazer
bellas phrases
vêr-lhes o brilho, sentir-lhes a musica. Se fôr
necessario
[339]
falsear a idéa, deixal-a incompleta, exageral-a,
para a phrase ganhar em belleza, o desgraçado não
hesita... Vá-se pela agoa abaixo o pensamento, mas
salve-se a bella phrase.
—Questão de temperamento, disse Carlos. Ha sêres
inferiores, para quem a sonoridade de um adjectivo
é mais importante que a exactidão de um
systema...
Eu sou d'esses monstros.
—Diabo! então és um rhetorico...
—Quem o não é? E resta saber por fim se o estylo
não é uma disciplina do pensamento. Em verso,
o avô sabe, é muitas vezes a necessidade de uma
rima que produz a originalidade de uma imagem...
E quantas vezes o esforço para completar bem a cadencia
de uma phrase, não poderá trazer desenvolvimentos
novos e inesperados de uma idéa... Viva
a bella phrase!
—O sr. Ega annunciou o Baptista, erguendo o reposteiro,
quando começava justamente a tocar a sineta
do almoço.
—Fallae na phrase...—disse Affonso, rindo.
—Hein? Que phrase? O que?..—exclamou Ega,
que rompeu pelo quarto, com o ar estonteado, a barba
por fazer, a gola do paletot levantada. Oh! por aqui
a esta hora sr. Affonso da Maia! Como está v. ex.
a?
Dize-me cá, Carlos, tu é que me podes tirar d'uma
atrapalhação... Tu terás por acaso uma
espada que
me sirva?
E, como Carlos o olhava assombrado, acrescentou,
já impaciente:
[340]
—Sim, homem, uma espada! Não é para me batter,
estou em paz com toda a humanidade... É para
esta noute, para o fato de mascara.
O Mattos, aquelle animal, só na vespera lhe dera
o costume para o baile: e, qual é o seu horror, ao
vêr que lhe arranjara, em logar de uma espada artistica,
um sabre da guarda municipal! Tivera vontade
de lh'o passar atravez das entranhas. Correu ao
tio Abrahão, que só tinha espadins de
côrte, reles e
pelintras como a propria côrte! Lembrara-se do Craft
e da sua collecção; vinha de lá; mas
ahi eram uns
espadões de ferro, catanas pesando arrobas, as durindanas
tremendas dos brutos que conquistaram a
India... Nada que lhe servisse. Fôra então que lhe
tinham vindo á idéa as panoplias antigas do
Ramalhete.
—Tu é que deves ter... Eu preciso uma espada
longa e fina, com os copos em concha, d'aço rendilhado,
forrados de velludo escarlate. E sem cruz,
sobretudo sem cruz!
Affonso, tomando logo um interesse paternal por
aquella difficuldade do John, lembrou que havia no
corredor, em cima, umas espadas hespanholas...
—Em cima, no corredor? exclamou Ega, já com
a mão no reposteiro.
Inutil precipitar-se, o bom John não as poderia encontrar.
Não estavam á vista, arranjadas em panoplia,
conservavam-se ainda nos caixões em que tinham
vindo de Bemfica.
—Eu lá vou, homem fatal, eu lá vou, disse
Carlos,
[341]
erguendo-se com resignação. Mas olha que
ellas
não têem bainhas.
Ega ficou succumbido. E foi ainda Affonso que achou
uma idéa, o salvou.
—Manda fazer uma simples bainha de velludo negro;
isso faz-se n'uma hora. E manda-lhe cozer ao
comprido rodellas de velludo escarlate...
—Explendido, gritou Ega: o que é ter gosto!
E apenas Carlos sahiu, trovejou contra o Mattos.
—Veja v. ex.
a isto, um sabre da guarda
municipal!
E é quem faz ahi os fatos para todos os theatros!
Que idiota!.. E é tudo assim, isto é um paiz
insensato!...
—Meu bom Ega, tu não queres tornar de certo
Portugal inteiro, o Estado, sete milhões d'almas,
responsaveis
por esse comportamento do Mattos?
—Sim senhor, exclamava o Ega passeiando pelo
gabinete, com as mãos enterradas nos bolsos do paletot;
sim senhor, tudo isso se prende. O
costumier
com um fato do seculo XIV manda um sabre da guarda
municipal; por seu lado o ministro, a proposito de
impostos, cita as
Meditações de
Lamartine; e o litterato,
essa besta suprema...
Mas calou-se, vendo a espada que Carlos trazia
na mão, uma folha do seculo XVI, de grande tempera,
fina e vibrante, com copos trabalhado como uma
renda—e tendo gravado no aço o nome illustre do
espadeiro, Francisco Ruy de Toledo.
Embrulhou-a logo n'um jornal, recusou á pressa o
almoço, que lhe offereciam, deu dous vivos
shake-hands,
[342]
atirou o chapéu
para a nuca, ia abalar, quando
a voz de Affonso o deteve:
—Ouve la, John, dizia o velho alegremente, isso é
uma espada cá da casa, que nunca brilhou sem gloria,
creio eu... Vê como te serves d'ella!
Ao pé do resposteiro, Ega voltou-se, exclamou,
apertando contra o peito do paletot o ferro, enrolado,
no
Jornal do Commercio:
—Não a sacarei sem justiça, nem a embainharei
sem honra.
Au revoir!
—Que vida, que mocidade! murmurou Affonso.
Muito feliz é este John!... Pois vae-te arranjando filho,
que já tocou a primeira vez para o almoço.
Carlos ainda se demorou um instante a reler, com
um sorriso, a apparatosa carta do Gouvarinho; e ia
emfim chamar o Baptista para se vestir, quando em
baixo, á entrada particular, o timbre electrico
começou
a vibrar violentamente. Um passo ancioso ressoou
na ante-camara, o Damaso appareceu esbaforido,
d'olho esgazeado, com a face em braza. E, sem
dar tempo a que Carlos exprimisse a surpreza de o
ver emfim no Ramalhete, exclamou, lançando os
braços
ao ar:
—Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que
venhas d'ahi, que me venhas ver um doente... Eu
te explicarei... É aquella gente brazileira. Mas pelo
amor de Deus, vem depressa, menino!
Carlos erguera-se, pallido:
—É ella?
—Não, é a pequena, esteve a morrer... Mas
veste-te,
[343]
Carlinhos, veste-te, que a responsabilidade é
minha!
—É um bébé, não
é?
—Qual bébé!... É uma pequena
crescida, de seis
annos... Anda d'ahi!
Carlos, já em mangas de camisa, estendia o pé ao
Baptista, que, com um joelho em terra, apressado tambem,
quasi fez saltar os botões da bota. E Damaso,
de chapéu na cabeça, agitava-se, exagerando a sua
impaciencia, a estalar de importancia.
—Sempre a gente se vê em coisas!.. Olha que
responsabilidade a minha! Vou visital-os, como costumo
ás vezes, de manhã... E vae, tinham partido
para Queluz.
Carlos voltou-se, com a sobrecasaca meia vestida:
—Mas então?..
—Escuta, homem! Foram para Queluz, mas a pequena
ficou com a governanta... Depois do almoço
deu-lhe uma dôr. A governante queria um medico inglez,
porque não falla senão inglez... Do hotel foram
procurar o Smith, que não appareceu... E a pequena
a morrer!... Felizmente, cheguei eu, e lembrei-me
logo de ti... Foi sorte encontrar-te, caramba!
E acrescentou, dando um olhar ao jardim:
—Tambem, irem a Queluz com um dia d'estes!
Hão-de-se divertir... Estás prompto, hein? Eu
tenho
lá em baixo o coupé... Deixa as luvas, vaes muito
bem sem luvas!
—O avô que não me espere para almoçar,
gritou
Carlos ao Baptista, já do fundo da escada.
[344]
Dentro do coupé, um ramo enorme enchia quasi
o assento.
—Era para ella, disse o Damaso, pondo-o sobre
os joelhos. Pela-se por flores.
Apenas o coupé partiu, Carlos cerrando a vidraça,
fez a pergunta que desde a apparição do Damaso
lhe
faiscava nos labios.
—Mas então tu, que querias quebrar a cara a esse
Castro Gomes?..
O Damaso contou logo tudo, triumphante. Fôra
tudo um equivoco! Ah, as explicações do Castro
Gomes tinham sido d'um gentleman. Senão quebrava-lhe
a cara. Isso não, desconsiderações, a
ninguem!
a ninguem! Mas fôra assim: os bilhetes de visita
que elle lhe deixara conservavam o seu adresse do
Grand Hotel em Paris. E o Castro
Gomes, suppondo
que elle vivia lá, obdecendo
á indicação, mandara
para lá os seus cartões! Curioso, hein? E de
estupído...
E a falta de resposta aos telegrammas fôra
culpa de Madame, descuido, n'aquelle momento de
afflicção, vendo o marido com o braço
escavacado...
Ah, tinham-lhe dado satisfações humildes. E agora
eram intimos, estava lá quasi sempre...
—Emfim, menino, um romance... Mas isso é para
mais tarde!
O coupé parara á porta do Hotel Central. Damaso
saltou, correu ao guarda portão.
—Mandou o telegramma, Antonio?
—Já lá vae...
—Tu comprehendes, dizia elle a Carlos, galgando
[345]
as escadas, mandei-lhes logo um telegramma para o
hotel em Queluz. Não estou para ter mais
responsabilidades!...
No corredor, defronte do escriptorio, um criado
passava, com um guardanapo debaixo do braço:
—Como está a menina? gritou-lhe o Damaso.
O criado encolheu os hombros, sem comprehender.
Mas Damaso já trepava o outro lanço de escada,
soprando, gritando:
—Por aqui Carlos, eu conheço isto a palmos! Numero
26!
Abriu com estrondo a porta do numero 26. Uma
criada, que estava á janella, voltou-se.
Ah
bonjour, Melanie! exclamava
Damaso, no seu
extraordinario francez. A
creança estava melhor?
l'enfant
etait meilleur? Ali lhe trazia o doutor,
monsieur
le docteur Maia.
Melanie, uma rapariga magra e sardenta, disse
que Mademoiselle estava mais socegada, e ella ia avisar
miss Sarah, a governanta. Passou o espanador
pelo marmore d'uma console, ageitou os livros sobre
a meza, e sahiu, dardejando a Carlos um olhar vivo
como uma faisca.
A sala era espaçosa, com uma mobilia de réps
azul, e um grande espelho sobre a console dourada,
entre as duas janellas: a meza estava coberta de
jornaes, de caixas de charutos, e de romances de
Cappendu; sobre uma cadeira, ao lado, ficára enrolado
um bordado.
—Esta Melanie, esta desleixada, murmurava o
[346]
Damaso, fechando a janella com um esforço sobre o
feixo perro. Deixar assim tudo aberto! Jesus, que
gente!
—Este cavalheiro é bonapartista, disse Carlos
vendo sobre a meza os numeros do
Pays.
—Isso, temos questões terriveis! exclamou o Damaso.
E eu enterro-o sempre... É bom rapaz, mas
tem pouco fundo.
Melanie voltou pedindo a
Monsieur le
Docteur para
entrar um instante no gabinete de toilette. E ahi,
depois de apanhar uma toalha cahida, de dardejar a
Carlos outro olharsinho petulante, disse que Miss
Sarah vinha immediatamente, e retirou-se na ponta
dos sapatos. Fóra, na sala, ergueu-se logo a voz do
Damaso, fallando a Melanie de
sa
responsabilité, et
que il etait très affligé.
Carlos ficou só, na intimidade d'aquelle gabinete
de toilette, que n'essa manhã ainda não
fôra arrumado.
Duas malas, pertencentes de certo a Madame,
enormes, magnificas, com fecharias e cantos de aço
polido, estavam abertas: d'uma trasbordava uma cauda
rica, de seda forte côr de vinho: e na outra era um
delicado alvejar de roupa branca, todo um luxo secreto
e raro de rendas e
baptistes, d'um
brilho de
neve, macio pelo uso e cheirando bem. Sobre uma
cadeira alastrava-se um monte de meias de seda, de
todos os tons, unidas, bordadas, abertas em renda
e tão leves, que uma aragem as faria voar; e, no
chão corria uma fila de sapatinhos de verniz, todos
do mesmo estylo, longos, com o tacão baixo e grandes
[347]
fitas de laçar. A um canto estava um cesto acolchoado
de seda côr de rosa, onde de certo viajara a
cadellinha.
Mas o olhar de Carlos prendia-se sobre tudo a um
sophá onde ficará estendido, com as duas mangas
abertas, á maneira de dous braços que se
offerecem,
o casaco branco de velludo lavrado de Genova com
que elle a vira, a primeira vez, apear-se á porta do
hotel. O forro, de setim branco, não tinha o menor
acolxoado, tão perfeito devia ser o corpo que vestia:
e assim, deitado sobre o sophá, n'essa attitude viva,
n'um desabotoado de semi-nudez, adiantando em vago
relevo o cheio de dois seios, com os braços alargando-se,
dando-se todos, aquelle estofo parecia exhalar
um calor humano, e punha ali a fórma d'um corpo
amoroso, desfallecendo n'um silencio d'alcova. Carlos
sentiu bater o coração. Um perfume indefinido e
forte
de jasmim, de marechala, de tanglewood, elevava-se
de todas aquellas cousas intimas, passava-lhe pela
face com um bafo suave de caricia...
Então desviou os olhos, approximou-se da janella,
que tinha por perspectiva a fachada enxovalhada do
hotel
Shneid. Quando se voltou, miss
Sarah estava
diante d'elle, vestida de preto e muito córada: era
uma pessoa sympathica, redondinha e pequena, com
um ar de rola farta, os olhos sentimentaes, e uma
testa de virgem sob bandós lisos e louros. Balbuciava
umas palavras em francez, em que Carlos só
percebeu
docteur.
—
Yes, I am the doctor, disse elle.
[348]
A face da boa ingleza illuminou-se. Oh! era tão
bom, ter emfim com quem se entender! A menina
estava muito melhor! Oh, o doutor vinha livral-a
d'uma responsabilidade!...
Abriu o reposteiro, fêl-o penetrar n'um quarto com
as janellas todas cerradas, onde elle apenas distinguiu
a fórma d'um grande leito e o brilho de cristaes
n'um toucador. Perguntou para que eram aquellas
trevas?
Miss Sarah pensara que a escuridão faria bem à
menina, e a adormeceria. E trouxera-a ali para o
quarto da mamã, por ser mais largo e mais arejado.
Carlos fez abrir as janellas: e, quando a grande luz
entrou, ao avistar a pequena no leito, sob os cortinados
abertos, não conteve a sua admiração.
—Que linda creança!
E ficou um instante a contemplal-a, n'um enlevo
d'artista, pensando que os brancos mais mimosos,
mais ricos, sob a mais sabia combinação de luz,
não
egualariam a pallidez eburnea d'aquella pelle maravilhosa:
e esta adoravel brancura era ainda realçada
por um cabello negro, tenebroso, forte, que
reluzia sob a rede. Os seus por dois olhos grandes,
d'um azul profundo e liquido, pareciam n'esse instante
maiores, muito serios, e muito abertos para elle.
Estava encostada a um grande travesseiro, toda
quieta, com o susto ainda da dôr, perdida n'aquelle
vasto leito, e apertando nos braços uma enorme boneca
paramentada, de pello riçado, d'olhos tambem
azues e arregalados tambem.
[349]
Carlos tomou-lhe a mãosinha e beijou-lh'a,—perguntando
se a boneca tambem estava doente.
—Cri-cri tambem teve dôr, respondeu ella muito
séria, sem tirar d'elle os seus magnificos olhos. Eu
já não tenho...
Estava com effeito fresca como uma flor, com a lingoasinha
muito rosada, e a sua vontade já de lunchar.
Carlos tranquillisou miss Sarah. Oh, ella via bem
que mademoiselle estava boa. O que a assustara fôra
achar-se ali só, sem a mamã, com aquella
responsabilidade.
Por isso a tinha deitado... Oh se fosse uma
creança ingleza saía com ella para o ar... Mas
estas
meninas estrangeiras, tão debeis, tão
delicadas...
E o labiosinho gordo da ingleza trahia um desdem
compassivo por estas raças inferiores e deterioradas.
—Mas a mamã não é doente?
Oh, não! Madame era muito forte. O senhor, esse
sim, parecia mais fraco...
—E, como se chama a minha querida amiga? perguntou
Carlos, sentado à cabeceira do leito.
—Esta é Cri-cri, disse a pequena, apresentando
outra vez a boneca. Eu chamo-me Rosa, mas o papá
diz que eu que sou Rosicler.
—Rosicler? realmente? disse Carlos sorrindo d'aquelle
nome de livro de cavallaria, rescendente a
torneios, e a bosques de fadas.
Então, como colhendo simplesmente
informações de
medico, perguntou a miss Sarah se a menina sentira
a mudança de clima. Habitavam ordinariamente Paris,
não é verdade?
[350]
Sim, viviam em Paris no inverno, no parque Monceaux;
de verão iam para uma quinta da Touraine
ao pé mesmo de Tours, onde ficavam até ao
começo
da caça; e iam sempre passar um mez a Dieppe. Pelo
menos fora assim, nos ultimos tres annos, desde que
ella estava com Madame.
Emquanto a ingleza fallava, Rosa, com a sua boneca
nos braços, não cessava de olhar Carlos
gravemente
e como maravilhada. Elle, de vez em quando
sorria-lhe, ou acariciava-lhe a mãosinha. Os olhos da
mãe eram negros: os do pae d'azeviche e pequeninos:
de quem herdara ella aquellas maravilhosas pupillas
d'um azul tão rico, liquido e doce.
Mas a sua visita de medico findara, ergueu-se para
receitar um calmante. Emquanto a ingleza preparava
muito cuidadosamente o papel, e experimentava a
pena, elle examinou um momento o quarto. N'aquella
installação banal d'hotel, certos retoques d'uma
elegancia
delicada revelavam a mulher de gosto e de luxo:
sobre a commoda e sobre a meza havia grandes ramos
de flores: os travesseiros e os lençoes não eram
do
hotel, mas proprios, de bretanha fina, com rendas
e largos monogrammas bordados a duas côres. Na
poltrona que ella usava uma cachemira de Tarnah
disfarçava o medonho reps desbotado.
Depois, ao escrever a receita, Carlos notou ainda
sobre a meza alguns livros de encadernações
ricas,
romances e poetas inglezes: mas destoava ali, estranhamente,
uma brochura singular—o
Manual de
interpretação dos sonhos. E ao
lado, em cima do toucador,
[351]
entre os marfins das escovas, os cristaes dos
frascos, as tartarugas finas, havia outro objecto estravagante,
uma enorme caixa de pó de arroz, toda
de prata dourada, com uma magnifica safira engastada
na tampa dentro d'um circulo de brilhantes
miudos, uma joia exagerada de cocotte, pondo ali
uma dissonancia audaz de explendor brutal.
Carlos voltou junto do leito, e pediu um beijo a
Rosicler: ella estendeu-lhe logo a boquinha fresca
como um botão de rosa; elle não ousou beijal-a
assim n'aquelle grande leito da mãe, e tocou-lhe apenas
na testa.
—Quando vens tu outra vez? perguntou ella agarrando-o
pela manga do casaco.
—Não é necessario vir outra vez, minha querida.
Tu estás boa, e Cri-cri tambem.
—Mas eu quero o meu lunch... Dize a Sarah
que eu posso tomar o meu lunch... E Cri-cri tambem.
—Sim já podeis ambas petiscar alguma cousa...
Fez as suas recommendações á mestra, e
depois,
apertando a mãosinha da pequena:
—E agora adeus, minha linda Rosicler, uma vez
que és Rosicler...
E não quiz ser menos amavel com a boneca, deu-lhe
tambem um
shake-hands.
Isto pareceu captivar Rosa ainda mais. A ingleza,
ao lado, sorria, com duas covinhas na face.
Não era necessario, lembrou Carlos, conservar a
creança na cama, nem tortural-a com cautellas exageradas...
[352]
—Oh, nò, sir!
E se a dôr reapparecesse, ainda que ligeira, mandal-o
logo chamar...
—Oh yes, sir!
E ali deixava o seu bilhete, com a sua adresse.
—Oh thank you, sir!
Ao voltar á sala, o Damaso saltou do sophá, onde
percorria um jornal, como uma féra a quem se abre
a jaula.
—Credo, imaginei que ias lá ficar toda a vida!
Que estivestes tu a fazer? Irra, que estopada!
Carlos, calçando as luvas, sorria, sem responder.
—Então, é cousa de cuidado?
—Não tem nada. Tem uns lindos olhos... E um
nome extraordinario.
—Ah, Rosicler, murmurou Damaso, agarrando o
chapéo com mau modo; muito ridiculo, não
é verdade?
A creada franceza appareceu outra vez a abrir a
porta da sala,—dardejando para Carlos o mesmo
olhar quente e vivo. Damaso recommendou-lhe muito
que dissesse aos senhores, que elle tinha vindo logo
com o medico; e que havia de voltar á noite para
lhes fazer uma surpreza, e para saber se tinham gostado
de Queluz—
si ils avaient aimè
Queluz.
Depois, ao passar diante do escriptorio, metteu a
cabeça, para dizer ao guarda-livros, que a menina
estava boa, tudo ficava em socego.
O guarda livros sorrio, e cortejou.
—Queres que te vá levar a casa? perguntou elle
[353]
a Carlos, em baixo, abrindo a porta do coupé, ainda
com um resto de mau humor.
Carlos preferia ir a pé.
—E acompanha-me tu um bocado, Damaso, tu agora
não tens que fazer.
Damaso hesitou, olhando o céu aspero, as nuvens
pesadas de chuva. Mas Carlos tomara-lhe o braço,
arrastava-o, amavel e gracejando.
—Agora que te tenho aqui, velhaco, homem fatal,
quero o
romance... Tu disseste que
tinhas um
romance. Não te largo.
És meu. Venha o
romance.
Eu sei que os tens sempre bons. Quero o
romance!
Pouco a pouco Damaso sorria, as bochechas esbrazeavam-se-lhe
de satisfação.
—Vae-se fazendo pela vida, disse elle a estoirar
de jactancia.
—Vocês estiveram em Cintra?...
—Estivemos, mas isso não foi divertido... O romance
é outro!
Desprendeu-se do braço de Carlos, fez um signal
ao cocheiro para que os seguisse, e regalou-se pelo
Aterro fóra de contar o seu
romance.
—A coisa é esta... O marido d'aqui a dias vai
para o Brazil, tem lá negocios. E ella fica! Fica com
as criadas e com a pequena, á espera, dois ou tres
mezes. Diz que já andaram até a vêr
casas mobiladas,
que ella não quer estar no hotel... E eu, intimo,
a unica pessoa que ella conhece, mettido de dentro...
Hein, percebes agora?
—Perfeitamente, disse Carlos, arrojando para longe
[354]
o charuto, com um gesto nervoso. E de certo, a pobre
creatura já está fascinada! Já lhe
déste, como
costumas, um beijo ardente entre duas portas! Já a
desgraçada se surtiu da caixa de phosphoros, para
mais tarde quando a abandonares!
Damaso enfiava.
—Não venhas já tu com o espirito e com a
chufasinha...
Não lhe dei beijos que ainda não houve
occasião... Mas, o que te posso dizer, é que
tenho
mulher!
—Pois já era tempo, exclamou Carlos, sem conter
um gesto brusco, e atirando-lhe as palavras
como chicotadas. Já era tempo! Andavas ahi mettido
com umas creaturas ignobeis, uma ralé de lupanar.
Emfim, agora ha progresso. E eu gosto que os meus
amigos vivam n'uma ordem de sentimentos decentes...
Mas vê lá... Não sejas o costumado
Damaso! Não te
vás pôr a alardear isso pelo Gremio e pela casa
Havaneza!
D'esta vez Damaso estacou, suffocado, sem comprehender
aquelle modo, semelhante azedume. E terminou
por balbuciar, livido:
—Tu podes entender muito de medicina e de
bric-a-brac, mas lá a respeito de mulheres, e da maneira
de fazer as cousas, não me dás
licções...
Carlos olhou-o, com um desejo brutal de o espancar.
E de repente, sentio-o tão innofensivo, tão
insignificante,
com o seu ar bochechudo, e molle, que se
envergonhou do surdo despeito que o atravessara,
tomou-lhe o braço, teve duas palavras amaveis.
[355]
—Damaso, tu não me comprehendeste. Eu não
te quiz fazer zangar... É para teu bem... O que
eu receava é que tu, imprudente, arrebatado, apaixonado,
fosses perder essa bella aventura por uma
indiscrição...
E o outro ficou logo contente, sorrindo já, abandonando-se
ao braço do seu amigo, certo que o desejo
do Maia era que elle tivesse uma amante
chic. Não,
elle não se tinha zangado, nunca se zangava com os
intimos... Comprehendia bem que o que Carlos dizia
era por amisade...
—Mas tu, ás vezes, tens essa cousa que te pegou
o Ega, gostas do teu bocadinho de espirito...
E então tranquillisou-o. Não, por imprudencia
não
havia elle de «perder a cousa». Aquillo ia com
todas
as regras. Lá n'isso sobrava-lhe experiencia. A Melanie
já a tinha na mão; já lhe dera duas
libras.
—Isto de mais a mais é uma cousa muito seria...
Ella conhece meu tio, é intima d'elle desde pequena,
tratam-se até por
tu...
—Que tio?
—Meu tio Joaquim... Meu tio Joaquim Guimarães.
Mr. de Guimaran, o que vive em Paris, o amigo
de Gambetta...
—Ah sim, o communista...
—Qual communista, até tem carruagem!
Subitamente lembrou-lhe outra cousa, um ponto
de toilette em que queria consultar Carlos.
—Ámanhã vou jantar com elles, e vão
tambem
dois brazileiros, amigos d'elle, que chegaram ahi ha
[356]
dias, e que partem pelo mesmo paquete... Um é
chic, é da
Legação do Brazil em Londres. De maneira
que é jantar de ceremonia. O Castro Gomes
não me disse nada; mas que te parece, achas que
vá de casaca?...
—Sim, atira-lhe casaca, e uma boa rosa na lapella.
O Damaso olhou-o, pensativo.
—A mim tinha-me lembrado o habito de Christo.
—O habito de Christo... Sim, põe o habito de
Christo ao pescoço, e põe a rosa na botoeira.
—Será talvez de mais, Carlos!
—Não, fica bem ao teu typo.
Damaso fizera parar o coupé que os tinha seguido
a passo. E no ultimo aperto de mão a Carlos:
—Tu sempre vaes á noite, aos Cohens, de dominó?
O meu fato de selvagem ficou divino. Eu venho
mostral-o á noite á brazileira... Entro no Hotel
embrulhado n'um capote, e appareço-lhes de repente
na sala, de selvagem, de Nelusko, a cantar:
Alerta, marinari,
Il vento cangia...
Chic a valer!...
Good bye!
Ás dez horas Carlos vestia-se para o baile dos Cohens.
Fóra, a noite fizera-se tenebrosa, com lufadas
de vento, pancadas d'agoa, que a cada instante batiam
[357]
agrestemente o jardim. Ali, no gabinete de
toilette, errava no ar tepido um vago aroma de sabonete
e de bom charuto. Sobre duas commodas de
pau preto, marchetadas a marfim, duas serpentinas
de velho bronze erguiam os seus molhos de vellas
accezas, pondo largos reflexos doces sobre a seda
castanha das paredes. Ao lado do alto espelho-psyché
alastrava-se, em cima d'uma poltrona, o dominó de
já setim negro com um
grande laço azul-claro.
Baptista, com a casaca na mão, esperava que Carlos
acabasse a chavena de chá preto que elle estava
bebendo aos golos, de pé, em mangas de camisa, e
de gravata branca.
De repente, o timbre electrico da porta particular
reteniu, apressado e violento.
—Talvez outra surpreza, murmurou Carlos, hoje
é o dia das surprezas...
Baptista sorriu, ia pousar a casaca para abrir—quando
em baixo vibrou outro repique brutal, d'uma
impaciencia phrenetica.
Então Carlos, curioso, sahiu á ante-camara: e
ahi,
á meia luz das lampadas Carcel, ainda quebrantada
pelo tom dos velludos côr de cereja, viu, ao abrir-se
a porta por onde entrou um sopro aspero da noite,
apparecer vivamente uma fórma esguia e vermelha,
com um confuso tinir de ferro. Depois, pela escada
acima, duas pennas negras de gallo ondearam, um
manto escarlate esvoaçou—e o Ega estava diante
d'elle, caracterisado, vestido de Mephistopheles!
Carlos apenas poude dizer
bravo—o
aspecto do
[358]
Ega emmudeceu-o. Apezar dos toques de
caracterisação
que quasi o mascaravam, sobrancelhas de diabo,
guias de bigode ferozmente exageradas—sentia-se
bem a afflicção em que vinha, com os olhos
injectados,
perdido, n'uma terrivel pallidez. Fez um
gesto a Carlos, arremessou-se pelo gabinete dentro.
Baptista, logo, discretamente, retirou-se cerrando o
reposteiro.
Estavam sós. Então Ega, apertando
desesperadamente
as mãos, n'uma voz rouca e d'agonia:
—Tu sabes o que me succedeu, Carlos?
Mas não poude dizer mais, suffocado, tremendo
todo; e diante d'elle, devorando-o com os olhos, Carlos
tremia tambem, enfiado.
—Cheguei a casa dos Cohens, continuou Ega por
fim com esforço e quasi balbuciando, mais cedo, como
tinhamos combinado. Ao entrar na sala, já estavam
duas ou tres pessoas... Elle vem direito a mim, e
diz-me: «Você, seu infame, ponha-se já
no meio da
rua... Já no meio da rua senão, diante d'esta
gente,
corro-o a pontapés!» E eu, Carlos...
Mas a colera outra vez abafou-lhe a voz. E esteve
um momento mordendo os beiços, recalcando os
soluços,
com os olhos reluzentes de lagrimas.
Quando as palavras voltaram, foi uma explosão
selvagem:
—Quero-me batter em duello com aquelle malvado,
a cinco passos, metter-lhe uma bala no coração!
Outros sons estrangulados escaparam-se-lhe da
garganta; e, batendo furiosamente o pé, esmurrando
[359]
o ar, berrava, sem cessar, como cevando-se na estridencia
da propria voz.
—Quero matal-o! Quero matal-o! Quero matal-o!
Depois, allucinado, sem ver Carlos, rompeu a
passear desabridamente pelo quarto, ás patadas, com
o manto deitado para traz, a espada mal afivelada
batendo-lhe as canellas escarlates.
—Então descobriu tudo, murmurou Carlos.
—Está claro que descobriu tudo! exclamou o Ega,
no seu passear arrebatado, atirando os braços ao ar.
Como descobriu, não sei. Sei isto, já
não é pouco. Poz-me
fóra!... Hei-de-lhe metter uma bala no corpo! Pela
alma de meu pae, hei-de-lhe varar o coração!...
Quero
que vás lá logo pela manhã com o
Craft... E as condições
são estas: á pistolla, a quinze passos!
Carlos, agora outra vez sereno, acabava a sua chavena
de chá. Depois disse muito simplesmente:
—Meu querido Ega, tu não podes mandar desafiar
o Cohen.
O outro estacou de repellão, atirando pelos olhos
dois relampagos d'ira—a que as medonhas sobrancelhas
de crepe, as duas pennas de gallo ondeando
na gorra, davam uma ferocidade theatral e comica.
—Não o posso mandar desafiar?
—Não.
—Então põe-me fóra de casa...
—Estava no seu direito.
—No seu direito!... Diante de toda a gente?...
—E tu, não eras amante da mulher diante de toda
a gente?...
[360]
O Ega ficou a olhar um momento para Carlos, como
atordoado. Depois fez um grande gesto:
—Não se trata da mulher!... não se fallou da
mulher!...
É uma questão d'honra para mim, quero
mandal-o desafiar, quero matal-o...
Carlos encolheu os hombros.
—Tu não estás em ti. Tens só uma
coisa a fazer; é ficar ámanhã em casa,
a vêr se elle te manda desafiar a
ti...
—O que, o Cohen! exclamou Ega. É um covarde,
é um canalha!... Ou o mato, ou lhe rasgo a
cara com um chicote. Desafiar-me! Olha quem... Tu
estás doido...
E recomeçou o seu passear desabalado do espelho
para a janella, soprando, rilhando os dentes, com repellões
para traz ao manto que faziam oscillar, nas
serpentinas, as chammas altas das vellas.
Carlos não dizia nada, de pé junto da meza,
enchendo
lentamente de novo a sua chavena. Tudo
aquillo começava a parecer-lhe pouco serio, pouco
digno, as ameaças de pontapés do marido, os
furores
melodramaticos do Ega:—e mesmo não podia deixar
de sorrir diante d'aquelle Mephistopheles esgouroviado,
espalhando pelo quarto o brilho escarlate do
seu manto de velludo, e a fallar furiosamente d'honra
e de morte, com sobrancelhas postiças, e escarcella
de coiro á cinta.
—Vamos fallar ao Craft! exclamou de repente Ega,
parando, com esta brusca resolução. Quero
vêr o que
diz o Craft. Tenho lá em baixo uma tipoia; estamos
lá n'um instante!
[361]
—Ir agora á quinta, aos Olivaes? disse Carlos,
olhando o relogio.
—Se és meu amigo, Carlos!...
Carlos immediatamente, sem chamar o Baptista,
acabou de se vestir.
Ega, no entanto, ia preparando uma chavena de
chá, deitando-lhe rhum, ainda tão nervoso, que
mal
podia segurar a garrafa. Depois, com um grande
suspiro, accendeu uma cigarrete. Carlos entrára na
alcova de banho, ao lado, allumiada por um forte
jacto de gaz que assobiava. Fóra, a chuva continuava
seguida e monotona, as goteiras escoavam-se no chão
molle do jardim.
—Achas que a tipoia aguentará? perguntou Carlos
de dentro.
—Aguenta, é o
Canhôto, disse Ega.
Agora reparara no dominó, fôra erguel-o,
examinava-lhe
o setim rico, o bello laço azul claro. Depois,
tendo encontrado diante de si o grande espelho-psyché,
entalou o monoculo no olho, recuou um passo,
contemplou-se d'alto a baixo;—e terminou por pousar
uma das mãos na cinta, appoiar a outra, galhardamente,
sobre os copos da espada.
—Eu não estava mal, oh Carlos, hein?
—Estavas explendido, respondeu o outro de dentro
da alcova. Foi pena estragar-se tudo... Como
estava ella?
—Devia estar de Margarida.
—E elle?
—A besta? De beduino.
[362]
E continuou ao espelho, gosando a sua figura esguia,
as pennas da gorra, os sapatos bicudos de
velludo, e a ponta flamante da espada erguendo o
manto por traz, n'uma prega fidalga.
—Mas então, disse Carlos, apparecendo a enxugar
as mãos, tu não fazes idéa do que se
passou,
o que elle diria á mulher, o escandalo...
—Não faço idéa nenhuma, disse o Ega,
agora
mais sereno. Quando entrei na primeira sala estava
elle, de beduino; estava um outro sujeito d'urso, e
uma senhora não sei de que, de Tyrollesa creio
eu... Elle veiu para mim, e disse-me aquillo: ponha-se
fóra! Não sei mais nada... Nem posso perceber...
O canalha, se descobriu, naturalmente, para
não estragar a festa, não disse nada a Rachel...
Depois é que ellas são!
Ergueu as mãos para o ceu, murmurou:
—É horroroso!
Deu ainda uma volta pelo quarto, e depois n'uma
outra voz, franzindo a face:
—Não sei que diabo aquelle Godefroy me deu para
collar as sobrancelhas, que me picam que tem diabo!
—Tira-as...
Deante do espelho, Ega hesitava em desmanchar
o seu semblante feroz de Santanaz. Mas arrancou-as
por fim—e a gorra emplumada, muito justa, que
lhe escaldava a cabeça. Então Carlos lembrou-lhe
que,
para ir a casa do Craft, se desembaraçasse do manto
e da espada, se agasalhasse n'um paletot d'elle. Ega
deu ainda um longo e mudo olhar ao seu flamejante
[363]
traje infernal, e com um profundo suspiro começou a
desafivelar o talim. Mas o paletot era muito largo,
muito comprido; teve de lhe dar uma dobra nas mangas.
Depois Carlos metteu-lhe um bonet escossez na
cabeça.—E assim arranjado, com as canellas vermelhas
de diabo apparecendo sob o paletot, a gargantilha
escarlate á Carlos IX emergindo da gola, a
velha casqueta de viagem na nuca, o pobre Ega tinha
o ar lamentavel d'um Satanaz pelintra, agasalhado pela
caridade d'um gentleman, e usando-lhe o fato velho.
Baptista allumiou, grave e discreto. Ega ao passar
por elle, murmurou:
—Isto vae mal, Baptista, isto vae mal...
O velho creado teve um movimento triste d'hombros,
como significando que nada no mundo ia bem.
Na rua negra, a parelha quieta dobrava a cabeça
sob a chuva. O
Canhoto, ao ouvir
fallar d'uma gorgeta
de libra, fez um grande espalhafato, rompeu ás
chicotadas; e a velha traquitana lá partiu a galope,
a escorrer d'agua, atroando a calçada.
Por vezes um coupé particular crusava-os, os casacos
de gutta-perche dos criados branquejavam á
luz das lanternas. Então a idéa da festa que
devia
agora resplandecer; Margarida ignorando tudo, walsando
nos braços d'outros, anciosa, á espera d'elle;
a ceia depois, o champagne, as cousas brilhantes que
elle teria dito—todas estas delicias perdidas se vinham
cravar no coração do pobre Ega, arrancavam-lhe
pragas surdas, Carlos fumava silenciosamente,
com o pensamento no Hotel Central.
[364]
Depois de Santa Apolonia a estrada começou, infindavel,
desabrigada, batida pelo ar agreste do rio.
Nenhum dizia uma palavra, cada um para o seu canto,
arripiados na friagem que entrava pelas gretas da
tipoia. Carlos não cessava de vêr o casaco branco
de velludo, com as duas mangas abertas, como dois
braços que se offereciam...
Passava da uma hora quando chegaram á quinta,
a sineta do portão, aos puxões do cocheiro
encharcado,
retumbou lugubre n'aquelle silencio escuro
de aldeia. Um cão ladrou furiosamente: outros latidos
ao longe responderam; e ainda esperaram muito,
antes que um creado, somnolento e resmungão, apparecesse
com uma lanterna. Uma rua d'acacias conduzia
á casa: o Ega praguejava, enterrando os seus
bellos sapatos de velludo no chão lamacento.
Craft, surprehendido com aquelle tumulto, veiu-lhes
ao encontro no corredor, de robe-de-chambre, e a
Revista dos Dois Mundos debaixo do
braço. Percebeu
logo que havia desastre. Levou-os em silencio para
o seu gabinete onde um bom lume de carvão na
chaminé
aquecia, alegrava o aposento todo estofado de
cretones claros. Ambos foram direitos ao lume.
Ega rompera logo a contar o seu caso—emquanto
Craft, sem espanto nem exclamações, ia preparando
methodicamente sobre a meza tres grogs de cognac
e limão. Carlos, sentado ao pé do
fogão, aquecia os
pés: e Craft veiu acabar de ouvir o Ega, accommodando-se
tambem na sua poltrona, do outro lado da
chaminé, com o seu cachimbo na bocca.
[365]
—Emfim, exclamou Ega, de pé, cruzando os braços,
que me aconselhas tu agora?
—Tens a fazer só isto, disse Craft: esperar
ámanhã
em casa que elle te mande os seus padrinhos...
Que tenho a certeza que não manda... E depois, se
vos baterdes, deixar-te ferir ou matar.
—Perfeitamente o que eu disse, murmurou Carlos,
provando o seu grog.
Ega olhou-os a ambos, successivamente, petrificado.
E logo, n'um fluxo de palavras desordenadas, queixou-se
de não ter amigos. Ali estava, n'aquella crise, a maior
da sua vida: e em logar de encontrar, nos seus camaradas
de infancia e de Coimbra, apoio, solidariedade,
lealdade
à tort et à
travers, abandonavam-n'o, pareciam
querer enterral-o, e expol-o a irrisões maiores...
Ia-se commovendo; os olhos vermelhejavam-lhe sob
as lagrimas. E quando algum d'elles ia interrompel-o,
n'uma palavra de senso, batia o pé, persistia na sua
teima—um desafio, matar o Cohen, vingar-se! Tinha
sido insultado. Não existia outra cousa. Não se
tinha
fallado na mulher. Era elle que devia primeiro mandar
padrinhos, lavar a sua honra. Havia pessoas na sala,
quando o outro o insultou. Havia um urso, e uma tyrolesa...
E emquanto a deixar-se varar por uma bala,
não! Tinha mais direito a viver que o Cohen, que era
um burguez, e um agiota... E elle era um homem
de estudo e de arte! Tinha na cabeça livros,
idéas,
cousas grandes. Devia-se ao paiz, á
civilisação!... Se
fosse ao campo, era para fazer a sua pontaria, e abater
o Cohen, ali, como uma besta immunda...
[366]
—Mas o que é, é que não tenho amigos!
gritou
elle exhausto por fim, cahindo para o canto d'um
sophá.
Craft bebia em silencio, e aos golos, o seu cognac.
Foi Carlos que se ergueu, serio e aspero. Elle não
tinha direito de duvidar da sua amisade. Quando lhe
tinha ella faltado? Mas era necessario não ser pueril;
nem theatral... A questão estava simplesmente em
que o Cohen o surprehendera, amando-lhe a mulher.
Logo, podia matal-o, podia entregal-o aos tribunaes,
podia escavacal-o na sala a pontapés...
—Ou peor, interrompeu Craft. Mandar-te a senhora,
com este bilhetinho: «Guarde-a».
—Ou isso! continuava Carlos. Não, senhor: limita-se
a prohibir-te a entrada em casa, um pouco asperamente,
sim, mas indicando que, depois de ter feito
isto, não quer nada mais violento, nem mais dramatico.
Teve portanto um acto de moderação. E tu
queres mandal-o desafiar por isso?...
Mas Ega revoltou-se outra vez, deu um pulo, disparatou
pela sala, sem paletot agora, esguedelhado,
parecendo mais phantastico n'aquelle simples gibão
escarlate, com os sapatos de velludo enlameados, as
longas pernas de cegonha cobertas de malha de
seda vermelha. E teimava que se não tratava d'isso!
Não, não se tratava da mulher! A
questão era outra...
Carlos então zangou-se.
—Para que diabo te expulsou elle de casa então?
Não disparates, homem! Nós estamos-te a dizer o
que
faz um homem de senso. E é triste, que te custe tanto
[367]
a perceber o que manda o senso. Trahiste um amigo
teu... Nada de equivocos! tu declaravas bem alto a
tua amisade pelo Cohen. Trahistel-o, tens de acceitar
a lei: se elle te quizer matar tens de morrer. Se
elle não quizer fazer nada, tens de ficar de
braços
cruzados. Se elle te quizer chamar ahi por essas
ruas um infame, tens de baixar a cabeça, e reconhecer-te
infame...
—Então tenho de engolir a affronta?
Os dois amigos explicaram-lhe que aquelle fato de
Satanaz lhe perturbava a lucidez do criterio mundano—e
que chegava a ser torpe fallar elle, Ega, de
affronta.
Ega, outra vez acabrunhado sobre o sophá, conservou
um momento a cabeça enterrada nas mãos.
—Eu já nem sei, disse elle por fim. Vocês devem
ter rasão... Eu estou-me a sentir idiota ...
Então,
vamos, que hei de eu fazer?
—Vocês teem a tipoia á espera?
perguntou tranquillamente
Craft.
Carlos mandara desapparelhar, recolher o gado esfalfado.
—Excellente! Então, meu caro Ega, tens outra
cousa a fazer, antes de morrer ámanhã talvez,
é
cear esta noite. Eu ia ceiar, e por motivos longos
d'explicar, ha n'esta casa um peru frio. E ha-de haver
uma garrafa de Bourgonhe...
D'ahi a pouco estavam á mesa—n'aquella bella
sala de jantar do Craft, que encantava sempre Carlos,
com as suas tapeçarias ovaes representando bocados
[368]
solitarios d'arvoredo, as severas faenças da
Persia, e a sua original chaminé flanqueada por duas
figuras negras de Nubios com olhos rutilantes de crystal.
Carlos, que se declarara esfomeado, trinchava já
o perú, emquanto Craft, desarrolhava, com
veneração,
duas garrafas do seu velho Chambertin, para
reconfortar Mephistopheles.
Mas Mephistopheles, sombrio e com os olhos avermelhados,
repelliu o prato, desviou o copo. Depois,
sempre condescendeu em provar o Chambertin.
—Pois eu, dizia Craft empunhando o talher, quando
vocês chegaram, estava a lêr um artigo interessante
sobre a decadencia do protestantismo em Inglaterra...
—Que é aquillo, além, n'aquella lata? perguntou
Ega, com uma voz moribunda.
Um
pâtê de
foie-gras. Mephistopheles escolheu com
tedio uma trufa.
—Bem bom, este teu Chambertin, suspirou elle.
—Anda come e bebe com franqueza, gritou-lhe
Craft. Não te romantises. Tu o que tens é fome.
Todas
as tuas idéas esta noite se ressentem da debilidade!
Então Ega confessou que devia estar fraco. Com aquella
excitação do seu trage de Satanaz nem
jantára,
contando ceiar bem em casa do outro... Sim,
com effeito, tinha appetite! Excellente
foie-gras...
E d'ahi a pouco devorava: foram talhadas de perú,
uma porção immensa de lingua d'Oxford, duas
vezes presunto d'York, todas aquellas boas cousas
inglezas que havia sempre em casa do Craft. E elle
só bebeu quasi toda uma garrafa de Chambertin.
[369]
O escudeiro fôra preparar o café: e, no entanto,
ia-se discutindo, em todas as hypotheses, a attitude
provavel do Cohen com a mulher. Que faria elle?
Talvez lhe perdoasse. Ega affirmava que não: era
vaidoso, e de rancores longos! N'um convento tambem
não a fechava, sendo judia...
—Talvez a mate, disse Craft, com toda a seriedade.
Ega, já com os olhos brilhantes do Bourgogne, declarou
tragicamente que elle então entrava n'um
mosteiro. Os dois gracejaram, sem piedade. Em que
mosteiro queria elle entrar? Nenhum era congenere
com o Ega! Para dominicano era muito magro, para
trapista muito lascivo, muito palrador para jesuita,
e para benedictino muito ignorante... Era necessario
crear uma ordem para elle! Craft lembrou a
Santa Blague!
—Vocês não teem coração,
exclamou Ega, enchendo
outro grande copo. Vocês não sabem, eu adorava
aquella mulher!
Então largou a fallar de Rachel. E teve alli, de
certo, os momentos melhores de toda aquella paixão,—porque
poude, sem escrupulo, fazer reluzir a sua
aureola de amante, banhar-se no mar de leite das
confidencias vaidosas. Começou por contar o encontro
com ella na Foz—emquanto Craft, sem perder
uma palavra, como quem se instrue, se erguera a
abrir uma garrafa de Champagne. Disse depois os
passeios na Cantareira; as cartinhas ainda hesitantes
e platonicas, trocadas entre folhas de livros emprestados,
em que ella se assignava
Violetta de
Parma;
[370]
o primeiro beijo, o melhor, surripiado entre duas
portas, emquanto o marido correra acima a buscar-lhe
charutos especiaes; os rendez-vous no Porto, no
Cemiterio do Repouso, as pressões ardentes de
mãos
á sombra dos cyprestes, e os planos de voluptuosidade
combinados entre as lapides funebres...
—Muito curioso! dizia o Craft.
Mas Ega teve de se calar, o criado entrava com o
café. Emquanto se enchiam as chavenas, e Craft
fôra
buscar uma caixa de charutos, elle acabou a garrafa
de Champagne, já pallido, com o nariz afilado.
O criado sahiu, correndo o reposteiro de tapeçaria:
e logo Ega, com o calice de cognac ao lado, recomeçou
as confidencias, contou a volta a Lisboa, a
Villa Balzac, as manhãs deliciosas passadas lá
com
ella no calor d'um ninho d'amor...
Mas agora interrompia-se, vago e com os olhos
turvos, enterrando um momento a cabeça entre os
punhos. Depois lá vinha outro detalhe, os nomes lubricos
que ella lhe dava, uma certa coberta de seda
preta onde ella brilhava como um jaspe... Duas
lagrimas embaciaram-lhe os olhos, jurou que queria
morrer!
—Se vocês soubessem que corpo de mulher! gritou
elle de repente. Oh meninos, que corpo de mulher...
Imaginem vocês um peito...
—Não queremos saber, disse Carlos. Cala-te, tu
estás bebado, miseravel!
Ega ergueu-se, retezando a perna, arrimado de
lado á meza.
[371]
Bebado! Elle? Ora essa!... Era cousa que não
podia, era empiteirar-se. Tinha feito o possivel, bebido
tudo, até agua raz. Nunca! Não podia...
—Olha, vou pôr aquella garrafa á boca, tu
verás.
E fico frio, fico impassivel. A discutir philosophia...
Queres que te diga o que penso de Darwin? É uma
besta... Ora ahi tens. Dá cá a garrafa.
Mas Craft recusou-lh'a; e, um momento Ega ficou
oscillando, a olhar para elle, com a face livida.
—Ou me dás a garrafa... ou me dás a garrafa,
ou te metto uma bala no coração...
Não, nem vales
a bala... Vou-te dar uma bolacha!
De repente os olhos cerraram-se-lhe, abatteu-se
sobre a cadeira, d'ahi sobre o chão, como um fardo.
—Terra! disse tranquillamente Craft.
Tocou a campainha, o escudeiro entrou, apanharam
João da Ega. E emquanto o levavam para o quarto
dos hospedes e lhe despiam o fato de Satanaz, não
cessou de choramingar, dando beijos babosos pelas
mãos de Carlos, balbuciando:
—Rachelsinha!... Racaqué, minha Raquesinha!
gostas do teu bibichinho?...
Quando Carlos partiu na tipoia para Lisboa, não
chovia, um vento frio ia varrendo o ceu, já
clareava
a alvorada.
Ao outro dia, ás dez horas, Carlos voltou aos Olivaes.
Achou Craft dormindo, e subiu ao quarto do
Ega. As janellas tinham ficado abertas, um largo raio
de sol dourava o leito; e elle ressonava ainda, no
meio d'aquella aureola, deitado de lado, com os joelhos
[372]
contra o estomago, o nariz dentro dos
lençoes.
Quando Carlos o sacudio, o pobre John abriu um
olho triste, e bruscamente ergueu-se sobre o cotovello,
espantado para o quarto, para os cortinados
de damasco verde, para um retrato de dama empoada
que lhe sorria de dentro da sua moldura dourada.
De certo as memorias da vespera o assaltaram, porque
se enterrou para baixo, com os lençoes até ao
queixo; e a sua face esverdeada, envelhecida, exprimiu
a desconsolação de deixar aquelles fofos
colxões,
a paz confortavel da quinta—para ir affrontar a Lisboa
toda a sorte de cousas amargas.
—Está frio lá fóra? perguntou elle
melancholicamente.
—Não, está um dia adoravel. Mas levanta-te,
depressa!
Se lá fôr alguem da parte do Cohen, podem
imaginar que fugiste...
Ega deu immediatamente um pulo da cama, e atordoado,
esguedelhado, procurava a roupa, com as
canellas nuas, tropeçando contra os moveis. Só
achou
o gibão de Satanaz. Chamaram o criado, que trouxe
umas calças de Craft. Ega enfiou-as á pressa: e
sem
se lavar, com a barba por fazer, a gola do paletot
erguida, enterrou emfim na cabeça o bonet escossez,
voltou-se para Carlos, disse com um ar tragico:
—Vamos a isso!
Craft, que se erguera, foi acompanhal-os ao portão,
onde esperava o coupé de Carlos. Na alameda de
acacias, tão tenebrosa na vespera sob a chuva, cantavam
[373]
agora os passaros. A quinta, fresca e lavada,
verdejava ao sol. O grande Terra-nova do Craft pulava
em roda d'elles.
—Doe-te a cabeça, Ega? perguntou Craft.
—Não, respondeu o outro, acabando de abotoar
o paletot. Eu hontem não estava bebado... O que
estava era fraco.
Mas, ao entrar para o coupé, fez, com um ar profundo
e philosophico, esta reflexão:
—O que é a gente beber bons vinhos... Estou
como se não fosse nada!
Craft recommendou que se houvesse novidade, lhe
mandassem um telegramma; fechou a portinhola, o
coupé partiu.
Durante a manhã não veiu telegramma á
quinta;
e quando Craft appareceu na Villa Balzac, onde uma
carruagem de Carlos esperava á porta, já
escurecera,
duas vélas ardiam na triste sala verde. Carlos,
estirado no sophá, dormitava, com um livro aberto
sobre o estomago: e Ega passeiava d'um lado para
outro, todo vestido de preto, pallido, com uma rosa
na botoeira. Tinham estado alli na sala, n'aquella
sécca, esperando todo o dia as testemunhas do Cohen.
—Que te dizia eu? Não ha nada, nem podia haver,
murmurou Craft.
Mas Ega, agora agitado de idéas negras, temia
que elle tivesse assassinado a mulher! O sorriso sceptico
de Craft indignou-o. Quem conhecia melhor o
Cohen do que elle? Sob a apparencia burgueza, era
[374]
um monstro! Tinha-lhe visto matar um gato, só por
capricho de derramar sangue...
—Tenho um presentimento de desgraça, balbuciou
elle aterrado.
E logo n'esse momento a campainha retiniu. Ega
acordou precipitadamente Carlos, empurrou os dois
amigos para o quarto de cama. Craft ainda lhe disse
que, áquella hora, não podiam ser os amigos do
Cohen.
Mas elle queria estar só na sala: e lá ficou,
mais
pallido, rigido, muito abotoado na sobrecasaca, com
os olhos cravados na porta.
—Que massada! dizia Carlos dentro, tenteando a
escuridão do quarto.
Craft accendeu no toucador um resto de vella.
Uma luz triste espalhou-se, tudo appareceu n'um
desarranjo: no meio do chão estava cahida uma camisa
de dormir; a um canto ficara a bacia de banho
com agoa de sabão; e, no centro, o enorme leito,
envolto nas suas cortinas de seda vermelha, conservava
uma magestade de tabernaculo.
Um momento estiveram callados. Craft methodico,
e como quem se instrue, examinava o toucador, onde
havia um maço de ganchos de cabello, uma liga
com o fecho quebrado, um ramo de violetas murchas.
Depois foi olhar o marmore da commoda; ahi ficara
um prato com ossos de frango, e ao lado uma meia
folha de papel escripta a lapis, toda emendada, de
certo trabalho litterario do Ega. Elle achava tudo isto
muito curioso.
Da sala, no entanto, vinha um ciciar de vozes subtil
[375]
e intimo. Carlos escutando, julgou sentir uma falla
abafada de mulher... Impaciente, foi á cozinha. A
criada estava sentada á meza, com a mão mettida
pelos cabellos, sem fazer nada, a olhar para a luz: o
pagem, espaparrado n'uma cadeira, chupava o seu
cigarro.
—Quem foi que entrou? perguntou Carlos.
—Foi a criada do sr. Cohen, disse o garoto, escondendo
o cigarro atraz das costas.
Carlos voltou ao quarto, annunciando:
—É a confidente. As cousas terminam amavelmente.
—E como queria você que terminassem? disse
Craft. O Cohen tem o seu Banco, os seus negocios,
as suas letras a vencer, o seu credito, a sua respeitabilidade,
todo um arranjo de cousas a que não
convém um escandalo... É isto que calma os
maridos.
Além d'isso, já se satisfez, já lhe
offereceu
pontapés...
N'esse instante houve um rumor na sala, Ega abriu
violentamente a porta.
—Não ha nada, exclamou elle, deu-lhe uma coça,
e vão ámanhã para Inglaterra!
Carlos olhou para o Craft—que movia a cabeça,
como vendo todas as suas previsões realisadas, e
approvando plenamente.
—Uma coça, dizia o Ega, com os olhos chammejantes
e n'uma voz que sibillava. E depois fizeram
as pazes... Vem ainda a ser um
menage modelo! A
bengala purifica tudo... Que canalha!
[376]
Estava furioso. N'esse momento odiava Rachel—não
perdoando ao seu idolo ter-se deixado desfazer á
paulada. Lembrava-se justamente da bengala do Cohen,
um junco da India, com uma cabeça de galgo
por castão. E aquillo zurzira as carnes que elle tinha
apertado com paixão! Aquillo pozera vergões roxos
onde os seus labios tinham avivado signaes côr de
rosa! E tinham
feito as pazes. E
assim terminava,
relles e chinfrim, o romance melhor da sua vida! Preferiria
sabel-a morta, a sabel-a espancada. Mas não!
levava a sova, deitava-se depois com o marido, e elle
mesmo, decerto arrependido, chamando-lhe nomes
doces, a ajudava, em ceroulas, a fazer as
applicações
de arnica! Aquillo acabava em arnica!
—Entre vocemecê para aqui, sr.
a
Adelia, gritou
elle para a sala, entre para aqui! Aqui só ha amigos.
O segredo acabou, o pudor acabou! Isto são amigos!
Somos tres, mas somos um! Tem vocemecê diante
de si o grande mysterio da Santissima Trindade.
Sente-se, sr.
a Adelia, sente-se...
Não faça
ceremonia...
E póde contar... Aqui a sr.
a Adelia,
meninos,
viu tudo, viu a coça!
A sr.
a Adelia, uma moça gordinha e
baixa, de bonitos
olhos, com um chapéo de flôres vermelhas, veiu
logo da sala rectificando. Não, ella não vira...
Então
o sr. Ega não tinha percebido bem... Ella só
ouvira.
—Aqui está como foi, meus senhores... Eu tinha
ficado a pé, naturalmente, até ao fim do baile,
que
estava que nem me tinha nas pernas. Era já dia claro,
[377]
quando o senhor, ainda vestido de moiro, se fechou
no quarto com a senhora. Eu fiquei na cozinha com
o Domingos á espera que elles tocassem a campainha.
De repente ouvimos gritos!... Eu fiquei estarrecida,
pensei até que eram ladrões. Corremos, eu e o
Domingos,
mas a porta do quarto estava fechada, e os
dois estavam por dentro, lá para o fundo da alcova.
Eu ainda puz o olho á fechadura, mas não pude
vêr
nada... Lá o estalar de bofetadas, e trambulhões,
e
sons de bengalada, isso sim, isso ouvia-se perfeitamente;
e os gritos. Eu disse logo ao Domingos
«ai que é uma questão, ai que
lá se foi tudo.» Mas
de repente, silencio geral! Nós voltámos para a
cozinha;
d'ahi a pouco o sr. Cohen appareceu, todo esguedelhado,
em mangas de camisa, a dizer que nos
podiamos deitar, que elles não precisavam nada, e
que amanhã fallariamos!... Depois lá ficaram toda
a noite, e pela manhã parece que estavam muito
amiguinhos... Que eu não puz os olhos na senhora.
O sr. Cohen, apenas se levantou, veiu á cozinha, fez-me
elle as contas, e pôz-me fóra; muito mal creado,
até
me ameaçou com a policia... Foi pelo Domingos, que
eu soube agora, quando fui buscar o bahú com um
gallego, que o sr. Cohen ía com a senhora para Inglaterra.
Emfim, um chinfrim... Eu até tenho estado
todo o dia com o estomago embrulhado.
A sr.
a Adelia com um suspiro, pondo os olhos no
chão, calou-se. Ega, com os braços cruzados,
olhava
amargamente para os seus amigos. Que lhes parecia
aquillo? Uma coça!.. Se um covarde d'aquelles não
[378]
merecia uma bala no coração! Mas ella tambem,
deixar-se
tocar, não ter fugido, consentir ainda depois
em dormir com elle!.. Tudo uma corja!
—E a sr.
a Adelia, perguntava Craft,
não tem
idéa
de como elle descobriu?..
—Isso é que é prodigioso! gritou Ega, apertando
as mãos na cabeça.
Sim, prodigioso! Não fôra carta apanhada: elles
não
se escreviam. Não podia ter surprehendido as visitas
á Villa Balzac: as cousas estavam combinadas com
uma arte muito subtil, perfeitamente impenetraveis.
Para vir ali, nunca ella commettera a
indiscripção de
se servir da sua carruagem. Nunca ella claramente
entrara pela porta. Os criados d'elle nunca a tinham
visto, não sabiam quem era a senhora que o visitava...
Tantos cuidados, e tudo estragado!
—Estranho, estranho! murmurava Craft.
Houve um silencio. A sr.
a Adelia terminara por
descançar familiarmente n'uma cadeira, com a sua
trouxasinha no regaço.
—Pois olhe, sr. Ega, disse ella, depois de reflectir
creia então uma cousa, é que foi em sonhos.
Já tem
acontecido... Foi a senhora que sonhou alto com
v. Ex.
a, disse tudo, o sr. Cohen ouviu, ficou de
pedra
no sapato, espreitou-a, e descobriu a marosca...
E eu sei que ella sonha alto.
Ega, diante da sr.
a Adelia, percorria-a desde as
flôres
do chapéo até á roda das saias, com os
olhos faiscantes.
—Como é possivel que elle ouvisse? Se elles tinham
quartos separados!... Eu sei que tinham.
[379]
A sr.
a Adelia baixou as palpebras, acariciou com
os dedos calçados de luvas pretas a sua trouxasinha
redonda, e disse mais baixo estas palavras:
—Não tinham, não senhor. Nem a senhora consentia
em tal arranjo... A senhora gosta muito do marido,
e tem muitos ciumes d'elle.
Houve um silencio embaraçado e desagradavel.
Sobre o toucador o resto da vella acabava, com uma
luz lugubre. E Ega, que affectara sorrir, encolher os
hombros, dava pelo quarto passos lentos e murchos,
triturando o bigode com a mão tremula.
Então Carlos enojado, cançado d'aquelle episodio
que durava desde a vespera, e onde constantemente
se remexera em lodo, declarou que era necessario
findar! Eram oito horas, e elle queria jantar...
—Sim, vamos todos jantar, murmurou o Ega, com
o ar confuso e embaçado.
De repente fez um signal á sr.
a
Adelia, arrastou-a
para a sala, fechou-se lá outra vez.
—Você não está farto d'isto, Craft?
exclamou Carlos,
desesperado.
—Não. Acho um estudo curioso.
Esperaram ainda dez minutos. Subitamente a vella
extinguiu-se. Carlos, furioso, gritou pelo pagem. E o
garoto entrava com um immundo candieiro de petroleo—quando
Ega, mais composto, voltou da sala.
Tudo acabara, a sr.
a Adelia partira.
—Vamos lá jantar, disse elle. Mas aonde, a esta
hora?
E elle mesmo lembrou o André, ao Chiado. Em
[380]
baixo, alem do coupé de Carlos, esperava a tipoia do
Craft. As duas carruagens partiram. A Villa Balzac
ficava apagada, muda, d'ora em diante inutil.
No André tiveram de esperar muito tempo, n'um
gabinete triste, com um papel de estrellinhas douradas,
cortininhas de cassa barata sob sanefas de reps
azul, e dois bicos de gaz que silvavam. Ega, enterrado
no sophá de mollas gastas e lassas, cerrara os
olhos, parecia exhausto. Carlos ía contemplando as
gravuras pela parede, todas relativas a hespanholas:
uma saíndo da egreja; outra saltando uma pocinha
de agua; outra, de olhos baixos, escutando os conselhos
de um canonico. Craft, já á meza, com a
cabeça
entre os punhos, percorria um
Diario da
Manhã,
que o criado offerecera para os senhores se
entreterem.
De repente o Ega deu um murro no sophá, que
rangeu lamentavelmente.
—Eu o que não percebo, gritou elle, é como
aquelle malvado descobriu!..
—A hypothese da sr.
a Adelia, disse Craft
erguendo
os olhos do jornal, parece provavel. Ou em sonhos,
ou acordada, a pobre senhora descahiu-se. Ou talvez
uma denuncia anonyma. Ou talvez apenas um acaso...
O facto é que o homem desconfiou, espreitou-a, e
apanhou-a.
Ega erguera-se:
—Eu não vos quiz dizer diante da Adelia, que
não estava no segredo todo. Mas vocês sabem a casa
defronte da minha, do outro lado da viella, uma casa
[381]
com um grande quintal? Ahi mora uma tia do Gouvarinho,
a D. Maria Lima, uma pessoa respeitavel. A
Rachel ía vêl-a de vez em quando. São
intimas, a
D. Maria Lima é intima de todo o mundo. Depois sahia
por uma portinha do quintal, atravessava a viella,
e estava á porta da minha casa, á porta escusa,
á
porta da escada que vae ter ao cacifro de banho. Já
vocês vêem... Os criados nem a avistavam. Quando
ella lá lunchava, o lunch estava já posto no meu
quarto, as portas fechadas. Mesmo se alguem visse,
era uma senhora com um véo preto, que vinha de casa
da Lima... Como podia o homem apanhal-a?.. Além
d'isso, em casa da Lima, ella mudava de chapéo, e
punha um waterproof...
Craft cumprimentou.
—É brilhante! Parece de Scribe.
—Então, disse Carlos sorrindo, essa respeitavel
fidalga...
—A D. Maria, coitada... Eu te digo, é uma excellente
velha, recebida em toda a parte, mas pobre,
e faz d'estes favores... Ás vezes mesmo em casa
d'ella.
—Leva caro por esses serviços? perguntou tranquillamente
Craft, que em todo aquelle caso procurava
instruir-se.
—Não, coitada, disse o Ega. Dão-se-lhe de vez em
quando cinco libras.
O criado entrava com uma travessa de camarões,
os tres em silencio accommodaram-se á meza.
Depois do jantar recolheram ao Ramalhete. Ega
[382]
ía lá dormir, receiando, com os nervos
tão excitados,
a solidão da villa Balzac. Partiram, de charutos accesos,
n'uma caleche descoberta, sob a noite estrellada
e doce.
Felizmente não estava ninguem no Ramalhete;
Ega, cançado, poude retirar-se logo para o seu quarto,
um aposento d'hospedes no segundo andar, onde havia
um bello leito antigo de pau preto. Ahi, apenas
o criado o deixou, Ega approximou-se do tremó onde
ardiam as luzes, e tirou do pescoço, de sob a camiza,
um medalhão de ouro. Tinha dentro uma photographia
de Rachel:—e a sua intenção agora era queimal-a,
deitar ao balde das agoas sujas as cinzas d'aquella
paixão. Mas, ao abrir o medalhão, a face bonita,
banhada n'um sorriso, sob o vidro oval, pareceu
olhar para elle com uma tristeza no velludo das
pupillas languidas... A photographia mostrava apenas
a cabeça, com uma abertura de decote no começo
do vestido: e as recordações de Ega alargaram
aquelle
decote uma vez mais, revendo o collo, o extraordinario
setim da pelle, o signalsinho sobre o seio esquerdo...
O sabor dos seus beijos passou-lhe de
novo nos labios, sentiu n'alma outra vez como o ecco
dos suspiros cançados que ella soltara nos seus
braços.
E ella ia-se embora,
nunca
mais a veria! Esta
desolada amargura do
nunca mais
revolveu-o todo—e
com a face enterrada no travesseiro, o pobre demagogo,
o grande phraseador soluçou muito tempo
no segredo da noite.
Toda essa semana foi dolorosa para o Ega. Logo
[383]
ao outro dia Damaso apparecera no Ramalhete, e
por elle ouviram os rumores de Lisboa. Já se sabia
no Gremio, no Chiado, por toda a parte, que elle fôra
expulso da casa dos Cohens. O urso, a pastora do
Tyrol, testemunhas do episodio, tinham-n'o badallado
com enthusiasmo. Dizia-se mesmo que o Cohen lhe
dera um pontapé. Os amigos da casa, esses, sobretudo
o Alencar, prégavam com fervor a innocencia da
sr.
a D. Rachel. O Alencar contava publicamente
que
o Ega, provinciano inexperiente e leão de Celorico,
tendo tomado por evidencias de paixão os sorrisos
de amabilidade de uma senhora que recebe,—escrevera
á sr.
a D. Rachel uma carta quasi
obscena, que
ella, coitadinha, toda em lagrimas, viera mostrar ao
marido.
—Então dão-me para baixo, hein, Damaso? murmurou
Ega que, no gabinete de Carlos, embrulhado
n'uma velha ulster, e encolhido n'uma poltrona, escutava
estas cousas com um ar cançado e doente.
Damaso confessou que na sociedade lhe davam para
baixo.
Ah, elle sabia-o bem! tinha antipathias em Lisboa.
Ninguem lhe perdoara ainda a pelissa. A sua verve,
toda em sarcasmos, offendia. E era desagradavel para
muita gente que um homem, com esse espirito tão
perigoso de ferro em braza, tivesse uma mãe rica,
e fosse independente.
Depois, no sabbado seguinte, Carlos, ao voltar do
jantar dos Gouvarinhos—que fôra excellente—contou-lhe
a conversa que tivera com a sr.
a condessa.
[384]
A condessa fallara-lhe muito livremente, como um homem,
d'aquelle desastre do Ega. Tinha-se affligido
muito, não só pela Rachel, coitada, de quem era
amiga, mas pelo Ega, que ella apreciava tanto, tão
interessante, tão brilhante, e que sahia de tudo aquillo
enxovalhado! O Cohen dizia a todos (dissera-o ao Gouvarinho)
que ameaçára o Ega de pontapés, por
elle
ter escripto a sua mulher uma carta immunda. Os
que não sabiam nada, como o Gouvarinho, acreditavam,
apertavam as mãos na cabeça; e os que sabiam,
os que havia seis mezes sorriam da intimidade do
Ega com os Cohens, affectavam tambem acreditar,
cerravam os punhos de indignação. O Ega era
odiado.
E a pequena Lisboa, que vive entre o Gremio e a
casa Havaneza, folgava em «enterrar» o Ega.
Ega, com effeito, sentia-se «enterrado». E n'essa
noite declarou a Carlos que decidira recolher-se á
quinta da mãe, passar lá um anno a acabar as
Memorias
d'um Atomo, e reapparecer em Lisboa com
o seu livro publicado, triumphando sobre a cidade,
esmagando os mediocres. Carlos não perturbou esta
radiante illusão.
Mas quando Ega, antes de partir, foí a recapitular
os seus negocios de casa, de dinheiro, encontrou-se
diante de cousas abominaveis. Devia a todo o mundo,
desde o estofador até ao padeiro; tinha tres letras
a vencer; aquellas dividas, se as deixasse, soltas
e ladrando, juntar-se-iam, na tagarallice publica,
ao caso dos Cohens—e elle seria, além do amante
ameaçado de pontapés, o pelintra perseguido pelos
[385]
credores! Que havia de fazer, senão valer-se de Carlos?
Carlos, para regular tudo, emprestou-lhe dois
contos de réis.
Depois, tendo despedido os criados da Villa Balzac,
surgiram-lhe outras complicações. A
mãe do pagem
veiu d'ahi a dias ao Ramalhete, muito insolente,
gritando que o filho lhe desapparecera! E era exacto:
o famoso pagem, pervertido pela cozinheira, sumira-se
com ella para as viellas da Mouraria, a começar ahi
uma divertida carreira de
faia.
Ega recusou-se a attender ás
reclamações da matrona.
Que diabo tinha elle com essas torpezas?
Então o amante da creatura interveiu,
ameaçadoramente,
Era um policia, um esteio da ordem: e deu
a entender que lhe seria facil provar como na Villa
Balzac se passavam «cousas contra a natureza», e
que
o pagem não era só para servir á
meza... Nauseado
até á morte, Ega pacteou com a intrugice, largou
cinco
libras ao policia. Quando n'essa noite, uma noite triste
d'agoa, Carlos e Craft o acompanharam a Santa Apolonia,
elle disse-lhes na carruagem estas palavras,
triste resumo d'um amor romantico:
—Sinto-me como se a alma me tivesse cahido a
uma latrina! Preciso um banho por dentro!
Affonso da Maia ao saber este desastre do Ega, tinha
dito a Carlos, com tristeza:
—Má estreia, filho, pessima estreia!
[386]
E n'essa noite, depois de voltar de Santa Apolonia,
Carlos pensava n'estas palavras, dizia tambem
comsigo:—Pessima estreia!... E nem só a estreia
do Ega era pessima; tambem a sua. E talvez, por
pensar n'isso, as palavras do avô tinham tido aquella
tristeza. Pessimas estreias! Havia seis mezes que o
Ega chegara de Celorico, embrulhado na sua grande
pellissa, preparado a deslumbrar Lisboa com as
Memorias
d'um Atomo, a dominal-a com a influencia de
uma Revista, a ser uma luz, uma força, mil outras
cousas... E agora, cheio de dividas e cheio de ridiculo,
lá voltava para Celorico, escorraçado. Pessima
estreia! Elle, por seu lado, desembarcara em Lisboa,
com idéas collossaes de trabalho, armado como um
luctador: era o consultorio, o laboratorio, um livro
iniciador, mil cousas fortes... E, que tinha feito?
Dois artigos de jornal, uma duzia de receitas, e esse
melancolico capitulo da
Medicina entre os
Gregos. Pessima
estreia!
Não, a vida não lhe parecia promettedora, n'esse
instante, passeiando na sala de bilhar com as mãos
nos bolsos, emquanto ao lado os amigos conversavam,
e fóra uivava o sudoeste. Pobre Ega, que infeliz
elle iria, encolhido ao canto do seu wagon!.. Mas
os outros, ali, não estavam mais alegres. Craft e o
Marquez tinham começado uma conversa sobre a vida,
soturna e desconsoladora. De que servia viver, dizia
Craft, não se sendo um Livingstone ou um Bismark?
E o Marquez, com um ar philosophico, achava que o
mundo se ia tornando estupido. Depois chegou o Taveira
[387]
com a historia horrivel d'um collega d'elle, cujo
filho cahira pela escada, se despedaçara, no momento
em que a mulher estava a morrer d'uma pleurisia.
Cruges resmungou o quer que fosse sobre suicidio.
As palavras arrastavam-se, melancolicas. Instinctivamente,
Carlos, de vez em quando, ia despertar as
lampadas.
Mas tudo lhe pareceu resplandecer, quando d'ahi
a instantes Damaso chegou, e lhe disse que o Castro
Gomes estava incommodado, e de cama.
—Naturalmente, accrescentou o Damaso, mandam-te
chamar, por teres já visto a pequena...
Carlos ao outro dia não sahiu de casa, esperando
um recado, faiscando d'impaciencia. Nenhum recado
veiu. E, duas tardes depois, ao descer para o Aterro—o
primeiro encontro que teve, ás Janellas Verdes,
foi o Castro Gomes, de caleche descoberta, com a
mulher ao lado, e a cadellinha no collo.
Ella passou, sem o vêr. E logo ali Carlos decidiu
findar aquella tortura, pedir muito simplesmente ao
Damaso que o apresentasse ao Castro Gomes, antes
d'elle partir para o Brazil... Não podia mais, precisava
ouvir a voz d'ella, vêr o que os seus olhos diziam
quando eram interrogados de perto.
Mas toda essa semana achou-se, constantemente,
sem saber como, na companhia dos Gouvarinhos.
Começou por encontrar o conde, que lhe travou do
braço, arrastou-o á rua de S. Marçal,
installou-o
n'uma poltrona, no seu escriptorio, e leu-lhe um artigo
que destinava ao
Jornal do Commercio
sobre a
[388]
situação dos partidos em Portugal: depois
convidou-o
a jantar. Na tarde seguinte elles tinham uma partida
de
croquet. Carlos foi. E, a uma
janella, aberta sobre
o jardim, teve um momento de intimidade com a
condessa, contou-lhe, rindo, como os cabellos d'ella
o tinham encantado, a primeira vez que a vira. N'essa
noite, ella fallou d'um livro de Tennyson, que não
lera; Carlos offereceu-lh'o, foi-lh'o levar ao outro dia,
de manhã. Encontrou-a só, toda vestida de branco:
e riam, baixavam já a voz, as duas cadeias estavam
mais juntas—quando o escudeiro annunciou a sr.
a
D. Maria da Cunha. Era uma cousa tão extraordinaria,
a D. Maria da Cunha áquella hora! Carlos, de
resto, gostava muito da D. Maria da Cunha, uma velha
engraçada, toda bondade, cheia de sympathia por
todos os peccados—e ella mesma muito peccadora
quando era a linda Cunha. D. Maria era muito falladora,
parecia ter que dizer em particular á condessa;
e Carlos deixou-as, promettendo voltar uma d'essas
tardes tomar chá, e fallar de Tennyson.
Na tarde em que elle se vestia para lá ir, Damaso
appareceu-lhe no quarto, a dar-lhe uma novidade
que o enchia de desgosto e de «ferro». O telhudo do
Castro Gomes mudára de idéa, já
não ia
ao Brazil!
Ficava ali, no Central, até ao meiado do verão!
De
sorte que estava tudo estragado...
Carlos pensou logo em fallar da sua apresentação
ao
Castro Gomes. Mas, como em Cintra, sem saber porquê,
veiu-lhe uma repugnancia de a conhecer por
meio do Damaso. E foi-se vestindo em silencio.
[389]
Damaso no entanto maldizia a sua
chance:
—E eu que tinha mulher, eu que a tinha, se houvesse
occasião. Mas que diabo queres tu, assim?...
Queixou-se então do Castro Gomes. Em resumo,
era um telhudo. E a vida d'aquelle homem era mysteriosa...
Que diabo estava elle a fazer em Lisboa?
Ali havia difficuldades de dinheiro... E elles não se
davam bem. Na vespera houvera de certo questão.
Quando elle entrara, ella estava com os olhos vermelhos,
e enfiada; e elle, nervoso, a passeiar pela sala,
a retorcer a barba... Ambos contrafeitos, uma palavra
cada quarto d'hora...
—Sabes tu? exclamou elle. Tenho minha vontade
de os mandar á fava.
Queixou-se tambem d'ella. Era sobretudo muito
desegual. Ora bom modo, ora regelada; e, ás vezes,
elle dizia qualquer cousa muito natural, d'estas cousas
de conversa de sociedade, e ella punha-se a rir.
Era de encavacar, hein? Emfim, gente muito exquisita.
—Onde vaes tu? disse elle, com um suspiro de
aborrecimento, vendo Carlos pôr o chapeu.
Ia tomar chá com a Gouvarinho.
—Pois olha, vou comtigo... Estou d'uma secca!
Carlos hesitou um instante, terminou por dizer:
—Vem, fazes-me até favor...
A tarde estava lindissima, Carlos ia no dog-cart.
—Ha que tempos que não damos assim um passeio
juntos, disse Damaso.
—Tu andas lá mettido com estrangeiros!...
[390]
Damaso deu outro suspiro, e não tornou a dizer
mais nada. Depois, á porta dos Gouvarinhos,
quando soube que a sr.
a condessa recebia,
resolveu
subitamente não entrar. Não, não
entrava. Estava
muito estupido, incapaz de achar uma palavra...
—Ah, e outra cousa que me lembrou agora, exclamou
elle, demorando ainda Carlos diante do portão.
O Castro Gomes, hontem, perguntou-me o que
te havia de mandar pela visita á pequena... Eu
disse que tu tinhas ido lá por favor, como meu amigo.
E elle disse que te havia de vir deixar um bilhete...
Naturalmente vens a conhecel-os.
Não era, pois, necessario que Damaso o apresentasse!
—Apparece á noite, Damasosinho, vai lá jantar
ámanhã! exclamou Carlos, subitamente radiante,
dando um ardente aperto de mão ao seu amigo.
Quando entrou na sala, um escudeiro acabava de
servir chá. A sala, forrada d'um papel severo, verde
e ouro, com retratos de familia em caixilhos pesados,
abria por duas varandas sobre a folhagem do
jardim. Em cima das mezas havia cestos de flôres.
No sophá, duas senhoras de chapeu, ambas de preto,
conversavam, com a chavena na mão. A condessa,
ao estender os dedos a Carlos, ficara tão côr de
rosa—como a seda acolchoada da cadeira em que
estava recostada, ao pé d'um velador de pau santo.
Notou logo, sorrindo, o ar radiante de Carlos. Que
lhe tinha acontecido de bom? Carlos sorriu tambem,
disse que não era possivel entrar ali com outro ar.
Depois perguntou pelo conde...
[391]
O conde ainda não apparecera, detido de certo na
camara dos pares, onde se discutia o projecto sobre
a Reforma da Instrucção Publica.
Uma das senhoras de preto fazia votos para que
se alliviassem os estudos. As pobres creanças succumbiam
verdadeiramente á quantidade exaggerada
de materias, de cousas a decorar: o d'ella, o Joãosinho,
andava tão pallido e tão desfigurado, que ella
ás vezes tinha vontade de o deixar ficar ignorante
de todo. A outra senhora pousou a chavena sobre
um console ao lado, e passando sobre os labios a
renda do lenço, queixou-se sobretudo dos examinadores.
Era um escandalo as exigencias, as difficuldades
que punham, só para poder deitar RR... Ao
pequeno d'ella tinham feito as perguntas mais estupidas,
as mais reles; assim, por exemplo, o que era
o sabão, porque lavava o sabão?...
A outra senhora e a condessa apertaram as mãos
contra o peito, consternadas. E Carlos, muito amavel,
concordou que era uma abominação. O marido
d'ella—continuava a dama de preto—ficara tão desesperado
que, encontrando o examinador no Chiado,
o ameaçou de lhe dar bengaladas. Uma imprudencia,
de certo; mas, emfim, o homem fôra malvado!...
Não havia verdadeiramente senão uma cousa digna
de se estudar, eram as linguas. Parecia insensato
que se torturasse uma creança com botanica, astronomia,
physica... Para que? Cousas inuteis na sociedade.
Assim, o pequeno d'ella, agora, tinha lições
de chimica... Que absurdo! Era o que o pae
[392]
dizia—para que, se elle o não queria para boticario?
Depois d'um silencio, as duas senhoras ergueram-se
ao mesmo tempo; e houve um murmurio de beijos,
um frou-frou de sedas.
Carlos ficou só com a sr.
a condessa,
que reoccupara
a sua cadeira côr de rosa.
Immediatamente ella perguntou pelo Ega.
—Coitado, lá está para Celorico.
Ella protestou, com um lindo riso, contra aquella
phrase tão feia «lá está
para Celorico» Não,
não queria...
Coitado do Ega! Merecia uma melhor oração
funebre. Celorico era horrível para um fim de romance...
—De certo, exclamou Carlos, rindo tambem, era
mais bello dizer-se:
lá está
para Jerusalem!
N'esse momento o criado annunciou um nome, e
appareceu o amigo Telles da Gama, um intimo da
casa. Quando soube que o conde devia estar ainda
batalhando sobre a Reforma da Instrucção, levou
as
mãos á cabeça como lamentando um
tão feio desperdicio
de tempo, e não se quiz demorar. Não, nem
mesmo o excellente chá da sr.
a
condessa o tentava.
A verdade era que estava tão abandonado da graça
de Deus, perdera de tal modo o sentimento das cousas
bellas, que entrara, não para vêr a sr.
a
condessa—mas
simplesmente fallar ao conde. Então ella teve
um bonito ar de princeza offendida, perguntou a Carlos
se uma tão rude sinceridade de montanhez não
fazia saudades das maneiras polidas do antigo regimen.
[393]
E Telles da Gama, gingando de leve, declarava-se
democrata, homem da natureza, com um riso que
lhe mostrava dentes magnificos. Depois, ao sair,
dando um
shake-hands ao amigo Maia,
quiz saber
quando o principe de S.
t Olavia lhe dava emfim a
honra de vir jantar com elle. A sr.
a condessa
indignou-se.
Não, era realmente de mais! Fazer convites,
na sua sala, diante d'ella,—um homem que fallava
tanto da sua cozinheira allemã, e nem sequer lhe offerecera
jámais um prato de chou-crôute!
Telles da Gama, rindo sempre e gingando, jurou
que andava a arranjar a sua sala de jantar para
dar á sr.
a condessa uma festa, que
havia de ficar
nos annaes do reino! Agora com o Maia era differente:
jantavam ambos na cozinha, com os pratos
sobre os joelhos. E abalou, gingando sempre, rindo
ainda da porta, mostrando os dentes magnificos.
—Muito alegre, este Gama, não é verdade? disse
a condessa.
—Muito alegre, disse Carlos.
Então a condessa olhou o relogio. Eram cinco e
meia, áquella hora ella já não
recebia: podiam, emfim,
conversar um momento, em boa camaradagem.
E, o que houve, foi um silencio lento, em que os olhos
de ambos se encontraram. Depois Carlos perguntou
por Charlie, o seu lindo doente. Não estava bem, com
uma ligeira tosse apanhada no passeio da Estrella.
Ah, aquella creança nunca deixava de lhe dar o cuidado!
Ficou callada, com o olhar esquecido no tapete,
movendo languidamente o leque: tinha n'essa tarde
[394]
uma toilette exaggerada, d'um tom de folha de outono
amarellada, d'uma seda grossa, que ao menor
movimento fazia um ruge-ruge de folhas seccas.
—Que lindo tempo tem feito! exclamou ella de
repente, como acordando.
—Lindo! disse Carlos. Eu estive ha dias em Cintra,
e não imagina... Era d'uma belleza de idyllio.
E immediatamente arrependeu-se, quiz-se mal por
ter fallado da sua ida a Cintra, n'aquella sala.
Mas a condessa mal o escutára. Tinha-se erguido,
fallando de algumas canções que essa
manhã recebera
de Inglaterra, as novidades frescas da
season. Depois,
sentou-se ao piano, correu os dedos no teclado,
perguntou a Carlos se conhecia aquella melodia—
The
pale star. Não, Carlos não
conhecia. Mas todas
essas canções inglezas se parecem, sempre do
mesmo
tom dolente, romanesco, e muito
miss. E trata-se sempre
d'um parque melancolico, um regato lento, um
beijo sob os castanheiros...
Então a condessa leu alto a letra da
Pale
star. E
era a mesma cousa, uma estrellinha de amor palpitando
no crepusculo, um lago pallido, um timido beijo
sob as arvores...
—É sempre o mesmo, disse Carlos, e é sempre
delicioso.
Mas a condessa atirou o papel para o lado, achando
aquillo estupido. Começou a remexer entre os papeis
de musica, nervosa, e com um olhar que escurecia. Para
quebrar o silencio, Carlos gabou-lhe as suas lindas
flores.
[395]
—Ah, vou-lhe dar uma rosa! exclamou ella logo,
deixando as musicas.
Mas, a flôr que ella lhe queria dar estava no
boudoir,
ao lado. Carlos seguiu a sua grande cauda, onde
corria um reflexo dourado de folhagem de outono
batida do sol. Era um gabinete forrado de azul, com
um bonito tremó do seculo XVIII, e sobre um forte
pedestal de carvalho, o busto em barro do conde,
na sua expressão de orador, a fronte erguida, a gravata
desmanchada, o labio fremente...
A condessa escolheu um botão com duas folhas, e ella
mesmo lhe veiu florir a sobrecasaca. Carlos sentia o
seu aroma de verbena, o calor que subia do seu
seio arfando com força. E ella não acabava de
prender
a flôr, com os dedos tremulos, lentos, que pareciam
collar-se, deixar-se adormecer sobre o panno...
—
Voila! murmurou emfim, muito
baixo. Ahi está
o meu bello cavalleiro da Rosa Vermelha... E agora,
não me agradeça!
Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se
com os labios nos labios d'ella. A seda do vestido
roçava-lhe, com um fino ruge-ruge entre os
braços;—e
ella pendia para traz a cabeça, branca como uma
cera, com as palpebras docemente cerradas. Elle
deu um passo, tendo-a assim enlaçada, e como
morta; o seu joelho encontrou um sophá baixo, que
rolou e fugiu. Com a cauda de seda enrolada nos
pés, Carlos seguiu, tropeçando, o largo
sophá, que
rolou, fugiu ainda, até que esbarrou contra o pedestal
onde o sr. conde erguia a fronte inspirada. E um
[396]
longo suspiro morreu, n'um rumor de saias amarrotadas.
D'ahi a um momento estavam ambos de pé: Carlos,
junto do busto, coçando a barba, com o ar
embaraçado,
e já vagamente arrependido: ella, diante
do tremó Luiz XV, compondo, com os dedos tremulos,
o frisado do cabello. De repente, na antecamara, ouviu-se
a voz do conde. Ella, bruscamente, voltou-se,
correu a Carlos, e, com os longos dedos cobertos de
pedrarias, agarrou-lhe o rosto, atirou-lhe dois beijos
faiscantes ao cabello e aos olhos. Depois, sentou-se
largamente no sophá—e estava fallando de Cintra,
rindo alto, quando o conde entrou, seguido de um
velho calvo, que se vinha a assoar a um enorme
lenço de seda da India.
Ao vêr Carlos no
boudoir,
o conde teve uma bella
surpreza, esteve-lhe apertando as mãos muito tempo,
com calor, assegurando-lhe que ainda n'essa manhã,
na camara, se lembrara d'elle...
—Então, por que vieram tão tarde? exclamou a
condessa, que se apoderara logo do velho, rindo, mexendo-se,
animada, amavel.
—O nosso conde fallou! disse o velho, ainda com
o olho brilhante de enthusiasmo.
—Fallaste? exclamou ela, voltando-se com um interesse
encantador.
É verdade, fallara; e desprevenido! Quando ouvira
porém o Torres Valente (homem de litteratura,
mas um doido, sem senso pratico) quando o ouvira
defender a gymnastica obrigatoria nos collegios—erguera-se.
[397]
Mas não imaginasse o amigo Maia, que
elle tinha feito um discurso.
—Ora essa! exclamou o velho, agitando o lenço.
E um dos melhores que eu tenho ouvido na camara!
Dos de arromba!
O Conde modestamente protestou. Não: tinha simplesmente
lançado uma palavra de bom senso, e de
bom principio. Perguntara apenas ao seu illustre
amigo, o sr. Torres Valente, se na sua idéa, os nossos
filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam
destinados para palhaços!...
—Ah, esta piada, sr.
a condessa! exclamou o
velho.
Eu só queria que v. ex.
a ouvisse esta
piada... E
como elle a disse! com um
chic!
O conde sorriu, agradeceu para o lado, ao velho.
Sim, dissera-lhe aquillo. E, respondendo a outras
reflexões do Torres Valente, que não queria
nos lyceus, nem nos collegios, um ensino «todo
impregnado de cathecismo», elle lançara-lhe uma
palavra cruel.
—Terrivel, exclamou o velho n'um tom cavo, preparando
o lenço para se assoar outra vez.
—Sim, terrivel... Voltei-me para elle, e disse-lhe
isto... «Creia o digno par, que nunca este paiz
retomará
o seu logar à testa da civilisação,
se, nos lyceus,
nos collegios, nos estabelecimentos de
instrucção,
nós outros os legisladores formos, com mão impia,
substituir a cruz pelo trapezio...
—Sublime, rosnou o velho, dando um ronco medonho
dentro do lenço.
[398]
Carlos, erguendo-se, declarou aquillo d'uma ironia
adoravel.
E o conde, quando elle se despediu, não se contentou
com um simples aperto de mão, passou-lhe o
braço pela cinta, chamou-lhe o seu querido Maia.
A condessa sorria, com o olhar ainda humido, um
resto de pallidez, movendo o leque languidamente,
recostada em duas almofadas do sophá—debaixo do
busto do marido que erguia a fronte inspirada.
X
Tres semanas depois, por uma tarde quente, com
um ceu triste de trovoada, e no momento em que
estavam cahindo algumas gotas grossas de chuva,—Carlos
apeava-se d'um coupé de praça, que viera
parar, de vagar, á esquina da Patriarchal, com os
stores verdes mysteriosamente corridos. Dous sujeitos
que passavam sorriram-se, como se o vissem escoar-se
desgeitosamente d'uma portinha suspeita. E
com effeito a velha traquitana de rodas amarellas acabava
de ser uma alcova d'amor, perfumada de verbena,
durante as duas horas que Carlos rolara dentro
d'ella, pela estrada de Queluz, com a sr.
a
condessa
de Gouvarinho.
A condessa tinha descido no largo das Amoreiras.
E Carlos aproveitara a solidão da Patriarchal para se
[400]
desembaraçar do calhambeque d'assento duro, onde
durante a ultima hora suffocára, sem ousar descer
as vidraças, com as pernas adormecidas, enfastiado
de tantas sedas amarrotadas e dos beijos interminaveis
que ella lhe dava na barba...
Até ahi, durante essas tres semanas, tinham-se encontrado
n'uma casa da rua de Santa Izabel, pertencente
a uma tia da condessa que fôra para o Porto
com a criada, deixando-lhe a chave da casa e o cuidado
do gato. A boa titi, uma velha pequenina, chamada
miss Jones, era uma santa, uma apostola militante
da Egreja Anglicana, missionaria da Obra da
Propaganda; e todos os mezes fazia assim uma viagem
de cathechisação á provincia,
distribuindo Biblias,
arrancando almas á treva catholica, purificando (como
ella dizia) o tremedal papista... Já na escada
havia
um cheirinho adocicado e triste a devoção e a
virgem
velha: e no patamar pendia um largo cartão, com
um distico em letras de ouro entrelaçadas de lyrios
roxos, rogando aos que entravam que preserverassem
nas vias do Senhor! Carlos entrou, tropeçando
logo n'um montão de Biblias. O quarto todo era um
ninho de Biblias; havia-as ás pilhas por cima dos
moveis, transbordando de velhas chapelleiras, misturadas
a pares de galochas, cahidas para o fundo da
bacia d'assento, todas do mesmo formato, entaladas
n'uma encadernação negra como n'uma armadura de
combate, carrancudas e aggressivas! As paredes resplandeciam,
forradas de cartonagens impressas em
lettras de côr, irradiando versiculos duros da Biblia,
[401]
asperos conselhos de moral, gritos dos psalmos, ameaças
insolentes do inferno... E no meio d'esta religiosidade
anglicana, á cabeceira d'um leitosinho de
ferro, rigido e virginal, duas garrafas quasi vasias
de cognac e de gin, Carlos bebeu o gin da santa; e
o leito rigido ficou revolto como um campo de batalha.
Depois a condessa começou a ter medo d'uma visinha,
uma Borges, que visitava a titi, e era viuva de
um antigo procurador dos Gouvarinhos. Uma occasião
em que, no casto leito de miss Jones, elles fumavam
languidamente cigarrilhas, tres enormes argoladas á
porta atroaram a casa. A pobre condessa quasi desmaiou;
Carlos, correndo á janella, viu um homem
que se affastava, com uma estatueta de gesso na mão,
outras dentro d'um cesto. Mas a condessa jurava que
fôra a Borges quem mandára o italiano das imagens
atirar-lhes para dentro aquellas aldrabadas, como tres
avisos, tres rebates da Moral... Não quizera voltar
mais ao beatifico cuté da titi. E n'essa tarde, como
não havia ainda outro escondrijo, tinham abrigado os
seus amores dentro d'aquella tipoia de praça.
Mas Carlos vinha de lá enervado, amollecido, sentindo
já na alma os primeiros bocejos da saciedade.
Havia tres semanas apenas que aquelles braços perfumados
de verbena se tinham atirado ao seu pescoço,—e
agora, pelo passeio de S. Pedro d'Alcantara, sob
o ligeiro chuvisco que batia as folhagens da alameda,
elle ía pensando como se poderia desembaraçar da
sua
tenacidade, do seu ardor, do seu peso... É que a condessa
[402]
ía-se tornando absurda com aquella
determinação
anciosa e audaz de invadir toda a sua vida,
tomar n'ella o logar mais largo e mais profundo—como
se o primeiro beijo trocado tivesse unido não só
os labios de ambos um momento, mas os seus destinos
tambem e para sempre. N'essa tarde lá tinham
voltado as palavras que ella balbuciava, cahida sobre
o seu peito, com os olhos affogados n'uma ternura
supplicante:
Se tu quizesses! que felizes que
seriamos!
que vida adoravel! ambos sós!... E isto
era claro—a
condessa concebera a idéa extravagante de fugir
com elle, ir viver n'um sonho eterno de amor lyrico,
n'algum canto do mundo, o mais longe possivel da
rua de S. Marçal!
Se tu
quizesses! Não, com mil demonios,
não queria fugir com a sr.
a condessa
de Gouvarinho!...
E não era só isto—mas ainda exigencias,
egoismos,
explosões tumultuosas d'um temperamento cioso: já
mais de uma vez, n'essas duas curtas semanas, por
pieguices, ella despropositára, fallara de morrer, debulhada
em lagrimas... Ah! nas lagrimas havia ainda
uma voluptuosidade, faziam parecer mais tenro o setim
do seu collo! O que o inquietava eram certos clarões
que lhe sulcavam o rosto, um dardejar nervoso
dos olhos seccos, revelando a paixão que se accendera
n'aquelles nervos de mulher de trinta e tres annos,
e a queimava até ás profundidades do seu ser...
Certamente este amor punha na sua vida um luxo
mais, e um perfume. Mas o seu encanto estava em
conservar-se facil, sereno, sem penetrar mais fundo
[403]
que a epiderme. Se ella, por qualquer cousa, tinha
os olhos turvos d'agua, e fallava em morrer, e torcia
os braços, e queria fugir com elle—então adeus!
Tudo estava estragado; e a sr.
a condessa com a
sua
verbena, os seus cabellos côr de braza, e o seu pranto,
era apenas um trambolho!
O chuveiro parara, um bocado d'azul lavado appareceu
entre nuvens. E Carlos descia a rua de S. Roque—quando
encontrou o marquez, sahindo d'uma
confeitaria, tristonho, com um embrulho na mão, e o
pescoço abafado n'um enorme cache-nez de seda branca.
—Que é isso? Constipação? perguntou
Carlos.
—Tudo, disse o marquez, pondo-se a caminhar ao
lado d'elle com uma lentidão de moribundo. Deitei-me
tarde. Cançasso. Oppressão no peito. Pigarreira.
Dôres
no lado. Um horror... Levo já aqui rebuçados.
—Não seja piegas, homem! Você o que precisa
é
roast-beef e uma garrafa de Borgonha... Não é
hoje
que você janta lá no Ramalhete?... É,
até tem lá o Craft
e o Damaso... Então descemos por essa rua do Alecrim,
que já não chove, depois pelo Aterro
fóra, a
passo gymnastico, e em chegando lá você
está curado.
O pobre marquez encolheu os hombros. Apenas
sentia o menor encommodo, uma dôr, um arrepio,
considerava-se logo, como elle dizia,
liquidado. O
mundo começava a findar para elle: tomavam-no terrores
catholicos, uma preoccupação angustiosa da
Eternidade. N'esses dias fechava-se no quarto com o
padre capellão—com quem ás vezes, todavia,
terminava
por jogar as damas.
[404]
—Em todo o caso, disse elle, tirando cautelosamente
o chapeu ao passar pela porta aberta da egreja
dos Martyres, deixe-me você ir primeiro ao Gremio...
Quero escrever á Manoeleta que não conte
comigo esta noite...
Depois, distrahida e melancolicamente, perguntou
noticias d'esse devasso do Ega. Esse devasso do Ega
lá estava em Celorico, na quinta materna, ouvindo arrotar
o padre Seraphim, e refugiando-se, segundo
dizia, na grande arte: andava a compor uma comedia
em cinco actos, que se devia chamar o
Lodaçal—escripta
para se vingar de Lisboa.
—O peor, murmurou o marquez, depois de um silencio,
e abafando-se mais no cache-nez, é se eu estou
assim no domingo para as corridas!
—O quê! exclamou Carlos, então as corridas
são
já no domingo?
O marquez foi-lhe explicando, em quanto desciam
o Chiado, que as corridas se tinham apressado a pedido
do Clifford, o grande
sportman de
Cordova, que
devia trazer dois cavallos inglezes... Era um bocado
humilhante depender do Clifford. Mas emfim o Clifford
era um
gentleman e com os seus
cavallos de
raça, os seus jockeys inglezes, constituia a unica
feição
séria do Hyppodromo de Belem. Sem o Clifford
aquillo era uma brincadeira de pilecas e
d'
abas...
—Você não conhece o Clifford?.. Bello rapaz! Um
pouco
poseur, mas oiro de lei.
Tinham entrado no pateo do Gremio, o marquez
estendeu o braço a Carlos.
[405]
—Veja esse pulso!
—O pulso está excellente... Vá você
dar lá esse
golpe á Manoela, que eu fico aqui á espera.
No domingo pois, d'ahi a cinco dias, eram as corridas...
E
ella estaria lá, elle
ia conhecel-a, emfim! Durante
essas tres ultimas semanas vira-a duas vezes:
uma occasião, estando a conversar com o Taveira á
porta do hotel Central, ella chegara a uma das varandas,
de chapeu, calçando uma grande luva preta;
d'outra vez, havia dias, por uma tarde de chuva, ella
viera parar á porta do Mourão, ao Chiado, n'um
coupé
da Companhia, e ficara esperando emquanto o trintanario
levava dentro á loja um embrulho que tinha
a fórma d'um cofre, apertado com uma fita vermelha.
D'ambas as vezes ella vira-o, demorara os olhos n'elle
um momento: e parecera a Carlos que o ultimo
olhar se prolongara mais, como abandonando-se, humedecendo-se,
n'uma leve doçura, ao pousar no seu...
Era talvez uma illusão; mas isto decidiu-o, na sua
impaciencia,
a realisar a antiga idéa (ainda que desagradavel)
de ser apresentado pelo Damaso ao Castro
Gomes. O pobre Damaso, ao principio, diante d'esta
exigencia, ficou perturbado; e com um ar de cão que
defende o seu osso, lembrou logo a Carlos o deploravel
comportamento do Castro Gomes, que não viera
como lh'o annunciara, havia tres semanas, deixar o
seu cartão ao Ramalhete... Mas Carlos desdenhava
essas formalidades estreitas entre rapazes: o Castro
Gomes parecia-lhe um homem de gosto e de
sport;
nem todos os dias apparecia em Lisboa quem soubesse
[406]
dar com correcção o nó da
gravata; e seria
agradavel, mesmo para elle Damaso, reunirem-se todos
de vez em quando, com o Craft, com o marquez,
a fumar um charuto e a fallar de cavallos. Isto
decidiu Damaso, que terminou por propôr a Carlos o
leval-o uma tarde ao hotel Central. Carlos porém
não
queria entrar pelo hotel dentro, de chapeu na mão,
atraz do Damaso. Resolveram então esperar pelas
corridas, onde os Castro Gomes tencionavam ir. «Ahi,
no recinto da pesagem, disse o Damaso, a
apresentação
é mais
chic...
É mesmo pôdre de
chic.»
—Deus queira com effeito que não chova no domingo,
murmurou Carlos quando o marquez desceu,
mais tristonho, mais abafado no seu cache-nez.
Foram seguindo pelo meio da rua, em direcção ao
Ferregial. Adiante do Gremio, encostado ao passeio,
estava um coupé da Companhia, com um trintanario
de luvas brancas esperando junto ao portal. Carlos
olhou, casualmente; e viu, debruçado á
portinhola, um
rosto de creança, d'uma brancura adoravel sorrindo-lhe,
com um bello sorriso que lhe punha duas covinhas
na face. Reconheceu-a logo. Era Rosa, era Rosicler:
e ella não se contentou em sorrír, com o seu
doce olhar azul fugindo todo para elle,—deitou a
mãosinha de fóra, atirou-lhe um grande adeus. No
fundo do coupé, forrado de negro, destacava um perfil
claro d'estatua, um tom ondeado de cabello louro.
Carlos tirou profundamente o chapeu, tão perturbado,
que os seus passos hesitaram.
Ella
abaixou a
cabeça, de leve; alguma cousa de luminoso, um confuso
[407]
rubor d'emoção, espalhou-se-lhe no rosto. E
fugitivamente
foi como se, da mãe e da filha, ao mesmo
tempo, viesse para elle uma suave e quente
emanação
de sympathia.
—Caramba, aquillo pertence-lhe? perguntou o
marquez, que notara a impressão de Madame Gomes.
Carlos córou.
—Não, é uma senhora brazileira a quem eu curei
aquella pequerrucha...
—Irra! que gratidão! rosnou o outro de dentro
das dobras do seu cachenez.
Caminhando em silencio pelo Ferregial, Carlos revolvia
uma idéa que lhe viera de repente, ao receber
aquelle doce olhar. Por que é que Damaso não
levaria
uma manhã o Castro Gomes aos Olivaes, a vêr
as collecções do Craft?... Elle estaria
lá, abria-se
uma garrafa de Champagne, discutiam
bric-à-brac.
Depois, muito naturalmente, elle convidava Castro
Gomes a almoçar no Ramalhete, para lhe mostrar o
grande Rubens, e as suas velhas colxas da India. E
assim, já antes das corridas existiria entre elles uma
camaradagem, talvez um tratamento de
você.
No Aterro, temendo o ar do rio, o marquez quiz
tomar uma tipoia; e, até ao Ramalhete, continuaram
callados. O marquez, outra vez inquieto, apalpava a
garganta. Carlos discutia complicadamente comsigo
aquella lenta inclinação de cabeça, o
olhar d'ella, o
vivo rubor fugitivo... Ella até ahi não o
conhecia
talvez. Mas, depois de atirar o seu grande
adeus,
Rosa, ainda sorrindo, voltara-se para a mãe, a dizer-lhe
[408]
decerto que aquelle era o medico que a curara,
a ella e á boneca... E então a linda
côr que
lhe enternecera o rosto tomava uma significação
mais
profunda—era como a surpreza feliz, o enleio casto,
ao saber que o homem que ella notára já de algum
modo tinha penetrado na sua intimidade, beijara a
sua filha, se tinha mesmo sentado á beira do seu
leito...
Depois ia refazendo o plano da visita aos Olivaes,
mais largo agora, mais brilhante. Porque não iria ella
tambem vêr as curiosidades do Craft? Que tarde encantadora,
que festa, que lindo idyllio! O Craft arranjava
um
lunch delicado no seu velho
serviço de
Wedgewood. Elle ficava á meza junto d'ella. Depois
iam vêr o jardim já em flôr; ou tomavam
chá no pavilhão
japonez, forrado de esteiras. Mas, o que mais
lhe appetecia era percorrer com ella as duas salas
de Craft, parando ambos diante d'uma bella faiença
ou d'um movel raro, e sentindo, atravez da concordancia
dos seus gostos, subir, como um perfume, a
sympathia dos seus corações... Nunca a vira
tão
formosa como n'essa tarde, dentro do coupé forrado
de escuro, onde brilhava mais puramente a brancura
do seu perfil. Sobre o regaço do vestido negro pousava
o tom claro das suas luvas; e no chapéo frisava-se
a ponta de uma penna cor de neve.
A tipoia parara ao portão do Ramalhete, estavam
agora entre as silenciosas tapessarias da ante-camara.
—Como é que ella conhece os Cruges? perguntou
[409]
de repente o marquez, com um tom desconfiado,
desembaraçando-se
do cache-nez.
Carlos olhou para elle, como mal acordado.
—Ella quem? Aquella senhora? Como conhece o
Cruges?... Homem, sim, tem você razão!.. Aquella
era a casa do Cruges! a carruagem estava parada à
porta do Cruges!.. Talvez alguem que móre n'outro
andar.
—Não móra ninguem, disse o marquez, dando um
passo para o corredor. Em todo o caso, é um
mulherão.
Carlos achou a palavra odíosa.
Do corredor ouvia-se já no escriptorio de Affonso,
atravez da porta aberta, a voz petulante do Damaso
fallando alto d'
handicap e de
dead-beat... E foram-n'o
encontrar discursando sobre as corridas, com
convicção,
com auctoridade, como membro do Jockey-Club.
Affonso, na sua velha poltrona, escutava-o, cortez e
risonho, com o reverendo Bonifacio no collo. Ao canto
do sophá, Craft folheava um livro.
E o Damaso appellou logo para o marquez. Não
era verdade, como elle estivera dizendo ao sr. Affonso
da Maia, que iam ser as melhores corridas que se
tinham feito em Lisboa? Só para o grande premio
nacional de seiscentos mil réis havia oito cavallos
inscriptos!
E além d'isso, o Clifford trazia a
Mist.
—Ah, é verdade, oh marquez, é necessario que
você appareça sexta-feira á noite no
Jockey-Club,
para acabarmos o
handicap!
O marquez arrastara uma cadeira para o pé de
[410]
Affonso, para lhe fazer a confidencia dos seus achaques;
mas como Damaso se mettia entre elles, fallando ainda
da
Mist, decidindo que a
Mist era chic, querendo apostar
cinco libras pela
Mist contra o
campo—o marquez
terminou por se voltar, enfastiado, dizendo que
o sr. Damazosinho se estava a dar ares patuscos...
Apostar pela
Mist! Todo o patriota
devia apostar
pelos cavallos do visconde de Darque, que era o
unico criador portuguez!...
—Pois não é verdade, sr. Affonso da Maia?
O velho sorrio, amaciando o seu gato.
—O verdadeiro patriotismo talvez, disse elle, seria,
em logar de corridas, fazer uma boa tourada.
Damazo levou as mãos á cabeça. Uma
tourada!
Então o sr. Affonso da Maia preferia touros a corridas
de cavallos? O sr. Affonso da Maia, um inglez!...
—Um simples beirão, sr. Salcede, um simples
beirão,
e que faz gosto n'isso; se habitei a Inglaterra é
que o meu rei, que era então, me pôz
fóra do meu
paiz... Pois é verdade, tenho esse fraco portuguez,
prefiro touros. Cada raça possue o seu
sport proprio,
e o nosso é o toiro: o toiro com muito sol, ar de dia
santo, agua fresca, e foguetes... Mas sabe o sr. Salcede
qual é a vantagem da toirada? É ser uma grande
escola de força, de coragem e de destreza... Em
Portugal não ha instituição que tenha
uma importancia
egual á tourada de curiosos. E acredite uma cousa:
é que se n'esta triste geração moderna
ainda ha em
Lisboa uns rapazes com certo musculo, a espinha direita,
[411]
e capazes de dar um bom socco, deve-se isso
ao touro e á tourada de curiosos...
O marquez enthusiasmado bateu as palmas. Aquillo
é que era fallar! Aquillo é que era dar a
philosophia
do toiro! Está claro que a tourada era uma grande
educação phisica! E havia imbecis que fallavam em
acabar com os touros! Oh, estupidos, acabaes então
com a coragem portugueza!...
—Nós não temos os jogos de destresa das outras
nações, exclamava elle, bracejando pela sala e
esquecido
dos seus males. Não temos o
cricket, nem o
foot-ball,
nem o
running, como os inglezes:
não temos a
gymnastica como ella se faz em França; não temos
o
serviço militar obrigatorio que é o que torna o
allemão
solido... Não temos nada capaz de dar a um rapaz
um bocado de fibra. Temos só a tourada... Tirem a
tourada, e não ficam senão badamecos derreados da
espinha, a mellarem-se pelo Chiado! Pois você não
acha, Craft?
Craft, do canto do sophá, onde Carlos se fôra
sentar
e lhe fallava baixo, respondeu, convencido:
—O que, o touro? Está claro! o touro devia ser
n'este paiz como o ensino é lá fóra:
gratuito e obrigatorio.
Damazo no entanto jurava a Affonso compenetradamente
que gostava tambem muito de touros. Ah
lá n'essas cousas de patriotismo ninguem lhe levava
a palma... Mas as corridas tinham outro
chic! Aquelles
Bois de Boulogne, n'um dia de
Grand-Prix, hein!...
Era de embatucar!
[412]
—Sabes o que é pena? exclamou elle voltando-se
de repente para Carlos. É que tu não tenhas um
four-in-hand, um
mail coach. Iamos todos d'aqui,
cahia
tudo de chic!
Carlos pensou tambem comsigo que era uma pena
não ter um
four-in-hand.
Mas gracejou, achando mais
em harmonia com o Jockey Club da travessa da
Conceição
irem todos dentro d'um omnibus.
Damazo voltou-se para o velho, deixando cahir os
braços, descorçoado:
—Ahi está, sr. Affonso da Maia! Ahi está por que
em Portugal nunca se faz nada em termos! É por
que ninguem quer concorrer para que as cousas saiam
bem... Assim não é possivel! Eu cá
entendo isto:
que n'um paiz, cada pessoa deve contribuir, quanto
possa, para a civilisação.
—Muito bem, sr. Salcede! disse Affonso da Maia.
Eis ahi uma nobre, uma grande palavra!
—Pois não é verdade? gritou Damazo, triumphante,
a estoirar de goso. Assim eu, por exemplo...
—Tu, o quê? exclamaram dos lados. Que fizeste,
tu pela civilisação?...
—Mandei fazer para o dia das corridas uma sobrecasaca
branca... E vou de véo azul no chapéo!
Um escudeiro entrou com uma carta para Affonso,
n'uma salva. O velho, sorrindo ainda das idéas de Damaso
sobre a civilisação, puxou a luneta, leu as
primeiras
linhas; toda a alegria lhe morreu no rosto, ergueu-se
logo, tendo depositado cuidadosamente sobre
a sua almofada o pesado Bonifacio.
[413]
—Isto é que é ter gosto, isto é que
é comprehender
as cousas! exclamava o Damaso, agitando os braços
para Carlos, quando o velho desappareceu atravez
do reposteiro de damasco. Este teu avô, menino,
é podre de chic!..
—Deixa lá o chic do avô... Anda cá,
que te quero
dizer uma cousa.
Abriu uma das janellas do terraço, levou para lá
o Damaso, e disse-lhe ahi, á pressa, o seu plano da
visita aos Olivaes, e a linda tarde que poderiam passar
na quinta com os Castro Gomes... Elle já fallara ao
Craft, que estava de accordo, achava delicioso, ia encher
tudo de flores. E agora só restava que Damaso
amigo, como amabilidade sua, convidasse os Castro
Gomes...
—Caramba! murmurou Damaso desconfiado, estás
com furor de a conhecer!
Mas emfim concordou que era chic a valer! E via
ahi uma bella occasião para elle!... Em quanto Carlos
e Craft andassem mostrando as curiosidades ao
Castro Gomes e lhe fallassem de cavallos, elle, zás,
ia para a quinta passear com ella... A calhar!
—Pois vou ámanhã já fallar-lhes...
Estou convencido
que aceitam logo. Ella pela-se por bric-a-brac!
—E vens dizer-me se acceitaram ou não...
—Venho dizer-te... Tu vaes gostar d'ella; tem
lido muito, entende tambem de litteratura; e olha
que ás vezes a conversar atrapalha...
O marquez veiu chamal-os para dentro, impaciente,
querendo fechar a porta envidraçada, outra vez preoccupado
[414]
com a garganta. E desejava antes de jantar
ir ao quarto de Carlos gargarejar com agua e sal...
—E é isto um portuguez forte! exclamou Carlos,
travando-lhe alegremente do braço.
—Eu sou piegas na garganta, replicou logo o marquez,
desprendendo-se d'elle e olhando-o com ferocidade.
E você é-o no sentimento. E o Craft é-o
na
respeitabilidade. E o Damasosinho é-o na tolice. Em
Portugal é tudo Pieguice e Companhia!
Carlos rindo, arrastou-o pelo corredor. E de repente,
ao entrarem na ante-camara, deram com Affonso
fallando a uma mulher, carregada de luto, que
lhe beijava a mão, meia de joelhos, suffocada de lagrimas:
e ao lado outra mulher, com os olhos turvos
d'agua tambem, embalava dentro do chaile uma criancinha
que parecia doente e gemia. Carlos parara embaraçado;
o marquez instinctivamente levou a mão á
algibeira. Mas o velho, assim surprehendido na sua
caridade, foi logo empurrando as duas mulheres para
a escada: ellas desciam, encolhidas, abençoando-o,
n'um murmurio de soluços; e elle voltando-se para
Carlos, quasi se desculpou n'uma voz que ainda tremia:
—Sempre estes peditorios... Caso bem triste
todavia... E o que é peior é que por mais que se
dê
nunca se dá bastante. Mundo muito mal feito, marquez.
—Mundo muito mal feito, sr. Affonso da Maia,
respondeu o marquez commovido.
[415]
No domingo seguinte, pelas duas horas, Carlos no
seu phaeton de oito molas, levando ao lado Craft que
durante os dois dias de corridas se installara no Ramalhete,
parou ao fim do largo de Belem, no momento
em que para o lado do Hyppodromo estavam já estalando
foguetes. Um dos criados desceu a comprar
o bilhete de pesagem para o Craft, n'uma tosca guarita
de madeira, armada alli de vespera, onde se mexia
um homemsinho de grandes barbas grisalhas.
Era um dia já quente, azul ferrete, com um d'esses
rutilantes soes de festa que enflammam as pedras
da rua, doiram a poeirada baça do ar, poem fulgores
d'espelho pelas vidraças, dão a toda a cidade
essa
branca faiscação de cal, d'um vivo monotono e
implacavel,
que na lentidão das horas de verão
cança a alma,
e vagamente entristece. No largo dos Jeronymos silencioso,
e a escaldar na luz, um omnibus esperava,
desatrelado, junto ao portal da Egreja. Um trabalhador
com o filho ao collo, e a mulher ao lado no
seu chaile de ramagens, andava alli, pasmando para
a estrada, pasmando para o rio, a gosar ociosamente
o seu domingo. Um garoto ia apregoando desconsoladamente
programmas das corridas que ninguem comprava.
A mulher da agua fresca, sem freguezes, sentara-se
com a sua bilha á sombra, a catar um pequeno.
Quatro pesados municipaes a cavallo patrulhavam
a passo aquella solidão. E a distancia, sem cessar, o
estalar alegre de foguetes morria no ar quente.
No entanto o tritanario continuava debruçado na
guarita, sem poder arranjar lá dentro o troco d'uma
[416]
libra. Foi necessario Craft saltar da almofada, ir lá
parlamentar—emquanto Carlos, impaciente, raspando
com o chicote as ancas das egoas, luzidias como um
setim castanho, riscava no largo uma volta brusca e
nervosa. Desde o Ramalhete viera assim governando,
irritadamente, sem descerrar os labios. É que toda
aquella semana, desde a tarde em que combinara
com o Damaso a visita aos Olivaes, fôra desconsoladora.
O Damaso tinha desapparecido, sem mandar a resposta
dos Castro Gomes. Elle, por orgulho, não procurara
o Damaso. Os dias tinham passado, vazios;
não se realisara o alegre idyllio dos Olivaes; ainda
não conhecia Madame Gomes; não a tornara a ver;
não a esperava nas corridas. E aquelle domingo de
festa, o grande sol, a gente pelas ruas, vestida de
casimiras e de sedas de missa, enchiam-n'o de melancolia
e de malestar.
Uma caleche de praça passou, com dous sujeitos
de flores ao peito, acabando de calçar as
luvas;
depois
um dog-cart, governado por um homem gordo,
de lunetas pretas, quasi foi esbarrar contra o Arco.
Emfim, Craft voltou com o seu bilhete, tendo sido
descomposto pelo homem de barbas propheticas.
Para além do arco, a poeira suffocava. Pelas janellas
havia senhoras debruçadas, olhando por debaixo
de sombrinhas. Outros municipaes, a cavallo, atravancavam
a rua.
Á entrada para o hyppodromo, abertura escalavrada
n'um muro de quintarola, o phaeton teve de
parar atráz do dog-cart do homem gordo—que não
[417]
podia tambem avançar porque a porta estava tomada
pela caleche de praça, onde um dos sujeitos de flor
ao peito berrava furiosamente com um policia. Queria
que se fosse chamar o sr. Savedra! O sr. Savedra,
que era do Jockey-Club, tinha-lhe dito que elle
podia entrar sem pagar a carruagem! Ainda lh'o
disséra na vespera, na botica do Azevedo! Queria que
se fosse chamar o sr. Savedra! O policia bracejava,
enfiado. E o cavalleiro, tirando as luvas, ia abrir a
portinhola, esmurrar o homem—quando, trotando na
sua grande horsa, um municipal de punho alçado correu,
gritou, injuriou o cavalleiro gordo, fez rodar
para óra a caleche. Outro municipal entrometteu-se,
brutalmente.
Duas senhoras, agarrando os vestidos, fugiram
para um portal, espavoridas. E atravez do reboliço,
da poeira, sentia-se adiante, melancolicamente,
um realejo tocando a
Traviata.
O phaeton entrou—atraz do dog-cart, onde o homem
gordo, a estoirar de furia, voltava ainda para
traz a face escarlate, jurando dar parte do municipal:
—Tudo isto está arranjado com decencia, murmurou
Craft.
Diante d'elles, o hyppodromo elevava-se suavemente
em colina, parecendo, depois da poeirada quente da
calçada e das cruas reverberações da
cal, mais fresco,
mais vasto, com a sua relva já um pouco crestada
pelo sol de junho, e uma ou outra papoula vermelhejando
aqui e além. Uma aragem larga e repousante
chegava vagarosamente do rio.
[418]
No centro, como perdido no largo espaço verde,
negrejava, no brilho do sol, um magote apertado de
gente, com algumas carruagens pelo meio, d'onde sobresahiam
tons claros de sombrinhas, o faiscar d'um
vidro de lanterna, ou um casaco branco de cocheiro.
Para além, dos dois lados da tribuna real forrada de
um baetão vermelho de mesa de
Repartição, erguiam-se
as duas tribunas publicas, com o feitio de traves
mal pregadas, como palanques d'arraial. A da esquerda
vasia, por pintar, mostrava á luz as fendas do taboado.
Na da direita, bezuntada por fóra d'azul claro,
havia uma fila de senhoras quasi todas de escuro
encostadas ao rebordo, outras espalhadas pelos primeiros
degraus; e o resto das bancadas permanecia
deserto e desconsolado, d'um tom alvadio de madeira,
que abafava as côres alegres dos raros vestidos de
verão. Por vezes a briza lenta agitava no alto dos dois
mastros o azul das bandeirolas. Um grande silencio
caía do ceu faiscante.
Em volta do recinto da tribuna, fechado por um
tapume de madeira, havia mais soldados de infanteria,
com as bayonetas lampejando ao sol. E no homem
triste que estava á entrada, recebendo os bilhetes,
mettido dentro d'um enorme collete branco, reteso
de gomma, e que lhe chegava até aos joelhos—Carlos
reconheceu o servente do seu laboratorio.
Apenas tinham dado alguns passos encontraram
Taveira á porta do buffete onde se estivera reconfortando
com uma cerveja. Tinha um molho de cravos
amarellos ao peito, polainas brancas,—e queria animar
[419]
as corridas. Já vira a
Mist, a egoa de Clifford, e
decidira apostar pela
Mist. Que
cabeça d'animal, meninos,
que finura de pernas!...
—Palavra que me enthusiasmou! E está decidido,
um dia não são dias, é necessario
animar isto! Aposto
trez mil réis. Quer você Craft?
—Pois sim, talvez, depois... Vamos primeiro vêr
o aspecto geral.
No recinto em declive, entre a tribuna e a pista,
havia só homens, a gente do Gremio, das Secretarias
e da Casa Havaneza; a maior parte á vontade, com
jaquetões claros, e de chapéo côco;
outros mais em
estylo, de sobrecasaca e binoculo a tiracollo, pareciam
embaraçados e quasi arrependidos do seu chic. Fallava-se
baixo, com passos lentos pela relva, entre
leves fumaraças de cigarro. Aqui e além um
cavalheiro,
parado, de mãos atraz das costas, pasmava languidamente
para as senhoras. Ao lado de Carlos dois brazileiros
queixavam-se do preço dos bilhetes, achando
aquillo «uma semsaboria de rachar.»
Defronte a pista estava deserta, com a relva pisada,
guardada por soldados: e junto á corda, do outro
lado, apinhava-se o magote de gente, com as carruagens
pelo meio, sem um rumor, n'uma pasmaceira
tristonha, sob o peso do sol de junho. Um rapazote,
com uma voz dolente, apregoava agua fresca. Lá ao
fundo o largo Tejo faiscava, todo azul, tão azul como
o ceu, n'uma pulverisação fina de luz.
O visconde de Darque, com o seu ar placido de
gentleman louro que começa a engordar, veio apertar
[420]
a mão a Carlos e a Craft. E mal elles lhe fallaram
dos seus cavallos (
Rabbino, o
favorito, e o outro
potro) encolheu os hombros, cerrou os olhos, como
um homem que se sacrifica. Então, que diabo, os rapazes
tinham querido!... Mas elle, realmente, não
podia apresentar um cavallo decente, com as suas
côres, senão d'ahi a quatro annos. De resto
não apurava
cavallos para aquella melancolia de Belem, não
imaginassem os amigos que elle era tão patriota: o
seu fim era ir a Hespanha, bater os cavallos de Caldillo...
—Emfim, vamos a vêr... Dê você
cá lume. Isto
está um horror. E depois, que diabo, para corridas
é necessario cocottes e Champagne. Com esta gente
seria, e agua fresca, não vae!
N'esse momento um dos commissarios das corridas,
um rapagão sem barba, vermelho como uma papoula,
a pingar de suor sob o chapéo branco deitado
para a nuca, veio arrebatar o Darque, «que era muito
preciso, lá na pesagem, para uma duvidasinha.»
—Eu sou o diccionario, dizia o Darque, tornando
a encolher os hombros resignadamente. De vez em
quando vem um d'estes senhores do Jockey-Club, e
folheia-me... Veja você, Maia, em que estado eu fico
depois das corridas! Ha-de ser necessario encadernar-me
de novo...
E lá foi, rindo da sua pilheria—empurrado para
diante pelo commissario, que lhe dava palmadas familiares
nas costas, e lhe chamava
catita.
—Vamos nós vêr as mulheres, disse Carlos.
[421]
Seguiram devagar ao comprido da tribuna. Debruçadas no
rebordo, n'uma fila muda,
olhando vagamente, como d'uma janella em dia de procissão,
estavam ali todas as senhoras
que vêem no high-life dos jornaes, as dos camarotes de S.
Carlos, as das terças-feiras dos
Gouvarinhos. A maior parte tinha vestidos serios de missa. Aqui e
além um d'esses grandes
chapéos emplumados á Gainsborough, que
então se começavam a usar, carregava d'uma
sombra maior o tom trigueiro d'uma carinha miuda. E na luz franca da
tarde, no grande ar da
collina descoberta, as pelles appareciam murchas, gastas, molles, com
um baço de pó de
arroz.
Carlos cumprimentou as duas irmãs do Taveira, magrinhas,
loirinhas, ambas correctamente
vestidas de xadrezinho: depois a viscondessa d'Alvim, nedia e branca,
com o corpete negro
reluzente de vidrilhos, tendo ao lado a sua terna inseparavel, a
Joaninha Villar, cada vez mais
cheia, com um quebranto cada vez mais doce nos olhos pestanudos.
Adiante eram as
Pedrosos, as banqueiras, de côres claras, interessando-se
pelas corridas, uma de programma
na mão, a outra de pé e de binoculo estudando a
pista. Ao lado, conversando com Steinbroken,
a condessa de Soutal, desarranjada, com um ar de ter lama nas saias.
N'uma bancada isolada,
em silencio, Villaça com duas damas de preto.
A condessa de Gouvarinho ainda não viera. E não
estava tambem aquella que os olhos de
Carlos procuravam, inquietamente e sem esperança.
[422]
—É um canteirinho de camelias meladas, disse o
Taveira, repetindo um dito do Ega.
Carlos, no entanto, fôra fallar á sua velha amiga
D. Maria da Cunha que, havia momentos, o chamava
com o olhar, com o leque, com o seu sorriso
de bôa mamã. Era a unica senhora que ousara descer
do retiro ajanellado da tribuna, e vir sentar-se
em baixo, entre os homens: mas, como ella disse, não
aturara a séca de estar lá em cima perfilada,
á espera
da passagem do Senhor dos Passos. E, bella ainda
sob os seus cabellos já grisalhos, só ella
parecia divertir-se
alli, muito á vontade, com os pés pousados
na travessa d'uma cadeira, o binoculo no regaço,
cumprimentada
a cada instante, tratando os rapazes por
meninos... Tinha comsigo uma parenta
que apresentou
a Carlos, uma senhora hespanhola, que seria bonita
se não fossem as olheiras negras, cavadas até
ao meio da face. Apenas Carlos se sentou ao pé
d'ella, D. Maria perguntou-lhe logo por esse aventureiro
do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava
em Celorico compondo uma comedia para se
vingar de Lisboa, chamada o
Lodaçal...
—Entra o Cohen? perguntou ella, rindo.
—Entramos todos, sr.
a D. Maria. Todos
nós somos
lodaçal...
N'esse momento, por traz do recinto, rompia, com
um taran-tan-tan mollengão de tambores e pratos, o
hymno da Carta, a que se misturou uma voz de official
e o bater de coronhas. E, entre dourados de
dragonas, El-rei appareceu na tribuna, sorrindo, de
[423]
quinzena de velludo, e chapéo branco. Aqui e
além,
raros sujeitos cumprimentaram, muito de leve: a senhora
hespanhola, essa, tomou o oculo
do
regaço
de D. Maria, e de pé, muito descançadamente,
poz-se a examinar o rei. D. Maria achava ridicula a
musica, dando ás corridas um ar de arraial...
Além
d'isso, que tolice, o hymno, como n'um dia de parada!
—E este hymno, então, que é medonho, dizia
Carlos.
A sr.
a D. Maria não sabe a
definição
do Ega, e
a sua theoria dos hymnos? Maravilhosa!
—Aquelle Ega! dizia ella sorrindo, já encantada.
—O Ega diz que o hymno é a definição
pela musica
do caracter d'um povo. Tal é o compasso do
hymno nacional, diz elle, tal é o movimento moral
da nação. Agora veja a sr.
a
D. Maria os
differentes
hymnos, segundo o Ega. A
Marselheza
avança com
uma espada núa. O
God save the
queen adianta-se,
arrastando um manto real...
—E o hymno da Carta?
—O hymno da Carta ginga, de rabona.
E D. Maria ria ainda, quando a hespanhola, sentando-se
e repousando-lhe tranquillamente o binoculo
no regaço, murmurou:
—Tiene cara de buena persona.
—Quem, o rei? exclamaram a um tempo D. Maria
e Carlos. Excellente!
No entanto uma sineta tocava, perdida no ar. E
no quadro indicador subiram os numeros dos dois
cavallos que corriam o primeiro premio dos
Productos.
Eram o n.º 1 e o n.º 4. D. Maria Telles quiz-lhe
[424]
saber os nomes, com o appetite de apostar e ganhar
cinco tostões a Carlos. E como Carlos se erguia
para arranjar um programma:
—Deixe estar o menino, disse ella, tocando-lhe no
braço. Ahi vem o nosso Alencar, com o programma...
Olhe para aquillo! Veja se ainda hoje os ha por ahi
com aquelle ar de sentimento e de poesia...
Com um fato novo de cheviote claro que o remoçava,
de luvas gris-perle, o seu bilhete de pezagem na botoeira,
o poeta vinha-se abanando com o programma,
e já de longe sorrindo á sua boa amiga D. Maria.
Quando chegou junto d'ella, descoberto, bem penteado
n'esse dia, com um lustre d'oleo na grenha,
levou-lhe a mão aos labios, fidalgamente.
D. Maria fôra uma das suas lindas contemporaneas.
Tinham dançado muita ardente mazurka nos salões
de Arroios. Ella tratava-o por
tu.
Elle dizia sempre
boa amiga, e
querida Maria.
—Deixa vêr os nomes d'esses cavallos, Alencar...
Senta-t'ahi, anda, faze companhia.
Elle puchou uma cadeira, rindo do interesse que
ella tomava pelas corridas. E elle que a conhecera
sempre uma enthusiasta de toiros!... Pois os nomes
dos cavallos eram
Jupiter e
Escossez...
—Nenhum d'esses nomes me agrada, não aposto.
E então que te parece tudo isto, Alencar?... A nossa
Lisboa vae-se sahindo da concha...
Alencar, pousando o chapéo sobre uma cadeira, e
passando a mão pela sua vasta fronte de bardo,
confessou que aquillo tinha realmente um certo ar de
[425]
elegancia, um perfume de côrte... Depois, lá em
baixo, aquelle maravilhoso Tejo... Sem fallar na
importancia do apuramento das raças cavallares...
—Pois não é verdade, meu Carlos? Tu que entendes
superiormente d'isso, que és um mestre em
todos os
sports, sabes bem que o
apuramento...
—Sim, com effeito, o apuramento, muito importante...—disse
Carlos, vagamente, erguendo-se a
olhar outra vez á tribuna.
Eram quasi tres horas, e agora, de certo,
ella já
não vinha: e a condessa de Gouvarinho não
apparecia
tambem... Começava a invadil-o uma grande lassitude.
Respondendo, com um leve movimento de
cabeça, ao sorriso doce que lhe dava da tribuna a
Joaninha Villar, pensava em voltar para o Ramalhete,
acabar tranquillamente a tarde dentro do seu robe-de-chambre,
com um livro, longe de todo aquelle
tédio.
No entanto, ainda entravam senhoras. A menina
Sá Videira, filha do rico negociante de sapatos d'ourello,
passou pelo braço do irmão, abonecada, com
o arsinho petulante e enojado de tudo, fallando alto
inglez. Depois foi a ministra da Baviera, a baroneza
de Craben, enorme, empavoada, com uma face macissa
de matrona romana, a pelle cheia de manchas
côr de tomate, a estalar dentro d'um vestido de
gorgorão azul com riscas brancas: e atraz o
barão,
pequenino, amavel, aos pulinhos, com um grande
chapéo de palha.
D. Maria da Cunha erguera-se para lhes fallar: e
[426]
durante um momento ouviu-se, como um glou-glou
grosso de perú, a voz da baroneza achando
que c'était
charmant, c'était très beau. O
barão, aos pulinhos,
aos risinhos,
trouvait ça
ravissant. E o Alencar, diante
d'aquelles estrangeiros que o não tinham saudado,
apurava a sua attitude de grande homem nacional, retorcendo
a ponta dos bigodes, alçando mais a fronte
núa.
Quando elles seguiram para a tribuna, e a boa
D. Maria se tornou a sentar, o poeta, indignado,
declarou que abominava allemães! O ar de sobranceria
com que aquella ministra, com feitio de barrica
deixando sahir o cebo por todas as costuras do vestido,
o olhára, a elle! Ora, a insolente baleia!
D. Maria sorria, olhando com sympathia o poeta.
E voltando-se de repente para a senhora hespanhola:
—Concha, deja-me presentar-te D. Thomaz de
Alencar, nuestro gran poeta lyrico...
N'esse momento, algum dos rapazes mais amadores,
dos que traziam binoculos a tiracollo, apressaram
o passo para a corda da pista. Dois cavallos
passavam n'um galope sereno, quasi juntos, sob as
vergastadas estonteadas de dois jockeys de grande
bigode. Uma voz erguendo-se disse que tinha ganhado
Escossez. Outros affirmavam que
fôra
Jupiter.
E no silencio que se fez, de lassidão e de desapontamento,
ondeou mais viva no ar, lançada pelos flautins
da banda, a valsa de
madame Angot.
Alguns
sujeitos tinham-se conservado de costas para a pista,
fumando, olhando a tribuna—onde as senhoras continuavam
[427]
debruçadas no parapeito, á espera do
Senhor dos Passos. Ao lado de Carlos, um cavalheiro
resumiu as impressões, dizendo que tudo
aquillo era
uma intrujice.
E quando Carlos se ergueu para ir procurar o Damaso,
Alencar, muito animado com a hespanhola, fallava
de Sevilha, de malagueñas e do coração
d'Espronceda.
O desejo de Carlos agora era achar Damazo, saber
porque falhara a visita aos Olivaes—e depois ir-se
embora para o Ramalhete, esconder aquella melancolia
que o enevoava, estranha e pueril, misturada
de irritabilidade, fazendo-lhe detestar as vozes que
lhe fallavam, os rantatans da musica, até a belleza
calma da tarde... Mas ao dobrar a esquina da tribuna,
topou com Craft, que o deteve, o apresentou
a um rapaz loiro e forte com quem estava fallando
alegremente. Era o famoso Clifford, o grande
sportman de Cordova. Em redor sujeitos tinham parado,
embasbacados para aquelle inglez legendario
em Lisboa, dono de cavallos de corridas, amigo do
rei d'Hespanha, homem de todos os
chics. Elle, muito
á vontade, um pouco
poseur, com um simples veston
de flanella azul como no campo, ria alto com o Craft
do tempo em que tinham estado no collegio de Rugby.
Depois pareceu-lhe reconhecer Carlos, amavelmente.
Não se tinham encontrado havia quasi um anno, em
Madrid, n'um jantar, em casa de Pancho Calderon? E
assim era. O aperto de mão que repetiram foi mais
intimo—e Craft quiz que fossem regar aquella flor
[428]
d'amisade com uma garrafa de mau Champagne. Em
roda crescera a pasmaceira.
O buffete estava installado debaixo da tribuna, sob
o taboado nú, sem sobrado, sem um ornato, sem
uma flor. Ao fundo corria uma prateleira de taberna
com garrafas e pratos de bolos. E, no balcão tosco,
dois criados, estonteados e sujos, achatavam á pressa
as fatias de sandwiches com as mãos humidas da
espuma da cerveja.
Quando Carlos
e os seus amigos
entraram, havia
junto d'um dos barrotes que especavam os degraus da
tribuna, n'um grupo animado, com copos de champagne
na mão, o marquez, o visconde de Darque, o Taveira,
um rapaz pallido de barba preta, que tinha debaixo
do braço enrolada a bandeira vermelha de
Starter, e o commissario imberbe,
com o chapéo
branco cada vez mais atirado para a nuca, a face
mais esbrazeada, o collarinho já molle de suor. Era
elle que offerecia o champagne; e apenas viu entrar
Clifford, rompeu para elle, de taça no ar, fez tremer
as vigas, soltando o seu vozeirão:
—Á saude do amigo Clifford! o primeiro sportman
da península, e rapaz cá dos nossos!... Hip hip,
hurrah!
Os copos ergueram-se, n'um clamor d'hurrahs,
onde destacou, vibrante e enthusiasta, a voz do
starter.
Clifford agradecia, risonho, tirando lentamente
as luvas—em quanto o marquez, puxando Carlos pelo
braço para o lado, lhe apresentava rapidamente o
commissario, seu primo D. Pedro Vargas.
[429]
—Muito gosto em conhecer...
—Qual historias! Eu é que fazia furor! exclamou
o commissario. Cá a rapaziada do sport deve-se conhecer
toda... Porque isto cá é a confraria, e todo
o resto é chinfrinada!
E immediatamente arrebatou o copo ao ar, berrou
com um impeto que lhe trazia mais sangue á face:
—Á saude de Carlos da Maia, o primeiro elegante
cá da patria! a melhor mão de redea... Hip, hip,
hurrah...
—Hip, hip, hip... Hurrah!
E foi ainda a voz do starter que deu o
hurrah
mais vibrante e mais enthusiasta.
Um empregado assomou á porta do buffete, e chamou
o sr. commissario. O Vargas atirou uma libra
para o balcão, abalou, gritando já de
fóra, com o
olho acceso:
—Isto vae-se animando, rapazes! Caramba! É carregar
no liquido! E você, oh lá de baixo, o
patrão,
sô Manuel, mande vir esse gelo... Está a gente
aqui a tomar a bebida quente... Despache um proprio,
vá você, rebente! Irra!
No entanto em quanto se desarrolhava o champagne
de Craft, Carlos tinha convidado Clifford a
jantar n'essa noite no Ramalhete. O outro acceitou,
molhando os labios no copo, achando excellente que
se continuasse a tradição de jantarem juntos,
sempre
que se encontravam.
—Olá! o general por aqui! exclamou Craft.
Os outros voltaram-se. Era o Sequeira, com a face
[430]
como um pimentão, entalado n'uma sobrecasaca curta
que o fazia mais atarracado, de chapeu branco sobre
o olho, e grande chicote debaixo do braço.
Acceitou um copo de Champagne, e teve muito prazer
em conhecer o sr. Clifford...
—E que me diz você a esta semsaboria? exclamou
elle logo, voltando-se para Carlos.
Em quanto a si estava contente, pulava... Aquella
corrida insipida, sem cavallos, sem jockeys, com meia
duzia de pessoas a bocejar em roda, dava-lhe a certeza
que eram talvez as ultimas, e que o
Jockey-Club rebentava...
E ainda bem! Via-se a gente livre d'um
divertimento que não estava nos habitos do paiz.
Corridas era para se apostar. Tinha-se apostado? Não,
então historias!... Em Inglaterra e em França,
sim!
Ahi eram um jogo como a roletta, ou como o monte...
Até havia banqueiros, que eram os
bookmakers...
Então já viam!
E como o marquez, pousando o copo, e querendo calmar
o general, fallava do apuramento das raças, e da
remonta,—o outro ergueu os hombros, com
indignação:
—Que me está você a cantar! Quer você
dizer que
se apura a raça para a remonta da cavallaria?...
Ora vá lá montar o exercito com cavallos de
corridas!...
Em serviço o que se quer não é o
cavallo
que corra mais, é o cavallo que aguente mais... O
resto é uma historia... Cavallos de corridas são
phenomenos!
São como o boi com duas cabeças...
Então
historias!... Em França até lhe dão
Champagne,
homem!... Então veja lá!
[431]
E a cada phrase, sacudia os hombros, furiosamente.
Depois, d'um trago, esvasiou o seu copo de Champagne,
repetiu que tinha muito prazer em conhecer o
sr. Clifford, rodou sobre os tacões, sahiu, bufando,
entalando mais debaixo do braço o chicote—que tremia
na ponta como avido de vergastar alguem.
Craft sorria, batia no hombro de Clifford.
—Veja você! cá nós, velhos
portuguezes, não gostamos
de novidades, e de
sports... Somos
pelo toiro...
—Com razão, dizia o outro, serio e aprumando-se
sobre o collarinho. Ainda ha dias me contava na Granja,
o Rei de Hespanha...
De repente, fóra, houve um reboliço, e vozes
sobresaltadas
gritando
ordem! Uma senhora, que
atravessava
com um pequenito, fugiu para dentro do buffete,
enfiada. Um policia passou, correndo.
Era uma desordem!
Carlos e os outros, sahindo á pressa, viram ao pé
da tribuna real um magote de homens—onde bracejava
o Vargas. Do largo da pesagem, os rapazes
corriam com curiosidade, já excitados, apinhando-se,
alçando-se em bicos de pés; do recinto das
carruagens
acudiam outros, saltando as cordas da pista,
apesar dos repellões dos policias:—e agora era uma
massa tumultuosa de chapéos altos, de fatos claros,
empurrando-se contra as escadas da tribuna real, onde
um ajudante d'el-rei, reluzente de agulhetas e em cabello,
olhava tranquillamente.
E Carlos, furando, poude emfim avistar no meio
do montão um dos sujeitos que correra no premio
[432]
dos Productos, o que montava
Jupiter, ainda de botas,
com um paletot alvadio por cima da jaqueta de
jockey, furioso, perdido, injuriando o juiz das corridas,
o Mendonça, que arregalava os olhos, aturdido e
sem uma palavra. Os amigos do jockey puxavam-n'o,
queriam que elle fizesse um protesto. Mas elle batia
o pé, tremulo, livido, gritando que não se
importava
nada com protestos! Perdera a corrida por uma pouca
vergonha! O protesto alli era um arrocho! Porque o
que havia n'aquelle hyppodromo era compadrice e
ladroeira!
Individuos, mais serios, indignaram-se com esta brutalidade.
—Fóra! Fóra!
Alguns tomavam o partido do jockey; já aos lados
outras questões surgiam, desabridas. Um sujeito vestido
de cinzento berrava que o Mendonça decidira pelo
Pinheiro, que montava
Escossez, por
ser intimo d'elle;
outro cavalheiro, de binoculo a tiracollo, achava aquella
insinuação infame; e os dois, frente a frente,
com os
punhos fechados, tratavam-se furiosamente de
pulhas.
E, todo este tempo, um homem baixote, de grandes
collarinhos de pintinhas, procurava romper, erguia
os braços, exclamava, n'uma voz supplicante e rouca:
—Por quem são, meus senhores... Um momento...
Eu tenho experiencia... Eu tenho experiencia!
De repente o vozeirão do Vargas dominou tudo, como
um urro de toiro. Diante do jockey, sem chapéo, com
a face a estoirar de sangue, gritava-lhe que era indigno
de estar alli, entre gente decente! Quando um
[433]
gentleman duvida do juiz da corrida, faz um protesto!
Mas vir dizer que ha ladrões, era só d'um canalha
e d'um fadista, como elle, que nunca devia ter pertencido
ao Jockey-Club!—O outro, agarrado pelos
amigos, esticando o pescoço magro como para lhe morder,
atirou-lhe um nome sujo. Então o Vargas, com
um encontrão para os lados, abriu espaço, repuxou
as mangas, berrou:
—Repita lá isso! repita lá isso!
E immediatamente aquella massa de gente oscillou,
embateu contra o taboado da tribuna real, remoinhou
em tumulto, com vozes de
ordem e
morra, chapéos
pelo ar, baques surdos de murros.
Por entre o alarido vibravam, furiosamente, os
apitos da policia; senhoras, com as saias apanhadas,
fugiam atravez da pista, procurando espavoridamente
as carruagens;—e um sopro grosseiro de desordem
relles passava sobre o hyppodromo, desmanchando
a linha postiça de civilisação e a
attitude forçada de
decoro...
Carlos achou-se ao pé do marquez, que exclamava,
pallido:
—Isto é incrivel, isto é incrivel!...
Carlos, pelo contrario, achava pittoresco.
—Qual pittoresco, homem! É uma vergonha, com
todos esses estrangeiros!
No entanto a massa de gente dispersava, lentamente,
obedecendo ao official de guarda, um moço pequenino
mas decidido, que, em bicos de pés, aconselhava
para os lados, n'uma voz de orador, «cavalheirismo»
[434]
e «prudencia...» O jockey de
paletot
alvadio affastou-se, apoiado ao braço d'um amigo, cocheando,
com o nariz a pingar sangue: e o commissario
desceu para a pista, com um cortejo atraz, triumphante,
sem collarinho, arranjando o chapéo achatado
n'uma pasta. A musica tocava a marcha do
Propheta;
em quanto o desgraçado juiz das corridas, o
Mendonça,
encostado á tribuna real, com os braços cahidos,
aparvalhado, balbuciava n'um resto d'assombro:
—Isto só a mim! Isto só a mim!
O marquez, n'um grupo a que se juntára o Clifford,
Craft, e Taveira, continuava a vociferar:
—Então, estão convencidos? Que lhes tenho eu
sempre dito? Isto é um paiz que só supporta
hortas
e arraiaes... Corridas, como muitas outras coisas
civilisadas lá de fóra, necessitam primeiro gente
educada.
No fundo todos nós somos fadistas! Do que gostamos
é de vinhaça, e viola, e bordoada, e viva
lá seu
compadre! Ahi está o que é!
Ao lado d'elle Clifford, que no meio d'aquelle desmancho
todo esticava mais correctamente a sua linha
de gentleman, mordia um sorriso, assegurando,
com um ar de consolação, que conflictos eguaes
succedem
em toda a parte... Mas no fundo parecia
achar tudo aquillo ignobil. Dizia-se mesmo que elle
ia retirar a
Mist. E alguns
davam-lhe razão. Que
diabo! Era aviltante para um bello animal de raça
correr n'um hyppodromo sem ordem e sem decencia,
onde a todo o momento podiam reluzir navalhas.
—Ouve cá, tu viste por acaso esse animal do Damaso?
[435]
perguntou Carlos, chamando para o lado o
Taveira. Ha uma hora que ando a farejal-o...
—Estava ainda ha pouco do outro lado, no recinto
das carruagens, com a Josephina do Salazar... Anda
extraordinario, de sobrecasaca branca, e de véo no
chapéo!
Mas, quando d'ahi a pouco, Carlos quiz atravessar,
a pista estava fechada. Ia-se correr o
Grande premio
nacional. Os numeros já tinham subido ao
indicador,
um tom de sineta morria no ar. Um cavallo do Darque,
o
Rabbino, com o seu jockey de
encarnado e
branco, descia, trazido á redea por um groom e
acompanhado pelo Darque: alguns sujeitos paravam
a examinar-lhe as pernas, com o olho serio, affectando
entender. Carlos demorou-se um momento tambem,
admirando-o: era d'um bonito castanho escuro, nervoso
e ligeiro, mas com o peito estreito.
Depois, ao voltar-se, viu de repente a Gouvarinho,
que acabava de certo de chegar, e conversava de pé
com D. Maria da Cunha. Estava com uma toilette ingleza,
justa e simples, toda de cazimira branca, d'um
branco de creme, onde as grandes luvas negras á
mosqueteira punham um contraste audaz: e o chapéo
preto tambem desapparecia sob as pregas finas d'um
véo branco, enrolado em volta da cabeça,
cobrindo-lhe
metade do rosto, com um ar oriental que não ía
bem
ao seu narizinho curto, ao seu cabello côr de braza.
Mas em redor os homens olhavam para ella como
para um quadro.
Ao avistar Carlos, a condessa não conteve um sorriso,
[436]
um brilho de olhos que a illuminou. Instinctivamente
deu um passo para elle: e ficaram um instante
isolados, fallando baixo, em quanto D. Maria os
observava, sorrindo, cheia já de benevolencia, prompta
já a abençoal-os maternalmente.
—Estive para não vir, dizia a condessa, que parecia
nervosa. O Gastão fez-se tão desagradavel hoje!
E naturalmente tenho d'ir ámanhã para o Porto.
—Para o Porto?...
—O papá quer que eu lá vá,
são os annos d'elle...
Coitado, vae-se fazendo velho, escreveu-me uma carta
tão triste... Ha dois annos que me não
vê...
—O conde vae?
—Não.
E a condessa, depois de dar um sorriso ao ministro
da Baviera, que a cumprimentava de passagem, aos
pulinhos, acrescentou, mergulhando o olhar nos olhos
de Carlos:
—E quero uma coisa.
—O que?
—Que venhas tambem.
Justamente n'esse instante, Telles da Gama, de
programma e lapis na mão, parou junto d'elles:
—Você quer entrar n'uma
poule monstro, Maia?
Quinze bilhetes, dez tostões cada um... Lá em
cima
ao canto da tribuna está-se apostando ferozmente...
A desordem fez bem, sacudiu os nervos, todo o mundo
acordou... Quer v. ex.
a tambem, sr.
a
condessa?
Sim, a condessa tambem entrava na
poule. Telles
da Gama inscreveu-a, e abalou atarefado. Depois foi
[437]
Steinbroken que se acercou, todo florído, de
chapéo
branco, ferradura de rubis na gravata, mais esticado,
mais loiro, mais inglez, n'este dia solemne de
sport official.
—Ah, comme vous êtes belle, comtesse!... Voilá
une toilette merveilleuse, n'est ce pas, Maia?... Est
ce que nous n'allons pas parier quelque chose?
A condessa contrariada, querendo fallar a Carlos,
risonha todavia, lamentou-se de ter já uma fortuna
compromettida... Emfim sempre apostava cinco tostões
com a Filandia. Que cavallo tomava elle?
—Ah, je ne sais pas, je ne connais pas les chevaux...
D'abord, quand on parie...
Ella, impaciente, offereceu-lhe
Vladimiro. E teve
de estender a mão a outro filandez, o secretario de
Steinbroken, um moço loiro, lento, languido, que se
curvara em silencio diante d'ella, deixando escorregar
do olho claro e vago o seu monoculo d'ouro. Quasi
immediatamente Taveira excitado veiu dizer que Clifford
retirara a
Mist.
Vendo-a, assim cercada, Carlos affastou-se. Justamente
o olhar de D. Maria, que o não deixara, chamava-o
agora, mais carinhoso e vivo. Quando elle se chegou,
ella puxou-lhe pela manga, fel-o debruçar, para
lhe murmurar ao ouvido, deliciada:
—Está hoje tão galante!
—Quem?
D. Maria encolheu os hombros, impaciente.
—Ora quem! Quem ha-de ser? O menino sabe
perfeitamente. A condessa... Está de appetite.
[438]
—Muito galante, com effeito, disse Carlos friamente.
De pé, junto de D. Maria, tirando de vagar uma
cigarrette, elle ruminava, quasi com indignação,
as
palavras da condessa. Ir com ella para o Porto!...
E via alli outra exigencia audaz, a mesma tendencia
impertinente a dispôr do seu tempo, dos seus passos,
da sua vida! Tinha um desejo de voltar junto d'ella,
dizer-lhe que
não,
seccamente, desabridamente, sem
motivos, sem explicações, como um brutal.
Acompanhada em silencio pelo esguio secretario de
Steinbroken, ella vinha agora caminhando lentamente
para elle: e o olhar alegre com que o envolvia irritou-o
mais, sentindo no seu brilho sereno, no sorrir
calmo, quanto ella estava certa da sua submissão.
E estava. Apenas o filandez se affastou languidamente—ella,
muito tranquilla, alli mesmo junto de
D. Maria, fallando em inglez, e apontando para a
pista como se commentasse os cavallos do Darque,
explicou-lhe um plano que imaginara, encantador.
Em logar de partir na terça feira para o Porto—ia
na segunda á noite, só com a criada escocessa,
sua
confidente, n'um compartimento reservado. Carlos
tomava o mesmo comboio. Em Santarem, desciam ambos,
muito simplesmente, e iam passar a noite ao
hotel. No dia seguinte ella seguia para o Porto, elle
recolhia a Lisboa...
Carlos abria os olhos para ella, assombrado, emmudecido.
Não esperava aquella extravagancia. Suppozera
que ella o queria no Porto, escondido no
Francfort,
[439]
para passeios romanticos
á Foz, ou visitas furtivas
a algum casebre da Aguardente... Mas a idéa
d'uma noite, n'um hotel, em Santarem!
Terminou por encolher os hombros, indignado.
Como queria ella, n'uma linha de caminho de ferro
em que se encontra constantemente gente conhecida,
apear-se com elle na estação de Santarem, dar-lhe
o braço, maritalmente, e enfiarem para uma estalagem?
Ella, porém, pensára em todos os detalhes.
Ninguem a conheceria, disfarçada n'um grande
water-proof,
e com uma cabelleira postiça.
—Com uma cabelleira!?
—O Gastão! murmurou ella de repente.
Era o conde, por traz d'elle, abraçando-o ternamente
pela cintura. E quiz logo saber a opinião do
amigo Maia sobre as corridas. Bastante animação,
não é verdade? E bonitas
toilettes, certo ar de luxo...
Emfim, não envergonhavam. E ahi estava provado o
que elle sempre dissera, que todos os requintes da
civilisação se aclimatavam bem em Portugal...
—O nosso solo moral, Maia, como o nosso solo physico,
é um solo abençoado!
A condessa voltara para o pé de D. Maria. E Telles
da Gama, passando de novo, n'aquella faina
ruidosa em que o trazia a formação da sua
poule, chamou
Carlos para a tribuna, para elle tirar o seu bilhete,
e apostar com as senhoras...
—Oh Gouvarinho! venha tambem d'ahi, homem!
exclamou elle. Que diabo! É necessario animar isto,
é até patriotico.
[440]
E o conde condescendeu, por patriotismo.
—É bom, dizia elle, travando do braço de Carlos,
fomentar os divertimentos elegantes. Já uma vez o
disse na camara: o luxo é conservador.
Em cima, a um canto, n'um grupo de senhoras,
foram com effeito encontrar uma animação—que
quasi
fazia escandalo n'aquella tribuna silenciosa e á espera
do Senhor dos Passos. A viscondessa de Alvim
dobrava atarefadamente os bilhetes da
poule: uma
secretariasinha da Russia, de bonitos olhos garços,
apostava desesperadamente placas de cinco tostões,
estonteada, já embrulhada, rabiscando com phrenesi
o seu programma. A Pinheiro, a mais magra, com
um vestido leve de raminhos Pompadour que lhe fazia
covas nas claviculas, dava opiniões pretenciosas
sobre os cavallos, em inglez: emquanto o Taveira, de
olhos humidos no meio de todas aquellas saias, fallava
de arruinar as senhoras, de viver á custa das senhoras...
E todos os homens, acotovelando-se, queriam
fazer uma aposta com a Joanninha Villar, que,
de costas contra o rebordo da tribuna, gordinha e
languida, sorrindo, com a cabeça deitada para traz,
as pestanas mortas, parecia offerecer a todas aquellas
mãos, que se estendiam gulosamente para ella,
o seu appetitoso peito de rola.
Telles da Gama, no entanto, ia organisando a confusão
alegre. Os bilhetes estavam dobrados, era necessario
um chapéo... Então os cavalheiros affectaram
um amor desordenado pelos seus chapéos, não
os querendo confiar ás mãos nervosas das
senhoras;
[441]
um rapaz, todo de luto, excedeu-se mesmo, agarrando
as abas do seu, com ambas as mãos, aos gritos.
A secretariasinha da Russia, impaciente, terminou
por offerecer o barrete de marujo do seu pequeno—uma
creança obesa, pousada alli para um lado
como uma trouxa. Foi a Joanninha Villar que levou
em roda os bilhetes, rindo e chocalhando-os preguiçosamente;
emquanto o secretario de Steinbroken,
grave, como exercendo uma funcção, recolhia no
seu
grande chapéo as placas cahindo uma a uma com
um som argentino. E a tiragem foi o lindo divertimento
da
poule. Como estavam só
quatro cavallos
inscriptos, e as entradas eram quinze, havia onze bilhetes
brancos que aterravam. Todos ambicionavam
tirar o numero tres, o de
Rabbino, o
cavallo de Darque,
favorito do
Premio Nacional. Assim
cada mãosinha
soffrega que se demorava no fundo do barrete,
remexendo, tenteando os papeis, causava uma
indignação
folgasã, n'um exagero de risos.
—A sr.
a viscondessa procura de mais!... E
dobrou
os numeros, conhece-os... É necessario probidade,
sr.
a viscondessa!
—Oh, mon Dieu, j'ai
Minhoto, cette
rosse!
—Je vous l'achette, madame!
—Ó sr.
a D. Maria Pinheiro, v. ex.
a
leva dous numeros!...
—Ah! je suis perdue... Blanc!
—E eu! É necessario fazer outra
poule! Vamos
fazer outra
poule!
—Isso! Outra
poule, outra
poule!
[442]
No entanto a enorme baroneza de Craben, n'um
degrau mais elevado, que ella occupava só, como
um throno, erguera-se, com o seu bilhete na mão.
Tinha tirado
Rabbino: e affectava
superiormente não
comprehender esta fortuna, perguntava o que era
Rabbino. Quando o conde de
Gouvarinho lhe explicou
muito serio a importancia de
Rabbino, e que
Rabbino era quasi uma gloria
publica, ella mostrou a
dentuça, condescendeu em rosnar do fundo do papo
que
c'etait charmant. Todo o mundo a
invejava; e a
vasta baleia alastrou-se de novo sobre o seu throno,
abanando-se, com magestade.
E subitamente houve uma surpreza: em quanto
elles tiravam os bilhetes, os cavallos tinham partido,
passavam juntos diante da tribuna. Todos se ergueram,
de binoculos na mão. O
starter ainda estava na
pista, com a bandeira vermelha inclinada ao chão: e
as ancas de cavallos fugiam na curva, lustrosos á luz,
sob as jaquetas enfunadas dos jockeys.
Então todo o rumor de vozes caiu; e no silencio
a bella tarde pareceu alargar-se em redor, mais
suave e mais calma. Atravez do ar sem poeira, sem
a vibração dos raios fortes, tudo tomava uma
nitidez
delicada: defronte da tribuna, na collina, a relva era
d'um louro quente; no grupo de carruagens scintillava
por vezes o vidro de uma lanterna, o metal de
um arreio, ou de pé, sobre uma almofada, destacava
em escuro alguma figura de chapeo alto; e pela pista
verde, os cavallos corriam, mais pequenos, finamente
recortados na luz. Ao fundo, a cal das casas cobria-se
[443]
de uma leve agoada côr de rosa: e o distante horisonte
resplandecia, com dourados de sol, brilhos de
rio vidrado, fundindo-se n'uma nevoa luminosa, onde
as collinas, nos seus tons azulados, tinham quasi
transparencia, como feitas d'uma substancia preciosa...
—É
Rabbino! exclamou por
traz de Carlos, um
sugeito, de pé n'um degrau.
As côres encarnadas e brancas do Darque corriam
com effeito na frente. Os dous outros cavallos iam
juntos; e, o ultimo, n'um galope que adormecia, era
Vladimiro, outro potro do Darque,
baio-claro, quasi
louro á luz.
Então, a secretaria da Russia bateu as palmas,
interpellou Carlos, que justamente tirara na poule o
numero de
Vladimiro. A ella coubera
Minhoto, uma
pileca melancolica do Manoel Godinho; e tinham feito
sobre os dous cavallos uma aposta complicada de
luvas e de amendoas. Já umas poucas de vezes os
seus lindos olhos garços tinham procurado os de Carlos;
e agora tocava-lhe no braço com o leque, gracejava,
triumphava...
—Ah, vous avez perdu, vous avez perdu! Mais c'est
un vieux cheval de fiacre, vôtre
Vladimir.
Como um cavallo de fiacre?
Vladimiro
era o melhor
potro do Darque! Talvez ainda viesse a ser a
unica gloria de Portugal, como outr'ora o
Gladiador
fôra a unica gloria da França! Talvez ainda
substituisse
Camões...
—Ah, vous plaisantez...
[444]
Não, Carlos não gracejava. Estava até
prompto a
apostar tudo por
Vladimiro.
—Você aposta por
Vladimiro? gritou Telles da
Gama, voltando-se vivamente.
Carlos, por divertimento, sem mesmo saber por quê,
declarou que tomava
Vladimiro.
Então, em roda, foi
uma surpreza; e todo o mundo quiz apostar, aproveitar-se
d'aquella phantasia de homem rico, que sustentava
um potro verde, de tres quartos de sangue,
a que o proprio Darque chamava
pileca. Elle sorria,
aceitava; terminou ate por erguer a voz, proclamar
Vladimiro contra o campo. E de todos
os lados o chamavam,
n'uma sofreguidão de saque.
—Mr. de Maia, dix tostons.
—Parfaitement, madame.
—Oh Maia, você quer meia libra?
—Ás ordens.
—Maia, tambem eu! Ouça lá... Tambem eu!...
Dous mil réis.
—Ó sr. Maia, eu vou dez tostões...
—Com o maior prazer, minha senhora...
Ao longe os cavallos davam a volta, na subida do
terreno.
Rabbino já
desapparecera,—e
Vladimiro
n'um galope a que se sentia o cançasso, corria só
na pista. Uma voz elevou-se, dizendo que elle manquejava.
Então Carlos, que continuava a tomar
Vladimiro
contra o campo, sentiu que lhe puxavam de vagar
pela manga; voltou-se; era o secretario de Steinbroken,
chegando subtilmente a tomar tambem parte no
saque á bolsa do Maia, propondo dous soberanos, em
[445]
seu nome e em nome do seu chefe, como uma aposta
collectiva da legação, a aposta do reino da
Filandia.
—C'est fait, monsieur! exclamou Carlos, rindo.
Agora começava a divertir-se. Apenas vira de relance
Vladimiro, e gostara da
cabeça ligeira do potro,
do seu peito largo e fundo; mas apostava sobre
tudo para animar mais aquelle recanto da tribuna, ver
brilhar gulosamente os olhos interesseiros das mulheres.
Telles da Gama ao lado approvava-o, achava
aquillo patriotico e
chic.
—É
Minhoto! gritou de
repente Taveira.
Na volta, com effeito, fizera-se uma mudança. Subitamente
Rabbino perdera terreno, resistindo
á subida,
com o folego curto. E agora era
Minhoto, o cavallicoque
obscuro de Manuel Godinho, que se arremessava
para a frente, vinha devorando a pista, n'um esforço
continuo, admiravelmente montado por um jockey
hespanhol. E logo atraz vinham as côres escarlates
e brancas de Darque: ao principio ainda pareceu
que era
Rabbino: mas, apanhado de
repente n'um
raio oblíquo de sol, o cavallo cobriu-se de tons lustrosos
de baio claro, e foi uma surpreza ao reconhecer-se
que era
Vladimiro! A corrida
travava-se entre
elle e
Minhoto.
Os amigos de Godinho, precipitando-se para a pista,
bradavam, de chapéos no ar:
—
Minhoto, Minhoto!
E, em redor de Carlos, os que tinham apostado pelo
campo contra
Vladimiro faziam tambem
votos por
[446]
Minhoto, em bicos de pés,
junto do parapeito da tribuna,
estendendo o braço para elle, animando-o:
—Anda
Minhoto!... Isso, assim!...
Aguenta, rapaz!...
Bravo!...
Minhoto! Minhoto!
A russa, toda nervosa, na esperança de ganhar a
poule, batia as palmas.
Até a enorme Craben se erguera,
dominando a tribuna, enchendo-a com os seus gorgorões
azues e brancos:—em quanto que, ao lado d'ella,
o conde de Gouvarinho, tambem de pé, sorria, contente
no seu peito de patriota, vendo n'aquelles jockeys
á desfilada, nos chapéos que se agitavam, brilhar
civilisação...
De repente, de baixo, d'ao pé da tribuna, d'entre
os rapazes que cercavam o Darque, uma exclamação
partiu.
—
Vladimiro! Vladimiro!
Com um arranque desesperado o potro viera juntar-se
a
Minhoto: e agora chegavam
furiosamente,
com brilhos vivos de côres claras, os focinhos juntos,
os olhos esbogalhados, sob uma chuva de vergastadas.
Telles da Gama, esquecido da sua aposta, todo
pelo Darque, seu intimo, berrava por
Vladimiro. A
russa, de pé n'um degrau, apoiada sobre o hombro
de Carlos, pallida, excitada, animava
Minhoto com
gritinhos, com pancadas de leque. A agitação
d'aquelle
canto da tribuna estendera-se em baixo ao recinto—onde
se via uma linha de homens, contra a corda da
pista, bracejando. Do outro lado, era uma fila de rostos
pallidos, fixos n'uma curta anciedade. Algumas senhoras
[447]
tinham-se posto de pé nas carruagens. E atravez
da collina, para ver a chegada, dous cavalleiros, segurando
com as mãos os chapéos baixos, corriam
á
desfilada.
—
Vladimiro! Vladimiro! foram de
novo os gritos
isolados, aqui, além.
Os dous cavallos approximavam-se, com um som
surdo das patas, trazendo um ar de rajada.
—
Minhoto! Minhoto!
—
Vladimiro! Vladimiro!
Chegavam... De repente o jockey inglez de
Vladimiro,
todo em fogo, levantando o potro que lhe parecia
fugir d'entre as pernas, esticado e lustroso, fez
silvar triumphantemente o chicote, e d'um arremesso
directo lançou-o além da meta, duas
cabeças adiante
de
Minhoto, todo coberto d'espuma.
Então em volta de Carlos foi uma
desconsolação,
um longo murmurio de lassidão. Todos perdiam;
elle apanhava a
poule, ganhava as
apostas, empolgava
tudo. Que sorte! Que chance! Um addido italiano, thesoureiro
da
poule, empallideceu ao separar-se
do lenço
cheio de prata: e de todos os lados mãosinhas
calçadas
de gris-perle, ou de castanho, atiravam-lhe
com um ar amuado as apostas perdidas, chuva de
placas que elle recolhia, rindo, no chapéo.
—Ah, monsieur, exclamou a vasta ministra da Baviera,
furiosa, mefiez-vous... Vous connaissez le
proverbe: heureux au jeu...
—Helas! madame! disse Carlos, resignado, estendendo-lhe
o chapéo.
[448]
E outra vez um dedo subtil tocou-lhe no braço. Era
o secretario de Steinbroken, lento e silencioso, que
lhe trazia o seu dinheiro e o dinheiro do seu chefe,
a aposta do reino da Filandia.
—Quanto ganha você? exclamou Telles da Gama,
assombrado.
Carlos não sabia. No fundo do chapéo
já reluzia
ouro. Telles contou, com o olho brilhante.
—Você ganha doze libras! disse elle maravilhado,
e olhando Carlos com respeito.
Doze libras! Esta somma espalhou-se em redor,
n'um rumor de espanto. Doze libras! Em baixo os
amigos de Darque, agitando os chapéos, davam ainda
hurrahs. Mas uma
indifferença, um tedio lento, ia
pesando outra vez, desconsoladoramente. Os rapazes
vinham-se deixar cahir nas cadeiras, bocejando, com
um ar exhausto. A musica, desanimada tambem, tocava
cousas plangentes da
Norma.
Carlos, no entanto, n'um degrau da tribuna, com
a idéa de descobrir o Damaso, sondava de binoculo
o recinto das carruagens. A gente, agora, ia dispersando
pela collina. As senhoras tinham retomado
a immobilidade melancolica, no fundo das caleches,
de mãos no regaço. Aqui e além um
dog-cart, mal
arranjado, dava um trote curto pela relva. N'uma
vittoria estavam as duas hespanholas do Eusebiosi
Carlos, no entanto, n'um degrau da tribuna, com
a idéa de descobrir o Damaso, sondava de binoculo
o recinto das carruagens. A gente, agora, ia dispersando
pela collina. As senhoras tinham retomado
a immobilidade melancolica, no fundo das caleches,
de mãos no regaço. Aqui e além um
dog-cart, mal
arranjado, dava um trote curto pela relva. N'uma
vittoria estavam as duas hespanholas do Eusebiosinho,
a Concha e a Carmen, de sombrinhas escarlates.
E sujeitos, de mãos atrás das costas, pasmavam
para um char-à-bancs a quatro attrelado á Daumont
onde, entre uma familia triste, uma ama de lenço
[449]
de lavradeira dava de mamar a uma creança cheia de
rendas. Dous garotos esganiçados passeavam bilhas
d'agua fresca.
Carlos descia da tribuna, sem ter descoberto o
Damaso—quando deu justamente de frente com elle,
dirigindo-se para a escada, affogueado, flamante, na
sua famosa sobrecasaca branca.
—Onde diabo tens tu estado, creatura?
O Damaso agarrou-o pelo braço, alçou-se em bicos
de pés, para lhe contar ao ouvido que tinha estado do
outro lado com uma gaja divina, a Josephina do Zalazar...
Chic a valer! lindamente vestida! parecia-lhe
que tinha mulher!
—Ah, Sardanapalo!...
—Faz-se pela vida... Volta cá acima á tribuna,
anda. Eu ainda hoje não pude cavaquear com o
high-life!...
Mas estou furioso, sabes? Implicaram com
o meu veo azul. Isto é um paiz de bestas! Logo
troça, e
olhe não creste a
pelle, e
onde mora, ó
catitinha?
e chalaça... Uma canalha! Tive de tirar
o veo ... Mas já resolvi. Para as outras corridas venho
nú. Palavra, venho nú! Isto é a
vergonha da civilisação,
esta terra! Não vens d'ahi? Então até
já.
Carlos deteve-o.
—Escuta lá homem, tenho que te dizer... Então,
essa visita aos Olivaes?... Nunca mais appareceste...
Tinhamos combinado que fosses convidar o Castro
Gomes, que viesses dar a resposta... Não vens,
não
mandas... O Craft á espera... Emfim um procedimento
de selvagem.
[450]
Damaso atirou os braços ao ar. Então Carlos
não
sabia? Havia grandes novidades! Elle não voltara
ao Ramalhete, como estava combinado, porque o
Carlos Gomes não podia ir aos Olivaes. Ia partir
para o Brazil. Já partirá mesmo, na quarta feira.
A
coisa mais extraordinaria... Elle chega lá, para fazer
o convite, e s. ex.
a declara-lhe que sente
muito, mas
que parte no dia seguinte para o Rio... E já de
mala feita, já alugada uma casa para a mulher ficar
aqui á espera tres mezes, já a passagem no bolso.
Tudo de repente, feito de sabbado para segunda
feira... Telhudo, aquelle Castro Gomes.
—E lá partiu, exclamou elle, voltando-se a cumprimentar
a viscondessa d'Alvim e Joanninha Villar
que desciam das tribunas. Lá partiu, e ella já
está installada. Até já antes de
hontem a fui visitar,
mas não estava em casa... Sabes do que tenho
medo? É que ella, n'estes primeiros tempos, por
causa da visinhança, como está só,
não queira que
eu lá vá muito... Que te parece?
—Talvez... E onde mora ella?
Em quatro palavras, Damaso explicou a installação
de madame. Era muito engraçado, morava no predio
do Cruges! A mamã Cruges, havia já annos, alugava
aquelle primeiro andar mobilado: o inverno passado
estivera lá o Bertonni, o tenor, com a familia.
Casa bem arranjada, o Castro Gomes tinha tido
dedo...
—E para mim, muito commodo, ali ao pé do Gremio...
Então não voltas cá acima, a cavaquear
com
[451]
o femeaço? Até logo... Está hoje chic
a valer a
Gouvarinho! E está a pedir homem!
Good-bye.
Defronte de Carlos a condessa de Gouvarinho, no
grupo de D. Maria a que se viera juntar a Alvim e
Joanninha Villar, não cessava de o chamar com o olhar
inquieto, torturando o seu grande leque negro. Mas
elle não obedeceu logo, parado ao pé dos degraus
da
tribuna, accendendo vagamente uma cigarrette, perturbado
por todas aquellas palavras do Damaso que
lhe deixavam n'alma um sulco luminoso. Agora que
a sabia só em Lisboa, vivendo na mesma casa do
Cruges, parecia-lhe que já a conhecia, sentia-se muito
perto d'ella—podendo assim a todo o momento entrar
os hombraes da sua porta, pisar os degraus que ella
pisava. Na sua imaginação transluziam
já possibilidades
d'um encontro, alguma palavra trocada, cousas
pequeninas, subtis como fios, mas por onde os
seus destinos se começariam a prender... E immediatamente
veio-lhe a tentação pueril de ir lá,
logo
n'essa mesma tarde, n'esse instante, gosar como
amigo do Cruges o direito de subir a escada d'ella,
parar diante da porta d'ella—e surprehender uma
voz, um som de piano, um rumor qualquer da sua
vida.
O olhar da condessa não o deixava. Elle approximou-se,
emfim, contrariado: ella ergueu-se logo, deixou
o seu grupo, e dando alguns passos com elle
pela relva, recomeçou a fallar na ida a Santarem.
Carlos, então, muito seccamente, declarou toda essa
invenção insensata.
[452]
—Porque?...
Ora porque! Por tudo. Pelo perigo, pelos desconfortos,
pelo ridiculo... Emfim, a ella como mulher
ficava-lhe bem ter phantasias pittorescas de romance;
mas a elle competia-lhe ter bom senso.
Ella mordia o beiço, com todo o sangue na face.
E não via alli bom senso. Via só frieza. Quando
ella
arriscava tanto, elle podia bem, por uma noite, affrontar
os desconfortos da estalagem...
—Mas não é isso!...
Então que era? Tinha medo? Não havia mais perigo
do que nas idas a casa da titi. Ninguem a podia
conhecer, com outra côr de cabello, toda a sorte de
véos, disfarçada n'um grande water-proof.
Chegavam
de noite, entravam para o quarto, d'onde não sahiam
mais, servidos apenas pela escosseza. No dia seguinte,
no comboio da noite, ella seguia para o Porto,
todo acabava... E n'aquella insistencia ella era o
homem, o seductor, com a sua vehemencia de paixão
activa, tentando-o, soprando-lhe o desejo; emquanto
elle parecia a mulher, hesitante e assustada.
E Carlos sentia isto. A sua resistencia a uma noite
de amor, prolongando-se assim, ameaçava ser grotesca:
ao mesmo tempo o calor de voluptuosidade
que emanava d'aquelle seio, arfando junto d'elle e por
elle, ia-o amollecendo lentamente. Terminou por a
olhar de certo modo; e, como se o desejo se lhe accendesse
emfim de repente á curta chamma que faiscava
nas pupillas d'ella, negras, humidas, avidas,
promettendo mil cousas, disse, um pouco pallido:
[453]
—Pois bem, perfeitamente... Ámanhã á
noite, na
estação.
N'esse momento, em redor, romperam exclamações
de troça: era um cavallo solitario que chegava,
n'um galope pacato, passara a meta sem se apressar,
como se descesse uma avenida do Campo Grande
n'uma tarde de domingo. E em redor perguntava-se
que corrida era aquella d'um cavallo só—quando
ao longe, como sahindo da claridade loura
do sol que descia sobre o rio, appareceu uma pobre
pileca branca, empurrando-se, arquejando, n'um esforço
doloroso, sob as chicotadas atarantadas d'um
jockey de roxo e preto. Quando ella chegou, emfim,
já o outro
gentleman-rider voltara da meta, a
passo, pachorrentamente,—e estava conversando com
os amigos, encostado á corda da pista.
Todo o mundo ria. E a corrida do Premio d'El-rei
terminou assim, grotescamente.
Ainda havia o Premio de Consolação—mas agora
desapparecera todo o interesse ficticio pelos cavallos.
Perante a calma e radiante belleza da tarde, algumas
senhoras, imitando a Alvim, tinham descido para a
pesagem, cançadas da immobilidade da tribuna. Arranjaram-se
mais cadeiras: aqui e além, sobre a
relva pisada, formavam-se grupos alegrados por algum
vestido claro ou por uma pluma viva de chapéo:
e palrava-se, como n'uma sala de inverno, fumando-se
familiarmente. Em redor de D. Maria e
da Alvim projectava-se um grande pic-nic a Queluz.
Alencar e o Gouvarinho discutiam a reforma de
[454]
instrucção. A horrivel Craben, entre outros
diplomatas
e moços de binoculo a tiracolo, dava do fundo
grosso do papo, opiniões sobre Daudet, que elle achava
très agreable. E, quando
Carlos emfim abalou, o recinto,
esquecidas as corridas, tomava um tom de
soirée,
no ar claro e fresco da collina, com o murmurio de
vozes, um mover de leques, e ao fundo a musica tocando
uma valsa de Strauss.
Carlos, depois de procurar muito Craft, encontrou-o
no buffete com o Darque, com outros, bebendo mais
champagne.
—Eu tenho de ir ainda a Lisboa, disse-lhe elle, e
vou no phaeton. Abandono torpemente. Você vá para
o Ramalhete como poder...
—Eu o levo! gritou logo o Vargas, que tinha já a
gravata toda desmanchada. Levo-o no dog-cart. Eu
me encarrego d'elle... O Craft fica por minha conta...
É necessario recibo? Á saude do Craft,
inglez cá
dos meus... Hurrah!
—Hurrah! Hip, hip, hurrah!
D'ahi a pouco, a trote largo no phaeton, Carlos
descia o Chiado, dava a volta para a rua de S. Francisco.
Ia n'uma perturbação deliciosa e singular, com
aquella certeza de que ella estava só na casa do Cruges:
o ultimo olhar que ella lhe déra parecia ir
adiante d'elle, chamando-o: e um despertar tumultuoso
de esperanças sem nome atirava-lhe a alma
para o azul.
Quando parou diante do portão—alguem, por dentro
das janellas d'ella, ía correndo lentamente os stores.
[455]
Na rua silenciosa cahia já uma sombra de crepusculo.
Atirou as redeas ao cocheiro, atravessou o
pateo. Nunca viera visitar o Cruges, nunca subira
esta escada; e pareceu-lhe horrorosa, com os seus
frios degraus de pedra, sem tapete, as paredes nuas
e enxovalhadas alvejando tristemente no começo de
escuridão. No patamar do primeiro andar parou. Era
alli que ella vivia. E ficou olhando, com uma
devoção
ingenua, para as tres portas pintadas d'azul: a do
centro estava inutilisada por um banco comprido de
palhinha, e na do lado direito pendia, com uma enorme
bola, o cordão da campainha. De dentro não vinha
um rumor:—e este pesado silencio, juntando-se
ao movimento de stores que elle vira fechar-se, parecia
cercar as pessoas que alli viviam de solidão e
de impenetrabilidade. Uma desconsolação
passou-lhe
na alma. Se ella agora, só, sem o marido,
começasse
uma vida reclusa e solitaria? Se elle não tornasse
mais a encontrar os seus olhos?
Foi subindo de vagar até ao andar do Cruges. E
mal sabia o que havia de dizer ao maestro para explicar
aquella visita extranha, deslocada... Foi um
allivio quando a criadita lhe veiu dizer que o menino
Victorino tinha sahido.
Em baixo, Carlos tomou as redeas, e foi levando
lentamente o phaeton até ao largo da Bibliotheca.
Depois retrocedeu, a passo. Agora, por traz do store
branco, havia uma vaga claridade de luz. Elle olhou-a
como se olha uma estrella.
Voltou ao Ramalhete. Craft, coberto de pó, estava-se
[456]
justamente apeando de uma calecha de praça.
Um momento ficaram alli á porta, em quanto Craft,
procurando troco para o cocheiro, contava o final das
corridas. No
Premio de
Consolação, um dos cavalleiros
tinha cahido, quasi ao pé da meta, sem se magoar:
e, por ultimo, já á partida, o Vargas, que ia
na sua terceira garrafa de champagne, esmurrara um
criado do buffete, com ferocidade.
—Assim, disse Craft completando o seu troco, estas
corridas foram boas pelo velho principe Shakespereano
de que
tudo é bom quanto acaba
bem.
—Um murro, disse Carlos rindo, é com effeito um
bello ponto final.
No peristillo, o velho guarda-portão esperava, descoberto,
com uma carta na mão para Carlos. Um
criado tinha-a trazido, instantes antes de s. ex.
a
chegar.
Era uma letra ingleza de mulher, n'um envelope
largo, lacrado com um sinete d'armas. Carlos alli
mesmo abriu-a: e, logo á primeira linha, teve um movimento
tão vivo, de tão bella surpreza,
illuminando-se-lhe
tanto o rosto, que Craft do lado perguntou
sorrindo:
—Aventura? Herança?...
Carlos, vermelho, metteu a carta no bolso, e murmurou:
—Um bilhete apenas, um doente...
Era apenas um doente, era apenas um bilhete, mas
começava assim:—«Madame Castro Gomes apresenta
os seus respeitos ao sr. Carlos da Maia, e roga-lhe o
obsequio...»—depois, em duas breves palavras,
[457]
pedia-lhe para ir ver na manhã seguinte, o mais
cedo possivel, uma pessoa de familia, que se achava
incommodada.
—Bem, eu vou-me vestir, disse Craft... Jantar ás sete e
meia, hein?
—Sim, o jantar...—respondeu Carlos, sem saber o quê,
banhado todo n'um sorriso, como em extase.
Correu aos seus aposentos: e junto da janella, sem mesmo tirar
o chapéo, leu uma vez mais o bilhete, outra vez ainda,
contemplando enlevadamente a forma da letra, procurando
voluptuosamente o perfume do papel.
Era datada d'esse mesmo dia á tarde. Assim, quando
elle passara defronte da sua porta, já ella a escrevera,
já o seu pensamento se demorara n'elle—quando mais
não fosse senão ao traçar as lettras
simples do seu nome. Não era ella que estava
doente. Se fosse Rosa, ella não diria
tão friamente «uma pessoa de familia.»
Era talvez o esplendido preto de carapinha grisalha. Talvez
miss Sarah, abençoada fosse ella para sempre, que
queria um medico que entendesse inglez... Emfim havia lá uma
pessoa n'uma cama, junto da qual ella mesma o conduziria,
atravez dos corredores interiores d'aquella
casa—que havia apenas instantes sentira tão
fechada, e como impenetravel para sempre!... E depois este
adoradobilhete, este delicioso pedido para ir a sua
casa, agora que ella o conhecia, que vira Rosa
atirar-lhe um grande adeus—tomava uma
significação profunda, perturbadora...
Se ella não quizesse comprehender, nem acceitar
[458]
o distante amor que os seus olhos lhe tinham
offerecido claramente, o mais luminosamente que
tinham podido, n'esses fugitivos instantes que se tinham
cruzado com os d'ella—então poderia ter mandado
chamar outro medico, um clinico qualquer, um
estranho. Mas não: o seu olhar respondera ao d'elle, e ella
abria-lhe a sua porta...—E o que sentia a esta
idéa era uma gratidão ineffavel, um impulso
tumultuoso de todo o seu ser a cahir-lhe aos pés,
ficar-lhe beijando a orla do vestido, devotamente,
eternamente, sem querer mais nada, sem pedir mais nada...
Quando Craft d'alli a pouco desceu, de casaca, fresco, alvo, engommado,
correcto—achou Carlos, ainda com toda a poeira da estrada, de
chapéo na cabeça passeando o quarto, n'esta
agitação radiante.
—Você está a faiscar, homem! disse Craft, parando
deante d'elle, com as mãos nos bolsos, e contemplando-o um
instante do alto do seu resplandecente collarinho. Você
flameja!... Você parece que tem uma auréola na
nuca!... Você succedeu-lhe o quer que seja de muito
bom!
Carlos espreguiçou-se, sorrindo. Depois olhou para Craft um
momento, em silencio, encolheu os hombros, e murmurou:
—A gente, Craft, nunca sabe se o que lhe
succede é, em definitivo, bom ou mau.
—Ordinariamente é mau, disse o outro friamente,
aproximando-se do espelho a retocar com mais
correcção o nó da gravata
branca.
FIM DO PRIMEIRO VOLUME
EÇA DE QUEIROZ
OS MAIAS
EPISODIOS DA VIDA ROMANTICA
VOLUME II
PORTO
Livraria Internacional de Ernesto Chardron
CASA EDITORA
LUGAN & GENELIOUX, Successores
1888
Todos os direitos reservados
OS MAIAS
VOLUME II
OS MAIAS
I
Na manhã seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a
pé do Ramalhete até á rua de S.
Francisco, a casa de Madame Gomes. No patamar, onde morria em penumbra
a luz distante da claraboia, uma velha de lenço na
cabeça, encolhida n'um chalesinho preto, esperava, sentada
melancolicamente ao canto do banco de palhinha. A porta aberta mostrava
uma parede feia de corredor, forrada de papel amarello. Dentro um
relogio ronceiro estava batendo dez horas.
—A senhora já tocou? perguntou Carlos, erguendo o
chapéo.
A velha murmurou, d'entre a sombra do lenço que lhe cahia
para os olhos, n'um tom cançado e doente:
[2]
—Já, sim, meu senhor.
Já fizeram o favor de me fallar. O criado, o snr. Domingos,
não tarda...
Carlos esperou, passeando lentamente no patamar. Do segundo andar vinha
um barulho alegre de crianças brincando; por cima, o
moço do Cruges esfregava a escada com estrondo, assobiando
desesperadamente o fado. Um longo minuto arrastou-se, depois outro,
infindavel. A velha, d'entre a negrura do lenço, deu um
suspirosinho abatido. Lá ao fundo um canario rompera a
cantar; e então Carlos, impaciente, puxou o
cordão da campainha.
Um criado de suissas ruivas, correctamente abotoado n'um
jaquetão de flanella, appareceu correndo, com uma travessa
na mão, abafada n'um guardanapo; e ao vêr Carlos
ficou tão atarantado, bambaleando á porta, que um
pouco de molho de assado escorregou, cahiu sobre o soalho.
—Oh snr. D. Carlos Eduardo, faz favor d'entrar!... Ora esta! Tem a
bondade d'esperar um instantinho, que eu abro já a sala...
Tome lá, snr.
a Augusta, tome
lá, olhe
não entorne mais! A senhora diz que lá manda logo
o vinho do Porto... Desculpe v. exc.
a, snr. D.
Carlos... Por aqui, meu
senhor...
Correu um reposteiro de reps vermelho, introduziu Carlos n'uma sala
alta, espaçosa, com um papel de ramagens azues, e duas
varandas para a rua de S. Francisco; e erguendo á pressa os
dois transparentes de paninho branco, perguntava a
[3]
Carlos se
s. exc.
a não se lembrava
já do
Domingos. Quando elle se voltou, risonho, descendo precipitadamente os
canhões das mangas, Carlos reconheceu-o pelas suissas
ruivas. Era com effeito o Domingos, escudeiro excellente, que no
começo do inverno estivera no Ramalhete, e se despedira por
birras patrioticas, birras ciumentas, com o cozinheiro francez.
—Não o tinha visto bem, Domingos, disse Carlos. O patamar
é um pouco escuro... Lembro-me perfeitamente... E
então vossê agora aqui, hein? E está
contente?
—Eu parece-me que estou muito contente, meu senhor... O snr. Cruges
tambem mora cá por cima...
—Bem sei, bem sei...
—Tenha v. exc.
a a paciencia de esperar um
instantinho que eu vou dar
parte á snr.
a D. Maria Eduarda...
Maria Eduarda! Era a primeira vez que Carlos ouvia o nome d'ella; e
pareceu-lhe perfeito, condizendo bem com a sua belleza serena. Maria
Eduarda, Carlos Eduardo... Havia uma similitude nos seus nomes. Quem
sabe se não presagiava a concordancia dos seus destinos!
Domingos, no entanto, já á porta da sala, com a
mão no reposteiro, parou ainda, para dizer n'um tom de
confidencia e sorrindo:
—É a governante ingleza que está doente...
—Ah! é a governante?
[4]
—Sim, meu senhor, tem uma febresita desde hontem, peso no peito...
—Ah!...
O Domingos deu outro movimento lento ao reposteiro, sem se apressar,
contemplando Carlos com admiração:
—E o avôsinho de v. exc.
a passa bem?
—Obrigado, Domingos, passa bem.
—Aquillo é que é um grande senhor!...
Não ha, não ha outro assim em Lisboa!
—Obrigado, Domingos, obrigado...
Quando elle finalmente sahiu, Carlos, tirando as luvas, deu uma volta
curiosa e lenta pela sala. O soalho fôra esteirado de novo.
Ao pé da porta havia um piano antigo de cauda, coberto com
um pano alvadio; sobre uma estante ao lado, cheia de partituras, de
musicas, de jornaes illustrados, pousava um vaso do Japão
onde murchavam tres bellos lirios brancos; todas as cadeiras eram
forradas de reps vermelho; e aos pés do sofá
estirava-se uma velha pelle de tigre. Como no Hotel Central, esta
intallação summaria de casa alugada recebera
retoques de conforto e de gosto: cortinas novas de cretone, combinando
com o papel azul da parede, tinham substituido as classicas bambinellas
de cassa: um pequeno contador arabe, que Carlos se lembrava de ter
visto havia dias no tio Abrahão, viera encher um lado mais
desguarnecido da parede: o tapete de pellucia d'uma mesa oval,
collocada ao centro, desapparecia sob
[5]
lindas
encadernações de livros, albuns, duas
taças japonezas de bronze, um cesto para flôres de
porcelana de Dresde, objectos delicados d'arte que não
pertenciam decerto á mãi Cruges. E
parecia errar alli, acariciando a ordem das coisas e marcando-as com um
encanto particular, aquelle indefinido perfume que Carlos já
sentira nos quartos do Hotel Central, e em que dominava o jasmim.
Mas o que attrahiu Carlos foi um bonito biombo de linho crú,
com ramalhetes bordados, desdobrado ao pé da janella,
fazendo um recanto mais resguardado e mais intimo. Havia lá
uma cadeirinha baixa de setim escarlate, uma grande almofada para os
pés, uma mesa de costura com todo um trabalho de mulher
interrompido, numeros de jornaes de modas, um bordado enrolado,
mólhos de lã de côres transbordando de
um açafate. E, confortavelmente enroscada no macio da
cadeira, achava-se ahi, n'esse momento, a famosa cadellinha escosseza,
que tantas vezes passára nos sonhos de Carlos, trotando
ligeiramente atraz de uma radiante figura pelo Aterro fóra,
ou aninhada e adormecida n'um doce regaço...
—Bonjour, Mademoiselle, disse-lhe elle, baixinho, querendo captar-lhe
as sympathias.
A cadellinha erguera-se logo bruscamente na cadeira, d'orelhas fitas,
dardejando para aquelle estranho, por entre as repas esguedelhadas,
dois bellos olhos de azeviche, desconfiados, d'uma
penetração
[6]
quasi humana. Um instante Carlos receou que ella rompesse a ladrar. Mas
a cadellinha de repente namorára-se d'elle, deitada
já na
cadeira, de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventresinho
ás suas caricias. Carlos ia coçal-a e amimal-a,
quando um passo leve pizou a esteira. Voltou-se, viu Maria Eduarda
diante de si.
Foi como uma inesperada apparição—e vergou
profundamente os hombros, menos a saudal-a, que a esconder a tumultuosa
onda de sangue que sentia abrazar-lhe o rosto. Ella, com um vestido
simples e justo de sarja preta, um collarinho direito de homem, um
botão de rosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca,
sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno
lenço de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos
pousou-se embaraçadamente á borda
do sofá de reps. E depois d'um instante de silencio, que lhe
pareceu profundo, quasi solemne, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma
voz rica e lenta, d'um tom d'ouro que acariciava.
Através do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ella
lhe agradecia os cuidados que elle tivera com Rosa: e, de cada vez que
o seu olhar se demorava n'ella um instante mais, descobria logo um
encanto novo e outra fórma da sua
perfeição. Os cabellos não eram
louros, como julgára de longe á claridade do sol,
mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando
ligeiramente sobre a testa. Na grande luz
[7]
escura dos seus olhos havia ao
mesmo tempo alguma coisa de muito grave e de muito dôce. Por
um geito familiar cruzava ás vezes, ao fallar, as
mãos sobre os joelhos. E através da manga justa
de sarja, terminando n'um punho branco, elle sentia a belleza, a
brancura, o macio, quasi o calor dos seus braços.
Ella calára-se. Carlos, ao levantar a voz, sentiu outra vez
o sangue abrazar-lhe o rosto. E, apesar de saber já pelo
Domingos que a doente era a governante, só achou, na sua
perturbação, esta
pergunta timida:
—Não é sua filha que está doente,
minha senhora?
—Oh não! graças a Deus!
E Maria Eduarda contou-lhe, justamente como o Domingos, que a
governante ingleza havia dois dias se achava incommodada, com
difficuldade de respirar, tosse, uma ponta de febre...
—Imaginámos ao principio que era uma
constipação passageira; mas hontem á
tarde estava peor, e estou agora impaciente que a veja...
Ergueu-se, foi puxar um enorme cordão de campainha que
pendia ao lado do piano. O seu cabello por traz, repuxado para o alto
da cabeça, deixava uma pennugem d'ouro frisar-se
delicadamente sobre a brancura lactea do pescoço. Entre
aquelles moveis de reps, sob o tecto banal d'estuque enxovalhado, toda
a sua pessoa parecia a Carlos mais radiante, d'uma belleza mais nobre,
e quasi inaccessivel;
[8]
e pensava que nunca alli ousaria olhal-a tão
francamente, com uma tão clara
adoração, como quando a encontrava na rua.
—Que linda cadellinha v. exc.
a tem, minha
senhora! disse elle, quando
Maria Eduarda se tornou a sentar, e pondo já n'estas
palavras simples, ditas a sorrir, um accento de ternura.
Ella sorriu tambem com um lindo sorriso, que lhe fazia uma covinha no
queixo, dava uma doçura mais mimosa ás suas
feições
sérias. E alegremente, batendo as palmas, chamando para
dentro do biombo:
—
Niniche! estão-te a
fazer elogios, vem agradecer!
Niniche appareceu a bocejar. Carlos
achava lindo este nome de
Niniche. E
era curioso,
tinha tido tambem uma galguinha italiana que se chamava
Niniche...
N'esse instante a criada entrou—a rapariga magra e sardenta, d'olhar
petulante, que Carlos vira já no Hotel Central.
—Melanie vai-lhe ensinar o quarto de miss Sarah, disse Maria Eduarda.
Eu não o acompanho, porque ella é tão
timida, tem tanto escrupulo em incommodar, que diante de mim
é capaz de negar tudo, dizer que não tem nada...
—Perfeitamente, perfeitamente, murmurava Carlos, sorrindo, n'um
encanto de tudo.
E pareceu-lhe então que no olhar d'ella alguma
[9]
coisa brilhára,
fugira para elle, de mais vivo, de mais dôce.
Com o seu chapéo na mão, pisando familiarmente
aquelle corredor intimo, surprehendendo detalhes de vida domestica,
Carlos sentia como a alegria d'uma posse. Por uma porta meio aberta
pôde entrevêr uma banheira, e ao lado dependurados
grandes roupões turcos de banho. Adiante, sobre uma mesa,
estavam alinhadas, e como desencaixotadas recentemente, garrafas
d'aguas mineraes de Saint-Galmier e de Vals. Elle deduzia logo d'estas
coisas tão simples, tão banaes, evidencias de
vida delicada.
Melanie correu um reposteiro de linho crú, fêl-o
entrar n'um quarto claro e fresco: e ahi foi encontrar a pobre miss
Sarah n'um leitosinho de ferro, sentada, com um laço de
sêda azul ao
pescoço, e os bandós tão lisos,
tão acamados pela
escova, como se fosse sahir n'um domingo para a capella presbyteriana.
Na mesinha de cabeceira os seus jornaes inglezes estavam
escrupulosamente dobrados, junto d'um copo com duas bellas rosas; e
tudo no quarto resplandecia de severo arranjo, desde os retratos da
familia real d'Inglaterra, expostos sobre a toalha de renda que cobria
a commoda, até ás suas
botinas bem engraxadas, classificadas, perfiladas n'uma prateleira de
pinho.
Apenas Carlos se sentou, ella immediatamente, com duas rosetas de
vergonha na face, entre frouxos de tosse, declarou que não
tinha nada. Era a
[10]
senhora, tão boa, tão cautelosa, que a
forçára a metter-se na cama... E para ella era um
desgosto vêr-se alli ociosa, inutil, agora que Madame estava
tão só, n'uma casa sem jardim. Onde havia a
menina de brincar? Quem havia de sahir com ella? Ah! Era uma
prisão para Madame!...
Carlos consolava-a, tomando-lhe o pulso. Depois, quando elle se ergueu
para a auscultar, a pobre miss cobriu-se toda d'um rubor afflicto,
apertando mais a roupa contra o peito, querendo saber se era
absolutamente necessario...
Sim, decerto, era necessario... Achou-lhe o pulmão direito
um pouco tomado; e, em quanto a agasalhava, fez-lhe algumas perguntas
sobre a sua familia. Ella contou que era de York, filha de um
clergyman, e tinha quatorze
irmãos: os rapazes estavam na Nova Zelandia, e todos eram
d'uma robustez de athletas. Ella sahira a mais fraca; tanto que o pai,
vendo que ella aos dezesete annos pesava só oito arrobas,
ensinou-lhe logo latim, destinando-a para governante.
Em todo o caso, dizia Carlos, nunca houvera na sua familia
doenças de peito? Ella sorriu. Oh! nunca! A mamã
ainda vivia. O papá, já
muito velho, morrera do couce de uma egua.
Carlos, no entanto, já de pé, com o
chapéo na mão, continuava a observal-a,
reflectindo. Então,
de repente, sem motivo, ella enterneceu-se, os seus olhos pequeninos
ennevoaram-se de agua. E quando ouviu que eram precisos tantos
agasalhos, que
[11]
teria
de estar alli no quarto ainda quinze dias, perturbou-se mais, duas
lagrimasinhas timidas quasi lhe fugiram das pestanas. Carlos terminou
por lhe afagar paternalmente a mão.
—
Oh! Thank you sir! murmurou ella,
commovida de todo.
Na sala, Carlos veio encontrar Maria Eduarda sentada junto da mesa,
arranjando ramos, com uma grande cesta de flôres pousada ao
lado d'uma cadeira, e o regaço cheio de cravos. Uma bella
restea de sol, estendida na esteira, vinha morrer-lhe aos
pés; e
Niniche,
deitada alli, reluzia como se fosse feita de fios de prata. Na rua, sob
as janellas, um realejo ia tocando, na alegria da linda
manhã de sol, a walsa da
Madame
Angot. Pelo
andar de cima tinham recomeçado as correrias de
crianças
brincando.
—Então? exclamou ella, voltando-se logo, com um
mólho de cravos na mão.
Carlos tranquillisou-a. A pobre miss Sarah tinha uma bronchite ligeira,
com pouca febre. Em todo o caso necessitava resguardo, toda a
cautela...
—Certamente! E ha de tomar algum remedio, não é
verdade?
Atirou logo o resto dos cravos do regaço para o cesto, foi
abrir uma secretariasinha de pau preto collocada entre as janellas.
Ella mesmo arranjou o papel para elle receitar, metteu um bico novo na
penna. E estes cuidados perturbavam Carlos como caricias.
[12]
—Oh minha senhora... murmurava elle, um lapis basta...
Quando se sentou, os seus olhos demoraram-se com uma curiosidade
enternecida n'esses objectos familiares onde pousava a
doçura das mãos
d'ella—um sinete d'agatha sobre um velho livro de contas, uma faca de
marfim com monogramma de prata ao lado d'uma taçasinha de
Saxe cheia d'estampilhas; e em tudo havia a ordem clara que
tão bem condizia com o seu puro perfil. Na rua o realejo
calára-se, por cima do tecto já
não cavallavam as crianças. E, em quanto escrevia
devagar, Carlos sentia-a abafar sobre a esteira o som dos seus passos,
mover os seus vasos mais de leve.
—Que bonitas flôres v. exc.
a tem,
minha senhora! disse
elle, voltando a cabeça, em quanto ia seccando distrahida e
lentamente a receita.
De pé, junto do contador arabe, onde pousava um vaso
amarello da India, ella arranjava folhas em volta de duas rosas.
—Dão frescura, disse ella. Mas imaginei que em Lisboa havia
mais bonitas flôres. Não ha nada que se compare
ás flôres de França...
Pois não é verdade?
Elle não respondeu logo, esquecido a olhar para ella,
pensando na doçura de ficar alli eternamente n'aquella sala
de reps vermelho, cheia de claridade e cheia de silencio, a
vêl-a pôr folhas verdes em torno de pés
de rosa!
[13]
—Em Cintra ha lindas flôres, murmurou por fim.
—Oh, Cintra é um encanto! disse ella, sem erguer os olhos
do seu ramo. Vale a pena vir a Portugal só por causa de
Cintra.
N'esse momento, o reposteiro de reps esvoaçou, e Rosa entrou
de dentro, correndo, vestida de branco, com meiasinhas de
sêda preta, uma onda negra de cabello a bater-lhe as costas,
e trazendo ao collo a sua grande boneca. Ao vêr Carlos parou
bruscamente, com os bellos olhos muito abertos para elle, toda
encantada, e apertando mais nos braços Cri-cri que vinha em
camisa.
—Não conheces? perguntou-lhe a mãi, indo
sentar-se outra vez diante do seu cesto de flôres.
Rosa começava já a sorrir, o seu rostosinho
cobria-se d'uma linda côr. E assim, toda d'alvo e negro como
uma andorinha, tinha um encanto raro, com o seu dôce mimo de
fórma, a sua
graça ligeira, os seus grandes olhos cheios d'azul, e um
ruborzinho de mulher na face. Quando Carlos se adiantou com a
mão estendida para renovar o antigo conhecimento—ella
ergueu-se na ponta dos pés, estendeu-lhe vivamente a
boquinha, fresca como um botão de rosa. Carlos ousou apenas
tocar-lhe de leve na testa.
Depois quiz apertar a mão á sua velha amiga
Cri-cri. E então, de repente, Rosa recordou-se do que a
trouxera alli a correr.
—É o robe-de-chambre, mamã!
Não posso
[14]
achar o robe-de-chambre de
Cri-cri... Ainda a não pude vestir... Dize, sabes onde
é que está o
robe-de-chambre?
—Vejam esta desarranjada! murmurava a mãi olhando-a com um
sorriso lento e terno. Se Cri-cri tem uma commoda particular, o seu
guarda-vestidos, não se lhe deviam perder as coisas... Pois
não é verdade, snr. Carlos da Maia?
Elle, ainda com a sua receita na mão, sorria tambem, sem
dizer nada, todo no enternecimento d'aquella intimidade em que se
sentia penetrar dôcemente.
A pequena então veio encostar-se á
mãi, roçando-se pelo seu braço, com
uma vozinha languida, lenta, e de mimo:
—Anda, dize... Não sejas má... Anda... Onde
está o robe-de-chambre? Dize...
Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lhe o
pequenino laço de sêda branca que lhe prendia no
alto o cabello. Depois ficou mais séria:
—Está bem, está quieta... Tu sabes que
não sou eu que trato dos arranjos da Cri-cri. Devias ter
mais ordem... Vai perguntar a Melanie.
E Rosa obedeceu logo, séria tambem, comprimentando agora
Carlos ao passar, com um arzinho senhoril:
—Bonjour, Monsieur...
—É encantadora! murmurou elle.
A mãi sorriu. Tinha acabado de compôr o seu
[15]
ramo de cravos;—e
immediatamente attendeu a Carlos, que pousára a receita
sobre a mesa, e sem se apressar, installando-se n'uma poltrona, lhe foi
fallando da dieta que devia ter miss Sarah, das colheres de xarope de
codeina que se lhe deviam dar de tres em tres horas...
—Pobre Sarah! dizia ella. E é curioso, não
é verdade? Veio com o presentimento, quasi com a certeza,
que havia de adoecer em Portugal...
—Então vem a detestar Portugal!
—Oh! tem-lhe já horror! Acha muito calor, por
toda a parte maus cheiros, a gente hedionda... Tem medo de ser
insultada na rua... Emfim é infelicissima, está
ardendo por se ir embora...
Carlos ria d'aquellas antipathias saxonias. De resto em muitas coisas a
boa miss Sarah tinha talvez razão...
—E v. exc.
a tem-se dado bem em Portugal, minha
senhora?
Ella encolheu os hombros, indecisa.
—Sim... Devo dar-me bem... É o meu paiz
O
seu paiz!... E elle que a julgava
brazileira!
—Não, sou portugueza.
E, durante um momento, houve um silencio. Ella tomára de
sobre a mesa, abria lentamente um grande leque negro pintado de
flôres vermelhas. E Carlos sentia, sem saber porque, uma
doçura nova penetrar-lhe no coração.
Depois ella fallou da sua viagem que fôra muito agradavel;
adorava andar no mar; tinha sido um encanto a manhã
[16]da chegada a
Lisboa,
com um céo azul-ferrete, o mar todo azul tambem, e
já um calorzinho do clima dôce... Mas depois,
apenas desembarcados, tudo correra desagradavelmente. Tinham ficado mal
alojados no Central.
Niniche,
uma noite, assustára-os muito com uma indigestão.
Em seguida no Porto viera aquelle desastre...
—Sim, disse Carlos, o marido de v. exc.
a, na
Praça Nova...
Ella pareceu surprehendida. Como sabia elle? Ah! sim, sabia de certo
pelo Damaso...
—São muito amigos, creio eu.
Depois d'uma leve hesitação, que ella
comprehendeu, Carlos murmurou:
—Sim... O Damaso vai bastante ao Ramalhete... É de resto um
rapaz que eu conheço apenas ha mezes...
Ella abriu os olhos, pasmada.
—O Damaso? Mas elle disse-me que se conheciam desde pequeninos, que
eram até parentes...
Carlos encolheu simplesmente os hombros, sorrindo.
—É uma bella illusão... E se isso o faz
feliz!...
Ella sorriu tambem, encolhendo tambem ligeiramente os hombros.
—E v. exc.
a, minha senhora, continuou logo
Carlos não
querendo fallar mais do Damaso, como acha Lisboa?
[17]
Gostava bastante, achava muito bonito este tom azul e branco de cidade
meridional... Mas, havia tão poucos confortos!... A vida
tinha aqui um ar que ella não pudera perceber ainda—se era
de simplicidade ou de pobreza.
—Simplicidade, minha senhora. Temos a simplicidade dos selvagens...
Ella riu.
—Não direi isso. Mas supponho que são como os
gregos: contentam-se em comer uma azeitona, olhando o céo
que é bonito...
Isto pareceu adoravel a Carlos, todo o seu
coração fugiu para ella.
Maria Eduarda queixava-se sobretudo das casas, tão faltas de
commodidade, tão despidas de gosto, tão
desleixadas. Aquella em que vivia fazia a sua desgraça. A
cozinha era atroz, as portas
não fechavam. Na sala de jantar havia sobre a parede umas
pinturas de barquinhos e collinas que lhe tiravam o appetite...
—Além d'isso, acrescentou, é um horror
não ter um quintal, um jardim, onde a pequena possa correr,
ir brincar...
—Não é facil encontrar assim uma casa nas
condições d'esta e com jardim, disse Carlos.
Deu um olhar ás paredes, ao estuque enxovalhado do tecto—e
lembrou-lhe de repente a quinta do Craft, com a sua vista de rio, o ar
largo, as frescas ruas de acacias.
[18]
Felizmente, Maria Eduarda tomára a casa apenas ao mez, e
estava pensando em ir passar á beira-mar o tempo que tivesse
de ficar ainda em Portugal.
—De resto, disse ella, foi o que me aconselhou o meu medico em Paris,
o dr. Chaplain.
O dr. Chaplain? Justamente, Carlos conhecia muito o dr. Chaplain.
Ouvira-lhe as lições,
visitára-o até intimamente na sua propriedade de
Maisonnettes, ao pé de Saint-Germain. Era um grande mestre,
era um espirito bem superior!
—E tão bom coração! disse ella com um
claro sorriso, um olhar que brilhou.
E este sentimento commum pareceu de repente aproximal-os mais
dôcemente: cada um n'esse instante adorou o dr. Chaplain: e
continuaram ainda fallando d'elle prolongadamente, gozando,
através d'essa trivial sympathia por um velho clinico, a
nascente concordancia dos seus corações.
O bom dr. Chaplain! Que physionomia tão amavel,
tão fina!... Sempre com o seu barretinho de
sêda... E sempre
com a sua grande flôr na casaca... De resto, o pratico maior
que sahira da geração de Trousseau.
—E Madame Chaplain, acrescentou Carlos, é uma pessoa
encantadora... Não é verdade?
Mas Maria Eduarda não conhecia Madame Chaplain.
Dentro o relogio ronceiro começára a bater onze
[19]
horas. E Carlos
então ergueu-se, findando a sua fugitiva, inolvidavel,
deliciosa visita...
Quando ella lhe estendeu a mão, um pouco de sangue subiu-lhe
de novo á face ao tocar aquella palma tão macia e
tão fresca. Pediu os seus
comprimentos para Mademoiselle Rosa. Depois, á porta,
já com o reposteiro na mão, voltou-se ainda, uma
vez mais, n'uma ultima saudação, a receber o
olhar suave com que ella o seguia...
—Até ámanhã, está claro!
exclamou
ella de repente, com o seu lindo sorriso.
—Até ámanhã, decerto!
O Domingos estava já no patamar, de casaca, risonho e bem
penteado.
—É coisa de cuidado, meu senhor?
—Não é nada, Domingos... Estimei vêl-o
por aqui.
—E eu muito a v. exc.
a. Até
ámanhã,
meu senhor.
—Até ámanhã.
Niniche appareceu tambem no patamar.
Elle abaixou-se ternamente a afagal-a, e disse-lhe tambem, radiante:
—Até ámanhã,
Niniche!
Até ámanhã! Voltando para o Ramalhete,
era esta a
unica idéa que elle sentia distinctamente através
da nevoa luminosa que lhe afogava a alma.
[20]
Agora o seu dia estava
findo:—mas, passadas as longas horas, terminada a longa noite, elle
penetraria outra vez n'aquella sala de reps vermelho, onde ella o
esperava, com o mesmo vestido de sarja, enrolando ainda folhas verdes
em torno de pés de rosa...
Pelo Aterro, por entre a poeira de verão e o ruido das
carroças, o que elle via era essa sala, esteirada de novo,
fresca, silenciosa e clara: por vezes uma phrase que ella dissera
cantava-lhe na memoria, com o tom d'ouro da sua voz; ou luziam-lhe
diante dos olhos as pedras dos seus anneis entremettidos pelos
pêllos de
Niniche. Parecia-lhe mais linda,
agora que conhecia o seu sorriso d'uma graça tão
delicada; era cheia de
inteligencia, era cheia de gosto; e a pobre velha á porta,
esse doente a quem ella mandava vinho do Porto, revelavam a sua
bondade... E o que o encantava é que não tornaria
mais a farejar a cidade como um rafeiro perdido, á busca dos
seus olhos negros; agora bastava-lhe subir alguns degraus, abria-se
diante d'elle a porta da sua casa; e tudo de repente na vida parecia
tornar-se facil, equilibrado, sem duvidas e sem impaciencias.
No seu quarto, no Ramalhete, Baptista entregou-lhe uma carta.
—Trouxe-a a escosseza, já v. exc.
a
tinha sahido.
Era da Gouvarinho! Meia folha de papel, tendo simplesmente escripto a
lapis—
all rigth. Carlos
[21]
amarrotou-a, furioso. A
Gouvarinho!... Não se
tornára quasi a lembrar d'ella, desde a vespera, no radiante
tumulto em que andára o seu
coração. E era no comboio d'essa noite, d'ahi a
horas, que deviam ambos partir para Santarem, a amarem-se, escondidos
n'uma estalagem! Elle promettera-lh'o, a sério;
já ella se preparára decerto,
com a atroz cabelleira postiça, com o
water-proof de grande roda; tudo
estava
all rigth... Achou-a
n'esse instante ridicula, reles, estupida... Oh, era claro como a luz
que não ia, que nunca iria, jámais! Mas tinha
d'apparecer na estação de Santa Apolonia,
balbuciar uma desculpa tosca, assistir á sua
desconsolação, vêr-lhe os olhos
marejados de lagrimas. Que massada!... Teve-lhe odio.
Quando chegou á mesa do almoço Craft e Affonso,
já sentados, fallavam justamente do Gouvarinho, e dos
artigos que elle continuava gravemente a publicar no
Jornal do Commercio.
—Que besta essa! exclamou Carlos n'uma voz que sibilava, desabafando
sobre a litteratura politica do marido a colera que lhe davam as
importunidades amorosas da mulher.
Affonso e Craft olharam-n'o, pasmados de tanta violencia. E Craft
censurou-lhe a ingratidão. Porque, realmente, não
havia em toda a terra um enthusiasmo como o que aquelle desventuroso
homem d'estado tinha por Carlos...
—V. exc.
a não faz idéa,
snr. Affonso da Maia.
É um culto. É uma idolatria!
[22]
Carlos encolhia os hombros, impaciente. E Affonso, já bem
disposto para com o homem que assim admirava tão
prodigamente o seu neto, murmurou com bondade:
—Coitado, supponho que é inoffensivo...
Craft fez uma ovação ao velho:
—
Inoffensivo! Admiravel, snr.
Affonso da Maia!
Inoffensivo,
applicado a um homem
d'estado, a um par, a um ministro, a um legislador, é um
achado! E é com effeito o que elle é,
inoffensivo... E é o que
elles são...
—Chablis? murmurou o escudeiro.
—Não, tomo chá.
E acrescentou:
—Aquelle champagne que hontem bebemos nas corridas, por
patriotismo, arrasou-me... Tenho de me pôr uma semana a
regimen de leite.
Então fallou-se ainda das corridas, dos ganhos de Carlos, do
Clifford, e do véo azul do Damaso.
—Ora quem estava hontem muito bem vestida era a Gouvarinho, disse
Craft remexendo o seu chá. Ficava-lhe admiravelmente aquelle
branco creme, tocado de tons negros. Uma verdadeira toilette de
corridas...
C'était un œillet
blanc panaché de noir...
Vossê não achou, Carlos?
—Sim, rosnou Carlos, estava bem.
Outra vez a Gouvarinho! Parecia-lhe agora que não haveria na
sua vida conversa em que não
surgisse a Gouvarinho, e que não haveria caminho
[23]
na sua vida que o não
atravancasse a Gouvarinho! E alli mesmo, á mesa, decidiu
comsigo não a
tornar a vêr, escrever-lhe um bilhete curto, polido,
recusando-se a ir a Santarem, sem razões...
Mas no seu quarto, diante da folha de papel, fumou uma longa
cigarrette, sem achar phrase que não fosse pueril ou brutal.
Nem tinha a sympathia precisa para lhe dar o banal tratamento de
querida. Vinha-lhe até
por ella uma indefinida repulsão physica: devia ser
intoleravel toda uma noite o seu cheiro exagerado de verbena;—e
lembrava-se que aquella pelle do seu pescoço, que se lhe
afigurava outr'ora um setim, tinha um tom pegajoso, um tom amarellado,
para além da linha de pós d'arroz. Decidiu
não lhe escrever. Iria
á noite a Santa Apolonia, e no momento do comboio partir
correria á portinhola, a balbuciar fugitivamente uma
desculpa; não lhe daria tempo de choramigar, nem de
recriminar; um rapido aperto de mão, e adeus, para nunca
mais...
Á noite, porém, á hora de ir
á estação, que sacrificio em se
arrancar aos confortos da sua poltrona, e do seu charuto!... Atirou-se
para o coupé desesperado, maldizendo essa tarde no boudoir
azul em que, por causa d'uma rosa e d'um certo vestido côr de
folha morta que lhe ficava bem, elle se'achára cahido com
ella n'um sofá...
Ao chegar a Santa Apolonia faltavam, para a partida do expresso, dois
minutos. Precipitou-se para a extremidade da sala, já quasi
vazia áquella
[24]
hora, a comprar uma
admissão; e ainda ahi
esperou uma eternidade, vendo dentro do postigo duas mãos
lentas e molles arranjar laboriosamente os patacos d'um troco.
Penetrava emfim na sala d'espera—quando esbarrou com o Damaso, de
chapéo desabado e saccola de viagem a tiracollo. Damaso
agarrou-lhe as mãos, enternecido:
—Ó menino! pois tiveste o incommodo?... E como soubeste tu
que eu partia?
Carlos não o desilludiu, balbuciando que lh'o dissera o
Taveira, que encontrára o Taveira...
—Pois eu estava mais longe d'uma d'estas! exclamou o Damaso. Esta
manhã, muito regalado na cama, quando me vem o telegramma...
Fiquei furioso! Isto é, imagina tu como eu fiquei, um
desgosto assim!...
Foi então que Carlos reparou que elle estava carregado de
luto, com fumo no chapéo, luvas pretas, polainas pretas,
barra preta no lenço... Murmurou, embaraçado:
—O Taveira disse-me que ias, mas não me disse mais nada...
Morreu-te alguem?
—Meu tio Guimarães.
—O communista? o de Paris?
—Não, o irmão d'elle, o mais velho, o de
Penafiel... Espera ahi que eu volto já, vou alli ao
café encher o frasco de cognac. Com a
afflicção esquecia-me o cognac...
Ainda estavam chegando passageiros, esbaforidos,
[25]
de guarda-pó, com
chapeleiras na mão. Os guardas rolavam pachorrentamente as
bagagens. D'uma portinhola, onde se exhibia um cavalheiro barrigudo,
com um bonet bordado a retroz, pendia todo um cacho d'amigos politicos,
respeitosamente e em silencio. A um canto uma senhora
soluçava por baixo do véo.
Carlos, vendo um wagon com a papeleta de
reservado, imaginou lá a
condessa. Um guarda precipitou-se, furioso, como se visse a
profanação d'um santuario. Que queria elle, que
queria elle d'alli? Não sabia que era o
reservado do snr. Carneiro?
—Não sabia.
—Perguntasse, devia saber! ficou o outro a resmungar, ainda tremulo.
Carlos correu ainda outros wagons, onde a gente se apinhava,
atabafadamente, na amontoação dos embrulhos;
n'um, dois sujeitos, a proposito de lugares, tratavam-se de
malcriados; adiante,
uma criança esperneava no collo da ama, aos gritos.
—Ó menino, quem diabo andas tu a procurar? exclamou Damaso
alegremente, surgindo por traz d'elle, e passando-lhe o
braço pela cinta.
—Ninguem... Imaginei que tinha visto o marquez.
Immediatamente Damaso queixou-se d'aquella lúgubre massada
de ter d'ir a Penafiel!
—E então agora que eu precisava tanto estar em Lisboa! Que
tenho andado com uma sorte para mulheres, menino!... Uma sorte damnada!
[26]
Uma sineta badalou. Damaso deu logo um abraço terno a
Carlos, saltou para o seu wagon, enterrou na cabeça um
barretinho de sêda—e depois
debruçado da portinhola continuou ainda as confidencias. O
que mais o contrariava era deixar aquelle arranjinho da rua de S.
Francisco. Que ferro! agora que aquillo ia tão bem, o gajo
no Brazil, e ella alli, á mão, a dois passos do
Gremio!...
Carlos mal o escutava, distrahido, olhando o grande relogio
transparente. De repente Damaso, á portinhola, deu um salto
de surpreza:
—Olha os Gouvarinhos!
Carlos deu um salto tambem. O conde, de côco de viagem, de
paletot alvadio, sem se apressar, como competia a um director da
Companhia, vinha conversando com um empregado superior da
estação, agaloado de ouro, que se
encarregára da chapeleira de papelão de s. exc.
a
E a condessa, com um rico guarda-pó de foulard côr
de castanho, um véo cinzento que lhe cobria a face e o
chapéo, seguia atraz, com a criada escosseza, trazendo na
mão um ramo de rosas.
Carlos correu para elles, foi todo um assombro.
—Por aqui, Maia?
—De viagem, conde?
É verdade. Decidira acompanhar a condessa ao Porto, aos
annos do papá... Resolução
da ultima hora, quasi iam perdendo o comboio.
[27]
—Então temol-o por companheiro, Maia? Teremos esse grande
prazer, Maia?
Carlos contou rapidamente que viera apenas apertar a mão ao
pobre Damaso, de jornada para Penafiel, por causa da morte do tio.
Debruçado da portinhola, com as mãos de
fóra calçadas de negro, o pobre Damaso estava
saudando a senhora condessa, gravemente, funebremente. E o bom
Gouvarinho não quiz deixar de lhe ir dar logo o seu
shake-hands e o seu
pezame.
Sósinho n'esse curto instante com a condessa, Carlos
murmurou apenas:
—Que ferro!
—Este maldito homem! exclamou ella, entre dentes, com um olhar que
fuzilou através do véo. Tudo tão bem
arranjado, e á ultima hora teima em vir!...
Carlos acompanhou-os até ao
reservado, n'um outro wagon que se
estivera mettendo de novo para s. exc.
a A
condessa tomou o lugar do
canto junto da portinhola. E como o conde, n'um tom de polidez acida, a
aconselhava a que se sentasse antes com o rosto para a machina, ella
teve um gesto de aborrecimento, atirou o ramo para o lado
desabridamente, enterrou-se com mais força na almofada; e um
duro olhar de colera passou entre ambos. Carlos, embaraçado,
perguntava:
—Então vão com demora?
O conde respondeu, sorrindo, disfarçando o seu mau humor:
[28]
—Sim, talvez duas semanas, umas pequeninas ferias.
—Tres dias, o mais, replicou ella n'uma voz fria e afiada como uma
navalha.
O conde não respondeu, livido.
Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silencio cahira sobre a
plataforma. O apito da machina varou o ar; e o comprido trem, n'um
ruido secco de freios retesados, começou a rolar, com gente
ás portinholas, que ainda se debruçava,
estendendo a mão para um ultimo aperto. Aqui e
além esvoaçava um lenço branco. O
olhar da condessa para o lado de Carlos teve a doçura de um
beijo, o Damaso gritou saudades para o Ramalhete. O compartimento do
correio resvalou, alumiado; e com outro dilacerante silvo o comboio
mergulhou na noite...
Carlos, só, dentro do coupé, voltando
á Baixa, sentia uma alegria triumphante com aquella partida
da condessa, e a inesperada jornada do Damaso. Era como uma
dispersão providencial de todos os importunos: e assim se
fazia em torno da rua de S. Francisco uma solidão—com todos
os seus encantos, e todas as suas cumplicidades.
No caes do Sodré deixou a carruagem, subiu a pé
pelo Ferregial, veio passar diante das janellas na rua de S. Francisco.
Só pôde vêr uma
vaga tira de claridade entre as portadas meio cerradas. Mas isto
bastava-lhe. Podia agora imaginar com precisão o
serão calmo que ella estava passando
[29]
na larga sala de reps vermelho. Sabia
o nome dos livros que ella lia, e as partituras que tinha sobre o
piano; e as flôres que espalhavam alli o seu aroma vira-as
elle arranjar n'essa manhã. Poria ella um instante o seu
pensamento n'elle? Decerto; a doença em casa
forçava-a a lembrar as horas do remedio, as
explicações que elle dera, e o som da
sua voz; e fallando com miss Sarah pronunciaria decerto o seu nome.
Duas vezes percorreu a rua de S. Francisco; e recolheu para casa, sob a
noite estrellada, devagar, ruminando a doçura d'aquelle
grande amor.
Então todos os dias, durante semanas, teve essa hora
deliciosa, esplendida, perfeita, «a visita á
ingleza».
Saltava do leito, cantando como um canario, e penetrava no seu dia como
n'uma acção triumphal. O correio chegava; e
invariavelmente lhe trazia uma carta da Gouvarinho, tres folhas de
papel d'onde cahia sempre alguma pequena flôr meio murcha.
Elle deixava ficar a flôr no tapete: e mal podia dizer o que
havia n'aquellas longas linhas cruzadas. Sabia apenas vagamente que,
tres dias depois d'ella chegar ao Porto, o pai, o velho Thompson,
tivera uma apoplexia. Ella lá estava, d'enfermeira. Depois,
levando duas ou tres bellas flôres
[30]
do jardim embrulhadas n'um papel
de sêda, partia para a rua de S. Francisco, sempre no seu
coupé—porque o tempo mudára, e os dias
seguiam-se, tristonhos, cheios de sudoeste e de chuva.
Á porta o Domingos acolhia-o com um sorriso cada vez mais
enternecido.
Niniche
corria de dentro, a pular d'amizade; elle erguia-a nos
braços para a beijar. Esperava um instante na sala, de
pé, saudando com o olhar os moveis, os ramos, a clara ordem
das coisas; ia examinar no piano a musica que ella tocára
essa manhã, ou o livro que
deixára interrompido, com a faca de marfim entre as folhas.
Ella entrava. O seu sorriso ao dar-lhe os bons dias, a sua voz d'ouro
tinham cada dia para Carlos um encanto novo e mais penetrante. Trazia
ordinariamente um vestido escuro e simples: apenas ás vezes
uma gravata de rica renda antiga, ou um cinto cuja fivella era
cravejada de pedras, avivavam este traje sobrio, quasi severo, que
parecia a Carlos o mais bello, e como uma expressão do seu
espirito.
Começavam por fallar de miss Sarah, d'aquelle tempo agreste
e humido que lhe era tão desfavoravel. Conversando, ainda de
pé, ella dava aqui e além um arranjo melhor a um
livro, ou ia mover uma cadeira que não estava no seu alinho;
tinha o habito inquieto de recompôr constantemente a symetria
das coisas;—e, machinalmente, ao passar, sacudia a superficie de
moveis
[31]
já
perfeitamente espanejados com as magnificas rendas do seu
lenço.
Agora acompanhava-o sempre ao quarto de miss Sarah. Pelo corredor
amarello, caminhando ao seu lado, Carlos perturbava-se sentindo a
caricia d'esse intimo perfume em que havia jasmim, e que parecia sahir
do movimento das suas saias. Ella ás vezes abria
familiarmente a porta de um quarto, apenas mobilado com um velho
sofá: era alli que Rosa brincava, e que tinha os arranjos de
Cri-cri, as carruagens de Cri-cri, a cozinha de Cri-cri. Encontravam-na
vestindo e conversando profundamente com a boneca; ou então,
ao canto do sofá, com os pésinhos cruzados,
immovel, perdida na admiração d'algum livro
d'estampas aberto sobre os joelhos. Ella corria, estendia a boquinha a
Carlos; e toda a sua pessoa tinha a frescura de uma linda
flôr.
No quarto da governante, Maria Eduarda sentava-se aos pés do
leito branco; e logo a pobre miss Sarah, ainda cheia de tosse, confusa,
verificando a cada instante se o lenço de sêda lhe
cobria correctamente o pescoço, affirmava que estava boa.
Carlos gracejava com ella, provando-lhe que n'esse feio tempo
d'inverno, a felicidade era estar alli na cama, com bons cuidados em
redor, alguns romances patheticos, e appetitosa dieta portugueza. Ella
voltava os olhos gratos para Madame, com um suspiro. Depois murmurava:
—
Oh yes, I am very comfortable!
[32]
E enternecia-se.
Logo nos primeiros dias, ao voltar á sala, Maria Eduarda
tinha-se sentado na sua cadeira escarlate, e, conversando com Carlos,
retomára muito naturalmente o seu bordado como na
presença familiar de um velho amigo. Com que felicidade
profunda elle viu desdobrar-se essa talagarça! Devia ser um
faisão de plumagens rutilantes: mas por ora só
estava bordado o galho de macieira em que elle pousava, galho fresco de
primavera, coberto de florzinhas brancas, como n'um pomar da Normandia.
Carlos, junto da linda secretariasinha de pau preto, occupava a mais
velha, a mais commoda das poltronas de reps vermelho, cujas molas
rangiam de leve. Entre elles ficava a mesa de costura com as
Illustrações
ou algum jornal de modas; ás vezes, um instante calado, elle
folheava as gravuras, em quanto as lindas mãos de Maria, com
brilhos de joias, iam puxando os fios de lã. Aos
pés d'ella
Niniche
dormitava,
espreitando-os a espaços, através das repas do
focinho, com o seu bello olho grave e negro. E n'esses escuros dias de
chuva, cheios de friagem lá fóra e do rumor das goteiras,
aquelle canto da janella, com a paz do vagaroso trabalho na
talagarça, as vozes lentas e amigas, e ás vezes
um dôce silencio, tinha um ar intimo e carinhoso...
Mas no que diziam não havia intimidades. Fallavam de Paris e
do seu encanto, de Londres onde
[33]
ella estivera durante quatro
lugubres mezes de inverno, da Italia que era o seu sonho vêr,
de livros, de coisas d'arte. Os romances que preferia eram os de
Dickens; e agradava-lhe menos Feuillet, por cobrir tudo de
pó d'arroz, mesmo as feridas do
coração. Apesar de educada n'um convento severo
d'Orleans, lêra Michelet e lêra Renan. De resto
não era catholica praticante; as igrejas apenas a attrahiam
pelos lados graciosos e artisticos do culto, a musica, as luzes, ou os
lindos mezes de Maria, em França, na doçura das
flôres de maio. Tinha um pensar muito recto e muito
são—com um fundo de ternura que a inclinava para tudo o que
soffre e é fraco. Assim gostava da Republica por lhe parecer
o regimen em que ha mais solicitude pelos humildes. Carlos provava-lhe
rindo que ella era socialista.
—Socialista, legitimista, orleanista, dizia ella, qualquer coisa,
comtanto que não haja gente que tenha fome!
Mas era isso possivel? Já Jesus, mesmo, que tinha
tão dôces illusões,
declarára que pobres sempre os haveria...
—Jesus viveu ha muito tempo, Jesus não sabia tudo... Hoje
sabe-se mais, os senhores sabem muito mais... É necessario
arranjar-se outra sociedade, e depressa, em que não haja
miseria. Em Londres, ás vezes, por aquellas grandes neves,
ha criancinhas pelos portaes a tiritar, a gemer de fome... É
um horror! E em Paris então! É que
[34]
se não vê
senão o boulevard; mas quanta
pobreza, quanta necessidade...
Os seus bellos olhos quasi se enchiam de lagrimas. E cada uma d'estas
palavras trazia todas as complexas bondades da sua alma—como n'um
só sopro podem vir todos os aromas esparsos de um jardim.
Foi um encanto para Carlos quando Maria o associou ás suas
caridades, pedindo-lhe para ir
vêr a irmã da sua engommadeira que tinha
rheumatismo, e o filho da snr.
a Augusta, a velha
do patamar, que
estava tisico. Carlos cumpria esses encargos com o fervor de
acções religiosas. E n'estas piedades achava-lhe
semelhanças com o avô. Como Affonso, todo o
soffrimento dos animaes a consternava. Um dia viera indignada da
Praça da Figueira, quasi com idéas de
vingança, por ter visto nas tendas dos gallinheiros aves e
coelhos apinhados em cestos, soffrendo durante dias as torturas da
immobilidade e a anciedade da fome. Carlos levava estes bellas coleras
para o Ramalhete, increpava violentamente o marquez, que era membro da
Sociedade protectora dos animaes.
O marquez, indignado tambem, jurava justiça,
fallava em
cadêas, em costa d'Africa... E Carlos, commovido,
ficava a pensar quanta larga e distante influencia póde ter,
mesmo isolado de tudo, um
coração que é justo.
Uma tarde fallaram do Damaso. Ella achava-o insupportavel, com a sua
petulancia, os olhos bugalhudos,
[35]
as perguntas nescias. V. exc.
a acha
Nice elegante? V.
exc.
a prefere a capella de S. João
Baptista a
Notre-Dame?...
—E então a insistencia de fallar de pessoas que eu
não conheço! A snr.
a
condessa de Gouvarinho, e
os chás da snr.
a condessa de
Gouvarinho, e a frisa da
snr.
a condessa de Gouvarinho, e a preferencia
que a snr.
a condessa de
Gouvarinho tem por elle... E isto horas! Eu ás vezes tinha
medo de adormecer...
Carlos fez-se escarlate. Porque trouxera ella, entre todos, o nome da
Gouvarinho? Tranquillisou-se, vendo-a rir simples e limpidamente.
Decerto não sabia quem era Gouvarinho. Mas, para sacudir
logo d'entre elles esse nome, começou a fallar de Mr.
Guimarães, o famoso tio do Damaso, o amigo de Gambetta, o
influente da Republica...
—O Damaso tem-me dito que v. exc.
a o conhece
muito...
Ella erguera os olhos, com um fugitivo rubor no rosto.
—Mr. Guimarães?... Sim, conheço muito...
Ultimamente viamo-nos menos, mas elle era muito amigo da
mamã.
E depois d'um silencio, d'um curto sorriso, recomeçando a
puxar o seu longo fio de lã:
—Pobre Guimarães, coitado! A sua influencia na Republica
é traduzir noticias dos jornaes hespanhoes e italianos para
o
Rappel, que d'isso é que vive...
Se é amigo de Gambetta, não sei, Gambetta
[36]
tem amigos tão extraordinarios... Mas o
Guimarães, aliás bom homem e homem honrado,
é um grutesco, uma especie de Calino republicano. E
tão pobre, coitado! O Damaso, que é rico, se
tivesse decencia, ou o menor sentimento, não o deixava viver
assim tão miseravelmente.
—Mas então essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de
que falla o Damaso...?
Ella encolheu mudamente os hombros; e Carlos sentiu pelo Damaso um asco
intoleravel.
Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidade mais
penetrante. Ella quiz saber a idade de Carlos, elle fallou-lhe do
avô. E durante essas horas suaves em que ella, silenciosa, ia
picando a talagarça, elle contou-lhe a sua vida passada, os
planos de carreira, os amigos, e as viagens... Agora ella conhecia a
paizagem de Santa Olavia, o reverendo Bonifacio, as
excentricidades do Ega. Um dia quiz que Carlos lhe explicasse
longamente a idéa do seu livro
A medicina
antiga e moderna. Approvou, com sympathia, que elle
pintasse as figuras dos grandes medicos, bemfeitores da
humanidade. Porque se glorificariam só guerreiros e fortes?
A vida salva a uma criança parecia-lhe coisa bem mais bella
que a batalha de Austerlitz. E estas palavras que dizia com
simplicidade, sem mesmo erguer os olhos do seu bordado, cahiam no
coração de Carlos e ficavam
lá muito tempo, palpitando e brilhando...
Elle tinha-lhe feito assim largamente todas as
[37]
confissões;—e ainda não sabia nada do seu
passado, nem mesmo a terra em que nascera, nem sequer a rua que
habitava em Paris. Não lhe ouvira murmurar jámais
o nome do marido, nem fallar d'um amigo ou d'uma alegria da sua casa.
Parecia não ter em França, onde vivia, nem
interesses, nem lar;—e era realmente como a deusa que elle
ideára, sem contactos anteriores com a terra, descida da sua
nuvem d'oiro para vir ter alli, n'aquelle andar alugado da rua de S.
Francisco, o seu primeiro estremecimento humano.
Logo na primeira semana das visitas de Carlos tinham faltado
d'affeições. Ella acreditava
candidamente que podesse haver, entre uma mulher e um homem, uma
amizade pura, immaterial, feita da concordancia amavel de dois
espiritos delicados. Carlos jurou que tambem tinha fé
n'essas bellas uniões, todas d'estima, todas de
razão—comtanto que se lhes misturasse, ao de leve que
fosse, uma ponta de ternura... Isso perfumava-as d'um grande encanto—e
não lhes diminuia a sinceridade. E, sob estas palavras um
pouco diffusas, murmuradas por entre as malhas do bordado e com lentos
sorrisos, ficára subtilmente estabelecido que entre elles
só deveria haver um sentimento assim, casto, legitimo, cheio
de suavidade e sem tormentos.
Que importava a Carlos? Comtanto que podesse passar aquella hora na
poltrona de cretone,
[38]
contemplando-a a bordar, e conversando em coisas interessantes, ou
tornadas interessantes pela graça da sua pessoa; comtanto
que visse o seu rosto, ligeiramente córado, baixar-se, com a
lenta
attracção d'uma caricia, sobre as
flôres que lhe trazia; comtanto que lhe afagasse a alma a
certeza de que o pensamento d'ella o ficava seguindo sympathicamente
através do seu dia, mal elle deixava aquella adorada sala de
reps vermelho—o seu coração estava satisfeito,
esplendidamente.
Não pensava mesmo que aquella ideal amizade,
d'intenção casta, era o caminho mais seguro para
a trazer, brandamente enganada, aos seus braços ardentes
d'homem. No deslumbramento que o tomára ao vêr-se
de repente admittido a uma
intimidade que julgára impenetravel,—os seus desejos
desappareciam: longe d'ella, ás vezes, ainda ousavam ir
temerariamente até á
esperança d'um beijo, ou d'uma fugitiva caricia com a ponta
dos dedos; mas apenas transpunha a sua porta, e recebia o calmo raio do
seu olhar negro, cahia em devoção, e julgaria um
ultraje bestial
roçar sequer as prégas do seu vestido.
Foi aquelle decerto o periodo mais delicado da sua vida. Sentia em si
mil coisas finas, novas, d'uma tocante frescura. Nunca
imaginára que houvesse tanta felicidade em olhar para as
estrellas quando o céo está limpo; ou em descer
de manhã ao jardim para escolher uma rosa mais
[39]
aberta. Tinha na alma um constante
sorriso—que os seus labios repetiam. O marquez achava-lhe o ar baboso
e abençoador...
Ás vezes, passeando só no seu quarto, perguntava
a si mesmo onde o levaria aquelle grande amor. Não sabia.
Tinha diante de si os tres mezes em que ella estaria em Lisboa, e em
que ninguem mais senão elle occuparia a velha cadeira ao
lado do seu bordado. O marido andava longe, separado por legoas de mar
incerto. Depois elle era rico, e o mundo era largo...
Conservava sempre as suas grandes idéas do trabalho,
querendo que no seu dia só houvesse horas nobres,—e que
aquellas que não pertenciam ás puras felicidades
do amor, pertencessem ás
alegrias fortes do estudo. Ia ao laboratorio, ajuntava algumas linhas
ao seu manuscripto. Mas antes da visita á rua de S.
Francisco não podia
disciplinar o espirito, inquieto, n'um tumulto d'esperanças;
e depois de voltar de lá, passava o dia a recapitular o que
ella dissera, o que elle respondera, os seus gestos, a graça
de certo sorriso... Fumava então cigarrettes, lia os poetas.
Todas as noites no escriptorio d'Affonso se formava a partida de
whist. O marquez
batia-se ao dominó com o Taveira, enfronhados ambos
n'aquelle vicio, com um rancor crescente que os levava a injurias.
Depois das corridas, o secretario de Steinbroken
começára a vir ao Ramalhete; mas era
[40]
um inutil, nem cantava sequer como o
seu chefe as balladas da Filandia; cahido no fundo d'uma poltrona, de
casaca, de vidro no olho, bamboleando a perna, cofiava silenciosamente
os seus longos bigodes tristes.
O amigo que Carlos gostava de vêr entrar era o Cruges—que
vinha da rua de S. Francisco, trazia alguma coisa do ar que Maria
Eduarda respirava. O maestro sabia que Carlos ia todas as
manhãs ao predio vêr a «miss
ingleza»; e muitas vezes, innocentemente, ignorando o
interesse de coração com que Carlos o escutava,
dava-lhe as
ultimas noticias da visinha...
—A visinha lá ficou agora a tocar Mendelhson... Tem
execução, tem expressão, a
visinha... Ha alli estofo... E entende o seu Choppin.
Se elle não apparecia no Ramalhete, Carlos ia a casa
buscal-o: entravam no Gremio, fumavam um charuto n'alguma sala isolada,
fallando da visinha; Cruges achava-lhe «um verdadeiro typo de
grande dame».
Quasi sempre encontravam o conde de Gouvarinho, que vinha ver (como
elle dizia a faiscar d'ironia) o que se passava «no paiz do
snr.
Gambetta». Parecera remoçar ultimamente, mais
ligeiro nos modos, com uma claridade d'esperança nas
lunetas, na fronte erguida. Carlos perguntava-lhe pela condessa.
Lá estava no Porto, nos seus deveres de filha...
[41]
—E seu sogro?
O conde baixava a face radiante, para murmurar cava e resignadamente:
—Mal.
Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda, acariciando
Niniche que se
lhe viera sentar nos joelhos, quando Romão entreabriu
discretamente o reposteiro, e baixando a voz, com um ar
embaraçado, um ar de cumplicidade, murmurou:
—É o snr. Damaso!...
Ella olhou o Romão, surprehendida d'aquelles modos, e quasi
escandalisada.
—Pois bem, mande entrar!
E Damaso rompeu pela sala, carregado de luto, de flôr ao
peito, gorducho, risonho, familiar, com o chapeu na mão,
trazendo dependurado por um barbante um grande embrulho de papel
pardo... Mas ao vêr Carlos alli, intimamente, de cadellinha
no collo, estacou assombrado, com o olho esbugalhado, como tonto. Emfim
desembaraçou as mãos, veio comprimentar Maria
Eduarda quasi de leve,—e voltando-se logo para Carlos, de
braços abertos, todo o seu espanto trasbordou ruidosamente:
—Então tu aqui, homem? Isto é que é
uma
[42]
surpreza!
Ora quem me diria!... Eu estava mais longe...
Maria Eduarda, incommodada com aquelle alarido, indicou-lhe vivamente
uma cadeira, interrompeu um instante o bordado, quiz saber como elle
tinha chegado.
—Perfeitamente, minha senhora... Um bocado
cançado, como é natural... Venho direitinho de
Penafiel... Como v. exc.
a vê—e
mostrou o seu luto
pesado—acabo de passar por um grande desgosto.
Maria Eduarda murmurou uma palavra de sentimento, vaga e fria. Damaso
pousára os olhos no tapete. Vinha da provincia cheio de
côr, cheio de sangue; e como cortára a barba (que
havia mezes deixára crescer para imitar Carlos) parecia
agora mais bochechudo e mais nedio. As côxas
roliças estalavam-lhe de gordura dentro da calça
de casimira preta.
—E então, perguntou Maria Eduarda, temol-o por
cá algum tempo?
Elle deu um puxãosinho á cadeira, mais para junto
d'ella, e outra vez risonho:
—Agora, minha senhora, ninguem me arranca de Lisboa! Podem-me
morrer... Isto é, credo! teria grande ferro se me morresse
alguem. O que quero dizer é que ha de custar a arrancar-me
d'aqui!
Carlos continuava muito socegadamente a acariciar os pêllos
da
Niniche. E houve então um pequeno
[43]
silencio. Maria Eduarda
retomára o bordado. E Damaso, depois de sorrir, de tossir,
de dar um geito ao bigode, estendeu a mão para acariciar
tambem
Niniche sobre os joelhos de
Carlos. Mas a cadellinha, que havia momentos o espreitava com o olho
desconfiado, ergueu-se, rompeu a ladrar furiosa.
—
C'est moi, Niniche! dizia Damaso,
recuando a cadeira.
C'est moi, ami... Alors,
Niniche...
Foi necessario que Maria Eduarda reprehendesse severamente
Niniche. E, aninhada de
novo no collo de Carlos, ella continuou a espreitar Damaso, rosnando, e
com rancor.
—Já me não conhece, dizia elle
embaçado, é curioso...
—Conhece-o perfeitamente, acudiu Maria Eduarda muito séria.
Mas não sei o que o snr. Damaso lhe fez, que ella tem-lhe
odio. É sempre este
escandalo.
Damaso balbuciava, escarlate:
—Ora essa, minha senhora! O que lhe fiz?... Caricias, sempre
caricias...
E então não se conteve, fallou com ironia,
amargamente, das amizades novas de Mademoiselle
Niniche. Alli estava nos
braços d'outro, emquanto que elle, o amigo velho, era
deitado ao canto...
Carlos ria.
—Ó Damaso, não a accuses de
ingratidão... Pois se a snr.
a D.
Maria Eduarda
está a dizer que ella sempre te teve odio...
[44]
—Sempre! exclamou Maria.
Damaso sorria tambem, lividamente. Depois, tirando um lenço
de barra negra, limpando os beiços e mesmo o suor do
pescoço, lembrou a Maria Eduarda como ella o tinha
desapontado no dia das corridas... Elle toda a tarde á
espera...
—Eram vesperas de partida, disse ella.
—Sim, bem sei, o marido de v. exc.
a... E como
vai o snr. Castro
Gomes? V. exc.
a já recebeu noticias?
—Não, respondeu ella com o rosto sobre o bordado.
Damaso cumpriu ainda outros deveres. Perguntou por Mademoiselle Rosa.
Depois por Cri-cri. Era necessario não esquecer Cri-cri...
—Pois v. exc.
a—continuou elle, cheio
subitamente de
loquacidade—perdeu, que as corridas estiveram esplendidas...
Nós ainda não nos vimos depois das corridas,
Carlos. Ah, sim, vimo-nos na estação... Pois
não é
verdade que estiveram muito
chics?
Olhe, minha senhora, d'uma
coisa póde v. exc.
a estar certa,
é que
hippodromo mais bonito não ha lá fóra.
Uma vista
até á barra, que é d'appetite...
Até se vêem entrar os navios... Pois
não é assim, Carlos?
—Sim, disse Carlos, sorrindo. Não é propriamente
um campo de corridas... É verdade que não ha
tambem propriamente cavallos de corridas... Verdade seja que
não ha jockeys... Ora é
[45]
verdade que não ha
apostas... Mas é verdade
tambem que não ha publico...
Maria Eduarda ria, alegremente.
—Mas então?
—Vêem-se entrar os navios, minha senhora...
Damaso protestava, com as orelhas vermelhas. Era realmente querer dizer
mal á força...
Não senhor, não senhor!... Eram muito boas
corridas. Tal qual como lá fóra, as mesmas
regras, tudo...
—Até na pesagem, acrescentou elle muito sério,
fallamos sempre inglez!
Repetiu ainda que as corridas eram
chics. Depois não achou
mais nada:—e fallou de Penafiel, onde chovera sempre tanto que elle
vira-se forçado a ficar em casa, estupidamente, a
lêr...
—Uma massada! Ainda se houvesse alli umas mulheres para ir dar um
bocado de cavaco... Mas qual! Uns monstros. E eu, lavradeiras,
raparigas de pé descalço, não
tolero... Ha gente
que gosta... Mas eu, acredite v. exc.
a,
não tolero...
Carlos corára: mas Maria Eduarda parecia não ter
ouvido, occupada a contar attentamente as malhas do seu bordado.
De repente Damaso recordou-se que tinha alli um presentinho para a
snr.
a D. Maria Eduarda. Mas não
imaginasse que era alguma
preciosidade... Verdadeiramente até o presente era para
Mademoiselle Rosa.
—Olhe, para não estar com mysterios, sabe o
[46]
que é? Tenho-o alli no
embrulhosinho de papel pardo... São seis barrilinhos d'ovos
molles d'Aveiro. É um dôce muito
célebre, mesmo
lá fóra. Só o de Aveiro é
que tem
chic... Pergunte v. exc.
a
ao
Carlos. Pois não é verdade, Carlos, que
é uma delicia, até conhecido lá
fóra?
—Ah, certamente, murmurou Carlos, certamente...
Pousára
Niniche no
chão, erguera-se, fôra buscar o seu
chapéo.
—Já?... perguntou-lhe Maria Eduarda, com um sorriso que era
só para elle. Até ámanhã,
então!
E voltou-se logo para o Damaso, esperando vêl-o erguer-se
tambem. Elle conservou-se installado, com um ar de demora, familiar, e
bamboleando a perna. Carlos estendeu-lhe dois dedos.
—
Au revoir, disse o outro. Recados
lá no Ramalhete; hei de apparecer!...
Carlos desceu as escadas, furioso.
Alli ficava pois aquelle imbecil impondo a sua pessoa, grosseiramente,
tão obtuso que não
percebia o enfado d'ella, a sua regelada seccura! E para que ficava?
Que outras crassas banalidades tinha ainda a soltar, em
calão, e de perna traçada? E de repente
lembrou-lhe o que elle lhe dissera na noite do jantar do Ega,
á porta do Hotel Central, a respeito da própria
Maria Eduarda, e do seu systema com mulheres «que era o
atracão». Se
aquelle idiota, de repente, abrazado e bestial, ousasse
[47]
um ultraje? A
supposição era insensata,
talvez—mas reteve-o no pateo, applicando o ouvido para cima, com
idéas ferozes de esperar alli o Damaso, prohibir-lhe de
tornar a subir aquella escada, e, á menor
reflexão d'elle, esmagar-lhe o
craneo nas lages...
Mas sentiu em cima a porta abrir-se, e sahiu vivamente, no receio de
ser assim surprehendido á escuta. O coupé do
Damaso estacionava na rua. Então veio-lhe uma curiosidade
mordente de saber quanto tempo elle ficaria alli com Maria Eduarda.
Correu ao Gremio; e apenas abrira uma vidraça—viu logo o
Damaso sahir do portão, saltar para o coupé,
bater com força a portinhola.
Pareceu-lhe que trazia o ar escorraçado, e subitamente teve
dó d'aquelle grutesco...
N'essa noite, depois de jantar, Carlos só no seu quarto
fumava, enterrado n'uma poltrona, relendo uma carta do Ega recebida
n'essa manhã,—quando appareceu o Damaso. E, sem pousar
mesmo o chapéo, logo da porta, exclamou, com o mesmo espanto
da manhã:
—Então dize-me cá! Como diabo te vou eu
encontrar hoje com a brazileira?... Como a conheceste tu? Como foi
isso?
Sem mover a cabeça do espaldar da poltrona, cruzando as
mãos sobre os joelhos em cima da carta do Ega, Carlos, agora
cheio de bom humor, disse, com uma dôce
reprehensão paternal:
—Pois então tu vaes expôr a uma senhora as
[48]
tuas opiniões
lubricas sobre as lavradeiras de Penafiel!
—Não se trata d'isso, sei muito bem o que hei de
expôr! exclamou o outro, vermelho. Conta lá,
anda... Que diabo! Parece-me que tenho direito a saber... Como a
conheceste tu?
Carlos, imperturbavel, cerrando os olhos como para se recordar,
começou, n'um tom lento e solemne de recitativo:
—Por uma tepida tarde de primavera, quando o sol se afundava em nuvens
d'oiro, um mensageiro esfalfado pendurava-se da campainha do Ramalhete.
Via-se-lhe na mão uma carta, lacrada com sello heraldico; e
a expressão do seu semblante...
Damaso, já zangado, atirou com o chapéo para cima
da mesa.
—Parece-me que era mais decente deixar-te d'esses mysterios!
—Mysterios? Tu vens obtuso, Damaso. Pois tu entras n'uma casa onde
existe ha quasi um mez uma pessoa gravemente doente, e ficas
assombrado, petrificado, ao encontrar lá o medico! Quem
esperavas tu vêr lá? Um photographo?
—Então quem está doente?
Carlos, em poucas palavras, disse-lhe a bronchite da ingleza—emquanto
o Damaso, sentado á beira do sofá, mordendo o
charuto sem lume, olhava para elle desconfiado.
—E como soube ella onde tu moravas?
—Como se sabe onde mora o rei; onde é a
[49]
alfandega; de que lado luz a estrella
da tarde; os campos onde foi Troia... Estas coisas que se aprendem nas
aulas de instrucção primaria...
O pobre Damaso deu alguns passos pela sala, embezerrado, com as
mãos nos bolsos.
—Ella tem agora lá o Romão, o que foi meu
criado, murmurou depois d'um silencio. Eu tinha-lh'o
recommendado... Ella leva-se muito pelo que eu lhe digo...
—Sim, tem, por uns dias, emquanto o Domingos foi á
terra. Vai mandal-o embora, é um imbecil, e tu
tinhas-lhe ensinado más maneiras...
Então Damaso atirou-se para o canto do sofá e
confessou que ao entrar na sala, quando dera com os olhos em Carlos, de
cadellinha no collo, ficára furioso... Emfim, agora que
sabia que era por doença, bem, tudo se explicava... Mas
primeiro parecera-lhe que andava alli tramoia... Só com
ella, ainda pensou em lhe perguntar: depois receou que não
fosse delicado; e além d'isso ella
estava de mau humor...
E acrescentou logo, accendendo o charuto:
—Que apenas tu sahiste, pôz-se melhor, mais á
vontade... Rimos muito... Eu fiquei ainda até tarde, quasi
duas horas mais; era perto das cinco quando sahi. Outra coisa, ella
fallou-te alguma vez de mim?
—Não. É uma pessoa de bom gosto; e sabendo que
nos conhecemos, não se atreveria a dizer-me mal de ti.
[50]
Damaso olhou-o, esgazeado:
—Ora essa!... Mas podia ter dito bem!
—Não; é uma pessoa de bom senso, não
se atreveria tambem.
E erguendo-se vivamente, Carlos abraçou Damaso pela cinta,
acariciando-o, perguntando-lhe pela herança do titi, e em
que amores, em que viagens, em que cavallos de luxo ia gastar os
milhões...
Damaso, sob aquellas festas alegres, permanecia frio, amuado, olhando-o
de revez.
—Olha que tu, disse elle, parece-me que me vaes sahindo tambem um
traste... Não ha a gente fiar-se em ninguem!
—Tudo na terra, meu Damaso, é apparencia e engano!
Seguiram d'alli á sala do bilhar fazer «a partida
de reconciliação». E pouco a pouco, sob
a influencia que exercia sempre sobre elle o Ramalhete, Damaso foi
socegando, risonho já, gozando de novo a sua intimidade com
Carlos no meio d'aquelle luxo sério, e tratando-o outra vez
por «menino». Perguntou pelo snr. Affonso da Maia.
Quiz saber se o bello marquez tinha apparecido. E o Ega, o grande
Ega?...
—Recebi carta d'elle, disse Carlos. Vem ahi, temol-o talvez
cá no sabbado.
Foi um espanto para o Damaso.
—Homem! essa é curiosa! E eu encontrei os
[51]
Cohens, hoje!... Vieram ha dois
dias de Southampton... Jógo eu?
Jogou, falhou a carambola.
—Pois é verdade, encontrei-os hoje, fallei-lhes um
instante... E a Rachel vem melhor, vem mais gorda... Trazia uma
toilette ingleza
com coisas brancas, coisas côr de rosa...
Chic a valer, parecia um
moranguinho! E então o Ega de volta?... Pois, menino, ainda
temos escandalo!
II
No sabbado, com effeito, Carlos, recolhendo ao Ramalhete de volta da
rua de S. Francisco, encontrou o Ega no seu quarto, mettido n'um fato
de cheviotte claro, e com o cabello muito crescido.
—Não faças espalhafato, gritou-lhe elle, que eu
estou em Lisboa
incognito!
E em seguida aos primeiros abraços declarou que vinha a
Lisboa, só por alguns dias, unicamente para comer bem e para
conversar bem. E contava com Carlos para lhe fornecer esses requintes,
alli, no Ramalhete...
—Ha cá um quarto para mim? Eu por ora estou no
Hotel Hespanhol, mas ainda nem
mesmo abri a mala... Basta-me uma alcova, com uma mesa de pinho, larga
bastante para se escrever uma obra sublime.
[54]
Decerto! Havia o quarto em cima, onde elle estivera depois de deixar a
Villa Balzac. E mais sumptuoso agora, com um bello leito da
Renascença, e uma cópia dos
Borrachos
de Velasquez.
—Optimo covil para a arte! Velasquez é um dos Santos Padres
do naturalismo... A proposito, sabes com quem eu vim? Com a Gouvarinho.
O pai Tompson esteve á morte, arribou, depois o conde foi
buscal-a. Achei-a magra; mas com um ar ardente; e fallou-me
constantemente de ti.
—Ah! murmurou Carlos.
Ega, de monoculo no olho e mãos nos bolsos, contemplava
Carlos.
—É verdade. Fallou de ti constantemente, irresistivelmente,
immoderadamente! Não me tinhas mandado contar isso... Sempre
seguiste o meu conselho, hein? Muito bem feita de corpo, não
é verdade? E que tal, no acto d'amor?
Carlos córou, chamou-lhe grosseiro, jurou que nunca tivera
com a Gouvarinho senão
relações superficiaes. Ia lá
ás vezes tomar uma chavena de
chá; e á hora do Chiado acontecia-lhe, como a
todo o mundo, conversar com o conde sobre as miserias publicas,
á esquina do Loreto. Nada mais.
—Tu estás-me a mentir, devasso! dizia o Ega. Mas
não importa. Eu hei de descobrir tudo isso com o meu olho de
Balzac, na segunda-feira.... Porque nós
vamos lá jantar na segunda-feira.
—Nós... Nós, quem?
—Nós. Eu e tu, tu e eu. A condessa convidou-me
[55]
no comboio. E o Gouvarinho,
como compete ao individuo d'aquella especie, acrescentou logo que
haviamos de ter tambem «o nosso Maia». O Maia
d'elle, e o Maia d'ella... Santo accordo! Suavissimo arranjo!
Carlos olhou-o com severidade.
—Tu vens obsceno de Celorico, Ega.
—É o que se aprende no seio da Santa Madre Igreja.
Mas tambem Carlos tinha uma novidade que o devia fazer estremecer. O
Ega porém já sabia. A chegada dos Cohens,
não é verdade?
Lêra-o logo n'essa manhã, na
Gazeta
Illustrada, no
high-life. Lá se dizia
respeitosamente que s. exc.
as tinham regressado
do seu passeio pelo
estrangeiro.
—E que impressão te fez? perguntou Carlos rindo.
O outro encolheu brutalmente os hombros:
—Fez-me o effeito de haver um cabrão mais na cidade.
E, como Carlos o accusava outra vez de trazer de Celorico uma lingua
immunda, o Ega, um pouco córado, arrependido talvez,
lançou-se em
considerações criticas, clamando pela necessidade
social de dar ás coisas o nome exacto. Para que servia
então o grande movimento naturalista do seculo? Se o vicio
se perpetuava, é porque a sociedade, indulgente e romanesca,
lhe dava nomes que o embellezavam, que o idealisavam... Que escrupulo
póde ter uma mulher em beijocar um
[56]
terceiro entre os
lençoes conjugaes, se o mundo chama a isso sentimentalmente
um romance, e os poetas o cantam em estrophes d'ouro?
—E a proposito, a tua comedia, o
Lodaçal? perguntou
Carlos, que entrára um instante para a alcova de banho.
—Abandonei-a, disse o Ega. Era feroz de mais... E além
d'isso fazia-me remexer na podridão
lisboeta, mergulhar outra vez na sargeta humana... Affligia-me...
Parou diante do grande espelho, deu um olhar descontente ao seu
jaquetão claro e ás botas com mau verniz.
—Preciso enfardelar-me de novo, Carlinhos... O Poole naturalmente
mandou-te fato de verão, hei de querer examinar esses
córtes da alta
civilisação... Não ha negal-o, diabo,
esta minha linha está
chinfrim!
Passou uma escova pelo bigode, e continuou fallando para dentro, para a
alcova de banho:
—Pois, menino, eu agora o que necessito é o regimen da
Chimera. Vou-me atirar outra vez ás
Memorias. Ha de se
fazer ahi uma quantidade d'arte colossal n'esse quarto que me destinas,
diante de Velasquez... E a proposito, é necessario ir
comprimentar o velho Affonso, uma vez que elle me vai dar o
pão, o tecto, e a enxerga...
Foram encontrar Affonso da Maia no escriptorio, na sua velha poltrona,
com um antigo volume da
Illustração
franceza aberto sobre os joelhos,
[57]
mostrando as estampas a um
pequeno bonito, muito moreno, d'olho vivo, e cabello encarapinhado. O
velho ficou contentissimo ao saber que o Ega vinha por algum tempo
alegrar o Ramalhete com a sua bella phantasia.
—Já não tenho phantasia, snr. Affonso da Maia!
—Então esclarecêl-o com a tua clara
razão, disse o velho rindo. Estamos cá precisando
d'ambas as coisas, John.
Depois apresentou-lhe aquelle pequeno cavalheiro, o snr. Manoelinho,
rapazinho amavel da visinhança, filho do Vicente, mestre
d'obras; o Manoelinho vinha ás vezes animar a
solidão d'Affonso—e alli folheavam ambos livros d'estampas
e tinham conversas philosophicas. Agora, justamente, estava elle muito
embaraçado por não lhe saber explicar como
é que o general Canrobert (de quem estavam admirando o garbo
sobre o seu cavallo empinado) tendo mandado matar gente, muita gente,
em batalhas, não era mettido na cadêa...
—Está visto! exclamou o pequeno, esperto e
desembaraçado, com as mãos cruzadas atraz das
costas. Se mandou matar gente deviam-no ferrar na cadêa!
—Hein, amigo Ega! dizia Affonso rindo. Que se ha de responder a esta
bella logica? Olha, filho, agora que estão aqui estes dois
senhores que são formados em Coimbra, eu vou estudar esse
caso... Vai tu vêr os bonecos alli para cima da mesa...
[58]E depois
vão
sendo horas d'ires lá dentro
á Joanna, para merendares.
Carlos, ajudando o pequeno a accommodar-se á mesa com o seu
grande volume d'estampas, pensava quanto o avô, com aquelle
seu amor por crianças, gostaria de conhecer Rosa!
Affonso no emtanto perguntava tambem ao Ega pela comedia. O
quê! Já abandonada? Quando
acabaria então o bravo John de fazer bocados incompletos
d'obras-primas?...—Ega queixou-se do paiz, da sua
indifferença pela arte. Que espirito original não
esmoreceria, vendo em torno de si esta espessa massa de burguezes,
amodorrada e crassa, desdenhando a intelligencia, incapaz de se
interessar por uma idéa nobre, por uma phrase bem feita?
—Não vale a pena, snr. Affonso da Maia. N'este paiz, no
meio d'esta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de
gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o
Herculano...
—Pois então, acudiu o velho, planta os teus legumes.
É um serviço á
alimentação publica. Mas tu nem isso fazes!
Carlos, muito sério, apoiava o Ega.
—A unica coisa a fazer em Portugal, dizia elle, é plantar
legumes, emquanto não ha uma
revolução que faça subir á
superficie alguns dos elementos originaes, fortes, vivos, que isto
ainda encerre lá no fundo. E se se vir então que
não
encerra nada, demittamo-nos logo voluntariamente da
[59]
nossa posição de paiz para que não
temos elementos, passemos a ser
uma fertil e estupida provincia hespanhola, e plantemos mais legumes!
O velho escutava com melancolia estas palavras do neto em que sentia
como uma
decomposição da vontade, e que lhe pareciam ser
apenas a glorificação da sua inercia.
Terminou por dizer:
—Pois então façam vocês essa
revolução. Mas pelo amor de Deus,
façam alguma coisa!
—O Carlos já não faz pouco, exclamou Ega, rindo.
Passeia a sua pessoa, a sua toilette e o
seu phaeton, e por esse facto educa o gosto!
O relogio Luiz XV interrompeu-os—lembrando ao Ega que devia ainda,
antes de jantar, ir
buscar a sua mala ao Hotel Hespanhol. Depois no corredor confessou a
Carlos que, antes d'ir
ao Hespanhol, queria correr ao Fillon, ao photographo, vêr se
podia tirar um bonito retrato.
—Um retrato?
—Uma surpreza que tem d'ir d'aqui a tres dias para Celorico, para o
dia d'annos d'uma
creaturinha que me adoçou o exilio.
—Oh Ega!
—É horroroso, mas então? É a filha do
padre Corrêa, filha conhecida como tal; além
d'isso
casada com um proprietario rico da visinhança, reaccionario
odioso... De modo que, bem vês,
esta dupla peça a pregar á Religião e
á Propriedade...
—Ah! n'esse caso...
—Ninguem se deve eximir, amigo, aos seus grandes deveres democraticos!
[60]
Na segunda-feira seguinte choviscava quando Carlos e Ega, no
coupé fechado, partiram
para o jantar dos Gouvarinhos. Desde a chegada da condessa Carlos
vira-a só uma vez, em
casa d'ella; e fôra uma meia hora desagradavel, cheia de
malestar, com um ou outro beijo frio,
e recriminações infindaveis. Ella
queixára-se das cartas d'elle, tão raras,
tão seccas. Não se
puderam entender sobre os planos d'esse verão, ella devendo
ir para Cintra onde já alugára
casa, Carlos fallando no dever de acompanhar o avô a Santa
Olavia. A condessa achava-o
distrahido: elle achou-a exigente. Depois ella sentou-se um instante
sobre os seus joelhos e
aquelle leve e delicado corpo pareceu a Carlos de um fastidioso peso de
bronze.
Por fim a condessa arrancára-lhe a promessa de a ir
encontrar, justamente n'essa
segunda-feira de manhã, a casa da titi, que estava em
Santarem;—porque tinha sempre o
appetite perverso e requintado de o apertar nos braços
nús, em dias que o devesse receber na
sua sala, mais tarde, e com ceremonia. Mas Carlos
faltára,—e agora, rodando para casa d'ella,
impacientavam-n'o já as queixas que teria de ouvir nos
vãos de janella, e as mentiras chôchas
que teria de balbuciar...
De repente o Ega, que fumava em silencio, abotoado no seu paletot de
verão, bateu no
joelho de Carlos, e entre risonho e sério:
—Dize-me uma coisa, se não é um segredo
sacrosanto... Quem é essa brazileira com
quem tu agora passas todas as tuas manhãs?
[61]
Carlos ficou um instante aturdido, com os olhos no Ega.
—Quem te fallou n'isso?
—Foi o Damaso que m'o disse. Isto é, o Damaso que m'o
rugiu... Porque foi de dentes
rilhados, a dar murros surdos n'um sofá do Gremio, e com uma
côr d'apoplexia, que elle me
contou tudo...
—Tudo o quê?
—Tudo. Que te apresentára a uma brazileira a quem se
atirava, e que tu, aproveitando a
sua ausencia, te metteras lá, não sahias de
lá...
—Tudo isso é mentira! exclamou o outro, já
impaciente.
E Ega, sempre risonho:
—Então «que é a verdade»,
como perguntava o velho Pilatus ao chamado Jesus Christo?
—É que ha uma senhora a quem o Damaso suppunha ter
inspirado uma paixão, como
suppõe sempre, e que, tendo-lhe adoecido a governante
ingleza com uma bronchite, me
mandou chamar para eu a tratar. Ainda não está
melhor, eu vou vêl-a todos os dias. E Madame
Gomes, que é o nome da senhora, que nem brazileira
é, não podendo tolerar o Damaso, como
ninguem o tolera, tem-lhe fechado a sua porta. Esta é a
verdade; mas talvez eu arranque as
orelhas ao Damaso!
Ega contentou-se em murmurar:
—E ahi está como se escreve a historia... vá-se
lá a gente fiar em Guizot!
[62]
Em silencio, até casa da Gouvarinho, Carlos foi ruminando a
sua cólera contra o Damaso.
Ahi estava pois rasgada por aquelle imbecil a penumbra suave e
favoravel em que se abrigára
o seu amor! Agora já se pronunciava o nome de Maria Eduarda
no Gremio: o que o Damaso
dissera ao Ega, repetil-o-hia a outros, na Casa Havaneza, no
restaurante Silva, talvez nos
lupanares: e assim o interesse supremo da sua vida seria d'ahi por
diante constantemente
perturbado, estragado, sujo pela tagarellice reles do Damaso!
—Parece-me que temos cá mais gente, disse o Ega, ao
penetrarem na ante-camara dos
Gouvarinhos, vendo sobre o canapé um paletot cinzento e
capas de sonhem.
A condessa esperava-os na salinha ao fundo, chamada «do
busto», vestida de preto, com
uma tira de velludo em volta do pescoço picada de tres
estrellas de diamantes. Uma cesta de
esplendidas flôres quasi enchia a mesa, onde se accumulavam
tambem romances inglezes, e
uma Revista dos Dois Mundos em evidencia, com a faca de marfim entre as
folhas. Além da
boa D. Maria da Cunha e da baroneza d'Alvim, havia uma outra senhora,
[63]
que nem Carlos nem Ega conheciam,
gorda e vestida d'escarlate; e de pé, conversando baixo com
o conde, de mãos atraz das costas, um cavalheiro alto,
escaveirado, grave, com uma barba rala, e a commenda da
Conceição.
A condessa, um pouco córada, estendeu a Carlos a
mão amuada e frouxa: todos os seus sorrisos foram para o
Ega. E o conde apoderou-se logo do querido Maia, para o apresentar ao
seu amigo o snr. Sousa Netto. O snr. Sousa Netto já tinha o
prazer de conhecer muito Carlos da Maia, como um medico distincto, uma
honra da Universidade... E era esta a vantagem de Lisboa, disse logo o
conde, o conhecerem-se todos de reputação, o
poder-se ter assim uma apreciação mais justa dos
caracteres. Em Paris, por exemplo, era impossivel; por isso havia tanta
immoralidade, tanta
relaxação...
—Nunca sabe a gente quem mette em casa.
O Ega, entre a condessa e D. Maria, enterrado no divan, mostrando as
estrellinhas bordadas das meias, fazia-as rir com a historia do seu
exilio em Celorico, onde se distrahia compondo sermões para
o abbade: o abbade recitava-os; e os sermões, sob uma
fórma mystica, eram de facto
affirmações revolucionarias que o santo
varão lançava com fervor, esmurrando o pulpito...
A senhora de vermelho, sentada defronte, de mãos no
regaço, escutava o Ega, com o olhar espantado.
—Imaginei que v. exc.
a tinha ido já
para Cintra,
[64]
veio dizer Carlos
á senhora baroneza, sentando-se junto d'ella. V. exc.
a
é sempre a primeira...
—Como quer o senhor que se vá para Cintra com um tempo
d'estes?
—Com effeito, está infernal...
—E que conta de novo? perguntou ella, abrindo lentamente o seu grande
leque preto.
—Creio que não ha nada de novo em Lisboa, minha senhora,
desde a morte do snr. D. João VI.
—Agora ha o seu amigo Ega, por exemplo.
—É verdade, ha o Ega... Como o acha v. exc.
a,
senhora
baroneza?
Ella nem baixou a voz para dizer:
—Olhe, eu como o achei sempre um grande presumido e não
gosto d'elle, não posso dizer
nada...
—Oh senhora baroneza, que falta de caridade!
O escudeiro annunciára o jantar. A condessa tomou o
braço de Carlos,—e, ao atravessar o
salão, entre o frouxo murmurio de vozes e o rumor lento das
caudas de sêda, pôde dizer-lhe
asperamente:
—Esperei meia hora; mas comprehendi logo que estaria entretido com a
brazileira...
Na sala de jantar, um pouco sombria, forrada de papel côr de
vinho, escurecida ainda por dois antigos paineis de paizagem tristonha,
a mesa oval, cercada de cadeiras de carvalho lavrado, resaltava alva e
fresca, com um esplendido cesto de rosas entre duas serpentinas
douradas. Carlos ficou
[65]
á direita da condessa, tendo ao lado D. Maria da Cunha, que
n'esse dia parecia um pouco mais velha, e sorria com um ar cansado.
—Que tem feito todo este tempo, que ninguem o tem visto? perguntou-lhe
ella, desdobrando o guardanapo.
—Por esse mundo, minha senhora, vagamente...
Defronte de Carlos, o snr. Sousa Netto, que tinha tres enormes coraes
no peitilho da camisa, estava já observando, emquanto
remexia a sopa, que a senhora condessa, na sua viagem ao Porto, devia
ter encontrado nas ruas e nos edificios grandes mudanças...
A condessa, infelizmente, mal tinha sahido durante o tempo que estivera
no Porto. O conde, esse, é que admirara os progressos da
cidade. E especificou-os: elogiou a vista do Palacio de Crystal;
lembrou o fecundo antagonismo que existe entre Lisboa e Porto; mais uma
vez o comparou ao dualismo da Austria e da Hungria. E
através d'estas coisas graves, lançadas d'alto,
com superioridade e com peso, a baroneza e a senhora d'escarlate, aos
dois lados d'elle, fallavam do convento das Selesias.
Carlos, no emtanto, comendo em silencio a sua sopa, ruminava as
palavras da condessa. Tambem ella conhecia já a sua
intimidade com a
«brazileira». Era evidente pois que já
andava alli, diffamante e torpe, a tagarellice do Damaso. E quando o
criado lhe offereceu Sauterne, estava decidido a bater no Damaso.
[66]
De repente ouviu o seu nome. Do fim da mesa uma voz dizia, pachorrenta
e cantada:
—O snr. Maia é que deve saber... O snr. Maia já
lá esteve.
Carlos pousou vivamente o copo. Era a senhora d'escarlate que lhe
fallava, sorrindo, mostrando uns bonitos dentes sob o buço
forte de quarentona pallida. Ninguem lh'a apresentára, elle
não sabia
quem era. Sorriu tambem, perguntou:
—Onde, minha senhora?
—Na Russia.
—Na Russia?... Não, minha senhora, nunca estive na Russia.
Ella pareceu um pouco desapontada.
—Ah, é que me tinham dito... Não sei
já quem me disse, mas era pessoa que sabia...
O conde ao fundo explicava-lhe amavelmente que o amigo Maia estivera
apenas na Hollanda.
—Paiz de grande prosperidade, a Hollanda!... Em nada inferior ao
nosso... Já conheci mesmo um hollandez que era
excessivamente instruido...
A condessa baixára os olhos, partindo vagamente um bocadinho
de pão, mais séria de repente, mais secca, como
se a voz de Carlos, erguendo-se tão tranquilla ao seu lado,
tivesse avivado os seus despeitos. Elle, então, depois de
provar devagar o seu Sauterne, voltou-se para ella, muito naturalmente
e risonho:
—Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo idéa d'ir
á Russia. Ha assim uma infinidade
[67]
de coisas que se dizem e que
não são exactas... E se se faz uma
allusão ironica a ellas, ninguem comprehende a
allusão nem a ironia...
A condessa não respondeu logo, dando com o olhar uma ordem
muda ao escudeiro. Depois, com um sorriso pallido:
—No fundo de tudo que se diz ha sempre um facto, ou um bocado de facto
que é verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a mim
basta-me...
—A senhora condessa tem então uma credulidade infantil.
Estou vendo que acredita que era uma vez uma filha d'um rei que tinha
uma estrella na testa...
Mas o conde interpellava-o, o conde queria a opinião do seu
amigo Maia. Tratava-se do livro de um inglez, o major Bratt, que
atravessára a Africa, e dizia coisas perfidamente
desagradaveis para Portugal. O conde via alli só inveja—a
inveja que nos têm todas as nações por
causa da
importancia das nossas colonias, e da nossa vasta influencia na
Africa...
—Está claro, dizia o conde, que não temos nem os
milhões, nem a marinha dos inglezes. Mas temos grandes
glorias; o infante D. Henrique é de primeira ordem; e a
tomada d'Ormuz é um primor... E eu que conheço
alguma coisa de systemas coloniaes, posso affirmar que não
ha hoje colonias nem mais susceptiveis de riqueza, nem mais crentes no
progresso, nem mais liberaes que as nossas! Não lhe parece,
Maia?
[68]
—Sim, talvez, é possivel... Ha muita verdade n'isso...
Mas Ega, que estivera um pouco silencioso, entalando de vez em quando o
monoculo no olho e sorrindo para a baroneza, pronunciou-se alegremente
contra todas essas explorações da Africa, e essas
longas missões geographicas... Porque não
se deixaria o preto socegado, na calma posse dos seus manipansos? Que
mal fazia á ordem das coisas que houvesse selvagens? Pelo
contrario, davam ao Universo uma deliciosa quantidade de pittoresco!
Com a mania franceza e burgueza de reduzir todas as regiões
e todas as raças ao mesmo typo de
civilisação, o mundo ia tornar-se d'uma
monotonia abominavel. Dentro em breve um touriste faria enormes
sacrificios, despezas sem fim, para ir a Tombuctu—para quê?
Para encontrar lá pretos de chapéo alto, a
lêr o
Jornal
dos Debates!
O conde sorria com superioridade. E a boa D. Maria, sahindo do seu vago
abatimento, movia o leque, dizia a Carlos, deleitada:
—Este Ega! Este Ega! Que graça! Que
chic!
Então Sousa Netto, pousando gravemente o talher, fez ao Ega
esta pergunta grave:
—V. exc.
a pois é em favor da
escravatura?
Ega declarou muito decididamente ao snr. Sousa Netto que era pela
escravatura. Os desconfortos da vida, segundo elle, tinham
começado com a libertação dos negros.
Só podia ser
sériamente obedecido, quem era sériamente
temido... Por isso
[69]ninguem
agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem
cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados
pretos em quem fosse licito dar vergastadas... Só houvera
duas civilisações em que o homem conseguira viver
com razoavel commodidade: a civilisação
romana, e a civilisação especial dos plantadores
da Nova Orleans. Porque? porque n'uma e n'outra existira a escravatura
absoluta, a sério, com o direito de morte!...
Durante um momento o snr. Sousa Netto ficou como desorganisado. Depois
passou o guardanapo sobre os beiços, preparou-se, encarou o
Ega:
—Então v. exc.
a n'essa idade, com a
sua intelligencia,
não acredita no Progresso?
—Eu não senhor.
O conde interveio, affavel e risonho:
—O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem
razão, tem realmente razão,
porque os faz brilhantes...
Estava-se servindo
Jambon aux
épinards. Durante um momento fallou-se de
paradoxos. Segundo o conde, quem os fazia tambem brilhantes e difficeis
de sustentar, excessivamente difficeis, era o Barros, o ministro do
reino...
—Talento robusto, murmurou respeitosamente Sousa Netto.
—Sim, pujante, disse o conde.
Mas elle agora não fallava tanto do talento do Barros como
parlamentar, como homem d'estado.
[70]
Fallava do seu espirito de sociedade, do seu
esprit...
—Ainda este inverno nós lhe ouvimos um paradoxo brilhante!
Até foi em casa da snr.
a D. Maria da
Cunha... V. exc.
a
não se lembra, snr.
a D. Maria? Esta
minha
desgraçada memoria! Ó Thereza, lembras-te
d'aquelle paradoxo do Barros? Ora sobre que era, meu Deus?... Emfim, um
paradoxo muito difficil de sustentar... Esta minha memoria!... Pois
não te lembras, Thereza?
A condessa não se lembrava. E emquanto o conde ficava
remexendo anciosamente, com a mão na testa, as suas
recordações,—a senhora
d'escarlate voltou a fallar de pretos, e de escudeiros pretos, e d'uma
cozinheira preta que tivera uma tia d'ella, a tia Villar... Depois
queixou-se amargamente dos criados modernos: desde que lhe morrera a
Joanna, que estava em casa havia quinze annos, não sabia que
fazer, andava como tonta, tinha só desgostos. Em seis mezes
já vira quatro caras novas. E umas desleixadas, umas
pretenciosas, uma immoralidade!... Quasi lhe fugiu um suspiro do peito,
e trincando desconsoladamente uma migalhinha de pão:
—Ó baroneza, ainda tens a Vicenta?
—Pois então não havia de ter a Vicenta?...
Sempre a Vicenta... A snr.
a D. Vicenta, se faz
favor.
A outra contemplou-a um instante, com inveja d'aquella felicidade.
—E é a Vicenta que te penteia?
[71]
Sim, era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coitada... Mas
sempre caturra. Agora andava com a mania de aprender francez.
Já sabia verbos. Era de morrer, a Vicenta a dizer
j'aime,
tu
aimes...
—E a senhora baroneza, acudiu o Ega, começou por lhe mandar
ensinar os verbos mais necessarios.
Está claro, dizia a baroneza, que aquelle era o mais
necessario. Mas na idade da Vicenta já de pouco lhe poderia
servir!
—Ah! gritou de repente o conde, deixando quasi cahir o talher. Agora
me lembro!
Tinha-se lembrado emfim do soberbo paradoxo do Barros. Dizia o Barros
que os cães, quanto mais ensinados... Pois, não,
não era isto!
—Esta minha desgraçada memoria!... E era sobre
cães. Uma coisa brilhante, philosophica
até!
E, por se fallar de cães, a baroneza lembrou-se do
Tommy, o galgo da condessa;
perguntou por
Tommy. Já o
não via ha que tempos, esse bravo
Tommy! A condessa nem queria que se
fallasse no
Tommy, coitado!
Tinham-lhe
nascido umas coisas nos ouvidos, um horror... Mandára-o para
o Instituto, lá morrera.
—Está deliciosa esta galantine, disse D. Maria da Cunha,
inclinando-se para Carlos.
—Deliciosa.
E a baroneza, do lado, declarou tambem a galantine uma
perfeição. Com um olhar ao escudeiro,
[72]
a condessa fez servir de novo a
galantine: e apressou-se a responder ao snr. Sousa Netto, que, a
proposito de cães, lhe estava fallando da
Sociedade
protectora dos animaes. O snr. Sousa Netto
approvava-a, considerava-a como um progresso... E, segundo elle,
não seria mesmo de mais que o governo lhe désse
um subsidio.
—Que eu creio que ella vai prosperando... E merece-o, acredite a
senhora condessa que o merece... Estudei essa questão, e de
todas as sociedades que ultimamente se têm fundado entre
nós, á imitação do que se
faz lá
fóra, como a
Sociedade de
Geographia e outras, a
Protectora
dos animaes parece-me decerto uma das mais uteis.
Voltou-se para o lado, para o Ega:
—V. exc.
a pertence?
—Á
Sociedade protectora dos
animaes?... Não senhor,
pertenço a outra, á de
Geographia. Sou dos protegidos.
A baroneza teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se
extremamente sério: pertencia á
Sociedade de
Geographia, considerava-a um pilar do Estado,
acreditava na sua missão civilisadora, detestava aquellas
irreverencias. Mas a condessa e Carlos tinham rido tambem:—e de
repente a frialdade que até ahi os conservára ao
lado um do outro reservados, n'uma ceremonia affectada, pareceu
dissipar-se ao calor d'esse riso trocado, no brilho dos dois olhares
encontrando-se irresistivelmente. Servira-se o Champagne, ella
[73]
tinha uma côrzinha
no rosto. O seu pé, sem ella saber como, roçou
pelo pé de Carlos; sorriram ainda outra vez;—e, como no
resto da mesa se conversava sobre uns concertos classicos que ia haver
no Price, Carlos perguntou-lhe, baixo, com uma reprehensão
amavel:
—Que tolice foi essa da
brazileira?... Quem lhe disse isso?
Ella confessou-lhe logo que fôra o Damaso... O Damaso viera
contar-lhe o enthusiasmo de Carlos por essa senhora, e as
manhãs inteiras que lá passava, todos os dias,
á mesma hora... Emfim o Damaso fizera-lhe claramente
entrevêr uma
liaison.
Carlos encolheu os hombros. Como podia ella acreditar no Damaso? Devia
conhecer-lhe bem a tagarellice, a imbecilidade...
—É perfeitamente verdade que eu vou a casa d'essa senhora,
que nem brazileira é, que é
tão portugueza como eu; mas é porque ella tem a
governante muito doente com uma bronchite, e eu sou o medico da casa.
Foi até o Damaso, elle proprio, que lá me levou
como medico!
No rosto da condessa espalhava-se um riso, uma claridade vinda do
dôce allivio que se fazia no seu
coração.
—Mas o Damaso disse-me que era tão linda!...
Sim, era muito linda. E então? Um medico, por fidelidade
ás suas affeições, e
para as não inquietar, não podia realmente, antes
de penetrar na
[74]casa
d'uma
doente, exigir-lhe um certificado de hediondez!
—Mas que está ella cá a fazer?...
—Está á espera do marido que foi a negocios ao
Brazil, e vem ahi... É uma gente muito distincta, e creio
que muito rica... Vão-se brevemente embora, de resto, e eu
pouco sei d'elles. As minhas visitas são de medico; tenho
apenas conversado com ella sobre Paris, sobre Londres, sobre as suas
impressões de Portugal...
A condessa bebia estas palavras, deliciosamente, dominada pelo bello
olhar com que elle lh'as murmurava: e o seu pé apertava o de
Carlos n'uma reconciliação apaixonada, com a
força que desejaria pôr n'um abraço—se
alli lh'o podesse dar.
A senhora d'escarlate, no emtanto, recomeçára a
fallar da Russia. O que a assustava é que o paiz era
tão caro, corriam-se tantos perigos por causa da dynamite, e
uma constituição fraca devia
soffrer muito com a neve nas ruas. E foi então que Carlos
percebeu que ella era a esposa de Sousa Netto, e que se tratava d'um
filho d'elles, filho unico, despachado segundo secretario para a
legação de S. Petersburgo.
—O menino conhece-o? perguntou D. Maria ao ouvido de Carlos, por traz
do leque. É um horror d'estupidez... Nem francez sabe! De
resto não é peor que os outros... Que a
quantidade de mônos,
de semsaborões e de tolos que nos representam
[75]
lá
fóra até faz chorar... Pois
o menino não acha? Isto é um paiz
desgraçado.
—Peor, minha cara senhora, muito peor. Isto é um paiz
cursi.
Tinha findado a sobremesa. D. Maria olhou para a condessa com o seu
sorriso cansado; a senhora de escarlate calára-se,
já preparada, tendo mesmo afastado um pouco a cadeira; e as
senhoras ergueram-se, no momento em que o Ega, ainda ácerca
da Russia, acabava de contar uma historia ouvida a um polaco, e em que
se provava que o Czar era um estupido...
—Liberal todavia, gostando bastante do progresso! murmurou ainda o
conde, já de pé.
Os homens, sós, accenderam os seus charutos; o escudeiro
serviu o café. Então o snr. Sousa Netto, com a
sua chavena na mão, aproximou-se de Carlos para lhe exprimir
de novo o prazer que tivera em fazer o seu conhecimento...
—Eu tive tambem em tempos o prazer de conhecer o pai de v. exc.
a...
Pedro, creio que era justamente o snr. Pedro da Maia.
Começava eu
então a minha carreira publica... E o avô de v.
exc.
a, bom?
—Muito agradecido a v. exc.
a
—Pessoa muito respeitavel... O pai de v. exc.
a
era... Emfim, era o
que se chama «um elegante». Tive tambem o prazer de
conhecer a mãi de v. exc.
a...
E de repente calou-se, embaraçado, levando a
[76]
chavena aos labios. Depois,
lentamente, voltou-se para escutar melhor o Ega, que ao lado discutia
com o Gouvarinho sobre mulheres. Era a proposito da
secretária da legação da Russia,
com quem elle encontrára n'essa manhã o conde
conversando ao Calhariz. O Ega achava-a deliciosa, com o seu corpinho
nervoso e ondeado, os seus grandes olhos garços... E o
conde, que a admirava tambem, gabava-lhe sobretudo o espirito, a
instrucção. Isso, segundo o Ega, prejudicava-a:
porque o dever da mulher era primeiro ser bella, e depois ser
estupida... O conde affirmou logo com exuberancia que não
gostava tambem de litteratas: sim, decerto o lugar da mulher era junto
do berço, não na bibliotheca...
—No emtanto é agradavel que uma senhora possa conversar
sobre coisas amenas, sobre o artigo d'uma Revista, sobre... Por
exemplo, quando se publica um livro... Emfim, não direi
quando se trata d'um Guizot, ou d'um Jules Simon... Mas, por exemplo,
quando se trata d'um Feuillet, d'um... Emfim, uma senhora deve ser
prendada. Não lhe parece, Netto?
Netto, grave, murmurou:
—Uma senhora, sobretudo quando ainda é nova, deve ter
algumas prendas...
Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas
litterarias, sabendo dizer coisas sobre o snr. Thiers, ou sobre o snr.
Zola, é um monstro, um phenomeno que cumpria
[77]
recolher a uma companhia de
cavallinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher
só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem.
—V. exc.
a decerto, snr. Sousa Netto, sabe o que
diz Proudhon?
—Não me recordo textualmente, mas...
—Em todo o caso v. exc.
a conhece perfeitamente
o seu Proudhon?
O outro, muito seccamente, não gostando decerto d'aquelle
interrogatorio, murmurou que Proudhon era um author de muita nomeada.
Mas o Ega insistia, com uma impertinencia perfida:
—V. exc.
a leu evidentemente, como
nós todos, as grandes
paginas de Proudhon sobre o amor?
O snr. Netto, já vermelho, pousou a chavena sobre a mesa. E
quiz ser sarcastico, esmagar aquelle moço, tão
litterario, tão audaz.
—Não sabia, disse elle com um sorriso infinitamente
superior, que esse philosopho tivesse escripto sobre assumptos
escabrosos!
Ega atirou os braços ao ar, consternado:
—Oh snr. Sousa Netto! Então v. exc.
a,
um chefe de familia,
acha o amor um assumpto escabroso?!
O snr. Netto encordoou. E muito direito, muito digno, fallando do alto
da sua consideravel
posição burocratica:
[78]
—É meu costume, snr. Ega, não entrar nunca em
discussões, e acatar todas as opiniões
alheias, mesmo quando ellas sejam absurdas...
E quasi voltou as costas ao Ega, dirigindo-se outra vez a Carlos,
desejando saber, n'uma voz ainda um pouco alterada, se elle agora se
fixava algum tempo mais em Portugal. Então, durante um
momento, acabando os charutos, os dois fallaram de viagens. O snr.
Netto lamentava que os seus muitos deveres não lhe
permitissem percorrer a Europa. Em pequeno fôra esse o seu
ideal; mas agora, com tantas occupações publicas,
via-se
forçado a não deixar a carteira. E alli estava,
sem ter visto sequer Badajoz...
—E v. exc.
a de que gostou mais, de Paris ou de
Londres?
Carlos realmente não sabia, nem se podia comparar... Duas
cidades tão differentes, duas
civilisações tão originaes...
—Em Londres, observou o conselheiro, tudo carvão...
Sim, dizia Carlos sorrindo, bastante carvão, sobretudo nos
fogões, quando havia frio...
O snr. Sousa Netto murmurou:
—E o frio alli deve ser sempre consideravel... Clima tão ao
norte!...
Esteve um momento mamando o charuto, de palpebra cerrada. Depois, fez
esta observação
sagaz e profunda:
—Povo pratico, povo essencialmente pratico.
[79]
—Sim, bastante pratico, disse vagamente Carlos, dando um passo para a
sala, onde se sentiam as risadas cantantes da baroneza.
—E diga-me outra coisa, proseguiu o snr. Sousa Netto, com interesse,
cheio de curiosidade intelligente. Encontra-se por lá, em
Inglaterra, d'esta litteratura amena, como entre nós,
folhetinistas, poetas de pulso?...
Carlos deitou a ponta do charuto para o cinzeiro, e respondeu, com
descaro:
—Não, não ha d'isso.
—Logo vi, murmurou Sousa Netto. Tudo gente de negocio.
E penetraram na sala. Era o Ega que assim fazia rir a baroneza, sentado
defronte d'ella, fallando outra vez de Celorico, contando-lhe uma
soirée de Celorico, com detalhes picarescos sobre as
authoridades, e sobre um abbade que tinha morto um homem e cantava
fados sentimentaes ao piano. A senhora d'escarlate, no sofá
ao lado, com os
braços cahidos no regaço, pasmava para aquella
veia do Ega como para as destrezas d'um palhaço. D. Maria,
junto da mesa, folheava com o seu ar cansado uma
Illustração; e
vendo que Carlos ao entrar procurára com o olhar a condessa,
chamou-o, disse-lhe baixo que ella fôra dentro vêr
Charlie, o
pequeno...
—É verdade, perguntou Carlos, sentando-se ao lado d'ella,
que é feito d'elle, d'esse lindo Charlie?
[80]
—Diz que tem estado hoje constipado, e um pouco murcho...
—A snr.
a D. Maria tambem me parece hoje um
pouco murcha.
—É do tempo. Eu já estou na idade em que o bom
humor ou o aborrecimento vêm só das
influencias do tempo... Na sua idade vem d'outras coisas. E a
proposito d'outras coisas: então a Cohen tambem chegou?
—Chegou, disse Carlos, mas não
tambem. O
tambem implica
combinação... E a Cohen e o Ega chegaram
realmente ambos por acaso... De resto isso é historia
antiga, é como os amores de
Helena e de Páris.
N'esse instante a condessa voltava de dentro, um pouco afogueada, e
trazendo aberto um grande leque negro. Sem se sentar, fallando
sobretudo para a mulher do snr. Sousa Netto, queixou-se logo de
não ter achado Charlie bem... Estava tão quente,
tão inquieto... Tinha quasi medo que fosse sarampo.—E
voltando-se vivamente para Carlos, com um sorriso:
—Eu estou com vergonha... Mas se o snr. Carlos da Maia quizesse ter o
incommodo de o vir vêr um instante... É odioso,
realmente, pedir-lhe logo depois de jantar para examinar um doente...
—Oh senhora condessa! exclamou elle, já de pé.
Seguiu-a. N'uma saleta, ao lado, o conde e o
[81]
snr. Sousa Netto, enterrados n'um
sofá, conversavam fumando.
—Levo o snr. Carlos da Maia para vêr o pequeno...
O conde erguera-se um pouco do sofá, sem comprehender bem.
Já ella passára. Carlos seguiu em silencio a sua
longa cauda de sêda preta
através do bilhar, deserto, com o gaz acceso, ornado de
quatro retratos de damas, da familia dos Gouvarinhos, empoadas e
sorumbaticas. Ao lado, por traz de um pesado reposteiro de fazenda
verde, era um gabinete, com uma velha poltrona, alguns livros n'uma
estante envidraçada, e uma escrevaninha onde pousava um
candieiro sob o abat-jour de renda côr de rosa. E ahi,
bruscamente, ella parou, atirou os braços ao
pescoço de Carlos, os seus labios prenderam-se aos d'elle
n'um beijo sôfrego, penetrante, completo, findando n'um
soluço de desmaio... Elle sentia aquelle lindo corpo
estremecer, escorregar-lhe entre os braços, sobre os joelhos
sem força.
—Ámanhã, em casa da titi, ás onze,
murmurou ella quando pôde fallar.
—Pois sim.
Desprendida d'elle, a condessa ficou um momento com as mãos
sobre os olhos, deixando desvanecer aquella languida vertigem, que a
fizera côr de cêra. Depois, cansada e sorrindo:
—Que doida que eu sou... Vamos vêr Charlie.
O quarto do pequeno era ao fundo do corredor.
[82]
E ahi, n'uma caminha de
ferro, junto do leito maior da criada, Charlie dormia, sereno, fresco,
com um bracinho cahido para o lado, os seus lindos caracoes loiros
espalhados no travesseiro como uma aureola d'anjo. Carlos tocou-lhe
apenas no pulso; e a criada escosseza, que trouxera uma luz de sobre a
commoda, disse, sorrindo tranquillamente:
—O menino n'estes ultimos dias tem andado muitissimo bem...
Voltaram. No gabinete, antes de penetrar no bilhar, a condessa,
já com a mão no reposteiro, estendeu ainda a
Carlos os seus labios insaciaveis. Elle colheu um rapido beijo. E, ao
passar na antecamara, onde Sousa Netto e o conde continuavam
enfronhados n'uma conversa grave, ella disse ao marido:
—O pequeno está a dormir... O snr. Carlos da Maia achou-o
bem.
O conde de Gouvarinho bateu no hombro de Carlos, carinhosamente. E
durante um momento a condessa ficou alli conversando, de pé,
a deixar-se serenar, pouco a pouco, n'aquella penumbra favoravel, antes
de affrontar a luz forte da sala. Depois, por se fallar em hygiene,
convidou o snr. Sousa Netto para uma partida de bilhar; mas o snr.
Netto, desde Coimbra, desde a Universidade, não
pegára n'um taco. E ia-se chamar o Ega quando appareceu
Telles da Gama, que chegava do Price. Logo atraz d'elle entrou o conde
de Steinbroken.
[83]
Então o resto da noite passou-se no salão, em
redor do piano. O ministro cantou melodias da Filandia. Telles da Gama
tocou
fados.
Carlos e Ega foram os derradeiros a sahir, depois de um
brandy and soda, de que a
condessa partilhou, como ingleza forte. E em baixo, no pateo, acabando
de abotoar o paletot, Carlos pôde emfim soltar a pergunta que
lhe faiscára nos labios toda a noite:
—Ó Ega, quem é aquelle homem, aquelle Sousa
Netto, que quiz saber se em Inglaterra havia tambem litteratura?
Ega olhou-o com espanto:
—Pois não adivinhaste? Não deduziste logo?
Não viste immediatamente quem n'este paiz é capaz
de fazer essa pergunta?
—Não sei... Ha tanta gente capaz...
E o Ega radiante:
—Official superior d'uma grande repartição do
Estado!
—De qual?
—Ora de qual! De qual ha de ser?... Da
Instrucção publica!
Na tarde seguinte, ás cinco horas, Carlos, que se
demorára de mais em casa da titi com a condessa, retido
pelos seus beijos interminaveis, fez voar o coupé
até á rua de S.
Francisco, olhando
[84]a
cada momento o relogio, n'um receio de que Maria Eduarda tivesse sahido
por aquelle lindo dia de verão, luminoso e sem calor. Com
effeito á porta d'ella estava a carruagem da Companhia; e
Carlos galgou as escadas, desesperado com a condessa, sobretudo comsigo
mesmo, tão fraco, tão passivo, que assim se
deixára retomar por aquelles braços exigentes,
cada vez mais pesados, e já incapazes de o commover...
—A senhora chegou agora mesmo, disse-lhe o Domingos, que
voltára da terra havia tres dias, e ainda não
cessára de lhe sorrir.
Sentada no sofá, de chapéo, tirando as
luvas,
ella acolheu-o com uma dôce côr
no rosto, e uma carinhosa reprehensão:
—Estive á espera mais de meia hora antes de sahir...
É uma ingratidão! Imaginei que nos tinha
abandonado!
—Porquê? Está peor, miss Sarah?
Ella olhou-o, risonhamente escandalisada. Ora, miss Sarah! Miss Sarah
ia seguindo perfeitamente na sua convalescença... Mas agora
já
não eram as visitas de medico que se esperavam, eram as de
amigo; e essa tinha-lhe faltado.
Carlos, sem responder, perturbado, voltou-se para Rosa, que folheava
junto da mesa um livro novo d'estampas; e a ternura, a
gratidão infinita do seu coração, que
não ousava mostrar
á mãe, pôl-a toda na longa caricia em
que envolveu a filha.
—São historias que a mamã agora comprou,
[85]dizia Rosa,
séria e presa ao seu livro. Hei de t'as contar depois...
São historias de bichos.
Maria Eduarda erguera-se, desapertando lentamente as fitas do
chapéo.
—Quer tomar uma chavena de chá comnosco, snr. Carlos da
Maia? Eu vinha morrendo por uma chavena de chá... Que lindo
dia, não é
verdade? Rosa, fica tu a contar o nosso passeio emquanto eu vou tirar o
chapéo...
Carlos, só com Rosa, sentou-se junto d'ella, desviando-a do
livro, tomando-lhe ambas as mãos.
—Fomos ao Passeio da Estrella, dizia a pequena. Mas a mamã
não se queria demorar, porque tu podias ter vindo!
Carlos beijou, uma depois da outra, as duas mãosinhas de
Rosa.
—E então que fizeste no Passeio? perguntou elle, depois
d'um leve suspiro de felicidade que lhe fugira do peito.
—Andei a correr, havia uns patinhos novos...
—Bonitos?...
A pequena encolheu os hombros:
—Chinfrinzitos.
Chinfrinzitos! Quem lhe tinha ensinado a dizer uma coisa tão
feia?
Rosa sorriu. Fôra o Domingos. E o Domingos dizia ainda outras
coisas assim, engraçadas... Dizia que a Melanie era uma
gaja... O
Domingos tinha muita graça.
Então Carlos advertiu-a que uma menina bonita,
[86]
com tão bonitos
vestidos, não devia dizer aquellas palavras... Assim fallava
a gente rôta.
—O Domingos não anda rôto, disse Rosa muito
séria.
E subitamente, com outra idéa, bateu as palmas, pulou-lhe
entre os joelhos, radiante:
—E trouxe-me uns grillos da Praça! O Domingos trouxe-me uns
grillos... Se tu soubesses!
Niniche tem medo dos grillos! Parece
incrivel, hein? Eu nunca vi ninguem mais medrosa...
Esteve um momento a olhar Carlos, e acrescentou, com um ar grave:
—É a mamã que lhe dá tanto mimo.
É uma pena!
Maria Eduarda entrava, ageitando ainda de leve o ondeado do cabello: e,
ouvindo assim fallar de mimo, quiz saber quem é que ella
estragava com mimo...
Niniche? Pobre
Niniche, coitada, ainda essa
manhã fôra castigada!
Então Rosa rompeu a rir, batendo outra vez as
mãos:
—Sabes como a mamã a castiga? exclamava ella, puxando a
manga de Carlos. Sabes?... Faz-lhe voz grossa... Diz-lhe em inglez:
Bad dog! dreadful dog!
Era encantadora assim, imitando a voz severa da mamã, com o
dedinho erguido, a ameaçar
Niniche. A pobre
Niniche, imaginando com
effeito que a estavam a reprehender, arrastou-se, vexada, para debaixo
do sofá. E foi necessario que Rosa
[87]
a tranquillisasse, de joelhos
sobre a pelle de tigre, jurando-lhe, por entre abraços, que
ella nem era mau cão, nem feio cão;
fôra
só para contar como fazia a mamã...
—Vai-lhe dar agua, que ella deve estar com sêde, disse
então Maria Eduarda, indo sentar-se na
sua cadeira escarlate. E dize ao Domingos que nos traga o
chá.
Rosa e
Niniche partiram correndo.
Carlos veio occupar, junto da janella, a costumada poltrona de reps.
Mas pela primeira vez, desde a sua intimidade, houve entre elles um
silencio difficil. Depois ella queixou-se de calor, desenrolando
distrahidamente o bordado; e Carlos permanecia mudo, como se para elle,
n'esse dia, apenas houvesse encanto, apenas houvesse
significação n'uma certa palavra de que os seus
labios estavam cheios e que não ousavam murmurar, que quasi
receava que fosse adivinhada apesar d'ella suffocar o seu
coração.
—Parece que nunca se acaba, esse bordado! disse elle por fim,
impaciente de a vêr, tão
serena, a occupar-se das suas lãs.
Com a talagarça desdobrada sobre os joelhos, ella respondeu,
sem erguer os olhos:
—E para que se ha de acabar? O grande prazer é andal-o a
fazer, pois não acha? Uma malha hoje, outra malha
ámanhã, torna-se assim uma companhia... Para que
se ha de querer chegar logo ao fim das coisas?
[88]
Uma sombra passou no rosto de Carlos. N'estas palavras, ditas de leve
ácerca do bordado, elle sentia uma desanimadora
allusão ao seu amor,—esse amor que lhe fôra
enchendo o coração
á maneira que a lã cobria aquella
talagarça, e que era obra simultanea das mesmas brancas
mãos. Queria ella pois conserval-o alli, arrastado como o
bordado, sempre acrescentado e sempre incompleto, guardado tambem no
cesto da costura, para ser o desafogo da sua solidão?
Disse-lhe então, commovido:
—Não é assim. Ha coisas que só
existem quando se completam, e que só então
dão a
felicidade que se procurava n'ellas.
—É muito complicado isso, murmurou ella,
córando. É muito subtil...
—Quer que lh'o diga mais claramente?
N'esse instante Domingos, erguendo o reposteiro, annunciou que estava
alli o snr. Damaso...
Maria Eduarda teve um movimento brusco de impaciencia:
—Diga que não recebo!
Fóra, no silencio, sentiram bater a porta. E Carlos ficou
inquieto, lembrando-se que o Damaso devia ter visto em baixo, passeando
na rua, o seu coupé. Santo Deus! O que elle iria tagarellar
agora, com os seus pequeninos rancores, assim humilhado! Quasi lhe
pareceu n'esse instante a existencia do Damaso incompativel com a
tranquillidade do seu amor.
[89]
—Ahi está outro inconveniente d'esta casa, dizia no emtanto
Maria Eduarda. Aqui ao lado d'esse Gremio, a dois passos do Chiado,
é demasiadamente accessivel aos importunos. Tenho agora de
repellir quasi todos os dias este assalto á minha porta!
É intoleravel.
E com uma subita idéa, atirando o bordado para o
açafate, cruzando as mãos sobre os joelhos:
—Diga-me uma coisa que lhe tenho querido perguntar... Não
me seria possivel arranjar por ahi uma casinhola, um cottage, onde eu
fosse passar os mezes de verão?... Era tão bom
para a pequena!
Mas não conheço ninguem, não sei a
quem me hei de dirigir...
Carlos lembrou-se logo da bonita casa do Craft, nos Olivaes—como
já n'outra occasião em que ella
mostrára desejos d'ir para o campo. Justamente, n'esses
ultimos tempos, Craft voltára a fallar, e mais decidido, no
antigo plano de vender a quinta, e desfazer-se das suas
collecções. Que deliciosa
vivenda para ella, artistica e campestre, condizendo tão bem
com os seus gostos! Uma
tentação atravessou-o, irresistivel.
—Eu sei com effeito d'uma casa... E tão bem situada, que
lhe convinha tanto!...
—Que se aluga?
Carlos não hesitou:
—Sim, é possivel arranjar-se...
—Isso era um encanto!
Ella tinha dito—«era um encanto». E isto
[90]
decidiu-o logo,
parecendo-lhe desamoravel e mesquinho o ter-lhe suggerido uma
esperança, e não lh'a realisar com fervor.
O Domingos entrára com o taboleiro do chá. E
emquanto o collocava sobre uma pequena mesa, defronte de Maria Eduarda,
ao pé da janella, Carlos, erguendo-se, dando alguns passos
pela sala, pensava em começar immediatamente
negociações com o Craft, comprar-lhe as
collecções, alugar-lhe a casa por um anno, e
offerecel-a a Maria Eduarda para os mezes de verão. E
não
considerava, n'esse instante, nem as difficuldades, nem o dinheiro. Via
só a alegria d'ella passeando com a pequena, entre as bellas
arvores do jardim. E como Maria Eduarda deveria ser mais grandemente
formosa no meio d'esses moveis da Renascença, severos e
nobres!
—Muito assucar? perguntou ella.
—Não... Perfeitamente, basta.
Viera sentar-se na sua velha poltrona; e, recebendo a chavena de
porcelana ordinaria com um filetesinho azul, recordava o magnifico
serviço que tinha o Craft, de velho Wedgewood, oiro e
côr de fogo. Pobre senhora! tão delicada, e alli
enterrada entre aquelles reps, maculando a graça das suas
mãos nas coisas reles da mãi Cruges!
—E onde é essa casa? perguntou Maria Eduarda.
—Nos Olivaes, muito perto d'aqui, vai-se lá n'uma hora de
carruagem...
[91]
Explicou-lhe detalhadamente o sitio,—acrescentando, com os olhos
n'ella, e com um sorriso inquieto:
—Estou aqui a preparar lenha para me queimar!... Porque se
fôr para lá installar-se, e depois vier o calor,
quem é que a torna a vêr?
Ella pareceu surprehendida:
—Mas que lhe custa, a si, que tem cavallos, que tem carruagens, que
não tem quasi nada que fazer?...
Assim ella achava natural que elle continuasse nos Olivaes as suas
visitas de Lisboa! E pareceu-lhe logo impossivel renunciar ao encanto
d'esta intimidade, tão largamente offerecida, e decerto mais
dôce na solidão d'aldêa. Quando
acabou a sua chavena de chá—era como se a casa, os moveis,
as arvores fossem já seus, fossem já d'ella. E
teve alli um momento delicioso, descrevendo-lhe a
quietação da quinta, a entrada por uma rua
d'acacias, e a belleza da sala de jantar com duas janellas abrindo
sobre o rio...
Ella escutava-o, encantada:
—Oh! isso era o meu sonho! Vou ficar agora toda alterada, cheia
d'esperanças... Quando poderei ter uma resposta?
Carlos olhou o relogio. Era já tarde para ir aos Olivaes.
Mas logo na manhã seguinte cedo, ia fallar com o dono da
casa, seu amigo...
—Quanto incommodo por minha causa! disse ella. Realmente! como lhe hei
de eu agradecer?...
[92]
Calou-se; mas os seus bellos olhos ficaram um instante pousados nos de
Carlos, como esquecidos, e deixando fugir irresistivelmente um pouco do
segredo que ella retinha no seu coração.
Elle murmurou:
—Por mais que eu fizesse, ficaria bem pago de tudo se me olhasse outra
vez assim.
Uma onda de sangue cobriu toda a face de Maria Eduarda.
—Não diga isso...
—E que necessidade ha que eu lh'o diga? Pois não sabe
perfeitamente que a adoro, que a adoro, que a adoro!
Ella ergueu-se bruscamente, elle tambem:—e assim ficaram, mudos,
cheios d'anciedade, trespassando-se com os olhos, como se se tivesse
feito uma grande alteração no Universo, e elles
esperassem, suspensos, o desfecho supremo dos seus destinos... E foi
ella que fallou, a custo, quasi desfallecida, estendendo para elle,
como se o quizesse afastar, as mãos inquietas e tremulas:
—Escute! Sabe bem o que eu sinto por si, mas escute... Antes que seja
tarde ha uma coisa que lhe quero dizer...
Carlos via-a assim tremer, via-a toda pallida... E nem a
escutára, nem a comprehendera. Sentia apenas, n'um
deslumbramento, que o amor comprimido até ahi no seu
coração irrompera por
fim, triumphante, e embatendo no coração d'ella,
através
do apparente marmore do seu peito, fizera de lá
[93]
resaltar uma chamma igual...
Só via que ella tremia, só via que ella o
amava... E, com a gravidade forte d'um acto de posse, tomou-lhe
lentamente as mãos, que ella lhe abandonou, submissa de
repente, já sem força, e vencida. E beijava-lh'as
ora uma ora outra, e as palmas, e os dedos, devagar, murmurando apenas:
—Meu amor! meu amor! meu amor!
Maria Eduarda cahira pouco a pouco sobre a cadeira; e, sem retirar as
mãos, erguendo para elle os olhos cheios de
paixão, ennevoados de lagrimas, balbuciou ainda, debilmente,
n'uma derradeira
supplicação:
—Ha uma coisa que eu lhe queria dizer!...
Carlos estava já ajoelhado aos seus pés.
—Eu sei o que é! exclamou, ardentemente, junto do rosto
d'ella, sem a deixar fallar mais, certo de que adivinhára o
seu pensamento. Escusa de dizer, sei perfeitamente. É o que
eu tenho pensado tantas vezes! É que um amor como o nosso
não póde viver nas
condições em que vivem outros amores vulgares...
É que desde que eu lhe digo que a amo, é como se
lhe pedisse para ser minha esposa diante de Deus...
Ella recuava o rosto, olhando-o angustiosamente, e como se
não comprehendesse. E Carlos continuava mais baixo, com as
mãos d'ella presas, penetrando-a toda da
emoção que o fazia tremer:
—Sempre que pensava em si, era já com esta
esperança d'uma existencia toda nossa, longe
[94]
d'aqui, longe de todos, tendo
quebrado todos os laços presentes, pondo a nossa
paixão acima de todas as ficções
humanas, indo ser felizes para algum canto do mundo, solitariamente e
para sempre... Levamos Rosa, está claro, sei que
não se
póde separar d'ella... E assim viveriamos sós,
todos tres, n'um encanto!
—Meu Deus! Fugirmos? murmurou ella, assombrada.
Carlos erguera-se.
—E que podemos fazer? Que outra coisa podemos nós fazer,
digna do nosso amor?
Maria não respondeu, immovel, a face erguida para elle,
branca de cera. E pouco a pouco uma idéa parecia surgir
n'ella, inesperada e perturbadora, revolvendo todo o seu sêr.
Os seus olhos alargavam-se, anciosos e refulgentes.
Carlos ia fallar-lhe... Um leve rumor de passos na esteira da sala
deteve-o. Era o Domingos que vinha recolher a bandeja do
chá: e durante um momento, quasi interminavel, houve entre
aquelles dois sêres, sacudidos por um ardente vendaval de
paixão, a caseira passagem d'um criado arrumando chavenas
vazias. Maria Eduarda, bruscamente, refugiou-se detraz das bambinellas
de cretone com o rosto contra a vidraça. Carlos foi
sentar-se no sofá, a folhear ao acaso uma
Illustração,
que lhe tremia nas mãos. E não pensava em nada,
nem sabia onde estava... Ainda na vespera, havia ainda instantes,
conversando com ella, dizia ceremoniosamente
[95]
«minha cara
senhora»: depois houvera um olhar; e agora deviam fugir
ambos, e ella tornára-se o cuidado supremo da sua vida, e a
esposa secreta do seu coração.
—V. exc.
a quer mais alguma coisa? perguntou o
Domingos.
Maria Eduarda respondeu sem se voltar:
—Não.
O Domingos sahiu, a porta ficou cerrada. Ella então
atravessou a sala, veio para Carlos, que a esperava no sofá,
com os braços estendidos. E era como se obedecesse
só ao impulso da sua ternura, calmadas já todas
as incertezas. Mas hesitou de novo diante d'aquella paixão,
tão prompta a
apoderar-se de todo o seu sêr, e murmurou, quasi triste:
—Mas conhece-me tão pouco!... Conhece-me tão
pouco, para irmos assim ambos, quebrando por tudo, crear um destino que
é irreparavel...
Carlos tomou-lhe as mãos, fazendo-a sentar ao seu lado,
brandamente:
—O bastante para a adorar acima de tudo, e sem querer mais nada na
vida!
Um instante Maria Eduarda ficou pensativa, como recolhida no fundo do
seu coração, escutando-lhe as derradeiras
agitações. Depois soltou um longo suspiro.
—Pois seja assim! Seja assim... Havia uma coisa que eu lhe queria
dizer, mas não importa... É melhor assim!...
E que outra coisa podiam fazer? perguntava
[96]
Carlos radiante. Era a unica
solução digna,
séria... E nada os podia embaraçar; amavam-se,
confiavam absolutamente um no outro; elle era rico, o mundo era
largo...
E ella repetia, mais firme agora, já decidida, e como se
aquella resolução a cada momento se cravasse mais
fundo na sua alma, penetrando-a toda e para sempre:
—Pois seja assim! É melhor assim!
Um momento ficaram calados, olhando-se arrebatadamente.
—Dize-me ao menos que és feliz, murmurou Carlos.
Ella lançou-lhe os braços ao pescoço:
e os seus labios uniram-se n'um beijo profundo, infinito, quasi
immaterial pelo seu extasi. Depois Maria Eduarda descerrou lentamente
as palpebras, e disse-lhe, muito baixo:
—Adeus, deixa-me só, vai.
Elle tomou o chapéo, e sahiu.
No dia seguinte Craft, que havia uma semana não ia ao
Ramalhete, passeava na quinta antes
d'almoço—quando appareceu Carlos. Apertaram as
mãos, fallaram um instante do Ega, da chegada dos Cohens.
Depois, Carlos, fazendo um gesto largo que abrangia a quinta, a casa,
todo o horisonte, perguntou rindo:
[97]
—Você quer-me vender tudo isto, Craft?
O outro respondeu, sem pestanejar, e com as mãos nas
algibeiras:
—A la disposicion de ustêd...
E alli mesmo concluiram a negociação, passeando
n'uma ruasinha de buxo por entre os geranios em flôr.
Craft cedia a Carlos todos os seus moveis antigos e modernos por duas
mil e quinhentas libras, pagas em prestações:
só reservava
algumas raras peças do tempo de Luiz XV, que deviam fazer
parte d'essa nova collecção que planeava,
homogenea, e toda do seculo XVIII. E como Carlos não tinha
no Ramalhete lugar para este vasto
bric-à-brac, Craft
alugava-lhe por um anno a casa dos Olivaes, com a quinta.
Depois foram almoçar. Carlos nem por um momento pensou na
larga despeza que fazia, só para offerecer uma residencia de
verão, por dois curtos mezes—a quem se contentaria com um
simples cottage, entre arvores de quintal. Pelo contrario! quando
repercorreu as salas do Craft, já com olhos de dono, achou
tudo mesquinho, pensou em obras, em retoques de gosto.
Com que alegria, ao deixar os Olivaes, correu á rua de S.
Francisco, a annunciar a Maria Eduarda que lhe arranjára
emfim definitivamente uma linda casa no campo! Rosa, que da varanda o
vira apear-se, veio ao seu encontro ao patamar: elle ergueu-a nos
braços, entrou assim na sala, com ella
[98]
ao collo, em triumpho. E
não se conteve; foi á
pequena que deu logo «a grande novidade»,
annunciando-lhe que ia ter duas vaccas, e uma cabra, e
flôres, e arvores para se balouçar...
—Onde é? Dize, onde é? exclamava Rosa, com os
lindos olhos resplandecentes, e a facesinha cheia de riso.
—D'aqui muito longe... Vai-se n'uma carruagem... Vêem-se
passar os barcos no rio... E entra-se por um grande portão
onde ha um cão de fila.
Maria Eduarda appareceu, com
Niniche
ao collo.
—Mamã, mamã! gritou Rosa correndo para ella,
dependurando-se-lhe do vestido. Diz que vou ter duas cabrinhas, e um
balouço... É verdade? Dize, deixa vêr,
onde é? Dize... E vamos
já para lá?
Maria e Carlos apertaram a mão, com um longo olhar, sem uma
palavra. E logo junto da mesa, com Rosa encostada aos seus joelhos,
Carlos contou a sua ida aos Olivaes... O dono da casa estava prompto a
alugar, já, n'uma semana... E assim se achava ella de
repente com uma vivenda pittoresca, mobilada n'um bello estylo,
deliciosamente saudavel...
Maria Eduarda parecia surprehendida, quasi desconfiada.
—Ha de ser necessario levar roupas de cama, roupas de mesa...
—Mas ha tudo! exclamou Carlos alegremente,
[99]
ha quasi tudo! É tal
qual como n'um conto de fadas... As luzes estão
accêsas, as jarras estão
cheias de flôres... É só tomar uma
carruagem e
chegar.
—Sómente, é necessario saber o que esse paraiso
me vae custar...
Carlos fez-se vermelho. Não previra que se fallasse em
dinheiro—e que ella quereria decerto pagar a casa que habitasse...
Então preferiu confessar-lhe tudo. Disse-lhe como o Craft,
havia quasi um anno, andava desejando desfazer-se das suas
collecções, e alugar a quinta: o avô e
elle tinham repetidamente pensado em adquirir grande parte dos moveis e
das faienças, para acabar de mobilar o Ramalhete, e
ornamentar mais Santa Olavia; e elle emfim decidira-se a fazer essa
compra desde que entrevira a felicidade de lhe poder offerecer, por
alguns mezes de verão, uma residencia tão
graciosa, e tão confortavel...
—Rosa, vai lá para dentro, disse Maria Eduarda, depois de
um momento de silencio... Miss Sarah está á tua
espera.
Depois, olhando para Carlos, muito séria:
—De sorte que, se eu não mostrasse desejos de ir para o
campo, não tinha feito essa despeza...
—Tinha feito a mesma despeza... Tinha tambem alugado a casa por seis
mezes ou por um anno... Onde possuia eu agora de repente um sitio para
metter as coisas do Craft? O que não fazia talvez era
comprar conjuntamente roupas de cama,
[100]
roupas de mesa, mobilias dos
quartos dos criados, etc....
E acrescentou, rindo:
—Ora se me quizer indemnisar d'isso podemos debater esse negocio...
Ella baixou os olhos, reflectindo, lentamente.
—Em todo o caso seu avô e os seus amigos devem saber d'aqui
a dias que me vou installar n'essa casa... E devem comprehender que a
comprou para que eu lá me installasse...
Carlos procurou o seu olhar que permanecia pensativo, desviado d'elle.
E isto inquietou-o—o vêl-a assim retrahir-se
áquella absoluta
communhão d'interesses em que a queria envolver, como esposa
do seu coração.
—Não approva então o que fiz? Seja franca...
—Decerto... Como não hei de eu approvar tudo quanto faz,
tudo quanto vem de si? Mas...
Elle acudiu, apoderando-se das suas mãos, sentindo-se
triumphar:
—Não ha
mas! O
avô e os meus amigos sabem que eu tenho uma casa no campo,
inutil por algum tempo, e que a aluguei a uma senhora. De resto, se
quizer, metteremos n'isto tudo o meu procurador... Minha cara amiga, se
fosse possivel que a nossa affeição se passasse
fóra do
mundo, distante de todos os olhares, ao abrigo de todas as suspeitas,
seria delicioso... Mas não póde ser!... Alguem
tem de saber sempre alguma coisa; quando não seja
senão o cocheiro que me leva todos os dias
[101]
a sua casa, quando não
seja senão o criado que me abre todos os dias a sua porta...
Ha sempre alguem que surprehende o encontro de dois olhares; ha sempre
alguem que adivinha d'onde se vem a certas horas... Os deuses
antigamente arranjavam essas coisas melhor, tinham uma nuvem que os
tornava invisiveis. Nós não somos deuses,
felizmente...
Ella sorriu.
—Quantas palavras para converter uma convertida!
E tudo ficou harmonisado n'um grande beijo.
Affonso da Maia approvou plenamente a compra das
collecções do Craft. «É
um valor, disse elle ao Villaça, e acabamos d'encher com boa
arte Santa-Olavia e o Ramalhete.»
Mas o Ega indignou-se, chegou a fallar em
«desvario»,—despeitado por essa
transacção secreta para que não
fôra consultado. O que o irritava sobretudo era
vêr, n'esta acquisição
inesperada de uma casa de campo, outro symptoma do grave e do fundo
segredo que presentia na vida de Carlos: e havia já duas
semanas que elle habitava o Ramalhete e Carlos ainda não lhe
fizera uma confidencia!... Desde a sua ligação de
rapazes em Coimbra, nos Paços de Cella, fôra elle
o confessor secular de Carlos: mesmo em viagem,
[102]
Carlos não tinha uma
aventura banal d'hotel, de que não mandasse ao Ega
«um relatorio».
O romance com a Gouvarinho, de que Carlos ao principio
tentára, frouxamente, guardar um mysterio delicado,
já o conhecia todo, já lêra as cartas
da Gouvarinho, já passára pela casa da titi...
Mas do outro segredo não sabia nada—e considerava-se
ultrajado. Via todas as manhãs Carlos partir para a rua de
S. Francisco, levando flôres; via-o chegar de lá,
como elle dizia,
«besuntado d'extasi»; via-lhe os silencios
repassados de felicidade, e esse indefinido ar, ao mesmo tempo
sério e ligeiro, risonho e superior, do homem profundamente
amado... E não sabia nada.
Justamente alguns dias depois, estando ambos sós, a fallar
de planos de verão, Carlos alludiu
aos Olivaes, com enthusiasmo, relembrando algumas das preciosidades do
Craft, o dôce socego da casa, a clara vista do Tejo...
Aquillo realmente fôra obter por uma mão cheia de
libras um pedaço do paraiso...
Era á noite, no quarto de Carlos, já tarde. E o
Ega, que passeava com as mãos nas algibeiras do
robe-de-chambre, encolheu os hombros, impaciente, farto d'aquelles
louvores eternos á casinhola do Craft.
—Essa concepção do paraiso, exclamou elle,
parece-me d'um estofador da rua Augusta! Como natureza, couves
gallegas; como decoração, os velhos cretones do
gabinete, desbotados já por tres barrelas...
[103]
Um quarto de dormir
lugubre como uma capella de santuario... Um salão confuso
como o armazem d'um cara-de-pau, e onde não é
possivel conversar... A não ser o armario hollandez, e um ou
outro prato, tudo aquillo é um lixo archeologico... Jesus! o
que eu odeio
bric-à-brac!
Carlos, no fundo da sua poltrona, disse tranquillamente, e como
reflectindo:
—Com effeito esses cretones são medonhos... Mas eu vou
mandar remobilar, tornar aquillo mais habitavel.
Ega estacou no meio do quarto, com o monoculo a faiscar sobre Carlos.
—Habitavel? Vaes ter hospedes?
—Vou alugar.
—Vaes alugar! A quem?
E o silencio de Carlos, que soprava o fumo da cigarrette com os olhos
no tecto, enfureceu Ega. Comprimentou quasi até ao
chão, disse
sarcasticamente:
—Peço perdão. A pergunta foi brutal. Tive agora
o ar de querer arrombar uma gaveta fechada... O aluguel d'um predio
é sempre um d'esses delicados segredos de sentimento e de
honra em que não deve roçar nem a aza da
imaginação... Fui rude... Irra! Fui bestialmente
rude!
Carlos continuava calado. Comprehendia bem o Ega—e quasi sentia
um remorso d'aquella sua rigida reserva. Mas era como um pudor que o
enleava, lhe impedia de pronunciar sequer o nome de
[104]
Maria Eduarda. Todas as suas
outras aventuras as contára ao Ega; e essas confidencias
constituiam talvez mesmo o prazer mais solido que ellas lhe davam.
Isto, porém, não era «uma
aventura». Ao seu amor misturava-se alguma coisa de
religioso; e, como os verdadeiros devotos, repugnava-lhe conversar
sobre a sua fé... Todavia, ao mesmo tempo, sentia uma
tentação de fallar
d'
ella ao Ega, e de tornar vivas, e
como visiveis aos seus proprios olhos, dando-lhes o contorno das
palavras e o seu relevo, as coisas divinas e confusas que lhe enchiam o
coração. Além d'isso,
Ega não saberia tudo, mais tarde ou mais cedo, pela
tagarellice alheia? Antes lh'o dissesse elle, fraternalmente. Mas
hesitou ainda, accendeu outra cigarrette. Justamente o Ega
tomára o seu castiçal, e
começava a accendel-o a uma serpentina, devagar e com um ar
amuado.
—Não sejas tolo, não te vás deitar,
senta-te ahi, disse Carlos.
E contou-lhe tudo miudamente, diffusamente, desde o primeiro encontro,
á entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.
Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sofá.
Suppuzera um romancesinho, d'esses que nascem e morrem entre um beijo e
um bocejo: e agora, só pelo modo como Carlos fallava
d'aquelle grande amor, elle sentia-o profundo, absorvente, eterno, e
para bem ou para mal tornando-se d'ahi por diante, e para sempre, o seu
irreparavel
[105]
destino. Imaginára uma brazileira polida por Paris, bonita e
futil, que tendo o marido longe, no Brazil, e um formoso rapaz ao lado,
no sofá, obedecia simplesmente e alegremente á
disposição das coisas: e sahia-lhe uma creatura
cheia de caracter, cheia de paixão, capaz de sacrificios,
capaz de heroismos. Como sempre, diante d'estas coisas patheticas,
murchava-lhe a veia, faltava-lhe a phrase; e quando Carlos se calou, o
bom Ega teve esta pergunta chôcha:
—Então estás decidido a safar-te com ella?
—A
safar-me, não; a ir
viver com ella longe d'aqui, decididissimo!
Ega ficou um momento a olhar para Carlos como para um phenomeno
prodigioso, e murmurou:
—É d'arromba!
Mas que outra coisa podiam elles fazer? D'ahi a tres mezes talvez,
Castro Gomes chegava do Brazil. Ora nem Carlos, nem ella, aceitariam
nunca uma d'essas situações atrozes e reles em
que a mulher é do amante e do marido, a horas diversas...
Só lhes restava uma solução digna,
decente, séria—fugir.
Ega, depois de um silencio, disse pensativamente:
—Para o marido é que não é talvez
divertido perder assim, de uma vez, a mulher, a filha, e a
cadellinha...
Carlos ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto.
[106]
Sim, tambem elle
já pensára n'isso... E
não sentia remorsos—mesmo quando os podesse haver no
absoluto egoismo da paixão... Elle não
conhecia intimamente Castro Gomes: mas tinha podido adivinhar o typo,
reconstruil-o, pelo que lhe dissera o Damaso, e por algumas conversas
com miss Sarah. Castro Gomes não era um esposo a
sério: era um dandy, um futil, um
gommeux,
um homem de sport e de cocottes... Casára com uma mulher
bella, saciára a paixão, e
recomeçára a sua vida de club e de bastidores...
Bastava olhar para elle, para a sua toilette, para os seus modos—e
comprehendia-se logo a trivialidade d'aquelle caracter...
—Que tal é, como homem? perguntou Ega.
—Um brazileirito trigueiro, com um ar espartilhado... Um
rastaquouère, o
verdadeiro typosinho do
Café de la
Paix...
É possivel que sinta, quando isto vier a succeder, um certo
ardor na vaidade ferida... Mas é um
coração que se ha
de consolar facilmente nas
Folies
Bergères.
Ega não dizia nada. Mas pensava que um homem de club, e
mesmo consolavel nas
Folies
Bergères, póde não
se importar muito com sua mulher, mas póde todavia amar
muito sua filha... Depois, atravessado por uma outra idéa,
acrescentou:
—E teu avô?
Carlos encolheu os hombros:
—O avô tem de se affligir um pouco para eu poder ser
profundamente feliz; como eu teria de
[107]
ser desgraçado toda a
minha vida se quizesse poupar ao avô essa
contrariedade... O mundo é assim, Ega... E eu, n'esse ponto,
não estou
decidido a fazer sacrificios.
Ega esfregou lentamente as mãos, com os olhos no
chão, repetindo a mesma palavra, a unica que lhe
suggeria todo o seu espirito perante aquellas coisas
vehementes:
—É d'arromba!
III
Carlos, que almoçára cedo, estava para sahir no
coupé, e já de chapéo—quando
Baptista veio dizer que o snr. Ega, desejando fallar-lhe n'uma coisa
grave, lhe pedia para esperar um instante. O snr. Ega ficára
a fazer a barba.
Carlos pensou logo que se tratava da Cohen. Havia duas semanas que ella
chegára a Lisboa, Ega ainda a não vira, e fallava
d'ella raramente. Mas Carlos sentia-o nervoso e desassocegado. Todas as
manhãs o pobre Ega mostrava um desapontamento ao receber o
correio, que só lhe trazia algum jornal cintado, ou cartas
de Celorico. Á noite percorria dois, tres theatros,
já quasi vazios n'aquelle começo de
verão; e ao recolher era outra
desconsolação, quando os criados lhe affirmavam,
com
[110]certeza, que
não viera carta alguma para s. exc.
a
Decerto Ega
não se resignava a perder Rachel, anciava por a encontrar; e
roía-o o despeito de que ella, de qualquer modo, lhe
não tivesse mostrado que no seu
coração permanecia ao menos a saudade das antigas
felicidades... Justamente na vespera Ega apparecera á hora
do jantar, transtornado: cruzára-se com o Cohen na rua do
Ouro, e parecera-lhe que «esse canalha» lhe
atirára de lado um olhar atrevido, sacudindo a bengala; o
Ega jurava que se «esse canalha» ousasse outra vez
fital-o, espedaçava-o, sem piedade, publicamente, a uma
esquina da Baixa.
Na ante-camara o relogio bateu dez horas, Carlos impaciente ia a subir
ao quarto do Ega. Mas n'esse instante o correio chegava, com a
Revista dos Dois Mundos, e uma carta
para Carlos. Era da Gouvarinho. Carlos acabava de a
lêr—quando o Ega appareceu, de jaquetão, e em
chinelas.
—Tenho a fallar-te n'uma coisa grave, menino.
—Lê isto primeiro, disse o outro, passando-lhe a carta da
Gouvarinho.
A Gouvarinho, n'um tom amargo, queixava-se que, já por duas
vezes, Carlos faltára ao
rendez-vous em casa da titi, sem lhe
ter sequer escripto uma palavra; ella vira n'isto uma offensa, uma
brutalidade; e vinha agora intimal-o, «em nome de todos os
sacrificios que por elle fizera», a que
[111]
apparecesse na rua de S.
Marçal, domingo ao meio dia, para terem uma
explicação definitiva antes d'ella partir para
Cintra.
—Excellente occasião d'acabar! exclamou Ega, entregando a
carta a Carlos, depois de respirar o perfume do papel. Não
vás, nem respondas... Ella parte para Cintra, tu para Santa
Olavia, não vos vêdes mais, e assim finda o
romance. Finda como todas as coisas grandes, como o Imperio Romano, e
como o Rheno, por dispersão, insensivelmente...
—É o que eu vou fazer, disse Carlos, começando a
calçar as luvas. Jesus! Que mulher massadora!
—E que desavergonhada! Chamar a essas coisas
«sacrificios!...» Arrasta-te duas vezes por semana
a casa da titi, regala-se lá de extravagancias, bebe
champagne, fuma cigarrettes, sobe ao setimo céo, delira, e
depois põe dolorosamente os
olhos no chão, e chama a isso
«sacrificios...» Só com um chicote!...
Carlos encolheu os hombros, com resignação, como
se nas condessas de Gouvarinho, e no mundo, só houvesse
incoherencia e dólo.
—E que é isso que tu me tinhas a dizer?
Ega então tomou um ar grave. Escolheu lentamente na caixa
uma cigarrette, abotoou devagar o jaquetão.
—Tu não tens visto o Damaso?
—Nunca mais me appareceu, disse Carlos. Creio que está
amuado... Eu sempre que o encontro,
[112]
aceno-lhe de longe amigavelmente
com dois dedos...
—Devia ser antes com a bengala. O Damaso anda ahi, por toda a parte,
fallando de ti e d'essa senhora, tua amiga... A ti chama-te
pulha, a ella peor ainda.
É a velha historia; diz que te apresentou, que te metteste
de dentro, e como para essa senhora é uma questão
de dinheiro, e tu
és o mais rico, ella lhe passou o pé...
Vês d'ahi a
infamiasinha. E isto tagarellado pelo Gremio, pela Casa Havaneza, com
detalhes torpes, envolvendo sempre a questão de dinheiro.
Tudo isto é atroz. Trata de
lhe pôr cobro.
Carlos, muito pallido, disse simplesmente:
—Ha de se fazer justiça.
Desceu, indignado. Aquella torpe insinuação sobre
«dinheiro» parecia-lhe poder ser castigada
só com a morte. E um instante mesmo, com a mão no
fecho da portinhola do coupé, pensou em correr a casa do
Damaso, tomar um desforço brutal.
Mas eram quasi onze horas, e elle tinha d'ir aos Olivaes. No dia
seguinte, sabbado, dia bello entre todos e solemne para o seu
coração, Maria Eduarda devia emfim visitar a
quinta do Craft: e ficára combinado, na vespera, que
passariam lá as horas do calor, até tarde,
sós,
n'aquella casa solitaria e sem criados, escondida entre as arvores.
Elle pedira-lh'o assim, hesitante e a tremer: ella consentira logo,
sorrindo e naturalmente. N'essa manhã elle
mandára aos Olivaes dois
[113]
criados para arejar as salas,
espanejar, encher tudo de flôres. Agora ia lá,
como um devoto,
vêr se estava bem enfeitado o sacrario da sua deusa... E era
através d'estes deliciosos cuidados, em plena ventura, que
lhe apparecia outra vez, suja e empanando o brilho do seu amor, a
tagarellice do Damaso!
Até aos Olivaes, não cessou de ruminar coisas
vagas e violentas que faria para aniquilar o Damaso. No seu amor
não haveria paz, emquanto aquelle villão o
andasse commentando sordidamente pelas esquinas das ruas. Era
necessario enxovalhal-o de tal modo, com tal publicidade, que elle
não ousasse mais mostrar em Lisboa a face bochechuda, a face
vil... Quando o coupé parou á porta da quinta,
Carlos decidira dar bengaladas no Damaso, uma tarde, no Chiado, com
apparato...
Mas depois, ao regressar da quinta, vinha já mais calmo.
Pisára a linda rua d'acacias que os pés d'ella
pisariam na manhã seguinte: dera um longo olhar ao leito que
seria o leito d'ella, rico, alçado sobre um estrado, envolto
em cortinados de brocatel côr d'ouro, com um esplendor
sério
d'altar profano... D'ahi a poucas horas, encontrar-se-hiam
sós n'aquella casa muda e ignorada do mundo; depois, todo o
verão os seus amores viveriam escondidos n'esse fresco
retiro d'aldêa; e d'ahi a tres mezes estariam longe, na
Italia, á beira d'um claro lago, entre as flôres
d'Isola Bella... No meio d'estas voluptuosidades magnificas, que lhe
[114]
podia importar o Damaso,
gorducho e reles, palrando em calão nos bilhares do Gremio!
Quando chegou á rua de S. Francisco resolvera, se visse o
Damaso, continuar a acenar-lhe, de leve, com a ponta dos dedos.
Maria Eduarda fôra passear a Belem com Rosa deixando-lhe um
bilhete, em que lhe pedia para vir á noite
faire un bout de
causerie. Carlos desceu as escadas, devagar,
guardando esse bocadinho de papel na carteira como uma dôce
reliquia; e sahia o portão, no momento em que o Alencar
desembocava defronte, da travessa da Parreirinha, todo de preto, moroso
e pensativo. Ao avistar Carlos, parou de braços abertos;
depois vivamente, como recordando-se, ergueu os olhos para o primeiro
andar.
Não se tinham visto desde as corridas, o poeta
abraçou com effusão o seu Carlos. E fallou logo
de si, copiosamente. Estivera outra vez em Cintra, em Collares com o
seu velho Carvalhosa: e o que se lembrára do rico dia
passado com Carlos e com o maestro em Sitiaes!... Cintra uma belleza.
Elle, um pouco constipado. E apesar da companhia do Carvalhosa,
tão erudito e tão
profundo, apesar da excellente musica da mulher, da Julinha (que para
elle era como uma irmã), tinha-se aborrecido.
Questão de velhice...
—Com effeito, disse Carlos, pareces-me um pouco murcho... Falta-te o
teu ar aureolado.
O poeta encolheu os hombros.
[115]
—O Evangelho lá o diz bem claro... Ou é a Biblia
que o diz...? Não; é S. Paulo... S. Paulo ou
Santo Agostinho?... Emfim a authoridade não faz ao caso.
N'um d'esses santos livros se affirma que este mundo é um
valle de lagrimas...
—Em que a gente se ri bastante, disse Carlos alegremente.
O poeta tornou a encolher os hombros. Lagrimas ou risos, que
importava?... Tudo era sentir, tudo era viver! Ainda na vespera elle
dissera isso mesmo em casa dos Cohens...
E de repente, estacando no meio da rua, tocando no braço de
Carlos:
—E agora por fallar nos Cohens, dize-me uma coisa com franqueza, meu
rapaz. Eu sei que tu és intimo do Ega, e, que diabo, ninguem
lhe admira mais o talento do que eu!... Mas, realmente, tu approvas que
elle, apenas soube da chegada dos Cohens, se viesse metter em Lisboa?
Depois do que houve!...
Carlos afiançou ao poeta que o Ega só no dia
mesmo da chegada, horas depois, soubera pela
Gazeta
Illustrada a vinda dos Cohens... E de resto se
não podessem habitar, conjuntas na mesma cidade, as pessoas
entre as quaes tivesse havido attritos desagradaveis, as sociedades
humanas tinham de se desfazer...
Alencar não respondeu, caminhando ao lado de Carlos, com a
cabeça baixa. Depois parou de novo, franzindo a testa:
[116]
—Outra coisa em que te quero fallar. Houve entre ti e o Damaso alguma
péga? Eu pergunto-te isto porque n'outro dia, lá
em casa dos Cohens, elle veio com uns ditos, umas
insinuações... Eu declarei-lhe logo:
«Damaso, Carlos da Maia, filho de Pedro da Maia, é
como se fosse meu
irmão.» E o Damaso calou-se... Calou-se, porque me
conhece, e sabe que eu n'estas coisas de lealdade e de
coração sou uma fera!
Carlos disse simplesmente:
—Não, não ha nada, não sei nada...
Nem sequer tenho visto o Damaso.
—Pois é verdade, continuou Alencar tomando o
braço de Carlos, lembrei-me muito de ti em Cintra.
Até fiz lá um coisita que me não sahiu
má, e que te dediquei... Um simples soneto, uma paizagem, um
quadrosinho de Cintra ao pôr do sol. Quiz provar ahi a esses
da Idéa Nova, que, sendo necessario, tambem por
cá se sabe cinzelar o verso moderno e dar o traço
realista. Ora espera ahi, eu te digo, se me lembrar. A coisa
chama-se—
Na estrada dos Capuchos...
Tinham parado á esquina do Seixas; e o poeta tossira
já de leve, antes de recitar,—quando justamente lhes
appareceu o Ega, vindo de baixo, vestido de campo, com uma bella rosa
branca no jaquetão de flanella azul.
Alencar e elle não se encontravam desde a fatal
soirée dos Cohens. E ao passo que o Ega conservava um
resentimento feroz contra o poeta vendo
[117]
n'elle o inventor d'essa perfida lenda
da «carta obscena»—Alencar odiava-o pela certeza
secreta de que elle fôra o amante amado da sua divina Rachel.
Ambos se fizeram pallidos; o aperto de mão que deram foi
incerto e regelado; e ficaram calados, todos tres, emquanto Ega nervoso
levava uma eternidade a accender o charuto no lume de Carlos. Mas foi
elle que fallou, por entre uma fumaça, affectando uma
superioridade amavel:
—Acho-te com boa côr, Alencar!
O poeta foi amavel tambem, um pouco d'alto, passando os dedos no
bigode:
—Vai-se andando. E tu que fazes? Quando nos dás essas
Memorias,
homem?
—Estou á espera que o paiz aprenda a lêr.
—Tens que esperar! Pede ao teu amigo Gouvarinho que apresse isso, elle
occupa-se da Instrucção publica... Olha, alli o
tens tu, grave e ôco como uma columna do
Diario do
Governo...
O poeta apontava com a bengala para o outro lado da rua, por onde o
Gouvarinho descia, muito devagar, a conversar com o Cohen; e ao lado
d'elles, de chapéo branco, de collete branco, o Damaso
deitava olhares pelo Chiado, risonho, ovante, barrigudo, como um
conquistador nos seus dominios. Já aquelle arzinho gordo de
tranquillo triumpho irritou Carlos. Mas quando o Damaso parou defronte,
no outro passeio, todo de costas para elle, ostentando rir alto com o
Gouvarinho, não se conteve, atravessou a rua.
[118]
Foi breve, e foi cruel: sacudiu a mão do Gouvarinho, saudou
de leve o Cohen: e sem baixar a voz, disse ao Damaso friamente:
—Ouve lá. Se continúas a fallar de mim e de
pessoas das minhas relações, do modo como tens
fallado, e que não me convém, arranco-te as
orelhas.
O conde acudiu, mettendo-se entre elles:
—Maia, por quem é! Aqui no Chiado...
—Não é nada, Gouvarinho, disse Carlos detendo-o,
muito sério e muito sereno. É apenas um aviso a
este imbecil.
—Eu não quero questões, eu não quero
questões!... balbuciou o Damaso, livido, enfiando para
dentro d'uma tabacaria.
E Carlos voltou, com socego, para junto dos seus amigos, depois de ter
saudado o Cohen e sacudir a mão ao Gouvarinho.
Vinha apenas um pouco pallido: mais perturbado estava o Ega, que
julgára vêr de novo, n'um olhar do Cohen, uma
provocação intoleravel.
Só o Alencar não reparára em nada:
continuava a
discursar sobre coisas litterarias, explicando ao Ega as
concessões que se podiam fazer ao naturalismo...
—Fiquei aqui a dizer ao Ega... É evidente que quando se
trata de paizagem é necessario copiar a realidade...
Não se pode descrever um castanheiro
a
priori, como se descreveria uma
alma... E lá isso faço eu... Ahi está
esse soneto de Cintra
que eu te dediquei, Carlos. É realista, está
claro
que
[119]é
realista... Pudéra, se é paizagem!
Ora eu vol-o digo... Ia justamente dizel-o, quando tu appareceste,
Ega... Mas vejam lá vocês se isto os massa...
Qual massava! E até, para o escutarem melhor, penetraram na
rua de S. Francisco, mais silenciosa. Ahi, dando um passo lento, depois
outro, o poeta murmurou a sua ecloga. Era em Cintra, ao pôr
do sol: uma ingleza, de cabellos soltos, toda de branco, desce n'um
burrinho por uma vereda que domina um valle; as aves cantam de leve, ha
borboletas em torno das madresilvas; então a ingleza
pára, deixa o burrinho, olha enlevada o céo, os
arvoredos, a paz das casas;—e ahi, no ultimo terceto, vinha
«a nota realista» de que se ufanava o Alencar:
Ella olha a flôr dormente,
a nuvem casta,
Emquanto o fumo dos casaes se eleva
E ao lado o burro, pensativo,
pasta.
—Ahi têm vocês o traço, a nota
naturalista...
Ao lado o burro, pensativo,
pasta...
Eis ahi a realidade, está-se a vêr o burro
pensativo... Não
ha nada mais pensativo que um burro... E são estas
pequeninas coisas da natureza que é necessario observar...
Já vêem vocês que se
póde fazer realismo, e do bom, sem vir logo com
obscenidades... Vocês que lhes parece o sonetito?
Ambos o elogiaram profundamente—Carlos arrependido de não
ter completado a humilhação do Damaso, dando-lhe
bengaladas; Ega pensando que
[120]
decerto, n'uma d'essas tardes, no
Chiado, teria de esbofetear o Cohen. Como elles recolhiam ao Ramalhete,
Alencar, já desanuviado, foi acompanhal-os pelo Aterro. E
fallou sempre, contando o plano de um romance historico, em que elle
queria pintar a grande figura d'Affonso d'Albuquerque, mas por um lado
mais humano, mais intimo: Affonso d'Albuquerque namorado: Affonso
d'Albuquerque, só, de noite, na pôpa do seu
galeão, diante d'Ormuz incendiada, beijando uma
flôr secca, entre
soluços. Alencar achava isto sublime.
Depois de jantar, Carlos vestia-se para ir á rua de S.
Francisco—quando o Baptista veio dizer que o snr. Telles da Gama lhe
desejava fallar com urgencia. Não o querendo receber, alli,
em mangas de camisa, mandou-o entrar para o gabinete escarlate e preto.
E veio d'ahi a um instante encontrar Telles da Gama admirando as bellas
faianças hollandezas.
—Você, Maia, tem isto lindissimo, exclamou elle logo. Eu
pello-me por porcelanas... Hei de voltar um dia d'estes, com mais
vagar, vêr tudo isto, de dia... Mas hoje venho com pressa,
venho com uma missão... Você não
adivinha?
Carlos não adivinhava.
E o outro, recuando um passo, com uma gravidade em que transparecia um
sorriso:
—Eu venho aqui perguntar-lhe da parte do Damaso, se você
hoje, n'aquillo que lhe disse, tinha tenção de o
offender. É só
isto... A minha
[121]
missão é apenas esta: perguntar-lhe se
você tinha intenção de o offender.
Carlos olhou-o, muito sério:
—O quê!? Se tinha intenção de offender
o Damaso quando o ameacei de lhe arrancar as orelhas? De modo nenhum:
tinha só intenção de
lhe arrancar as orelhas!
Telles da Gama saudou, rasgadamente:
—Foi isso mesmo o que eu respondi ao Damaso: que você
não tinha senão essa
intenção. Em todo o caso, desde este momento, a
minha missão está finda... Como você
tem isto bonito!... O que é aquelle prato grande, majolica?
—Não, um velho Nevers. Veja você ao
pé... É Thetis conduzindo as armas d'Achilles...
É
esplendido; e é muito raro... Veja você esse
Deft, com as duas tulipas amarellas... É um
encanto!
Telles da Gama dava um olhar lento a todas estas preciosidades, tomando
o chapéo de sobre o sofá.
—Lindissimo tudo isto!... Então só
intenção de lhe arrancar as orelhas? nenhuma de o
offender?...
—Nenhuma de o offender, toda de lhe arrancar as orelhas... Fume
você um charuto.
—Não, obrigado...
—Calice de cognac?
—Não! abstenção total de bebidas e
aguas ardentes... Pois adeus, meu bom Maia!
—Adeus, meu bom Telles...
[122]
Ao outro dia, por uma radiante manhã de julho, Carlos
saltava do coupé, com um mólho de chaves, diante
do portão da quinta do Craft. Maria Eduarda devia chegar
ás dez horas, só, na sua
carruagem da Companhia. O hortelão, dispensado por dois
dias, fôra a Villa Franca; não havia ainda criados
na casa; as janellas estavam fechadas. E pesava alli, envolvendo a
estrada e a vivenda, um d'esses altos e graves silencios
d'aldêa, em que se sente, dormente no ar, o zumbir dos
moscardos.
Logo depois do portão, penetrava-se n'uma fresca rua
d'acacias, onde cheirava bem. A um lado, por entre a ramagem, apparecia
o kiosque, com tecto de madeira, pintado de vermelho, que
fôra o capricho de Craft, e que elle mobilára
á
japoneza. E ao fundo era a casa, caiada de novo, com janellas de
peitoril, persianas verdes, e a portinha ao centro sobre tres degraus,
flanqueados por vasos de louça azul cheios de cravos.
Só o metter a chave devagar e com uma inutil cautela na
fechadura d'aquella morada discreta foi para Carlos um prazer. Abriu as
janellas: e a larga luz que entrava pareceu-lhe trazer uma
doçura rara, e uma alegria maior que a dos outros dias, como
preparada especialmente pelo bom Deus para alumiar a festa do seu
coração. Correu logo
[123]
á sala de jantar, a
verificar se, na mesa posta para o
lunch, se conservavam ainda
viçosas as flôres que lá
deixára na vespera. Depois voltou ao
coupé a tirar o caixote de gelo, que trouxera de Lisboa,
embrulhado em flanella, entre serradura. Na estrada, silenciosa por
ora, ia só passando uma saloia montada na sua egua.
Mas apenas accommodára o gelo—sentiu fóra o
ruido lento da carruagem. Veio para o gabinete forrado de cretones, que
abria sobre o corredor; e ficou alli, espreitando da porta, mas
escondido, por causa do cocheiro da Companhia. D'ahi a um instante
viu-a emfim chegar, pela rua de acacias, alta e bella, vestida de
preto, e com um meio-véo espesso como uma mascara. Os seus
pésinhos subiram os tres degraus de pedra. Elle sentiu a sua
voz inquieta perguntar de leve:
—
Êtes-vous là?
Appareceu—e ficaram um instante, á porta do gabinete,
apertando sofregamente as mãos, sem fallar, commovidos,
deslumbrados.
—Que linda manhã! disse ella por fim, rindo e toda
vermelha.
—Linda manhã, linda! repetia Carlos, contemplando-a,
enlevado.
Maria Eduarda resvalára sobre uma cadeira, junto da porta,
n'um cansaço delicioso, deixando calmar o
alvoroço do seu coração.
—É muito confortavel, é encantador tudo isto,
dizia ella olhando lentamente em redor os cretones
[124]
do gabinete, o divan turco
coberto com um tapete de Brousse, a estante envidraçada
cheia de livros. Vou ficar aqui adoravelmente...
—Mas ainda nem lhe agradeci o ter vindo, murmurou Carlos,
esquecido, a olhar para ella. Ainda nem lhe beijei a mão...
Maria Eduarda começou a tirar o véo, depois as
luvas, fallando da estrada. Achára-a longa, fatigante. Mas
que lhe importava? Apenas se accommodasse n'aquelle fresco ninho nunca
mais voltava a Lisboa!
Atirou o chapéo para cima do divan—ergueu-se, toda alegre e
luminosa.
—Vamos vêr a casa, estou morta por vêr essas
maravilhas do seu amigo Craft!... É Craft que se chama?
Craft quer dizer
industria!
—Mas ainda nem sequer lhe beijei a mão! tornou Carlos,
sorrindo e supplicante.
Ella estendeu-lhe os labios, e ficou presa nos seus braços.
E Carlos, beijando-lhe devagar os olhos, o cabello, dizia-lhe quanto
era feliz e quanto a sentia agora mais sua entre estes velhos muros de
quinta que a separavam do resto do mundo...
Ella deixava-se beijar, séria e grave:
—E é verdade isso? É realmente verdade?...
Se era verdade! Carlos teve um suspiro quasi triste:
—Que lhe hei de eu responder? Tenho de lhe repetir essa coisa antiga
que já Hamlet disse: que
[125]
duvide de tudo, que duvide do sol, mas
que não duvide de mim...
Maria Eduarda desprendeu-se, lentamente e perturbada.
—Vamos vêr a casa, disse ella.
Começaram pelo segundo andar. A escada era escura e feia:
mas os quartos em cima, alegres, esteirados de novo, forrados de papeis
claros, abriam sobre o rio e sobre os campos.
—Os seus aposentos, disse Carlos, hão de ser em baixo,
está visto, entre as coisas ricas... Mas Rosa e miss Sarah
ficam aqui esplendidamente. Não lhe parece?
E ella percorria os quartos, devagar, examinando a
accommodação dos armarios, palpando a
elasticidade dos colxões, attenta, cuidadosa, toda no
desvelo de alojar bem a sua gente. Por vezes mesmo exigia uma
alteração. E era realmente como se aquelle homem
que a seguia, enternecido e radiante, fosse apenas um velho senhorio.
—O quarto com as duas janellas, ao fundo do corredor, seria o melhor
para Rosa. Mas a pequena não póde dormir
n'aquelle enorme leito de pau preto...
—Muda-se!
—Sim, póde mudar-se... E falta uma sala larga para ella
brincar, ás horas do calor... Se não
houvesse o tabique entre os dois quartos pequenos...
—Deita-se abaixo!
Elle esfregava as mãos, encantado, prompto a
[126]
refundir toda a casa; e ella
não recusava nada, para conforto mais perfeito dos seus.
Desceram á sala de jantar. E ahi, diante da famosa
chaminé de carvalho lavrado, flanqueada á maneira
de cariatides pelas duas negras figuras de Nubios, com olhos rutilantes
de crystal, Maria Eduarda começou a achar o gosto do Craft
excentrico, quasi exotico... Tambem Carlos não lhe dizia que
Craft tivesse o gosto correcto d'um atheniense. Era um saxonio batido
d'um raio de sol meridional: mas havia muito talento na sua
excentricidade...
—Oh, a vista é que é deliciosa! exclamou ella
chegando-se á janella.
Junto do peitoril crescia um pé de margaridas, e ao lado
outro de baunilha que perfumava o ar. Adiante estendia-se um tapete de
relva, mal aparada, um pouco amarellada já pelo calor de
julho; e entre duas grandes arvores que lhe faziam sombra, havia alli,
para os vagares da sésta, um largo banco de
cortiça. Um renque de arbustos cerrados parecia fechar a
quinta d'aquelle lado como uma sebe. Depois a collina descia, com
outras quintarolas, casas que se não viam, e uma
chaminé de fabrica; e lá no fundo o rio
rebrilhava, vidrado de azul, mudo e cheio de sol, até
ás montanhas d'além-Tejo, azuladas tambem na
faiscação clara do céo de
verão.
—Isto é encantador! repetia ella.
—É um paraiso! Pois não lhe dizia eu?
É necessario
[127]
pôr um nome a esta casa... Como se ha de chamar?
Villa-Marie?
Não.
Château-Rose... Tambem
não, crédo! Parece o nome d'um vinho. O melhor
é baptisal-a definitivamente com o nome que nós
lhe davamos. Nós chamavamos-lhe a
Tóca.
Maria Eduarda achou originalissimo o nome de
Tóca. Devia-se
até pintar em letras vermelhas sobre o portão.
—Justamente, e com uma divisa de bicho, disse Carlos rindo. Uma divisa
de bicho egoista na sua felicidade e no seu buraco:
Não me
mexam!
Mas ella parára, com um lindo riso de surpreza, diante da
mesa posta, cheia de fruta, com as duas cadeiras já
chegadas, e os crystaes brilhando entre as flôres.
—São as bodas de Canná!
Os olhos de Carlos resplandeceram.
—São as nossas!
Maria Eduarda fez-se muito vermelha; e baixou o rosto a escolher um
morango, depois a escolher uma rosa.
—Quer uma gota de champagne? exclamou Carlos. Com um pouco de gelo?
Nós temos gelo, temos tudo! Não nos falta nada,
nem a
benção de Deus... Uma gotinha de champagne,
vá!
Ella aceitou: beberam pelo mesmo copo; outra vez os seus labios se
encontraram, apaixonadamente.
Carlos accendeu uma cigarrette, continuaram a percorrer a casa. A
cozinha agradou-lhe muito, arranjada
[128]
á ingleza, toda em
azulejos. No corredor Maria Eduarda demorou-se diante de uma panoplia
de tourada, com uma cabeça negra de touro, espadas e
garrochas, mantos de sêda vermelha, conservando nas suas
pregas uma graça ligeira, e ao lado o cartaz amarello
de la
corrida, com o nome de Lagartijo. Isto encantou-a
como um quente lampejo de festa e de sol peninsular...
Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lh'o foi
mostrar, desagradou-lhe com o seu luxo estridente e sensual. Era uma
alcova, recebendo a claridade d'uma sala forrada de
tapeçarias, onde desmaiavam na trama de lã os
amores de Venus e Marte: da porta de
communicação, arredondada em arco de capella,
pendia uma pesada lampada da Renascença, de ferro forjado:
e, áquella hora, batida por uma larga facha de sol, a alcova
resplandecia como o interior de um tabernaculo profanado, convertido em
retiro lascivo de serralho... Era toda forrada, paredes e tectos, de um
brocado amarello, côr de botão d'ouro; um tapete
de velludo do mesmo tom rico fazia um pavimento d'ouro vivo sobre que
poderiam correr nús os pés ardentes d'uma deusa
amorosa—e o leito de docel, alçado sobre um estrado,
coberto com uma colcha de setim amarello bordada a flôres
d'ouro, envolto em solemnes cortinas tambem amarellas de velho
brocatel,—enchia a alcova, esplendido e severo, e como erguido para as
voluptuosidades grandiosas de uma paixão tragica
[129]
do tempo de Lucrecia ou de Romeu.
E era alli que o bom Craft, com um lenço de sêda
da India amarrado na cabeça, resonava as suas sete horas,
pacata e solitariamente.
Mas Maria Eduarda não gostou d'estes amarellos excessivos.
Depois impressionou-se, ao reparar n'um painel antigo, defumado,
resaltando em negro do fundo de todo aquelle ouro—onde apenas se
distinguia uma cabeça degolada, livida, gelada no seu
sangue, dentro d'um prato de cobre. E para maior excentricidade, a um
canto, de cima de uma columna de carvalho, uma enorme coruja empalhada
fixava no leito d'amor, com um ar de meditação
sinistra, os seus dois olhos redondos e agourentos... Maria Eduarda
achava impossivel ter alli sonhos suaves.
Carlos agarrou logo na columna e no mocho, atirou-os para um canto do
corredor; e propoz-lhe mudar aquelles brocados, forrar a alcova de um
setim côr de rosa e risonho.
—Não, venho-me a acostumar a todos esses ouros...
Sómente aquelle quadro, com a cabeça, e com o
sangue... Jesus, que horror!
—Reparando bem, disse Carlos, creio que é o nosso velho
amigo S. João Baptista.
Para desfazer essa impressão desconsolada levou-a ao
salão nobre, onde Craft concentrára as suas
preciosidades. Maria Eduarda, porém, ainda descontente,
achou-lhe um ar atulhado e frio de museu.
[130]
—É para vêr de pé, e de passagem...
Não se póde ficar aqui sentado, a conversar.
—Mas esta é materia-prima! exclamou Carlos. Com isto depois
faz-se uma sala adoravel... Para que serve o nosso genio decorativo?...
Olhe o armario, veja que centro! Que belleza!
Enchendo quasi a parede do fundo, o famoso armario, o «movel
divino» do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseatica,
luxuoso e sombrio, tinha uma magestade architectural: na base quatro
guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as portas, mostrando cada
uma em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as tendas de um
acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos
pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Matheus,
imagens rigidas, envolvidas n'essas roupagens violentas que um vento de
prophecia parece agitar: depois na cornija erguia-se um
trophéo agricola com mólhos d'espigas, fouces,
cachos d'uvas e rabiças d'arados; e, á sombra
d'estas coisas de labor e fartura, dois Faunos, recostados em symetria,
indifferentes aos heroes e aos santos, tocavam n'um desafio bucolico a
frauta de quatro tubos.
—Então, hein? dizia Carlos. Que movel! É todo um
poema da Renascença, Faunos e Apostolos, guerras e
georgicas... Que se póde metter dentro d'este armario? Eu se
tivesse cartas suas era aqui que as depositava, como n'um
altar-mór.
Ella não respondeu, sorrindo, caminhando devagar
[131]
entre essas coisas do passado,
d'uma belleza fria, e exhalando a indefinida tristeza de um luxo morto:
finos moveis da Renascença italiana, exilados dos seus
palacios de marmore, com embutidos de cornalina e agatha que punham um
brilho suave de joia sobre a negrura dos ebanos ou setim das madeiras
côr de rosa; cofres nupciaes, longos como bahús,
onde se guardavam os presentes dos Papas e dos Principes, pintados a
purpura e ouro, com graças de miniatura; contadores
hespanhoes impertigados, revestidos de ferro brunido e de velludo
vermelho, e com interiores mysteriosos, em fórma de capella,
cheios de nichos, de claustros de tartaruga... Aqui e além,
sobre a pintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha de
setim toda recamada de flôres e d'aves d'ouro; ou sobre um
bocado de tapete do Oriente de tons severos, com versiculos do
Alcorão, desdobrava-se a pastoral gentil d'um minuete em
Cythera sobre a sêda de um leque aberto...
Maria Eduarda terminou por se sentar, cansada, n'uma poltrona Luiz
XV, ampla e nobre, feita para a magestade das
anquinhas, recoberta de tapeçaria de Beauvais, d'onde
parecia exhalar-se ainda um vago aroma d'empoado.
Carlos triumphava, vendo a admiração de Maria.
Então, ainda considerava uma extravagancia aquella compra,
feita n'um rasgo de enthusiasmo?
—Não, ha aqui coisas adoraveis... Nem eu sei
[132]
se me atreverei a viver uma vida pacata
de aldêa no meio de todas estas raridades...
—Não diga isso, exclamava Carlos rindo, que eu
pégo fogo a tudo!
Mas o que lhe agradou mais foram as bellas faianças, toda
uma arte immortal e fragil espalhada por sobre o marmore das consolas.
Uma sobretudo attrahiu-a, uma esplendida taça persa, d'um
desenho raro, com um renque de negros cyprestes, cada um abrigando uma
flôr de côr viva: e aquillo fazia lembrar breves
sorrisos reapparecendo entre longas tristezas. Depois eram as
apparatosas majolicas, de tons estridentes e desencontrados, cheias de
grandes personagens, Carlos V passando o Elba, Alexandre coroando
Roxane; os lindos Nevers, ingenuos e sérios; os Marselhas,
onde se abre voluptuosamente, como uma nudez que se mostra, uma grossa
rosa vermelha; os Derby, com as suas rendas de ouro sobre o
azul-ferrete de céo tropical; os Wedgewood, côr de
leite e côr de rosa, com transparencias fugitivas de concha
na agua...
—Só um instante mais, exclamou Carlos vendo-a outra vez
sentar-se, é necessario saudar o genio tutelar da casa!
Era ao centro, sobre uma larga peanha, um idolo japonez de bronze, um
deus bestial, nú, pelado, obeso, de papeira, faceto e
banhado de riso, com o ventre óvante, distendido na
indigestão de todo um universo—e as duas perninhas bambas,
[133]molles e flaccidas
como as
pelles mortas d'um feto. E este monstro triumphava, encanchado sobre um
animal fabuloso, de pés humanos, que dobrava para a terra o
pescoço submisso, mostrando no focinho e no olho obliquo
todo o surdo resentimento da sua humilhação...
—E pensarmos, dizia Carlos, que gerações
inteiras vieram ajoelhar-se diante d'este ratão, rezar-lhe,
beijar-lhe o embigo, offerecer-lhe riquezas, morrer por elle...
—O amor que se tem por um monstro, disse Maria, é mais
meritorio, não é
verdade?
—Por isso não acha talvez meritorio o amor que se tem por
si...
Sentaram-se ao pé da janella, n'um divan baixo e largo,
cheio de almofadas, cercado por um biombo de sêda branca, que
fazia entre aquelle luxo do passado um fôfo recanto de
conforto moderno: e como ella se queixava um pouco de calor, Carlos
abriu a janella. Junto do peitoril crescia tambem um grande
pé de margaridas; adiante, n'um velho vaso de pedra, pousado
sobre a relva, vermelhejava a flôr d'um cacto; e dos ramos de
uma nogueira cahia uma fina frescura.
Maria Eduarda veio encostar-se á janella, Carlos seguiu-a; e
ficaram alli juntos, calados, profundamente felizes, penetrados pela
doçura d'aquella
solidão. Um passaro cantou de leve no ramo da arvore; depois
calou-se. Ella quiz saber o nome de uma povoação
que branquejava ao longe ao sol na
[134]
collina azulada. Carlos não
se lembrava. Depois brincando, colheu uma margarida, para a interrogar:
Elle m'aime, un peu, beaucoup...
Ella arrancou-lh'a das mãos.
—Para que precisa perguntar ás flôres?
—Porque ainda m'o não disse claramente, absolutamente, como
eu quero que m'o diga...
Abraçou-a pela cinta, sorriam um ao outro. Então
Carlos, com os olhos mergulhados nos d'ella, disse-lhe
baixínho e
implorando:
—Ainda não vimos a saleta de banho...
Maria Eduarda deixou-se levar assim enlaçada pelo
salão, depois através da sala de
tapeçarias onde Marte e Venus se amavam entre os bosques. Os
banhos eram ao lado, com um pavimento de azulejo, avivado por um velho
tapete vermelho da Caramania. Elle, tendo-a sempre abraçada,
pousou-lhe no pescoço um beijo longo e lento. Ella
abandonou-se mais, os seus olhos cerraram-se, pesados e vencidos.
Penetraram na alcova quente e côr d'ouro: Carlos ao passar
desprendeu as cortinas do arco de capella, feitas de uma sêda
leve que coava para dentro uma claridade loura: e um instante ficaram
immoveis, sós emfim, desatado o abraço, sem se
tocarem, como suspensos e suffocados pela abundancia da sua felicidade.
—Aquella horrivel cabeça! murmurou ella.
Carlos arrancou a coberta do leito, escondeu a tela sinistra. E
então todo o rumor se extinguiu, a solitaria casa ficou
adormecida entre as
[135]arvores,
n'uma demorada sésta, sob a calma de julho...
Os annos de Affonso da Maia foram justamente no dia seguinte, domingo.
Quasi todos os amigos da casa tinham jantado no Ramalhete; e
tomára-se o café no escriptorio d'Affonso, onde
as janellas se conservavam abertas. A noite estava tepida, estrellada e
serenissima. Craft, Sequeira e o Taveira passeavam fumando no
terraço. Ao canto d'um sofá Cruges escutava
religiosamente Steinbroken que lhe contava, com gravidade, os
progressos da musica na Filandia. E em redor de Affonso, estendido na
sua velha poltrona, de cachimbo na mão, fallava-se do campo.
Ao jantar Affonso annunciára a
intenção de ir visitar, para o meado do mez, as
velhas arvores de Santa Olavia; e combinára-se logo uma
grande romaria de amizade ás margens do Douro. Craft e
Sequeira acompanhavam Affonso. O marquez promettera uma visita para
agosto «na companhia melodiosa», dizia elle, do
amigo Steinbroken. D. Diogo hesitava, com receio da longa jornada, da
humidade da aldêa. E agora tratava-se de persuadir Ega a ir
tambem, com Carlos—quando Carlos acabasse emfim de reunir esses
materiaes do seu livro que o retinham em Lisboa «á
banca do labor...» Mas o Ega resistia. O campo, dizia elle,
[136]
era bom para os selvagens. O
homem, á maneira que se civilisa, afasta-se da natureza; e a
realisação do progresso, o paraiso na Terra, que
presagiam os Idealistas, concebia-o elle como uma vasta cidade
occupando totalmente o Globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo
apenas aqui e além um bosquesinho sagrado de roseiras, onde
se fossem colher os ramalhetes para perfumar o altar da
Justiça...
—E o milho? A bella fruta? A hortaliçasinha? perguntava
Villaça, rindo com malicia.
Imaginava então Villaça, replicava o outro, que
d'aqui a seculos ainda se comeriam hortaliças? O habito dos
vegetaes era um resto da rude animalidade do homem. Com os tempos o
sêr civilisado e completo vinha a alimentar-se unicamente de
productos artificiaes, em frasquinhos e em pilulas, feitos nos
laboratorios do Estado...
—O campo, disse então D. Diogo, passando gravemente os
dedos pelos bigodes, tem certa vantagem para a sociedade, para se fazer
um bonito
pic-nic, para uma
burricada, para
uma partida de croquet... Sem campo não ha sociedade.
—Sim, rosnou o Ega, como uma sala em que tambem ha arvores ainda se
admitte...
Enterrado n'uma poltrona, fumando languidamente, Carlos sorria em
silencio. Todo o jantar estivera assim calado, sorrindo esparsamente a
tudo, com um ar luminoso e de deliciosa lassidão. E
então o marquez, que já duas vezes, dirigindo-se
a
[137]elle,
encontrára a mesma abstracção
radiosa, impacientou-se:
—Homem, falle, diga alguma coisa!... Você está
hoje com um ar extraordinario, um arzinho de beato que se regalou de
papar o Santissimo!
Todos em redor, com sympathia, se affirmaram em Carlos:
Villaça achava-lhe agora melhor cara, côr
d'alegria: D. Diogo, com um ar entendido, sentindo mulher, invejou-lhe
os annos, invejou-lhe o vigor. E Affonso reenchendo o cachimbo olhava o
neto, enternecido.
Carlos ergueu-se immediatamente, fugindo áquelle exame
affectuoso.
—Com effeito, disse elle, espreguiçando-se de leve, tenho
estado hoje languido e mono... É o
começo do verão... Mas é necessario
sacudir-me... Quer você fazer uma partida de bilhar,
ó marquez?
—Vá lá, homem. Se isso o resuscita...
Foram, Ega seguiu-os. E apenas no corredor o marquez parando, e como
recordando-se, perguntou sem rebuço ao Ega noticias dos
Cohens. Tinham-se encontrado? Estava tudo acabado? Para o marquez, uma
flôr de lealdade, não havia
segredos: Ega contou-lhe que o romance findára, e agora o
Cohen, quando o cruzava, baixava prudentemente os olhos...
—Eu perguntei isto, disse o marquez, porque já vi a Cohen
duas vezes...
—Onde? foi a exclamação sôfrega do
Ega.
[138]
—No Price, e sempre com o Damaso. A ultima vez foi já esta
semana. E lá estava o Damaso, muito chegadinho, palrando
muito... Depois veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e
sempre d'olho n'ella... E ella de lá, com aquelle ar de
lambisgoia, de luneta n'elle... Não havia que duvidar, era
um namoro... Aquelle Cohen é um predestinado.
Ega fez-se livido, torceu nervosamente o bigode, terminou por dizer:
—O Damaso é muito intimo d'elles... Mas talvez se atire,
não duvido... São dignos um do outro.
No bilhar, emquanto os dois carambolavam preguiçosamente,
elle não cessou de passear, n'uma
agitação, trincando o charuto apagado. De repente
estacou em frente do marquez, com os olhos chammejantes:
—Quando é que você a viu ultimamente no Price,
essa torpe filha d'Israel?
—Terça-feira, creio eu.
O Ega recomeçou a passear, sombrio.
N'esse instante Baptista, apparecendo á porta do bilhar,
chamou Carlos em silencio, com um leve olhar. Carlos veio,
surprehendido.
—É um cocheiro de praça, murmurou Baptista. Diz
que está alli uma senhora dentro d'uma carruagem que lhe
quer fallar.
—Que senhora?
Baptista encolheu os hombros. Carlos, de taco
[139]
na mão, olhava para
elle, aterrado. Uma senhora! Era decerto Maria... Que teria succedido,
santo Deus, para ella vir n'uma tipoia, ás nove da noite, ao
Ramalhete!
Mandou Baptista, a correr, buscar-lhe um chapéo baixo; e
assim mesmo, de casaca, sem paletot, desceu n'uma grande anciedade. No
peristyllo topou com Eusebiosinho que chegava, e sacudia cuidadosamente
com o lenço a poeira dos botins. Nem fallou ao Eusebiosinho.
Correu ao coupé, parado á
porta particular dos seus quartos, mudo, fechado, mysterioso,
aterrador...
Abriu a portinhola. Do canto da velha traquitana, um vulto negro,
abafado n'uma mantilha de renda, debruçou-se, perturbado,
balbuciou:
—É só um instante! Quero-lhe fallar!
Que allivio! Era a Gouvarinho! Então, na sua
indignação, Carlos foi brutal.
—Que diabo de tolice é esta? Que quer?
Ia bater com a portinhola; ella empurrou-a para fóra,
desesperada; e não se conteve,
desabafou logo alli, diante do cocheiro, que mexia tranquillamente na
fivela d'um tirante.
—De quem é a culpa? Para que me trata d'este modo?...
É só um instante, entre, tenho de lhe fallar!...
Carlos saltou para dentro, furioso:
—Dá uma volta pelo Aterro, gritou ao cocheiro. Devagar!
O velho calhambeque desceu a calçada; e durante
[140]
um momento, na
escuridão, recuando um do outro no assento estreito, tiveram
as mesmas palavras, bruscas e colericas, através do barulho
das vidraças.
—Que imprudencia! que tolice!...
—E de quem é a culpa? De quem é a culpa?
Depois, na rampa de Santos, o coupé rolou mais
silenciosamente no macadam. Carlos então, arrependido da sua
dureza, voltou-se para ella, e com brandura, quasi no tom carinhoso
d'outr'ora, reprehendeu-a por aquella imprudencia... Pois
não era melhor ter-lhe escripto?
—Para quê? exclamou ella. Para não me responder?
Para não fazer caso das minhas cartas, como se fossem as de
um importuno a pedir-lhe uma esmola!...
Suffocava, arrancou a mantilha da cabeça. No vagaroso rolar
do coupé, sem ruido, ao longo do rio, Carlos sentia a
respiração d'ella,
tumultuosa e cheia d'angustia. E não dizia nada, immovel,
n'um infinito mal-estar, entrevendo confusamente, através do
vidro embaciado, na sombra triste do rio adormecido, as
mastreações vagas de
falúas. A parelha parecia ir adormecendo; e as queixas
d'ella desenrolavam-se, profundas, mordentes, repassadas d'amargura.
—Peço-lhe que venha a Santa Isabel, não vem...
Escrevo-lhe, não me responde... Quero ter uma
explicação franca comsigo, não
apparece... Nada, nem um bilhete, nem uma palavra, nem um
[141]
aceno... Um desprezo brutal, um
desprezo grosseiro... Eu nem devia ter vindo... Mas não
pude, não pude!... Quiz saber o que lhe tinha feito. O que
é isto? Que lhe fiz eu?
Carlos percebia os olhos d'ella, faiscantes sob a nevoa de lagrimas
retidas, supplicando e procurando os seus. E sem coragem sequer de a
fitar, murmurou, torturado:
—Realmente, minha amiga... As coisas fallam bem por si, não
são necessarias
explicações.
—São! É necessario saber se isto é
uma coisa passageira, um amuo, ou se é uma coisa definitiva,
um rompimento!
Elle agitava-se no seu canto, sem achar uma maneira suave, affectuosa
ainda, de lhe dizer que todo o seu desejo d'ella findára.
Terminou por affirmar que não era um amuo. Os seus
sentimentos tinham sido sempre elevados, não cahiria agora
na pieguice de ter um amuo...
—Então é um rompimento?...
—Não, tambem não... Um rompimento absoluto, para
sempre, não...
—Então é um amuo? Porquê?
Carlos não respondeu. Ella, perdida, sacudiu-o pelo
braço.
—Mas falle! Diga alguma coisa, santo Deus! Não seja
cobarde, tenha a coragem de dizer o que é!
Sim, ella tinha razão... Era uma cobardia, era uma
indignidade, continuar alli, gôchemente, dissimulado
[142]
na sombra, a balbuciar
coisas mesquinhas. Quiz ser claro, quiz ser forte.
—Pois bem, ahi está. Eu entendi que as nossas
relações deviam ser alteradas...
E outra vez hesitou, a verdade amolleceu-lhe nos labios, sentindo
aquella mulher ao seu lado a tremer d'agonia.
—Alteradas, quero dizer... Podiamos transformar um capricho
apaixonado, que não podia durar, n'uma amizade agradavel, e
mais nobre...
E pouco a pouco as palavras voltavam-lhe faceis, habeis, persuasivas,
através do rumor lento das rodas. Onde os podia levar
aquella ligação?
Ao resultado costumado. A que a um dia se descobrisse tudo, e o seu
bello romance acabasse no escandalo e na vergonha; ou a que,
envolvendo-os por muito tempo o segredo, elle viesse a descahir na
banalidade d'uma união quasi conjugal, sem interesse e sem
requinte. De resto era certo que, continuando a encontrarem-se, aqui,
em Cintra, n'outros sitios, a sociedadesinha curiosa e mexeriqueira
viria a perceber a sua affeição. E havia por
acaso nada mais horroroso, para quem tem orgulho e delicadeza d'alma,
do que uns amores que todo o publico conhece, até os
cocheiros de praça?
Não... O bom senso, o bom gosto mesmo, tudo indicava a
necessidade d'uma separação. Ella mesmo mais
tarde lhe seria grata... Decerto, esta primeira
interrupção d'um habito dôce era
desagradavel, e elle estava bem longe de se sentir feliz.
Fôra
[143]por
isso que não tivera a coragem de lhe escrever... Emfim
deviam ser fortes, e não se vêrem pelo menos
durante alguns mezes... Depois, pouco a pouco, o que era capricho
fragil, cheio de inquietação, tornar-se-hia uma
boa amizade, bem segura e bem duradoura.
Calou-se; e então, no silencio, sentiu que ella, cahida para
o canto do coupé, como uma coisa miseravel e meio morta,
encolhida no seu véo, estava chorando baixo.
Foi um momento intoleravel. Ella chorava sem violencia, mansamente, com
um chôro lento, que parecia não dever findar. E
Carlos só achava esta
palavra banal e desenxabida:
—Que tolice, que tolice!
Vinham rodando ao comprido das casas, por diante da fabrica do gaz. Um
americano passou alumiado, com senhoras vestidas de claro. N'aquella
noite de verão e d'estrellas, havia gente vagueando
tranquillamente entre as arvores. Ella continuava a chorar.
Aquelle pranto triste, lento, correndo a seu lado, começou a
commovel-o; e ao mesmo tempo quasi lhe queria mal por ella
não reter essas lagrimas infindaveis que laceravam o seu
coração... E elle que estava tão
tranquillo, no Ramalhete, na sua poltrona, sorrindo a tudo, n'uma
deliciosa lassidão!
Tomou-lhe a mão, querendo calmal-a, apiedado, e
já impaciente.
[144]
—Realmente não tem razão. É
absurdo... Tudo isto é para seu bem...
Ella teve emfim um movimento, enxugou os olhos, assoou-se doloridamente
por entre os seus longos soluços... E de repente, n'um
arranque de paixão, atirou-lhe os braços ao
pescoço, prendendo-se a elle com desespero, esmagando-o
contra o seu seio.
—Oh meu amor, não me deixes, não me deixes! Se
tu soubesses! És a unica felicidade que eu tenho na vida...
Eu morro, eu mato-me!... Que te fiz eu? Ninguem sabe do nosso amor... E
que soubesse! Por ti sacrifico tudo, vida, honra, tudo! tudo!...
Molhava-lhe a face com o resto das suas lagrimas; e elle abandonava-se,
sentindo aquelle corpo sem collete, quente e como nú,
subir-lhe para os joelhos, collar-se ao seu, n'um furor de o repossuir,
com beijos sôfregos, furiosos, que o suffocavam...
Subitamente a tipoia parou. E um momento ficaram assim—Carlos immovel,
ella cahida sobre elle e arquejando.
Mas a tipoia não continuava. Então Carlos
desprendeu um braço, desceu o vidro; e viu que estavam
defronte do Ramalhete. O homem, obedecendo á ordem, dera a
volta pelo Aterro, devagar, subira a rampa, retrocedera á
porta da casa. Durante um instante Carlos teve a
tentação de descer, acabar alli bruscamente
aquelle longo tormento. Mas pareceu-lhe uma brutalidade.
[145]
E desesperado, detestando-a,
berrou ao cocheiro:
—Outra vez ao Aterro, anda sempre!...
A tipoia deu na rua estreita uma volta resignada, tornou a rolar; de
novo as pedras da calçada fizeram tilintir os vidros; de
novo, mais suavemente, desceram a rampa de Santos.
Ella recomeçára os seus beijos. Mas tinham
perdido a chamma que um instante os fizera quasi irresistiveis. Agora
Carlos sentia só uma fadiga, um desejo infinito de voltar ao
seu quarto, ao repouso de que ella o arrancára para o
torturar com estas recriminações, estes ardores
entre lagrimas... E de repente, emquanto a condessa balbuciava, como
tonta, pendurada do seu pescoço,—elle viu surgir n'alma,
viva e resplandecente, a imagem de Maria Eduarda, tranquilla
áquella hora na sua sala de reps vermelho, fazendo
serão, confiando n'elle, pensando n'elle, relembrando as
felicidades da vespera, quando a
Toca, cheia de seus amores, dormia,
branca entre as arvores... Teve então horror á
Gouvarinho; brutalmente, sem piedade, repelliu-a para o canto do
coupé.
—Basta! Tudo isto é absurdo... As nossas
relações estão acabadas,
não temos mais nada que nos dizer!
Ella ficou um instante como atordoada. Depois estremeceu, teve um riso
nervoso, reppelliu-o tambem, phreneticamente, pisando-lhe o
braço.
[146]
—Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra,
para a brazileira! Eu conheço-a, é uma
aventureira que tem o marido arruinado, e precisa quem lhe
pague as modistas!...
Elle voltou-se, com os punhos fechados, como
para a espancar; e na tipoia escura, onde já havia
um vago cheiro de verbena, os olhos d'ambos,
sem se vêrem, dardejavam o odio que os enchia...
Carlos bateu raivosamente no vidro. A tipoia não
parou. E a Gouvarinho, do outro lado, furiosa,
magoando os dedos, procurava descer a vidraça.
—É melhor que sáia! dizia ella suffocada.
Tenho horror de me achar aqui, ao seu lado!
Tenho horror! Cocheiro! cocheiro!
O calhambeque parou. Carlos pulou para fóra,
fechou d'estalo a portinhola; e sem uma palavra,
sem erguer o chapéo, virou costas, abalou a grandes
passadas para o Ramalhete, tremulo ainda,
cheio d'idéas de rancor, sob a paz da noite estrellada.
IV
Foi n'um sabbado que Affonso da Maia partiu
para Santa Olavia. Cedo n'esse mesmo dia, Maria
Eduarda, que o escolhera por ser de boa estreia,
installára-se nos Olivaes. E Carlos, voltando
de Santa Apolonia, onde fôra acompanhar o avô,
com o Ega, dizia-lhe alegremente:
—Então aqui ficamos nós sós a torrar,
na cidade
de marmore e de lixo...
—Antes isso, respondeu o Ega, que andar de
sapatos brancos, a scismar, por entre a poeirada
de Cintra!
Mas no domingo, quando Carlos recolheu ao
Ramalhete ao anoitecer—Baptista annunciou
que o snr. Ega tinha partido n'esse momento
para Cintra, levando apenas livros e umas escovas
embrulhadas n'um jornal... O snr. Ega tinha
[148]
deixado uma carta. E tinha dito:
«Baptista, vou pastar.»
A carta, a lapis, n'uma larga folha d'almasso, dizia:
«Assaltou-me de repente, amigo, juntamente com um
horror á caliça de Lisboa, uma saudade
infinita da natureza e do verde. A
porção d'animalidade que ainda resta no meu
sêr civilisado e recivilisado precisa urgentemente
d'espolinhar-se na relva, beber no fio dos regatos, e dormir
balançada n'um ramo de castanheiro. O solícito
Baptista que me remetta ámanhã pelo
omnibus a mala com que eu não quiz sobrecarregar
a tipoia do
Mulato. Eu demoro-me apenas tres ou
quatro dias. O tempo de cavaquear um bocado com o Absoluto no alto
dos
Capuchos, e vêr o que
estão fazendo os myosotis junto á meiga
fonte dos
Amores...»
—Pedante! rosnou Carlos, indignado com o abandono ingrato em que o
deixava o Ega.
E atirando a carta:
—Baptista! O snr. Ega diz ahi que lhe mandem uma caixa de charutos,
dos
Imperiales. Manda-lhe antes dos
Flôr
de Cuba. Os
Imperiales são um veneno. Esse animal
nem fumar sabe!
Depois de jantar Carlos percorreu o
Figaro,
folheou um volume de
Byron, bateu carambolas solitarias no bilhar, assobiou
malagueñas no terrasso—e terminou por sahir, sem destino,
para os lados do Aterro. O Ramalhete entristecia-o, assim mudo,
apagado, todo aberto ao calor da
[149]
noite. Mas insensivelmente, fumando,
achou-se na rua de S. Francisco. As janellas de Maria Eduarda estavam
tambem abertas e negras. Subiu ao andar do Cruges. O menino Victorino
não estava em casa...
Amaldiçoando o Ega, entrou no Gremio. Encontrou o Taveira,
de paletot ao hombro, lendo os telegrammas. Não havia nada
novo por essa velha Europa; apenas mais uns Nihilistas enforcados; e
elle Taveira ia ao Price...
—Vem tu tambem d'ahi, Carlinhos! Tens lá uma mulher bonita
que se mette na agua com cobras e crocodilos... Eu pello-me por estas
mulheres de bichos!... Que esta é difficil, traz um
chulo...
Mas eu já lhe escrevi: e ella faz-me um bocado d'olho de
dentro da tina.
Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo fallou-lhe logo do Damaso.
Não tornára a ver essa flôr? Pois essa
flôr andava apregoando por toda a parte que o Maia, depois do
caso do Chiado, lhe dera por um amigo explicações
humildes, covardes... Terrivel, aquelle Damaso! Tinha figura, interior,
e natureza de pélla! Com quanto mais força se
atirava ao chão, mais elle resaltava para o ar,
triumphante!...
—Em todo o caso é uma rez traiçoeira, e deves
ter cautela com elle...
Carlos encolheu os hombros, rindo.
Não, não, dizia o Taveira muito sério,
eu conheço o meu Damaso. Quando foi da nossa
[150]
péga, em casa da Lola Gorda, elle portou-se como um
poltrão, mas depois ia-me atrapalhando a vida...
É capaz de tudo... Antes d'hontem estava eu a cear no Silva,
elle veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e
começou logo com umas coisas a teu respeito, umas
ameaças...
—Ameaças! Que disse elle?
—Diz que te dás ares de espadachim e de valentão, mas has
de encontrar dentro em pouco quem te ensine... Que se está
ahi preparando um escandalo monumental... Que se não
admirará de te vêr brevemente com uma boa bala na
cabeça...
—Uma bala?
—Assim o disse. Tu ris, mas eu é que sei... Eu, se fosse a
ti, ia-me ao Damaso e dizia-lhe: «Damasosinho,
flôr, fique avisado que, d'ora em diante, cada vez que me
succeder uma coisa desagradavel, venho aqui e parto-lhe uma costella;
tome as suas medidas...»
Tinham chegado ao Price. Uma multidão de domingo, alegre e
pasmada, apinhava-se até ás ultimas bancadas onde
havia rapazes, em mangas de camisa, com litros de vinho; e eram
grossas, fartas risadas, com os requebros do palhaço,
rebocado de cáio e vermelhão, que tocava nos
pésinhos d'uma
voltigeuse e lambia os
dedos, d'olhos em
alvo, n'um gosto de mel... Descançando na sella larga de
xairel dourado, a creatura, magrinha e séria, com
flôres nas tranças, dava a volta
[151]
devagar, ao passo
d'um cavallo branco, que mordia o freio, levado á
mão por um estribeiro; e pela arena o palhaço
lambão e nescio acompanhava-a, com as mãos ambas
apertadas ao coração, n'uma supplica babosa,
rebolando languidamente os quadris dentro das vastas pantalonas,
picadas de lantejoulas. Um dos escudeiros, de calça listrada
d'ouro, empurrava-o, n'um arremedo de ciumes; e o palhaço
cahia, estatelado, com um estoiro de nadegas, entre os risos das
crianças e os rantantans da charanga. O calor suffocava; e
as fumaraças de charuto, subindo sem cessar, faziam uma neva
onde tremiam as chammas largas do gaz. Carlos, incommodado, abalou.
—Espera ao menos para vêr a mulher dos crocodilos! gritou
ainda o Taveira.
—Não posso, cheira mal, morro!
Mas á porta, de repente, foi detido pelos braços
abertos do Alencar, que chegava—com outro sujeito, velho e alto, de
barbas brancas, todo vestido de luto. O poeta ficou pasmado de
vêr alli o de seu Carlos. Fazia-o no seu solar Santa de
Olavia! Vira até nos papeis publicos...
—Não, disse Carlos, o avô é que foi
hontem... Eu não me sinto ainda em
disposição do ir communicar com a natureza...
Alencar riu, levemente afogueado, com um brilho de genebra no olho
cavo. Ao lado, grave, o ancião de barbas calçava
as suas luvas pretas.
—Pois eu é o contrario! exclamava o poeta.
[152]
Estou precisado d'um banho de pantheismo! A
bella natureza! O prado! O bosque!... De
modo que talvez me mimoseie com Cintra, para a semana. Estão
lá os Cohens, alugaram uma casita muito bonita, logo adiante
do Victor...
Os Cohens! Carlos comprehendeu então a fuga do Ega e a
«sua saudade do verde.»
—Ouve lá, dizia-lhe o poeta baixo, e puxando-o pela manga,
para o lado. Tu não conheces este meu amigo? Pois foi muito
de teu pai, fizemos muita troça juntos... Não era
nenhum personagem, era apenas um alquilador de cavallos... Mas tu
sabes, cá em Portugal, sobretudo n'esses tempos, havia muita
bonhomia, o fidalgo dava-se com o arrieiro... Mas, que diabo, tu deves
conhecel-o! É o tio do Damaso!
Carlos não se recordava.
—O Guimarães, o que está em Paris!
—Ah, o communista!
—Sim, muito republicano, homem de idéas
humanitarias, amigo do Gambetta, escreve no
Rappel...
Homem interessante!... Veio ahi por causa
d'umas terras que herdou do irmão, d'esse outro
tio do Damaso que morreu ha mezes... E demora-se,
creio eu... Pois jantamos hoje juntos, beberam-se
uns liquidos, e até estivemos a
fallar de teu pai... Queres tu que eu t'o apresente?
Carlos hesitou. Seria melhor n'outra occasião mais intima,
quando podessem fumar um charuto tranquillo, e conversar do passado...
[153]
—Valeu! Has de gostar d'elle. Conhece muito Victor Hugo, detesta a
padraria... Espirito largo, espirito muito largo!
O poeta sacudiu ardentemente as duas mãos de Carlos. O snr.
Guimarães ergueu de leve o seu chapéo, carregado
de crepe.
Todo o caminho, até ao Ramalhete, Carlos foi pensando em seu
pai e n'esse passado, assim rememorado e estranhamente resurgido pela
presença d'aquelle patriarcha, antigo alquilador, que fizera
com elle tantas troças! E isto trazia conjuntamente outra
idéa, que n'esses ultimos dias já o
atravessára, pertinaz e torturante, dando-lhe, no meio da
sua radiante felicidade, um sombrio arripio de dôr... Carlos
pensava no avô.
Estava agora decidido que Maria Eduarda e elle partiriam para Italia,
nos fins de outubro. Castro Gomes, na sua ultima carta do Brazil,
sêcca e pretenciosa, fallava «em apparecer por
Lisboa, com as elegancias do frio, lá para meado de
novembro»; e era necessario antes d'isso que estivessem
já longe, entre as verduras d'Isola Bella, escondidos no seu
amor e separados por elle do mundo como pelos muros d'um claustro. Tudo
isto era facil, considerado quasi legítimo pelo seu
coração, e enchia a sua vida d'esplendor...
Sómente havia n'isto um espinho—o avô!
Sim, o avô! Elle partia com Maria, elle entrava na ventura
absoluta; mas ia destruir de uma vez e para sempre a alegria d'Affonso,
e a nobre
[154]
paz que lhe tornava tão bella a velhice. Homem de
outras eras, austero e puro, como uma d'essas fortes almas que nunca
desfalleceram—o avô, n'esta franca, viril, rasgada
solução d'um amor indominavel, só
veria libertinagem! Para elle nada significava o esponsal natural das
almas, acima e fóra das ficções civis;
e nunca comprehenderia essa subtil ideologia sentimental, com que
elles, como todos os transviados, procuravam azular o seu erro. Para
Affonso haveria apenas um homem que leva a mulher d'outro, leva a filha
d'outro, dispersa uma familia, apaga um lar, e se atola para
sempre na concubinagem: todas as subtilezas da paixão, por
mais finas, por mais fortes, quebrar-se-hiam, como bolas de
sabão, contra as tres ou quatro idéas
fundamentaes de Dever, de Justiça, de Sociedade, de Familia,
duras como blocos de marmore, sobre que assentára a sua vida
quasi durante um seculo... E seria para elle como o horror d'uma
fatalidade! Já a mulher de seu filho fugira com um homem,
deixando atraz de si um cadaver; seu neto agora fugia tambem,
arrebatando a familia d'outro:—e a historia da sua casa
tornava-se assim uma repetição d'adulterios, de
fugas, de dispersões, sob o bruto aguilhão da
carne!... Depois as esperanças que Affonso
fundára n'elle—consideral-as-hia tombadas, mortas no lodo!
Elle passava a ser para sempre, na imaginação
angustiada do avô, um foragido, um inutilisado, tendo partido
todas as raizes que o prendiam ao seu sólo,
[155]
tendo abdicado toda a acção que o elevaria no seu paiz,
vivendo por hoteis de refugio, fallando linguas estranhas, entre uma
familia equivoca crescida em torno d'elle como as plantas de uma
ruina... Sombrio tormento, implacavel e sempre presente, que consumiria
os derradeiros annos do pobre avô!... Mas, que podia elle
fazer? Já o dissera ao Ega. A vida é assim! Elle
não tinha o heroismo nem a santidade que tornam facil o
sacrificio... E depois os dissabores do avô, de que
provinham? De preconceitos. E a sua felicidade, justo Deus, tinha
direitos mais largos, fundados na natureza!...
Chegára ao fim do Aterro. O rio silencioso fundia-se na
escuridão. Por alli entraria em breve do Brazil, o
outro—que nas suas cartas se esquecia de mandar
um beijo a sua
filha! Ah, se elle não voltasse! Uma onda providencial podia
leval-o... Tudo se tornaria tão facil, perfeito e limpido!
De que servia na vida esse resequido? Era como um sacco vazio que
cahisse ao mar! Ah, se
elle morresse!... E
esquecia-se, enlevado
n'uma visão em que a imagem de Maria o chamava, o esperava,
livre, serena, sorrindo e coberta de luto...
No seu quarto, Baptista, vendo-o atirar-se para uma poltrona com um
suspiro de fadiga, de desconsolação,—disse,
depois de tossir risonhamente, e dando mais luz ao candieiro:
—Isto agora, sem o snr. Ega, parece um bocadinho mais só...
—Está só, está triste, murmurou Carlos. É
[156]
necessario sacudirmo-nos... Eu já te
disse que talvez fossemos viajar este inverno...
O menino não lhe tinha dito nada.
—Pois talvez vamos a Italia... Appetece-te voltar a Italia?
Baptista reflectiu.
—Eu, da outra vez não vi o Papa... E antes de morrer
não se me dava de vêr o Papa...
—Pois sim, ha de se arranjar isso, has de vêr o Papa.
Baptista, depois d'um silencio, perguntou, lançando um olhar
ao espelho:
—Para vêr o Papa vai-se de casaca, creio eu?
—Sim, recommendo-te a casaca... O que tu devias ter, para esses casos,
era um habito de Christo... Hei de vêr se te arranjo um
habito de Christo.
Baptista ficou um instante assombrado. Depois fez-se escarlate,
d'emoção:
—Muito agradecido a v. exc.
a Ha por ahi gente
que o tem, ainda talvez
com menos merecimentos que eu... Dizem que até ha
barbeiros...
—Tens razão, replicou Carlos muito sério. Era
uma vergonha. O que hei de vêr se te arranjo com effeito
é a commenda da Conceição.
Todas as manhãs, agora, Carlos percorria o poeirento caminho
dos Olivaes. Para poupar aos
[157]
seus cavallos a soalheira ia na tipoia do
Mulato, o batedor favorito do Ega—que recolhia a
parelha na velha
cavalhariça da
Toca, e, até
á hora
em que Carlos voltava ao Ramalhete, vadiava pelas tabernas.
Ordinariamente ao meio dia, ao acabar de almoçar, Maria
Eduarda, ouvindo rodar o trem na estrada silenciosa, vinha esperar
Carlos á porta da casa, no topo dos degraus ornados de vasos
e resguardados por um fresco toldo de fazenda côr de rosa. Na
quinta usava sempre vestidos claros; ás vezes trazia,
á antiga moda hespanhola, uma flôr entre os
cabellos; o forte e fresco ar do campo avivava com um brilho mais
quente o mate eburneo do seu rosto;—e assim, simples e radiante, entre
sol e verdura, ella deslumbrava Carlos cada dia com um encanto
inesperado e maior. Cerrando o portão d'entrada, que rangia
nos gonzos, Carlos sentia-se logo envolvido n'um
«extraordinario conforto moral», como elle dizia,
em que todo o seu sêr se movia mais facilmente, fluidamente,
n'uma permanente impressão de harmonia e
doçura... Mas o seu primeiro beijo era para Rosa, que corria
pela rua de acacias ao seu encontro, com uma onda de cabello negro a
bater-lhe os hombros, e
Niniche ao lado, pulando
e ladrando de
alegria. Elle erguia Rosa ao collo. Maria de longe sorria-lhes, sob o
toldo côr de rosa. Em redor tudo era luminoso, familiar e
cheio de paz.
A casa dentro resplandecia com um arranjo
[158]
mais delicado. Já
se podia usar o salão nobre, que perdera o seu ar rigido de
museu, exhalando a tristeza d'um luxo morto: as flôres que
Maria punha nos vasos, um jornal esquecido, as lãs de um
bordado, o simples roçar dos seus frescos vestidos, tinham
communicado já um subtil calor de vida e de conchego aos
mais impertigados contadores do tempo de Carlos V, revestidos de ferro
brunido:—e era alli que elles ficavam conversando emquanto
não chegava a hora das lições de Rosa.
A essa hora apparecia miss Sarah, séria e recolhida—sempre
de preto, com uma ferradura de prata em broche sobre o collarinho
direito de homem. Recuperára as suas côres fortes
de boneca, e as pestanas baixas tinham uma timidez mais virginal sob o
liso dos bandós puritanos. Gordinha, com o peito de pomba
farta estalando dentro do corpete severo, mostrava-se toda contente da
vida calma e lenta de aldêa. Mas aquellas terras trigueiras
d'olivedo não lhe pareciam campo: «é
muito sêcco, é muito duro,» dizia ella,
com uma indefinida saudade dos verdes molhados da sua Inglaterra, e dos
céos de nevoa, cinzentos e vagos.
Davam duas horas; e começavam logo nos quartos de cima as
longas lições de Rosa. Carlos e Maria iam
então refugiar-se n'uma intimidade mais livre, no kiosque
japonez, que uma phantasia de Craft, o seu amor do Japão,
construira
[159]
ao pé da rua d'acacias, aproveitando a sombra e o
retiro bucolico de dois velhos castanheiros. Maria
affeiçoara-se áquelle recanto, chamava-lhe o seu
pensadoiro. Era todo de madeira, com uma
só janellinha
redonda, e um telhado agudo á japoneza, onde
roçavam os ramos—tão leve que através
d'elle nos momentos de silencio se sentiam piar as aves. Craft
forrára-o todo de esteiras finas da India; uma mesa de
xarão, algumas faianças do Japão,
ornavam-no sobriamente; o tecto não se via, occulto por uma
colcha de sêda amarella, suspensa pelos quatro cantos, em
laços, como o rico docel de uma tenda;—e todo o ligeiro
kiosque parceia ter sido armado só com o fim d'abrigar um
divan baixo e fôfo, d'uma languidez de serralho, profundo
para todos os sonhos, amplo para todas as
preguiças...
Elles entravam, Carlos com algum livro que escolhera na
presença de miss Sarah, Maria Eduarda com um bordado ou uma
costura. Mas bordado e livro cahiam logo no chão—e os seus
labios, os seus braços uniam-se arrebatadamente. Ella
escorregava sobre o divan: Carlos ajoelhava n'uma almofada, tremulo,
impaciente depois da forçada reserva diante de Rosa e diante
de Sarah—e alli ficava, abraçado á sua cintura,
balbuciando mil coisas pueris e ardentes, por entre longos beijos que
os deixavam frouxos, com os olhos cerrados, n'uma doçura de
desmaio. Ella queria saber o que elle tinha feito durante a longa,
longa
[160]
noite de separação. E Carlos nada tinha a
contar senão que pensára n'ella, que
sonhára com ella... Depois era um silencio: os pardaes
piaram, as pombas arrulhavam por cima do leve telhado: e
Niniche,
que os acompanhava sempre, seguia os seus murmurios, os seus silencios,
enroscada a um canto, com um olho negro, reluzindo desconfiadamente por
entre as repas prateadas.
Fóra, por aquelles dias de calma, sem aragem, a quinta
sêcca, d'um verde empoeirado, dormia com as folhagens
immoveis, sob o peso do sol. Da casa branca, através das
persianas fechadas, vinha apenas o som amodorrado das escalas que Rosa
fazia no piano. E no kiosque havía tambem um silencio satisfeito e
pleno—sómente quebrado por algum dôce suspiro de
lassidão que sahia do divan, d'entre as almofadas de
sêda, ou algum beijo mais longo e d'um remate mais
profundo... Era
Niniche que os tirava d'aquelle
suave entorpecimento,
farta de estar alli quieta, encerrada entre as madeiras quentes, n'um
ar molle já repassado d'esse aroma indefinido em que havia
jasmim.
Lenta, e passando as mãos no rosto Maria erguia-se—mas para
cahir logo aos pés de Carlos, no seu reconhecimento
infinito... Meu Deus, o que lhe custava então esse momento
de separação! Para que havia de ser assim?
Parecia tão pouco natural, esposos como eram, que ella
ficasse alli toda a noite, sósinha, com o seu desejo d'elle,
e elle fosse, sem as suas carícias, dormir solitariamente ao
Ramalhete!...
[161]
E ainda se demoravam muito tempo, n'uma mudez d'extasi, em
que os olhos humidos, trespassando-se, continuavam o beijo insaciado
que morrera nos seus labios cançados. Era
Niniche que os fazia sahir por fim
trotando impacientemente da porta para o divan, rosnando,
ameaçando ladrar.
Muitas vezes ao recolherem Maria tinha uma
inquietação. Que pensaria miss Sarah d'esta
sésta assim enclausurada, sem um rumor, com a janella do
pavilhão cerrada? Melanie, desde pequena ao
serviço de Maria, era uma confidente: o bom Domingos, um
imbecil, não contava: mas miss Sarah?... Maria confessava
sorrindo que se sentia um pouco humilhada, ao encontrar depois
á mesa os candidos olhos da ingleza sob os seus
bandós virginaes... Está claro! se a boa miss
tivesse a ousadia de resmungar ou franzir de leve a testa, recebia logo
seccamente a sua passagem no
Royal
Mail para Southampton! Rosa não a
lamentaria, Rosa não lhe tinha
affeição. Mas, emfim,
era tão séria, admirava tanto a senhora! Ella
não gostava de perder a admiração
d'uma rapariga tão
séria. E assim decidiram despedir miss Sarah,
régiamente paga, e substituil-a, mais tarde, em Italia, por
uma governante allemã, para quem elles fossem como casados,
«Monsieur et Madame...»
Mas pouco a pouco o desejo d'uma felicidade mais intima, mais completa,
foi crescendo n'elles. Não lhes bastava já essa
curta manhã
no divan
[162]
com os
passaros cantando por cima, a quinta cheia de sol, tudo acordado em
redor: appeteciam o longo contentamento d'uma longa noite, quando os
seus braços se podessem enlaçar sem encontrar o
estofo dos vestidos, e tudo dormisse em torno, os campos, a gente e a
luz... De resto era bem facil! A sala de tapeçarias,
communicando com a alcova de Maria, abria sobre o jardim por uma porta
envidraçada; a governante, os criados, subiam ás
dez horas para os seus quartos no andar alto; a casa adormecia
profundamente; Carlos tinha uma chave do portão; e o unico
cão,
Niniche, era o confidente fiel dos
seus beijos...
Maria desejava essa noite tão ardentemente como elle. Uma
tarde ao escurecer, voltando d'um fresco passeio nos campos,
experimentaram ambos essa dupla chave—que Carlos já
promettia mandar dourar: e elle ficou surprehendido ao vêr
que o velho portão, que ouvira sempre ranger
abominavelmente, rolava agora nos gonzos com um silencio oleoso.
Veio n'essa mesma noite—tendo deixado na villa para o levar ao
amanhecer a caleche do
Mulato, um batedor discreto, que
elle cevava de gorgetas. O céo, molle e abafado,
não tinha uma estrella; e sobre o mar lampejava a
espaços, mudamente, a lividez d'um relampago. Caminhando com
inuteis cautelas rente do muro Carlos sentia, n'esta proximidade d'uma
posse tão desejada, uma melancolia, cortada de anciedade,
que vagamente o
[163]
acobardava. Abriu quasi a tremer o portão: e mal
déra alguns passos estacou, ouvindo ao fundo
Niniche ladrar furiosamente. Mas
tudo emmudeceu; e da janella do canto, sobre o jardim, surgiu uma
claridade que o socegou. Foi encontrar Maria, com um roupão
de rendas, junto da porta envidraçada, suffocando quasi
entre os braços
Niniche que ainda rosnava. Estava
toda medrosa, n'uma impaciencia de o sentir ao seu lado: e
não quiz recolher logo: um momento ficaram alli, sentados
nos degraus, com
Niniche que
aquietára
e lambia Carlos. Tudo em redor era como uma infinita mancha de tinta;
só lá em baixo, perdida e
mortiça, surdia da treva alguma luzinha vacillando no alto
d'um mastro. Maria, conchegada a Carlos, refugiada n'elle, deu um longo
suspiro: e os seus olhos mergulhavam inquietos n'aquella mudez negra,
onde os arbustos familiares do jardim, toda a quinta, parecia perder a
realidade, sumida, diluida na sombra.
—Porque não havemos de partir já para a Italia?
perguntou ella de repente, procurando a
mão de Carlos. Se tem de ser, porque não ha de
ser já?... Escusavamos de ter estes segredos, estes sustos!
—Sustos de que, meu amor? Estamos aqui tão seguros como na
Italia, como na China... De resto podemos partir mais depressa, se
quizeres... Dize tu um dia, marca um dia!
Ella não respondeu, deixando cahir dôcemente
[164]
a cabeça
sobre o hombro de Carlos. Elle acrescentou, devagar:
—Em todo o caso, comprehendes bem, preciso primeiro ir a Santa Olavia,
vêr o avô...
Os olhos de Maria perdiam-se outra vez na escuridão—como
recebendo d'ella o presagio d'um futuro, onde tudo seria confuso e
escuro tambem.
—Tu tens Santa Olavia, tens teu avô, tens os teus amigos...
Eu não tenho ninguem!
Carlos estreitou-a a si, enternecido.
—Não tens ninguem! Isso dito a mim! Nem chega a ser
injustiça, nem chega a ser
ingratidão! É nervoso; e é tambem o
que os inglezes chamam a «impudente
adulteração d'um
facto.»
Ella ficára aninhada no peito de Carlos, como desfallecida.
—Não sei porque, queria morrer...
Um largo brilho de relampago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram
na alcova. Os mólhos de velas de duas serpentinas, batendo
os damascos e os setins amarellos, embebiam o ar tepido, onde errava um
perfume, n'uma refulgencia ardente de sacrario: e as bretanhas, as
rendas do leito já aberto punham uma casta alvura de neve
fresca n'esse luxo amoroso e côr de chamma. Fóra,
para os lados do mar, um trovão rolou lento e surdo. Mas
Maria já o não ouviu, cahida nos
braços de Carlos. Nunca o desejára, nunca o
adorára tanto! Os seus beijos anciosos pareciam tender mais
longe
[165]
que a carne,
trespassal-o, querer sorver-lhe a vontade e a alma:—e toda a noite,
entre esses brocados radiantes, com os cabellos soltos, divina na sua
nudez, ella lhe appareceu realmente como a Deusa que elle sempre
imaginára, que o arrebatava emfim, apertado ao seu seio
immortal, e com elle pairava n'uma celebração
d'amor, muito
alto, sobre nuvens de ouro...
Quando sahiu, ao amanhecer, chovia. Foi encontrar o
Mulato a dormir n'uma taberna,
bebedo. Teve de o metter dentro do carro; e foi elle que governou
até ao Ramalhete, embrulhado n'uma manta do taberneiro,
encharcado, cantarolando, esplendidamente feliz.
Passados dias, passeando com Maria nos arredores da
Toca, Carlos reparou n'uma
casita, á beira da estrada, com escriptos: e veio-lhe logo a
idéa de a alugar, para evitar aquella desagradavel partida
de madrugada com o
Mulato
estremunhado, borracho, despedaçando o trem pelas
calçadas. Visitaram-na: havia um quarto largo, que com
tapete e cortinas podia dar um refugio confortavel. Tomou-a logo—e
Baptista veio ao outro dia, com moveis n'uma carroça,
arranjar este novo ninho. Maria disse, quasi triste:
—Mais outra casa!
—Esta, exclamou Carlos rindo, é a ultima! Não,
é a penultima... Temos ainda a outra, a
nossa, a verdadeira, lá longe, não sei onde...
Começaram a encontrar-se todas as noites. Ás
[166]
nove e meia, pontualmente, Carlos deixava a
Toca,
com o seu charuto accêso: e Domingos, adiante,
de lanterna, vinha fechar o portão, tirar a
chave. Elle recolhia devagar á sua «choupana»
onde o servia um criadito, filho do jardineiro do
Ramalhete. Sobre um tapete solto, deitado no velho
soalho, havia apenas, além do leito, uma mesa,
um sofá de riscadinho, duas cadeiras de palha; e
Carlos entretinha as horas que o separavam ainda
de Maria, escrevendo para Santa Olavia e sobretudo
ao Ega, que se eternisava em Cintra.
Recebera duas cartas d'elle, fallando quasi sómente
do Damaso. O Damaso apparecia em toda a
parte com a Cohen; o Damaso tornára-se grutesco
em Cintra, n'uma corrida de burros; o Damaso
arvorára capacete e véo em Sitiaes; o Damaso
era uma besta immunda; o Damaso, no pateo
do Victor, de perna traçada, dizia familiarmente «a
Rachel»; era um dever de moralidade publica dar
bengaladas no Damaso!... Carlos encolhia os hombros,
achando estes ciumes indignos do coração do
Ega. E então por quem! Por aquella lambisgoia
d'Israel, melada e mollenga, sovada a bengala!
«Se com effeito, escrevera elle ao Ega, ella desceu
de ti até ao Damaso, tens só a fazer como se
fosse um charuto que te cahisse á lama: não o
pódes naturalmente levantar: deves deixar fumal-o
em paz ao garoto que o apanhou: enfurecer-te
com o garoto ou com o charuto, é d'imbecil.»
Mas ordinariamente, quando respondia, fallava só
[167]
ao Ega dos Olivaes, dos seus passeios com Maria,
das conversas d'ella, do encanto d'ella, da superioridade
d'ella... Ao avô não achava que dizer;
nas dez linhas que lhe destinava, descrevia o calor,
recommendava-lhe que não se fatigasse, mandava
saudades para os hospedes, e dava-lhe recados
do Manoelzinho—que elle nunca via.
Quando não tinha que escrever, estirava-se
no sofá, com um livro aberto, os olhos no ponteiro
do relogio. Á meia noite sahia, encafuado
n'um gabão d'Aveiro, e de varapau. Os seus passos
resoavam, solitarios na mudez dos campos,
com uma indefinida melancolia de segredo e de
culpa...
N'uma d'essas noites, de grande calor, Carlos
cançado adormeceu no sofá: e só despertou, em
sobresalto, quando o relogio na parede dava tristemente
duas horas. Que desespero! Ahi ficava perdida
a sua noite de amor! E Maria decerto á espera,
angustiada, imaginando desastres!... Agarrou o
cajado, abalou, correndo pela estrada. Depois, ao
abrir subtilmente o portão da quinta, pensou que
Maria teria adormecido:
Niniche podia ladrar: os
seus passos, entre as acacias, abafaram-se, mais
cautelosos. E de repente sentiu ao lado, sob as ramagens,
vindo do chão, d'entre a herva, um resfolgar
ardente d'homem, a que se misturavam beijos.
Parou, varado: e o seu impeto logo foi esmagar
a cacete aquelles dois animaes, enroscados na relva,
sujando brutamente o poetico retiro dos seus
[168]
amores. Uma alvura de saia moveu-se no escuro:
uma voz soluçava, desfalecida—
oh yes, oh
yes... Era a ingleza!
Oh santo Deus, era a ingleza, era miss Sarah!
Apagando os passos, atordoado, Carlos escoou-se
pelo portão, cerrou-o mansamente, foi esperar
adiante, n'um recanto do muro, sob as ramarias
d'uma faia, sumido na sombra. E tremia de indignação.
Era preciso contar immediatamente a Maria
aquelle grande
horror! Não queria que ella consentisse
um momento mais essa impura fêmea,
junto de Rosa, roçando a candidez do seu anjo...
Oh, era pavorosa uma tal hypocrisia, assim astuta e
methodica, sem se desconcertar jámais! Havia dias
apenas, vira a creatura desviar os olhos d'uma
gravura d'
Illustração, onde dois castos pastores
se beijavam n'um arvoredo bucolico! E agora rugia,
estirada na herva!
Na estrada escura, do lado do portão, brilhou
um lume de cigarro. Um homem passou, forte
e pesado, com uma manta aos hombros. Parecia
um jornaleiro. A boa miss Sarah não escolhera!
Bem lavada, toda correcta, com os seus bandós
puritanos, aceitava
um qualquer, rude e sujo,
desde que era um macho! E assim os embaíra,
mezes, com aquellas suas duas existencias, tão separadas,
tão completas! De dia virginal, severa,
córando sempre, com a Biblia no cesto da costura:
á noite a pequena adormecia, todos os seus deveres
sérios acabavam, a santa transformava-se em
[169]
cabra, chale aos hombros, e lá ia para a relva, com
qualquer!... Que bello romance para o Ega!
Voltou; tornou a abrir devagarinho o portão:
de novo subiu, amollecendo os passos, a sombria
rua d'acacias. Mas agora ia sentindo uma hesitação
em contar a Maria
aquelle horror. A seu pezar
pensava que tambem Maria o esperava, com o
leito aberto, no silencio da casa adormecida; e que
tambem elle penetrava alli, ás escondidas, como o
homem da manta... De certo era bem differente!
Toda a immensuravel differença que vai do divino
ao bestial... E todavia receava despertar os
melindrosos escrupulos de Maria, mostrando-lhe,
parallelo ao seu amor cheio de requintes e passado
entre brocados côr d'ouro, aquelle outro rude
amor, secreto e illegitimo como o d'ella, e arrastado
brutamente na relva... Era como mostrar-lhe
um reflexo da sua propria culpa, um pouco esfumada,
mais grosseira, mas parecida nos seus contornos,
lamentavelmente parecida... Não, não diria
nada. E a pequena?... Oh, nas suas relações com
Rosa a creatura continuaria a ser, como sempre, a
puritana laboriosa, grave e cheia d'ordem.
A porta envidraçada sobre o jardim tinha
ainda luz: elle atirou aos vidros uma pouca de
terra solta, depois bateu de leve. Maria appareceu,
mal embrulhada n'um roupão, juntando os
cabellos que se tinham desenrolado, e meia adormecida.
—Porque vieste tão tarde?
[170]
Carlos beijou longamente os seus bellos olhos
pesados, quasi cerrados.
—Adormeci estupidamente, a lêr... Depois,
quando entrei pareceu-me ouvir passos na quinta,
andei a rebuscar... Era imaginação, tudo deserto.
—Precisavamos ter um cão de fila, murmurou
ella, espreguiçando-se.
Sentada á beira do leito, com os braços cahidos
e adormentados, sorria da sua preguiça.
—Estás tão fatigada, filha! queres tu que me
vá embora ?...
Ella puxou-o para o seu seio perfumado e
quente.
—Je veux que tu m'aimes beaucoup, beaucoup,
et longtemps...
Ao outro dia Carlos não fôra a Lisboa, e appareceu
cedo na
Toca. Melanie, que andava espanejando
o kiosque, disse-lhe que Madame, um
pouco cançada, tinha justamente tomado o seu chocolate
na cama. Elle entrou no salão: defronte da
janella aberta, sentada no banco de cortiça, miss
Sarah costurava, á sombra das arvores.
—
Good morning, disse-lhe Carlos, chegando-se
ao peitoril, todo curioso de a observar.
—
Good morning, sir, respondeu ella com o
seu ar modesto e tímido.
Carlos fallou do calor. Miss Sarah já áquella
hora o achava intoleravel. Felizmente a vista do
rio, lá em baixo, refrescava...
Sobretudo a noite passada, insistiu Carlos accendendo
[171]
a cigarrette, fôra tão abafada! Elle mal
pudera dormir. E ella?
Oh, ella dormira d'um somno só. Carlos quiz
saber se tivera bonitos sonhos.
—
Oh yes, sir.
Oh yes! mas agora um yes pudico, sem gemidos,
com os olhos baixos. E tão correcta, tão pregada,
fresca como se nunca tivesse servido!... Positivamente
era extraordinaria! E Carlos, torcendo
o bigode, pensava que ella devia ter um seiosinho
bem alvo e bem redondinho!
Assim ia passando o verão nos Olivaes. No começo
de setembro, Carlos soube por uma carta do
avô que Craft devia chegar a Lisboa, n'um sabbado,
ao Hotel Central: e correu lá cedo, logo n'essa
manhã, a ouvir as novidades de Santa Olavia.
Achou Craft já a pé, diante do espelho, fazendo a
barba. A um canto do sofá, Eusebiosinho, que
viera na vespera á noite de Cintra e estava tambem
no Hotel, limpava as unhas com um canivete,
em silencio, coberto de negro.
Craft vinha encantado com Santa Olavia. Nem
comprehendia como Affonso, beirão forte, tolerava
a rua de S. Francisco, e o quintalejo abafado do
Ramalhete. Tinha-se passado régiamente! O avô,
cheio de saude, d'uma hospitalidade que lembrava
Abrahão e a Biblia. O Sequeira optimo comendo
[172]
tanto que ficava inutil depois de jantar, a estoirar
e a gemer no fundo d'uma poltrona. Lá conhecera
o velho Travassos, que fallava sempre com os
olhos cheios de lagrimas do «talento do seu caro
collega Carlos.» E o marquez esplendido, com
abraços de primo a todos os fidalgotes de Lamego,
e apaixonado por uma barqueira... De resto soberbos
jantares, alguns tiros aos coelhos, uma romaria,
danças de raparigas no adro, guitarradas,
esfolhadas, todo o dôce idyllio portuguez...
—Mas a respeito de Santa Olavia temos a fallar
mais sériamente, disse por fim Craft, entrando
na alcova, a ensaboar a cabeça.
—E tu, perguntou então Carlos, voltando-se
para o Eusebiosinho. Tens estado em Cintra, hein?
Que se faz lá?... O Ega?
O outro ergueu-se guardando o canivete, ageitando
as lunetas.
—Lá está no Victor, muito engraçado, comprou
um burro... Lá está o Damaso tambem... Mas
esse pouco se vê, não larga os Cohens... Emfim
tem-se passado menos mal, com bastante calor...
—Tu estavas outra vez com a mesma prostituta,
a Lola?
Eusebiosinho fez-se escarlate. Credo! estava
no Victor, muito sério! O Palma é que lá tinha
apparecido com uma rapariga portugueza... Tinha
agora um jornal,
A Corneta do Diabo.
—
A Corneta...?
—Sim,
do Diabo, disse o Eusebiosinho. É um jornal
[173]
de pilherias, de picuinhas... Elle já existia,
chamava-se o
Apito; mas agora passou para o
Palma; elle vae-lhe augmentar o formato, e metter-lhe
mais chalaça...
—Emfim, disse Carlos, qualquer coisa sebacea
e immunda como elle...
Craft reappareceu, enxugando a cabeça. E emquanto
se vestia, fallou de uma viagem que agora
o tentava, que estivera planeando em Santa Olavia.
Como já não tinha a
Toca, e a sua casa ao
pé do Porto necessitava longas obras, ia passar o
inverno ao Egypto, subindo o Nilo, em communicação
espiritual com a antiguidade Pharaonica. Depois
talvez se adiantasse até Bagdad, a vêr o Euphrates,
e os sitios de Babylonia...
—Por isso eu lhe vi alli, na mesa, exclamou
Carlos, um livro,
Ninive e Babylonia... Que diabo,
você gosta d'isso? Eu tenho horror a raças e a civilisações
defuntas... Não me interessa senão a Vida.
—É que você é um sensual, disse Craft. E a
proposito de sensualidade e de Babylonia, quer vir
você almoçar ao Bragança? Eu tenho de lá encontrar
um inglez, o meu homem das minas... Mas
havemos d'ir pela rua do Ouro, que quero trepar
um instante á caverna do meu procurador... E a
caminho, que é meio dia!
Deixaram o Eusebiosinho, em baixo na sala,
ageitando as suas lugubres lunetas negras diante
dos telegrammas. E apenas sahira o pateo, Craft
travou do braço de Carlos, e disse-lhe que as coisas
[174]
sérias a respeito de Santa Olavia—era o visivel, profundo desgosto do avô por
elle não ter lá apparecido.
—Seu avô não me disse nada, mas eu sei que elle está muitissimo magoado com você.
Não ha desculpa, são umas horas de viagem... Você sabe como elle o adora... Que diabo!
Est
modus in rebus.
—Com effeito, murmurou Carlos. Eu devia ter lá ido... Que quer você, amigo?... Emfim
acabou-se, é necessario fazer um esforço!... Talvez parta para a semana com o Ega.
—Sim, homem, dê-lhe esse alegrão... Esteja lá umas semanas...
—
Est modus in rebus. Hei de vêr se lá estou uns dias.
A caverna do procurador era defronte do Monte-Pio. Carlos esperava, havia momentos,
dando por diante das lojas uma volta lenta—quando de repente avistou Melanie, a sahir o
portão do Monte-Pio, com uma matrona gorda, de chapéo rôxo. Surprehendido, atravessou a
rua. Ella estacou como apanhada, fazendo-se toda vermelha; e nem deixou vir a pergunta;
balbuciou logo que Madame lhe déra licença para vir a Lisboa, e ella andava acompanhando
aquella amiga... Uma velha caleche, de parelha branca, estava encalhada alli, contra o
passeio. Melanie saltou para dentro, á pressa. A traquitana rodou aos solavancos para o
Terreiro do Paço.
Carlos via-a desapparecer, pasmado. E Craft,
[175]
que voltára, olhando tambem, reconheceu
no lamentavel calhambeque a caleche do
Torto, dos Olivaes, onde elle ás vezes costumava vir
«janotar a Lisboa».
—Era alguem lá da
Toca? perguntou.
Uma criada, disse Carlos, ainda espantado d'aquelle estranho embaraço de Melanie.
E mal tinham dado alguns passos, Carlos, parando, baixando a voz no rumor da rua:
—Ouça lá! O Eusebiosinho disse-lhe alguma coisa a meu respeito, Craft?
O outro confessou que Eusebiosinho, apenas lhe apparecera no quarto, rompera logo,
mascando as palavras, a informal-o da mysteriosa vida de Carlos nos Olivaes...
—Mas eu fil-o calar, acrescentou Craft, declarando-lhe que era tão pouco curioso que nem
mesmo quizera lêr nunca a
Historia Romana... Em todo o caso você deve ir a Santa Olavia.
Carlos, com effeito, logo n'essa noite fallou a Maria da visita que devia ao avô. Ella, muito
séria, aconselhou-lh'a tambem, arrependida de o ter retido assim, egoisticamente e tanto
tempo, longe dos outros que o amavam.
—Mas ouve, querido, não é por muito tempo, não?
—Por dois ou tres dias, quando muito. E naturalmente, trago até o avô. Não está lá a fazer
nada, e eu não estou para a massada de voltar lá...
[176]
Maria então lançou-lhe os braços ao pescoço, e baixo, timidamente, confessou-lhe um
grande desejo que tinha... Era vêr o Ramalhete! Queria visitar os quartos d'elle, o jardim, todos
esses recantos, onde tantas vezes elle pensara n'ella, e se desesperára, sentindo-a distante e
inaccessivel...
—Dize, queres? Mas é necessario que seja antes de vir teu avô. Queres?
—Acho um encanto! Ha só um perigo. É eu não te deixar sahir mais e ficar a devorar-te na
minha caverna.
—Prouvera a Deus!
Combinaram então que ella fosse jantar ao Ramalhete, no dia da partida de Carlos para
Santa Olavia. Á noitinha levava-o no coupé a Santa Apolonia; depois seguia para os Olivaes.
Foi no sabbado. Carlos veio muito cedo para o Ramalhete: e o seu coração batia com a
deliciosa perturbação d'um primeiro encontro, quando sentiu parar a carruagem de Maria e os
seus vestidos escuros roçarem o velludo côr de cereja que forrava a escada discreta dos seus
quartos. O beijo que trocaram, na ante-camara, teve a profunda doçura d'um primeiro beijo!
Ella foi logo ao toucador tirar o chapéo, dar um geito ao cabello. Elle não cessava de a
beijar; abraçava-a pela cinta; e com os rostos juntos sorriam para o espelho, enlevados no
brilho da sua mocidade. Depois, impaciente, curiosa, ella percorreu os quartos, miudamente,
até á alcova de banho;
[177]
leu os titulos dos livros, respirou o perfume dos frascos, abriu os
cortinados de sêda do leito... Sobre uma commoda Luiz XV havia uma salva de prata,
transbordando de retratos que Carlos se esquecera de esconder, a coronella d'hussards
d'amazona, madame Rughel decotada, outras ainda. Ella mergulhou as mãos, com um sorriso
triste, na profusão d'aquellas recordações... Carlos, rindo, pediu-lhe que não olhasse «esses
enganos do seu coração».
Porque não? dizia Maria, séria. Sabia bem que elle não descera das nuvens, puro como
um seraphim. Havia sempre photographias no passado d'um homem. De resto tinha a certeza
que nunca amára as outras como a sabia amar a ella.
—Até é uma profanação fallar em
amorquando se trata d'essas coisas d'acaso, murmurou
Carlos. São quartos de estalagem onde se dorme uma vez...
No emtanto Maria considerava longamente a photographia da coronella d'hussards.
Parecia-lhe bem linda! Quem era? Uma franceza?
—Não, de Vienna. Mulher d'um correspondente meu, homem de negocios... Gente
tranquilla, que vivia no campo...
—Ah, Viennense... Dizem que tem um grande encanto as mulheres de Vienna!
Carlos tirou-lhe a photographia da mão. Para que haviam de fallar d'outras mulheres?
Existia em todo o vasto mundo uma mulher unica, e elle tinha-a alli abraçada sobre o seu
coração.
[178]
Foram então percorrer todo o Ramalhete, até ao terraço. Ella gostou sobretudo do
escriptorio d'Affonso, com os seus damascos de camara de prelado, a sua feição severa de
paz estudiosa.
—Não sei porque, murmurou dando um olhar lento ás estantes pesadas e ao Christo na
cruz, não sei porque, mas teu avô faz-me medo!
Carlos riu. Que tonteria! O avô se a conhecesse, fazia-lhe logo a côrte rasgadamente... O
avô era um santo! E um lindo velho!
—Teve paixões?
—Não sei, talvez... Mas creio que o avô foi sempre um puritano.
Desceram ao jardim, que lhe agradou tambem, quieto e burguez, com a sua cascatasinha
chorando n'um rythmo dôce. Sentaram-se um instante sob o velho cedro, junto a uma mesa
rustica de pedra, onde estavam entalhadas letras mal distinctas e uma data antiga; o chalrar
das aves nos ramos pareceu a Maria mais dôce que o de todas as outras aves que ouvira;
depois arranjou um ramo para levar como reliquia.
Mesmo em cabello foram vêr defronte as cocheiras: o guarda-portão ficou de boné na
mão, embasbacado para aquella senhora tão linda, tão loira, a primeira que via entrar no
Ramalhete! Maria acariciou os cavallos, e fez uma festa grata e mais longa á
Tunante, que
tantas vezes levára Carlos á rua de S. Francisco. Elle via n'estas simples coisas as graças
incomparaveis d'uma esposa perfeita.
[179]
Recolheram pela escada particular de Carlos—que Maria achava «mysteriosa» com
aquelles velludos grossos côr de cereja, forrando-a como um cofre, e abafando todo o rumor de
saias. Carlos jurou que nunca alli passára outro vestido—a não ser o do Ega, uma vez,
mascarado de varina.
Depois deixou-a no quarto, um momento para ir dar ordens ao Baptista: mas quando
voltou encontrou-a a um canto do sofá, tão descahida, tão desanimada, que lhe arrebatou as
mãos, cheio d'inquietação.
—Que tens, amor? Estás doente?
Ella ergueu lentamente os olhos que brilhavam n'uma nevoa de lagrimas.
Pensar que tu vaes deixar por mim esta linda casa, o teu conforto, a tua paz, os teus
amigos... É uma tristeza, tenho remorsos!
Carlos ajoelhára ao seu lado, sorrindo dos seus escrupulos, chamando-lhe tonta,
seccando-lhe n'um beijo as lagrimas que rolavam... Considerava-se ella então valendo menos
que a cascata do jardim e alguns tapetes usados?...
—O que eu tenho pena é de te sacrificar tão pouco, minha querida Maria, quando tu
sacrificas tanto!
Ella encolheu os hombros, amargamente.
—Eu!
Passou-lhe as mãos entre os cabellos, puxou-o brandamente para o seu seio—e dizia,
baixo,
[180]
como fallando ao seu proprio coração, calmando-lhe as incertezas e as duvidas:
—Não, com effeito, nada vale no mundo senão o nosso amor! Nada mais vale! Se elle é
verdadeiro, se é profundo, tudo mais é vão, nada mais importa...
A sua voz morreu entre os beijos de Carlos, que a levava abraçada para o leito—onde
tentas vezes desesperava d'ella como d'uma deusa intangivel.
Ás cinco horas pensaram em jantar. A mesa fôra posta n'uma saleta que Carlos quizera
em tempo revestir de colxas de setim côr de perola e botão d'ouro. Mas não estava ainda
arranjada; as paredes conservavam o seu papel verde-escuro; e Carlos puzera alli ultimamente
o retrato de seu pai—uma teia banal, representando um moço pallido, de grandes olhos, com
luvas de camurça amarella e um chicote na mão.
Era Baptista que os servia, já com um fato claro de viagem. A mesa, redonda e pequena,
parecia uma cesta de flôres; o champagne gelava dentro dos baldes de prata; no aparador a
travessa d'arroz dôce tinha as iniciaes de Maria.
Aquelles lindos cuidados fizeram-na sorrir, enternecida. Depois reparou no retrato de
Pedro da Maia: e interressou-se, ficou a contemplar aquella face descórada, que o tempo fizera
livida, e onde pareciam mais tristes os grandes olhos d'arabe, negros e languidos.
[181]
—Quem é? perguntou.
—É meu pai.
Ella examinou-o mais de perto, erguendo uma vela. Não achava que Carlos se parecesse
com elle. E voltando-se muito séria, emquanto Carlos desarrolhava com veneração uma
garrafa de velho Chambertin:
—Sabes tu com quem te pareces ás vezes?... É extraordinario, mas é verdade. Pareces-te
com minha mãi!
Carlos riu, encantado d'uma parecença que os aproximava mais, e que o lisonjeava.
—Tens razão, disse ella, que a mamã era formosa... Pois é verdade, ha um não sei quê na
testa, no nariz... Mas sobretudo certos geitos, uma maneira de sorrir... Outra maneira que tu
tens de ficar assim um pouco vago, esquecido... Tenho pensado n'isto muitas vezes...
Baptista entrava com uma terrina de louça do Japão. E Carlos, alegremente, annunciou um
jantar á portugueza. Mr. Antoine, o
chef francez, fôra com o avô. Ficára a Michaela, outra
cozinheira de casa, que elle achava magnifica, e que conservava a tradição da antiga cozinha
freiratica do tempo do snr. D. João V.
—Assim, para começar, minha querida Maria, ahi tens tu um caldo de gallinha, como só se
comia em Odivellas, na cella da madre Paula, em noites de noivado mystico...
E o jantar foi encantador. Quando Baptista se
[182]
retirava, elles apertavam-se rapidamente a
mão por cima das flôres. Nunca Carlos a achára tão linda, tão perfeita: os seus olhos pareciam-
lhe irradiar uma ternura maior: na singela rosa que lhe ornava o peito via a superioridade do
seu gosto. E o mesmo desejo invadiu-os a ambos, de ficarem alli eternamente, n'aquelle quarto
de rapaz, com jantarinhos portuguezes á moda de D. João V, servidos pelo Baptista de
jaquetão.
—Estou com uma vontade de perder o comboio! disse Carlos como implorando a sua
approvação.
—Não, deves ir... é necessario não sermos egoistas... Sómente não te descuides, manda-me
todos os dias um grande telegramma... Que os telegraphos foram unicamente inventados
para quem se ama e está longe, como dizia a mamã.
Então Carlos gracejou de novo sobre a sua parecença com a mãi d'ella. E baixando-se a
remexer a garrafa de champagne dentro do gelo:
—É curioso não m'o teres dito antes... Tambem tu nunca me fallaste de tua mãi...
Um pouco de sangue roseou a face de Maria Eduarda. Oh, nunca fallára da mamã, porque
nunca viera a proposito...
—De resto não havia coisas muito interessantes a contar, acrescentou. A mamã era uma
senhora da ilha da Madeira, não tinha fortuna, casou...
—Casou em Paris?
—Não, casou na Madeira com um austriaco
[183]
que fôra lá acompanhar um irmão tisico... Era
um homem muito distincto, viu a mamã, que era lindíssima, gostaram um do outro,
et voilà...
Dissera isto sem erguer os olhos do prato, lentamente, cortando uma aza de frango.
—Mas então, exclamou Carlos, se teu pai era austriaco, meu amor, tu és tambem
austriaca... És talvez uma d'essas viennenses que tu dizes que tem um tão grande encanto...
Sim, talvez, segundo essas coisas dos codigos, era austriaca. Mas nunca conhecera o pai,
vivera sempre com a mamã, fallára sempre portuguez, considerava-se portugueza. Nunca
estivera na Austria, nem sabia mesmo allemão...
—Não tiveste irmãos?
—Sim, tive, uma irmãsinha que morreu em pequena... Mas não me lembra. Tenho em Paris
o retrato d'ella... Bem linda!
N'esse momento em baixo, na calçada, uma carruagem, a trote largo, estacou. Carlos,
surprehendido, correu á janella com o guardanapo na mão.
—É o Ega! exclamou. É aquelle velhaco que chega de Cintra!
Maria erguera-se, inquieta. E um momento, de pé, ambos se olharam, hesitando... Mas o
Ega era como um irmão de Carlos. Elle esperava só que o Ega recolhesse de Cintra para o
levar á
Toca. Melhor seria que o encontro se désse alli, natural, franco e simples...
[184]
—Baptista! gritou Carlos, sem vacillar mais. Dize ao snr. Ega que estou a jantar, que entre
para aqui.
Maria sentára-se, vermelha, dando um geito rapido aos ganchos do cabello, arranjado á
pressa, um pouco desmanchado.
A porta abriu-se,—e o Ega parou, assombrado, intimidado, de chapéo branco, de guarda-sol
branco, e com um embrulho de papel pardo na mão.
—Maria, disse Carlos, aqui tens emfim o meu grande amigo Ega.
E ao Ega disse simplesmente:
—Maria Eduarda.
Ega ia largar atarantadamente o embrulho para apertar a mão que Maria Eduarda lhe
estendia, córada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado, desfez-se; e uma provisão fresca
de queijadas de Cintra rolou, esmagando-se, sobre as flôres do tapete. Então todo o embaraço
findou através d'uma risada alegre—emquanto o Ega, desolado, abria os braços sobre as
ruinas do seu dôce.
—Tu já jantaste? perguntou Carlos.
Não, não tinha jantado. E via já alli uns ovos molles nacionaes, que o encantavam,
enfastiado como vinha da horrivel cozinha do Victor. Oh, que cozinha! Pratos lugubres,
traduzidos do francez em calão, como as comedias do Gymnasio!
—Então avança! exclamou Carlos. Depressa, Baptista!... Traze o caldo de gallinha! Oh,
ainda
[185]
temos tempo!... Tu sabes que vou hoje para Santa Olavia?
Está claro que sabia, recebera a carta d'elle, e por isso viera... Mas não podia jantar ainda,
assim coberto do pó da estrada, e com um jaquetão de bucolica...
—Dize que me guardem o caldo, Baptista! Olha, dize que me guardem tudo, que eu trago
uma fome de pastor da Arcadia!...
O Baptista servira o café. E a carruagem da senhora, que os devia levar a Santa Apolonia,
esperava já á porta com a maleta. Mas Ega agora queria conversar, affirmou que tinham
tempo, tirou o relogio. Estava parado. E elle declarou logo que no campo se regulava pelo sol,
como as flôres e como as aves...
—Fica agora em Lisboa? perguntou-lhe Maria Eduarda.
—Não, minha senhora, só o tempo de cumprir o meu dever de cidadão, subindo duas ou
tres vezes o Chiado... Depois volto para a relva. Cintra começa a ser interessante para mim,
agora que não está ninguem... Cintra, de verão, com burguezes, parece-me um idyllio com
nodoas de sebo.
Mas Baptista offerecia a Carlos a
chartreuse—dizendo que s. exc.
a não se devia demorar
se não tencionava perder o comboio, de proposito. Maria ergueu-se logo para ir dentro pôr o
chapéo. E os dois amigos, sós, ficaram um momento calados, emquanto Carlos accendia
devagar o charuto.
[186]
—Tu quanto tempo te demoras? perguntou por fim o Ega.
—Tres ou quatro dias. E tu não voltes para Cintra antes que eu chegue, precisamos
communicar... Que diabo tens tu feito lá?
O outro encolheu os hombros.
—Tenho sorvido ar puro, colhido florinhas, murmurado de vez em quando «que lindo que
isto é!» etc.
Depois, debruçado sobre a mesa, picando com um palito uma azeitona:
—De resto, nada... O Damaso lá está! Sempre com a Cohen, como te mandei dizer... Está
claro que não ha nada entre elles, aquillo é só para mim, para me irritar... É um canalha aquelle
Damaso! Eu só quero um pretexto. Esgano-o!
Deu um puxão forte aos punhos, com uma côr de cólera no rosto queimado:
—Eu, está claro, fallo-lhe, aperto-lhe a mão, chamo-lhe «amigo Damaso», etc. Mas só
quero um pretexto! É necessario aniquilar aquelle animal. É um dever de moralidade, d'aceio
publico, de gosto varrer aquella bola de lama humana!
—Quem esteve por lá mais? perguntou Carlos.
—Que te interesse?... A Gouvarinho. Mas vi-a uma só vez. Apparecia pouco, coitada, agora
que andava de luto.
—De luto?
—Por ti.
Calou-se. Maria entrava, com o véu descido, acabando
[187]
de apertar as luvas. Então Carlos,
suspirando, resignado, estendeu os braços ao Baptista para elle lhe vestir um casaco leve de
jornada. Ega ajudava, pedindo um abraço filial para Affonso, e recados para o gordo Sequeira.
Foi acompanhal-os a baixo, em cabello: e fechou elle a portinhola, promettendo a Maria
Eduarda uma visita á
Toca, apenas Carlos voltasse d'esses penhascos do Douro...
—Não vás para Cintra antes de eu voltar! gritou-lhe ainda Carlos. E a Michaela que tome
conta em ti!
—
All right, all right, dizia o Ega. Boa jornada! Criado de v. exc.
a, minha senhora... Até á
Toca!
O coupé partiu. Ega subiu ao seu quarto, onde outro criado lhe estava preparando o
banho. Na saleta deserta, entre as flôres e os restos do jantar, as velas continuavam a arder
solitarias, fazendo resaltar no painel escuro a pallidez de Pedro da Maia, e a melancolia dos
seus olhos.
No sabbado seguinte, perto das duas horas, Carlos e Ega, ainda á mesa do almoço,
acabavam os seus charutos, fallando de Santa Olavia. Carlos chegára de lá essa madrugada,
só. O avô decidira ficar entre as suas velhas arvores até ao fim do outono que ia tão luminoso e
tão macio...
[188]
Carlos fôra-o encontrar muito alegre, muito forte—apesar de ter sido obrigado, por causa
d'um toque de rheumatismo, a abandonar emfim o seu culto da agua fria. E esta macissa,
resplandecente saude do velho fôra um allivio para o coração de Carlos: parecia-lhe assim
mais facil, menos ingrata, a sua partida com Maria para Italia, em outubro. Além d'isso achára
um
truc, como elle dizia ao Ega, para realisar o supremo desejo da sua vida sem magoar o
avô, sem lhe turbar a paz da velhice. Era um
truc, simples. Consistia em partir elle só para
Madrid, no começo d'uma certa «viagem d'estudo», para que já preparára o avô em Santa
Olavia. Maria ficava na
Toca, durante um mez. Depois tomava o paquete para Bordeus: e era
ahi que Carlos se reunia com ella, a começarem essa existencia de felicidade e romance que
as flôres da Italia deviam perfumar... Na primavera elle voltava a Lisboa, deixando Maria
installada no seu ninho: e então, pouco a pouco, ia revelando ao avô aquella ligação, a que o
prendia a honra, e que o forçaria agora a viver regularmente longos mezes n'uma outra terra
que se tornára a patria do seu coração. E que havia de dizer o avô? Aceitar esse romance, a
que não veria os lados desagradaveis, esbatido assim pela distancia e pela nevoa da paixão.
Seria para Affonso uma vaga e mal sabida coisa d'amor que se passava em Italia... Poderia
lamental-a apenas por lhe levar pontualmente todos os annos o neto para
[189]
longe; e cada anno
se consolaria pensando na curta duração dos idyllios humanos. De resto Carlos contava com
essa larga benevolencia que amollece as almas mais rigidas quando apenas alguns passos as
separam do tumulo... Emfim o seu
trucparecia-lhe bom. Ega, em resumo, approvou o
truc.
Depois, mais alegremente, fallaram da installação d'esse amor. Carlos permanecia na sua
idéa romantica—um cottage á beira d'um lago. Mas Ega não approvava o lago. Ter todos os dias
diante dos olhos uma agua sempre mansa e sempre azul, parecia-lhe perigoso para a
durabilidade da paixão. Na quietação continua d'uma paizagem igual, dois amantes solitarios,
dizia elle, não sendo botanicos nem pescando á linha, vêem-se forçados a viver
exclusivamente do desejo um do outro, e a tirar d'ahi todas as suas idéas, sensações,
occupações, gracejos e silencios... E, que diabo, o mais forte sentimento não póde dar para
tanto! Dois amantes, cuja unica profissão é amarem-se, deviam procurar uma cidade, uma
vasta cidade, tumultuosa e creadora, onde o homem tenha durante o dia os clubs, o cavaco, os
museus, as idéas, o sorriso d'outras mulheres—e a mulher tenha as ruas, as compras, os
theatros, a attenção d'outros homens; de sorte que á noite, quando se reunam, não tendo
passado o infindavel dia a observarem-se um no outro e a si proprios, trazendo cada um a
vibração da vida forte que atravessaram—achem um encanto
[190]
novo e verdadeiro no conchego
da sua solidão, e um sabor sempre renovado na repetição dos seus beijos...
—Eu, continuava Ega, erguendo-se, se levasse para longe uma mulher, não era para um
lago, nem para a Suissa, nem para os montes da Sicilia; era para Paris, para o boulevard dos
Italianos, alli á esquina do Vaudeville, com janellas deitando para a grande vida, a um passo do
Figaro, do Louvre, da Philosophia e da
blague... Aqui tens tu a minha doutrina!... E ahi temos
nós o amigo Baptista com o correio.
Não era o correio. Era apenas um bilhete que o Baptista trazia n'uma salva: e vinha tão
perturbado que annunciou «um sujeito, alli fóra, na antecamara, n'uma carruagem, á espera...»
Carlos olhou o bilhete, empallideceu terrivelmente. E ficou a reviral-o, lento e como
atordoado, entre os dedos que tremiam... Depois, em silencio, atirou-o ao Ega por cima da
mesa.
—Caramba! murmurou Ega, assombrado.
Era Castro Gomes!
Bruscamente Carlos erguera-se, decidido.
—Manda entrar... Para o salão grande!
Baptista apontou para o jaquetão de flanella com que Carlos tinha almoçado, e perguntou
baixo se s. exc.
a queria uma sobrecasaca.
—Traze.
Sós, Ega e Carlos olharam-se um instante, anciosamente.
[191]
—Não é um desafio, está claro, balbuciou Ega.
Carlos não respondeu. Examinava outra vez o bilhete: o homem chamava-se Joaquim
Alvares de Castro Gomes: por baixo tinha escripto a lapis «Hotel Bragança»... Baptista voltára
com a sobrecasaca: e Carlos, abotoando-a devagar, sahiu sem outra mais palavra ao Ega, que
ficára de pé junto da mesa, limpando estupidamente as mãos ao guardanapo.
No salão nobre, forrado de brocados côr de musgo d'outono, Castro Gomes examinava
curiosamente, com um joelho apoiado á borda do sofá, a esplendida tela de Constable, o
retrato da condessa de Runa, bella e forte no seu vestido de velludo escarlate de caçadora
ingleza. Ao rumor dos passos de Carlos sobre o tapete, voltou-se, de chapéo branco na mão,
sorrindo, pedindo perdão de estar assim a pasmar familiarmente para aquelle soberbo
Constable... Com um gesto rigido, Carlos, muito pallido, indicou-lhe o sofá. Saudando e risonho
Castro Gomes sentou-se vagarosamente. No peito da sobrecasaca muito justa trazia um botão
de rosas, os seus sapatos de verniz resplandeciam sob as polainas de linho; no rosto chupado,
queimado, a barba negra, terminava em bico; os cabellos rareavam-lhe na risca; e mesmo a
sorrir tinha um ar de seccura, de fadiga.
—Eu possuo tambem em Paris um Constable muito
chic, disse elle, sem embaraço, n'um
tom arrastado,
[192]
cheio de
rr, que o
sutaque brazileiro adocicava. Mas é apenas uma pequena
paizagem, com duas figurinhas. É um pintor que não me diverte, a dizer a verdade... Todavia
dá muito tom a uma galeria. É necessario tel-o.
Carlos, defronte n'uma cadeira, com os punhos fortemente fechados sobre os joelhos,
conservava a immobilidade d'um marmore. E, perante aquelle modo affavel, uma idéa ia-o
atravessando, lacerante, angustiosa, pondo-lhe já nos olhos largos que não tirava de sobre o
outro, uma irreprimivel chamma de cólera. Carlos Gomes decerto
não sabia nada! Chegára,
desembarcára, correra aos Olivaes, dormira nos Olivaes! Era o marido, era novo, tivera-a já
nos braços—a ella! E agora alli estava, tranquillo, de flôr ao peito, fallando de Constable! O
unico desejo de Carlos, n'esse instante, era que aquelle homem o insultasse.
No emtanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de se apresentar assim, sem o
conhecer, sem ao menos ter pedido por um bilhete uma entrevista...
—O motivo porém que me traz é tão urgente, que cheguei esta manhã ás dez horas do Rio
de Janeiro, ou antes do Lazareto, e estou aqui!... E esta mesma noite, se puder, parto para
Madrid.
Fez-se um allivio infinito no coração de Carlos. Ainda não vira então Maria Eduarda,
aquelles seccos labios não a tinham tocado! E sahiu emfim
[193]
da sua rigidez de marmore, teve
um movimento attento, aproximando de leve a cadeira.
Castro Gomes no emtanto, tendo pousado o chapéo, tirára do bolso interior da
sobrecasaca uma carteira com um largo monogramma de ouro; e, vagaroso, procurava entre
os papeis uma carta... Depois, com ella na mão, muito tranquillamente:
—Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escripto anonymo... Mas não creia v.
exc.
a que foi elle que me levou a atravessar á pressa o Atlantico. Seria o maior dos ridiculos...
E desejo tambem affirmar-lhe que todo o conteudo d'elle me deixou perfeitamente indifferente...
Aqui o tem. Quer v. exc.
a lêl-o, ou quer que eu leia?
Carlos murmurou com um esforço:
—Leia v. exc.
a
Castro Gomes desdobrou o papel, e revirou-o um instante entre os dedos.
—Como v. exc.
a vê, é a carta anonyma em todo o seu horror: papel de mercearia,
pautadinho de azul; calligraphia reles; tinta reles; cheiro reles. Um documento odioso. E aqui
está como elle se exprime: «Um homem «que teve a honra de apertar a mão de v. exc.
a» Eu
dispensava a honra... «que teve a hora de apertar a mão de v. exc.
a e d'apreciar o seu
cavalheirismo, julga dever prevenil-o que sua mulher é, á vista de toda a Lisboa, a amante
d'um rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da Maia, que vive n'uma casa ás Janelas
Verdes, chamada o Ramalhete. Este heroe,
[194]
que é muito rico, comprou expressamente uma
quinta nos Olivaes, onde installou a mulher de v. exc.
a e onde a vai vêr todos os dias, ficando
ás vezes, com escandalo da visinhança, até de madrugada. Assim o nome honrado de v.
exc.
a anda pelas lamas da capital.» É tudo o que diz a carta; e eu só devo acrescentar, porque
o sei, que tudo quanto ella diz é incontestavelmente exacto... O snr. Carlos da Maia é pois
publicamente, com conhecimento de toda a Lisboa, o amante d'essa senhora.
Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braços, n'uma aceitação inteira de
todas as responsabilidades:
—Não tenho então nada a dizer a v. exc.
a senão que estou ás suas ordens!...
Uma fugitiva onda de sangue avivou a pallidez morena de Castro Gomes. Dobrou a carta,
guardou-a com todo o vagar na carteira. Depois, sorrindo friamente:
—Perdão... O snr. Carlos da Maia sabe, tão bem como eu, que se isto tivesse de ter uma
solução, violenta, eu não viria aqui pessoalmente, a sua casa, lêr-lhe este papel... A coisa é
inteiramente outra.
Carlos recahira na cadeira, assombrado. E agora a lentidão adocicada d'aquella voz ia-se-lhe
tornando intoleravel. Um confuso terror do que viria d'esses labios, que sorriam com uma
pallidez impertinente, quasi fazia estalar o seu pobre coração. E era um
[195]
desejo brutal de lhe
gritar que acabasse, que o matasse, ou que sahisse d'aquella sala, onde a sua presença era
uma inutilidade ou uma torpeza!...
O outro passou os dedos no bigode, e proseguiu, devagar, arranjando as suas palavras
com cuidado e com precisão:
—O meu caso é este, snr. Carlos da Maia. Ha pessoas em Lisboa que me não conhecem
decerto, mas que sabem a esta hora que existe algures, em Paris, no Brazil ou no inferno, um
certo Castro Gomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher d'esse Castro Gomes tem em
Lisboa um amante. Isto é desagradavel, sobretudo por ser falso. E v. exc.
a comprehende que
eu não devo continuar a arrastar por mais tempo a fama de
marido infeliz, visto que a não
mereço, e que a não posso
legalmenteter... É por isso que aqui venho, muito francamente, de
gentleman para
gentleman, dizer-lhe, como tenho tenção de dizer a outros, que aquella
senhora não é minha mulher.
Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlos da Maia. Mas elle
conservava uma face muda, impenetravel, onde apenas os olhos brilhavam angustiosamente
na lividez que a cobrira. Por fim, com um esforço, baixou de leve a cabeça, como acolhendo
placidamente aquella revelação, que tornava outra qualquer palavra entre elles desnecessaria
e vã.
Mas Castro Gomes encolhera de leve os hombros,
[196]
com uma languida resignação, como
quem attribue tudo á malicia dos Destinos.
—São as ridiculas scenas da vida... O snr. Carlos da Maia está d'ahi a vêr as coisas. É a
velha, a classica historia... Ha tres annos que eu vivo com essa senhora; quando tive o inverno
passado d'ir ao Brazil, trouxe-a a Lisboa para não vir sósinho. Fômos para o hotel Central. V.
exc.
a comprehende perfeitamente que eu não fui fazer confidencias ao gerente do
estabelecimento. Aquella senhora vinha commigo, dormia commigo, portanto, para todos os
effeitos do hotel, era minha mulher. Como mulher de Castro Gomes ficou no Central; como
mulher de Castro Gomes alugou depois uma casa na rua de S. Francisco; como mulher de
Castro Gomes tomou emfim um amante... Deu-se sempre como mulher de Castro Gomes,
mesmo nas circumstancias mais particularmente desagradaveis para Castro Gomes... E, meu
Deus! não podemos realmente condemnal-a muito... Achava-se por acaso revestida d'uma
excellente posição social e d'um nome puro, seria mais que humano que o seu amor da
verdade a levasse, apenas conhecia alguem, a declarar que posição e nome eram de
emprestimo e ella era apenas «Fulana de tal, amigada...» De resto, sejamos justos, ella não
era moralmente obrigada a dar semelhantes explicações ao tendeiro que lhe vendia a
manteiga, ou á matrona que lhe alugava a casa: nem mesmo, penso eu, a ninguem, a não ser
a um pai que lhe quizesse
[197]
apresentar sua filha, sahida do convento... Demais a mais sou eu
que tenho um pouco a culpa; muitas vezes, em coisas relativamente delicadas lhe deixei usar o
meu nome. Foi, por exemplo, com o nome de Castro Gomes que ella tomou a governante
ingleza. As inglezas são tão exigentes!... Aquella, sobretudo, uma rapariga tão séria... Emfim
tudo isso passou... O que importa agora é que eu lhe retiro solemnemente o nome que lhe
emprestára; e ella fica apenas com o seu, que é Madame Mac-Gren.
Carlos ergueu-se, livido. E com as mãos fincadas nas costas da cadeira tão fortemente,
que quasi lhe esgaçava o estofo:
—Mais nada, creio eu?
Castro Gomes mordeu de leve os beiços perante este remate brutal que o despediu.
—Mais nada, disse elle tomando o chapéo e levantando-se muito vagarosamente. Devo
apenas acrescentar, para evitar a v. exc.
a suspeitas injustas, que aquella senhora não é uma
menina que eu tivesse seduzido, e a quem recuse uma reparação. A pequerruchinha que alli
anda não é minha filha... Eu conheço a mãi sómente ha tres annos... Vinha dos braços d'um
qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem injuria, que era uma mulher que eu
pagava.
Completára com esta palavra a humilhação do outro. Estava deliciosamente desforrado.
Carlos, mudo, abrira o reposteiro da sala, n'uma sacudidella
[198]
brusca. E, diante d'esta nova
rudeza que revelava só mortificação, Castro Gomes foi perfeito: saudou, sorriu, murmurou:
—Parto esta noite mesmo para Madrid, e levo o pezar de ter feito o conhecimento de v.
exc.
a por um motivo tão desagradavel... Tão desagradavel para mim.
Os seus passos desafogados e leves perderam-se na ante-camara, entre as tapeçarias.
Depois em baixo uma portinhola bateu, uma carruagem rodou na calçada...
Carlos ficára cahido n'uma cadeira, junto da porta, com a cabeça entre as mãos. E de
todas aquellas palavras de Castro Gomes, que ainda lhe resoavam em redor, adocicadas e
lentas, só lhe restava o sentimento atordoado de uma coisa muito bella, resplandecendo muito
alto, e que cahia de repente, se fazia em pedaços na lama, salpicando-o todo de nodoas
intoleraveis... Não soffria: era simplesmente um assombro de todo o seu sêr perante este fim
immundo d'um sonho divino... Unira a sua alma arrebatadamente a outra alma nobre e perfeita,
longe nas alturas, entre nuvens d'ouro; de repente uma voz passava, cheia de
rr; as duas
almas rolavam, batiam n'um charco; e elle achava-se tendo nos braços uma mulher que não
conhecia, e que se chamava Mac-Gren!
Mac-Gren! era a Mac-Gren!
Ergueu-se, com os punhos fechados; e veio-lhe uma revolta furiosa de todo o seu orgulho
contra
[199]
essa ingenuidade que o trouxera mezes timido, tremulo, ancioso, seguindo á maneira
d'uma estrella aquella mulher, que qualquer em Paris, com mil francos no bolso, poderia ter
sobre um sofá, facil e núa! Era horrivel! E recordava agora, afogueado de vergonha, a emoção
religiosa com que entrava na sala de reps vermelho da rua de S. Francisco: o encanto
enternecido com que via aquellas mãos, que elle julgava as mais castas da terra, puxarem os
fios de lã no bordado, n'um constante trabalho de mãi laboriosa e recolhida; a veneração
espiritual com que se afastava da orla do seu vestido, igual para elle á tunica d'uma Virgem
cujas pregas rigidas nem a mais rude bestialidade ousaria desmanchar de leve! Oh imbecil,
imbecil!... E todo esse tempo ella sorria comsigo d'aquella simpleza de provinciano do Douro!
Oh! tinha vergonha agora das flôres apaixonadas que lhe trouxera! Tinha vergonha das
«excellencias» que lhe déra!
E seria tão facil, desde o primeiro dia no Aterro, ter percebido que aquella deusa, descida
das nuvens, estava amigada com um brazileiro! Mas quê! a sua paixão absurda de romantico
puzera-lhe logo, entre os olhos e as coisas flagrantes e reveladoras, uma d'essas nevoas
douradas que dão ás montanhas mais rugosas e negras um brilho polido de pedra preciosa!
Porque escolhera ella precisamente para seu medico, na sua casa e na sua intimidade, o
homem que na rua a fitára com um
[200]
fulgor de desejo na face? Porque é que nas suas longas
conversas, nas manhãs da rua de S. Francisco, não fallára jámais de Paris, dos seus amigos e
das coisas da sua casa? Porque é que ao fim de dois mezes, sem preparação, sem todas
essas progressivas evidencias do amor que cresce e desabrocha como uma flôr, se lhe
abandonára de chofre, toda prompta, apenas elle lhe disse o primeiro «amo-te»?... Porque lhe
aceitára uma casa já mobilada, com a facilidade com que lhe aceitava os ramos? E outras
coisas ainda, pequeninas, mas que não teriam escapado ao mais simples: joias brutaes, d'um
luxo grosseiro de
cocotte: o livro da
Explicação de sonhos, á cabeceira da cama; a sua
familiaridade com Melanie... E agora até o ardor dos seus beijos lhe parecia vir menos da
sinceridade da paixão—que da sciencia da voluptuosidade!... Mas tudo acabára,
providencialmente! A mulher que elle amára e as suas seducções esvaíam-se de repente no ar
como um sonho, radiante e impuro, de que aquelle brazileiro o viera acordar por caridade! Esta
mulher era apenas a Mac-Gren... O seu amor fôra, desde que a vira, como o proprio sangue
das suas veias; e escoava-se agora todo através da ferida incuravel e que nunca mais fecharia,
feita no seu orgulho!
Ega appareceu á porta do salão, ainda pallido:
—Então?
Toda a cólera de Carlos fez explosão:
[201]
—Extraordinario, Ega, extraordinario! A coisa mais abjecta, a coisa mais immunda!
—O homem pediu-te dinheiro?
—Peor!
E, passeando arrebatadamente, Carlos desabafou, contou tudo, sem reticencias, com as
mesmas palavras cruas do outro,—que assim repetidas e avivadas pelos seus labios, lhe
descobriam motivos novos de humilhação e de nojo.
—Já por acaso sucedeu a alguem coisa mais horrivel? exclamou por fim, cruzando
violentamente os braços diante do Ega, que se abatera no sofá, assombrado. Pódes tu
conceber um caso mais sordido? E tambem mais burlesco? É para estalar o coração. E é para
rebentar a rir. Estupendo! Ahi, n'esse sofá, ahi onde tu estás, o homemzinho, muito amavel, de
flôr ao peito, a dizer: «Olhe que aquella creatura não é minha mulher, é uma creatura que eu
pago...» Comprehendes isto bem! Aquelle sujeito paga-a... Quanto é o beijo? Cem francos. Ahi
estão cem francos... É de morrer!
E recomeçou no seu passeio, desvairado, desabafando mais, recontando tudo, sempre
com as palavras do Castro Gomes, que elle deformava ainda n'uma brutalidade maior...
—Que te parece, Ega? Dize lá. Que fazias tu? É horrivel, heim?
Ega, que limpava pensativamente o vidro do monoculo, hesitou, terminou por dizer que,
considerando
[202]
as coisas com superioridade, como homens do seu tempo e «do seu mundo»,
ellas não offereciam nem motivos de cólera, nem motivos de dôr...
—Então não comprehendes nada! gritou Carlos, não percebes o meu caso!
Sim, sim, Ega comprehendia claramente que era horrivel para um homem, no momento em
que ia ligar com adoração o seu destino ao d'uma mulher, saber que outros a tinham tido a
tanto por noite... Mas isso mesmo simplificava e amenisava as coisas. O que fôra um drama
complicado tornava-se uma distracção bonançosa. Ficava Carlos, desde logo, alliviado do
remorso de ter desorganisado uma familia: já não tinha de se exilar, a esconder o seu erro,
n'um buraco florido da Italia; já o não prendia a honra para sempre a uma mulher a quem talvez
não o prenderia para sempre o amor. Tudo isto, que diabo! eram vantagens.
—E a dignidade d'ella! exclamou Carlos.
Sim, mas a diminuição de dignidade e pureza não era na verdade grande, porque antes da
visita de Castro Gomes já ella era uma mulher que foge do seu marido—o que, sem mesmo
usar termos austeros, nem é muito puro nem muito digno... Decerto, tudo isso era uma
humilhação irritante—não superior todavia á d'um homem que tem uma
Madona que contempla
com religião, suppondo-a de Raphael, e que descobre um dia que a tela divina foi fabricada na
Bahia por um sujeito chamado Castro Gomes! Mas o resultado intimo e
[203]
social parecia-lhe ser
este: Carlos até ahi tivera uma bella amante com inconvenientes, e agora tinha sem
inconvenientes uma bella amante...
—O que tu deves fazer, meu caro Carlos...
—O que eu vou fazer é escrever-lhe uma carta, remettendo-lhe o preço de dois mezes que
dormi com ella...
—Brutalidade romantica!... Isso já vem na
Dama das Camelias... Sobretudo é não vêr com
boa philosophia as
nuances.
O outro atalhou, impaciente:
—Bem, Ega, não fallemos mais n'isso... Eu estou horrivelmente nervoso!... Até logo. Tu
jantas em casa, não é verdade? Bem, até logo.
Sahia atirando a porta, quando Ega, agora tranquillo, disse, erguendo-se muito lentamente
do sofá:
—O homemzinho foi para lá.
Carlos voltou-se, com os olhos chammejantes:
—Foi para os Olivaes? Foi ter com ella?
Sim, pelo menos mandára a tipoia á quinta do Craft. Ega, para conhecer esse snr. Castro
Gomes, fôra metter-se no cubiculo do guarda-portão. E vira-o descer, accender um charuto...
Era com effeito um d'esses
rastaquouèros que, n'esse infeliz Paris que tudo tolera, veem ao
Café de la Paix ás duas horas para tomar a sua groseille, tesos e embrutecidos... E fôra o
guarda-portão que lhe dissera que o sujeito parecia muito alegre e mandára o cocheiro bater
para os Olivaes...
[204]
Carlos parecia aniquilado:
—Tudo isso é nojento!... No fim talvez até se entendam ambos... Estou como tu dizias aqui
há tempos: «Cahiu-me a alma a uma latrina, preciso um banho por dentro!»
Ega murmurou melancolicamente:
—Essa necessidade de banhos moraes está-se tornando com effeito tão frequente!... Devia
haver na cidade um estabelecimento para elles.
Carlos, no seu quarto, passeava diante da mesa onde a folha branca de papel, em que ia
escrever a Maria Eduarda, já tinha a data d'esse dia, depois—
Minha senhora, n'uma letra que
elle se esforçára por traçar firme e serena:—e não achava outra palavra. Estava bem decidido
a mandar-lhe um cheque de duzentas libras, paga esplendidamente ultrajante das semanas
que passára no seu leito. Mas queria juntar duas linhas regeladas, impassiveis, que a ferissem
mais que o dinheiro: não encontrava senão phrases de grande cólera, revelando um grande
amor.
Olhava a folha branca: e a banal expressão
Minha senhora dava-lhe uma saudade
dilacerante por aquella a quem na vespera ainda dizia «
minha adorada», pela mulher que se
não chamava ainda Mac-Gren, que era perfeita, e que uma paixão indomavel, superior á razão,
entontecera e vencera.
[205]
E o seu amor por essa Maria Eduarda, nobre e amante, que se
transformára na Mac-Gren, amigada e falsa, era agora maior infinitamente, desesperado por
ser irrealisavel—como o que se tem por uma morta e que palpita mais ardente junto da
frialdade da cova. Oh! se ella pudesse resurgir outra vez, limpa, clara, do lodo em que
afundára, outra vez Maria Eduarda, com o seu casto bordado!... De que amor mais delicado a
cercaria, para a compensar das affeições domesticas que ella deixasse de merecer! Que
veneração maior lhe consagraria—para supprir o respeito que o mundo superficial e affectado
lhe retirasse! E ella tinha tudo para reter amor e respeito—tinha a belleza, a graça, a
intelligencia, a alegria, a maternidade, a bondade, um incomparavel gosto... E com todas estas
qualidades dôces e fortes—era apenas uma intrujona!
Mas porque? porque? Porque entrára ella n'esta longa fraude, tramada dia a dia, mentindo
em tudo, desde o pudor que fingia até ao nome que usava!
Apertava a cabeça entre as mãos, achava a vida intoleravel. Se ella mentia—onde havia
então a verdade? Se ella o trahia assim, com aquelles olhos claros, o universo podia bem ser
todo uma immensa traição muda. Punha-se um mólho de rosas n'um vaso, exhalava-se d'elle a
peste! Caminhava-se para uma relva fresca, ella escondia um lamaçal! E para que, para que
mentira ella? Se,
[206]
desde o primeiro dia em que o vira, tremulo e rendido, a contemplar o seu
bordado como se contempla uma acção de santidade—lhe tivesse dito que não era esposa do
snr. Castro Gomes, mas só amante do snr. Castro Gomes—teria a sua paixão sido menos viva,
menos profunda? Não era a estola do padre que dava belleza ao seu corpo e valor ás suas
caricias... Para que fôra então essa mentira tenebrosa e descarada—que lhe fazia suppôr
agora que eram imposturas os seus mesmos beijos, imposturas os seus mesmos suspiros!... E
com este longo embuste o levava a expatriar-se, dando a sua vida inteira por um corpo por que
outros davam apenas um punhado de libras! E por esta mulher, tarifada ás horas como as
caleches da Companhia, elle ia amarguarar a velhice do avô, estragar irreparavelmente o seu
destino, cortar a sua livre acção de homem!
Mas porque? Porque fôra esta farça banal, arrastada por todos os palcos de opera comica,
da
cocotte que se finge senhora? Porque o fizera ella, com aquelle fallar honesto, o puro perfil
e a doçura de mãi? Por interesse? Não. Castro Gomes era mais rico do que elle, mais
largamente lhe podia satisfazer o appetite mundano de toilettes, de carruagens... Sentia ella
que Castro Gomes a ia abandonar, e queria ter ao lado aberta e prompta outra bolsa rica?
Então mais simples teria sido dizer-lhe: «eu sou livre, gósto de ti, toma-me livremente, como eu
me dou.» Não! Havia alli alguma coisa
[207]
secreta, tortuosa, impenetravel... O que daria por a
conhecer!
E então pouco a pouco foi surgindo n'elle o desejo de ir aos Olivaes... Sim, não lhe
bastaria desforrar-se arrogantemente, atirando-lhe ao regaço um cheque embrulhado n'uma
insolencia! O que precisava, para sua plena tranquillidade, era arrancar do fundo d'aquella
turva alma o segredo d'aquella torpe farça... Só isso amansaria o seu incomparavel tormento.
Queria entrar outra vez na
Tóca, vêr como era aquella outra mulher que se chamava Mac-Gren,
e ouvir as suas palavras. Oh! iria sem violencia, sem recriminações, muito calmo, sorrindo! Só
para que ella lhe dissesse qual fôra a razão d'aquella mentira tão laboriosa, tão vã... Só para
lhe perguntar serenamente: «Minha rica senhora para quer foi toda esta intrujice?» E depois
vêl-a chorar... Sim, tinha esta anciedade cheia d'amor de a vêr chorar. A agonia que elle sentira
no salão côr de musgo do outono, emquanto o outro arrastava os
rr, queria vêl-a repetida
n'esse seio, onde elle até ahi dormira tão dôcemente, esquecido de tudo, e que era bello, tão
divinamente bello!...
Bruscamente, decidido, deu um puxão á campainha. Baptista appareceu todo abotoado na
sua sobrecasaca, com um ar resoluto, como armado e prompto a ser util n'aquella crise que
adivinhava...
—Baptista, corre ao hotel Central e pergunta se já entrou o snr. Castro Gomes!... Não,
escuta...
[208]
Põe-te á porta do Central, e espera até que entre aquelle sujeito que aqui esteve...
Não, é melhor perguntar!... Emfim, certifica-te de que o sujeito ou voltou ou está no hotel. E
apenas estejas bem certo d'isso, volta aqui, á desfilada, n'uma tipoia... Um batedor seguro, que
é para me levar depois aos Olivaes!...
Immediatamente, dada esta ordem, serenou. Era já um allivio immenso não ter de escrever
a carta, e achar palavras acerbas que a deviam dilacerar. Rasgou o papel devagar. Depois fez
o cheque de duzentas libras, ao
portador. Elle mesmo lh'o levaria... Oh, decerto, não lh'o
atirava romanticamente ao regaço... Deixal-o-hia sobre uma mesa, sobrescriptado a Madame
Mac-Gren... E de repente sentiu uma compaixão por ella. Via-a já, abrindo o enveloppe com
duas grandes lagrimas, lentas, caladas, a rolarem-lhe na face... E os seus proprios olhos se
humedeceram.
N'esse momento Ega, de fóra, perguntou se era importuno.
—Entra! gritou.
E continuou passeando, calado, com as mãos nos bolsos: o outro, em silencio tambem, foi
encostar-se á janella sobre o jardim.
—Preciso escrever ao avô a dizer-lhe que cheguei, murmurou Carlos por fim, parando junto
da mesa.
—Dá-lhe recados meus.
Carlos sentára-se, tomára languidamente a penna:
[209]
mas bem depressa a arremessou:
cruzou as mãos por detraz da cabeça no espaldar da cadeira, cerrou os olhos, como exhausto.
—Sabes uma coisa que me parece certa? disse de repente o Ega da janella. Quem
escreveu a carta anonyma ao Castro Gomes foi o Damaso!
Carlos olhou para elle:
—Achas?... Sim, talvez... Com effeito quem havia de ser?
—Não foi mais ninguem, menino. foi o Damaso!
Carlos então recordou o que lhe contára o Taveira—as allusões mysteriosas do Damaso a
um escandalo que se estava armando, uma bala que elle devia receber na cabeça... O
Damaso, portanto, tinha como certa a vinda do brazileiro, depois um duello...
—É necessario esmagar esse infame! exclamou Ega, subitamente furioso. Não ha
segurança, não ha paz na nossa vida emquanto esse bandido viver!...
Carlos não respondeu. E o outro proseguia, transtornado, já todo pallido, deixando
transbordar odios cada dia accumulados:
—Eu não o mato porque não tenho um pretexto!... Se tivesse um pretexto, uma insolencia
d'elle, um olhar atrevido, era meu, esborrachava-o!... Mas tu precisas fazer alguma coisa, isto
não póde ficar assim! Não póde! É necessario sangue... Vê tu que infamia, uma carta
anonyma!... Temos a nossa paz, a nossa felicidade, tudo exposto
[210]
constantemente aos ataques
do snr. Damaso. Não póde ser. Eu o que tenho pena é de não ter um pretexto! Mas tenl-o tu,
aproveita, e esmaga-o!
Carlos encolheu vagamente os hombros:
—Merecia chicotadas, com effeito... Mas elle realmente só tem sido velhaco commigo por
causa das minhas relações com essa senhora; e como isso é um caso acabado, tudo o que se
prende com elle finda tambem.
Parce sepultis... E no fim era elle que tinha razão, quando dizia
que ella era uma intrujona...
Atirou uma punhada á mesa, ergueu-se, e com um sorriso amargo, n'um tedio infinito de
tudo:
—Era elle, era o snr. Damaso Salcede que tinha razão!...
Toda a sua cólera revivera, mais aspera, a esta idéa. Olhou o relogio. Tinha pressa de a
vêr, tinha pressa de a injuriar!...
—Escreveste-lhe? perguntou o Ega.
—Não, vou lá eu mesmo.
Ega pareceu espantado. Depois recomeçou a passear, calado, com os olhos no tapete.
Ia escurecendo quando Baptista voltou. Vira o snr. Castro Gomes apear-se no hotel e
mandar descer as suas bagagens:—e a tipoia, para levar o menino aos Olivaes, esperava em
baixo.
—Bem, adeus! disse Carlos procurando atarantadamente um par de luvas.
—Não jantas?
—Não.
[211]
D'ahi a pouco rodava pela estrada dos Olivaes. Já se accendera o gaz. E inquieto, no
estreito assento, accendendo nervosamente
cigarettes que não fumava, soffria já a
perturbação d'aquelle encontro difficil e doloroso... Nem sabia mesmo como a havia de tratar,
se por «minha senhora», se por «minha boa amiga», com uma superior indifferença. E ao
mesmo tempo sentia por ella uma compaixão indefinida, que o amollecia. Diante d'estes seus
modos regelados, via-a já toda pallida, a tremer, com os olhos cheios d'agua. E estas lagrimas
que appetecera, agora que estava tão perto de as vêr correr, enchiam-no só de commoção e
de dó... Durante um momento mesmo pensou em retroceder. Por fim seria muito mais digno
escrever-lhe duas linhas altivas, sacudindo-a de si para sempre e seccamente! Poderia não lhe
mandar o cheque,—affronta brutal d'homem rico. Apesar d'embusteira era mulher, cheia de
nervos, cheia de phantasia, e amára-o talvez com desinteresse... Mas uma carta era mais
digno. E agora acudiam-lhe as palavras que lhe deveria ter dirigido, incisivas e precisas. Sim,
devia-lhe ter dito—que se estava prompto a dar a sua vida a uma mulher que se lhe
abandonára
por paixão, estava decidido a não sacrificar nem os seus vagares a uma mulher
que lhe cedera
por profissão. Era mais simples, era terminante... E depois não a via, não teria
de supportar a tortura das explicações e das lagrimas.
[212]
Então veio-lhe uma fraqueza. Bateu nos vidros para fazer parar, reflectir um instante, mais
calmamente, no silencio das rodas. O cocheiro não ouviu: o trote largo da parelha continuou
batendo a estrada escura. E Carlos deixou seguir, outra vez hesitante. Depois, á maneira que
reconhecia, esbatidos na sombra, aquelles sitios onde tantas vezes passára com o coração em
festa, quando a sua paixão estava em flôr, uma cólera nova voltava—menos contra a pessoa
de Maria Eduarda, que contra essa
mentira que fôra obra d'ella, e que vinha estragar
irremediavelmente o encanto divino da sua vida. Era essa
mentira que agora odiava—vendo-a
como uma coisa material e tangivel, de um peso enorme, feia e côr de ferro, esmagando-lhe o
coração. Oh! Se não fosse
essa coisa pequenina e inolvidavel que estava entre elles, como um
indestructivel bloco de granito, poderia abrir-lhe novamente os seus braços, senão com a
mesma crença pelo menos com o mesmo ardor! Esposa do outro ou amante do outro—no fim
que importava? Não era por faltar aos beijos que lhe dera esse a consagração d'um padre,
rosnada em latim—que a sua pelle estava mais polluida por elles, ou tinha a menos frescura?
Mas havia a
mentira, a
mentira inicial, dita no primeiro dia em que fôra á rua de S. Francisco, e
que como um fermento podre ficava estragando tudo d'ahi por diante, dôces conversas,
silencios, passeios, sestas no calor da quinta, murmurios de beijos morrendo entre
[213]
os cortinados côr d'ouro... Tudo manchado, tudo contaminado por aquella
mentira primeira que
ella dissera sorrindo, com os seus tranquillos olhos limpidos...
Abafava. Ia a descer a vidraça que faltava a correia—quando a tipoia parou de repente, na
estrada solitaria... Abriu a portinhola. Uma mulher com um chale pela cabeça fallava ao
cocheiro.
—Melanie!
—Ah, monsieur!
Carlos saltou precipitadamente. Era já proximo da quinta, na volta d'estrada, onde o muro
fazia um recanto sob uma faia, defronte de sebes de piteiras resguardando campos d'olivedo.
Carlos gritou ao cocheiro que seguisse e esperasse no portão da quinta. E ficou alli, no escuro,
com Melanie encolhida no seu chale.
Que estava ella alli a fazer? Melanie parecia transtornada: contou que vinha procurar á
villa uma carruagem, porque a senhora queria ir a Lisboa, ao Ramalhete... Ella julgára a tipoia
vazia.
E apertava as mãos, dando as graças, com um immenso allivio. Ah! que felicidade, que
felicidade ter elle vindo!... A senhora estava afflicta, nem jantára, perdida de chôro. O snr.
Castro Gomes apparecera lá inesperadamente... A senhora, coitadinha, queria morrer!
Então Carlos, caminhando rente ao muro, interrogou Melanie. Como viera o outro? que
dissera? como se despedira?... Melanie não ouvira nada.
[214]
O Snr. Castro Gomes e a senhora
tinham conversado sós no pavilhão japonez. Á sahida é que vira o snr. Castro Gomes dizer
adeus a madame, muito socegado, muito amavel, rindo, fallando de
Niniche... A senhora, essa,
parecia como morta, tão pallida! Quando o outro partiu, ia tendo um desmaio.
Estavam proximo do portão da
Toca. Carlos retrocedeu, respirando fortemente, com o
chapéo na mão. E agora todo o seu orgulho se ia sumindo sob a violencia da sua anciedade.
Queria saber! E perguntava, deixava Melanie nas coisas dolorosas da sua paixão... Dites
toujours, Melanie, dites! Sabia a senhora que Castro Gomes estivera com elle no Ramalhete,
lhe confessára tudo?...
Claramente que sabia, por isso chorava—dizia Melanie. Ah, ella bem repetira á senhora
que era melhor contar a verdade! Era muito amiga d'ella, servia-a desde pequena, vira nascer a
menina... E tinha-lh'o dito, até já nos Olivaes!
Carlos curvava a cabeça na escuridão do muro. Melanie
tinha-lh'o dito! Assim ella e a
criada discutiam ambas, acamaradadas, o embuste em que andava presa a sua vida! E
aquellas revelações de Melanie, que suspirava com o chale sobre o rosto, abatiam os ultimos
pedaços d'esse sonho, que elle erguera tão alto, entre nuvens d'ouro. Nada restava. Tudo jazia
em estilhaços, no lodo immundo.
Um momento, com o coração cheio de fadiga, pensou em voltar a Lisboa. Mas para além
d'aquelle
[215]
negro muro estava
ella, perdida de chôro, querendo morrer... E lentamente
recomeçou a caminhar para o portão.
E agora, sem resistencia nenhuma do orgulho, fazia perguntas mais intimas a Melanie.
Porque é que Maria Eduarda não lhe dissera a verdade?
Melanie encolheu os hombros. Não sabia: nem a senhora sabia! Estivera no Central como
madame Gomes; alugára a casa da rua de S. Francisco como madame Gomes; recebera-o
como madame Gomes... E assim se deixára ir, insensivelmente, conversando com elle,
gostando d'elle, vindo para os Olivaes... E depois era tarde, já não se atrevera a confessar,
toda enterrada assim na
mentira, com medo do desgosto...
Mas, exclamava Carlos, nunca imaginára ella que fatalmente tudo se descobriria um dia?
—Je ne sais pas, monsieur, je ne sais pas, murmurou Melanie quasi a chorar.
Depois eram outras curiosidades. Ella não esperava Castro Gomes? não suppunha que
elle voltasse? não costumava fallar d'elle?...
—Oh non, monsieur, oh non!
Madame, desde que o senhor começára a ir todos os dias á rua de S. Francisco,
considerára-se para sempre desligada do snr. Castro Gomes, nem fallava n'elle, nem queria
que se fallasse... Antes d'isso a menina chamava sempre ao snr. Castro Gomes
petit ami.
Agora não lhe chamava nada. Tinham-lhe dito que já não havia
petit ami...
[216]
—Ella escrevia-lhe ainda, dizia Carlos, eu sei que ella lhe escrevia...
Sim, Melanie julgava que sim... Mas cartas indifferentes. A senhora levára o seu escrupulo
a ponto de que, desde que viera para os Olivaes, nunca mais gastára um ceitil das quantias
que lhe mandava o snr. Castro Gomes. As letras para receber dinheiro conservava-as intactas,
entregara-lh'as n'essa tarde... Não se lembrava elle de a ter encontrado uma manhã á porta do
Monte-Pio? Pois bem! Fôra lá, com uma amiga franceza, empenhar uma pulseira de brilhantes
da senhora. A senhora vivia agora das suas joias; tinha já outras no prégo.
Carlos parára, commovido. Mas então para que tinha ella mentido?
—Je ne sais pas, dizia Melanie, je ne sais pas... Mais elle vous aime bien, allez!
Estavam defronte do portão. A tipoia esperava. E, ao fundo da rua d'acacias, a porta da
casa aberta deixava passar a luz do corredor, frouxa e triste. Carlos julgou vêr mesmo a figura
de Maria Eduarda, embrulhada n'uma capa escura, de chapéo, atravessar n'essa claridade...
Ouvira decerto rodar a carruagem. Que afflicta paciencia seria a sua!
—Vai-lhe dizer que vim, Melanie, vai! murmurou Carlos.
A rapariga correu. E elle, caminhando devagar sob as acacias, sentia no sombrio silencio
as pancadas desordenandas do seu coração. Subiu os tres degraus de pedra—que lhe
pareciam já d'uma
[217]
casa estranha. Dentro, o corredor estava deserto, com a sua lampada
mourisca alumiando as panoplias de touros... Alli ficou. Melanie, com o chale na mão, veio
dizer-lhe que a senhora estava na sala das tapeçarias...
Carlos entrou.
Lá estava, ainda de capa, esperando de pé, palida, com toda a alma concentrada nos
olhos que refulgiam entre as lagrimas. E correu para elle, arrebatou-lhe as mãos, sem poder
fallar, soluçando, tremendo toda.
Na sua terrivel perturbação, Carlos achava só esta palavra, melancolicamente estupida:
—Não sei porque chora, não sei, não há razão para chorar...
Ella pôde emfim balbuciar:
—Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas nada, deixa contar-te... Eu ia lá, tinha
mandado Melanie por uma carruagem. Ia vêr-te... Nunca tive a coragem de te dizer! Fiz mal, foi
horrivel... Mas escuta, não digas nada ainda, perdôa, que eu não tenho culpa!
De novo os soluços a suffocaram. E cahiu ao canto do sofá, n'um chôro brusco e nervoso,
que a sacudiu toda, lhe fazia rolar sobre os hombros os cabellos mal atados.
Carlos ficára diante d'ella, immovel. O seu coração parecia parado de surpreza e de
duvida, sem força para desafogar. Apenas agora sentia quanto baixo e brutal deixar-lhe o
cheque—que tinha
[218]
alli na carteira e que o enchia de vergonha... Ella ergueu o rosto, todo
molhado, murmurou com um grande esforço:
—Escuta-me!... Nem sei como hei de dizer... Oh, são tantas coisas, são tantas coisas!... Tu
não te vaes já embora, senta-te, escuta...
Carlos puxou uma cadeira, lentamente.
—Não, aqui ao pé de mim... Para eu ter mais coragem... Por quem és, tem pena, faze-me
isso!
Elle cedeu á supplicação humilde e enternecedora dos seus olhos arrazados d'agua: e
sentou-se ao outro canto do sofá, afastado d'ella, n'uma desconsolação infinita. Então, muito
baixo, enrouquecida pelo chôro, sem o olhar, e como n'um confessionario—Maria começou a
fallar do seu passado, desmanchadamente, hesitando, balbuciando, entre grandes soluços que
a afogavam, e pudores amargos que lhe faziam enterrar nas mãos a face afflicta.
A culpa não fôra d'ella! não fôra d'ella! Elle devia ter perguntado áquelle homem que sabia
toda a sua vida... Fôra sua mãi... Era horroroso dizel-o, mas fôra por causa d'ella que
conhecera e que fugira com o primeiro homem, o outro, um irlandez... E tinha vivido com elle
quatro annos, como sua esposa, tão fiel, tão retirada de tudo e só occupada da sua casa, que
elle ia casar com ella! Mas morrera na guerra com os allemães, na batalha de Saint-Privat. E
ella ficára com Rosa, com a mãi já doente, sem recursos, depois de vender tudo... Ao
[219]
principio
trabalhára... Em Londres tinha procurado dar lições de piano... Tudo falhára, dois dias vivera
sem lume, de peixe salgado, vendo Rosa com fome! com fome! Ah, elle não podia perceber o
que isto era!... Quasi fôra por caridade que as tinha repatriado para Paris... E ahi conhecera
Castro Gomes. Era horrivel, mas que havia d'ella fazer! Estava perdida...
Lentamente escorregára do sofá, cahira aos pés de Carlos. E elle permanecia immovel,
mudo, com o coração rasgado por angustias differentes: era uma compaixão tremula por todas
aquellas miserias soffridas, dôr de mãi, trabalho procurado, fome, que lh'a tornavam
confusamente mais querida; e era o horror d'esse outro homem, o irlandez, que surgia agora, e
que lh'a tornava de repente mais maculada...
Ella continuava fallando de Castro Gomes. Vivera tres annos com elle, honestamente, sem
um desvio, sem um pensamento mau. O seu desejo era estar quieta em casa. Elle é que a
forçava a andar em ceias, em noitadas...
E Carlos não podia ouvir mais, torturado. Repeliu-lhe as mãos, que procuravam as suas.
Queria fugir, queria findar!...
—Oh não, não me mandes embora! gritou ella prendendo-se a elle anciosamente. Eu sei
que não mereço nada! Sou uma desgraçada... Mas não tive coragem, meu amor! Tu és
homem, não comprehendes estas coisas... Olha para mim! porque não
[220]
olhas para mim? Um
instante só, não voltes o rosto, tem pena de mim...
Não! elle não queria olhar. Temia aquellas lagrimas, o rosto cheio d'agonia. Ao calor do
seio que arquejava sobre os seus joelhos, já tudo n'elle começava a oscillar, orgulhos,
despeitos, dignidade, ciume... E então, sem saber, a seu pezar, as suas mãos apertaram as
d'ella. Ella cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas, arrebatadamente: e anciosa
implorava do fundo da sua miseria um instante de misericordia.
—Oh, dize que me perdôas! Tu és tão bom! Uma palavra só... Dize só que não me odeias, e
depois deixo-te ir... Mas dize primeiro... Olha ao menos para mim como d'antes, uma só vez!...
E eram agora os seus labios que procuravam os d'elle. Então a fraqueza em que sentia
afundar-se todo o seu sêr encheu Carlos de cólera, contra si e contra ella. Sacudiu-a
brutalmente, gritou:
—Mas porque não me disseste, porque não me disseste? Para que foi essa longa mentira?
Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que mentiste, tu?
Largára-a, prostrada no chão. E de pé, deixava cahir sobre ella a sua queixa desesperada:
—É a tua mentira que nos separa, a tua horrivel mentira, a tua mentira sómente!
Ella ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma pallidez de desmaio.
—Mas eu queria dizer-t'o, murmurou muito
[221]
baixo, muito quebrado diante d'elle, deixando
cahir os braços. Eu queria dizer-t'o... Não te lembras, n'aquelle dia em que vieste tarde, quando
eu fallei da casa de campo, e que tu pela primeira vez declaraste que gostavas de mim? Eu
disse-te logo: «ha uma coisa que te quero contar...» Tu nem me deixaste acabar. Imaginavas o
que era, que eu queria ser só tua, longe de tudo... E disseste então que haviamos d'ir, com
Rosa, ser felizes para algum canto do mundo... Não te lembras?... Foi então que me veio uma
tentação! Era não dizer nada, deixar-me levar, e depois, mais tarde, annos depois, quando te
tivesse provado bem que boa mulher eu era, digna da tua estima, confessar-te tudo e dizer-te:
«agora, se queres, manda-me embora.» Oh! foi mal feito, bem sei... Mas foi uma tentação, não
resisti... Se tu não fallasses em fugirmos, tinha-te dito tudo... Mas mal fallaste em fugirmos, vi
uma outra vida, uma grande esperança, nem sei que! E além d'isso adiava aquella horrivel
confissão! Emfim, nem posso explicar, era como o céo que se abria, via-me comtigo n'uma
casa nossa... Foi uma tentação!... E depois era horrivel, no momento em que tu me querias
tanto, ir dizer-te «não faças tudo isso por mim, olha que eu sou uma desgraçada, nem marido
tenho...» Que te hei de explicar mais? Não me resignava a perder o teu respeito. Era tão bom
ser assim estimada... Emfim foi um mal, foi um grande mal... E agora ahi está, vejo-me perdida,
tudo acabou!
[222]
Atirou-se para o chão, como uma creatura vencida e finda, escondendo a face no sofá. E
Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando bruscamente até junto d'ella, tinha só a
mesma recriminação, a
mentira, a
mentira, pertinaz e de cada dia... Só os soluços d'ella lhe
respondiam.
—Porque não me disseste ao menos depois, aqui nos Olivaes, quando sabias que tu eras
tudo para mim?...
Ella ergueu a cabeça fatigada:
—Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse d'outro modo... Via-te já a
tratar-me sem respeito. Via-te a entrar por ahi dentro de chapéo na cabeça, a perder a affeição
á pequena, a querer pagar as despezas da casa... Depois tinha remorsos, ia adiando. Dizia
«hoje não, um dia só mais de felicidade, ámanhã será...» E assim ia indo! Emfim, nem eu sei,
um horror!
Houve um silencio. E então Carlos sentiu á porta
Niniche que queria entrar e que gania
baixinho e doloridamente. Abriu. A cadellinha correu, pulou para o sofá, onde Maria
permanecia soluçando, enrodilhando a um canto: procurava lamber-lhe as mãos, inquieta:
depois ficou plantada junto d'ella, como a guarda-l'a, desconfiada, seguindo, com os seus vivos
olhos d'azeviche, Carlos que recomeçára a passear sombriamente.
Um ai mais longo e mais triste de Maria fel-o parar. Esteve um momento olhando para
aquella
[223]
dôr humilhada... Todo abalado, com os labios a tremer, murmurou:
—Mesmo que te pudesse perdoar, como te poderia acreditar agora nunca mais? Ha esta
mentira horrivel sempre entre nós a separar-nos! Não teria um unico dia de confiança e de
paz...
—Nunca te menti senão n'uma coisa, e por amor de ti! disse ella gravemente do fundo da
sua prostração.
—Não, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu nome, falsa a
tua vida toda... Nunca mais te poderia acreditar... Como havia de ser, se agora mesmo quasi
que nem acredito no motivo das tuas lagrimas?
Uma indignação ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de repente seccos rebrilharam,
revoltados e largos, no marmore da sua pallidez.
—Que queres tu dizer? Que estas lagrimas tem outro motivo, estas supplicas são fingidas?
Que finjo tudo para te reter, para não te perder, ter outro homem, agora que estou
abandonada?...
Elle balbuciou:
—Não, não! Não é isso!
—E eu? exclamou ella, caminhando para elle, dominando-o, magnifica e com um esplendor de
verdade na face. E eu? porque hei de eu acreditar n'essa grande paixão que me juravas? O
que é que tu amavas então em mim? Dize lá! Era a mulher d'outro, o nome, o requinte do
adulterio, as
toilletes?... Ou era eu propria, o meu corpo, a minha
[224]
alma e o meu amor por ti?...
Eu sou a mesma, olha bem para mim!... Estes braços são os mesmos, este peito é o mesmo...
Só uma coisa é differente: a minha paixão! Essa é maior, desgraçadamente, infinitamente
maior.
—Oh! se isso fosse verdade! gritou Carlos, apertando as mãos.
N'um instante Maria estava cahida a seus pés, com os braços abertos para elle.
—Juro-t'o por alma de minha filha, por alma de Rosa! Amo-te, adoro-te doidamente,
absurdamente, até á morte!
Carlos tremia. Todo o seu sêr pendia para ella; e era um impulso irresistivel de se deixar
cahir sobre aquelle seio que arfava a seus pés, ainda que elle fosse o abysmo da sua vida
inteira... Mas outra vez a idéia da
mentira passou, regeladora. E afastou-se d'ella, levando os
punhos á cabeça, n'um desespero, revoltado contra aquella coisa pequenina e indestructivel
que não queria sumir-se, e que se interpunha como uma barra de ferro entre elle e a sua
felicidade divina!
Ella ficára ajoelhada, immovel, com os olhos esgazeados para o tapete. Depois, no silencio
estofado da sala, a sua voz ergueu-se dolente e tremula:
—Tens razão, acabou-se! Tu não me acreditas, tudo se acabou!... É melhor que te vás
embora... Ninguem me torna a acreditar... Acabou tudo para mim, não tenho ninguem mais no
mundo... Ámanhã sáio d'aqui, deixo-te tudo... Has de
[225]
me dar tempo para arranjar... Depois, que
hei de fazer, vou-me embora!
E não pôde mais, tombou para o chão, com os braços estirados, perdida de chôro.
Carlos voltou-se, ferido no coração. Com o seu vestido escuro, para alli cahida e
abandonada, parecia já uma pobre creatura, arremessada para fóra de todo o lar, sósinha a um
canto, entre a inclemencia do mundo... Então respeitos humanos, orgulho, dignidade humana,
tudo n'elle foi levado como por um grande vento de piedade. Viu só, offuscando todas as
fragilidades, a sua belleza, a sua dôr, a sua alma sublimemente amante. Um delirio generoso,
de grandiosa bondade, misturou-se á sua paixão. E, debruçando-se, disse-lhe baixo, com os
braços abertos:
—Maria, queres casar commigo?
Ella ergueu a cabeça, sem comprehender, com os olhos desvairados. Mas Carlos tinha os
braços abertos; e estava esperando para a fechar dentro d'elles outra vez, como sua e para
sempre... Então levantou-se, tropeçando nos vestidos, veio cahir sobre o peito d'elle, cobrindo-o
de beijos, entre soluços e risos, tonta, n'um deslumbramento:
—Casar comtigo, comtigo? Oh Carlos... E viver sempre, sempre comtigo?... Oh meu amor,
meu amor! E tratar de ti, e servir-te, e adorar-te, e ser só tua? E a pobre Rosa tambem... Não,
não cases commigo, não é possivel, não valho nada! Mas se tu queres, porque não?... Vamos
para longe,
[226]
juntos, e Rosa e eu sobre o teu coração! E has de ser nosso amigo, meu e d'ella, que
não temos ninguem
no mundo... Oh! meu Deus, meu Deus!...
Empallideceu, escorregando pesadamente entre
os braços d'elle, desmaiada: e os seus longos cabellos
desprendido rojavam o chão, tocados pela luz
de tons d'ouro.
V
Maria Eduarda e Carlos, que ficára essa noite nos Olivaes na sua casinhola, acabavam de
almoçar. O Domingos servira o café, e antes de sahir deixára ao lado de Carlos a caixa de
cigarettes e o
Figaro. As duas janellas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado
da manhã encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe nos
campos. No banco de cortiça, sob as arvores, miss Sarah costurava preguiçosamente; Rosa ao
lado brincava na relva. E Carlos, que viera n'uma intimidade conjugal, com uma simples camisa
de sêda e um jaquetão de flanella, chegou então a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe a
mão, brincando-lhe com os anneis, n'uma lenta caricia:
[228]
—Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir?
N'essa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ella mostrára o desejo enternecido
de não alterar o plano da Italia e d'um ninho romantico entre as flôres d'Isola-bella: sómente
agora não iam esconder a inquietação d'uma felicidade culpada, mas gozar o repouso d'uma
felicidade legitima. E, depois de todas as incertezas e tormentos que o tinham agitado desde o
dia em que cruzára Maria Eduarda no Aterro, Carlos anhelava tambem pelo momento de se
installar emfim no conforto d'um amor sem duvidas e sem sobresaltos:
—Eu por mim abalava ámanhã. Estou sôfrego de paz. Estou até sôfrego de preguiça... Mas
tu, dize, quando queres?
Maria não respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado. Depois, sem
retirar a mão que a longa caricia de Carlos ainda prendia, chamou Rosa através da janella.
—Mamã, espera, já vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns pardaes que ainda
não almoçaram...
—Não, vem cá.
Quando ella appareceu á porta, toda de branco, córada, com uma das ultimas rosas de
verão mettida no cinto—Maria quil-a mais perto, entre elles, encostada aos seus joelhos. E,
arranjando-lhe a fita solta do cabello, perguntou, muito séria, muito commovida, se ella gostaria
que Carlos viesse viver
[229]
com ellas de todo e ficar alli na
Toca... Os olhos da pequena
encheram-se de surpreza e de riso:
—O quê! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E ter aqui as suas
malas, as suas coisas?...
Ambos murmuraram—«sim».
Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse já, já, buscar as
suas malas e as suas coisas...
—Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos. E gostavas que
elle fosse como o papá, e que andasse sempre comnosco, e que lhe obedecessemos ambas,
e que gostassemos muito d'elle ?
Rosa ergueu para a mãe uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso se apagára.
—Mas eu não posso gostar mais d'elle do que gósto!...
Ambos a beijaram, n'um enternecimento que lhes humedecia os olhos. E Maria Eduarda,
pela primeira vez diante de Rosa debruçando-se sobre ella, beijou de leve a testa de Carlos. A
pequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a mãi. E pareceu comprehender tudo;
escorregou dos joelhos de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:
—Queres que te chame papá, só a ti?
—Só a mim, disse elle, fechando-a toda nos braços.
[230]
E assim obtiveram o consentimento de Rosa—que fugiu, atirando a porta, com as mãos
cheias de bolos para os pardaes.
Carlos levantou-se, tomou a cabeça de Maria entre as mãos, e contemplando-a
profundamente, até á alma, murmurou n'um enlevo:
—És perfeita!
Ella desprendeu-se, com melancolia, d'aquella adoração que a perturbava.
—Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos para o nosso
kiosque... Tu não tens nada que fazer, não? E que tenhas, hoje és meu... Vou já ter comtigo.
Leva as tuas cigarettes.
Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doçura velada do céo cinzento... E
a vida pareceu-lhe adoravel, d'uma poesia fina e triste,assim envolta n'aquella nevoa macia
onde nada resplandecia e nada cantava, e que tão favoravel era para que dois corações,
desinteressados do mundo e em desharmonia com elle, se abandonassem juntos ao contínuo
encanto de estremecerem juntos na mudez e na sombra.
—Vamos ter chuva, tio André, disse elle, passando junto do velho jardineiro que aparava o
buxo.
O tio André, atarantado, arrancou o chapéo. Ah! uma gota d'agua era bem necessaria,
depois da estiagem! O torrãosinho já estava com sêde! E em casa todos bons? A senhora? A
menina?
—Tudo bom, tio André, obrigado.
[231]
E no seu desejo de vêr todos em torno de si felizes como elle e como a terra sequiosa que
ia ser consolada—Carlos metteu uma libra na mão do tio André, que ficou deslumbrado, sem
ousar fechar os dedos sobre aquelle ouro extraordinario que reluziu.
Quando Maria entrou no kiosque trazia um cofre de sandalo. Atirou-o para o divan: fez
sentar Carlos ao lado, bem confortavel, entre almofadas: accendeu-lhe uma cigarrete. Depois
agachou-se aos seus pés, sobre o tapete, como na humildade de uma confissão.
—Estás bem assim? Queres que o Domingos te traga agua e cognac?... Não? Então ouve
agora, quero-te contar tudo...
Era toda a sua existencia que ella desejava contar. Pensára mesmo em lh'a escrever
n'uma carta interminavel, como nos romances. Mas decidira antes tagarellar alli uma manhã
inteira, aninhada aos seus pés.
—Estás bem, não estás?
Carlos esperava, commovido. Sabia que aquelles labios amados iam fazer revelações
pungentes para o seu coração—e amargas para o seu orgulho. Mas a confidencia da sua vida
completava a posse da sua pessoa: quando a conhecesse toda no seu passado sentil-a-hia
mais sua inteiramente. E no fundo tinha uma curiosidade insaciavel d'essas coisas que o
deviam pungir e que o deviam humilhar.
[232]
—Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize, conta... Onde
nasceste tu por fim?
Nascera em Vienna: mas pouco se recordava dos tempos de criança, quasi nada sabia do
papá, a não ser a sua grande nobreza e a sua grande belleza. Tivera uma irmãsinha que
morrera de dois annos e que se chamava Heloisa. A mamã, mais tarde, quando ella era já
rapariga, não tolerava que lhe perguntassem pelo passado; e dizia sempre que remexer a
memoria das coisas antigas prejudicava tanto como sacudir uma garrafa de vinho velho... De
Vienna apenas recordava confusamente largos passeios d'arvores, militares vestidos de
branco, e uma casa espelhada e dourada onde se dançava: ás vezes durante tempos ella
ficava lá só com o avô, um velhinho triste e timido, mettido pelos cantos, que lhe contara
historias de navios. Depois tinham ido a Inglaterra: mas lembrava-se sómente de ter
atravessado um grande rumor de ruas, n'um dia de chuva, embrulhada em pelles, sobre os
joelhos d'um escudeiro. As suas primeiras memorias mais nitidas datavam de Paris; a mamã, já
viuva, andava de luto pelo avô; e ella tinha uma aia italiana que a levava todas as manhãs, com
um arco e com uma pélla, brincar aos Campos Elyseos. A noite costumava vêr a mamã
decotada, n'um quarto cheio de setins e de luzes; e um homem louro, um pouco brusco, que
fumava sempre estirado pelos sofás, trazia-lhe de
[233]
vez em quando uma boneca, e chamava-lhe
mademoiselle
Triste-cœur por causa do seu arzinho sisudo. Emfim a mamã mettera-a n'um
convento ao pé de Tours—porque n'essa idade, apesar de cantar já ao piano as walsas da
Belle Helène, ainda não sabia soletrar. Fôra nos jardins do convento, onde havia lindos lilazes,
que a mamã se separára d'ella n'uma paixão de lagrimas; e ao lado esperava, para a consolar
decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, a quem a Madre Superiora fallara com
veneração.
A mamã ao principio vinha vêl-a todos os mezes, demorando-se em Tours dois, tres dias;
trazia-lhe uma profusão de presentes, bonecas, bonbons, lenços bordados, vestidos ricos, que
lhe não permittia usar a regra severa do convento. Davam então passeios de carruagem pelos
arredores de Tours: e havia sempre officiaes a cavallo, que escoltavam a caleche—e tratavam
a mamã por
tu. No convento as mestras, a Madre Superiora não gostavam d'estas sahidas—nem
mesmo que a mamã viesse acordar os corredores devotos com as suas risadas e o ruido
das suas sêdas; ao mesmo tempo pareciam temel-a; chamavam-lhe
Madame la Comtesse. A
mamã era muito amiga do general que commandava em Tours, e visitava o bispo. Monsenhor,
quando vinha ao convento, fazia-lhe uma festinha especial na face e alludia risonhamente a
son excellente mère. Depois a mamã começou a apparecer menos em Tours. Esteve um
[234]
anno
longe, quasi sem escrever, viajando na Allemanha; voltou um dia, magra e coberta de luto, e
ficou toda a manhã abraçada a ella a chorar.
Mas na visita seguinte vinha mais moça, mais brilhante, mais ligeira, com dois grandes
galgos brancos, annunciando uma romagem poetica á Terra Santa e a todo o remoto Oriente.
Ella tinha então quasi dezeseis annos: pela sua applicação, os seus modos dôces e graves,
ganhára a affeição da Madre Superiora—que ás vezes, olhando-a com tristeza, acariciando-lhe
o cabello cahido em duas tranças segundo a regra, lhe mostrava o desejo de a conservar
sempre ao seu lado.
Le monde, dizia ella,
ne vous sera bon à rien, mon enfant!... Um dia,
porém, appareceu para a levar para Paris, para a mamã, uma Madame de Chavigny, fidalga
pobre, de caracoes brancos, que era como uma estampa de severidade e de virtude.
O que ella chorára ao deixar o convento! Mais choraria se soubesse o que ia encontrar em
Paris!
A casa da mamã, no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo—mas recoberta
de um luxo sério e fino. Os escudeiros tinham meias de sêda; os convidados, com grandes
nomes no Nobiliario de França, conversavam de corridas, das Tulherias, dos discursos do
Senado; e as mesas de jogo armavam-se depois como uma distracção mais picante. Ella
recolhia sempre ao seu quarto ás dez horas: Madame de Chavigny, que ficára como sua dama
de companhia, ia com ella cedo ao Bois
[235]
n'um coupé estufo de
douairière. Pouco a pouco,
porém, este grande verniz começou a estalar. A pobre mamã cahira sob o jugo d'um Mr. de
Trevernnes, homem perigoso pela sua seducção pessoal e por uma desoladora falta de honra
e de senso. A casa descahiu rapidamente n'uma bohemia mal dourada e ruidosa. Quando ella
madrugava, com os seus habitos saudaveis do convento, encontrava paletots d'homens por
cima dos sofás: no marmore das consoles restavam pontas de charuto entre nodoas de
champagne; e n'algum quarto mais retirado ainda tinia o dinheiro d'um
baccarat talhado á
claridade do sol. Depois uma noite, estando deitada, sentira de repente gritos, uma debandada
brusca na escada; veio encontrar a mamã estirada no tapete, desmaiada; ella dissera-lhe
apenas mais tarde, alagada em lagrimas, «que tinha havido uma desgraça»...
Mudaram então para um terceiro andar da Chaussée-d'Antin. Ahi começou a apparecer
uma gente desconhecida e suspeita. Eram Valachos de grandes bigodes, Peruanos com
diamantes falsos, e condes romanos que escondiam para dentro das mangas os punhos
enxovalhados... Por vezes entre esta malta vinha algum
gentleman—que não tirava o paletot,
como n'um café-concerto. Um d'esses foi um irlandez, muito moço, Mac-Gren... Madame de
Champigny deixára-as desde que faltára o coupé severo, acolchoado de setim; e ella, só com a
mãi, insensivelmente, fatalmente, fôra-se misturando
[236]
a essa vida tresnoitada de grogs e de
baccarat.
A mamã chamava a Mac-Gren o «bébé». Era com effeito uma criança estouvada e feliz.
Namorára-se d'ella logo com o ardor, a effusão, o impeto d'um irlandez; e prometteu-lhe fazel-a
sua esposa apenas se emancipasse—porque Mac-Gren, menor ainda, vivia sobretudo das
liberalidades de uma avó excentrica e rica que o adorava, e que habitava a Provença n'uma
vasta quinta onde tinha feras em jaulas... E no entanto induzia-a sem cessar a fugir com elle,
desesperado de a vêr entre aquelles Valachos que cheiravam a genebra. O seu desejo era
leval-a para Fontainebleau, para um
cottage com trepadeiras de que fallava sempre, e esperar
ahi tranquillamente a maioridade que lhe traria duas mil libras de renda. Decerto, era uma
situação falsa: mas preferivel a permanecer n'aquelle meio depravado e brutal onde ella a cada
instante córava... A esse tempo a mamã parcela ir perdendo todo o senso, desarranjada de
nervos, quasi irresponsavel. As difficuldades crescentes estonteavam-n'a; brigava com as
criadas; bebia champagne «
pour s'étourdir». Para satisfazer as exigencias de Mr. de
Trevernnes empenhára as suas joias, e quasi todos os dias chorava com ciumes d'elle. Por fim
houve uma penhora: uma noite tiveram d'enfardelar á pressa roupa n'um sacco, e ir dormir a
um hotel. E, peor, peor que tudo! Mr. de Trevernnes começava a olhar para ella d'um modo que
a assustava...
[237]
—Minha pobre Maria! murmurou Carlos, pallido, agarrando-lhe as mãos.
Ella permaneceu um momento suffocada, com o rosto cahido nos joelhos d'elle. Depois
limpando as lagrimas que a ennevoavam:
—Ahi estão as cartas de Mac-Gren, n'esse cofre... Tenho-as guardado sempre para me
justificar a mim mesma, se me é possivel... Pede-me em todas que vá para Fontainebleau;
chama-me sua esposa; jura que apenas juntos iremos ajoelhar-nos diante da avó, obter a sua
indulgencia... Mil promessas! E era sincero... Que queres que te diga? A mamã uma manhã
partiu com uma sucia para Baden. Fiquei em Paris só, n'um hotel... Tinha um palpite, um terror
que Trevernnes apparecia... E eu só! Estava tão transtornada que pensei em comprar um
rewolver... Mas quem veio foi Mac-Gren.
E partira com elle, sem precipitação, como sua esposa, levando todas as suas malas. A
mamã de volta de Baden correu a Fontainebleau, desvairada e tragica, amaldiçoando Mac-Gren,
ameaçando-o com a prisão de Mazas, querendo esbofeteal-o; depois rompeu a chorar.
Mac-Gren, como um bébé, agarrou-se a ella aos beijos, chorando tambem. A mamã terminou
por os apertar a ambos contra o coração, já rendida, perdoando tudo, chamando-lhes «filhos
da sua alma». Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando «a patuscada de Baden», já
com o plano de vir installar-se no
cottage, viver junto d'elles n'uma felicidade calma e nobre
[238]
de avósinha... Era em maio; Mac-Gren, á noite, deitou um «fogo preso» no jardim.
Começou um anno quieto e facil. O seu unico desejo era que a mamã vivesse com elles
socegadamente. Diante das suas supplicas ella ficava pensativa, dizia: «Tens razão,
veremos!» Depois remergulhava no torvelinho de Paris, d'onde resurgia uma manhã, n'um
fiacre, estremunhada e afflicta, com uma rica pelliça sobre uma velha saia, a pedir-lhe cem
francos... Por fim nascera Rosa. Toda a sua anciedade desde então fôra legitimar a sua união.
Mas Mac-Gren adiava, levianamente, com um medo pueril da avó. Era um perfeito bébé!
Entretinha as manhãs a caçar passaros com visco! E ao mesmo tempo terrivelmente teimoso:
ella pouco a pouco perdera-lhe todo o respeito. No começo da primavera a mamã um dia
appareceu em Fontainebleau com as suas malas, succumbida, enojada da vida. Rompera
emfim com Trevernnes. Mas quasi immediatamente se consolou: e começou d'ahi a adorar
Mac-Gren com uma tão larga effusão de caricias, e achando-o tão lindo, que era ás vezes
embaraçadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de cognac, jogando o
bezigue.
De repente rebentou a guerra com a Prussia. Mac-Gren enthusiasmado, e apesar das
supplicas d'ellas, corrêra a alistar-se no batalhão de Zuavos de Charette; a avó de resto
approvára este rasgo d'amor pela França, e fizera-lhe n'uma carta em verso, em que celebrava
Jeanne d'Arc, uma
[239]
larga remessa de dinheiro. Por esse tempo Rosa teve o garrotilho. Ella, sem
lhe largar o leito, mal attendia ás noticias da guerra. Sabia apenas confusamente das primeiras
batalhas perdidas na fronteira. Uma manhã a mamã rompeu-lhe no quarto, estonteada, em
camisa: o exercito capitulára em Sédan, o imperador estava prisioneiro! «É o fim de tudo, é o
fim de tudo!» dizia a mamã espavorida. Ella veio a Paris procurar noticias de Mac-Gren: na rua
Royale teve de se refugiar n'um portão, diante do tumulto d'um povo em delirio, acclamando,
cantando a Marselheza, em torno de uma caleche onde ia um homem, pallido como cera, com
um cache-nez escarlate ao pescoço. E um sujeito ao lado, aterrado, disse-lhe que o povo fôra
buscar Rochefort á prisão e que estava, proclamada a Republica.
Nada soubera de Mac-Gren. Começaram então dias d'infinito sobresalto. Felizmente Rosa
convalescia. Mas a pobre mamã causava dó, envelhecida de repente, sombria, prostrada
n'uma cadeira, murmurando apenas: «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» E parecia na verdade o
fim da França. Cada dia uma batalha perdida; regimentos presos, apinhados em wagons de
gado, internados a todo o vapor para os presidios d'Allemanha; os prussianos marchando
sobre Paris... Não podiam permanecer em Fontainebleau; o duro inverno começava; e com o
que venderam á pressa, com o dinheiro que Mac-Gren deixára, partiram para Londres.
[240]
Fôra uma exigencia da mamã. E em Londres ella, desorientada na enorme e estranha
cidade, doente tambem, deixára-se levar pelas tontas idéas da mãe. Tomaram uma casa
mobilada, muito cara, nos bairros de luxo, ao pé de Mayfair. A mamã fallava em organisar alli o
centro de resistencia dos bonapartistas refugiados; no fundo, a desgraçada pensava em crear
uma casa de jogo em Londres. Mas ai! eram outros tempos... Os imperialistas, sem imperio,
não jogavam já o
baccarat. E ellas em breve, sem rendimentos, gastando sempre, tinham-se
achado com aquella dispendiosa casa, tres criados, contas colossaes e uma nota de cinco
libras no fundo d'uma gaveta. E Mac-Gren mettido dentro de Paris, com meio milhão de
prussianos em redor. Foi necessario vender todas as joias, vestidos, até as pelliças. Alugaram
então, no bairro pobre de Soho, tres quartos mal mobilados. Era o
lodging de Londres em toda
a sua suja, solitaria tristeza; uma criadita unica, enfarruscada como um trapo; alguns carvões
humidos fumegando mal na chaminé; e para jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da
esquina. Por fim faltára mesmo o escasso shilling para pagar o
lodging. A mamã não sahia do
catre, doente, succumbida, chorando. Ella ás vezes ao anoitecer, escondida n'um water-proof,
levava ao
prégo embrulhos de roupa (até roupa branca, até camisas!) para que ao menos não
faltasse a Rosa a sua chicara de leite. As cartas que a mamã escrevia a alguns antigos
companheiros
[241]
de ceias na
Maison d'Or ficavam sem resposta: outras traziam, embrulhada n'um
bocado de papel, alguma meia-libra que tinha o pavoroso sabor d'uma esmola. Uma noite, um
sabbado de grande nevoeiro, indo empenhar um chambre de rendas da mamã, perdera-se,
errára na vasta Londres n'uma treva amarellada, a tiritar de frio, quasi com fome, perseguida
por dois brutos que empestavam a alcool. Para lhes fugir atirou-se para dentro d'um
cab que a
levou a casa. Mas não tinha um penny para pagar ao cocheiro; e a patrôa roncava no seu
cacifro, bebeda. O homem resmungou; ella, succumbida, alli mesmo na porta rompeu a chorar.
Então o cocheiro desceu da almofada, commovido, offereceu-se para a levar de graça ao
prégo, onde ajustariam as suas contas. Foi; o pobre homem só aceitou um
schilling; até
mesmo suppondo-a franceza grunhiu blasphemias contra os prussianos, e teimou em lhe
offerecer uma bebida.
Ella no emtanto procurava uma occupação qualquer costura, bordados, traducções, cópias
de manuscriptos... Não achava nada. N'aquelle duro inverno o trabalho escasseava em
Londres; surgira uma multidão de francezes, pobres como ella, luctando pelo pão... A mamã
não cessava de chorar; e havia alguma coisa mais terrivel que as suas lagrimas—eram as suas
allusões constantes á facilidade de se ter em Londres dinheiro, conforto e luxo, quando se é
nova e se é bonita...
[242]
—Que te parece esta vida, meu amor? exclamou ella, apertando as mãos amargamente.
Carlos beijou-a em silencio, com os olhos humedecidos.
—Emfim tudo passou, continuou Maria Eduarda. Fez-se a paz, o cêrco acabou. Paris
estava de novo aberto... Sómente a difficuldade era voltar.
—Como voltaste?
Um dia por acaso, em Regent-Street, encontrára um amigo de Mac-Gren, outro irlandez,
que muitas vezes jantára com elles em Fontainebleau. Veio vêl-as a Soho; diante d'aquella
miseria, do bule de chá aguado, dos ossos de carneiro requentando sobre tres brazas mortas,
começou, como bom irlandez, por accusar o governo d'Inglaterra e jurar uma desforra de
sangue. Depois offereceu, com os beiços já a tremer, toda a sua dedicação. O pobre rapaz
batia tambem o lagedo n'uma lucta tormentosa pela vida. Mas era irlandez; e partiu logo
generosamente, armado de todos os seus ardis, a conquistar através de Londres o pouco que
ellas necessitavam para recolher a França. Com effeito appareceu n'essa mesma noite,
derreado e triumphante, brandindo tres notas de banco e uma garrafa de
champagne. A mamã
ao vêr, depois de tantos mezes de chá preto, a garrafa de
Clicquot encarapuçada de ouro—quasi
desmaiou, de enternecimento. Enfardelaram os trapos. Ao partirem, na estação de
Charing-Cross, o irlandez levou-a para um canto, e engasgado, torcendo os bigodes,
[243]
disse-lhe que Mac-Gren tinha morrido na batalha de Saint-Privat...
—Para que te hei de eu contar o resto? Em Paris recomecei a procurar trabalho. Mas tudo
estava ainda em confusão... Quasi immediatamente veio a Communa... Pódes acreditar que
muitas vezes tivemos fome. Mas emfim já não era Londres, nem o inverno, nem o exilio.
Estavamos em Paris, soffriamos de companhia com amigos d'outros tempos. Já não parecia
tão terrivel... Com todas estas privações a pobre Rosa começava a definhar... Era um supplicio
vêl-a perder as côres, tristinha, mal vestida, mettida n'uma trapeira... A mamã já se queixava da
doença de coração que a matou... O trabalho que eu encontrava, mal pago, dava-nos apenas
para a renda da casa, e para não morrer absolutamente de necessidade... Principiei a adoecer
de anciedade, de desespero. Luctei ainda. A mamã fazia dó. E Rosa morria se não tivesse
outro regimen, bom ar, algum conforto... Conheci então Castro Gomes em casa d'uma antiga
amiga da mamã, que não perdera nada com a guerra, nem com os prussianos, e que me dava
trabalhos de costura... E o resto sábel-o... Nem eu me lembro... Fui levada... Via ás vezes
Rosa, coitadinha, embrulhada n'um chale, muito quietinha ao seu canto, depois de rapada a
sua magra tigela de sopas, e ainda com fome...
Não pôde continuar; rompeu a chorar, cahida sobre os joelhos de Carlos. E elle na sua
emoção
[244]
só lhe podia dizer, passando-lhe as mãos tremulas pelos cabellos, que a havia de
desforrar bem de todas as miserias passadas...
—Escuta ainda, murmurou ella, limpando as lagrimas. Ha só uma coisa mais que te quero
dizer. E é a santa verdade, juro-te pela alma de Rosa! É que n'estas duas relações que tive o
meu coração conservou-se adormecido... Dormiu sempre, sempre, sem sentir nada, sem
desejar nada, até que te vi... E ainda te quero dizer outra coisa...
Um momento hesitou, coberta de rubor. Passára os braços em torno de Carlos, pendurada
toda d'elle, com os olhos mergulhados nos seus. E foi mais baixo que balbuciou na derradeira,
na absoluta confissão de todo o seu sêr:
—Além de ter o coração adormecido, o meu corpo permaneceu sempre frio, frio como um
marmore...
Elle estreitou-a a si arrebatadamente: e os seus labios ficaram collados muito tempo, em
silencio, completando, n'uma emoção nova e quasi virginal, a communhão perfeita das suas
almas.
D'ahi a dias Carlos e Ega vinham n'uma victoria, pela estrada dos Olivaes, em caminho da
Toca.
Toda essa manhã, no Ramalhete, Carlos estivera emfim contando ao Ega o impulso de
paixão que
[245]
o lançára de novo e para sempre, como esposo, nos braços de Maria; e, na
confiança absoluta que o prendia ao Ega, revelára-lhe mesmo miudamente a historia d'ella,
dolorosa e justificadora. Depois, ao acalmar o calor, propoz que fossem comer as sopas á
Toca. Ega deu uma volta pelo quarto, hesitando. Por fim começou a passar devagar a escova
pelo paletot, murmurando, como durante as longas confidencias de Carlos: «É prodigioso!...
Que estranha coisa, a vida!»
E agora pela estrada, na aragem dôce do rio, Carlos fallava ainda de Maria, da vida na
Toca, deixando escapar do coração muito cheio o interminavel cantico da sua felicidade.
—É facto, Egasinho, conheço quasi a felicidade perfeita!
—E cá na
Toca ainda ninguem sabe nada?
Ninguem—a não ser Melanie, a confidente—suspeitava a profunda alteração que se fizera
nas suas relações: e tinham assentado que miss Sarah e o Domingos, primeiras testemunhas
da sua amizade, seriam régiamente recompensados e despedidos quando em fins de outubro
elles partissem para Italia.
—E ides então casar a Roma?...
—Sim... Em qualquer logar onde haja um altar e uma estola. Isso não falta em Italia... E é
então, Ega, que reapparece o espinho de toda esta felicidade. É por isso que eu disse «quasi.»
O terrivel espinho, o avô!
[246]
—É verdade, o velho Affonso. Tu não tens idéa como lhe has de fazer
conhecer esse caso?...
Carlos não tinha idéa nenhuma. Sentia só que lhe faltava absolutamente a coragem de
dizer ao avô: «esta mulher, com quem vou casar, teve na sua vida estes erros»... E além
d'isso, já reflectira, era inutil. O avô nunca comprehenderia os motivos complicados, fataes,
inilludiveis que tinham arrastado Maria. Se lh'os contasse miudamente—o avô veria alli um
romance confuso e fragil, antipathico á sua natureza forte e candida. A fealdade das culpas
feril-o-hia, exclusivamente; e não lhe deixaria apreciar, com serenidade, a irresistibilidade das
causas. Para perceber este caso d'um caracter nobre apanhado dentro d'uma implacavel rede
de fatalidades, seria necessario um espirito mais ductil, mais mundano que o do avô... O velho
Affonso era um bloco de granito: não se podiam esperar d'elle as subtis discriminações d'um
casuista moderno. Da existencia de Maria só veria o facto tangivel:—cahira successivamente
nos braços de dois homens. E d'ahi decorreria toda a sua attitude de chefe de familia. Para que
havia elle pois de fazer ao velho uma confissão, que necessariamente originaria um conflicto
de sentimentos e uma irreparavel separação domestica?...
—Pois não te parece, Ega?
—Falla mais baixo, olha o cocheiro.
—Não percebe bem o portuguez, sobretudo o nosso estylo... Pois não te parece?
[247]
Ega raspava phosphoros na sola para accender o charuto. E resmungava:
—Sim, o velho Affonso é granitico...
Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz: consistia em esconder ao avô o
passado de Maria—e fazer-lhe conhecer a pessoa de Maria. Casavam secretamente em Italia.
Regressavam: ella para a rua de S. Francisco, elle filialmente para o Ramalhete. Depois Carlos
levava o avô a casa da sua boa amiga, que conhecera em Italia, M.
me de Mac-Gren. Para o
prender logo lá estavam os encantos de Maria, todas as graças d'um interior delicado e sério,
jantarinhos perfeitos, idéas justas, Chopin, Beethoven, etc. E, para completar a conquista de
quem tão enternecidamente adorava crianças, lá estava Rosa... Emfim, quando o avô
estivesse namorado de Maria, da pequena, de tudo—elle, uma manhã, dizia-lhe francamente:
«Esta creatura superior e adoravel teve uma quéda no seu passado; mas eu casei com ella; e,
sendo tal como é, não fiz bem, apesar de tudo, em a escolher para minha esposa?» E o avô,
perante esta terrivel irremediabilidade do facto consummado, com toda a sua indulgencia de
velho enternecido a defender Maria—seria o primeiro a pensar que, se esse casamento não era
o melhor segundo as regras do mundo, era decerto o melhor segundo os interesses do
coração...
—Pois não te parece, Ega?
Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E
[248]
pensava que Carlos, em resumo, adoptára
para com o avô a complicada combinação que Maria Eduarda tentára para com elle—e imitava
sem o sentir os subtis raciocinios d'ella.
—E acabou-se, continuava Carlos. Se elle na sua indulgencia aceitar tudo, bravo! dá-se
uma grande festa no Ramalhete... Senão, foi-se! passaremos a viver cada um para seu lado,
fazendo ambos prevalecer a superioridade de duas coisas excellentes: o avô as tradições do
sangue, eu os direitos do coração.
E, vendo o Ega ainda silencioso:
—Que te parece? Dize lá. Tu andas tão falto de idéas, homem!
O outro sacudiu a cabeça, como despertando.
—Queres que te diga o que me parece, com franqueza? Que diabo, nós somos dois
homens fallando como homens!... Então aqui está: teu avô tem quasi oitenta annos, tu tens
vinte e sete ou o quer que seja... É doloroso dizel-o, ninguem o diz com mais dôr que eu, mas
teu avô ha de morrer... Pois bem, espera até lá. Não cases. Suppõe que ella tem um pae muito
velho, teimoso e caturra, que detesta o snr. Carlos da Maia e a sua barba em bico. Espera;
continúa a vir á
Toca, na tipoia do Mulato; e deixa teu avô acabar a sua velhice calma, sem
desillusões e sem desgostos...
Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da victoria. Nunca, n'esses dias de
inquietação, lhe acudira idéa tão sensata, tão facil! Sim, era
[249]
isso, esperar! Que melhor dever do
que poupar ao pobre avô toda a dôr?... Maria de certo, como mulher, estava desejando
anciosamente a conversão do amante no marido pelo laço d'estola que tudo purifica e
nenhuma força desata. Mas ella mesma preferiria uma consagração legal—que não fosse
assim precipitada, dissimulada... Depois, tão recta e generosa, comprehenderia bem a
obrigação suprema de não mortificar aquelle santo velho. De resto, não conhecia ella a sua
lealdade solida e pura como um diamante? Recebera a sua palavra: desde esse momento
estavam casados, não diante do sacrario e nos registos da sacristia—mas diante da honra e na
inabalavel communhão dos seus corações...
—Tens razão! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. Tens immensamente razão! Essa
idéa é genial! Devo esperar... E emquanto espero?...
—Como, emquanto esperas? acudiu Ega, rindo. Que diabo! Isso não é commigo!
E mais sério:
—Emquanto esperas tens esse metal vil que faz a existencia nobre. Installas tua mulher,
porque desde hoje é tua mulher, aqui nos Olivaes ou n'outro sitio, com o gosto, o conforto e a
dignidade que competem a tua mulher... E deixas-te ir! Nada impede que façaes essa viagem
nupcial á Italia... Voltas, continúas a fumar a tua
cigarette e a deixar-te ir. Este é o bom senso:
é assim que pensaria
[250]
o grande Sancho Pansa... Que diabo tens tu n'aquelle embrulho que
cheira tão bem?
—Um ananaz... Pois é isso, querido: esperar, deixar-me ir. É uma idéa!
Uma idéa! e a mais grata ao temperamento de Carlos. Para que iria com effeito enredar-se
n'uma meada de amarguras domesticas, por um excesso de cavalheirismo romantico? Maria
confiava n'elle; era rico, era moço; o mundo abria-se ante elles facil e cheio de indulgencias.
Não tinha senão a deixar-se ir.
—Tens razão, Ega! E Maria é a primeira a achar isto cheio de senso e d'
opportunismo. Eu
tenho uma certa pena em adiar a installação da minha vida e do meu
home. Mas, acabou-se!
Antes de tudo que o avô seja feliz... E para celebrar o advento d'esta idéa, Deus queira que
Maria nos tenha um bom jantar!
Agora, ao aproximar-se da
Toca, Ega ia receando o primeiro encontro com Maria Eduarda.
Incommodava-o esse enleio, esse rubor que ella não poderia occultar—certa que, como
confidente de Carlos, elle conhecia a sua vida, as suas miserias, as suas relações com Castro
Gomes. Por isso hesitára em vir á
Toca. Mas tambem, não apparecer mais a Maria Eduarda
seria marcar com um relevo quasi offensivo o desejo caridoso de não molestar o seu pudor...
Por isso decidira «dar o mergulho d'uma vez». Quem, senão elle, deveria ser o mais apressado
em estender a mão á
[251]
noiva de Carlos?... Além d'isso tinha uma infinita curiosidade de vêr no
seu interior, á sua mesa, essa creatura tão bella, com a sua graça nobre de Deusa moderna!
Mas saltou da victoria muito embaraçado.
Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava, sentada nos degraus
do jardim. Teve um sobresalto, córou toda, com effeito, ao avistar o Ega que procurava
atarantadamente o monoculo: o aperto de mão que trocaram foi mudo e timido: mas Carlos,
alegremente, desembrulhára o ananaz—e na admiração d'elle todo o constrangimento se
dissipou.
—Oh! é magnifico!
—Que côr, que luxo de tons!
—E que aroma! Veio perfumando toda a estrada.
Ega não voltára á
Toca desde a noite fatal da
soirée dos Cohens em que elle alli tanto
bebera e delirára tanto. E lembrou logo a Carlos a jornada na velha traquitana, debaixo d'um
temporal, o
grog do Craft, a ceia de perú...
—Já aqui soffri muito, minha senhora, vestido de Mephistopheles!...
—Por causa de Margarida?
—Por quem se ha de soffrer n'este apaixonado mundo, minha senhora, senão por
Margarida ou por Fausto?
Mas Carlos quiz que elle admirasse os esplendores novos da
Toca. E foi já com
familiaridade
[252]
que Maria o levou pelas salas, lamentando que só viesse assim á
Toca no fim do
verão e no fim das flôres. Ega extasiou-se ruidosamente. Emfim, perdera a
Toca o seu ar
regelado e triste de museu! Já alli se podia palrar livremente!
—Isto é um barbaro, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror á arte! É um Ibero, é um
Semita...
Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Aryano! E por isso mesmo não podia viver
n'uma casa, em que cada cadeira tinha a solemnidade sorumbatica de antepassados com
cabelleira...
—Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do seculo dezoito lembram antes a
ligeireza, o espirito, a graça de maneiras...
—V. exc.
a acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses enramalhetados, esses
rococós lembram-me uma vivacidade estouvada e sirigaita... Nada! nós vivemos n'uma
Democracia! E não ha para exprimir a alegria simples, sólida e bonacheirona da Democracia,
como largas poltronas de marroquim, e o mogno envernizado!...
Assim n'uma risonha, ligeira discussão sobre bric-à-brac, desceram ao jardim.
Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado na mão. Ega,
que conhecia já os seus ardores nocturnos, cravou-lhe sôfregamente o monoculo; e emquanto
Maria se abaixára a cortar um geranio, exprimiu a Carlos n'um gesto mudo a sua admiração
por aquelle beicinho
[253]
escarlate, aquelle seiosinho redondo de rola farta... Depois, ao fundo,
junto do caramanchão, encontraram Rosa que se
balouçava. Ega pareceu deslumbrado com a sua belleza, a sua
frescura mate de camelia branca. Pediu-lhe um beijo. Ella exigiu
primeiro, muito séria, que elle tirasse o vidro do olho.
—Mas é para te vêr melhor! é para te
vêr melhor!...
—Então porque não trazes um em cada olho? Assim
só me vês metade...
Encantadora! encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a pequena
espevitada e impudente. Maria resplandecia.
E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo
á sopa, fallando-se de campo e d'um
chalet que elle desejava
construir em Cintra, nos Capuchos, dissera—«quando nos
casarmos». E Ega alludiu a esse futuro do modo mais grato ao
coração de Maria. Agora que Carlos se
installava para sempre n'uma felicidade estavel (dizia elle) era
necessario trabalhar! E relembrou então a sua velha
idéa do Cenaculo, representado por uma
Revista que dirigisse a
litteratura, educasse o gosto, elevasse a politica, fizesse a
civilisação, remoçasse o carunchoso
Portugal... Carlos, pelo seu espirito, pela sua fortuna (até
pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar a
direcção d'este movimento. E que profunda alegria
para o velho Affonso da Maia!
Maria escutava, presa e séria. Sentia bem quanto
[254]
Carlos, com uma vida toda de
intelligencia e de actividade, rehabilitaria supremamente aquella
união mostrando-lhe a influencia fecunda e purificadora.
—Tem razão, tem bem razão! exclamava ella com
ardor.
—Sem contar, acrescentava o Ega, que o paiz precisa de nós!
Como muito bem diz o nosso querido e imbecilissimo Gouvarinho, o paiz
não tem pessoal... Como ha de tel-o, se nós, que
possuimos as aptidões, nos contentamos em governar os nossos
dog-carts e escrever a vida intima dos atomos? Sou eu, minha senhora,
sou eu que ando a escrever essa biographia d'um atomo!... No fim, este
dilettantismo é absurdo. Clamamos por ahi, em botequins e
livros, «que o paiz é uma
choldra». Mas que diabo! Porque é que
não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e
pelo molde perfeito das nossas idéas?... V. exc.
a
não
conhece este paiz, minha senhora. É admiravel! É
uma
pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão toda
está em quem a trabalha. Até aqui a cera tem
estado em mãos brutas, banaes, toscas, reles, rotineiras...
É necessario pôl-a em mãos d'artistas,
nas nossas. Vamos fazer d'isto um
bijou!...
Carlos ria, preparando n'uma travessa o ananaz com sumo de laranja e
vinho da Madeira. Mas Maria não queria que elle risse. A
idéa do Ega parecia-lhe superior, inspirada n'um alto dever.
Quasi tinha remorsos, dizia ella, d'aquella preguiça de
Carlos. E agora, que ia ser cercado de affeição
[255]
serena, queria-o vêr trabalhar,
mostrar-se, dominar...
—Com effeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance
findou. E agora...
Mas o Domingos servia o ananaz. E o Ega provou e rompeu em clamores de
enthusiasmo. Oh que maravilha! Oh que delicia!
—Como fazes tu isto? Com Madeira...
—E genio! exclamou Carlos. Delicioso, não é
verdade? Ora digam-me se tudo o que eu pudesse fazer pela
civilisação valeria este prato de
ananaz! É para estas coisas que eu vivo! Eu não
nasci para fazer civilisação...
—Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flôres d'essa planta
da civilisação que a
multidão rega com o seu suor! No fundo tambem eu, menino!
Não, não! Maria não queria que
fallassem assim!
—Esses ditos estragam tudo. E o snr. Ega, em logar de corromper
Carlos, devia inspiral-o...
Ega protestou requebrando o olho, já languido. Se Carlos
necessitava uma musa inspiradora e benefica—não podia ser
elle, bicho com barbas e bacharel em leis... A musa estava
toute
trouvée!
—Ah, com effeito!... Quantas paginas bellas, quantas nobres
idéas se não podem produzir n'um paraiso
d'estes!...
E o seu gesto molle e acariciador indicava a
Toca, a
quietação dos arvoredos, a belleza de Maria.
Depois na sala, emquanto Maria tocava um nocturno
[256]
de Chopin e Carlos e elle
acabavam os charutos á porta do jardim vendo nascer a
lua—Ega declarou que, desde o começo do jantar, estava com
idéas de casar!... Realmente não havia nada como
o casamento, o interior, o ninho...
—Quando penso, menino, murmurou elle mordendo sombriamente o charuto,
que quasi todo um anno da minha vida foi dado áquella
israelita devassa que gosta de levar bordoada...
—Que faz ella em Cintra? perguntou Carlos.
—Ensopa-se na crapula. Não ha a menor duvida que
dá todo o seu coração ao Damaso...
Tu sabes o que n'estes casos significa o termo
coração...
Viste já immundicie igual? É simplesmente
obscena!
—E tu adóral-a, disse Carlos.
O outro não respondeu. Depois, dentro, n'um odio repentino
da bohemia e do romantismo, entoou louvores sonoros á
familia, ao trabalho, aos altos deveres humanos—bebendo copinhos de
cognac. Á meia noite, ao sahir, tropeçou duas
vezes na
rua d'acacias, já vago, citando Proudhon. E quando Carlos o
ajudou a subir para a victoria, que elle quiz descoberta para ir
communicando com a lua, Ega ainda lhe agarrou o braço para
lhe fallar da
Revista, d'um forte vento de
espiritualidade e de virtude viril que se devia fazer soprar sobre o
paiz... Por fim, já estirado no assento, tirando o
chapéo
á aragem da noite:
—E outra coisa, Carlinhos. Vê se me arranjas
[257]
ingleza... Ha vicios deliciosos n'aquellas pestanas baixas...
Vê se m'a arranjas... Vá lá,
bate lá, cocheiro! Caramba, que belleza de noite!
Carlos ficára encantado com este primeiro jantar d'amizade
na
Toca. Elle tencionava
não apresentar Maria aos seus intimos senão
depois de casado e á volta de Italia. Mas agora a
«união legal» estava já no
seu pensamento adiada, remota,
quasi dispersa no vago. Como dizia o Ega, devia esperar, deixar-se
ir... E no emtanto, Maria e elle não poderiam isolar-se alli
todo um longo inverno, sem o calor sociavel d'alguns amigos em redor.
Por isso uma manhã, encontrando o Cruges, que fôra
o visinho de Maria e outr'ora lhe dava noticias da «lady
ingleza», pediu-lhe para vir
jantar á
Toca no domingo.
O maestro appareceu n'uma tipoia, á tardinha, de
laço branco e de casaca: e os fatos claros de campo com que
encontrou Carlos e Ega começaram logo a enchel-o de
mal-estar. Toda a mulher, além das Lolas e Conchas, o
atarantava, o emmudecia: Maria, «com o seu porte de
grande-dame», como elle
dizia, intimidou-o a tal ponto que ficou diante d'ella, sem uma
palavra, escarlate, torcendo o forro das algibeiras. Antes de jantar,
por lembrança de Carlos, foram-lhe mostrar a quinta. O pobre
maestro, roçando a casaca mal feita pela
[258]
folhagem dos arbustos, fazia
esforços anciosos por murmurar algum elogio
«á belleza do
sitio»; mas escapavam-lhe então inexplicavelmente
coisas reles, em calão: «vista catita»!
«é pitada»! Depois ficava furioso,
coberto de suor, sem comprehender como se lhe babavam dos labios esses
ditos abominaveis, tão contrarios ao seu gosto fino
d'artista. Quando se sentou á mesa soffria um negrissimo
accesso de
spleen e mudez! Nem uma
controversia que Maria arranjára caridosamente para elle
sobre Wagner e Verdi pôde descerrar-lhe os labios
empedernidos. Carlos ainda tentou envolvel-o na alegria da
mesa—contando a ida a Cintra, quando elle procurava Maria na Lawrence,
e em vez d'ella achára uma matrona obesa, de bigode, de
cãosinho ao collo, ralhando com o homem em hespanhol. Mas a
cada exclamação de
Carlos—«Lembras-te, Cruges?»,
«Não é verdade,
Cruges?»—o maestro, rubro, grunhia apenas um
sim avaro. Terminou por estar alli,
ao lado de Maria, como um trambolho funebre. Estragou o jantar.
Combinára-se para depois do café um passeio pelos
arredores, n'um break. E Carlos já tomára
as guias, Maria na almofada acabava de abotoar as luvas—quando Ega,
que receava a friagem da tarde, saltou do break, correu a buscar o
paletot. N'esse mesmo momento sentiram um trote de cavallo na
estrada—e appareceu o marquez.
Foi uma surpreza para Carlos, que o não vira durante esse
verão. O marquez parou logo, tirando
[259]
profundamente, ao vêr
Maria, o seu largo
chapéo desabado.
—Imaginava-o pela Gollegã! exclamou Carlos. Foi
até o Cruges que me disse... Quando chegou vossê?
Chegára na vespera. Lá fôra ao
Ramalhete; tudo deserto. Agora vinha aos Olivaes vêr um dos
Vargas que tinha casado, se installára alli perto, a passar
o noivado...
—Quem, o gordo, o das corridas?
—Não, o magro, o das regatas.
Carlos, debruçado da almofada, examinava a egoasita do
marquez, pequena, bem estampada, d'um baio escuro e bonito.
—Isso é novo?
—Uma facasita do Darque... Quer-m'a vossê comprar? Sou
já um pouco pesado para ella, e isto mette-se a um
dog-cart...
—Dê lá uma volta.
O marquez deu a volta, bem posto na sella, avantajando a egoa. Carlos
achou-lhe «boas
acções». Maria
murmurou—«Muito bonita, uma cabeça
fina...» Então Carlos apresentou o marquez de
Souzella a madame Mac-Gren. Elle chegou a egoa á roda,
descoberto, para apertar a mão a Maria: e á
espera do Ega que se eternisava lá dentro,
ficaram fallando do verão, de Santa Olavia, dos Olivaes, da
Toca... Ha que tempos o marquez
alli não passava! A ultima vez fôra victima da
excentricidade do Craft...
[260]
—Imagine v. exc.
a, disse elle a Maria Eduarda,
que esse Craft me
convida a almoçar. Venho, e o hortelão diz-me que
o snr. Craft, criado e cozinheiro, tudo partira para o Porto; mas que o
snr. Craft deixára um cartaz na sala... Vou á
sala, e vejo dependurado ao pescoço d'um idolo japonez uma
folha de papel com estas palavras pouco mais ou menos: «O
deus Tchi tem a honra de convidar o snr. marquez, em nome de seu amo
ausente, a passar á sala de jantar onde
encontrará, n'um
aparador, queijo e vinho, que é o almoço que
basta ao homem forte.» E foi com effeito o meu
almoço... Para não estar só,
partilhei-o com o
hortelão.
—Espero que se tivesse vingado! exclamou Maria rindo.
—Póde crêr, minha senhora... Convidei-o a jantar,
e quando elle appareceu, vindo d'aqui da
Toca, o meu guarda-portão
disse-lhe que o snr. marquez fôra para longe, e que
não havia nem
pão nem queijo... Resultado: o Craft mandou-me uma duzia de
magnificas garrafas de Chambertin. Esse deus Tchi nunca mais o tornei a
vêr...
O deus Tchi lá estava, obeso e medonho. E, muito
naturalmente, Carlos convidou o marquez a revisitar n'essa noite,
á volta da casa do Vargas, o seu velho amigo Tchi.
O marquez veio, ás dez horas—e foi um serão
encantador. Conseguiu sacudir logo a melancolia do Cruges, arrastando-o
com mão de ferro para o piano; Maria cantou; palrou-se com
graça; e aquelle
[261]
escondrijo d'amor ficou
alumiado até tarde, na sua primeira festa de amizade.
Estas reuniões alegres foram ao principio, como dizia o Ega,
dominicaes: mas o
outono arrefecia, bem depressa se despiriam as arvores da
Toca, e Carlos accumulou-as duas
vezes por semana, nos velhos dias feriados da Universidade, domingos e
quintas. Tinha descoberto uma admiravel cozinheira alsaciana, educada
nas grandes tradições, que servira o bispo de
Strasburgo, e a quem as extravagancias d'um filho e outras
desgraças tinham arrojado a Lisboa. Maria, de resto, punha
na
composição dos seus jantares uma sciencia
delicada: o dia de vir á
Toca era
considerado pelo marquez «dia de
civilisação».
A mesa resplandecia; e as tapeçarias representando massas
d'arvoredos punham em redor como a sombra escura d'um retiro silvestre
onde por um capricho se tivessem accendido candelabros de prata. Os
vinhos sahiam da frasqueira preciosa do Ramalhete. De todas as coisas
da terra e do céo se grulhava com phantasia—menos de
«politica portugueza», considerada conversa
indecorosa entre pessoas de gosto.
Rosa apparecia ao café, exhalando do seu sorriso, dos
bracinhos nús, dos vestidos brancos tufados sobre as meias
de sêda preta, um bom aroma de flôr. O marquez
adorava-a, disputando-a ao Ega, que a pedira a Maria em casamento e lhe
andava compondo havia tempo um soneto. Ella preferia
[262]
o marquez: achava o Ega
«muito...»—e completava o seu pensamento com um
gestosinho do dedo ondeado no ar, como a exprimir que o Ega
«era muito retorcido».
—Ahi está! exclamava elle. Porque eu sou mais civilisado
que o outro! É a simplicidade não
comprehendendo o requinte.
—Não, desgraçado! exclamavam do lado.
É porque és impresso!... É a natureza
repellindo a convenção!...
Bebia-se á saude de Maria: ella sorria, feliz entre os seus
novos amigos, divinamente bella, quasi sempre de escuro, com um curto
decote onde resplandecia o incomparavel esplendor do seu collo.
Depois organisaram-se solemnidades. N'um domingo, em que os sinos
repicavam e a distancia foguetes esfuziavam no ar—Ega lamentou que os
seus austeros principios philosophicos o impedissem de festejar tambem
aquelle santo d'aldeia, que fôra decerto em vida um caturra
encantador, cheio d'illusões e doçura... Mas de
resto,
acrescentou, não teria sido n'um dia assim, fino e secco,
sob um grande céo cheio de sol, que se feriu a batalha das
Thermopylas? Porque não se atiraria uma girandola de
foguetes em honra de Leonidas e dos trezentos? E atirou-se a girandola
pela eterna gloria de Sparta.
Depois celebraram-se outras datas historicas. O anniversario da
descoberta da Venus de Milo foi commemorado com um balão que
ardeu. N'outra
[263]
occasião o marquez trouxe de Lisboa, apinhados n'uma tipoia,
fadistas famosos, o
Pintado, o
Vira-vira e o
Gago: e depois de jantar,
até tarde, com o luar sobre o rio, cinco guitarras choraram
os ais mais tristes dos fados de Portugal.
Quando estavam sós, Carlos e Maria passavam as suas
manhãs no kiosque japonez—affeiçoados
áquelle primeiro retiro dos seus amores, pequeno e apertado,
onde os seus corações batiam mais perto um do
outro. Em logar das esteiras de palha Carlos revestira-o com as suas
formosas colchas da India, côr de palha e côr de
perola. Um dos maiores cuidados d'elle, agora, era embellezar a
Toca: nunca voltava de Lisboa sem
trazer alguma figurinha de Saxe, um marfim, uma faiança,
como noivo feliz que aperfeiçôa o seu ninho.
Maria no emtanto não cessava de lembrar os planos
intellectuaes do Ega: queria que elle trabalhasse, ganhasse um nome:
seria isso o orgulho intimo d'ella, e sobretudo a alegria suprema do
avô. Para a contentar (mais que para satisfazer as suas
necessidades de espirito) Carlos recomeçára a
compôr alguns dos seus artigos de medicina litteraria para a
Gazeta Medica. Trabalhava no
kiosque, de manhã. Trouxera para lá rascunhos,
livros, o seu famoso manuscripto da
Medicina antiga e
moderna. E por fim achára um grande
encanto em estar alli, com um leve casaco de sêda, as suas
cigarettes ao lado, um fresco murmurio de arvoredo em redor—cinzelando
as suas phrases, emquanto ella ao
[264]
lado bordava silenciosa. As suas
idéas surgiam com mais originalidade, a sua fórma
ganhava em colorido, n'aquelle estreito kiosque assetinado que ella
perfumava com a sua presença. Maria respeitava este trabalho
como coisa nobre e sagrada. De manhã, ella mesma espanejava
os livros do leve pó que a aragem soprava pela janella;
dispunha o papel branco, punha cuidadosamente pennas novas; e andava
bordando uma almofada de pennas e setim para que o trabalhador
estivesse mais confortavel na sua vasta cadeira de couro lavrado.
Um dia offerecera-se a passar a limpo um artigo. Carlos, enthusiasmado
com a letra d'ella, quasi comparavel á lendaria letra do
Damaso, occupava-a agora incessantemente como copista, sentindo mais
amor por um trabalho a que ella se associava. Quantos cuidados se dava
a dôce creatura! Tinha para isso um papel especial, d'um tom
macio de marfim: e, com o dedinho no ar, ia desenrolando as pesadas
considerações de Carlos sobre o
Vitalismo e o Transformismo na graça delicada d'uma renda...
Um beijo pagava-a de tudo.
Ás vezes Carlos dava lições a
Rosa—ora de historia, contando-lh'a familiarmente como um conto de
fadas; ora de geographia, interessando-a pelas terras onde vivem gentes
negras, e pelos velhos rios que correm entre as ruinas dos santuarios.
Isto era o prazer mais alto de Maria. Séria, muda, cheia de
religião, escutava aquelle sêr bem-amado ensinando
sua filha. Deixava escapar das mãos o
[265]
trabalho—e o interesse de Carlos, a enlevada
attenção de Rosa sentada aos pés
d'elle, bebendo aquellas bellas historias de Joanna d'Arc ou das
caravellas que foram á India, fazia resplandecer nos seus
olhos uma nevoa de lagrimas felizes...
Desde o meado d'outubro Affonso da Maia fallava da sua partida de Santa
Olavia, retardada apenas por algumas obras que
começára na parte velha da casa e nas cocheiras:
porque ultimamente invadira-o a paixão de
edificar—sentindo-se remoçar, como elle dizia, no contacto
das madeiras novas e no cheiro vivo das tintas. Carlos e Maria pensavam
tambem em abandonar os Olivaes. Carlos não poderia por dever
domestico permanecer alli installado desde que o avô
recolhesse ao Ramalhete. Além d'isso aquelle fim d'outono ia
escuro e agreste; e a
Toca era agora
pouco
bucolica, com a quinta desfolhada e alagada, uma nevoa sobre o rio, e
um fogão unico no gabinete de
cretones—além da sumptuosa chaminé da sala de
jantar, que, por entre os seus Nubios d'olhos de crystal, soltava uma
fumaraça odiosa quando o Domingos a tentava accender.
N'uma d'essas manhãs, Carlos, que ficára
até tarde com Maria, e depois no seu delgado casebre mal
pudera dormir com um temporal de vento e agua desencadeado de
madrugada—ergueu-se ás
[266]
nove horas, veio á
Toca.
As janellas do quarto de Maria conservavam-se ainda cerradas; a
manhã clareára; a quinta lavada, meio despida, no
ar fino e azul, tinha uma linda e silenciosa graça
d'inverno. Carlos passeava, olhando os vasos onde os chrysanthemos
floriam, quando retiniu a sineta do portão. Era o toque do
carteiro. Justamente elle escrevera dias antes ao Cruges, perguntando
se estaria desoccupado para os primeiros frios de dezembro o andar da
rua de S. Francisco: e, esperando carta do maestro, foi abrir,
acompanhado por
Niniche. Mas o
correio, n'essa
manhã, consistia apenas n'uma carta do Ega e dois numeros de
jornal cintados—um para elle, outro para «Madame Castro
Gomes, na quinta do snr. Craft, aos Olivaes».
Caminhando sob as acacias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da vespera,
com a data «á noite,
á pressa». E dizia: «—Lê,
n'esse trapo que
te mando, esse superior pedaço de prosa que lembra Tacito.
Mas não te assustes; eu supprimi, mediante pecunia, toda a
tiragem, com excepção de dois numeros mais que
foram, um para a
Toca, outro (oh
logica suprema dos
habitos constitucionaes!) para o Paço, para o chefe do
Estado!... Mas esse mesmo não chegará ao seu
destino. Em todo o caso desconfio de que esgôto sahiu esse
enxurro e precisamos providenciar! Vem já! Espero-te
até ás duas. E, como
Iago dizia a Cassio—
mette dinheiro na
bolsa.»
[267]
Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a
Corneta do Diabo: e na
impressão, no papel, na abundancia dos
italicos, no typo
gasto, todo elle revelava immundicie e malandrice. Logo na primeira
pagina duas cruzes a lapis marcavam um artigo que Carlos, n'um relance,
viu salpicado com o seu nome. E leu isto: «—Ora viva,
sô Maia! Então
já se não vai ao consultorio, nem se
vêem os doentes do bairro,
sô
janota?—Esta piada era botada no Chiado, á porta da
Havaneza, ao Maia, ao Maia dos cavallos inglezes, um tal Maia do
Ramalhete, que abarrota por ahi de
catita; e o pai Paulino
que tem olho e que
passava n'essa occasião ouviu a seguinte
cornetada:—É que o
sô Maia acha
que é mais quente viver
nas fraldas d'uma
brazileira casada,
que nem
é brazileira nem é casada, e a quem o papalvo poz
casa, ahi para o lado dos Olivaes, para
estar ao
fresco! Sempre os ha n'este mundo!... Pensa o homem
que botou conquista; e cá a rapaziada de gosto ri-se, porque
o que a gaja lhe quer não são os lindos olhos,
são as lindas
louras... O simplorio, que bate ahi
pilecas
bifes, que nem
que fosse o
marquez, o verdadeiro
Marquez,
imaginava que se estava abiscoitando com uma senhora do
chic, e do boulevard de Paris, e
casada, e titular!... E no fim (não, esta é para
a gente deixar estoirar o bandulho a rir!) no fim descobre-se que a
typa era uma
cocotte safada, que
trouxe para ahi um brazileiro
já farto
d'ella para a passar cá
[268]
aos bellos lusitanos... E cahiu a
espiga ao Maia! Pobre palerma! Ainda assim o
sô Maia só
apanhou os restos d'outro, porque a
typa,
já antes d'elle se enfeitar, tinha
pandegado á
larga, ahi para a rua de S. Francisco, com um rapaz
da fina, que se safou tambem, porque cá como nós
só
aprecia a bella
hespanhola. Mas não obsta a que o
sô Maia seja
traste!—Pois se assim é, dissemos nós,
cautelinha, porque o diabo cá tem a sua
Corneta preparada para
cornetear por esse mundo as façanhas do
Maia das
conquistas. Ora viva,
sô Maia!»
Carlos ficou immovel entre as acacias, com o jornal na mão,
no espanto furioso e mudo d'um homem que subitamente recebe na face uma
grossa chapada de lôdo! Não era a
cólera de
vêr o seu amor assim aviltado na publicidade chula d'um
jornal sordido: era o horror de sentir aquellas phrases em
calão, pandilhas, afadistadas, como só Lisboa as
póde crear, pingando fetidamente, á maneira de
sebo, sobre si, sobre Maria, sobre o esplendor da sua
paixão... Sentia-se todo emporcalhado. E uma unica
idéa surgia através da sua
confusão—matar o bruto que escrevera aquillo.
Matal-o! Ega sustára a tiragem da folha, Ega pois conhecia o
folliculario. Nada importava que aquelles numeros, que tinha na
mão, fossem os unicos impressos. Recebera lama na face. Que
a injuria fosse espalhada nas praças n'uma profusa
publicidade ou lhe fosse atirada só a elle escondidamente
[269]
n'um papel
unico, era igual... Quem tanto ousára tinha de cahir,
esmagado!
Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos á janella da
cozinha areava pratas, assobiando. Mas quando Carlos lhe fallou de ir
buscar um calhambeque aos Olivaes, o bom Domingos consultou o relogio:
—V. exc.
a tem ás onze horas a
caleche do
Torto que a senhora mandou
cá estar para ir a Lisboa...
Carlos, com effeito, recordou-se que Maria na vespera
planeára ir á Aline e aos livreiros. Uma
contrariedade, justamente n'esse dia em que elle precisava ficar
livre—elle e a sua bengala! Mas Melanie, passando então com
um jarro d'agua quente, disse que a senhora ainda se não
vestira, que talvez nem fosse a Lisboa... E Carlos recomeçou
a passear, no tapete de relva, entre as nogueiras.
Sentou-se por fim no banco de cortiça, descintou a
Corneta sobrescriptada para Maria,
releu lentamente a prosa immunda: e, n'esse numero que lhe
fôra destinado a ella, todo aquelle calão lhe
pareceu mais ultrajante, intoleravel, punivel só com sangue.
Era monstruoso, na verdade, que sobre uma mulher, quieta, innoffensiva
no silencio da sua casa, alguem ousasse tão brutalmente
arremessar esse lôdo ás mãos cheias! E
a sua
indignação alargava-se do folliculario que
babára
aquillo—até á sociedade que, na sua
decomposição,
produzira o folliculario. Decerto toda a cidade soffria
[270]
a sua vermina... Mas
só Lisboa, só a horrivel Lisboa, com o seu
apodrecimento moral, o seu rebaixamento social, a perda inteira do
bom-senso, o desvio profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu
calão, podia produzir uma
Corneta do
Diabo.
E, no meio d'esta alta cólera de moralista, uma
dôr perpassava, precisa e dilacerante. Sim, toda a sociedade
de Lisboa fazia um monturo sordido n'este canto do mundo—mas, em
summa, havia no artigo da
Corneta
uma calumnia?
Não. Era o passado de Maria, que ella arrancára
de si como um vestido rôto e sujo, que elle mesmo
enterrára muito fundo, deitando-lhe por cima o seu amor e o
seu nome—e que alguem desenterrava para o mostrar bem alto ao sol, com
as suas manchas e os seus rasgões... E isto agora
ameaçava para sempre a sua vida como um terror sobre ella
suspenso. Debalde elle perdoára, debalde elle esquecera. O
mundo em redor sabia. E a todo o tempo o interesse ou a perversidade
poderiam refazer o artigo da
Corneta.
Ergueu-se, abalado. E então alli, sob essas arvores
desfolhadas, onde durante o verão, quando ellas se enchiam
de sombra e de murmurio, elle passeára com Maria, esposa
eleita da sua vida—Carlos perguntou pela vez primeira a si mesmo se a
honra domestica, a honra social, a pureza dos homens de quem descendia,
a dignidade dos homens que d'elle descendessem lhe permittiam em
verdade casar com ella...
[271]
Dedicar-lhe toda a sua affeição, toda a sua
fortuna, certamente! Mas casar... E se tivesse um filho? O seu filho,
já homem, altivo e puro, poderia um dia lêr n'uma
Corneta do
Diabo que sua mãi fôra amante
d'um brazileiro, depois de ser amante d'um irlandez. E se seu filho lhe
viesse gritar, n'uma bella indignação,
«é
uma calumnia?»—elle teria de baixar a cabeça,
murmurar—«é uma verdade!» E seu filho
veria para sempre collada a si aquella mãi de quem o mundo
ignorava os martyrios e os encantos—mas de quem conhecia cruelmente os
erros.
E ella mesma! Se elle appellasse para a sua razão, alta e
tão recta, mostrando-lhe as
zombarias e as affrontas de que uma vil
Corneta do
Diabo poderia um dia trespassar o filho que d'elles
nascesse—ella mesma o desligaria alegremente do seu voto, contente em
entrar no Ramalhete pela escadinha secreta forrada de velludo
côr de cereja, comtanto que em cima a esperasse um amor
constante e forte... Nunca ella tornára, em todo o
verão, a alludir a uma união differente d'essa em
que os seus corações viviam tão
lealmente, tão confortavelmente. Não, Maria
não era uma devota, preoccupada «do peccado
mortal»! Que lhe podia importar a estola banal do padre?...
Sim; mas elle que lhe pedira essa consagração na
hora mais commovida do seu longo amor, iria dizer-lhe
agora—«foi uma criancice, não pensemos mais
n'isso, desculpa?» Não; nem o seu
coração
[272]
o desejava! Antes pendia todo
para ella... Pendia todo para ella, n'um enternecimento mais generoso e
mais quente—emquanto a sua razão assim arengava, cautelosa
e austera. Elle tinha n'aquella alma o seu culto perfeito, n'aquelles
braços a sua voluptuosidade magnifica; fóra
d'alli não havia
felicidade; a unica sabedoria era prender-se a ella pelo derradeiro
elo, o mais forte, o seu nome, embora as
Cornetas do
Diabo
atroassem todo o ar. E assim affrontaria o mundo n'uma soberba revolta,
affirmando a omnipotencia, o reino unico da Paixão... Mas
primeiro mataria o folliculario!—Passeava, esmagava a relva. E todos
os seus pensamentos se resolviam por fim em furia contra o infame que
babára sobre o seu amor, e durante um instante introduzia na
sua vida tanta incerteza e tanto tormento!
Maria ao lado abriu a janella. Estava vestida d'escuro para sahir; e
bastou o brilho terno do seu sorriso, aquelles hombros a que o estofo
justo modelava a belleza cheia e quente—para que Carlos detestasse
logo as duvidas desleaes e covardes, a que se abandonára um
momento sob as arvores desfolhadas... Correu para ella. O beijo que lhe
deu, lento e mudo, teve a humildade d'um perdão que se
implora.
—Que tens tu, que estás tão sério?
Elle sorriu. Sério, no sentido de solemne, não
estava. Talvez seccado. Recebera uma carta do Ega, uma das eternas
complicações do Ega. E
[273]
precisava ir a Lisboa, ficar
lá naturalmente toda a noite...
—Toda a noite? exclamou ella com um desapontamento, pousando-lhe as
mãos sobre os hombros.
—Sim, é bem possivel, um horror! Nos negocios do Ega ha
fatalmente o inesperado... Tu com effeito vaes a Lisboa?
—Agora, com mais razão... Se me queres.
—O dia está bonito... Mas ha de fazer frio na estrada.
Maria justamente gostava d'esses dias d'inverno, cheios de sol, com um
arzinho vivo e arripiado. Tornavam-n'a mais leve, mais esperta.
—Bem, bem, disse Carlos atirando o cigarro. Vamos ao
almoço, minha filha... O pobre Ega deve estar a uivar de
impaciencia.
Emquanto Maria correra a apressar o Domingos—Carlos,
através da relva humida, foi ainda lentamente até
ao renque baixo d'arbustos que d'aquelle lado fechava a
Toca como
uma sebe. Ahi a collina descia, com quintarolas, muros brancos,
olivedos, uma grande chaminé de fabrica que fumegava: para
além era o azul fino e frio do rio: depois os montes, d'um
azul mais carregado, com a casaria branca da
povoação aninhada
á beira da agua, nitida e suave na transparencia do ar
macio. Parou um momento, olhando. E aquella aldeia de que nunca soubera
o nome, tão quieta e feliz na luz, deu a Carlos um desejo
repentino de socego e
[274]
de obscuridade, n'um canto assim do mundo, á beira d'agua,
onde ninguem o conhecesse nem houvesse
Cornetas do
Diabo, e elle
pudesse ter a paz d'um simples e d'um pobre debaixo de quatro telhas,
no seio de quem amava...
Maria gritou por elle da janella da sala de jantar, onde se
debruçára a apanhar uma das ultimas rosas
trepadeiras que ainda floriam.
—Que lindo tempo para viajar, Maria!—disse Carlos chegando,
através da relva.
—Lisboa é tambem muito linda, agora, havendo sol...
—Pois sim, mas o Chiado, a coscovilhice, os politiquetes, as gazetas,
todos os horrores... A mim está-me positivamente a appetecer
uma cubata na Africa!
O almoço, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora quando a
caleche do
Torto
começou a rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da
noite. Logo adiante da villa, na descida, cruzaram um coupé
que trepava n'um trote esfalfado. Maria julgou avistar n'elle de
relance o chapéo branco e o monoculo do Ega... Pararam. E
era com effeito o Ega, que reconhecera tambem a caleche da
Toca, vinha já saltitando
as lamas com longas pernadas de cegonha, chamando por Carlos.
Ao vêr Maria ficou atrapalhado:
—Que bella surpreza! Eu ia para lá... Vi o dia
tão bonito, disse commigo...
—Bem, paga a tua tipoia, vem comnosco! atalhou
[275]
Carlos que trespassava o
Ega, com os olhos inquietos, querendo adivinhar o motivo d'aquella
brusca chegada aos Olivaes.
Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega,
embaraçado, sem poder desabafar diante de Maria sobre o caso
da
Corneta, começou, sob os
olhos de Carlos que o não deixavam, a fallar do inverno, das
inundações do Riba-Tejo... Maria lêra.
Uma desgraça, duas crianças
afogadas nos berços, gados perdidos, uma grande miseria! Por
fim Carlos não se conteve:
—Eu lá recebi a tua carta...
Ega acudiu:
—Arranja-se tudo! Está tudo combinado! E com effeito eu
não vim senão por um sentimento bucolico...
Muito discretamente Maria olhára para o rio. Ega fez
então um gesto rapido com os dedos significando
«dinheiro, só questão de
dinheiro». Carlos socegou: e Ega voltou a fallar dos
inundados do Riba-Tejo e do sarau litterario e artistico que em
beneficio d'elles se «ia commetter» no
salão da Trindade... Era uma vasta solemnidade official.
Tenores do parlamento, rouxinoes da litteratura, pianistas ornados com
o habito de S. Thiago, todo o pessoal canoro e sentimental do
constitucionalismo
ia entrar em
fogo. Os reis
assistiam, já se teciam grinaldas de camelias para pendurar
na sala. Elle, apesar de demagogo, fôra convidado para
lêr um episodio das
Memorias d'um
Atomo: recusára-se,
[276]
por modestia, por não
encontrar nas
Memorias nada tão
sufficientemente palerma que agradasse á
capital. Mas lembrára o Cruges; e o
maestro ia ribombar ou arrulhar uma
das suas
Meditações.
Além d'isso havia uma poesia social pelo Alencar. Emfim,
tudo prenunciava uma immensa orgia...
—E a snr.
a D. Maria, acrescentou elle, devia
ir!... É
summamente pittoresco. Tinha v. exc.
a
occasião de
vêr todo o Portugal romantico e
liberal,
à la besogne,
engravatado
de branco, dando tudo que tem n'alma!
—Com effeito devias ir, disse Carlos, rindo. Demais a mais se o Cruges
toca, se o Alencar recita, é uma festa nossa...
—Pois está claro! gritou Ega, procurando
o
monoculo, já excitado. Ha duas coisas
que é necessario vêr em Lisboa... Uma
procissão do Senhor dos Passos e um sarau poetico!
Rolavam então pelo largo do Pelourinho. Carlos gritou ao
cocheiro que parasse no começo da rua do Alecrim: elles
apeavam-se e tomavam de lá o americano para o Ramalhete.
Mas a tipoia estacou antes da calçada, rente ao passeio, em
frente d'uma loja de alfaiate. E n'esse instante achava-se ahi parado,
calçando as suas luvas pretas, um velho alto, de longas
barbas d'apostolo, todo vestido de luto. Ao vêr Maria, que se
inclinára á portinhola, o homem pareceu
assombrado; depois, com uma leve côr na face larga e pallida,
tirou gravemente o chapéo, um
[277]
immenso chapéo de abas
recurvas, á moda de 1830, carregado de crepe.
—Quem é? perguntou Carlos.
—É o tio do Damaso, o Guimarães, disse Maria,
que córára tambem. É curioso, elle
aqui!
Ah, sim! o famoso Mr. Guimarães, o do
Rappel, o intimo de Gambetta! Carlos
recordava-se de ter já encontrado aquelle patriarcha no
Price com o Alencar. Comprimentou-o tambem; o outro ergueu de novo com
uma gravidade maior o seu sombrio chapéo de carbonario. Ega
entalára
vivamente o monoculo para examinar esse lendario tio do Damaso, que
ajudava a governar a França: e depois de se despedirem de
Maria, quando a caleche já subia a rua do Alecrim e elles
atravessavam para o Hotel Central, ainda se voltou seduzido por
aquelles modos, aquellas barbas austeras de revolucionario...
—Bom typo! E que magnifico chapéo, hein! D'onde diabo o
conhece a snr.
a D. Maria?
—De Paris... Este Mr. Guimarães era muito da mãi d'ella. A
Maria já me tinha fallado
n'elle. É um pobre diabo. Nem amigo de Gambetta, nem coisa
nenhuma... Traduz noticias dos jornaes hespanhoes para o
Rappel, e morre de fome...
—Mas então, o Damaso?
—O Damaso é um trapalhão. Vamos nós
ao nosso caso... Essa immundicie que me mandaste, a
Corneta? Dize lá.
Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a
[278]
historia da immundicie.
Fôra na vespera á tarde que recebera no Ramalhete
a
Corneta.
Elle já conhecia o papelucho, já
privára mesmo com o proprietario e redactor—o Palma,
chamado Palma
Cavallão
para se
distinguir d'outro benemerito chamado Palma
Cavallinho. Comprehendeu logo
que se a prosa era do Palma a inspiração era
alheia.
O Palma nada sabia de Carlos, nem de Maria, nem da casa da rua de S.
Francisco, nem da
Toca... Não era natural
que escrevesse por deleite intellectual um documento que só
lhe podia render desgostos e bengaladas. O artigo, pois,
fôra-lhe simplesmente encommendado e pago. No terreno do
dinheiro vence sempre quem tem mais dinheiro. Por este solido principio
correra a procurar o Palma
Cavallão no seu antro.
—Tambem lhe conheces o antro? perguntou Carlos, com horror.
—Tanto não... Fui perguntar á secretaria da
Justiça a um sujeito que esteve associado com elle n'um
negocio de
Almanachs
religiosos...
Fôra pois ao antro. E encontrára as coisas
dispostas pelas mãos habeis d'uma Providencia amiga.
Primeiramente, depois de imprimir cinco ou seis numeros, a machina,
esfalfada na pratica d'aquellas maroteiras, desmanchára-se.
Além
d'isso o bom Palma estava furioso com o cavalheiro que lhe
encommendára o artigo, por divergencia na
seriissima questão de pecunia. De sorte que apenas
elle propôz comprar a tiragem do jornal—o
[279]
jornalista estendeu logo a
mão larga, d'unhas roídas, tremendo de
reconhecimento e de
esperança. Dera-lhe cinco libras que tinha, e a promessa de
mais dez...
—É caro, mas que queres? continuou o Ega. Deixei-me
atarantar, não regateei bastante... E emquanto a dizer quem
é o cavalheiro que encommendou o artigo, o Palma, coitado,
affirma que tem uma rapariga hespanhola a sustentar, que o senhorio lhe
levantou o aluguer da casa, que Lisboa está carissima, que a
litteratura n'este
desgraçado paiz...
—Quanto quer elle?
—Cem mil reis. Mas, ameaçando-o com a policia, talvez
desça a quarenta.
—Promette os cem, promette tudo, comtanto que eu tenha o nome... Quem
te parece que seja?
Ega encolheu os hombros, deu um risco lento no chão com a
bengala. E mais lentamente ainda foi considerando que o inspirador da
Corneta devia ser alguem familiar
com Castro Gomes; alguem frequentador da rua de S. Francisco; alguem
conhecedor da
Toca; alguem que
tinha, por ciume ou vingança, um desejo ferrenho de magoar
Carlos; alguem que sabia a historia de Maria; e emfim alguem que era um
covarde...
—Estás a descrever o Damaso! exclamou Carlos, pallido e
parando.
Ega encolheu de novo os hombros, tornou a riscar o chão:
[280]
—Talvez não... Quem sabe! Emfim, nós vamos
averigual-o com certeza, porque, para terminar a
negociação, fiquei de me ir encontrar com o Palma
ás tres horas no
Lisbonense... E o melhor
é vires tambem. Trazes tu dinheiro?
—Se fôr o Damaso, mato-o! murmurou Carlos.
E não trazia sufficiente dinheiro. Tomaram uma tipoia para
correr ao escriptorio do Villaça. O procurador
fôra a Mafra, a um baptisado. Carlos teve de ir pedir cem mil
reis ao velho Cortez, alfaiate do avô. Quando perto das
quatro horas se apearam á entrada do
Lisbonense, no largo de Santa Justa,
o Palma no portal, com um jaquetão de velludo
coçado e calça de casimira clara collada
á côxa, accendia um cigarro. Estendeu logo
rasgadamente a mão a Carlos—que lhe não tocou. E
Palma
Cavallão, sem se
offender, com a mão abandonada no ar, declarou que ia
justamente sahir, cançado já de esperar em cima
diante d'um
grog frio. De resto
sentia que o
snr. Maia se incommodasse em vir alli...
—Eu arranjava cá o negociosinho com o amigo Ega... Em todo
o caso, se os senhores querem, vamos lá p'ra cima para um
gabinete, que se está mais á vontade, e toma-se
outra bebida.
Subindo a escada lobrega, Carlos recordava-se de ter já
visto aquella luneta de vidros grossos, aquella cara balofa
côr de cidra... Sim, fôra em Cintra, com o
Eusebiosinho e duas hespanholas,
[281]
n'esse dia em que elle
farejára pelas estradas silenciosas, como um cão
abandonado, procurando Maria!... Isto tornou-lhe mais odioso o snr.
Palma. Em cima entraram n'um cubiculo, com uma janella gradeada por
onde resvalava uma luz suja de saguão. Na toalha da mesa,
salpicada de gordura e vinho, alguns pratos rodeavam um galheteiro que
tinha moscas no azeite. O snr. Palma bateu as palmas, mandou vir
genebra. Depois dando um grande puxão ás
calças:
—Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eu
já disse cá ao amigo Ega, em todo este negocio...
Carlos atalhou-o, tocando muito significativamente com a ponteira da
bengala na borda da mesa.
—Vamos ao ponto essencial... Quanto quer o snr. Palma por me dizer
quem lhe encommendou o artigo da
Corneta?
—Dizer quem o encommendou, e proval-o! acudiu o Ega, que examinava na
parede uma gravura onde havia mulheres núas á
beira d'agua. Não nos basta o nome... O amigo Palma,
está
claro, é de toda a confiança... Mas emfim, que
diabo, não é natural que nós
acreditassemos
se o amigo nos dissesse que tinha sido o snr. D. Luiz de
Bragança!
Palma encolheu os hombros. Está visto que havia de dar
provas. Elle podia ter outros defeitos, trapalhão
não! Em negocios era todo franqueza
[282]
e lisura... E, se se
entendessem, alli as entregava logo, essas provas que lhe estavam
enchendo o bolsinho, pimponas e d'escachar! Tinha a carta do amigo que
lhe encommendára a piada: a lista das pessoas a quem se
devia mandar a
Corneta: o rascunho do artigo a
lapis...
—Quer cem mil reis por tudo isso? perguntou Carlos.
O Palma ficou um momento indeciso, ageitando as lunetas com os dedos
molles. Mas o criado veio trazer a garrafa da genebra: e
então o redactor da
Corneta offereceu a
«bebida» rasgadamente, puxou mesmo cadeiras para
aquelles cavalheiros abancarem. Ambos recusaram—Carlos de
pé junto da mesa onde terminára por pousar a
bengala, Ega passando a outra gravura onde dois frades se
emborrachavam. Depois, quando o criado sahiu, Ega acercou-se, tocou com
bonhomia no hombro do jornalista:
—Cem mil reis são uma linda somma, Palma amigo! E olhe que
se lhe offerecem por delicadeza comsigo. Porque artiguinhos como este
da
Corneta, apresentados na Boa-Hora,
levam á grilheta!... Está claro, este caso
é outro, vossê
não teve intenção d'offender; mas
levam á
grilheta!... Foi assim que o Severino marchou para a Africa. Alli no
porãosinho d'um navio, com ração de
marujo e chibatadas. Desagradavel, muito desagradavel. Por isso eu quiz
que tratassemos isto aqui, entre cavalheiros, e em amizade.
[283]
Palma, com a cabeça baixa, desfazia torrões de
assucar dentro do copo de genebra. E suspirou, findou por dizer, um
pouco murcho, que era por ser entre cavalheiros, e com amizade, que
aceitava os cem mil reis...
Immediatamente Carlos tirou da algibeira das calças um
punhado de libras, que começou a deixar
cahir em silencio uma a uma dentro d'um prato. E Palma
Cavallão, agitado
com o tinir do ouro, desabotoou logo o jaquetão, sacou uma
carteira onde reluzia um pesado monogramma de prata sob uma enorme
corôa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou,
estendeu tres papeis sobre a mesa. Ega, que esperava, com o monoculo
sôfrego, teve um brado de triumpho. Reconhecera a letra do
Damaso!
Carlos examinou os papeis lentamente. Era uma carta do Damaso ao Palma,
curta e em calão, remettendo o artigo, recommendando-lhe
«que o apimentasse». Era o rascunho do artigo,
laboriosamente trabalhado pelo Damaso, com entrelinhas. Era a lista,
escripta pelo Damaso, das pessoas que deviam receber a
Corneta: vinha lá a
Gouvarinho, o ministro do Brazil, D. Maria da Cunha, El-Rei, todos os
amigos do Ramalhete, o Cohen, varias authoridades, e a Fancelli
prima-donna...
Palma no emtanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao
prato onde reluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de relancear
[284]
os olhos aos
documentos por cima do hombro de Carlos:
—Recolha o bago, amigo Palma! Negocios são negocios, e o
baguinho está ahi a arrefecer!
Então, ao palpar o ouro, Palma
Cavallão commoveu-se.
Palavra, caramba, se soubesse que se tratava d'um cavalheiro como o
snr. Maia não tinha aceitado o artigo! Mas
então!... Fôra o Eusebio Silveira, rapaz amigo,
que lhe viera fallar. Depois o Salcede. E ambos com muitas
lérias, e que era uma brincadeira, e que o Maia
não se importava, e isto e aquillo, e muita promessa...
Emfim deixára-se tentar. E tanto o Salcede como o Silveira
se tinham portado pulhamente.
—Foi uma sorte que se escangalhasse a machina! Senão estava
agora entalado, irra! E tinha desgosto, palavra, caramba, tinha
desgosto! Mas acabou-se! O mal não foi grande, e sempre se
fez alguma coisa pela porca da vida.
Vivamente, com um olhar, recontára o dinheiro na palma da
mão: depois esvaziou a genebra, d'um trago consolado e
ruidoso. Carlos guardára as cartas do Damaso, levantava
já o fecho da porta. Mas voltou-se ainda, n'uma derradeira
averiguação:
—Então esse meu amigo Eusebio Silveira tambem se metteu no
negocio?...
O snr. Palma, muito lealmente, afiançou que o Eusebio lhe
fallára apenas em nome do Damaso!
—O Eusebio, coitado, veio só como embaixador... Que o
Damaso e eu não vamos muito na
[285]
mesma bola. Ficámos
exquisitos, desde uma péga em casa da Biscainha. Aqui p'ra
nós, eu prometti-lhe dois estalos na cara, e elle embuchou.
Passados tempos tornámos a fallar, quando eu fazia o
High-life na
Verdade. Elle veio-me pedir com bons
modos, em nome do conde de Landim, para eu dar umas piadas catitas
sobre um baile d'annos... Depois, quando o Damaso fez tambem annos, eu
dei outra piadita. Elle pagou a ceia, ficámos mais
calhados... Mas é traste... E lá o
Eusebiosinho, coitado, veio só d'embaixador.
Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as costas, deixou
o cubiculo. O redactor da
Corneta
ainda baixou a
cabeça para a porta; depois, sem se offender, voltou
alegremente á genebra, dando outro puxão
ás
calças. Ega no emtanto accendia devagar o charuto.
—Vossê agora é que redige o jornal todo, Palma?
—O Silvestre, tambem...
—Que Silvestre?
—O que está com a
Pingada. Vossê
não conhece, creio eu. Um rapazola magro, que não
é feio... Semsaborão, escreve uma palhada... Mas
sabe coisas da sociedade. Esteve um tempo com a viscondessa de
Cabellas, que elle chama a sua
cabelluda... Que o Silvestre
ás vezes tem graça! E sabe, sabe coisas da
sociedade, assim maroteiras de fidalgos,
amigações, pulhices...
Vossê nunca leu nada d'elle? Chôcho. Tenho sempre
de lhe
[286]
arranjar o
estylo... N'este numero é que havia um folhetimzito meu,
catita, cá á moderna, como eu gósto,
alli com a piadinha realista a bater... Emfim fica para outra vez. E
outra coisa, Ega, olhe que lhe agradeço. Quando quizer, eu e
a
Corneta ás ordens!
Ega estendeu-lhe a mão:
—Obrigado, digno Palma! E
adiós!
—Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! exclamou logo o benemerito
homem com infinito
salero.
Em baixo Carlos esperava, dentro do coupé.
—E agora? perguntou Ega, á portinhola.
—Agora salta para dentro e vamos liquidar com o Damaso...
Carlos já esboçára summariamente o
plano d'essa liquidação. Queria mandar desafiar o
Damaso como author comprovado d'um artigo de jornal que o injuriava. O
duello devia ser á espada ou ao florete, um d'esses ferros
cujo lampejo, na sala d'armas do Ramalhete, fazia empallidecer o
Damaso. Se contra toda a verosimilhança elle se batesse,
Carlos fazia-lhe algures, entre a bochecha e o ventre, um furo que o
cravasse mezes na cama. Senão a unica
explicação que Carlos
aceitaria do snr. Salcede seria um documento em que elle escrevesse
esta coisa simples: «Eu abaixo assignado declaro que sou um
infame.» E para estes serviços Carlos contava com
o Ega.
—Agradeço! agradeço! Vamos a isso! exclamava
[287]
o Ega esfregando
as mãos, faiscando de jubilo.
No emtanto, dizia elle, a etiqueta funebre reclamava outro padrinho; e
lembrou o Cruges, moço passivo e malleavel. Mas era
impossivel encontrar o
maestro,
porque invariavelmente a
criada affirmava que o menino Victorino não estava em
casa... Decidiram ir ao Gremio, mandar de lá um bilhete
chamando o Cruges—«para um caso urgente d'amizade e
d'arte».
—Com quê, dizia o Ega continuando a esfregar as
mãos emquanto a tipoia trotava para a rua de S. Francisco,
com quê, demolir o nosso Damaso?
—Sim, é necessario acabar com esta
perseguição. Chega a ser ridiculo... E com uma
estocada, ou com a carta, temos esse biltre aniquilado por algum tempo.
Eu preferia a estocada. Senão deixo-te a ti arranjar os
termos d'uma carta forte...
—Has de ter uma boa carta! disse o Ega com um sorriso de ferocidade.
No Gremio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar por
elle na sala das
Illustrações.
O conde de Gouvarinho e Steinbroken conversavam de pé, no
vão d'uma janella. E foi uma surpreza. O ministro da
Filandia abriu os braços para o
cher
Maia, que elle
não vira desde a partida d'Affonso para Santa Olavia.
Gouvarinho acolheu o Ega risonhamente, reatando uma certa camaradagem
que entre elles se formára n'esse verão, em
Cintra: mas o aperto de mão a Carlos foi sêcco
[288]
e curto. Já
dias antes, tendo-se encontrado no Loreto, o Gouvarinho
murmurára de leve e de passagem «um como
está, Maia?» em que se sentia arrefecimento. Ah!
já não eram essas
effusões, essas palmadas enternecidas pelos hombros, dos
tempos em que Carlos e a condessa fumavam cigarettes na cama da titi em
Santa Isabel. Agora que Carlos abandonára a snr.
a
condessa
de Gouvarinho, a rua de S. Marçal e o commodo
sofá em que ella cahia com um rumor de saias amarrotadas—o
marido amuava, como abandonado tambem.
—Tenho tido saudade das nossas bellas discussões em Cintra!
disse elle, dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas que outr'ora
pertencia ao Maia. Tivemol-as de primeira ordem!
Eram realmente «pégas tremendas» no
pateo do Victor sobre litteratura, sobre religião, sobre
moral... Uma noite mesmo tinham-se zangado por causa da divindade de
Jesus.
—É verdade! acudiu o Ega. Vossê n'essa noite
parecia ter ás costas uma opa de irmão do Senhor
dos Passos!
O conde sorriu. Irmão do Senhor dos Passos não,
graças a Deus! Ninguem melhor do que elle sabia que n'esses
sublimes episodios do Evangelho reinava bastante lenda... Mas emfim
eram lendas que serviam para consolar a alma humana. É o que
elle objectára n'essa noite ao amigo Ega... Sentiam-se a
philosophia e o racionalismo capazes de consolar a mãi que
chora? Não.
Então...
[289]
—Em todo o caso, tivemol-as brilhantes! concluiu elle olhando o
relogio. E, eu confesso, uma discussão elevada sobre
religião, sobre
metaphysica, encanta-me... Se a politica me deixasse vagares
dedicava-me á philosophia... Nasci para isso, para
aprofundar problemas.
Steinbroken no emtanto, esticado na sua sobrecasaca azul, com um
raminho d'alecrim ao peito, tomára as mãos de
Carlos:
—Mais vous êtes encore devenu plus fort!... Et Affonso da
Maia, toujours dans ses terres?... Est-ce qu'on ne va pas le voir un
peu cet hiver?
E immediatamente lamentou não ter visitado Santa Olavia. Mas
quê! a familia real
installára-se em Cintra; elle fôra
forçado a acompanhal-a, fazer
a sua côrte... Depois necessitára ir de fugida a
Inglaterra d'onde acabava de chegar, havia dias.
Sim, Carlos sabia, vira na
Gazeta
Illustrada...
—Vous avez lu ça? Oh oui, on a été
très aimable, très aimable pour moi à
la
Gazette...
Tinham-lhe annunciado a partida, depois a chegada, com palavras de
amizade particularmente bem escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada
esta affeição sincera que liga Portugal e a
Filandia... «Mais enfin on avait été
charmant,
charmant!...»
—Seulement—ajuntou elle, sorrindo com finura e voltando-se tambem
para o Gouvarinho—on a fait une petite erreur... On a dit que
j'étais venu de Southampton par le
Royal
Mail... Ce n'est
[290]
pas vrai, non! Je me suis
embarqué à Bordeaux dans les
Messageries. J'ai
même pensé à écrire
à Mr. Pinto, redacteur de la
Gazette,
qui est un charmant garçon... Puis, j'ai reflechi, je me
suis dit: «Mon Dieu, on va croire que je veux donner une
leçon d'exactitude à la
Gazette, c'est très
grave...» Alors, voilà, très
prudemment, j'ai gardé le silence... Mais enfin c'est une
erreur: je me suis embarqué à Bordeaux.
Ega murmurou que a Historia se encarregaria um dia de rectificar esse
facto. O ministro sorria modestamente, fazendo um gesto em que parecia
desejar, por polidez, que a Historia se não incommodasse. E
então o Gouvarinho, que accendêra o charuto,
espreitára outra vez o relogio, perguntou se os amigos
tinham ouvido alguma coisa do ministerio e da crise.
Foi uma surpreza para ambos, que não tinham lido os
jornaes... Mas, exclamou logo o Ega, crise porquê, assim em
pleno remanso, com as camaras fechadas, tudo contente, um
tão lindo tempo d'outono?
O Gouvarinho encolheu os hombros com reserva. Houvera na vespera,
á noitinha, uma reunião de ministros; n'essa
manhã o presidente do conselho fôra ao
paço, fardado, determinado a
«largar o poder»... Não sabia mais.
Não
conferenciára com os seus amigos, nem mesmo fôra
ao seu Centro. Como n'outras occasiões de crise,
conservára-se
retirado, calado, esperando... Alli estivera toda a manhã,
[291]
com o seu
charuto, e a
Revista dos
Dois Mundos.
Isto parecia a Carlos uma abstenção pouco
patriotica...
—Porque emfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...
—Exactamente por isso, acudiu o conde com uma côr viva na
face, não desejo pôr-me
em evidencia... Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o ter... Se a
minha experiencia, a minha palavra, o meu nome são
necessarios, os meus correligionarios sabem onde eu estou, venham
pedir-m'os...
Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante
estas coisas politicas, começou logo a retrahir-se para o
fundo da janella, limpando os vidros da luneta, recolhido,
já impenetravel, no grande recato neutral que competia
á Filandia. Ega no emtanto não sahia do seu
espanto. Mas porque cahia, porque cahia assim um governo com maioria
nas camaras, socego no paiz, o apoio do exercito, a
benção da Igreja, a
protecção do
Comptoir
d'Escompte?...
O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pera, e murmurou esta
razão:
—O ministerio estava gasto.
—Como uma vela de sebo? exclamou Ega, rindo.
O conde hesitou. Como uma vela de sebo não diria... Sebo
subentendia obtusidade... Ora n'este
[292]
ministerio sobrava o talento.
Incontestavelmente havia lá talentos pujantes...
—Essa é outra! gritou Ega atirando os braços ao
ar. É extraordinario! N'este abençoado paiz todos
os politicos têm
immenso
talento. A opposição confessa
sempre que os ministros, que ella cobre d'injurias, têm,
á parte os disparates que fazem, um
talento
de primeira ordem!
Por outro lado a maioria admitte que a opposição,
a quem ella constantemente recrimina pelos disparates que fez,
está cheia de
robustissimos
talentos! De resto todo o mundo concorda que o paiz
é uma choldra. E resulta portanto este facto supra-comico:
um paiz governado
com immenso
talento, que é de todos na Europa, segundo
o consenso unanime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a
vêr: que como os talentos sempre falham, se experimentem uma
vez os imbecis!
O conde sorria com bonhomia e superioridade a estes exageros de
phantasista. E Carlos, ancioso por ser amavel, atalhou, accendendo o
charuto no d'elle:
—Que pasta preferiria você, Gouvarinho, se os seus amigos
subissem? A dos Estrangeiros, está claro...
O conde fez um largo gesto d'abnegação. Era pouco
natural que os seus amigos necessitassem da sua experiencia politica.
Elle tornára-se sobretudo um homem d'estudo e de theoria.
Além d'isso não sabia bem se as occupações da sua
[293]
casa, a sua
saude, os seus habitos lhe permittiriam tomar o fardo do governo. Em
todo o caso, decerto, a pasta dos Estrangeiros não o
tentava...
—Essa, nunca! proseguiu elle, muito compenetrado. Para se poder fallar
d'alto na Europa, como ministro dos Estrangeiros, é
necessario ter por traz um exercito de duzentos mil homens e uma
esquadra com torpedos. Nós, infelizmente, somos fracos... E
eu, para papeis subalternos, para que venha um Bismarck, um Gladstone,
dizer-me «ha de ser assim», não
estou!... Pois não
acha, Steinbroken?
O ministro tossiu, balbuciou:
—Certainement... C'est très grave... C'est excessivement
grave...
Ega então affirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu
interresse geographico pela Africa, faria um ministro da Marinha
iniciador, original, rasgado...
Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.
—Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colonias todas
as coisas bellas, todas as coisas grandes estão
feitas. Libertaram-se
já os escravos; deu-se-lhes já uma sufficiente
noção da moral christã; organisaram-se
já os
serviços aduaneiros... Emfim o melhor está feito.
Em todo o caso ha ainda detalhes interessantes a terminar... Por
exemplo, em Loanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque
mais de progresso
[294]
a dar. Em Loanda precisava-se bem um theatro normal como elemento
civilisador!
N'esse momento um criado veio annunciar a Carlos—que o snr. Cruges
estava em baixo, no portal, á espera. Immediatamente os dois
amigos desceram.
—Extraordinario, este Gouvarinho! dizia o Ega na escada.
—E este, observou Carlos com um immenso desdem de mundano,
é um dos melhores que ha na politica. Pensando mesmo bem, e
mettendo a roupa branca em linha de conta, este é talvez o
melhor!
Acharam o Cruges á porta, de jaquetão claro,
embrulhando um cigarro. E Carlos pediu-lhe logo que voltasse a casa
vestir uma sobrecasaca preta. O maestro arregalava os olhos.
—É jantar?
—É enterro.
E rapidamente, sem alludir a Maria, contaram ao maestro que o Damaso
publicára n'um jornal, a
Corneta do
Diabo (cuja tiragem
elles tinham supprimido, não sendo possivel por isso mostrar
o numero immundo) um artigo em que a coisa mais dôce que se
chamava a Carlos era
pulha.
Portanto Ega e elle Cruges iam a casa do Damaso pedir-lhe a honra ou a
vida.
—Bem, rosnou o maestro. Que tenho eu a fazer?... Que eu d'essas coisas
não entendo.
—Tens, explicou Ega, d'ir vestir uma sobrecasaca
[295]
preta e franzir o
sobr'olho. Depois vir commigo; não dizer nada; tratar o
Damaso por «v. exc.
a»;
assentar em tudo o que eu
propuzer; e nunca desfranzir o sobr'olho nem despir a sobrecasaca...
Sem outra observação, Cruges partiu a cobrir-se
de ceremonia e de negro. Mas no meio da rua retrocedeu:
—Ó Carlos, olha que eu fallei lá em
casa. Os quartos do primeiro andar estão livres, e forrados
de papel novo...
—Obrigado. Vai-te fazer sombrio, depressa!...
O maestro
abalára, quando diante do Gremio estacou a todo o trote uma
caleche. De dentro saltou o Telles da Gama que, ainda com a
mão no fecho da portinhola, gritou aos dois amigos:
—O Gouvarinho? está lá em cima?
—Está... Novidade fresca?
—Os homens cahiram. Foi chamado o Sá Nunes!
E enfiou pelo pateo, correndo. Carlos e Ega continuaram devagar
até ao portão do Cruges. As janellas do primeiro
andar estavam abertas, sem cortinas. Carlos, erguendo para
lá os olhos, pensava n'essa tarde das corridas em que elle
viera no phaeton, de Belem, para vêr aquellas janellas: ia
então escurecendo, por traz dos
stores fechados surgira uma luz,
elle contemplára-a como uma estrella inaccessivel... Como
tudo passa!
Retrocederam para o Gremio. Justamente o
[296]
Gouvarinho e Telles atiravam-se
á pressa para dentro da caleche que esperára. Ega
parou, deixou cahir os braços:
—Lá vae o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar
representar a
Dama das
Camelias no sertão! Deus se amerceie de
nós!
Mas o Cruges appareceu emfim de chapéo alto, entalado n'uma
sobrecasaca solemne, com botins novos de verniz. Apilharam-se logo na
tipoia estreita e dura. Carlos ia leval-os a casa do Damaso. E como
queria ainda jantar nos Olivaes, esperaria por elles, para saber o
resultado «do chinfrin», no
jardim da Estrella, junto ao coreto.
—Sêde rapidos e medonhos!
A casa do Damaso, velha e d'um andar só, tinha um enorme
portão verde, com um arame pendente que fez resoar dentro
uma sineta triste de convento: e os dois amigos esperaram muito antes
que apparecesse, arrastando as chinelas, o gallego achavascado que o
Damaso (agora livre de Carlos e das suas pompas) já
não trazia torturado
em botins crueis de verniz. A um canto do pateo uma portinha abria
sobre a luz d'um quintal, que parecia ser um deposito de caixotes, de
garrafas vazias e de lixo.
O gallego, que reconhecera o snr. Ega, conduziu-os logo, por uma
escadinha esteirada, a um
[297]
corredor largo, escuro, com
cheiro a môfo. Depois, batendo o chinelo, correu ao fundo,
onde alvejava a claridade d'uma porta entreaberta. Quasi immediatamente
Damaso gritou de lá:
—Ó Ega, é você? Entre para aqui,
homem! Que diabo!... Eu estou-me a vestir...
Embaraçado com estes brados de intimidade e tanta
effusão, Ega ergueu a voz da sombra do corredor, gravemente:
—Não tem duvida, nós esperamos...
O Damaso insistia, á porta, em mangas de camisa, cruzando os
suspensorios:
—Venha você, homem! Que diabo, eu não tenho
vergonha, já estou de calças!
—Ha aqui uma pessoa de ceremonia, gritou o Ega para findar.
A porta ao fundo cerrou-se, o gallego veio abrir a sala. O tapete era
exactamente igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor
abundavam os vestigios da antiga amizade com o Maia: o retrato de
Carlos a cavallo, n'um vistoso caixilho de flôres em
faiança: uma das colchas da India das senhoras Medeiros,
branca e verde, enroupando o piano, arranjada por Carlos com alfinetes:
e sobre um contador hespanhol, debaixo de redoma, um sapatinho de setim
de mulher, novo, que o Damaso comprára no Serra, por ter
ouvido um dia a Carlos que «em todo o quarto de rapaz deve
apparecer, discretamente disposta, alguma reliquia d'amor...»
[298]
Sob estes retoques de
chic, dados
á pressa sob a influencia do Maia, impertigava-se a
sólida mobilia do pai Salcede, de mogno e velludo azul; a
console de marmore, com um relogio de bronze dourado, onde Diana
acariciava um galgo; o grande e dispendioso espelho, tendo entalado no
caixilho uma fila de bilhetes de visita, de retratos de cantoras, de
convites para
soirées. E Cruges ia
examinar estes documentos, quando os passos alegres do Damaso soaram no
corredor. O maestro correu logo a perfilar-se ao lado do Ega, diante do
canapé de velludo, teso, commodo, com o seu
chapéo alto na mão.
Ao vêl-o, o bom Damaso, que se abotoára todo n'uma
sobrecasaca azul, florida por um botão de camelia, atirou
risonhamente os braços ao ar:
—Então esta é que é a pessoa de
ceremonia? Sempre vocês têm coisas! E eu a
pôr
sobrecasaca... Por pouco que não lhe afinfo com o habito de
Christo!...
Ega atalhou, muito sério:
—O Cruges não é de ceremonia, mas o motivo que
aqui nos traz é delicado e grave, Damaso.
Damaso arregalou os olhos, reparando emfim n'aquelle estranho modo dos
seus amigos, ambos de negro, seccos, tão solemnes. E recuou,
todo o sorriso se lhe apagou na face.
—Que diabo é isso? Sentem-se, sentem-se vocês...
A voz apagava-se-lhe tambem. Pousado á borda
[299]
d'uma poltrona baixa, junto d'uma
mesa coberta d'encadernações ricas, com as
mãos nos
joelhos, ficou esperando, n'uma anciedade.
—Nós vimos aqui, começou Ega, em nome do nosso
amigo Carlos da Maia...
Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda do Damaso
até á risca do cabello encaracolado a ferro. E
não achou uma palavra, attonito, suffocado, esfregando
estupidamente os joelhos.
Ega proseguiu, lento, direito no canapé:
—O nosso amigo Carlos da Maia queixa-se de que o Damaso publicou, ou
fez publicar, um artigo extremamente injurioso para elle e para uma
senhora das relações d'elle na
Corneta do Diabo...
—Na
Corneta, eu? acudiu o Damaso,
balbuciando. Que
Corneta? Nunca
escrevi em
jornaes, graças a Deus! Ora essa, a
Corneta!...
Ega, muito friamente, tirou do bolso um masso de papeis. E veio
collocal-os um por um, ao lado do Damaso, na mesa, sobre um magnifico
volume da
Biblia de Doré.
—Aqui está a sua carta remettendo ao Palma
Cavallão o rascunho do artigo... Aqui está, pela
sua letra igualmente, a lista das pessoas a quem se devia mandar a
Corneta, desde o Rei
até á Fancelli... Além d'isso
nós temos as
declarações do Palma. O Damaso é
não só o inspirador, mas
materialmente o auctor do artigo... O nosso amigo Carlos
[300]
da Maia exige, pois, como injuriado, uma
reparação pelas armas...
Damaso deu um salto da poltrona, tão arrebatado—que
involuntariamente Ega recuou, no receio d'uma brutalidade. Mas
já o Damaso estava no meio da sala, esgazeado, com os
braços tremulos no ar:
—Então o Carlos manda-me desafiar? A mim?... Que lhe fiz
eu? Elle a mim é que me pregou uma partida!... Foi elle,
vocês sabem perfeitamente que foi elle!...
E desabafou, n'um prodigioso fluxo de loquacidade, atirando palmadas ao
peito, com os olhos marejados de lagrimas. Fôra Carlos,
Carlos, que o desfeitiára a elle, mortalmente! Durante todo
o inverno tinha-o perseguido para que elle o apresentasse a uma senhora
brazileira muito
chic,
que vivia em Paris, e que lhe fazia olho... E elle, bondoso como era,
promettia, dizia: «Deixa estar, eu te apresento!»
Pois, senhores, que faz Carlos? Aproveita uma occasião
sagrada, um momento de luto, quando elle Damaso fôra ao Norte
por causa da morte do tio, e mette-se dentro da casa da brazileira... E
tanto intriga, que leva a pobre senhora a fechar-lhe a sua porta, a
elle, Damaso, que era intimo do marido, intimo de
tu!
Caramba, elle é que devia mandar desafiar Carlos! Mas
não! fôra prudente, evitára o escandalo
por causa do snr. Affonso da Maia... Queixára-se de Carlos,
é
verdade... Mas no Gremio, na Casa Havaneza, entre
[301]
rapaziada amiga... E no fim Carlos
préga-lhe uma d'estas!
—Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundo conhece!...
Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a mão, observou
placidamente que se desviavam do ponto vivo da questão. O
Damaso concebera, rascunhára, pagára o artigo da
Corneta. Isso não o
negava, nem o podia negar: as provas estavam alli, abertas sobre a
mesa: elles tinham além d'isso a
declaração do Palma...
—Esse desavergonhado! gritou o Damaso, levado n'outra rajada
d'indignação que o fez
redemoinhar, estonteado, tropeçando nos moveis. Esse
descarado do Palma! Com esse é que eu me quero
vêr!... Lá a questão com o Carlos
não vale nada, arranja-se, somos todos rapazes finos... Com
o Palma é que é! Esse traidor é
que eu quero rachar! Um homem a quem eu tenho dado ás meias
libras, aos sete mil reis! E ceias, e tipoias! Um ladrão que
pediu o relogio ao Zeferino para figurar n'um baptisado, e
pôl-o no prégo!... E
faz-me uma d'estas!... Mas hei de escavacal-o! Onde é que
você o viu, Ega? Diga lá, homem!
Que quero ir procural-o, hoje mesmo, correl-o a chicotadas...
Traições não, não admitto a
ninguem!
Ega, com a tranquillidade paciente de quem sente a prêsa
certa, lembrou de novo a inutilidade d'aquellas
divagações:
—Assim nunca acabamos, Damaso... O nosso
[302]
ponto é este: o Damaso
injuriou Carlos da Maia: ou se retracta publicamente d'essa injuria, ou
dá uma reparação pelas armas...
Mas o Damaso, sem escutar, appellava desesperadamente para o Cruges,
que se não movera do sofá de velludo, esfregando,
um contra o outro, com um ar arripiado e de dôr, os dois
sapatos novos de verniz.
—Aquelle Carlos! Um homem que se dizia meu amigo intimo! Um homem que
fazia de mim tudo! Até lhe copiava coisas... Você
bem viu, Cruges. Diga! Falle, homem! Não sejam
vocês todos contra mim!... Até ás vezes
ia á
alfandega despachar-lhe caixotes...
O maestro baixava os olhos, vermelho, n'um infinito mal-estar. E Ega,
por fim, já farto, lançou uma
intimação derradeira:
—Em resumo, Damaso, desdiz-se ou bate-se?
—Desdizer-me? tartamudeou o outro, impertigando-se, n'um penoso
esforço de dignidade, a tremer todo. E de quê? Ora
essa! É boa! Eu sou lá homem que me desdiga!
—Perfeitamente, então bate-se...
Damaso cambaleou para traz, desvairado:
—Qual bater-me! Eu sou lá homem que me bata! Eu
cá é a sôcco. Que venha para
cá, não tenho medo d'elle, arrombo-o...
Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os
punhos fechados e em riste. E queria Carlos alli para o escavacar!
Não lhe faltava mais
[303]
senão bater-se... E então duellos em Portugal,
que acabavam sempre por troça!
Ega no emtanto, como se a sua missão estivesse finda,
abotoára a sobrecasaca e recolhia os papeis espalhados sobre
a
Biblia. Depois,
serenamente, fez a ultima declaração de que
fôra
incumbido. Como o snr. Damaso Salcede recusava retractar-se e rejeitava
tambem uma reparação pelas armas, Carlos da Maia
prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse d'ahi por diante,
fosse uma rua, fosse um theatro, lhe escarraria na face...
—Escarrar-me! berrou o outro, livido, recuando, como se o escarro
já viesse no ar.
E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-se sobre
o Ega, agarrando-lhe as mãos, n'uma agonia:
—Ó João, ó João, tu, que
és meu amigo, por quem és, livra-me d'esta
entaladella!
Ega foi generoso. Desprendeu-se d'elle, empurrou-o brandamente para a
poltrona, calmando-o com palmadinhas fraternaes pelo hombro. E declarou
que, desde que Damaso appellava para a sua amizade, desapparecia o
enviado de Carlos necessariamente exigente, ficava só o
camarada, como no tempo dos Cohens e da
villa
Balzac. Queria pois o amigo Damaso um conselho? Era assignar uma carta
affirmando que tudo o que fizera publicar na
Corneta sobre o snr.
Carlos da Maia e certa senhora fôra
invenção falsa e
gratuita. Só isto o salvava. D'outro modo, Carlos um dia, no
[304]
Chiado, em S. Carlos,
escarrava-lhe na cara. E, dado esse desastre, Damasosinho, a
não querer ser apontado em Lisboa como um incomparavel
cobarde, tinha de se bater á espada ou á
pistola...
—Ora, em qualquer d'esses casos, você era um homem morto.
O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de velludo, com a
face emparvecida para o Ega. Alargou mollemente os braços,
murmurou da profundidade do seu terror:
—Pois sim, eu assigno, João, eu assigno...
—É o que lhe convém... Arranje então
papel. Você está perturbado, eu mesmo redijo.
Damaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e vago
por sobre os moveis:
—Papel de carta? É para carta?
—Sim, está claro, uma carta ao Carlos!
Os passos do desgraçado perderam-se emfim no corredor,
pesados e succumbidos.
—Coitado! suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arripio, a
mão aos sapatos.
Ega lançou-lhe um
chut
severo. Damaso voltava com o seu sumptuoso papel de monogramma e
corôa. Para envolver em silencio e segredo aquelle transe
amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto pano de velludo, desdobrando-se,
mostrou o brazão de Salcede, onde havia um leão,
uma torre,
um braço armado, e por baixo, a letras d'ouro, a sua
formidavel divisa:
Sou
forte! Immediatamente
[305]
Ega afastou os livros na
mesa, abancou, atirou largamente ao papel a data e a adresse do
Damaso...
—Eu faço o rascunho, você depois
copía...
—Pois sim! gemeu o outro, de novo, aluido na poltrona, passando o
lenço pelo pescoço e pela
face.
Ega no emtanto escrevia muito lentamente, com amor. E n'aquelle
silencio, que o embaraçava, Cruges terminou por se erguer,
foi coxeando até ao espelho onde se desenrolavam, entalados
na frincha do caixilho, bilhetes e photographias. Eram as glorias
sociaes do Damaso, os documentos do
chic a
valer que era a
paixão da sua vida: bilhetes com titulos, retratos de
cantoras, convites para bailes, cartas de entrada no Hippodromo,
diplomas de membro do Club Naval, de membro do Jockey Club, de membro
do Tiro aos Pombos:—até pedaços cortados de
jornaes
annunciando os annos, as partidas, as chegadas do snr. Salcede,
«um dos nossos mais distinctos
sportmen».
Desventuroso
sportman! Aquella folha
de papel, onde o Ega rascunhava, ia-o enchendo pouco a pouco d'um
terror angustioso. Santo Deus! Para que eram tantos apuros n'uma carta
ao Carlos, um rapaz intimo? Uma linha bastaria:—«Meu querido
Carlos, não te zangues, desculpa, foi
brincadeira.» Mas não! Toda uma pagina de letra
miuda com entrelinhas! Já mesmo Ega voltava a
[306]
folha, molhava a penna, como se
d'ella devessem escorrer sem cessar coisas humilhadoras! Não
se conteve, estendeu a face por sobre a mesa, até o papel:
—Ó Ega, isso não é para publicar,
pois não é verdade?
Ega reflectiu, com a penna no ar:
—Talvez não... Estou certo que não. Naturalmente
Carlos, vendo o seu arrependimento, deixa isto esquecido no fundo d'uma
gaveta.
Damaso respirou com allivio. Ah, bem! Isso parecia-lhe mais decente
entre amigos! Que lá isso, mostrar o seu arrependimento,
até elle desejava! Com effeito o artigo fôra uma
tolice... Mas então!
Em questões de mulheres era assim, assomado, um
leão...
Abanou-se com o lenço, desanuviado, recomeçando a
achar sabôr á vida. Findou mesmo por accender um
charuto, levantar-se sem rumor, acercar-se do Cruges—que, coxeando
através das curiosidades da sala, encalhára sobre
o piano e sobre os livros de musica, com o pé dorido no ar.
—Então tem-se feito alguma coisa de novo, Cruges?
Cruges, muito vermelho, resmungou que não tinha feito nada.
Damaso ficou alli um momento, a mascar o charuto. Depois, atirando um
olhar inquieto á mesa onde o Ega rascunhava
interminavelmente, murmurou, sobre o hombro do maestro:
[307]
—Uma entaladella assim! Eu é por causa da gente
conhecida... Senão não me importava! Mas veja
você tambem se arranja as coisas e se o Carlos deixa aquillo
na gaveta...
Justamente Ega erguera-se com o papel na mão e caminhava
para o piano, devagar, relendo baixo.
—Ficou optimo, salva tudo! exclamou por fim. Vai em fórma
de carta ao Carlos, é mais
correcto. Você depois copía e assigna.
Ouça
lá: «Exc.
mo
snr....» Está
claro,
você dá-lhe excellencia, porque é um
documento d'honra... «Exc.
mo
snr.—Tendo-me v. exc.
a,
por
intermédio dos seus amigos João da Ega e
Victorino Cruges, manifestado a indignação que
lhe causára um certo artigo da
Corneta do
Diabo de que eu
escrevi o rascunho e de que promovi a publicação,
venho declarar francamente a v. exc.
a que esse
artigo, como agora
reconheço, não continha
senão falsidades e incoherencias: e a minha desculpa unica
está em que o compuz e enviei á
redacção da
Corneta no momento de me achar no
mais completo estado d'embriaguez...»
Parou. E nem se voltou para o Damaso, que deixára pender os
braços, rolar o charuto no
tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu, entalando o monoculo:
—Achas talvez forte?... Pois eu redigi assim por ser justamente a
unica maneira de resalvar a dignidade do nosso Damaso.
[308]
E desenvolveu a sua idéa, mostrando quanto era generosa e
habil—emquanto o Damaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos
nem elle queriam que o Damaso n'uma carta (que se podia tornar publica)
declarasse «que
calumniára por ser calumniador». Era necessario,
pois, dar á calumnia uma d'essas causas fortuitas e
ingovernaveis que tiram a responsabilidade ás
acções. E que melhor, tratando-se d'um rapaz
mundano e femeeiro, do que estar bebedo?... Não era vergonha
para ninguem embebedar-se... O proprio Carlos, todos elles alli, homens
de gosto e de honra, se tinham embebedado. Sem remontar aos romanos,
onde isso era uma hygiene e um luxo, muitos grandes homens na Historia
bebiam de mais. Em Inglaterra era tão
chic,
que Pitt, Fox e outros nunca fallavam na Camara dos communs
senão aos bordos. Musset, por exemplo, que bebedo! Emfim a
Historia, a Litteratura, a Politica, tudo fervilhava de piteiras...
Ora, desde que o Damaso se declarava borracho, a sua honra ficava
salva. Era um homem de bem que apanhára uma carraspana e que
commettera uma indiscrição... Nada mais!
—Pois não te parece, Cruges?
—Sim, talvez, que estava bebedo, murmurou o maestro timidamente.
—Pois não lhe parece a você, francamente, Damaso?
—Sim, que estava bebedo, balbuciou o desgraçado.
[309]
Immediatamente Ega retomou a leitura: «Agora que voltei a mim
reconheço, como sempre reconheci e proclamei, que
é v. exc.
a um caracter absolutamente
nobre; e as outras
pessoas, que n'esse momento d'embriaguez ousei salpicar de lama,
são-me só merecedoras de
veneração e louvor. Mais declaro que se por acaso
tornasse a succeder soltar eu alguma palavra offensiva para v. exc.
a,
não lhe devia dar v. exc.
a, ou
aquelles que a escutassem,
mais importancia do que a que se dá a uma involuntaria
baforada d'alcool—pois que, por um habito hereditario que reapparece
frequentemente na minha familia, me acho repetidas vezes em estado de
embriaguez... De v. exc.
a, com toda a estima
etc....» Rodou
sobre os tacões, pousou o rascunho na mesa—e accendendo o
charuto ao lume do Damaso, explicou com amizade, com bonhomia, o que o
determinára áquella confissão de
bebedeira incorrigivel e palreira.
Fôra ainda o desejo de garantir a tranquillidade do
«nosso Damaso». Attribuindo todas as imprudencias
em que pudesse cahir a um habito d'intemperança hereditaria,
de que tinha tão pouca culpa como de ser baixo e gordo, o
Damaso punha-se
para sempre ao
abrigo das
provocações de Carlos...
—Você, Damaso, tem genio, tem lingua... Um dia esquece-se, e
no Gremio, sem querer, na cavaqueira depois do theatro, lá
lhe escapa uma palavra contra Carlos... Sem esta
precaução, ahi
recomeça a questão, o escarro, o duello... Assim
já
[310]
Carlos
não se póde queixar. Lá tem a
explicação que tudo cobre, uma gotta de mais, a
gotta tomada por impulso de borrachice hereditaria... Você
alcança d'este modo a coisa que mais se appetece n'este
nosso seculo XIX—a
irresponsabilidade!... E depois para a sua familia não
é vergonha,
porque você não tem familia. Em resumo,
convem-lhe?
O pobre Damaso escutava-o, esmagado, enervado, sem comprehender
aquellas roncantes phrases sobre «a
hereditariedade», sobre «o
seculo XIX». E um unico sentimento vivo o dominava, acabar,
reentrar na sua paz pachorrenta, livre de floretes e de escarros.
Encolheu os hombros, sem força:
—Que lhe hei de eu fazer?... Para evitar fallatorios.
E abancou, metteu um bico novo na penna, escolheu uma folha de papel em
que o monogramma luzia mais largo, começou a copiar a carta
na sua maravilhosa letra, com finos e grossos, d'uma nitidez de gravura
em aço.
Ega no emtanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava
em torno da mesa, seguindo sôfregamente as linhas que
traçava a
mão applicada do Damaso, ornada d'um grosso annel d'armas. E
durante um momento atravessou-o um susto... Damaso parára,
com a penna indecisa. Diabo! Acordaria emfim, no fundo de toda aquella
gordura balofa, um resto escondido de dignidade,
[311]
Damaso alçou para elle os olhos embaciados:
—Embriaguez é com
n ou
com
m?
—Com um
m, um
m só, Damaso! acudiu Ega
affectuosamente. Vai muito bem... Que linda letra você tem,
caramba!
E o infeliz sorriu á sua propria letra—pondo a
cabeça de lado, no orgulho sincero d'aquella soberba prenda.
Quando findou a cópia foi Ega que conferiu, pôz a
pontuação. Era necessario que o
documento fosse
chic e perfeito.
—Quem é o seu tabellião, Damaso?
—O Nunes, na rua do Ouro... Porque?
—Oh! nada. É um detalhe que n'estes casos se pergunta
sempre. Mera ceremonia... Pois amigos, como papel, como letra, como
estylo, está d'appetite a cartinha!
Metteu-a logo n'um enveloppe onde rebrilhava a divisa «Sou
Forte», sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca.
Depois, agarrando o chapéo, batendo no hombro do Damaso com
uma familiaridade folgazã e leve:
—Pois, Damaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fóra
de portas, n'uma poça de sangue! Assim é uma
delicia. E adeus... Não se incommode você.
Então o grande sarau sempre é na
segunda-feira? Vai lá tudo, hein! Não venha
cá,
homem... Adeus!
Mas o Damaso acompanhou-os pelo corredor,
[312]
mudo, murcho, cabisbaixo. E no
patamar reteve o Ega, desafogou outra inquietação
que o
assaltára:
—Isso não se mostra a ninguem, não é
verdade, Ega?
Ega encolheu os hombros. O documento pertencia a Carlos... Mas emfim
Carlos era tão bom rapaz, tão generoso!
Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Damaso:
—E chamei eu áquelle homem
meu
amigo!
—Tudo na vida são desapontamentos, meu Damaso! foi a
observação do Ega, saltando
alegremente os degraus.
Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrella, Carlos já
esperava ao portão de ferro, n'uma impaciencia, por causa do
jantar na
Toca. Enfiou logo para dentro
atropellando o maestro, bradou ao cocheiro que voasse ao Loreto.
—E então, meus senhores, temos sangue?
—Temos melhor! exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o
enveloppe.
Carlos leu a carta do Damaso. E foi um immenso assombro:
—Isto é incrivel!... Chega a ser humilhante para a natureza
humana!
—O Damaso não é o genero humano, acudiu Ega. Que
diabo esperavas tu? Que elle se batesse?
—Não sei, corta o coração... Que se
ha de fazer a isto?
[313]
Segundo o Ega não se devia publicar; seria
crear curiosidade e escandalo em torno do artigo
da
Corneta que custára trinta libras a suffocar.
Mas convinha conservar aquillo como uma ameaça
pairando sobre o Damaso, tornando-o para longos
annos nullo e inoffensivo.
—Eu estou mais que vingado, concluiu Carlos.
Guarda o papel: é obra tua, usa-o como
quizeres...
Ega guardou-o com prazer, emquanto Carlos,
batendo no joelho do maestro, queria saber como
elle se portára n'aquelle lance d'honra...
—Pessimamente! gritou Ega. Com expressões
de compaixão; sem linha nenhuma; estendido
por cima do piano; agarrando com a mão no
sapato...
—Pudera! exclamou Cruges desafogando emfim.
Vocês dizem-me que me ponha de ceremonia,
calço uns sapatos novos de verniz, estive toda
a tarde n'um tormento!
E não se conteve mais, arrancou o sapato, pallido,
com um medonho suspiro de consolação.
No dia seguinte, depois do almoço, emquanto
uma chuva grossa alagava os vidros sob as lufadas
de sudoeste, Ega, no
fumoir, enterrado n'uma
poltrona, com os pés para o lume, relia a carta do
Damaso: e pouco a pouco subia n'elle a mágoa de
que
[314]
esse colossal documento de cobardia humana, tão interessante
para a physiologia e para a arte, ficasse para sempre inaproveitado no
escuro d'uma gaveta!... Que effeito, que soberbo effeito se aquella
confissão do «nosso distincto
sportman» surgisse um dia
na
Gazeta Illustrada
ou no novo jornal
A Tarde, nas
columnas do
High-life, sob este
titulo—
Pendencia d'honra!
E
que lição, que meritorio acto de
justiça social!
Todo esse verão, Ega detestára o Damaso, certo,
desde Cintra, de que elle era o amante da Cohen—e de que, por esse
imbecil de grossas nadegas, esquecera ella para sempre a
villa
Balzac, as manhãs na colcha de setim preto, os seus beijos
delicados, os versos de Musset que lhe lia, os lunchesinhos de perdiz,
tantos encantos poeticos. Mas o que lhe tornára o Damaso
intoleravel—fôra a sua farofia radiante de homem preferido;
o ar de posse com que passeava ao lado de Rachel pelas estradas de
Cintra, vestido de flanella branca; os segredinhos que tinha sempre a
cochichar-lhe sobre o hombro; e o acênosinho desdenhoso, com
um dedo, que lhe atirava de lado, ao passar, a elle proprio, Ega... Era
odioso! Odiava-o: e através d'esse odio ruminára
sempre o desejo d'uma
vingança—pancada, deshonra ou ridiculo que tornasse o snr.
Salcede, aos olhos de Rachel, desprezivel, grutesco, chato como um
balão furado...
E agora alli tinha essa carta providencial, em que o homem solemnemente
se declarava bebedo.
[315]
«Sou um bebedo, estou sempre bebedo»! Assim o
dizia, no seu papel de monogramma d'ouro, o snr. Salcede, n'um medo vil
de cão gôso,
rastejando com o rabo entre as pernas diante de qualquer pau!...
Nenhuma mulher resistiria a isto... E havia d'encafuar tão
decisivo documento no fundo d'um gavetão?
Publical-o na
Gazeta Illustrada ou
na
Tarde não podia,
infelizmente, por interesse de Carlos. Mas porque o não
mostraria «em segredo»,
como uma curiosidade psychologica, ao Craft, ao marquez, ao Telles, ao
Gouvarinho, ao primo do Cohen? Podia mesmo confiar uma cópia
ao Taveira que, resentido eternamente da questão com o
Damaso em casa da Lola Gorda, correria a lêl-a
em segredo na Casa Havaneza, no
bilhar do Gremio, no Silva, nos camarins de cantoras... E ao fim de uma
semana a snr.
a D. Rachel saberia inevitavelmente
que o escolhido do
seu coração era por
confissão propria um calumniador e um bebedo!... Delicioso!
Tão delicioso que não hesitou mais, subiu ao
quarto para copiar a carta do Damaso. Mas quasi immediatamente um
criado trouxe-lhe um telegramma de Affonso da Maia annunciando que
chegava no dia seguinte ao Ramalhete. Ega teve de sahir, telegraphar
para os Olivaes, avisar Carlos.
Carlos appareceu n'essa noite, já tarde, transido de frio,
com um monte de bagagens—porque abandonára definitivamente
os Olivaes. Maria
[316]
Eduarda regressava tambem a Lisboa, para o primeiro andar da rua de S.
Francisco, tomado agora por seis mezes, tapetado de novo pela
mãi Cruges. E Carlos vinha muito impressionado, com
profundas saudades da
Toca. Depois
de cear, ao
fogão, acabando o charuto, relembrou infindavelmente esses
dias alegres, a sua casinhola, o banho da manhã tomado
dentro d'uma dorna, a festa do deus Tchi, as guitarradas do marquez, as
longas cavaqueiras ao café com as janellas abertas e as
borboletas voando em torno aos candieiros... Fóra as cordas
d'agua, sob o vento d'inverno, batiam os vidros na mudez da noite
negra. Ambos terminaram por ficar calados, pensativos, com os olhos no
lume.
—Quando esta tarde dei pela ultima vez uma volta na quinta, disse por
fim Carlos, já não
havia uma unica folha nas arvores... Tu não sentes sempre
uma grande melancolia n'estes fins de outono?...
—Immensa! murmurou Ega lugubremente.
Ao outro dia a manhã clareava, limpa e branca, quando Ega e
Carlos, ainda estremunhados e tiritando, se apearam em Santa Apolonia.
O comboio acabava justamente de chegar; e viram logo, entre o rumor de
gente que se escoava das portinholas abertas, Affonso, com o seu velho
capote de gola de velludo, apegado a uma bengala, debatendo-se entre
homens de boné agaloado que lhe offereciam o
Hotel Terreirense e
a
Pomba d'Ouro.
[317]
Atraz Mr. Antoine, o chefe
francez, grave, de chapéo alto, trazia o cesto em que
viajára o
reverendo Bonifacio.
Carlos e Ega acharam Affonso mais acabado, mais pesado. Todavia
gabaram-lhe muito, entre os primeiros abraços, a sua
robustez de patriarcha. Elle encolheu os hombros, queixando-se de ter
sentido desde o fim do verão vertigens, um
cansaço vago...
—Vocês é que estão excellentes,
acrescentou abraçando outra vez Carlos e sorrindo ao Ega. E
que ingratidão foi essa tua, John, mettido aqui todo um
verão sem me ir visitar?... Que tens tu feito? Que
têm vocês feito?
—Mil coisas! acudiu Ega alegremente. Planos, ideias, titulos... Temos
sobretudo o projecto d'uma
Revista,
um apparelho
d'educação superior que vamos montar com uma
força de mil cavallos!... Emfim logo se lhe conta tudo ao
almoço.
E ao almoço, com effeito, para justificarem as suas
occupações em Lisboa, fallaram da
Revista como se ella já
estivesse organisada e os artigos a imprimir na officina—tanta foi a
precisão com que lhe descreveram as tendencias, a
feição critica,
as linhas de pensamento sobre que ella devia rolar... Ega já
preparára um trabalho para o primeiro
numero—
A capital dos portuguezes.
Carlos meditava uma série
d'
ensaios
á ingleza, sob este titulo—
Porque falhou
entre nós o systema constitucional.
[318]
E Affonso escutava, encantado
com aquellas bellas ambições de lucta, querendo
partilhar da grande obra como socio capitalista... Mas Ega entendia que
o snr. Affonso da Maia devia descer á arena,
lançar tambem a palavra do seu saber e da sua experiencia.
Então o velho riu. O quê!
compôr prosa, elle, que hesitava para traçar uma
carta ao feitor? De resto o que teria a dizer ao seu paiz, como fructo
da sua experiencia, reduzia-se pobremente a tres conselhos em tres
phrases: aos politicos—«menos liberalismo e mais
caracter»; aos homens de letras—«menos eloquencia
e mais ideia»; aos cidadãos em
geral—«menos
progresso e mais moral».
Isto enthusiasmou o Ega! Justamente, ahi estavam as verdadeiras
feições da reforma espiritual que a
Revista devia
prégar! Era necessario tomal-as como moto symbolico,
inscrevel-as em letras gothicas no frontispicio—porque Ega queria que
a
Revista fosse original logo na capa.
E então a
conversação desviou para o exterior da
Revista—Carlos pretendendo que
fosse azul-claro com typo Renascença, Ega exigindo uma
cópia exacta da
Revista dos Dois
Mundos, n'uma nuance mais côr de canario.
E, levados pela sua imaginação de
meridionaes, já não era só para
agradar a Affonso
da Maia que iam levantando e dando fórma áquelle
confuso plano.
Carlos exclamava para o Ega, com os olhos já apaixonados:
[319]
—Isto agora é sério. Precisamos arranjar
immediatamente a casa para a redacção!
Ega bracejava:
—Pudera! E moveis! E machinas!
Toda a manhã, no escriptorio d'Affonso, azafamados, com
papel e lapis, se occuparam em fixar uma lista de collaboradores. Mas
já as difficuldades surgiam. Quasi todos os escriptores
suggeridos desagradavam ao Ega, por lhes faltar no estylo aquelle
requinte plastico e parnasiano de que elle desejava que a
Revista fosse o
impeccavel modelo. E a Carlos alguns homens de letras pareciam
impossiveis—sem querer confessar
que n'elles lhe repugnava exclusivamente a falta de linha e o fato mal
feito...
Uma coisa porém ficou decidida: a casa da
redacção. Devia ser mobilada luxuosamente, com
sofás do consultorio de Carlos e algum
bric-à-brac da
Toca: e sobre a porta (ornada
d'um guarda-portão de libré) a taboleta de verniz
preto, com
Revista de Portugal em altas letras
a ouro. Carlos sorria, esfregava as mãos, pensando na
alegria de Maria ao saber esta decisão que o
lançava, como era o desejo d'ella, na actividade, n'uma
lucta interessante d'ideias. Ega, esse, via já a brochura
côr de canario aos montões nas vitrines dos
livreiros, discutida nas
soirées do Gouvarinho,
folheada na camara com espanto pelos politicos...
—Vai-se remexer Lisboa este inverno, snr.
[320]
Affonso da Maia! gritou elle
atirando um gesto immenso até ao tecto.
E o mais contente era o velho.
Depois de jantar, Carlos pediu ao Ega para ir com elle á rua
de S. Francisco (onde Maria se
installára n'essa manhã) levarem a nova da grande
obra. Mas encontraram á porta uma carroça
descarregando malas; e a senhora, contou o Domingos que ajudava os
carroceiros, estava ainda jantando a um canto da mesa e sem toalha. Com
tanta confusão na casa, Ega não quiz subir.
—Até logo, disse elle. Vou talvez procurar o
Simão Craveiro e fallar-lhe da
Revista.
Subiu lentamente o Chiado, leu os telegrammas na Casa Havaneza. Depois
á esquina da rua Nova da Trindade, um homem rouco, sumido
n'um paletot, offereceu-lhe uma «senhasinha».
Outros, em volta, gritavam na sombra do
Hotel
Alliança:
—Bilhete para o Gymnasio! Mais barato... Bilhete para o Gymnasio! Quem
vende?...
Havia um cruzar animado de carruagens com librés. Os bicos
de gaz do Gymnasio tinham um fulgor de festa. E Ega deu de rosto com o
Craft que atravessava do lado do Loreto, de gravata branca e
flôr no paletot.
—Que é isto?
—Festa de beneficencia, não sei, disse o Craft. Uma coisa
promovida por senhoras, a baroneza d'Alvim mandou-me um
bilhete... Venha você d'ahi ajudar-me a levar esta caridade
ao Calvario.
[321]
E na esperança de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo uma
senha. No perystilo do Gymnasio encontraram Taveira passeando e fumando
solitariamente, á espera que findasse a primeira comedia, o
Fructo prohibido. Então
Craft propôz «botequim e genebra».
—E que ha do ministerio? perguntou elle, apenas abancaram a um canto.
O Taveira não sabia. Todos esses dois longos dias se
intrigára desesperadamente. O Gouvarinho queria as Obras
Publicas: o Videira tambem. E fallava-se d'uma scena terrivel por causa
de syndicatos, em casa do presidente do conselho, o Sá
Nunes, que terminára por dar um murro na mesa, gritar:
«Irra! que isto não é o pinhal
d'Azambuja!»
—Canalha! rosnou Ega com odio.
Depois fallaram do Ramalhete, da volta d'Affonso, da
reapparição de Carlos. Craft louvou Deus por
haver outra vez n'esse inverno uma casa com fogões, onde se
passasse uma hora civilisada e intelligente.
Taveira acudiu com o olho brilhante:
—Diz que vamos ter um centrosinho muito mais interessante ainda, na
rua de S. Francisco! Foi o marquez que me disse. Madame Mac-Gren vai
receber.
Craft não sabia mesmo que ella já tivesse
recolhido da
Toca.
—Voltou hoje, disse o Ega. Você ainda não a
conhece?... Encantadora.
[322]
—Creio que sim.
O Taveira vira-a de relance no Chiado. Parecera-lhe uma belleza. E um
ar tão sympathico!
—Encantadora! repetiu Ega.
Mas o
Fructo prohibido
findára, os homens enchiam o peristylo, n'um rumor lento,
accendendo os cigarros. E Ega, deixando o Craft e Taveira com a
genebra, correu á plateia para descobrir o camarote da
Alvim.
Mal erguera porém a cortina e assestára o
monoculo—avistou defronte, na primeira ordem, a Cohen, toda de preto,
com um grande leque de rendas brancas; por traz negrejavam as suissas
fortes do marido; e em face d'ella, recostado no velludo da grade, de
casaca, com a bochecha risonha, uma grossa perola no peitilho da
camisa, o Damaso, o bebedo!
Ega cahiu mollemente, ao acaso, na borda d'uma cadeira: e perturbado,
já esquecido da Alvim, alli ficou a olhar o panno coberto
d'annuncios, correndo os dedos tremulos pelo bigode.
No emtanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na
plateia. Um cavalheiro gordo e carrancudo tropeçou no joelho
do Ega: outro, de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu
permissão a s. exc.
a Elle
não escutava,
não percebia: os seus olhos, um momento errantes, tinham-se
emfim cravado no camarote da Cohen e não se desviaram de
lá, n'uma emoção que o
empallidecia.
[323]
Não a tornára a encontrar desde Cintra, onde
só a via de longe, com vestidos claros sob o verde das
arvores; e agora alli, toda de preto, em cabello, com um decote curto
onde brilhava a perfeita brancura do seu collo, ella era outra vez a
sua Rachel, dos tempos divinos da
villa
Balzac. Era assim que elle, todas as noites em S. Carlos, a contemplava
do fundo da frisa de Carlos, com a cabeça encostada ao
tabique, saturado de felicidade. Lá tinha a sua luneta
d'ouro, presa por um fio d'ouro. Parecia mais pallida, mais delicada,
com o longo quebranto dos olhos pisados, o seu ar de romance e de lirio
meio murcho: e como então os seus cabellos magnificos e
pesados cahiam habilmente n'uma massa meia solta sobre as costas, n'um
desalinho de nudez. Pouco a pouco, entre o afinar de rebecas e o rumor
das cadeiras Ega revia, n'uma onda de recordações
que o suffocava, o grande leito da
villa Balzac,
certos beijos e certos risos, as perdizes comidas em camisa
á borda do sofá, e a melancolia deliciosa das
tardes, quando ella sahia furtivamente, coberta de véos, e
elle ficava, cansado, no crepusculo poetico do quarto, cantarolando a
Traviata...
—V. exc.
a dá licença,
snr. Ega?
Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira.
Ega ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o snr. Sousa Netto. O panno
subira. Á borda da rampa um lacaio, piscando o olho
á Plateia, fazia confidencias sobre a
patrôa,
[324]
de
espanejador debaixo do braço. E Cohen, agora de
pé, enchia o meio do camarote, cofiando
as suissas
com um correr lento da mão bem tratada, onde reluzia um
diamante.
Ega então, n'um soberbo alarde d'indifferença,
cravou o monoculo no palco. O lacaio abalára espavorido, a
um repique furioso de sineta; e uma megera azeda, de roupão
verde e touca á banda, rompera de dentro, meneando
desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha delambida que batia
o tacão, se esganiçava: «Pois hei
de amal-o sempre! hei de amal-o sempre!»
Irresistivelmente Ega revirou o canto do olho para o camarote: Rachel e
o Damaso, com as cabeças chegadas como em Cintra,
cochichavam n'um sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiu n'um
immenso odio ao Damaso! Collado á umbreira da porta, rilhava
os dentes, n'um desejo de subir, escarrar-lhe na bochecha gorda.
E não desviava d'elle os olhos, que dardejavam. Na scena, um
velho general, gottoso e resmungão, sacudia um jornal,
gritava pela sua tapioca. A Plateia ria, o Cohen ria. E n'esse momento
Damaso, que se debruçára no camarote com as mãos
de fóra, calçadas de
gris-perle, descobriu o Ega, sorriu,
atirou-lhe como em Cintra um acenosinho petulante, muito d'alto, na
ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um insulto. E ainda na vespera
aquelle covarde se lhe agarrára ás
mãos, tremendo todo, a gritar «que o
salvasse!...»
[325]
Subitamente, com uma idéa, palpou por sobre o bolso a
carteira onde na vespera guardára a carta do Damaso...
«Eu t'arranjo!» murmurou elle. E abalou, desceu a
rua da Trindade, cortou pelo Loreto como uma pedra que rola, enfiou, ao
fundo da praça de Camões, n'um grande
portão que uma lanterna alumiava. Era a
redacção da
Tarde.
Dentro do pateo d'esse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra,
sem luz, cruzou um sujeito encatarrhoado que lhe disse que o Neves
estava em cima ao cavaco. O Neves, deputado, politico, director da
Tarde, fôra, havia
annos, n'umas ferias, seu companheiro de casa no largo do Carmo; e
desde esse verão alegre em que o Neves lhe ficára
sempre devendo tres moedas, os dois tratavam-se por
tu.
Foi encontral-o n'uma vasta sala alumiada por bicos de gaz sem globo,
sentado na borda d'uma mesa atulhada de jornaes, com o
chapéo para a nuca, discursando a alguns cavalheiros de
provincia que o escutavam de pé, n'um respeito de crentes.
N'um vão de janella, com dois homens d'idade, um rapaz
esgalgado, de jaquetão de cheviote claro e uma cabelleira
crespa que parecia erguida n'uma rajada de vento, bracejava como um
moinho na crista d'um monte. E, abancado, outro sujeito já
calvo rascunhava laboriosamente uma tira de papel.
Ao vêr o Ega (um intimo do Gouvarinho) alli
[326]
na redacção,
n'aquella noite de intriga e de
crise, Neves cravou n'elle os olhos tão curiosos,
tão
inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:
—Nada de politica, negocio particular... Não te
interrompas. Depois fallaremos.
O outro findou a injuria que estava lançando ao
José Bento, «essa grande besta que fôra
metter tudo no bico da amiga do Sousa e Sá, o par do
reino»—e
na sua impaciencia saltou da mesa, travou do braço do Ega
arrastando-o para um canto:
—Então que é?
—É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi offendido
ahi por um sujeito muito conhecido. Nada d'interessante. Um paragrapho
immundo na
Corneta do Diabo, por uma
questão de cavallos... O Maia pediu-lhe
explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas,
n'uma carta que quero que vocês publiquem.
A curiosidade do Neves flammejou:
—Quem é?
—O Damaso.
O Neves recuou d'assombro:
—O Damaso!? Ora essa! Isso é extraordinario! Ainda esta
tarde jantei com elle! Que diz a carta?
—Tudo. Pede perdão, declara que estava bebedo, que
é de profissão um bebedo...
O Neves agitou as mãos com indignação:
—E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Damaso, nosso amigo
politico!... E que não fosse, não é
questão de partido, é de decencia!
[327]
Eu faço lá isso!... Se fosse uma acta de duello, uma coisa honrosa,
explicações dignas... Mas uma carta em que um
homem se declara bebedo! Tu estás a mangar!
Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o
sangue na face, teve ainda uma revolta áquella
idéa do Damaso se declarar bebedo!
—Isso não póde ser! É absurdo! Ahi ha
historia... Deixa vêr a carta.
E, mal relanceára os olhos ao papel, á larga
assignatura floreada, rompeu n'um alarido:
—Isto não é o Damaso nem é letra do
Damaso!... «Salcede»! Quem diabo é
«Salcede»? Nunca foi o
meu Damaso!
—É o
meu Damaso, disse o
Ega. O Damaso Salcede, um gordo...
O outro atirou os braços ao ar:
—O meu é o Guedes, homem, o Damaso Guedes! Não
ha outro! Que diabo, quando se diz o Damaso é o Guedes!...
Respirou com grande allivio:
—Irra, que me assustaste! Olha agora n'este momento, com estas coisas
de ministerio, uma carta d'essas escripta pelo Guedes... Se
é o Salcede, bem, acabou-se! Espera lá...
Não é um
gordalhufo, um janota que tem uma propriedade em Cintra? Isso! Um
maganão que nos entalou na eleição
passada, fez gastar ao Silverio mais de trezentos mil reis...
Perfeitamente, ás ordens... Ó Pereirinha, olhe
[328]
aqui o snr. Ega. Tem
ahi uma carta para sahir ámanhã, na primeira
pagina, typo largo...
O snr. Pereirinha lembrou o artigo do snr. Vieira da Costa sobre a
«Reforma das Pautas».
—Vai depois! gritou o Neves. As questões de honra antes de
tudo!
E voltou ao seu grupo onde agora se fallava do conde de Gouvarinho,
saltou para a borda da mesa, lançou logo o seu
vozeirão de chefe, affirmando
no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar!
Ega accendeu o charuto, ficou um momento considerando aquelles sujeitos
que pasmavam para o verbo do Neves. Eram decerto deputados que a crise
arrastára a Lisboa, arrancára á
quietação das villas e das quintas. O mais novo
parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme face a
estourar de sangue, jocundo, crasso, lembrando ares sadios e lombo de
porco. Outro, esguio, com o paletot solto sobre as costas em arco,
tinha um queixo duro e macisso de cavallo: e dois padres muito rapados,
muito morenos, fumavam pontas de cigarro. Em todos havia esse ar,
conjunctamente apagado e desconfiado, que marca os homens de provincia,
perdidos entre as tipoias e as intrigas da Capital. Vinham alli
ás noites,
áquelle jornal do partido, saber as novas,
beber do
fino, uns com esperanças de empregos,
outros por interesses de terriola, alguns por ociosidade. Para todos o
Neves era um «robusto talento»; admiravam-lhe a
verbosidade e a tactica; decerto gostavam
[329]
de citar nas lojas das suas
villas o amigo Neves, o jornalista, o da
Tarde...
Mas, através d'essa admiração e do
prazer de roçar por
elle, percebia-se-lhes um vago medo que aquelle «robusto
talento» lhes pedisse, n'um vão de janella, duas
ou tres moedas. O Neves no emtanto celebrava o Gouvarinho como orador.
Não que tivesse os rasgos, a pureza, as bellas syntheses
historicas do José Clemente! Nem a poesia do Rufino! Mas
não havia outro para as piadas que ferem e que ficam
cravadas, alli a arder, na pelle do touro! E era a grande coisa na
Camara—ter a farpa, sabêl-a ferrar!
—Ó Gonçalo, tu lembras-te da piada do
Gouvarinho, a do trapezio? gritou elle virando-se para a janella, para
o rapaz de jaquetão claro.
O Gonçalo, cujos olhos pretos refulgiram de agudeza e
malicia, estendeu o pescoço magro n'um collarinho muito
decotado, lançou de lá:
—A do trapezio? Divina! Conta á rapaziada!
A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, á espera da
«do trapezio».
Fôra na Camara dos Pares, na reforma da
instrucção. Estava fallando
o Torres Valente, esse maluco que defendia a gymnastica dos collegios e
queria as meninas a fazerem a prancha. Gouvarinho ergue-se e atira-lhe
esta:
«Snr. presidente, direi uma palavra só. Portugal
sahirá para sempre da senda do progresso, em que tanto se
tem illustrado, no dia em que nós fôrmos
[330]
ao ensino, com mão impia, substituir a cruz pelo
trapezio!»
—Muito bem! rosnou um dos padres profundamente satisfeito.
E no murmurio de admiração que se ergueu destacou
um ganido—o do rapaz mais grosso que um pote, que mexia os hombros,
chasqueava com uma risota na bochecha côr de tomate:
—Pois, senhores, o que esse conde de Gouvarinho me sae é um
grandissimo carola!
E em redor correram sorrisos entre os cavalheiros de provincia,
liberaes e finorios, que achavam aquelle fidalgo excessivamente apegado
á cruz. Mas já o Neves, de pé,
bravejava:
—Carola! Vem-nos agora o menino gordo com carola!... O Gouvarinho
carola! Está claro que tem toda a
orientação mental do seculo, é
um racionalista, um positivista... Mas a questão aqui
é a
réplica, a tactica parlamentar! Desde que o typo da maioria
vem de lá com a descoberta do trapezio, Gouvarinho amigo,
ainda que fosse tão atheu como Renan, zás!
atira-lhe logo para cima com a cruz!... Isto é que
é a estrategia parlamentar!
Pois não é assim, Ega?
Ega murmurou, através do fumo do charuto:
—Sim, com effeito a cruz para isso ainda serve...
Mas n'esse momento o sujeito calvo, que repellira a tira de papel e se
espreguiçava, cahido para as costas da cadeira, exhausto,
pediu ao snr.
[331]
João da Ega—que fallasse á gente e guardasse o
seu dinheiro...
Ega acercou-se logo d'aquelle sympathico homem, tão
engraçado, tão querido de todos:
—Então, na grande faina, Melchior?
—Estou aqui a vêr se faço uma coisa sobre o livro
do Craveiro, os
Cantos da
Serra, e não me sae nada em termos...
Não sei o que hei de dizer!
Ega gracejou, de mãos nos bolsos, muito risonho, muito
camarada com o Melchior:
—Nada! Vocês aqui são simples localistas,
noticiaristas, annunciadores. D'um livro como o do Craveiro
têm só respeitosamente a dizer onde se vende e
quanto custa.
O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzados por traz
da nuca:
—Então onde queria você que se fallasse dos
livros?... Nos reportorios?
Não, nas Revistas Criticas: ou então nos
jornaes—que fossem jornaes, não papeluchos volantes, tendo
em cima uma cataplasma de politica em estylo mazorro ou em estylo
fadista, um romance mal traduzido do francez por baixo e o resto cheio
com «annos», despachos, parte de policia e loteria
da Misericordia. E como em Portugal não havia nem jornaes
sérios nem Revistas Criticas—que se não fallasse
em parte nenhuma.
—Com effeito, murmurou Melchior, ninguem falla de nada, ninguem parece
pensar em nada...
E com toda a razão, affirmou Ega. Certamente
[332]
muito d'esse silencio provinha do
natural desejo que têm os que são mediocres de que
se não
alluda muito aos que são grandes. É a invejasinha
reles e
rastejante! Mas em geral o silencio dos jornaes para com os livros
provém sobretudo d'elles terem abdicado todas as
funcções elevadas d'estudo e de critica,
de se terem tornado folhas rasteiras d'informação
caseira, e de sentirem por isso a sua incompetencia...
—Está claro, não fallo por você,
Melchior, que é dos nossos e de primeira ordem! Mas os seus
collegas, menino, calam-se por se saberem incompetentes...
O Melchior ergueu os hombros com um ar cançado e descrente:
—Calam-se tambem porque o publico não se importa, ninguem
se importa...
Ega protestou, já excitado. O Publico não se
importava!? Essa era curiosa! O Publico então não
se importa que lhe fallem de livros que elle compra aos tres mil, aos
seis mil exemplares? E isto, dada a população de
Portugal, caramba, é
igual aos grandes successos de Paris e de Londres... Não,
Melchiorzinho amigo, não! Esse silencio diz ainda mais
claramente e retumbantemente que as palavras: «Nós
somos incompetentes. Nós estamos
bestialisados pela noticia do snr. conselheiro que chegou ou do snr.
conselheiro que partiu, pelos
High-lifes, pela amabilidade dos
donos da casa, pelo artigo de fundo em descompostura e
calão, por toda
[333]
esta prosa chula em que nos
atolamos... Nós não sabemos, não
podemos já fallar d'uma obra d'arte ou d'uma obra de
historia, d'este bello livro de versos ou d'este bello livro de
viagens. Não temos nem phrases nem idéas.
Não somos talvez cretinos—mas
estamos cretinisados. A obra de litteratura passa muito
alto—nós chafurdamos aqui muito em baixo...»
—E aqui tem você, Melchior, o que diz, através do
silencio dos jornaes, o côro dos jornalistas!
Melchior sorria, enlevado, com a cabeça deitada para traz,
como quem goza uma bella ária. Depois com uma palmada na
mesa:
—Caramba, ó Ega, muito bem falla você!...
Você nunca pensou em ser deputado? Eu ainda outro dia dizia
ao Neves: «O Ega! O Ega é que era, para atirar
alli na camara a piadinha á Rochefort. Ardia
Troia!»
E immediatamente, emquanto Ega ria, contente, tornando a accender o
charuto—Melchior arrebatou a penna:
—Você está em veia! Diga lá, dicte
lá... Que hei de eu aqui pôr sobre o livro do
Craveiro?
Ega quiz saber o que escrevera já o amigo Melchior. Apenas
tres linhas: «Recebemos o novo livro do nosso glorioso poeta
Simão Craveiro. O precioso volume, onde scintillam em
caprichosos relevos todas as joias d'este prestigioso escriptor,
é publicado pelos activos editores...» E aqui o
Melchior emperrára. Melchior não gostava
d'aquelle
[334]
frouxo termo—
activos. Ega então
suggeriu—
emprehendedores. Melchior
emendou, leu:
—«...publicado pelos emprehendedores editores...»
Ora sêbo, rima!
Arrojou a penna, descorçoado. Acabou-se! Não
estava em
verve. E além
d'isso era tarde, tinha a rapariga á espera...
—Fica para ámanhã... O peor é que
já ando n'isto ha cinco dias! Irra! Você tem
razão, a
gente bestialisa-se. E faz-me raiva! Não é
lá pelo livro, não me importa o livro...
É pelo Craveiro, que é bom rapaz, e demais a mais
pertence cá ao partido!
Abriu um gavetão, sacou uma escova, rompeu a escovar-se com
desespero. E Ega ia ajudal-o, limpar-lhe as costas cheias de
cal—quando entre elles surgiu a face chupada e nervosa do
Gonçalo, com a sua gaforinha perpetuamente erguida como por
uma rajada de vento.
—Que está o Egasinho a fazer n'este covil da noticia?
—Aqui a escovar o Sampaio... Estive tambem a ouvir o Neves, a grande
phrase do Gouvarinho...
O Gonçalo pulou, com uma faisca de malicia nos olhos negros
de algarvio esperto.
—A da cruz? Espantosa! Mas ha melhor, ha melhor!
Travou do braço do Ega, puxou-o para um canto da janella:
—É necessario fallar baixo por causa da rapaziada
[335]
de provincia... Ha outra
deliciosa. Eu não me lembro bem, o Neves é que
sabe! É uma coisa da Liberdade conduzindo á
mão o corcel do
Progresso... O quer que seja assim, uma imagem equestre! A Liberdade
com calções de jockey, o Progresso com um grande
freio... Espantoso! Que besta, aquelle Gouvarinho! E os outros, menino,
os outros! Você não foi á camara quando
se discutiu a questão de Tondella? Extraordinario! O que se
disse! Foi de morrer! E eu morro! Esta politica, este S. Bento, esta
eloquencia, estes bachareis matam-me. Querem dizer agora ahi que isto
por fim não é peor que a Bulgaria.
Historias! Nunca houve uma choldra assim no universo!
—Choldra em que você chafurda! observou o Ega rindo.
O outro recuou com um grande gesto:
—Distingamos! Chafurdo por necessidade, como politico: e
tróço por gosto, como artista!
Mas Ega justamente achava uma desgraça incomparavel para o
paiz—esse immoral desaccordo entre a intelligencia e o caracter.
Assim, alli estava o amigo Gonçalo, como homem de
intelligencia, considerando o Gouvarinho um imbecil...
—Uma cavalgadura, corrigiu o outro.
—Perfeitamente! E todavia, como politico, você quer essa
cavalgadura para ministro, e vai apoial-a com votos e com discursos
sempre que ella rinche ou escoucinhe.
[336]
Gonçalo correu lentamente a mão pela gaforinha,
com a face franzida:
—É necessario, homem! Razões de disciplina e de
solidariedade partidaria... Ha uns compromissos... O paço
quer, gosta d'elle...
Espreitou em roda, murmurou, collado ao Ega:
—Ha ahi umas questões de syndicatos, de banqueiros, de
concessões em Moçambique... Dinheiro, menino, o
omnipotente dinheiro!
E como Ega se curvava, vencido, cheio só de respeito—o
outro, faiscando todo de finura e cynismo, atirou-lhe uma palmada ao
hombro:
—Meu caro, a politica hoje é uma coisa muito differente!
Nós fizemos como vocês os litteratos. Antigamente
a litteratura era a imaginação, a
phantasia, o ideal... Hoje é a realidade, a experiencia, o
facto positivo, o documento. Pois cá a politica em Portugal
tambem se lançou na corrente realista. No tempo da
Regeneração e dos Historicos a
politica era o progresso, a viação, a liberdade,
o
palavrorio... Nós mudamos tudo isso. Hoje é o
facto positivo,—o dinheiro, o dinheiro! o bago! a
massa! A rica
massinha da nossa alma,
menino! O divino dinheiro!
E de repente emmudeceu, sentindo na sala um silencio—onde o seu grito
de «dinheiro! dinheiro!»
parecera ficar vibrando, no ar quente do gaz, com a
prolongação de um toque de rebate acordando as
cubiças, chamando ao longe e ao largo todos os habeis para o
saque da Patria inerte!...
[337]
O Neves desapparecera. Os cavalheiros de provincia dispersavam, uns
enfiando o paletot, outros sem pressa dando um olhar amortecido aos
jornaes sobre a mesa. E o Gonçalo bruscamente disse adeus ao
Ega, rodou nos tacões, desappareceu tambem,
abraçando ao passar um dos padres a quem tratou de
«malandro!»
Era meia noite, Ega sahiu. E na tipoia que o levava ao Ramalhete,
já mais calmo, começou logo a reflectir que o
resultado da publicação da
carta seria despertar em toda Lisboa uma curiosidade voraz. A
«questão de cavallos» com que o
Neves se contentára promptamente, distrahido e absorvido
n'essa noite pela crise,—ninguem mais a acreditaria... O Damaso
decerto, interrogado, para se desculpar, contaria horrores de Maria e
de Carlos: e uma intoleravel luz d'escandalo ia bater coisas que deviam
permanecer na sombra. Eram talvez apoquentações,
desesperos que elle assim estivera
preparando a Carlos—por causa d'um odiosinho ao Damaso. Nada mais
egoista e pequeno!... E subindo para o quarto Ega decidia correr depois
d'almoço á redacção da
Tarde, suster a
publicação da carta.
Mas toda essa noite sonhou com Rachel e com Damaso. Via-os rolando por
uma estrada sem fim, entre pomares e vinhedos, deitados n'uma
carroça de bois, sobre um enxergão onde se
desdobrava, lasciva e rica, a sua colcha de setim preto da
villa Balzac: os dois beijavam-se,
enroscados, sem pudor,
[338]
sob a fresca sombra que cahia dos ramos, ao chiar lento das rodas. E
por um requinte do sonho cruel, elle Ega, sem perder a consciencia e o
orgulho d'homem, era um dos bois que puxava ao carro! Os moscardos
picavam-no, a canga pesava-lhe; e, a cada beijo mais cantado que atraz
soava no carro, elle erguia o focinho a escorrer de baba, sacudia os
cornos, mugia lamentavelmente para os céos!
Acordou n'estes urros d'agonia: e a sua cólera contra o
Damaso resurgiu, mais nutrida pelas incoherencias do sonho.
Além d'isso chovia. E decidiu não voltar
á
Tarde, deixar imprimir a carta. Que
importava, de resto, o que dissesse o Damaso? O artigo da
Corneta estava extincto,
o Palma bem pago.—E quem jámais acreditaria n'um homem que
nos jornaes se declara calumniador e bebedo?
E Carlos assim pensou tambem—quando, depois d'almoço, Ega
lhe contou a sua
resolução da vespera ao vêr o Damaso no
camarote, d'olho trocista posto n'elle, a segredar com os Cohens...
—Percebi claramente, sem erro possivel, que estava a fallar de ti, da
snr.
a D. Maria, de nós todos,
contando horrores... E
então acabou-se,
não hesitei mais. Era necessario deixar passar a
justiça de Deus! Não tinhamos paz emquanto o
não aniquilassemos!
Sim, concordou Carlos, talvez. Sómente receava que o
avô, sabendo o escandalo, se desgostasse de
[339]
vêr o seu nome misturado
a toda aquella sordidez de
Corneta e
de bebedeira...
—Elle não lê a
Tarde, acudiu Ega. O rumor, se lhe
chegar, é já vago e desfigurado.
Com effeito Affonso soube apenas confusamente que o Damaso
soltára no Gremio algumas palavras desagradaveis para
Carlos, e declarára depois n'um jornal que, n'esse momento,
estava bebedo. E a opinião do velho foi—que se o Damaso
estava embriagado (e d'outro modo como teria injuriado Carlos, seu
antigo amigo?) a sua declaração revelava extrema
lealdade e um amor quasi heroico da verdade!
—Por esta não esperavamos nós! exclamou depois
Ega no quarto de Carlos. O Damaso torna-se um justo!
De resto os amigos da casa, sem conhecer o artigo da
Corneta, approvavam a
aniquilação do Damaso. Só o Craft
sustentou que Carlos lhe devia ter antes dado «bengaladas
secretas»; e o Taveira achou cruel que se dissesse ao
desgraçado, com um florete ao peito—«ou a
dignidade ou a vida!»
Mas dias depois não se fallava mais n'esse escandalo. Outras
coisas interessavam o Chiado e a Casa Havaneza. O ministerio
fôra formado, finalmente! Gouvarinho entrava na
Marinha—Neves no Tribunal de Contas. Já os jornaes do
governo cahido começavam, segundo a pratica constitucional,
a achar o paiz irremediavelmente perdido, e a alludir ao rei com
azedume... E o derradeiro, esvaído
[340]
echo da carta do
Damaso foi, na vespera do sarau da Trindade, um paragrapho da propria
Tarde onde ella fôra
publicada, n'estas amaveis palavras:
—«O nosso amigo e distincto
sportman Damaso Salcede parte
brevemente para uma viagem de recreio a Italia. Desejamos ao elegante
touriste todas as prosperidades na
sua bella excursão ao paiz do canto e das artes.»
VI
Ao fim do jantar, na rua de S. Francisco, Ega que se
demorára no corredor a procurar a charuteira pelos bolsos do
paletot, entrou na sala, perguntando a Maria, já sentada ao
piano:
—Então, definitivamente, v. exc.
a
não vem ao
sarau da Trindade?...
Ella voltou-se para dizer, preguiçosamente, por entre a
walsa lenta que lhe cantava entre os dedos:
—Não me interessa, estou muito cançada...
—É uma sécca, murmurou Carlos do lado, da vasta
poltrona onde se estirára consoladamente, fumando, d'olhos
cerrados.
Ega protestou. Tambem era uma massada subir ás Pyramides no
Egypto. E no emtanto soffria-se invariavelmente, porque nem todos os
dias póde
[342]
um
christão trepar a um monumento que tem cinco mil annos de
existencia... Ora a snr.
a D. Maria, n'este
sarau, ia vêr por
dez tostões uma coisa
tambem rara,—a alma sentimental d'um povo exhibindo-se n'um palco, ao
mesmo tempo nua e de casaca.
—Vá, coragem! um chapéo, um par de luvas, e a
caminho!
Ella sorria, queixando-se de fadiga e preguiça.
—Bem, exclamou Ega, eu é que não quero perder o
Rufino... Vamos lá, Carlos, mexe-te!
Mas Carlos implorou clemencia:
—Mais um bocadinho, homem! Deixa a Maria tocar umas notas do
Hamlet. Temos
tempo... Esse Rufino, e o Alencar, e os bons, só gorgeiam
mais tarde...
Então Ega, cedendo tambem a todo aquelle conchego tepido e
amavel, enterrou-se no sofá com o charuto, para escutar a
canção
d'
Ophelia, de que Maria
já murmurava baixo as palavras scismadoras e tristes:
Pâle et blonde,
Dort sous l'eau profonde...
Ega adorava esta velha ballada escandinavia. Mais porém o
encantava Maria que nunca lhe parecera tão bella: o vestido
claro que tinha n'essa noite modelava-a com a
perfeição d'um marmore: e entre as velas do
piano, que lhe punham um traço de luz no perfil puro e tons
d'ouro esfiado no cabello—o
[343]
incomparavel eburneo da sua pelle ganhava em esplendor e
mimo... Tudo n'ella era harmonioso, são, perfeito... E
quanto aquella serenidade da sua fórma devia tornar
delicioso o ardor da sua paixão! Carlos era positivamente o
homem mais feliz d'estes reinos! Em torno d'elle só havia
facilidades, doçuras. Era rico,
intelligente, d'uma saude de pinheiro novo; passava a vida adorando e
adorado; só tinha o numero d'inimigos que é
necessario para confirmar uma superioridade; nunca soffrera de
dyspepsia; jogava as armas bastante para ser temido; e na sua
complacencia de forte nem a tolice publica o irritava. Sêr
verdadeiramente
ditoso!
—Quem é por fim esse Rufino? perguntou Carlos, alongando
mais os pés pelo tapete, quando Maria findou a
canção
d'
Ophelia.
Ega não sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, um
inspirado...
Maria, que procurava os nocturnos de Chopin, voltou-se:
—É esse grande orador de que fallavam na
Toca?
Não, não! Esse era outro, a sério, um
amigo de Coimbra, o José Clemente, homem d'eloquencia e de
pensamento... Este Rufino era um ratão de pera grande,
deputado por Monção, e sublime n'essa arte,
antigamente nacional e hoje mais particularmente provinciana, de
arranjar,
n'uma voz de theatro e de papo,
combinações sonoras de palavras...
[344]
—Detesto isso! rosnou Carlos.
Maria tambem achava intoleravel um sujeito a chilrear, sem
idéas, como um passaro n'um galho d'arvore...
—É conforme a occasião, observou Ega, olhando o
relogio. Uma walsa de Strauss tambem não tem
idéas, e á noite, com mulheres n'uma sala,
é deliciosa...
Não, não! Maria entendia que essa rhetorica
amesquinhava sempre a palavra humana, que, pela sua natureza mesma,
só póde servir para dar
fórma ás idéas. A musica, essa, falla
aos nervos. Se se cantar uma marcha a uma criança, ella
ri-se e salta no collo...
—E se lhe lêres uma pagina de Michelet, concluiu Carlos, o
anjinho secca-se e berra!
—Sim, talvez, considerou o Ega. Tudo isso depende da latitude e dos
costumes que ella cria. Não ha inglez, por mais culto e
espiritualista, que não tenha um fraco pela
força, pelos athletas,
pelo
sport, pelos musculos de ferro.
E
nós, os meridionaes, por mais criticos, gostamos do
palavriadinho mavioso. Eu cá pelo menos, á noite,
com mulheres, luzes, um piano e gente de casaca, pello-me por um bocado
de rhetorica.
E, com o appetite assim desperto, ergueu-se logo para enfiar o paletot,
voar á
Trindade, n'um receio de perder o
Rufino.
Carlos deteve-o ainda, com uma grande idéa:
—Espera. Descobri melhor, fazemos o sarau
[345]
aqui! Maria toca Beethoven;
nós declamamos Mussuet, Hugo, os parnasianos; temos padre
Lacordaire se te appetece a eloquencia; e passa-se a noite n'uma
medonha orgia d'ideal!...
—E ha melhores cadeiras, acudiu Maria.
—Melhores poetas, affirmou Carlos.
—Bons charutos!
—Bom cognac!
Ega alçou os braços ao ar, desolado. Ahi
está como se pervertia um cidadão, impedindo-o de
proteger as letras patrias—com promessas perfidas de tabaco e de
bebidas!... Mas de resto elle não tinha só uma
razão litteraria para
ir ao sarau. O Cruges tocava uma das suas
Meditações
d'Outono, e era necessario dar palmas ao Cruges.
—Não digas mais! gritou Carlos, dando um pulo da poltrona.
Esquecia-me o Cruges!... É um dever d'honra! Abalemos.
E d'ahi a pouco, tendo beijado a mão de Maria que ficava ao
piano, os dois, surprehendidos com a belleza d'essa noite d'inverno,
tão clara e
dôce, seguiam devagar pela rua—onde Carlos ainda duas vezes
se voltou para olhar as janellas alumiadas.
—Estou bem contente, exclamou elle travando do braço do
Ega, em ter deixado os Olivaes!... Aqui ao menos podemos reunir-nos
para um bocado de cavaco e de litteratura...
Tencionava arranjar a sala com mais gosto e conforto, converter o
quarto ao lado n'um
fumoir
[346]
forrado com as suas colchas da
India, depois ter um dia certo em que viessem os amigos cear... Assim
se realisava o velho sonho, o cenaculo de dilettantismo e d'arte...
Além d'isso havia a
lançar a
Revista, que era
a suprema pandega
intellectual. Tudo isto annunciava um inverno
chic a
valer, como dizia o defunto Damaso.
—E tudo isto, resumiu o Ega, é dar
civilisação ao paiz. Positivamente, menino,
vamo-nos tornar grandes cidadãos!...
—Se me quizerem erguer uma estatua, disse Carlos alegremente, que seja
aqui na rua de S. Francisco... Que belleza de noite!
Pararam á porta do theatro da Trindade no momento em que,
d'uma tipoia de praça, se apeava um sujeito de barbas de
apostolo, todo de luto, com um chapéo de largas abas
recurvas á moda de 1830. Passou junto dos dois amigos sem os
vêr, recolhendo um troco á bolsa. Mas Ega
reconheceu-o.
—É o tio do Damaso, o demagogo! Bello typo!
—E segundo o Damaso, um dos bebedos da familia, lembrou Carlos rindo.
Por cima, de repente, no salão, estalaram grandes palmas.
Carlos, que dava o paletot ao porteiro, receou que já fosse
o Cruges...
[347]
—Qual! disse o Ega. Aquillo é applaudir de rhetorica!
E com effeito, quando pela escada ornada de plantas chegaram ao
ante-salão, onde dois sujeitos de casaca passeavam em bicos
de pés, segredando—sentiram logo um vozeirão
tumido, garganteado, provinciano, de vogaes arrastadas em canto,
invocando lá do fundo, do estrado, «a alma
religiosa de Lamartine!...»
—É o Rufino, tem estado soberbo! murmurou o Telles da Gama
que não passára da porta, com o charuto escondido
atraz das costas.
Carlos, sem curiosidade, ficou junto do Telles. Mas Ega, esguio e
magro, foi rompendo pela coxia tapetada de vermelho. D'ambos os lados
se cerravam filas de cabeças, embebidas, enlevadas,
atulhando os bancos de palhinha até junto ao tablado, onde
dominavam os chapéos de senhoras picados por manchas claras
de plumas ou flôres. Em volta, de pé, encostados
aos pilares ligeiros que sustêm a galeria, reflectidos pelos
espelhos, estavam os homens, a gente do Gremio, da Casa Havaneza, das
Secretarias, uns de gravata branca, outros de jaquetões. Ega
avistou o snr. Sousa Netto, pensativo, sustentando entre dois dedos a
face escaveirada, de barba rala; adiante o Gonçalo, com a
sua gaforinha ao vento; depois o marquez atabafado n'um cache-nez de
sêda branca; e, n'um grupo, mais longe, rapazes do Jockey
Club, os dois Vargas, o Mendonça, o Pinheiro, assistindo
[348]
áquelle
sport da
eloquencia com uma mistura d'assombro e tedio. Por cima, no parapeito
de velludo da galeria, corria outra linha de senhoras com vestidos
claros, abanando-se mollemente; por traz alçava-se ainda uma
fila de cavalheiros onde destacava o Neves, o novo Conselheiro, grave,
de braços cruzados, com um botão de camelia na
casaca mal feita.
O gaz suffocava, vibrando cruamente n'aquella sala clara, d'um tom
desmaiado de canario, raiada de reflexos de espelhos. Aqui e
além uma tosse timida de catarrho desmanchava o silencio,
logo abafada no lenço. E na extremidade da galeria, n'um
camarote feito de tabiques, com sanefas de velludo côr de
cereja, duas cadeiras de espaldar dourado permaneciam vazias, na
solemnidade real do seu damasco escarlate.
No emtanto, no estrado, o Rufino, um bacharel transmontano, muito
trigueiro, de pera, alargava os braços, celebrava um anjo,
«o
Anjo da Esmola que elle entrevira,
além no azul, batendo as azas de setim...» Ega
não comprehendia bem—entalado entre um padre muito gordo
que pingava de suor, e um alferes de lunetas escuras. Por fim
não se conteve:—«Sobre que está elle a
fallar?» E foi o padre que o informou, com a face luzidia,
inflammada de enthusiasmo:
—Tudo sobre a caridade, sobre o progresso! Tem estado sublime...
Infelizmente está a acabar!
Parecia ser, com effeito, a peroração. O Rufino
[349]
arrebatára o
lenço, limpava a testa lentamente; depois arremetteu para a
borda do tablado, voltando-se para as cadeiras reaes com um
tão ardente gesto d'inspiração—que o
collete repuxado
descobriu o começo da ceroula. Foi então que Ega
comprehendeu. Rufino estava exaltando uma princeza que dera seiscentos
mil reis para os inundados do Ribatejo, e ia a beneficio d'elles
organisar um bazar na Tapada. Mas não era só essa
soberba esmola que deslumbrava o Rufino—porque elle, «como
todos os homens educados pela philosophia e que têm a
verdadeira orientação
mental do seu tempo, via nos grandes factos da historia não
só a sua belleza poetica, mas a
sua influencia social. A multidão, essa, sorria
simplesmente, enlevada, para a incomparavel poesia da mão
calçada de fina luva que se estende para o pobre. Elle
porém, philosopho, antevia já, sahindo d'esses
delicados dedos de princeza, um resultado bem profundo e formoso... O
quê, meus senhores? O renascimento da
Fé!»
De repente, um leque que escorregára da galeria, arrancando
em baixo um berro a uma senhora gorda, creou um susurro, uma curta
emoção. Um commissario do sarau, D.
José Sequeira, ergueu-se logo nos degraus do tablado, com o
seu laçarote de sêda vermelha na casaca,
dardejando severamente os olhos vesgos para o recanto indisciplinado
onde curtos risos esfusiavam. Outros cavalheiros, indignados, gritavam
«
chut, silencio,
[350]
fóra!» E das
cadeiras da frente surgiu a face ministerial do Gouvarinho, inquieta
pela Ordem, com as lunetas brilhando duramente... Então Ega
procurou ao lado a condessa: e avistou-a emfim mais longe, com um
chapéo azul, entre a Alvim toda de preto e umas vastas
espádoas cobertas de setim malva que eram as da baroneza de
Craben. Todo o rumor findava—e o Rufino, que
molhára lentamente os labios no copo, avançou um
passo, sorrindo, com o lenço branco na mão:
—Dizia eu, meus senhores, que dada a orientação
mental d'este seculo...
Mas o Ega suffocava, esmagado, farto do Rufino, com a
impressão de que o padre ao lado cheirava mal. E
não aturou mais, furou para traz, para desabafar com Carlos.
—Tu imaginavas uma besta assim?
—Horroroso! murmurou Carlos. Quando tocará o Cruges?
Ega não sabia, todo o programma fôra alterado.
—E tens cá a Gouvarinho! Está lá
adiante, d'azul... Hei de querer vêr logo esse encontro!
Mas ambos se voltaram sentindo por traz alguem ciciar discretamente
«
bonsoir,
messieurs...» Era Steinbroken e o seu
secretario, graves, de casaca, em pontas de pés, com as
claques fechadas. E immediatamente Steinbroken queixou-se da ausencia
da familia real...
—Mr. de Cantanhede, qui est de service, m'avait
[351]
cependant assuré
que la reine viendrait... C'est bien sous sa protection, n'est-ce pas,
toute cette musique, ces vers?... Voilà pourquoi je suis
venu. C'est très ennuyeux... Et Alphonse de Maia, toujours
en santé?
—Merci...
Na sala o silencio impressionava. Rufino, com gestos de quem
traça n'uma tela linhas lentas e nobres, descrevia a
doçura d'uma aldeia, a aldeia em que elle nascera, ao
pôr do sol. E o seu
vozeirão velava-se, enternecido, morrendo n'um rumor de
crepusculo. Então Steinbroken, subtilmente, tocou no hombro
do Ega. Queria saber se era esse o grande orador de que lhe tinham
fallado...
Ega affirmou com patriotismo que era um dos maiores oradores da Europa!
—Em qual génerro?...
—Genero sublime, genero de Demosthenes!
Steinbroken alçou as sobrancelhas com
admiração, fallou em filandez ao seu secretario
que entalou languidamente o monoculo: e com as claques debaixo do
braço, cerrados os olhos, recolhidos como n'um templo, os
dois enviados da Filandia ficaram escutando, á espera do
sublime.
Ruffino, no entanto, com as mãos descahidas, confessava uma
fragilidade de sua alma! Apesar da poesia ambiente d'essa sua aldeia
natal, onde a violeta em cada prado, o rouxinol em cada balseira
provavam Deus irrefutavelmente,—elle fôra dilacerado pelo
espinho da descrença! Sim, quantas vezes,
[352]
ao cahir da tarde, quando
os sinos da velha torre choravam no ar a Ave-Maria e no valle cantavam
as ceifeiras, elle passára junto da cruz do adro e da cruz
do cemiterio, atirando-lhes de lado, cruelmente, o sorriso frio de
Voltaire!...
Um largo fremito d'emoção passou. Vozes
suffocadas de gozo mal podiam murmurar
«
muito bem, muito
bem...»
Pois fôra n'esse estado, devorado pela duvida, que Rufino
ouvira um grito d'horror resoar por sobre o nosso Portugal... Que
succedera? Era a Natureza que atacava seus filhos!—E
lançando os braços, como quem se debate n'uma
catastrophe, Rufino pintou a inundação... Aqui
aluia um casal,
ninho florido d'amores; além, na quebrada, passava o balar
choroso dos gados; mais longe as negras aguas iam juntamente arrastando
um botão de rosa e um berço!...
Os
bravos partiram profundos e
roucos de peitos que arfavam. E em torno de Carlos e do Ega sujeitos
voltavam-se apaixonadamente uns para os outros, com um brilho na face,
commungando no mesmo enthusiasmo: «Que rajadas!...
Caramba!... Sublime!...»
Rufino sorria, bebendo esta commoção, que era a
obra do seu verbo. Depois, respeitosamente, voltou-se para as cadeiras
reaes, solemnes e vazias...
Vendo que a cólera da Natureza rugia implacavel, elle
erguera os olhos para o natural abrigo, para o exaltado logar d'onde
desce a salvação, para
[353]
o Throno de Portugal! E de repente, deslumbrado, vira por sobre elle estenderem-se
as azas brancas d'um anjo! Era o anjo da esmola, meus senhores! E
d'onde vinha? d'onde recebera a inspiração da
caridade? d'onde sahia assim, com os seus cabellos d'ouro? Dos livros
da sciencia? dos laboratorios chimicos? d'esses amphitheatros
d'anatomia onde se nega covardemente a alma? das sêccas
escólas de philosophia que fazem de Jesus um precursor de
Robespierre? Não! Elle ousára interrogar o anjo,
submisso, com o joelho em terra. E o anjo da esmola, apontando o
espaço divino, murmurára: «Venho
d'além!»
Então pelos bancos apinhados correu um susurro d'enlevo. Era
como se os estuques do tecto se abrissem, os anjos cantassem no alto.
Um estremecimento devoto e poetico arrepiava as cuias das senhoras.
E Rufino findava, com uma altiva certeza na alma! Sim, meus senhores!
Desde esse momento, a duvida fôra n'elle como a nevoa que o
sol, este radiante sol portuguez, desfaz nos ares... E agora, apesar de
todas as ironias da sciencia, apesar dos escarneos orgulhosos d'um
Renan, d'um Littré e d'um Spencer, elle, que recebera a
confidencia divina, podia alli, com a mão sobre o
coração,
affirmar a todos bem alto—havia um céo!
—Apoiado! mugiu na coxia o padre sebento.
E por todo o salão, no aperto e no calor do gaz, os
cavalheiros das Secretarias, da Arcada, da
[354]
Casa Havaneza, berrando, batendo
as mãos, affirmaram soberbamente o céo!
O Ega que ria, divertido, sentiu ao lado um som rouco de
cólera. Era o Alencar, de paletot, de gravata branca,
cofiando sombriamente os bigodes.
—Que te parece, Thomaz?
—Faz nojo! rugiu surdamente o poeta.
Tremia, revoltado! N'uma noite d'aquellas, toda de poesia, quando os
homens de letras se deviam mostrar como são, filhos da
democracia e da liberdade, vir aquelle pulha pôr-se alli a
lamber os pés á familia real... Era
simplesmente ascoroso!
Lá ao fundo, junto aos degraus do tablado, ia um tumulto
d'abraços, de comprimentos, em torno do Rufino, que reluzia
todo de orgulho e suor. E pela porta os homens escoavam-se, afogueados,
commovidos ainda, puxando das charuteiras. Então o poeta
travou do braço do Ega:
—Ouve lá, eu vinha justamente procurar-te. É o
Guimarães, o tio do Damaso, que me pediu para te ser
apresentado... Diz que é uma coisa
séria, muito séria... Está
lá em baixo no
botequim, com um
grog.
Ega pareceu surprehendido... Coisa séria!?
—Bem, vamos nós lá baixo tomar tambem um
grog! E que recitas tu logo,
Alencar?
—
A Democracia, foi dizendo o poeta
pela escada, com certa reserva. Uma coisita nova, tu
verás... São algumas verdades duras a toda essa
burguezia...
[355]
Estavam á porta do botequim—e precisamente o snr.
Guimarães sahia, com o chapéo sobre o olho, de
charuto accêso, abotoando a sobrecasaca. Alencar
lançou a apresentação, com
immensa gravidade:
—O meu amigo João da Ega... O meu velho amigo
Guimarães, um bravo cá dos nossos, um
veterano da Democracia.
Ega acercou-se d'uma mesa, puxou cortezmente um banco para o veterano
da Democracia, quiz saber se elle preferia cognac ou cerveja.
—Tomei agora o meu
grog de guerra,
disse o snr. Guimarães com seccura, tenho para toda a noite.
Um criado dava uma limpadella lenta sobre o marmore da mesa. Ega
ordenou cerveja. E directamente, largando o charuto, passando a
mão pelas barbas a retocar a magestade da face, o snr.
Guimarães começou com lentidão e
solemnidade:
—Eu sou tio do Damaso Salcede, e pedi aqui ao meu velho amigo Alencar
para me apresentar a v. exc.
a, com o fim de o
intimar a que olhe bem
para mim e que diga se me acha cara de bebedo...
Ega comprehendeu, atalhou logo, cheio de franqueza e bonhomia:
—V. exc.
a refere-se a uma carta que seu
sobrinho me escreveu...
—Carta que v. exc.
a dictou! Carta que v. exc.
a
o forçou a
assignar!
—Eu?...
[356]
—Affirmou-m'o elle, senhor!
Alencar interveio:
—Fallem vocês baixo, que diabo!... Isto é terra
de curiosos...
O snr. Guimarães tossiu, chegou a cadeira mais para a mesa.
Tinha estado, contou elle, havia semanas fóra de Lisboa por
negocios da herança de seu irmão. Não
vira o sobrinho, porque
só por necessidade se encontrava com esse imbecil. Na
vespera, em casa d'um antigo amigo, o Vaz Forte, deitára por
acaso os olhos ao
Futuro, um
jornal republicano, bem escripto, mas frouxo de idéas. E
avistára logo na primeira pagina, em typo enorme, sob esta
rubrica aliás justa
Coisas do
high-life, a carta do sobrinho... Imagine o snr. Ega
o seu furor! Alli mesmo, em casa do Forte, escrevera ao Damaso pouco
mais ou menos n'estes termos: «Li a tua infame
declaração. Se
ámanhã não fazes outra, em todos os
jornaes, dizendo que não tinhas
intenção de me incluir
entre os bebedos da tua familia, vou ahi e quebro-te os ossos um por
um. Treme!» Assim lhe escrevera. E sabia o snr.
João da Ega qual fôra a resposta do snr. Damaso?
—Tenho-a aqui, é um
documento
humano, como diz o amigo Zola! Aqui
está... Grande papel, monogramma d'ouro, corôa de
conde. Aquelle asno! Quer v. exc.
a que eu leia?
A um gesto risonho do Ega, elle mesmo leu, lentamente, e sublinhando:
[357]
—«Meu caro tio! A carta de que falla foi escripta pelo snr.
João da Ega. Eu era incapaz de tal desacato á
nossa querida familia. Foi elle que me agarrou na mão,
á força, para eu
assignar: e eu, n'aquella atrapalhação, sem saber
o que fazia, assignei para evitar fallatorios. Foi um laço
que me armaram os meus inimigos. O meu querido tio, que sabe como eu
gósto de si, que até estava o anno passado com
tenção,
se soubesse a sua morada em Paris, de lhe mandar meia pipa de vinho de
Collares, não fique pois zangado commigo. Bem infeliz
já eu sou! E se quizer procure esse João da Ega
que me perdeu! Mas acredite que hei de tirar uma vingança
que ha de ser fallada! Ainda não decidi qual, n'esta
atarantação; mas em todo o caso a nossa familia
ha de ficar desenxovalhada, porque eu nunca admitti que ninguem
brincasse com a minha dignidade... E se o não fiz
já antes de partir para Italia, se ainda não
pugnei pela minha honra, é porque ha dias, com todos estes
abalos, veio-me uma tremenda dysenteria, que estou que me
não tenho nas pernas. Isto por cima dos meus males
moraes!...» V. exc.
a ri-se, snr. Ega?
—Pois que quer v. exc.
a que eu faça?
balbuciou o Ega por
fim, suffocado, com os olhos em lagrimas. Rio-me eu, ri-se o Alencar,
ri-se v. exc.
a Isso é extraordinario!
Essa dignidade, essa
dysenteria...
O snr. Guimarães, embaçado, olhou o Ega,
[358]
olhou o poeta que
fungava sob os longos bigodes, e terminou por dizer:
—Com effeito, a carta é d'uma cavalgadura... Mas o facto
permanece...
Então Ega appellou para o bom senso do snr.
Guimarães, para a sua experiencia das coisas d'honra.
Comprehendia elle que dois cavalheiros, indo desafiar um homem a sua
casa, lhe agarrem no pulso, o forcem violentamente a assignar uma carta
em que elle se declara bebedo?...
O snr. Guimarães, agradado com aquella deferencia pelo seu
tacto e pela sua experiencia, confessou que o caso, pelo menos em
Paris, seria pouco natural.
—E em Lisboa, senhor! Que diabo, isto não é a
Cafraria! E diga-me o snr. Guimarães outra coisa, de
gentleman para gentleman: como considera seu sobrinho? um homem
irreprehensivelmente veridico?
O snr. Guimarães cofiou as barbas, declarou lealmente:
—Um refinado mentiroso.
—Então! gritou Ega em triumpho, atirando os
braços ao ar.
De novo Alencar interveio. A questão parecia-lhe
satisfactoriamente finda. E não restava senão os
dois apertarem-se a mão fraternalmente, como bons
democratas...
Já de pé, atirou a genebra ás guelas.
Ega sorria, estendia a mão ao snr. Guimarães. Mas
o velho
[359]
demagogo, ainda com uma sombra na face enrugada, desejou que o snr.
João da Ega (se n'isso não tinha duvida)
declarasse, alli diante do amigo Alencar, que não lhe achava
a elle, Guimarães,
cara de bebedo...
—Oh meu caro senhor! exclamou Ega, batendo com o dinheiro na mesa para
chamar o criado. Pelo contrario! O maior prazer em proclamar diante do
Alencar, e aos quatro ventos, que lhe acho a cara d'um perfeito
cavalheiro e d'um patriota!
Então trocaram um rasgado aperto de
mãos—emquanto o snr. Guimarães affirmava a sua
satisfação por conhecer o snr. João da
Ega, moço de tantos dotes e tão liberal. E quando
s. exc.
a quizesse qualquer coisa, politica ou
litteraria, era escrever
este endereço bem conhecido no
mundo:—
Redaction du
Rappel,
Paris!
Alencar abalára. E os dois deixaram o botequim, trocando
impressões do sarau. O snr. Guimarães estava
enojado com a carolice, a sabujice d'esse Rufino. Quando o ouvira
palrar das azas da princeza e da cruz do adro, quasi lhe
gritára cá
do fundo: «Quanto te pagam para isso, miseravel?»
Mas de repente Ega estacou na escada, tirando o chapéo:
—Oh snr.
a baroneza, então
já nos abandona?
Era a Alvim que descia devagar, com a Joanninha Villar, atando as
largas fitas d'uma capa de pellucia verde. Queixou-se d'uma
dôr de cabeça que a torturava, apesar de ter
gostado loucamente
[360]
do Rufino... Mas uma noite toda de litteratura, que estafa! E agora,
para mais, ficára lá um
homemzinho a fazer musica classica...
—É o meu amigo Cruges!
—Ah! é seu amigo? Pois olhe, devia-lhe ter dito que tocasse
antes o
Pirolito.
—V. exc.
a afflige-me com esse desdem pelos
grandes mestres...
Não quer que a vá acompanhar á
carruagem? Paciencia... Muito boa noite, snr.
a
D. Joanna!... Um servo
seu, snr.
a baroneza! E Deus lhe tire a sua
dôr de
cabeça!
Ella voltou-se ainda no degrau, para o ameaçar risonhamente
com o leque:
—Não seja impostor! O snr. Ega não acredita em
Deus.
—Perdão... Que o Diabo lhe tire a sua dôr de
cabeça, snr.
a baroneza!
O velho democrata desapparecera discretamente. E da ante-sala Ega
avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um môcho muito baixo
que lhe fazia roçar pelo chão as longas abas da
casaca—o
Cruges, com o nariz bicudo contra o caderno da Sonata, martellando
sabiamente o teclado. Foi então subindo em pontas de
pés pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada, quasi
vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, cançadas,
bocejavam por traz dos leques.
Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma fila com todo um
rancho intimo, a marqueza de Soutal, as duas Pedrosos, a Thereza
[361]
Darque. E a boa D.
Maria tocou-lhe logo no braço para saber quem era aquelle
musico de cabelleira.
—Um amigo meu, murmurou Ega. Um grande maestro, o Cruges.
O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o não
conheciam. E era composição
d'elle, aquella coisa triste?
—É de Beethoven, snr.
a D. Maria da
Cunha, a
Sonata pathetica.
Uma das Pedrosos não percebera bem o nome da Sonata. E a
marqueza de Soutal, muito séria, muito bella, cheirando
devagar um frasquinho de saes, disse que era a
Sonata
pateta.
Por toda a bancada foi um rastilho de risos suffocados. A
Sonata pateta! Aquillo parecia
divino! Da extremidade o Vargas gordo, o das corridas, estendeu a face
enorme, imberbe e côr de papoula:
—Muito bem, snr.
a marqueza, muito catita!
E passou o gracejo a outras senhoras, que se voltavam, sorriam
á marqueza, entre o
frou-frou dos leques. Ella
triumphava, bella e séria, com um velho vestido de velludo
preto, respirando os saes—emquanto adiante um amador de barba grisalha
cravava n'aquelle rancho ruidoso dois grandes oculos d'ouro que
faiscavam de cólera.
No emtanto, por toda a sala, o susurro crescia. Os encatarrhoados
tossiam livremente. Dois cavalheiros tinham aberto a
Tarde. E cahido
sobre o teclado, com a gola da casaca fugida para a nuca, o pobre
Cruges, suando, estonteado por aquella
[362]
desattenção rumorosa, atabalhoava as notas, n'uma
debandada.
—Fiasco completo, declarou Carlos que se aproximára do Ega
e do rancho.
Foi para D. Maria da Cunha uma alegria, uma surpreza! Até
que emfim se via o snr. Carlos da Maia, o Principe Tenebroso! Que
fizera elle durante esse verão? Todo o mundo a esperal-o em
Cintra, alguem mesmo com anciedade... Um
chut furioso do amador de barbas
grisalhas emmudeceu-a. E justamente Cruges, depois de bater dois
accordes bruscos, arredára o môcho, esgueirava-se
do estrado, enxugando as mãos ao lenço. Aqui e
além algumas palmas resoaram, molles e de cortezia, entre um
grande murmurio d'allivio. E o Ega e Carlos correram á
porta, onde já esperavam o
marquez, o Craft, o Taveira—para abraçar, consolar o pobre
Cruges que tremia todo, com os olhos esgazeados.
E immediatamente, no silencio attento que redominava,
um sujeito muito magro, muito alto, surgiu no tablado, com um
manuscripto na mão. Alguem ao lado do Ega disse que era o
Prata, que ia fallar sobre o
Estado agricola da
provincia do Minho. Atraz, um criado veio collocar
sobre a mesa um candelabro de duas velas: o Prata, d'ilharga para a
luz, mergulhou no caderno: e d'entre o perfil triste e as folhas largas
um rumor lento foi escorrendo, rumor de reza n'uma somnolencia de
novena, onde por vezes destacavam como gemidos—«riqueza
[363]
dos
gados..., esphacelamento da propriedade..., fertil e desprotegida
região...»
Começou então uma debandada sorrateira e
formigueira, que nem os
chuts do
commissario do
sarau, vigilante e de pé sobre um degrau do estrado, podiam
conter. Só as senhoras ficavam; e um ou outro burocrata
idoso, que se inclinava zelosamente para o murmurio de reza, com a
mão em concha sobre a orelha.
Ega, que fugia tambem «ao vecejante paraiso do
Minho», achou-se em frente do snr. Guimarães.
—Que massada, hein?
O democrata concordou que aquelle preopinante não lhe
parecia divertido... Depois, mais sério, com outra
idéa, segurando um botão da casaca do Ega:
—Eu espero que v. exc.
a ha pouco
não ficasse com a
impressão de que eu sou solidario ou me importo com meu
sobrinho...
Oh! decerto que não! Ega vira bem que o snr.
Guimarães não tinha pelo Damaso nenhum
enthusiasmo de familia.
—Asco, senhor, só asco! Quando elle foi a primeira vez a
Paris, e soube que eu morava n'uma trapeira, nunca me procurou! Porque
aquelle imbecil dá-se ares d'aristocrata... E como v. exc.
a
sabe, é filho d'um agiota!
Puxou a charuteira, ajuntou gravemente:
—A mãi, sim! Minha irmã era d'uma boa familia.
Fez aquelle desgraçado casamento, mas era
[364]
d'uma boa familia! Que, com os
meus principios, já v. exc.
a
vê que tudo isso de
fidalguia,
pergaminhos, brazões, são para mim
blague e mais
blague! Mas emfim os factos
são os factos, a historia de Portugal ahi está...
Os Guimarães da Bairrada eram de sangue azul.
Ega sorriu, n'um assentimento cortez:
—E v. exc.
a então parte brevemente
para Paris?
—Ámanhã mesmo, por Bordeus... Agora que toda essa cambada
do marechal de Mac-Mahon, e do duque de Broglie, e do Descazes foi
pelos ares, já se póde lá respirar...
N'esse instante Telles e o Taveira, passando de braço dado,
voltaram-se, a observar curiosamente aquelle velho austero, todo de
preto, que fallava alto com o Ega de marechaes e de duques. Ega
reparou: o democrata, de resto, tinha uma sobrecasaca de casimira nova;
o seu altivo chapéo reluzia; e Ega ficou de bom grado a
conversar com aquelle gentleman correcto e venerando que impressionava
os seus amigos.
—A republica com effeito, observou elle, dando alguns passos ao lado
do snr. Guimarães, esteve alli um momento compromettida!
—Perdida! E eu, meu caro senhor, aqui onde me vê, para ser
expulso por causa d'umas verdadesinhas que soltei n'uma
reunião anarchista. Até me affirmaram que n'um
conselho de ministros o marechal de Mac-Mahon, que é um
tarimbeiro,
[365]
batera
um murro na mesa e dissera:
Ce sacré
Guimaran, il nous embête, faut lui donner du pied dans le
derrière! Eu não estava
lá, não sei, mas affirmaram-me... Em Paris, como
os francezes não sabem pronunciar Guimarães, e eu
embirro que me estropiem o nome, assigno
Mr.
Guimaran. Ha dois annos, quando fui á
Italia, era
Mr.
Guimarini. E se fôr agora á
Russia, cá por coisas, hei de ser
Mr.
Guimaroff... Embirro
que me estropiem o nome!
Tinham voltado á porta do salão. Longas bancadas
vazias punham dentro, no brilho pesado do gaz, uma tristeza de abandono
e tedio; e no estrado o Prata continuava, de mão no bolso,
com o nariz sobre o manuscripto, sem que se sentisse agora surdir um
som d'aquelle espantalho esguio. Mas o marquez, que descia do fundo,
atabafando-se no seu cache-nez de sêda, disse ao Ega ao
passar que o homemzinho era muito pratico, sabia da póda, e
lá tinha ficado ás voltas
com Proudhon.
Ega e o democrata recomeçaram então os seus
passos lentos na ante-sala onde o susurro de conversas mal abafadas
crescia, como n'um pateo, entre fumaças furtivas de cigarro.
E o snr. Guimarães chasqueava, achando uma boa
bêtise que se citasse
Proudhon, alli n'aquelle theatreco, a proposito d'estrumes do Minho...
—Oh, Proudhon entre nós, acudiu Ega rindo, cita-se muito,
é já um monstro classico.
Até
[366]
os
conselheiros d'Estado já sabem que para elle a propriedade
era um roubo, e Deus era o mal...
O democrata encolheu os hombros:
—Grande homem, senhor! Homem immenso! São os tres grandes
pimpões d'este seculo:
Proudhon, Garibaldi, e o compadre!
—O compadre! exclamou Ega, attonito.
Era o nome d'amizade que o snr. Guimarães dava em Paris a
Gambetta. Gambetta nunca o via, que não lhe gritasse de
longe, em hespanhol:
«Hombre,
compadre!» E elle tambem, logo:
«
Compadre,
caramba!» D'ahi ficára a
alcunha, e Gambetta ria. Porque lá isso, bom rapaz, e amigo
d'esta franqueza do sul, e patriota, até alli!
—Immenso, meu caro senhor! O maior de todos!
Pois Ega imaginaria que o snr. Guimarães, com as suas
relações do
Rappel, devia ter sobretudo o culto
de Victor Hugo...
—Esse, meu caro senhor, não é um homem,
é um mundo!
E o snr. Guimarães ergueu mais a face, ajuntou infinitamente
grave:
—É um mundo! .. E aqui onde me vê, ainda
não ha tres mezes que elle me disse uma coisa que me foi
direita ao coração!
Vendo com deleite o interesse e a curiosidade do Ega, o democrata
contou largamente esse glorioso lance que ainda o commovia:
—Foi uma noite no
Rappel. Eu estava
a escrever,
[367]
elle
appareceu, já um pouco trôpego, mas com
o olho a luzir, e aquella bondade, aquella magestade!... Eu ergui-me,
como se entrasse um rei... Isto é, não! que se
fosse um rei tinha-lhe dado
com a bota no rabiosque. Levantei-me como se elle fosse um Deus! Qual
Deus! não ha Deus que me fizesse levantar!... Emfim,
acabou-se, levantei-me! Elle olhou para mim, fez assim um gesto com a
mão, e disse, a sorrir, com aquelle ar de genio que tinha
sempre:
Bonsoir, mon ami!
E o snr. Guimarães deu alguns passos dignos, em silencio,
como se aquelle
bonsoir, aquelle
mon ami, assim recordados, lhe
fizessem mais vivamente sentir a sua importancia no mundo.
De repente Alencar, que bracejava n'um grupo, rompeu para elles,
pallido, d'olhos chammejantes:
—Que me dizem vocês a esta pouca vergonha? Aquelle infame
alli ha meia hora, com o in-folio, a rosnar, a rosnar... E toda a
gente a sahir, não fica ninguem! Tenho de recitar aos bancos
de palhinha!...
E abalou, rilhando os dentes, a exhalar mais longe o seu furor.
Mas algumas palmas cançadas, dentro, fizeram voltar o Ega. O
estrado ficára novamente vazio, com as duas velas ardendo no
candelabro. Um cartão em grossas letras, que um criado
collocára no piano, annunciava um «intervallo de
dez minutos» como n'um circo. E n'esse instante a snr.
a
condessa de Gouvarinho sahira pelo braço do marido,
[368]
deixando atraz um
sulco largo de comprimentos, d'espinhas que se vergavam, de
chapéos de burocratas rasgadamente erguidos. O commissario
do sarau azafamava-se procurando duas cadeiras para ss. exc.
as
A
condessa porém foi reunir-se a D. Maria da Cunha, que ella
vira, com as Pedrosos e a marqueza de Soutal, refugiada n'um
vão de janella. Ega immediatamente acercou-se do rancho
intimo, esperando que as senhoras se beijocassem.
—Então, snr.
a condessa, ainda muito
commovida com a
eloquencia do Rufino?
—Muito cançada... E que calor, hein?
—Horrivel. A snr.
a baroneza d'Alvim sahiu ha
pouco, com uma dor de
cabeça...
A condessa, que tinha os olhos pisados e uma prega de velhice aos
cantos da boca, murmurou:
—Não admira, isto não é divertido...
Emfim, já agora é necessario levar a cruz ao
Calvario.
—Se fosse uma cruz, minha senhora! exclamou o Ega. Infelizmente
é uma lyra!
Ella riu. E D. Maria da Cunha, n'essa noite mais remoçada e
viva, ficou logo toda banhada n'um sorriso, com aquella carinhosa
admiração
pelo Ega, que era um dos seus sentimentos.
—Este Ega!... Não ha mal que lhe chegue!... E diga-me outra
coisa, que é feito do seu amigo Maia?
Ega vira-a momentos antes, no salão, puxar pela manga de
Carlos, cochichar com Carlos. Mas conservou um ar innocente:
[369]
—Está ahi, anda por ahi, assistindo a toda essa
litteratura.
De repente os olhos sempre bonitos e languidos de D. Maria da Cunha
rebrilharam com uma faisca de malicia:
—Fallai no mau... N'este caso seria fallar do bom. Emfim ahi nos vem o
Principe Tenebroso!
E era com effeito Carlos que passava, se encontrára diante
dos braços do conde de Gouvarinho, estendidos para elle com
uma effusão em que parecia renascer o antigo affecto. Pela
primeira vez Carlos via a condessa, desde a noite em que no Aterro,
abandonando-a para sempre, fechára com odio a portinhola da
tipoia onde ella ficava chorando. Ambos baixaram os olhos, ao adiantar
a mão um para o outro, lentamente. E foi ella que findou o
embaraço, abrindo o seu grande leque de pennas de avestruz:
—Que calor, não é verdade?
—Atroz! disse Carlos. Não vá v. exc.
a
apanhar
ar d'essa janella.
Ella forçou os labios brancos a um sorriso:
—É conselho de medico?
—Oh, minha senhora, não são as horas da minha
consulta! É apenas caridade de christão.
Mas de repente a condessa chamou o Taveira, que ria, derretido, com a
marqueza de Soutal, para o reprehender por elle não ter
apparecido
terça-feira na rua de S. Marçal. Surprehendido
com tanto interesse, tanta familiaridade, o Taveira, muito vermelho,
[370]
balbuciou que
nem sabia, fôra o seu infortunio, tinham-se mettido umas
coisas...
—Além d'isso não imaginei que v. exc.
a
começasse a receber tão cedo... V. exc.
a
antigamente era só depois da Cerração
da Velha.
Até me lembro que o anno passado...
Mas emmudeceu. O conde de Gouvarinho voltára-se, pousando a
mão carinhosa no hombro de Carlos, desejando a sua
impressão sobre o «nosso Rufino». Elle
conde estava encantado! Encantado sobretudo com a
variedade d'escala,
aquella arte tão difficil de passar do solemne para o ameno,
de descer das grandes rajadas para os brincados de linguagem.
Extraordinario!
—Tenho ouvido grandes parlamentares, o Rouher,
o Gladstone, o Canovas, outros
muitos. Mas não são estes vôos, esta
opulencia...
É tudo muito sêcco, idéas e factos.
Não entra n'alma! Vejam os amigos aquella imagem tão
pujante, tão
respeitosa, do Anjo da Esmola, descendo devagar, com as azas de
setim... É de primeira ordem.
Ega não se conteve:
—Eu acho esse genio um imbecil.
O conde sorriu, como á tonteria d'uma criança:
—São opiniões...
E estendeu em redor as mãos ao Sousa Netto, ao Darque, ao
Telles da Gama, a outros que se juntavam ao rancho intimo—emquanto os
seus correligionarios, os seus collegas do Centro e da Camara, o
Gonçalo, o Neves, o Vieira da Costa rondavam de
[371]
longe, sem poder roçar pelo
ministro que tinham creado, agora que elle conversava e ria com rapazes
e senhoras da «sociedade». O Darque, que era
parente do Gouvarinho, quiz saber como o amigo Gastão se ia
dando com os encargos do Poder... O conde declarou para os lados que
não fizera mais por ora do que passar em revista os
elementos com que contava para atacar os problemas... De resto, em
questões de trabalho, o ministerio fôra
infelicissimo! O presidente do conselho de cama com uma catarrheira,
inutil para uma semana. Agora o collega da fazenda com as febres do
Aterro...
—Está melhor? Já sae? foi em torno a pergunta
cheia de cuidado.
—Está na mesma, vai ámanhã para o
Dáfundo. Mas realmente esse não se acha de todo
inutilisado. Ainda hontem eu lhe dizia: «Você parte
para o Dáfundo, leva os seus papeis, os seus documentos...
Pela manhã dá os seus passeios, respira o bom
ar... E á noite, depois de jantar, á luz do
candieiro, entretem-se a resolver a questão de
fazenda!»
Uma campainha retiniu. D. José Sequeira, escarlate
d'azafama, veio, furando, annunciar a s. exc.
a o
fim do
intervallo—offerecer o braço á
snr.
a condessa. Ao passar, ella lembrou a Carlos
as suas
«terças-feiras», com a delicada
simplicidade d'um dever. Elle curvou-se em silencio. Era como se todo o
passado, o sofá que rolava, a casa da titi em Santa
[372]
Isabel, as tipoias em que
ella deixava o seu cheiro de verbena—fossem coisas lidas por ambos
n'um livro e por ambos esquecidas. Atraz, o marido seguia, erguendo
alto a cabeça e as lunetas, como representante do Poder
n'aquella festa da Intelligencia.
—Pois senhores, disse o Ega afastando-se com Carlos, a mulherzinha tem
topete!
—Que diabo queres tu? Atravessou a sua hora de tolice e de
paixão, e agora continúa
tranquillamente na rotina da vida.
—E na rotina da vida, concluiu Ega, encontra-se a cada passo comtigo,
que a viste em camisa!... Bonito mundo!
Mas o Alencar appareceu no alto da escada, voltando do botequim e da
genebra, com um brilho maior no olho cavo, de paletot no
braço, já
preparado para gorgear. E o marquez juntou-se a elles, abafado no
cache-nez de sêda branca, mais rouco, queixando-se de que a
cada minuto a garganta se lhe punha peor... Aquella canalha d'aquella
garganta ainda lhe vinha a pregar uma!...
Depois, muito sério, considerando o Alencar:
—Ouve lá, isso que tu vaes recitar, a
Democracia, é politica ou
sentimento? Se é politica, raspo-me. Mas se é
sentimento, e a humanidade, e o santo operario, e a fraternidade,
então fico, que d'isso gósto e até
talvez me faça
bem.
Os outros affirmaram que era sentimento. O poeta tirou o
chapéo, passou os dedos pelos anneis fôfos da
grenha inspirada:
[373]
—Eu vos digo, rapazes... Uma coisa não vai sem a outra,
vejam vocês Danton!... Mas já
não fallo emfim d'esses leões da
Revolução. Vejam vocês o Passos Manoel!
Está claro, é necessario
logica... Mas, tambem, caramba, sêbo para uma politica sem
entranhas e sem um bocado de infinito!
Subitamente, por sobre o novo silencio da sala, um vozeirão
mais forte que o do Rufino fez retumbar os grandes nomes de D.
João de Castro e de Affonso d'Albuquerque... Todos se
acercaram da porta, curiosamente. Era um maganão gordo, de
barba em bico e camelia na casaca, que, de mão fechada no ar
como se agitasse o pendão das Quinas, lamentava aos berros
que nós portuguezes, possuindo este nobre estuario do Tejo e
tão formosas tradições de gloria,
deixassemos esbanjar, ao vento do indifferentismo, a sublime
herança dos avós!...
—É patriotismo, disse o Ega. Fujamos!
Mas o marquez reteve-os, gostando tambem de um bocado de Quinas. E foi
o pobre marquez que o patriota pareceu interpellar, alçando
na ponta dos botins o corpanzil rotundo, aos urros. Quem havia agora
ahi, que, agarrando n'uma das mãos a espada e na outra a
cruz, saltasse para o convés d'uma caravella a ir levar o
nome portuguez através dos mares desconhecidos? Quem havia
ahi, heroico bastante, para imitar o grande João de Castro,
que na sua quinta de Cintra arrancára
[374]
todas as arvores de fructo, tal a era a isenção
da sua alma de poeta?...
—Aquelle miseravel quer-nos privar da sobremesa! exclamou Ega.
Em torno correram risos alegres. O marquez virou costas, enojado com
aquella patriotice reles. Outros bocejavam por traz da mão,
n'um tedio completo de «todas as nossas glorias». E
Carlos, enervado, preso alli pelo dever de applaudir o Alencar, chamava
o Ega para irem abaixo ao botequim espairecer a impaciencia—quando viu
o Eusebiosinho que descia a escada, enfiando á pressa um
paletot alvadio. Não o encontrára mais desde a
infamia da
Corneta, em que elle
fôra «embaixador». E a cólera
que tivera contra elle n'esse dia reviveu logo n'um desejo irresistivel
de o espancar. Disse ao Ega:
—Vou aproveitar o tempo, emquanto esperamos pelo Alencar, a arrancar
as orelhas áquelle maroto!
—Deixa lá, acudiu Ega, é um irresponsavel!
Mas já Carlos corria pelas escadas: Ega seguiu atraz,
inquieto, temendo uma violencia. Quando chegaram á porta,
Eusebio mettera para os lados do Carmo. E alcançaram-no no
largo da Abegoaria, áquella hora deserto, mudo, com dois
bicos de gaz mortiços. Ao vêr Carlos fender assim
sobre elle, sem paletot, de peitilho claro na noite escura, o Eusebio,
encolhido, balbuciou atarantadamente: «Olá, por
aqui...»
[375]
—Ouve cá, estupôr! rugiu Carlos, baixo.
Então tambem andaste mettido n'essa maroteira da
Corneta? Eu devia rachar-te os ossos
um a um!
Agarrára-lhe o braço, ainda sem odio. Mas, apenas
sentiu na sua mão de forte aquella carne mollenga e tremula,
resurgiu n'elle essa aversão nunca apagada—que
já em pequeno o fazia saltar sobre o Eusebiosinho,
esfrangalhal-o, sempre que as Silveiras o traziam á quinta.
E então abanou-o,
como outr'ora, furiosamente, gozando o seu furor. O pobre viuvo, no
meio das lunetas negras que lhe voavam, do chapéo coberto de
luto que lhe rolára nas lages, dançava,
escanifrado e desengonçado. Por fim Carlos atirou-o contra a
porta d'uma cocheira.
—Acudam! Aqui d'el-rei, policia! rouquejou o desgraçado.
Já a mão de Carlos lhe empolgára as
guelas. Mas Ega interveio:
—Alto! Basta! O nosso querido amigo já recebeu a sua
dóse...
Elle mesmo lhe apanhou o chapéo. Tremendo, arquejando, de
bruços, Eusebiosinho procurava ainda o guarda-chuva. E, para
findar, a bota de Carlos, atirada com nojo, estatelou-o nas pedras,
para cima d'uma sargeta onde restavam immundicies e humidade de
cavallo.
O largo permanecia deserto, com o gaz adormecendo nos candieiros
baços. Tranquillamente os dois recolheram ao sarau. No
peristylo, cheio de
[376]
luz e
plantas, cruzaram-se com o patriota de barbas em bico, rodeado
d'amigos, em caminho para o botequim, limpando ao lenço o
pescoço e a face, exclamando com o cansaço
radiante d'um triumphador:
—Irra! custou, mas sempre lhes fiz vibrar a corda!
Já o Alencar estaria gorgeando! Os dois amigos galgaram a
escada. E com effeito Alencar apparecera no estrado, onde ardia ainda o
candelabro de duas velas.
Esguio, mais sombrio n'aquelle fundo côr de canario, o poeta
derramou pensativamente pelas cadeiras, pela galeria, um olhar encovado
e lento: e um silencio pesou, mais enlevado, diante de tanta melancolia
e de tanta solemnidade.
—
A Democracia! annunciou o auctor
d'
Elvira, com a pompa d'uma
revelação.
Duas vezes passou pelos bigodes o lenço branco, que depois
atirou para a mesa. E levantando a mão n'um gesto demorado e
largo:
Era n'um parque. O luar
Sobre os vastos arvoredos,
Cheios de amor e segredos...
—Que lhe disse eu? exclamou o Ega, tocando no cotovêlo do
marquez. É sentimento... Aposto que é o festim!
E era com effeito o festim, já cantado na
Flôr de Martyrio, festim
romantico, n'um vago jardim
[377]
onde vinhos de Chypre circulam, caudas de brocado rojam entre macissos
de magnolias, e das aguas do lago sobem cantos ao gemer dos
violoncellos... Mas bem depressa transpareceu a severa idéa
social da Poesia. Emquanto, sob as arvores radiantes de luar, tudo
são «risos, brindes, lascivos
murmurios»—fóra, junto ás grades
douradas do parque, assustada com o latir dos molossos, uma mulher
macilenta, em farrapos, chora, aconchegando ao seio magro o filho que
pede pão... E o poeta, sacudindo os cabellos para traz,
perguntava porque havia ainda esfomeados n'este orgulhoso seculo XIX?
De que servira então, desde Spartacus, o esforço
desesperado dos homens para a Justiça e para a Igualdade? De
que servira então a cruz do grande Martyr, erguida
além na collina, onde, por entre os abetos
Os raios do sol se somem,
O vento triste se cala...
E as aguias revolteando
D'entre as nuvens estão olhando
Morrer o filho do Homem!
A sala permanecia muda e desconfiada. E o Alencar, com as
mãos tremendo no ar, desolava-se de que todo o Genio das
gerações fosse impotente para esta coisa
simples—dar pão á
criança que chora!
Martyrio do coração!
Espanto da consciencia!
Que toda a humana sciencia
Não solva a negra questão!
[378]
Que os tempos passem e rolem
E nenhuma luz assome,
E eu veja d'um lado a fome
E do outro a indigestão!
Ega torcia-se, fungando dentro do lenço, jurando que
rebentava. «
E do outro a
indigestão!» Nunca, nas alturas
lyricas, se gritára nada tão
extraordinario! E sujeitos graves, em redor, sorriam d'aquelle
realismo sujo. Um jocoso
lembrou que para indigestões já havia o
bi-carbonato de
potassa.
—Quando não são das minhas! rosnou um cavalheiro
esverdinhado, que alargava a fivela do collete.
Mas tudo emmudeceu ante um
chut
terrivel do marquez, que desapertára o cache-nez,
já
excitado, no enternecimento que sempre lhe davam estes humanitarismos
poeticos. E entretanto, no estrado, o Alencar achára a
solução do
soffrimento humano! Fôra uma Voz que lh'a
ensinára! Uma Voz sahida do fundo dos seculos, e que
através d'elles, sempre suffocada, viera crescendo todavia
irresistivelmente desde o Golgotha até á
Bastilha! E
então, mais solemne por traz da mesa, com um arranque de
Precursor e uma firmeza de Soldado, como se aquelle honesto movel de
mogno fosse um pulpito e uma barricada—o Alencar, alçando a
fronte n'uma grande audacia á Danton, soltou o brado
temeroso. Alencar queria a Republica!
Sim, a Republica! Não a do Terror e a do odio, mas a da
mansidão e do Amor. Aquella em que
[379]
o Millionario sorrindo abre os
braços ao Operario! Aquella que é Aurora,
Consolação,
Refugio, Estrella mystica e Pomba...
Pomba da Fraternidade,
Que estendendo as brancas azas
Por sobre os humanos lodos,
Envolve os seus filhos todos
Na mesma santa Igualdade!...
Em cima, na galeria, resoou um
bravo
ardente. E immediatamente, para o suffocar, sujeitos sérios
lançaram, aqui e além:
«Chut, silencio!» Então Ega ergueu as
mãos magras, bem alto, berrou com um destaque atrevido:
—Bravo! Muito bem! Bravo!
E todo pallido da sua audacia, entalando o monoculo, declarou para os
lados:
—Aquella democracia é absurda... Mas que os burguezes se
dêem ares intolerantes, isso não!
Então applaudo eu!
E as suas mãos magras de novo se ergueram, bem alto, junto
das do marquez que retumbavam como malhos. Outros em volta,
immediatamente, não se querendo mostrar menos democratas que
o Ega e aquelle fidalgo de tão grande linhagem,
reforçaram os
bravos com
calor. Já pela sala se voltavam olhares inquietos para
aquelle grupo cheio de revolução. Mas um silencio
cahiu, mais commovido e grave, quando o Alencar (que inspiradamente
previra a intolerancia burgueza) perguntou em estrophes iradas o que
detestavam, o
[380]
que receavam
elles, no advento sublime da Republica? Era o pão carinhoso
dado á criança?
Era a mão justa estendida ao proletario? Era a
esperança? Era a aurora?
Receaes a grande luz?
Tendes medo do Abecê?...
Então castigai quem lê,
Voltai á plebe soez!
Recuai sempre na Historia,
Apagai o gaz nas ruas,
Deixai as crianças nuas,
E venha a forca outra vez!
Palmas, mais numerosas, já sinceras, estalaram pela sala,
que cedia emfim ao repetido encanto d'aquelle lyrismo humanitario e
sonoro. Já não importava a Republica, os seus
perigos. Os versos rolavam, cantantes e claros; e a sua onda larga
arrastava os espiritos mais positivos. Sob aquelle bafo de sympathia
Alencar sorria, com os braços abertos, annunciando uma a
uma, como perolas que se desfiam, todas as dadivas que traria a
Republica. Debaixo da sua bandeira, não vermelha mas branca,
elle via a terra coberta de searas, todas as fomes satisfeitas, as
nações cantando nos valles sob o olhar risonho de
Deus. Sim, porque Alencar não queria uma Republica sem Deus!
A Democracia e o Christianismo, como um lirio que se abraça
a uma espiga, completavam-se, estreitando os seios! A rocha do Golgotha
tornava-se a tribuna da
Convenção! E para tão dôce
ideal não se
necessitavam cardeaes, nem missaes, nem novenas, nem igrejas.
[381]
A Republica, feita só
de pureza e de fé,
reza nos campos; a lua cheia é hostia; os rouxinoes entoam o
tantum ergo nos ramos dos
loureiraes. E tudo prospéra, tudo refulge—ao mundo do
Conflicto substitue-se o mundo do Amor...
Á espada succede o arado,
A Justiça ri da Morte,
A escóla está livre e forte,
E a Bastilha derrocada.
Róla a tiára no lodo,
Brota o lirio da Igualdade,
E uma nova Humanidade
Planta a cruz na barricada!
Uma rajada farta e franca de
bravos
fez oscillar as chammas do gaz! Era a paixão meridional do
verso, da sonoridade, do Liberalismo romantico, da imagem que esfuzia
no ar com um brilho crepitante de foguete, conquistando emfim tudo,
pondo uma palpitação em cada peito, levando
chefes de repartição a berrarem, estirados por
cima das damas, no enthusiasmo d'aquella republica onde havia
rouxinoes! E quando Alencar, alçando os braços ao
tecto, com modulações de
preghiera na voz roufenha, chamou
para a terra essa pomba da Democracia, que erguera o vôo do
Calvario, e vinha com largos sulcos de luz—foi um enternecimento
banhando as almas, um fundo arrepio d'extasi. As senhoras amolleciam
nas cadeiras, com a face meia voltada ao céo. No
salão abrazado
perpassavam frescuras de capella. As rimas fundiam-se n'um murmurio de
ladainha, como evoladas
[382]
para uma Imagem que pregas de setim cobrissem, estrellas d'ouro
coroassem. E mal se sabia já se Essa, que se invocava e se
esperava, era a deusa da Liberdade—ou Nossa Senhora das
Dôres.
Alencar no emtanto via-a descer, espalhando um perfume. Já
Ella tocava com os seus pés
divinos os valles humanos. Já do seu seio fecundo
trasbordava a universal abundancia. Tudo reflorescia, tudo
rejuvenescia:
As rosas têm mais aroma!
Os fructos têm mais doçura!
Brilha a alma clara e pura,
Solta de sombras e véos...
Foge a dôr espavorida,
Foi-se a fome, foi-se a guerra,
O homem canta na terra,
E Christo sorri nos céos!...
Uma acclamação rompeu, immensa e rouca, abalando
os muros côr de canario. Moços exaltados treparam
ás cadeiras, dois lenços brancos fluctuavam. E o
poeta, tremulo, exhausto, rolou pela escada até aos
braços que se lhe estendiam frementes. Elle suffocava,
murmurava: «filhos! rapazes!...» Quando Ega correu
do fundo, com Carlos, gritando—«Fôste
extraordinario,
Thomaz!»—as lagrimas saltaram dos olhos do Alencar, quebrado
todo d'emoção.
E ao longo da coxia a ovação continuou, feita de
palmadinhas pelo hombro, de
shake-hands da gente
séria, de «muitos parabens a v.
exc.
a!» Pouco a pouco elle erguia a
cabeça, n'um altivo
[383]
sorriso que lhe
mostrava os dentes maus, sentindo-se o poeta da Democracia, consagrado,
ungido pelo triumpho, com a inesperada missão de libertar
almas! D. Maria da Cunha puxou-lhe pela manga quando elle passou, para
murmurar, encantada, que achára—«lindissimo,
lindissimo». E
o poeta, estonteado, exclamou: «Maria, é
necessario
luz!» Telles da Gama veio bater-lhe nas costas affirmando-lhe
que «piára esplendidamente». E Alencar,
inteiramente perdido, balbuciou: «
Sursum
corda, meu Telles,
sursum
corda!»
Ega no emtanto, através do tumulto, farejava buscando Carlos
que desapparecera depois dos abraços ao Alencar. Taveira
assegurou-lhe que Carlos passára para o botequim. Depois em
baixo um garoto jurou que o snr. D. Carlos tomára uma tipoia
e ia já virando o Chiado...
Ega ficou á porta hesitando se aturaria o resto do sarau.
N'esse momento o Gouvarinho, trazendo a condessa pelo braço,
descia rapidamente, com a face toda contrariada e sombria. O
trintanario de ss. exc.
as correu a chamar o
coupé. E
quando o Ega se acercou, sorrindo, para saber que impressão
lhes deixára o grande triumpho democratico do Alencar—a
profunda cólera do Gouvarinho escapou-se-lhe, mal contida,
por entre os dentes cerrados:
—Versos admiraveis, mas indecentes!
O coupé avançou. Elle teve apenas tempo de rosnar
ainda, surdamente, apertando a mão ao Ega:
[384]
—N'uma festa de sociedade, sob a protecção da
rainha, diante d'um ministro da corôa, fallar de barricadas,
prometter mundos e fundos ás classes proletarias...
É perfeitamente indecente!
Já a condessa enfiára a portinhola, apanhando a
larga cauda de sêda. O ministro mergulhou tambem furiosamente
na sombra do coupé. Junto ás rodas passou
choutando, n'uma pileca branca, o correio agaloado.
Ega ia subir. Mas o marquez appareceu, abafado n'um gabão
d'Aveiro, fugindo a um poeta de grandes bigodes que ficára
em cima a recitar quadrinhas miudinhas a uns olhinhos galantinhos: e o
marquez detestava versos feitos a partes do corpo humano. Depois foi o
Cruges que surgiu do botequim, abotoando o paletot. Então,
perante essa debandada de todos os amigos, Ega decidiu abalar tambem,
ir tomar o seu
grog ao
Gremio com o maestro.
Metteram o marquez n'uma tipoia—e elle e Cruges desceram a rua Nova da
Trindade, devagar, no encanto estranho d'aquella noite d'inverno, sem
estrellas, mas tão macia que n'ella parecia andar perdido um
bafo de maio.
Passavam á porta do
Hotel
Alliança quando Ega sentiu alguem, que se
apressava, chamar atraz: «Ó snr. Ega! V. exc.
a
faz favor, snr.
Ega?...»—Parou, reconheceu o chapéo recurvo, as
barbas brancas do snr. Guimarães.
—V. exc.
a desculpe! exclamou o demagogo esbaforido.
[385]
Mas vi-o descer,
queria-lhe dar duas palavras, e como me vou embora
ámanhã...
—Perfeitamente... Ó Cruges, vai andando, já te
apanho!
O maestro estacionou á esquina do Chiado. O snr.
Guimarães pedia de novo desculpa. De resto eram duas curtas
palavras...
—V. exc.
a, segundo me disseram, é o
grande amigo do snr.
Carlos da Maia... São como
irmãos...
—Sim, muito amigos...
A rua estava deserta, com alguns garotos apenas á porta
alumiada da Trindade. Na noite escura a alta fachada do
Alliança
lançava sobre elles uma sombra maior. Todavia o snr.
Guimarães baixou a voz cautelosa:
—Aqui está o que é... V. exc.
a
sabe, ou talvez
não saiba, que eu fui em Paris intimo da mãi do
snr. Carlos da Maia... V. exc.
a tem pressa, e
não vem agora
a proposito essa historia. Basta dizer que aqui ha annos ella
entregou-me, para eu guardar, um cofre que, segundo dizia, continha
papeis importantes... Depois naturalmente, ambos tivemos muitas outras
coisas em que pensar, os annos correram, ella morreu. N'uma palavra,
porque v. exc.
a está com pressa: eu
conservo ainda em meu
poder esse deposito, e trouxe-o por acaso quando vim agora a Portugal
por negocios da herança de meu irmão... Ora hoje
justamente, alli
[386]
no theatro, comecei a reflectir que o melhor era entregal-o á
familia...
O Cruges mexeu-se impaciente:
—Ainda te demoras?
—Um instante! gritou Ega, já interessado por aquelles
papeis e pelo cofre. Vai andando.
Então o snr. Guimarães, á pressa,
resumiu o pedido. Como sabia a intimidade do snr. João da
Ega e de Carlos da Maia, lembrára-se de lhe entregar o
cofresinho para que elle o restituisse á familia...
—Perfeitamente! acudiu Ega. Eu estou mesmo em casa dos Maias, no
Ramalhete.
—Ah, muito bem! Então v. exc.
a manda
um criado de
confiança ámanhã buscal-o...
Eu estou no
Hotel de Paris, no
Pelourinho. Ou
melhor ainda: levo-lh'o eu, não me dá incommodo
nenhum, apesar de ser dia de partida...
—Não, não, eu mando um criado! insistiu o Ega
estendendo a mão ao democrata.
Elle estreitou-lh'a com calor.
—Muito agradecido a v. exc.
a! Eu junto-lhe
então um
bilhete e v. exc.
a entrega-o da minha parte ao
Carlos da Maia, ou
á irmã.
Ega teve um movimento d'espanto:
—Á irmã!... A que irmã?
O snr. Guimarães considerou Ega tambem com assombro. E
abandonando-lhe lentamente a mão:
—A que irmã!? Á irmã d'elle,
á unica que tem, á Maria!
[387]
Cruges, que batia as solas no lagedo, enfastiado gritou da esquina:
—Bem, eu vou andando para o Gremio.
—Até logo!
O snr. Guimarães, no emtanto, passava os dedos
calçados de pellica preta pelos longos fios da barba,
fitando o Ega, n'um esforço de
penetração. E quando Ega lhe travou do
braço, pedindo-lhe para conversarem um pouco até
ao Loreto, o democrata deu os primeiros passos com uma
lentidão desconfiada.
—Eu parece-me, dizia o Ega sorrindo, mas nervoso, que nós
estamos aqui a enrodilhar-nos n'um equivoco... Eu conheço o
Maia desde pequeno, vivo até agora em casa d'elle, posso
afiançar-lhe
que não tem irmã nenhuma...
Então o snr. Guimarães começou a
rosnar umas desculpas embrulhadas que mais enervavam, torturavam o Ega.
O snr. Guimarães imaginava que não era segredo,
que todas essas coisas da irmã estavam esquecidas, desde que
houvera
reconciliação...
—Como vi, ainda não ha muitos dias, o snr. Carlos da Maia
com a irmã e com v. exc.
a, na mesma
carruagem, no caes do
Sodré...
—O quê! Aquella senhora! A que ia na carruagem?
—Sim! exclamou o snr. Guimarães irritado, farto emfim
d'essa confusão em que se debatiam. Aquella mesma, a Maria
Eduarda Monforte, ou a
[388]
Maria Eduarda Maia, como quizer, que eu conheci de pequena, com quem
andei muitas vezes ao collo, que fugiu com o Mac-Gren, que esteve
depois com a besta do Castro Gomes... Essa mesma!
Era ao meio do Loreto sob o lampeão de gaz. E o snr.
Guimarães de repente estacou, vendo os olhos do Ega
esgazearem-se de horror, uma terrivel pallidez cobrir-lhe a face.
—V. exc.
a não sabia nada d'isto?
Ega respirou fortemente, arredando o chapéo da testa sem
responder. Então o outro, embaçado,
terminou por encolher os hombros. Bem, via que tinha feito uma tolice!
A gente nunca se devia intrometter nos negocios alheios! Mas acabou-se!
Imaginasse o snr. Ega que aquillo fôra um pesadêlo,
depois da versalhada do sarau! Pedia desculpa sinceramente—e desejava
ao snr. João da Ega muitissimo boas noites.
Ega, como a um clarão de relampago, entrevira toda a
catastrophe: e agarrou avidamente o braço do snr.
Guimarães, n'um terror que elle abalasse, desapparecesse,
levando para sempre o seu testemunho, esses papeis, o cofre da
Monforte, e com elles a certeza—a certeza por que agora anciava. E
através do Loreto, vagamente, foi balbuciando, justificando
a sua emoção, para tranquillisar o
homem, poder lentamente arrancar-lhe as coisas que soubesse, as provas,
a verdade inteira.
—O snr. Guimarães comprehende... Isto são coisas
muito delicadas, que eu suppunha absolutamente
[389]
ignoradas de todos... De modo
que fiquei embatucado, fiquei tonto, quando o ouvi assim de repente
fallar d'ellas com essa simplicidade... Porque emfim, aqui para
nós, essa senhora não passa em Lisboa por
irmã de Carlos.
O snr. Guimarães atirou logo a mão n'um grande
gesto. Ah, bem! Então era jogo com elle? Pois tinha feito o
snr. Ega perfeitamente... Com certeza eram coisas muito
sérias, que necessitavam toda a sorte de véos...
Elle comprehendia, comprehendia muito bem!... E realmente, dada a
posição dos Maias em Lisboa, na sociedade,
aquella senhora não era irmã que se apresentasse.
—Mas a culpa não a teve ella, meu caro senhor! Foi a
mãi, foi aquella extraordinaria mãi que o Diabo
lhe deu!...
Desciam o Chiado. Ega parou um momento, devorando o velho com olhos de
febre:
—O snr. Guimarães conheceu muito essa senhora, a Monforte?
Intimamente! Já a conhecera em Lisboa—mas de longe, como
mulher de Pedro da Maia. Depois viera essa tragedia, ella fugira com o
italiano. Elle abalára tambem para Paris n'esse anno, com
uma Clemence, uma costureira da Levaillant: e, umas coisas enfiando
n'outras, negocios e desgraças, por lá
ficára para sempre! Emfim, não era
a sua vida que lhe ia contar... Só mais tarde
encontrára a Monforte, uma noite, no baile Laborde: e d'ahi
datavam as suas relações. A esse tempo
já o italiano
[390]
morrera n'um
duello, e o velho Monforte espichára da bexiga. Ella estava
então com um rapaz chamado Trevernnes—n'uma casa bonita, no
Parc Monceaux, em grande chic... Mulher extraordinaria! E
não se envergonhava de confessar que lhe devia
obrigações! Quando essa rapariga, a
Clemence, que era um encanto, adoecera do peito, a Monforte trazia-lhe
flôres, frutas, vinhos, fazia-lhe companhia, velava-a como um
anjo... Porque lá isso coração largo e
generoso até alli!
Esta, a filha, a D. Maria, tinha então sete ou oito annos,
linda como os amores... E houvera uma outra pequena do italiano, muito
galantinha tambem. Oh! muito galantinha tambem! Mas morrera em Londres,
essa...
—E com esta Maria andei muitas vezes ao collo, meu caro senhor...
Não sei se ella ainda se lembra d'uma boneca que eu lhe dei,
que fallava, dizia
Napoléon... Era no bello
tempo do Imperio, até as desavergonhadas das bonecas eram
imperialistas! Depois, quando ella estava em Tours, no convento, fui
lá duas vezes com a mãi. Já
então os meus principios me não permittiam entrar
n'esses covis religiosos: mas emfim fui acompanhar a mãi...
E quando ella fugiu com o irlandez, o Mac-Gren, foi commigo que a
mãi veio ter, furiosa, a querer que eu chamasse o
commissario de policia para se prender o irlandez. Por fim metteu-se
n'um
fiacre, foi para Fontainebleau,
lá fez as pazes, viviam até juntos... Emfim uma
série de trapalhadas.
[391]
Um suspiro cansado escapou-se do peito do Ega, que arrastava os passos,
succumbido:
—E esta senhora, está claro, não sabia
então de quem era filha...
O snr. Guimarães encolheu os hombros:
—Nem suspeitava que existissem Maias sobre a face da terra! A Monforte
dissera-lhe sempre que o pai era um fidalgo austriaco com quem ella
casára na Madeira... Uma mixordia, meu caro senhor, uma
mixordia!
—É horrivel! murmurou Ega.
Mas, dizia o snr. Guimarães, que podia tambem fazer a
Monforte? Que diabo, era duro confessar á filha:
«Olha que eu fugi a teu pai, e elle por causa d'isso
matou-se!» Não tanto pela
questão de pudor; a rapariga devia perceber que a
mãi tinha amantes, ella mesma aos dezoito annos, coitadinha,
já tinha um; mas por causa do tiro, do cadaver, do sangue...
—A mim mesmo! exclamou o snr. Guimarães, parando, alargando
os braços na rua deserta. A mim mesmo nunca ella fallou do
marido, nem de Lisboa, nem de Portugal. Lembra-me até uma
occasião em casa da Clemence, que eu alludi a um cavallo
lazão, um cavallo de Pedro da Maia, em que ella costumava
montar. Animal soberbo! Mas nem mencionei o marido, fallei
só do cavallo. Pois senhores, bate com o leque em cima da
mesa, grita como uma bicha:—
Dites donc, mon cher,
vous m'embêtez avec ces histoires de l'autre
monde!...
[392]
Com effeito, bem o podia
dizer, eram historias do outro mundo! Para encurtar: estou convencido
que nos ultimos tempos ella mesmo julgava que Pedro da Maia nunca
existira. Uma insensata! Por fim até bebia... Mas acabou-se!
Tinha grande coração, e portou-se muito bem com a
Clemence.
Parce sepultis!
—É horrivel! murmurou outra vez o Ega, tirando o
chapéo, correndo a mão tremula pela testa.
E agora o seu unico desejo era a accumulação
incessante de provas, de detalhes. Fallou então d'esses
papeis, d'esse cofre da Monforte. O snr. Guimarães
não sabia o que elles continham; e não se
admiraria se fossem apenas contas de modista, ou pedaços
velhos do
Figaro
em que se fallava d'ella...
—É uma caixita pequena que a Monforte me deu, na vespera de
partir para Londres com a filha. Era no tempo da guerra...
Já a Maria vivia com o irlandez, tinha mesmo uma pequena, a
Rosa. Depois veio a Communa, todos aquelles desastres. Quando a
Monforte voltou de Londres eu estava em Marselha. Foi então
que a pobre Maria se metteu com o Castro Gomes, creio que para
não morrer de fome... Eu recolhi a Paris, mas não
vi mais a Monforte, que já estava muito doente...
Á Maria, collada então a essa besta do Castro
Gomes, um pedante, um
rastaquouère mesmo a
calhar para a guilhotina, não tornei tambem a fallar. Se a
encontrava era um comprimento de longe, como n'outro
[393]
dia, quando a vi na carruagem
com v. exc.
a e com o irmão... De
sorte que fui ficando com
os papeis. Nem a fallar a verdade, com estas coisas todas de politica,
me lembrei mais d'elles. E agora ahi estão, ás
ordens da familia.
—Se isso não fosse incommodo para v. exc.
a,
acudiu Ega, eu
passava agora pelo seu hotel e levava-os logo commigo...
—Incommodo nenhum! Estamos em caminho, é negocio que fica
feito!
Algum tempo seguiram calados. O sarau decerto acabára. Um
bater de carruagens atroava as descidas do Chiado. Junto d'elles
passaram duas senhoras, com um rapaz que bracejava, fallando alto do
Alencar. O snr. Guimarães tirára lentamente do
bolso a charuteira: depois parando, para raspar um phosphoro:
—Então a D. Maria passa simplesmente por parenta?... E como
soube ella? Como foi isso?
Ega, que caminhava com a cabeça cahida, estremeceu como se
acordasse. E começou a tartamudear uma historia confusa, de
que elle mesmo córava na sombra. Sim, Maria Eduarda passava
por parenta. Fôra o procurador que descobrira. Ella rompera
com o Castro Gomes, com todo o passado. Os Maias davam-lhe uma mezada;
e vivia nos Olivaes, muito retirada, como filha d'um Maia que morrera
na Italia. Todos gostavam muito d'ella, Affonso da Maia tinha grande
ternura pela pequena...
[394]
E de repente indignou-se com estas invenções por
onde arrastava já o nome do nobre velho, exclamou como se
abafasse:
—Emfim, nem eu sei, um horror!
—Um drama! resumiu gravemente o snr. Guimarães.
E como estavam no Pelourinho rogou ao Ega que esperasse um momento
emquanto elle corria acima buscar os papeis da Monforte.
Só, no largo, Ega ergueu as mãos ao
céo n'um desabafo mudo d'aquella angustia em que caminhava,
como um somnambulo, desde o Loreto. E a sua unica
sensação, bem clara—era a
indestructivel certeza da historia do Guimarães,
tão compacta, sem uma lacuna, sem uma falha por onde
rachasse e se fizesse cahir aos pedaços. O homem conhecera
Maria Monforte em Lisboa, ainda mulher de Pedro da Maia, brilhando no
seu cavallo lazão; encontrára-a em Paris
já
fugida, depois da morte do primeiro amante, vivendo com outros;
andára então ao collo com Maria Eduarda a quem se
davam bonecas... E desde então não
deixára mais de vêr Maria Eduarda, de a seguir: em
Paris; no convento de Tours; em Fontainebleau com o irlandez; nos
braços de Castro Gomes; n'uma tipoia de praça
emfim com elle e com Carlos da Maia, havia dias, no caes do
Sodré! Tudo isto se encadeava, concordando com a historia
contada por Maria Eduarda. E de tudo resaltava esta certeza
monstruosa:—Carlos amante da irmã!
[395]
Guimarães não descia. No segundo andar surgira
uma luz viva, n'uma janella aberta. Ega recomeçou a passear
lentamente pelo meio do largo. E agora, pouco a pouco, subia n'elle uma
incredulidade contra esta catastrophe de dramalhão. Era
acaso verosimil que tal se passasse, com um amigo seu, n'uma rua de
Lisboa, n'uma casa alugada á mãi Cruges?...
Não podia ser! Esses
horrores só se produziam na confusão social, no
tumulto da Meia-Idade! Mas n'uma sociedade burgueza, bem policiada, bem
escripturada, garantida por tantas leis, documentada por tantos papeis,
com tanto registro de baptismo, com tanta certidão de
casamento, não podia ser! Não! Não
estava no
feitio da vida contemporanea que duas crianças separadas por
uma loucura da mãi, depois de dormirem um instante no mesmo
berço, cresçam em terras
distantes, se eduquem, descrevam as parabolas remotas dos seus
destinos—para quê? Para virem tornar a dormir juntas no
mesmo ponto, n'um leito de concubinagem! Não era possivel.
Taes coisas pertencem só aos livros, onde vêm,
como
invenções subtis da arte, para dar á
alma humana um terror novo... Depois levantava os olhos para a janella
alumiada—onde o snr. Guimarães decerto rebuscava os papeis
na mala. Alli estava porém esse homem com a sua historia—em
que não havia uma discordancia por onde ella pudesse ser
abalada!... E pouco a pouco aquella luz viva, sahida do alto, parecia
ao Ega penetrar n'essa intrincada
[396]
desgraça, aclaral-a toda,
mostrar-lhe bem a lenta evolução. Sim, tudo isso
era provavel no fundo! Essa criança, filha d'uma senhora que
a levára comsigo, cresce, é amante d'um
brazileiro, vem a Lisboa, habita Lisboa. N'um bairro visinho vive outro
filho d'essa mulher, por ella deixado, que cresceu, é um
homem. Pela sua figura, o seu luxo, elle destaca n'esta cidade
provinciana e pelintra. Ella por seu lado, loura, alta, esplendida,
vestida pela Laferrière, flôr d'uma
civilisação superior, faz relêvo n'esta
multidão de mulheres miudinhas e morenas. Na pequenez da
Baixa e do Aterro, onde todos se acotovelavam, os dois fatalmente se
cruzam: e com o seu brilho pessoal, muito fatalmente se attrahem! Ha
nada mais natural? Se ella fosse feia e trouxesse aos hombros uma
confecção barata da loja da America, se elle
fosse um mocinho encolhido de chapéo côco, nunca
se notariam e seguiriam diversamente nos seus destinos diversos. Assim,
o conhecerem-se era certo, o amarem-se era provavel... E um dia o snr.
Guimarães passa, a verdade terrivel estala!
A porta do hotel rangeu no escuro, o snr. Guimarães
adiantou-se, de boné de sêda na cabeça,
com o embrulho na mão.
—Não podia dar com a chave da mala, desculpe v. exc.
a
É sempre assim quando ha pressa... E aqui temos o famoso
cofre!
—Perfeitamente, perfeitamente...
Era uma caixa que parecia de charutos e que o
[397]
democrata embrulhára n'um velho numero do
Rappel. Ega metteu-a no bolso largo
do seu paletot: e immediatamente, como se qualquer outra palavra entre
elles fosse vã, estendeu a mão ao snr.
Guimarães. Mas o outro insistiu em o acompanhar
até á esquina da rua do Arsenal, apesar de estar
de
boné. A noite, para quem vinha de Paris, tinha uma
doçura oriental—e elle, com os seus habitos de jornalista,
nunca se deitava senão tarde, ás
duas, tres horas da madrugada...
E então, caminhando devagar, com as mãos nos
bolsos e o charuto entre os dentes, o snr. Guimarães voltou
á politica e ao sarau. A poesia do Alencar (de que
esperára muito por causa do titulo,
A
Democracia) sahira-lhe
consideravelmente chôcha.
—Muita flôr, muita farofia, muita liberdade, mas
não havia alli um ataque em fórma, duas ou tres
boas estocadas n'esta choldra da monarchia e da côrte... Pois
não é verdade?
—Sim, com effeito...—murmurou Ega, olhando ao longe, na
esperança d'uma tipoia.
—É como os jornaes republicanos que por ahi ha... Tudo uma
palhada, senhores, tudo uma balofice!... É o que eu lhes
digo a elles:—«Ó almas
do diabo, atacai as questões sociaes!»
Felizmente um trem avançava, rolando devagar, do lado do
Terreiro do Paço. Ega, precipitadamente, deu um aperto de
mão ao democrata, desejou-lhe uma «boa
viagem», atirou ao cocheiro a
[398]
adresse do Ramalhete. Mas o snr.
Guimarães ainda se apoderou da portinhola—para aconselhar
ao Ega que fosse a Paris. Agora, que tinham feito amizade, havia de o
apresentar a toda aquella gente... E o snr. Ega veria! Não
era cá a grande
pose
portugueza, d'estes imbecis,
d'estes pelintras a darem-se ares, torcendo os bigodes. Lá,
na primeira nação do mundo, tudo era alegria e
fraternidade e espirito a rodos...
—E a minha adresse, na redacção do
Rappel! Bem conhecida no mundo!
Emquanto ao embrulhosinho fico descançado...
—Póde v. exc.
a ficar
descançado!
—Criado de v. exc.
a... Os meus comprimentos
á snr.
a
D.
Maria!
Na carruagem, através do Aterro, a anciosa
interrogação do Ega a si mesmo
foi—«que hei de fazer?» Que faria, santo Deus, com
aquelle segredo terrivel que possuia, de que só elle era
senhor, agora que o Guimarães partia, desapparecia para
sempre? E antevendo com terror todas as angustias em que essa
revelação ia lançar o
homem que mais estimava no mundo—a sua instinctiva idéa foi
guardar para sempre o segredo, deixal-o morrer dentro em si.
Não diria nada; o Guimarães sumia-se em Paris; e
quem se amava continuava a amar-se!... Não crearia assim uma
crise atroz na vida de Carlos—nem soffreria elle, como companheiro, a
sua parte d'essas afflicções. Que coisa mais
impiedosa, de resto, que estragar a vida de
[399]
duas innocentes e adoraveis creaturas,
atirando-lhes á face uma prova de incesto!...
Mas, a esta idéa de
incesto, todas as consequencias
d'esse silencio lhe appareceram, como coisas vivas e pavorosas,
flammejando no escuro diante dos seus olhos. Poderia elle
tranquillamente testemunhar a vida dos dois—desde que a sabia
incestuosa? Ir á rua de
S. Francisco, sentar-se-lhes alegremente á mesa,
entrevêr através do
reposteiro a cama em que ambos dormiam—e saber que esta sordidez de
peccado era obra do seu silencio? Não podia ser... Mas teria
tambem coragem de entrar ao outro dia no quarto de Carlos, e dizer-lhe
em face—«Olha que tu és amante de tua
irmã?»
A carruagem parára no Ramalhete. Ega subiu, como costumava,
pela escada particular de Carlos. Tudo estava apagado e mudo. Accendeu
a sua palmatoria; entreabriu o reposteiro dos aposentos de Carlos; deu
alguns passos timidos no tapete, que pareceram já soar
tristemente. Um reflexo d'espelho alvejou ao fundo na sombra da alcova.
E a luz cahiu sobre o leito intacto, com a sua longa colcha lisa, entre
os cortinados de sêda. Então a
idéa que Carlos estava áquella hora na rua de S.
Francisco, dormindo com uma mulher que era sua irmã,
atravessou-o com uma cruel nitidez, n'uma imagem material,
tão viva e real, que elle viu-os claramente, de
braços enlaçados, e em camisa... Toda a
belleza de Maria, todo o requinte de Carlos desappareciam.
[400]
Ficavam só dois
animaes, nascidos do mesmo ventre, juntando-se a um canto como
cães, sob o impulso bruto do cio!
Correu para o seu quarto, fugindo áquella visão a
que o escuro do corredor, mal dissipado pela luz tremula, accentuava
mais o relêvo. Aferrolhou a porta; accendeu á
pressa sobre o toucador, uma depois da outra, com a mão
agitada, as seis velas dos candelabros. E agora apparecia-lhe mais
urgente, inevitavel, a necessidade de contar
tudo a Carlos. Mas ao mesmo tempo
sentia em si, a cada instante, menos animo para chegar, encarar Carlos,
e destruir-lhe a felicidade e a vida com uma
revelação d'incesto. Não podia! Outro
que lh'o dissesse! Elle lá estava depois para o consolar,
tomar metade da sua dôr, carinhoso e fiel. Mas o desgosto
supremo da vida de Carlos não viria de palavras cahidas da
sua boca!... Outro que lh'o dissesse! Mas quem? Mil idéas
passavam na sua pobre cabeça,
incoherentes e tontas. Pedir a Maria que fugisse, desapparecesse...
Escrever uma carta anonyma a Carlos, com a detalhada historia do
Guimarães... E esta confusão, esta anciedade
ia-se resolvendo lentamente em odio ao snr. Guimarães. Para
que fallára áquelle imbecil? Para que insistira
em lhe confiar papeis alheios? Para que lh'o apresentára o
Alencar? Ah! se não fosse a carta do Damaso... Tudo provinha
do maldito Damaso!
Agitando-se pelo quarto, ainda de chapéo, os seus olhos
cahiram n'um sobrescripto pousado sobre
[401]
a mesa de cabeceira. Reconheceu a
letra do Villaça. E nem a abriu... Uma idéa
sulcára-o de repente. Contar tudo ao Villaça!...
Porque não? Era o procurador dos Maias. Nunca para elle
houvera segredos n'aquella casa. E esta
complicação singular d'uma senhora da familia,
considerada morta e que surge inesperadamente—a quem a pertencia
aclarar senão ao fiel procurador, ao velho confidente, ao
homem que, por herança e por destino, recebera sempre todos
os segredos e partilhára todos os interesses domesticos?...
E sem pensar, sem aprofundar mais, fixou-se logo n'esta
decisão salvadora,—que ao menos o socegava, lhe tirava
já do coração um peso de ferro,
suffocante e intoleravel...
Devia acordar cedo, procurar Villaça em casa. Escreveu n'uma
folha de papel—«Acorda-me ás sete». E
desceu abaixo, ao longo corredor de pedra onde dormiam os criados,
dependurou este recado na chave do quarto do escudeiro.
Quando subiu, mais calmo,—abriu então a carta do
Villaça. Era uma curta linha lembrando ao amigo Ega que a
letrinha de duzentos mil reis, no Banco Popular, se vencia d'ahi a dois
dias...
—Sêbo, tudo se junta! exclamou Ega furioso, atirando a carta
amarrotada para o chão.
VII
Pontual, ás sete horas, o escudeiro acordou Ega. Ao rumor da
porta elle sentou-se na cama com um salto—e logo todos os negros
cuidados da vespera, Carlos, a irmã, a felicidade d'aquella
casa acabada para sempre, se lhe ergueram n'alma em sobresalto, como
despertando tambem. A portada da varanda ficára aberta; um
ar silencioso e livido de madrugada clareava através do
transparente de fazenda branca. Durante um momento Ega ficou olhando em
redor, arrepiado; depois, sem coragem, remergulhou nos
lençoes, gozando aquelle bocado de calor e de
conchêgo antes d'ir affrontar fóra as amarguras do
dia.
E pouco a pouco, sob o tepido conchêgo dos cobertores em que
se atabafára, começou a afigurar-se-lhe
[404]
menos urgente, e
menos util, essa correria estremunhada a casa do Villaça...
De que servia procurar o Villaça? Não se tratava
alli de
dinheiro, nem de demandas, nem de legalidade—de nada que reclamasse a
experiencia d'um procurador. Era apenas introduzir um burguez mais n'um
segredo tão terrivelmente delicado que elle mesmo se
assustava de o saber. E acochado mais sob a roupa, apenas com o nariz
ao frio, murmurava comsigo: «É uma tolice ir ao
Villaça!»
De resto não poderia elle ajuntar em si bastante coragem
para contar tudo a Carlos, logo, n'essa manhã, claramente,
virilmente? Era por fim aquelle caso tão pavoroso como lhe
parecera na vespera—um irreparavel desabamento d'uma vida de homem?...
Ao pé da quinta da mãe, em Celorico, no logar de
Vouzeias, houvera um successo parecido, dois irmãos que
innocentemente iam casar. Tudo se aclarou ao reunirem-se os papeis para
os
banhos. Os noivos ficaram
uns dias «embatucados», como dizia o padre
Seraphim; mas por fim já riam, muito amigos, muito
divertidos, quando se tratavam de «manos». O noivo,
um rapagão bonito, contava depois «que ia havendo
uma mixordia na familia». Aqui o engano seguira mais longe,
as sensibilidades eram mais requintadas; mas os seus
corações permaneciam livres de toda a culpa,
innocentes absolutamente. Porque ficaria pois a existencia de Carlos
para sempre estragada? A inconsciencia impedia-lhe o remorso:
[405]
e passado o primeiro horror,
de que lhe podia, na realidade, vir a definitiva dôr?
Sómente do prazer
ter findado. Era então como outro qualquer desgosto d'amor.
Bem menos atroz do que se Maria o tivesse trahido com o Damaso!
De repente a porta abriu-se, Carlos appareceu exclamando:
—Então que madrugada foi esta? Disse-me agora lá
em baixo o Baptista... É aventura? duello?
Trazia o paletot todo abotoado, com a gola erguida, escondendo ainda a
gravata branca da vespera; e decerto chegára da rua de S.
Francisco na tipoia que havia instantes Ega sentira parar na
calçada.
Elle sentára-se bruscamente na cama; e estendendo a
mão para os cigarros, sobre a mesa ao lado, murmurou,
bocejando, que na véspera combinára uma ida a
Cintra com o Taveira... Por precaução
mandára-se chamar... Mas não sabia,
acordára cansado...
—Que tal está o dia?
Justamente Carlos fôra correr o transparente da janella. Ahi,
na mesa de trabalho, collocada em plena luz, ficára a caixa
da Monforte embrulhada no
Rappel. E
Ega pensou n'um
relance:—«Se elle repara, se pergunta, digo
tudo!»—O seu pobre coração
pôz-se a bater anciosamente no
terror d'aquella decisão. Mas o transparente um pouco
pêrro subiu, uma facha de sol banhou a mesa—e
[406]
Carlos voltou sem reparar
no cofre. Foi um immenso allivio para o Ega.
—Então, Cintra? disse Carlos, sentando-se aos
pés da cama. Com effeito não é
má idéa... A Maria ainda hontem esteve tambem a
fallar d'ir a Cintra... Espera! Podiamos fazer a patuscada juntos...
Iamos no break, a quatro!
E olhava já o relogio, calculando o tempo para atrellar,
avisar Maria.
—O peor, acudiu o Ega atrapalhado, tomando de sobre a mesa o monoculo,
é que o Taveira fallou em irmos com umas raparigas...
Carlos encolheu os hombros com horror. Que sordidez, ir com mulheres
para Cintra, de dia!... De noite, nas trevas, por bebedeira,
vá... Mas á luz
do Senhor! Talvez com a Lola gorda, hein?...
Ega embrulhou-se n'uma complicada historia, limpando o monoculo
á ponta do lençol.
Não eram hespanholas... Pelo contrario, umas costureiras,
raparigas sérias... Elle tinha um compromisso antigo d'ir a
Cintra com uma d'ellas, filha d'um Simões, um estofador que
fallira... Gente muito séria!...
Perante estes compromissos, tanta seriedade, Carlos desistiu logo da
idéa de Cintra.
—Bem, acabou-se!... Vou então tomar banho e depois a
negocios... E tu, se fôres, traze-me umas queijadas para a
Rosa, que ella gosta!...
Apenas Carlos sahiu, Ega cruzou os braços desanimado,
descorçoado, sentindo bem que não
[407]
teria coragem nunca de «dizer tudo». Que havia
de fazer?... E de novo, insensivelmente, se refugiou
na idéa de procurar o Villaça, entregar-lhe o
cofre da Monforte. Não havia homem mais honesto,
nem mais pratico; e, pela mesma mediocridade
do seu espirito burguez, quem melhor para encarar
aquella catastrophe sem paixão e sem nervos?...
E esta
falta de nervos do Villaça fixou-o
definitivamente.
Saltou então da cama, n'uma impaciencia, repicou
a campainha. E emquanto o criado não entrava,
foi, com o robe-de-chambre aos hombros, examinar
o cofre da Monforte. Parecia com effeito uma
velha caixa de charutos, embrulhada n'um papel
de dobras já sujas e gastas, com marcas de lacre
onde se distinguia uma divisa que seria decerto a
da Monforte—
Pro amore. Na tampa tinha escripto
n'uma letra de mulher mal-ensinada—
Monsieur
Guimaran, à Paris. Ao sentir os passos do criado
deitou-lhe por cima uma toalha, que pendia ao lado,
n'uma cadeira. E d'ahi a meia hora rolava pelo
Aterro n'uma tipoia descoberta, mais animado, respirando
largamente aquelle bello ar da manhã, fino
e fresco, que elle tão raras vezes gozava.
Começou por uma contrariedade. Villaça já sahira:
e a criada não sabia bem se elle fôra para
o escriptorio, se a uma vistoria ao Alfeite... Ega
largou para o escriptorio, na rua da Prata. O snr.
Villaça ainda não viera...
—E a que horas virá?
[408]
O escrevente, um rapaz macilento que torcia nervosamente sobre o
collete uma corrente de coral, balbuciou que o snr. Villaça
não devia tardar, se não tivesse atravessado, no
vapor das nove, para o Alfeite... Ega desceu desesperado.
—Bem, gritou ao cocheiro, vai ao café Tavares...
No Tavares, ainda solitario áquella hora, um moço
areava o sobrado. E emquanto esperava o almoço Ega percorreu
os jornaes. Todos fallavam do sarau, em linhas curtas, promettendo
detalhes criticos, mais tarde, sobre esse brilhante torneio artistico.
Só a
Gazeta
Illustrada se alargava, com phrases
sérias, tratando o Rufino de
grandioso o Cruges de
esperançoso:
no Alencar a
Gazeta separava o
philosopho do poeta; ao philosopho a
Gazeta lembrava com respeito que nem
todas as aspirações ideaes da philosophia, bellas
como
miragens de deserto, são realisaveis na pratica social; mas
ao poeta, ao creador de tão formosas imagens, de
tão inspiradas estancias, a
Gazeta desafogadamente
bradava—«bravo! bravo!» Havia ainda outras
abominaveis sandices. Depois seguia-se a lista das pessoas que a
Gazeta se
recordava de ter visto, entre as quaes «destacava com o seu
monoculo o fino perfil de João da Ega, sempre brilhante de
verve.» Ega sorriu,
cofiando o bigode. Justamente o bife chegava, fumegante, chiando na
frigideirinha de barro. Ega pousou a
Gazeta ao
lado, dizendo comsigo: «Não é nada mal
feito, este
jornal!»
[409]
O bife era excellente:—e depois d'uma perdiz fria, d'um pouco de
dôce de ananaz, d'um café forte, Ega sentiu
adelgaçar-se emfim aquelle negrume que desde a vespera lhe
pesava n'alma. No fim, pensava elle, accendendo o charuto e
lançando os olhos ao relogio, n'aquelle desastre
praticamente encarado só havia para Carlos a perda d'uma
bella amante. E essa perda, que agora o angustiava, não
traria depois compensações? O futuro de Carlos
até ahi tinha uma sombra—aquella promessa de casamento que
irreparavelmente o collava pela honra a uma mulher muito interessante,
mas com um passado cheio de brazileiros e de irlandezes... A sua
belleza poetisava tudo: mas quanto tempo mais duraria esse encanto, o
seu brilho de deusa pisando a terra?... Não seria por fim
aquella descoberta do Guimarães uma
libertação
providencial? D'ahi a annos Carlos estaria consolado, sereno como se
nunca tivesse sofrido—e livre, e rico, com o largo mundo diante de si!
O relogio do café deu dez horas. «Bem, vamos a
isto», pensou Ega.
De novo a tipoia bateu para a rua da Prata. O snr. Villaça
ainda não viera, o escrevente estava
realmente pensando que o snr. Villaça fôra ao
Alfeite. E diante d'esta incerteza, de repente, Ega ficou de novo
descorçoado, sem coragem. Despediu a tipoia: com o embrulho
do cofre na mão foi andando pela rua do Ouro, depois
até ao Rocio, parando distrahidamente diante d'um ourives,
lendo aqui e
[410]
além a capa d'um livro na vitrine dos livreiros. Pouco a
pouco o negrume da vespera, um momento adelgaçado,
recahia-lhe n'alma mais denso. Já não via as
«libertações» nem as
«compensações». Só
sentia em torno de si, como fluctuando no ar, aquelle horror—Carlos a
dormir com a irmã.
Voltou pela rua da Prata, de novo subiu a suja escadaria de pedra; e
logo no patamar, diante da porta de baeta verde, deu com o
Villaça que sahia, atarefado, calçando as luvas.
—Homem, até que emfim!
—Ah! Era o amigo que me tinha procurado?... Pois tenha paciencia, que
está o visconde do Torral á minha espera...
Ega quasi o empurrou. Qual visconde!... Tratava-se d'uma coisa muito
urgente, muito séria! Mas o outro não se arredava
da porta, acabando de calçar a luva, com o mesmo ar vivo de
negocio e de pressa.
—O amigo bem vê... Está o homem á
espera! É um
rendez-vous
para as
onze!
Ega, já furioso, agarrou-lhe a manga, murmurou-lhe junto
á face, tragicamente, que se tratava de Carlos, d'um caso de
vida ou de morte! Então o Villaça, n'um grande
espanto, atravessou bruscamente o escriptorio, fez entrar Ega n'um
cubiculo ao lado, estreito como um corredor, com um canapé
de palhinha, uma mesa onde os livros tinham pó, e um armario
ao fundo. Fechou a porta, atirou o chapéo para a nuca:
[411]
—Então que é?
Ega, com um gesto, indicou fóra o escrevente que podia
escutar. O procurador abriu a porta, gritou ao rapazola que voasse ao
Hotel Pelicano pedir ao snr. visconde do Torral a fineza de esperar
meia hora... Depois, fechada a porta no ferrolho, foi a mesma
exclamação anciosa:
—Então que é?
—É um horror, Villaça, um grande horror... Nem
eu sei por onde hei de começar.
Villaça, já muito pallido, pousou lentamente o
guardachuva sobre a mesa.
—É duello?
—Não... É isto... Você sabia que o
Carlos tinha relações com uma snr.
a
Mac-Gren que
veio o inverno passado a Portugal, ficou ahi?...
Uma senhora brazileira, mulher d'um brazileiro, que passára
o verão nos Olivaes?... Sim,
Villaça sabia. Fallára até n'isso com
o Eusebiosinho.
—Ah, com o Eusebio?... Pois não é brazileira!
É portugueza, e é irmã d'elle!
Villaça cahiu para o canapé, batendo as
mãos n'um assombro.
—Irmã do Eusebio!
—Qual do Eusebio, homem!... Irmã de Carlos!
Villaça ficára mudo, sem comprehender, com os
olhos terrivelmente arregalados para o outro, que se movia pelo
cubiculo, repetindo: «irmã!
irmã legítima!» Ega por fim sentou-se
no canapé de
[412]
palhinha; e baixo, muito baixo, apesar da solidão do
escriptorio, contou o seu encontro com o Guimarães no sarau,
e como a verdade terrivel estalára casualmente, n'uma
palavra, á esquina do
Alliança... Mas quando
fallou dos papeis, entregues pela Monforte ao Guimarães, ha
tantos annos guardados, nunca reclamados, e que o democrata agora,
tão de repente, tão urgentemente, queria
restituir á familia—Villaça, até ahi
esmagado e
como emparvecido, despertou, teve uma explosão:
—Ahi ha marosca! Tudo isso é para apanhar dinheiro!...
—Apanhar dinheiro! Quem?
—Quem!? exclamou Villaça de pé, arrebatadamente.
Essa senhora, esse Guimarães, essa tropa!... É
que o amigo não percebe! Se apparecer uma
irmã do Maia, legitima e authentica, são
quatrocentos contos e pico que cabem á irmã do
Maia!...
Então os dois ficaram-se devorando com os olhos, na forte
impressão d'aquella idéa
inesperada que a seu pezar abalava o Ega. Mas como o procurador,
tremulo, voltava á grande somma de quatrocentos contos,
lembrava a
Companhia do Olho Vivo,
Ega terminou por encolher os hombros:
—Isso não tem verosimilhança nenhuma! Ella
é incapaz, absolutamente incapaz, de semelhante intriga.
Além d'isso, se é uma questão
de dinheiro, que necessidade tinha de se fazer passar como
irmã desde que Carlos lhe promettera casar com ella?
[413]
Casar com ella! Villaça erguia as mãos,
não queria acreditar. O quê! o snr. Carlos da Maia
dar a sua mão, o seu nome, a essa creatura amigada com um
brazileiro!?... Santissimo nome de Deus! E através do
assombro recrescia-lhe a
desconfiança, via ahi um novo feito do
Olho
Vivo.
—Não senhor, Villaça, não senhor!
insistiu Ega, já impaciente. Se a questão
é de
documentos e se ella os tinha, verdadeiros ou falsificados,
apresentava-os logo, não ia primeiro dormir com o
irmão!
Villaça baixou lentamente os olhos para o sobrado. Um terror
invadia-o diante d'aquella grande casa, que era o seu orgulho, partida
em metade, empolgada por uma aventureira... Mas como o Ega, muito
nervoso, lembrava que de resto a questão
não era de documentos, nem de legalidade, nem de fortuna—o
procurador teve outro grito, com a face de novo alumiada:
—Espere, homem, ha outra coisa!... Talvez ella seja filha do italiano!
—E então?... Vem a dar na mesma.
—Alto lá! berrou o procurador, batendo com o punho na mesa.
Não tem direito á legitima do pai, e
não apanha um real d'esta casa!... Irra, ahi é
que está o ponto!
Ega teve um gesto desolado. Não, nem isso,
desgraçadamente! Esta era a filha do Pedro da Maia. O
Guimarães conhecia-a de a trazer ao collo, de lhe dar
bonecas quando ella tinha sete annos, e quando apenas havia quatro ou
cinco annos que o
[414]
italiano estivera em Arroios, de cama, com uma chumbada... A filha
d'esse morrera em Londres, pequenina.
Villaça recahiu no canapé, succumbido.
—Quatrocentos contos, que bolada!
Então Ega resumiu. Se não existia ainda uma
certeza legal, havia já uma forte suspeita. E desde logo
não se podia deixar o pobre Carlos, innocentemente, a
chafurdar n'aquella sordidez. Era pois indispensavel revelar tudo a
Carlos n'essa noite...
—E você, Villaça, é que tem de lh'o
dizer.
Villaça deu um salto que fez bater o canapé
contra a parede.
—Eu!?
—Você, que é o procurador da casa!
Que havia alli, senão uma questão de
filiação, portanto de legitima? A quem pertenciam
esses detalhes legaes senão ao procurador?
Villaça murmurou com todo o sangue na face:
—Homem, o amigo mette-me n'uma!...
Não. Ega mettia-o apenas n'aquillo em que o
Villaça, como procurador, logicamente e profissionalmente
devia estar.
O outro protestou, tão perturbado que gaguejava. Que diabo!
Não era esquivar-se aos seus deveres! Mas é que
elle não sabia nada! Que podia dizer ao snr. Carlos da Maia?
«O amigo Ega veio-me contar isto, que lhe contou um tal
Guimarães hontem á noite no Loreto...»
Não tinha a dizer mais nada...
[415]
—Pois diga isso.
O outro encarou Ega com olhos que chammejavam:
—Diga isso, diga isso... Que diabo, senhor, é necessario
ter topete!
Deu um puxão desesperado ao collete, foi bufando
até ao fundo do cubiculo, onde esbarrou com o armario.
Voltou, tornou a encarar o Ega:
—Não se vai a um homem com uma coisa d'essas sem provas...
Onde estão as provas?...
—Ó Villaça, desculpe, você
está obtuso!... A que vim eu aqui senão
trazer-lhe as provas, as que ha, boas ou más, a historia do
Guimarães, essa caixa com os papeis da Monforte?...
Villaça, que resmungava, foi examinar a caixa, virando-a nas
mãos, decifrando o mote do sinete
Pro
amore.
—Então, abrimol-a?
Já Ega puxára uma cadeira para a mesa.
Villaça cortou o papel, gasto nos cantos, que envolvia o
cofre. E appareceu effectivamente uma velha caixa de charutos pregada
com duas taxas, cheia de papeis, alguns em maços apertados
por fitas, outros soltos dentro de sobrescriptos abertos que tinham o
monogramma da Monforte sob uma corôa de marquez. Ega
desembrulhou o primeiro maço. Eram cartas em
allemão, que elle não percebia, datadas
de Buda-Pesth e de Carlsruhe.
—Bem, isto não nos diz nada... Adiante!
Outro embrulho, a que Villaça cuidadosamente
[416]
desapertou o nó côr de
rosa, resguardava uma caixa oval com a miniatura d'um homem de bigodes
e suissas ruivas, entalado na alta gola dourada d'uma farda branca.
Villaça achou a pintura «linda».
—Algum official austriaco, rosnou Ega. Outro amante...
Ça marche.
Iam tirando os papeis por ordem, com a ponta dos dedos, como tocando em
reliquias. Um largo enveloppe atulhado de contas de modistas, algumas
pagas, outras sem recibo, interessou profundamente o
Villaça—que percorria os
items, espantado dos
preços, das infinitas invenções do
luxo. Contas de seis mil francos! Um só vestido, dois mil
francos!... Outro maço trouxe uma surpreza. Eram cartas de
Maria Eduarda á mãi, escriptas do convento, n'uma
letra redonda e trabalhada como um desenho, com phrasesinhas cheias de
gravidade devota, dictadas decerto pelas boas Irmãs; e
n'estas composições, virtuosas e frias como
themas, o sincero coração da rapariga
só
transparecia n'alguma florzinha, agora sêcca, pregada no alto
do papel com um alfinete.
—Isto põe-se de parte, murmurou Villaça.
Então Ega, já impaciente, esvaziou toda a caixa
sobre a mesa, alastrou os papeis. E entre cartas, outras contas,
bilhetes de visita, um grande sobrescripto destacou com esta linha a
tinta azul:—
Pertence a minha filha Maria
Eduarda. Foi Villaça que lançou
os olhos rapidamente á enorme folha
[417]
de papel que elle continha,
luxuosa e documental, com o monogramma d'ouro sob a corôa de
marquez. Quando o passou em silencio para a mão do Ega
parecia suffocado, com todo o sangue nas orelhas.
Ega leu-o alto, devagar. Dizia:—«Como a Maria teve a pequena
e anda muito fraca, e eu tambem me não sinto nada boa com
umas pontadas, parece-me prudente, para o que possa vir a succeder,
fazer aqui uma declaração que te pertence a ti,
minha querida filha, e que só sabe o padre Talloux
(
Mr. l'abbé Talloux, coadjuteur
à Saint-Roch) porque lh'o disse ha dois
annos quando tive a pneumonia. E é o seguinte: Declaro que
minha filha Maria Eduarda, que costuma assignar Maria Calzaski, por
suppôr ser esse o nome de seu pai, é portugueza e
filha de meu marido Pedro da Maia, de quem me separei voluntariamente,
trazendo-a commigo para Vienna, depois para Paris, e que agora vive em
companhia de Patrick Mac-Gren, em Fontainebleau, com quem vai casar. E
o pai de meu marido era meu sogro Affonso da Maia, viuvo, que vivia em
Bemfica e tambem em Santa Olavia ao pé do rio Douro. O que
tudo se póde verificar em Lisboa pois devem lá
estar os papeis; e os meus erros de que vejo agora as consequencias
não devem impedir que tu, minha querida filha, tenhas a
posição e
fortuna que te pertencem. E por isso aqui declaro tudo isto que
assigno, no caso que o não possa fazer
[418]
diante d'um tabellião,
o que tenciono logo que esteja melhor. E de tudo, se eu vier a morrer,
o que Deus não permitta, peço perdão a
minha filha. E assigno com o meu nome de casada—
Maria
Monforte da Maia.»
Ega ficou a olhar para o Villaça. O procurador só
pôde murmurar, com as mãos cruzadas
sobre a mesa:
—Que bolada! Que bolada!
Então Ega ergueu-se. Bem! Agora tudo se simplificava. Havia
unicamente a entregar aquelle documento a Carlos, sem commentarios. Mas
o Villaça coçava a cabeça, retomado
por
uma duvida:
—Eu não sei se este papelinho faria fé em
juizo...
—Qual fé, qual juizo! exclamou Ega violentamente.
É o bastante para que elle não torne a dormir com
ella!...
Uma pancada timida na porta do cubiculo fêl-o estacar,
inquieto. Desandou a chave. Era o escrevente, que segredou
através da frincha:
—O snr. Carlos da Maia ficou agora lá em baixo no carrinho
quando eu entrei, perguntou pelo snr. Villaça.
Houve um pânico! Ega, atarantado, agarrára o
chapéo do Villaça. O procurador atirava
ás mãos ambas, para dentro d'uma gaveta, os
papeis da Monforte.
—É talvez melhor dizer que não está,
lembrou o escrevente.
[419]
—Sim, que não está! foi o grito abafado de
ambos.
Ficaram á escuta, ainda pallidos. O dog-cart de Carlos rolou
na calçada; os dois amigos respiraram. Mas agora Ega
arrependia-se de não terem mandado subir Carlos—e alli
mesmo, sem outras vacillações nem pieguices,
corajosamente,
contarem-lhe tudo, diante d'aquelles papeis bem abertos. E estava
saltado o barranco!
—Homem, dizia o Villaça passando o lenço pela
testa, as coisas querem-se devagar, com methodo. É
necessario preparar-se a gente, respirar para dar bem o mergulho...
Em todo o caso, concluiu o Ega, eram ociosas mais conversas. Os outros
papeis da caixa perdiam o interesse depois d'aquella
confissão da Monforte. Só restava que
Villaça apparecesse á
noite no Ramalhete ás oito e meia, ou nove horas, antes de
Carlos sahir para a rua de S. Francisco.
—Mas o amigo ha de lá estar! exclamou o procurador,
já aterrado.
Ega prometteu. Villaça teve um pequeno suspiro. Depois, no
patamar, onde viera acompanhar o outro:
—Uma d'estas, uma d'estas!... E eu ainda, tão contente, a
jantar no Ramalhete...
—E eu, com elles, na rua de S. Francisco!...
—Emfim, até á noite!
—Até á noite.
Ega não se atreveu n'esse dia a voltar ao Ramalhete,
[420]
a jantar diante de
Carlos, a vêr-lhe a alegria e a paz—sentindo aquella negra
desgraça que descia sobre elle á maneira que a
noite descia. Foi pedir as sopas ao marquez, que desde o sarau se
conservava em casa, de garganta entrapada. Depois, ás oito e
meia, quando calculou que Villaça devia estar já
no Ramalhete, deixou o marquez que se enfronhára com o
capellão n'uma partida de damas.
Aquelle lindo dia, toldado de tarde, findára n'uma chuvinha
miuda que transia as ruas. Ega tomou uma tipoia. E parava no Ramalhete,
já terrivelmente nervoso, quando avistou Villaça
no portal, de guardachuva sob o braço,
arregaçando as calças para sahir.
—Então? gritou-lhe o Ega.
Villaça abriu o guardachuva, para murmurar debaixo, mas em
segredo:
—Não foi possivel... Disse que tinha muita pressa, que
não me podia ouvir.
Ega bateu o pé, desesperado:
—Oh homem!
—Que quer o amigo? Havia de o agarrar á força?
Ficou para ámanhã... Tenho de
cá estar ámanhã ás onze
horas.
Ega galgou as escadas, rosnando entre dentes: «Irra!
não sahimos d'esta!» Foi
até ao escriptorio de Affonso. Mas não entrou.
Através d'uma fenda larga do reposteiro meio franzido, um
canto da sala apparecia, quente e cheio de conchêgo, no
dôce
[421]
tom côr de
rosa da luz cahindo sobre os damascos: as cartas esperavam na mesa do
whist: no sofá bordado a matiz D. Diogo, murcho e molle,
olhava o lume, cofiando os bigodes. E, travadas n'alguma
questão, a voz do Craft, que perpassou de cachimbo na
mão, e a voz mais lenta de Affonso, tranquillo na sua
poltrona, misturavam-se, abafadas pela do Sequeira, que berrava
furiosamente:—«Mas se ámanhã houvesse
uma bernarda, esse exercito com que os senhores querem acabar por ser
uma escóla de vadiagem é que lhes havia de
guardar as costas... É bom fallar, ter muita philosophia!
Mas quando ellas chegam, se não ha meia duzia de baionetas
promptas, então são as
cólicas!...»
Ega foi d'alli aos quartos de Carlos. As velas ardiam ainda nas
serpentinas: um aroma errava de agua de Lubin e charuto: e o Baptista
disse-lhe que o snr. D. Carlos «sahira havia dez
minutos». Fôra para a rua de S. Francisco! Ia
lá dormir! Então enervado, com a longa e triste
noite diante de si, Ega teve um appetite de se atordoar, dissipar n'uma
excitação forte as idéas que o
torturavam. Não despedira a tipoia, abalou para S. Carlos. E
findou por ir cear ao Augusto com o Taveira e duas raparigas, a Paca e
a Carmen Philosopha, prodigalisando o champagne. Ás quatro
da manhã estava bebedo, estatelado sobre o sofá,
gemendo sentimentalmente, só para si, as estrophes de Musset
á Malibran... O Taveira e a Paca, juntinhos
[422]
na mesma cadeira, elle com o
seu ar terno de chulo, ella
muy
caliente tambem,
debicavam copinhos de gelatina. E a Carmen Philosopha, empanturrada,
desapertada, com o collete embrulhado já n'um
Diario de Noticias, repicava a
faca na borda do prato, cantarolando d'olhos perdidos nos bicos de gaz:
Señor Alcalde mayor,
No prenda usted los ladrones...
Acordou ao outro dia ás nove horas, ao lado da Carmen
Philosopha, n'um quarto de grandes janellas rasgadas por onde entrava
toda a melancolia da escura manhã de chuva. E, emquanto
não vinha a tipoia fechada que a servente correra a chamar,
o pobre Ega enojado, vexado, com a lingua pastosa, os pés
nús sobre o tapete, reunindo o
fato espalhado, tinha só uma idéa clara—fugir
d'alli para um grande banho, bem perfumado e bem fresco, onde se
purificasse d'uma sensação viscosa de Carmen e
d'orgia que o arrepiava.
Esse banho lustral foi tomal-o ao
Hotel
Braganza, para se encontrar com Carlos e com
Villaça ás onze horas já lavado e
preparado. Mas precisou
esperar pela roupa branca que o cocheiro, com um bilhete para o
Baptista, voára a buscar ao Ramalhete: depois
almoçou: e já batera meio dia quando
[423]
se apeou á porta
particular dos quartos de Carlos, com a roupa suja n'uma trouxa.
Justamente Baptista atravessava o patamar com camelias n'um
açafate.
—O Villaça já veio? perguntou-lhe Ega baixo,
andando em pontas de pés.
—O snr. Villaça já lá está
dentro ha bocado. V. exc.
a recebeu a roupa
branca?... Eu tambem mandei
um fato, porque n'esses casos sempre dá mais frescura...
—Obrigado, Baptista, obrigado!
E Ega pensava:—«Bem, Carlos já sabe tudo, o
barranco está passado!» Mas demorou-se ainda,
tirando as luvas e o paletot com uma lentidão cobarde. Por
fim, sentindo bater alto o coração, puxou o
reposteiro de velludo. Na ante-camara pesava um silencio; a chuva
grossa fustigava a porta envidraçada, por onde se viam as
arvores do jardim esfumadas na nevoa. Ega levantou o outro reposteiro
que tinha bordadas as armas dos Maias.
—Ah! és tu? exclamou Carlos, erguendo-se da mesa de
trabalho com uns papeis na mão.
Parecia ter conservado um animo viril e firme: apenas os olhos lhe
rebrilhavam, com um fulgor sêcco, anciosos e mais largos na
pallidez que o cobria. Villaça, sentado defronte, passava
vagarosamente pela testa, n'um movimento cansado, o lenço de
sêda da India. Sobre a mesa alastravam-se
os papeis da Monforte.
[424]
—Que diabo de embrulhada é esta que me vem contar
o Villaça? rompeu Carlos, cruzando os braços
diante do Ega, n'uma voz que apenas de leve tremia.
Ega balbuciou:
—Eu não tive coragem de te dizer...
—Mas tenho eu para ouvir!... Que diabo te contou esse homem?
Villaça ergueu-se immediatamente. Ergueu-se com a pressa
d'um galucho timido que é rendido n'um posto arriscado,
pediu licença, se não
precisavam d'elle, para voltar ao escriptorio. Os amigos decerto
preferiam conversar mais livremente. De resto, alli ficavam os papeis
da snr.
a D. Maria Monforte. E se elle fosse
necessario um recado
encontrava-o na rua da Prata ou em casa...
—E v. exc.
a comprehende, acrescentou
elle enrolando nas
mãos o lenço de sêda, eu
tomei a iniciativa de vir fallar, por ser o meu dever, como amigo
confidencial da casa... Foi essa tambem a opinião do nosso
Ega...
—Perfeitamente, Villaça, obrigado! acudiu Carlos. Se
fôr necessario lá mando...
O procurador, com o lenço na mão,
lançou em redor um olhar lento. Depois espreitou debaixo da
mesa. Parecia muito surprehendido. E Carlos seguia com impaciencia os
passos timidos que elle dava pelo quarto, procurando...
—Que é, homem?
—O meu chapéo. Imaginei que o tinha posto
[425]
aqui... Naturalmente ficou lá fóra...
Bem, se fôr necessario alguma coisa...
Mal elle sahiu, atirando ainda os olhos inquietos pelos cantos, Carlos
fechou violentamente o reposteiro. E voltando para o Ega, cahindo
pesadamente n'uma cadeira:
—Dize lá!
Ega, sentado no sofá, começou por contar o
encontro com o snr. Guimarães, em baixo no botequim da
Trindade, depois de ter fallado o Rufino. O homem queria
explicações sobre a carta do
Damaso, sobre a bebedeira hereditaria... Tudo se aclarára,
ficando d'ahi entre elles um começo de familiaridade...
Mas o reposteiro mexeu de leve—e surdiu de novo a face do
Villaça:
—Peço desculpa, mas é o meu chapéo...
Não o acho, havia de jurar que o deixei aqui...
Carlos conteve uma praga. Então Ega procurou tambem, por
traz do sofá, no vão da janella.
Carlos, desesperado, para findar, foi vêr entre os cortinados
da cama. E Villaça, escarlate, afflicto, esquadrinhava
até a alcova do banho...
—Um sumiço assim! Emfim, talvez me esquecesse na
ante-camara!... Vou vêr outra vez... O que peço
é desculpa.
Os dois ficaram sós. E Ega recomeçou, detalhando
como Guimarães, duas ou tres vezes nos intervallos, lhe
viera fallar de coisas indifferentes, do sarau, de politica, do
papá Hugo, etc. Depois
[426]
elle procurára Carlos
para irem um bocado ao Gremio. Terminára por sahir com o
Cruges. E passavam defronte do Alliança...
Novamente o reposteiro franziu, Baptista pediu perdão a suas
excellencias:
—É o snr. Villaça que não acha o
chapéo, diz que o deixou aqui...
Carlos ergueu-se furioso, agarrando a cadeira pelas costas como para
despedaçar o Baptista.
—Vai para o diabo tu e o snr. Villaça!... Que
sáia sem chapéo! Dá-lhe um
chapéo meu! Irra!
Baptista recuou, muito grave.
—Vá, acaba lá! exclamou Carlos, recahindo no
assento, mais pallido.
E Ega, miudamente, contou a sua longa, terrivel conversa com o
Guimarães, desde o momento em que o homem por acaso,
já ao despedir-se, já ao estender-lhe a
mão, fallára da
«irmã do Maia». Depois
entregára-lhe os papeis da Monforte á
porta do
Hotel de Paris, no
Pelourinho...
—E aqui está, não sei mais nada. Imagina tu que
noite eu passei! Mas não tive coragem de te dizer. Fui ao
Villaça... Fui ao Villaça com a
esperança sobretudo de elle saber algum facto, ter algum
documento que atirasse por terra toda esta historia do
Guimarães... Não tinha nada,
não sabia nada. Ficou tão aniquilado como eu!
No curto silencio que cahiu, um chuveiro mais largo, alagando o
arvoredo do jardim, cantou nas
[427]
vidraças. Carlos
ergueu-se arrebatadamente, n'uma revolta de todo o sêr:
—E tu acreditas que isso seja possivel? Acreditas que succeda a um
homem como eu, como tu, n'uma rua de Lisboa? Encontro uma mulher,
ólho para ella, conheço-a, durmo com ella e,
entre todas as mulheres do mundo, essa justamente ha de ser minha
irmã! É impossivel... Não
ha Guimarães, não ha papeis, não ha
documentos que me convençam!
E como Ega permanecia mudo, a um canto do sofá, com os olhos
no chão:
—Dize alguma coisa, gritou-lhe Carlos. Duvída tambem,
homem, duvída commigo!... É
extraordinario! Todos vocês acreditam, como se isto fosse a
coisa mais natural do mundo, e não houvesse por essa cidade
fóra senão irmãos a
dormir juntos!
Ega murmurou:
—Já ia succedendo um caso assim, lá ao
pé da quinta, em Celorico...
E n'esse momento, sem que um rumor os prevenisse, Affonso da Maia
appareceu n'uma abertura do reposteiro, encostado á bengala,
sorrindo todo com alguma idéa que decerto o divertia. Era
ainda o chapéo do Villaça.
—Que diabo fizeram vocês ao chapéo do
Villaça? O pobre homem andou por ahi afflicto... Teve de
levar um chapéo meu. Cahia-lhe pela cabeça
abaixo, enchumaçaram-lh'o com lenços...
[428]
Mas subitamente reparou na face transtornada do neto. Reparou na
atarantação do Ega cujos
olhos mal se fixavam, fugindo anciosamente d'elle para Carlos. Todo o
sorriso se lhe apagou, deu no quarto um passo lento:
—Que é isso, que têm vocês?... Ha
alguma coisa?
Então Carlos, no ardente egoismo da sua paixão,
sem pensar no abalo cruel que ia dar ao pobre velho, cheio
só de esperança que elle, seu
avô, testemunha do passado, soubesse algum facto, possuisse
alguma certeza contraria a toda essa historia do Guimarães,
a todos esses papeis da Monforte—veio para elle, desabafou:
—Ha uma coisa extraordinaria, avô! O avô talvez
saiba... O avô deve saber alguma coisa que nos tire d'esta
afflicção!... Aqui
está, em duas palavras. Eu conheço ahi uma
senhora que chegou ha tempos a Lisboa, mora na rua de S. Francisco.
Agora de repente descobre-se que é minha irmã
legitima!... Passou ahi um homem que a conhecia, que tinha uns
papeis... Os papeis ahi estão. São cartas, uma
declaração de minha mãe...
Emfim uma trapalhada, um montão de provas... Que significa
tudo isto? Essa minha irmã, a que foi levada em pequena,
não morreu?... O avô deve saber!
Affonso da Maia, que um tremor tomára, agarrou-se um momento
com força á bengala, cahiu por fim pesadamente
n'uma poltrona, junto do reposteiro.
[429]
E ficou devorando o
neto, o Ega, com um olhar esgazeado e mudo.
—Esse homem, exclamou Carlos, é um Guimarães, um
tio do Damaso... Fallou com o Ega, foi ao Ega que entregou os papeis...
Conta tu ao avô, Ega, conta tu do começo!
Ega, com um suspiro, resumiu a sua longa historia. E findou por dizer
que o importante, o decisivo alli era este homem, o
Guimarães, que não tinha interesse em mentir e
só por acaso, puramente por acaso, fallára em
taes coisas—conhecia essa senhora, desde pequenina, como filha de
Pedro da Maia e de Maria Monforte. E nunca a perdera de vista. Vira-a
crescer em Paris, andára com ella ao collo, dera-lhe
bonecas. Visitára-a com a mãi no convento.
Frequentára a casa que ella
habitava em Fontainebleau, como casada...
—Emfim, interrompeu Carlos, viu-a ainda ha dias, n'uma carruagem,
commigo e com o Ega... Que lhe parece, avô?
O velho murmurou, n'um grande esforço, como se as palavras
sahindo lhe rasgassem o coração:
—Essa senhora, está claro, não sabe nada...
Ega e Carlos, a um tempo, gritaram:—«Não sabe
nada!» Segundo affirmava o Guimarães, a
mãi escondera-lhe sempre a verdade. Ella julgava-se filha
d'um austriaco. Assignava-se ao principio Calzaski...
Carlos, que remexera sobre a mesa, adiantou-se com um papel na
mão:
[430]
—Aqui tem o avô a declaração de minha
mãi.
O velho levou muito tempo a procurar, a tirar a luneta d'entre o
collete com os seus pobres dedos que tremiam; leu o papel devagar,
empallidecendo mais a cada linha, respirando penosamente; ao findar
deixou cahir sobre os joelhos as mãos, que ainda agarravam o
papel, ficou como esmagado e sem força. As palavras por fim
vieram-lhe apagadas, morosas. Elle nada sabia... O que a Monforte alli
assegurava, elle não o podia destruir... Essa senhora da rua
de S. Francisco era talvez na verdade sua neta... Não sabia
mais...
E Carlos diante d'elle vergava os hombros, esmagado tambem sob a
certeza da sua desgraça. O avô, testemunha do
passado, nada sabia! Aquella declaração, toda a
historia do
Guimarães ahi permaneciam inteiras, irrefutaveis. Nada
havia, nem memoria de homem, nem documento escripto, que as pudesse
abalar. Maria Eduarda era, pois, sua irmã!... E um defronte
do outro, o velho e o neto pareciam dobrados por uma mesma
dôr—nascida da mesma idéa.
Por fim Affonso ergueu-se, fortemente encostado á bengala,
foi pousar sobre a mesa o papel da Monforte. Deu um olhar, sem lhes
tocar, ás cartas espalhadas em volta da caixa de charutos.
Depois, lentamente, passando a mão pela testa:
—Nada mais sei... Sempre pensamos que essa criança tinha
morrido... Fizeram-se todas as pesquizas...
[431]
Ella mesma disse que
lhe tinha morrido a filha, mostrou já não sei a
quem um retrato...
—Era outra mais nova, a filha do italiano, disse o Ega. O
Guimarães fallou-me n'isso... Foi esta que viveu. Esta, que
tinha já sete a oito annos, quando havia apenas quatro ou
cinco que esse sujeito italiano apparecera em Lisboa... Foi esta.
—Foi esta, murmurou o velho.
Teve um gesto vago de resignação, acrescentou,
depois de respirar fortemente:
—Bem! Tudo isto tem de ser mais pensado... Parece-me bom tornar a
chamar o Villaça... Talvez seja necessario que elle
vá a Paris... E antes de tudo precisamos socegar... De resto
não ha aqui morte d'homem... Não ha aqui morte
d'homem!
A voz sumia-se-lhe, toda tremula. Estendeu a mão a Carlos
que lh'a beijou, suffocado; e o velho, puxando o neto para si,
pousou-lhe os labios na testa. Depois deu dois passos para a porta,
tão lentos e incertos que Ega correu para elle:
—Tome v. exc.
a o meu braço...
Affonso apoiou-se n'elle, pesadamente. Atravessaram a ante-camara
silenciosa onde a chuva contínua batia os vidros. Por traz
d'elles cahiu o grande reposteiro com as armas dos Maias. E
então Affonso, de repente, soltando o braço do
Ega, murmurou-lhe, junto á face, no desabafo de toda a sua
dôr:
—Eu sabia d'essa mulher!... Vive na rua de S.
[432]
Francisco, passou todo o
verão nos Olivaes... É a
amante d'elle!
Ega ainda balbuciou: «Não, não, snr.
Affonso da Maia!» Mas o velho pôz o dedo nos
labios,
indicou Carlos dentro que podia ouvir... E afastou-se, todo dobrado
sobre a bengala, vencido emfim por aquelle implacavel destino que
depois de o ter ferido na idade de força com a
desgraça do
filho—o esmagava ao fim da velhice com a desgraça do neto.
Ega enervado, exhausto, voltou para o quarto—onde Carlos
recomeçára n'aquelle agitado passeio que abalava
o soalho, fazia tilintar finamente os frascos de crystal sobre o
marmore da console. Calado, junto da mesa, Ega ficou percorrendo outros
papeis da Monforte—cartas, um livrinho de marroquim com adresses,
bilhetes de visita de membros do Jockey Club e de senadores do imperio.
Subitamente Carlos parou diante d'elle, apertando desesperadamente as
mãos:
—Estarem duas creaturas em pleno céo, passar um quidam, um
idiota, um Guimarães, dizer duas palavras, entregar uns
papeis e quebrar para sempre duas existencias!... Olha que isto
é horrivel, Ega!
Ega arriscou uma consolação banal:
—Era peor se ella
morresse...
—Peor porque? exclamou Carlos. Se ella morresse, ou eu, acabava o
motivo d'esta paixão, restava a dôr e a saudade,
era outra coisa... Assim
[433]
estamos vivos, mas mortos um para o outro, e viva a
paixão que nos unia!... Pois tu imaginas que por me virem
provar que ella é minha irmã, eu gósto
menos d'ella do que gostava hontem, ou gósto d'um modo
differente? Está claro que
não! O meu amor não se vai d'uma hora para a
outra accommodar a novas circumstancias, e transformar-se em amizade...
Nunca! Nem eu quero!
Era uma brutal revolta—o seu amor defendendo-se, não
querendo morrer, só porque as
revelações d'um Guimarães e uma caixa
de charutos cheia de papeis velhos o declaravam impossivel, e lhe
ordenavam que morresse!
Houve outro melancolico silencio. Ega accendeu uma cigarette, foi-se
enterrar ao canto do sofá. Uma fadiga ia-o vencendo, feita
de toda aquella emoção, da noitada no Augusto, da
estremunhada manhã na alcova da Carmen. Todo o quarto ia
entristecendo, á luz mais triste da tarde d'inverno que
descia. Ega terminou por cerrar os olhos. Mas bem depressa o sacudiu
outra exclamação de
Carlos, que de novo, diante d'elle, apertava as mãos com
desespero:
—E o peor ainda não é isto, Ega! O peor
é que temos de lhe dizer tudo, de lhe contar tudo, a
ella!...
Ega já pensára n'isso... E era necessario que se
lhe dissesse immediatamente, sem hesitações.
—Vou-lhe eu mesmo contar tudo, murmurou Carlos.
[434]
—Tu!?
—Pois quem, então? Querias que fosse o
Villaça?...
Ega franzia a testa:
—O que tu devias fazer era metter-te esta noite no comboio, e partir
para Santa Olavia. De lá contavas-lhe tudo. Estavas assim
mais seguro.
Carlos atirou-se para uma poltrona, com um grande suspiro de fadiga:
—Sim, talvez, ámanhã, no comboio da noite...
Já pensei n'isso, era o melhor... Agora o que estou
é muito cansado!
—Tambem eu, disse o Ega espreguiçando-se. E já
não adiantamos nada, atolamo-nos mais na
confusão. O melhor é serenar... Eu vou-me estirar
um bocado na cama.
—Até logo!
Ega subiu ao quarto, deitou-se por cima da roupa; e no seu immenso
cansaço bem depressa adormeceu. Acordou tarde a um rumor da
porta. Era Carlos que entrava, raspando um phosphoro. Anoitecera, em
baixo tocava a campainha para o jantar.
—Demais a mais esta massada do jantar! dizia Carlos accendendo as
velas no toucador. Não termos um pretexto para irmos
fóra, a uma taverna, conversar em socego! Ainda por cima
convidei hontem o Steinbroken.
Depois voltando-se:
—Ó Ega, tu achas que o avô sabe tudo?
[435]
O outro saltára da cama, e diante do lavatorio
arregaçava as mangas:
—Eu te digo... Parece-me que teu avô desconfia... O caso
fez-lhe a impressão d'uma catastrophe... E, se
não suspeitasse o que ha, devia-lhe causar simplesmente a
surpreza de quem descobre uma neta perdida.
Carlos teve um lento suspiro. D'ahi a um instante desciam para o
jantar.
Em baixo encontraram, além de Steinbroken e de D. Diogo—o
Craft, que viera «pedir as sopas». E em
tôrno áquella mesa, sempre alegre, coberta de
flôres e de luzes, uma melancolia fluctuava n'essa tarde
através d'uma conversa dormente sobre doenças,—o
Sequeira que tinha rheumatismo, o pobre marquez peorára.
De resto Affonso, no escriptorio, queixára-se d'uma forte
dôr de cabeça, que justificava o seu
ar consumido e
pallido. Carlos, a
quem
Steinbroken achára «má cara»,
explicou
tambem que passára uma noite abominavel. Então
Ega, para desanuviar o jantar, pediu ao amigo Steinbroken as suas
impressões sobre o grande orador do sarau da Trindade, o
Rufino. O diplomata hesitou. Surprehendera-o bastante saber que o
Rufino era um politico, um parlamentar... Aquelles gestos, o bocado da
camisa a vêr-se-lhe no estomago, a pera, a grenha, as botas,
não lhe pareciam realmente d'um Homem d'Estado:
—Mais cependant, cependant... Dans ce genre
[436]
là, dans le genre sublime,
dans le genre de
Demosthènes, il m'a paru très fort... Oh, il m'a
paru excessivement fort!
—E você, Craft?
Craft, no sarau, só gostára do Alencar. Ega
encolheu violentamente os hombros. Ora historias! Nada podia haver mais
comico que a Democracia romantica do Alencar, aquella Republica meiga e
loura, vestida de branco como Ophelia, orando no prado, sob o olhar de
Deus... Mas Craft justamente achava tudo isso excellente por ser
sincero. O que feria sempre nas exhibições da
litteratura
portugueza? A escandalosa falta de sinceridade. Ninguem, em verso ou
prosa, parecia jámais acreditar n'aquillo que declamava com
ardor, esmurrando o peito. E assim fôra na vespera. Nem o
Rufino parecia acreditar na influencia da religião; nem o
homem da barba bicuda no heroismo dos Castros e dos Albuquerques; nem
mesmo o poeta dos olhinhos bonitos na bonitice dos olhinhos... Tudo
contrafeito e postiço! Com o Alencar, que
differença! Esse tinha uma fé real no que
cantava, na Fraternidade dos povos, no Christo republicano, na
Democracia devota e coroada d'estrellas...
—Já deve ser bem velho esse Alencar, observou D. Diogo que
rolava bolinhas de pão entre os longos dedos pallidos.
Carlos, ao lado, emergiu emfim do seu silencio:
—O Alencar deve ter bons cincoenta annos.
[437]
Ega jurou pelo menos sessenta. Já em 1836 o Alencar
publicava coisas delirantes, e chamava pela morte, no remorso de tantas
virgens que seduzira...
—Ha que annos, com effeito, murmurou lentamente Affonso, eu ouvi
fallar d'esse homem!
D. Diogo, que levára os labios ao copo, voltou-se para
Carlos:
—O Alencar tem a idade que havia de ter teu pai... Eram intimos,
d'essa roda
distinguée
d'então. O Alencar ia muito a Arroios com o pobre D.
João da Cunha, que Deus haja, e com os outros. Era tudo uma
fina flôr, e regulavam pela mesma idade... Já nada
resta, já nada resta!
Carlos baixára os olhos: todos por acaso emmudeceram: um ar
de tristeza passou entre as flôres e as luzes como vinda do
fundo d'esse passado, cheio de sepulturas e dôres.
—E o pobre Cruges, coitado, que fiasco! exclamou Ega, para sacudir
aquella nevoa.
Craft achava o fiasco justo. Para que fôra elle dar Beethoven
a uma gente educada pela chulice de Offenbach? Mas Ega não
admittia esse desdem por Offenbach, uma das mais finas
manifestações modernas do scepticismo e da
ironia! Steinbroken accusou Offenbach de não saber
contra-ponto. Durante um momento discutiu-se musica. Ega acabou por
sustentar que nada havia em arte tão bello como o
fado. E appellou para
Affonso, para o despertar.
—Pois não é verdade, snr. Affonso da Maia?
[438]
V. exc.
a tambem
é como eu, um dos fieis ao fado, á nossa grande
creação nacional.
—Sim, com effeito, murmurou o velho, levando a mão
á testa, como a justificar o seu modo desinteressado e
murcho. Ha muita poesia no fado...
Craft porém atacava o fado, as
malagueñas, as
peteneras—toda essa musica
meridional, que lhe parecia apenas um garganteado gemebundo, prolongado
infinitamente, em
ais de
esterilidade e de preguiça. Elle, por exemplo, ouvira uma
noite uma
malagueña, uma
d'essas famosas
malagueñas, cantada em
perfeito estylo por uma senhora de Malaga. Era em Madrid, em casa dos
Villa-Rubia. A senhora põe-se ao piano, rosna uma coisa
sobre
piedra e
sepultura, e rompe a gemer n'um
gemido que não findava—
ã-ã-ã-ã-ã-ah...
Pois senhores, elle aborrece-se, passa para outra sala, vê
jogar todo um robber de whist, folheia um immenso album, discute a
guerra carlista com o general Jovellos, e quando volta, lá
estava ainda a senhora, de cravos na trança e olhos no
tecto, a gemer o mesmo—
ã-ã-ã-ã-ã-ah!...
Todos riram. Ega protestou com impeto, já excitado. O Craft
era um sêcco inglez, educado sobre o chato seio da Economia
Politica, incapaz de comprehender todo o mundo de poesia que podia
conter um ai! Mas elle não fallava das
malagueñas.
Não estava encarregado de defender a Hespanha. Ella possuia,
para convencer o Craft e outros
[439]
britannicos, bastante
pilheria e bastante navalha... A questão era o
fado!
—Onde é que você tem ouvido o fado? Ahi pelas
salas, ao piano... Com effeito assim, concordo, é
chôcho. Mas ouça-o você por
tres ou quatro guitarristas, uma noite, no campo, com uma bella lua no
céo... Como nos Olivaes este verão, quando
o marquez lá levou o
Vira-vira! Lembras-te, Carlos?...
E estacou, como entalado, no arrependimento d'aquella memoria da
Toca que
levianamente evocára. Carlos permanecera silencioso, com uma
sombra na face. Craft ainda rosnou que, n'uma linda noite de luar,
todos os sons no campo eram bonitos, mesmo o chiar dos sapos. E de novo
uma estranha desanimação amolleceu a sala; os
escudeiros serviam os dôces.
Então, no silencio, D. Diogo disse pensativamente, com a sua
magestade de leão saudoso que relembra um grande passado:
—Uma musica tambem muito
distinguée antigamente
eram os
Sinos do mosteiro. Parecia
mesmo que se estavam ouvindo os sinos... Já não
ha d'isso!
O jantar terminava friamente. Steinbroken voltára
áquella falta da familia real no sarau, que desde a vespera
o inquietava. Ninguem alli se interessava pelo Paço. Depois
D. Diogo surdiu com uma velha e fastidiosa historia sobre a infanta D.
Isabel. Foi um allivio quando o escudeiro trouxe em volta
[440]
a larga bacia de prata e o
jarro d'agua perfumada.
Ao fim do café, servido no bilhar, Steinbroken e Craft
começaram uma partida «ás
cincoenta» e a quinze tostões para interessar.
Affonso e D. Diogo tinham recolhido ao escriptorio. Ega
enterrára-se no fundo d'uma poltrona, com o
Figaro. Mas bem depressa deixou
escorregar a folha no tapete, cerrou os olhos. Então Carlos,
que passeava pensativamente fumando, olhou um momento o Ega adormecido,
e sumiu-se por traz do reposteiro.
Ia á rua de S. Francisco.
Mas não se apressava, a pé pelo Aterro, abafado
n'um paletot de pelles, acabando o charuto. A noite
clareára, com um crescente de lua entre farrapos de nuvens
brancas, que fugiam sob um norte fino.
Fôra n'essa tarde, só no seu quarto, que Carlos
decidira ir fallar a Maria Eduarda—por um motivo supremo de dignidade
e de razão, que elle descobrira e que repetia a si mesmo
incessantemente para se justificar. Nem ella nem elle eram duas
crianças frouxas, necessitando que a crise mais temerosa da
sua vida lhes fosse resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo
Villaça: mas duas pessoas fortes, com o animo bastante
resoluto, e o juizo bastante seguro,
[441]
para elles mesmos acharem o
caminho da dignidade e da razão n'aquella catastrophe que
lhes desmantelava a existencia. Por isso elle, só elle,
devia ir á rua de S. Francisco.
Decerto era terrivel tornar a vêl-a n'aquella sala, quente
ainda do seu amor, agora que a sabia sua irmã... Mas porque
não? Havia acaso alli dois
devotos, possuidos da preoccupação do demonio,
espavoridos pelo peccado em que se tinham atolado ainda que
inconscientemente, anciosos por irem esconder no fundo de mosteiros
distantes o horror carnal um do outro? Não! Necessitavam
elles acaso pôr immediatamente entre si as compridas legoas
que vão de Lisboa a Santa Olavia, com receio de cahir na
antiga fragilidade, se de novo os seus olhos se encontrassem brilhando
com a antiga chamma? Não! Ambos tinham em si bastante
força para enterrar o coração sob a
razão,
como sob uma fria e dura pedra, tão completamente que
não lhe sentissem mais nem a revolta nem o chôro.
E elle podia desafogadamente voltar áquella sala, toda
quente ainda do seu amor...
De resto, que precisavam appellar para a razão, para a sua
coragem de fortes?... Elle não ia revelar bruscamente
toda a
verdade a Maria Eduarda, dizer-lhe um «adeus!»
pathetico, um adeus de theatro, affrontar uma crise de
paixão e dôr. Pelo contrario! Toda essa tarde,
através do seu proprio tormento, procurára
anciosamente um meio de adoçar e graduar áquella
pobre creatura
[442]
o horror da revelação que lhe devia. E
achára um por fim, bem complicado, bem cobarde! Mas que! Era
o unico, o unico que por uma preparação
lenta, caridosa, lhe pouparia uma dôr fulminante e brutal. E
esse meio justamente só era praticavel indo elle, com toda a
frieza, com todo o animo, á rua de S. Francisco.
Por isso ia—e ao longo do Aterro, retardando os passos, resumia,
retocava esse plano, ensaiando mesmo comsigo, baixo, palavras que lhe
diria. Entraria na sala, com um grande ar de pressa—e contava-lhe que
um negocio de casa, uma
complicação de feitores o obrigava a partir para
Santa Olavia d'ahi a dias. E immediatamente sahia, com o pretexto de
correr a casa do procurador. Podia mesmo
ajuntar—«é um momento, não
tardo, até já.» Uma coisa o inquietava.
Se ella lhe désse um beijo?... Decidia então exagerar a sua
pressa, conservando o charuto na bôca, sem mesmo pousar o
chapéo... E sahia. Não voltava. Pobre d'ella,
coitada, que ia esperar até tarde, escutando cada rumor de
carruagem na rua!... Na noite seguinte abalava para Santa Olavia com o
Ega, deixando-lhe a ella uma carta a annunciar que infelizmente, por
causa d'um telegramma, se vira forçado a partir n'esse
comboio. Podia mesmo ajuntar—«volto d'aqui a dois ou tres
dias...» E ahi estava longe d'ella para sempre. De Santa
Olavia escrevia-lhe logo, d'um modo incerto e confuso, fallando de
documentos de familia, inesperadamente descobertos, provando entre
[443]
elles um
parentesco chegado. Tudo isto atrapalhado, curto,
«á pressa». Por fim n'outra carta
deixava escapar
toda a verdade,
mandava-lhe
a declaração da mãe; e mostrando a
necessidade d'uma
separação, emquanto se não
esclarecessem todas as duvidas, pedia-lhe que partisse para Paris.
Villaça ficava encarregado da questão de
dinheiro, entregando-lhe logo para a viagem trezentas ou quatrocentas
libras... Ah! tudo isto era bem complicado, bem covarde! Mas
só havia esse meio. E quem, senão elle, o podia
tentar com caridade e com tacto?
E, entre o tumulto d'estes pensamentos, de repente achou-se na travessa
da Parreirinha, defronte da casa de Maria. Na sala, através
das cortinas, transparecia uma luz dormente. Todo o resto estava
apagado—a janella do gabinete estreito onde ella se vestia, a varanda
do quarto d'ella com os vasos de chrysantemos.
E pouco a pouco aquella fachada muda d'onde apenas sahia, a um canto,
uma claridade languida d'alcova adormecida, foi-o estranhamente
penetrando da inquietação e
desconfiança. Era um medo d'essa penumbra molle que sentia
lá dentro, toda cheia de calor e do perfume em que havia
jasmim. Não entrou; seguiu devagar pelo passeio fronteiro,
pensando em certos detalhes da casa—o sofá largo e profundo
com almofadas de sêda, as rendas do toucador, o cortinado
branco da cama d'ella... Depois parou diante da larga barra
[444]
de claridade que sahia do
portão do Gremio; e foi para lá, machinalmente
attrahido pela simplicidade e segurança d'aquella entrada,
lageada de pedra, com grossos bicos de gaz, sem penumbras e sem
perfumes.
Na sala, em baixo, ficou percorrendo, sem os comprehender, os
telegrammas soltos sobre a mesa. Um criado passou, elle pediu cognac.
Telles da Gama, que vinha de dentro assobiando, com as mãos
nos bolsos do paletot, deteve-se um momento para lhe perguntar se ia na
terça-feira aos Gouvarinhos.
—Talvez, murmurou Carlos.
—Então venha!... Eu ando a arrebanhar gente...
São os annos do Charlie, de mais a mais. Cae lá o
peso do mundo, e ha ceia!...
O criado entrou com a bandeja—e Carlos, de pé junto da
mesa, remexendo o assucar no copo, recordava, sem saber porque, aquella
tarde em que a condessa, pondo-lhe uma rosa no casaco, lhe dera o
primeiro beijo; revia o sofá onde ella cahira com um rumor
de sêdas amarrotadas... Como tudo isto era já vago
e remoto!
Apenas acabou o cognac sahiu. Agora, caminhando rente das casas,
não via aquella fachada que o perturbava com a sua claridade
d'alcova morrendo nos vidros. O portão ficára
cerrado, o gaz ardia no patamar. E subiu, sentindo mais pela escada de
pedra as pancadas do coração que o pousar dos
seus passos. Melanie, que veio abrir, disse-lhe
[445]
que a senhora, um
pouco cansada, se fôra encostar sobre a roupa;—e a sala, com
effeito, parecia abandonada por essa noite, com as serpentinas
apagadas, o bordado ocioso e enrolado no seu cesto, os livros n'um frio
arranjo orlando a mesa onde o candieiro espalhava uma luz tenue sob o
abat-jour de renda amarella.
Carlos tirava as luvas, lentamente, retomado de novo por uma
inquietação ante aquelle
recolhimento adormecido. E de repente Rosa correu de dentro, rindo,
pulando, com os cabellos soltos nos hombros, os braços
abertos para elle. Carlos levantou-a ao ar, dizendo como costumava:
«Lá vem a cabrita!...»
Mas então, quando a tinha assim suspensa, batendo os
pésinhos—atravessou-o a idéa de que aquella
criança era sua sobrinha e tinha o seu nome!... Largou-a,
quasi a deixou cahir—assombrado para ella, como se pela vez primeira
visse essa facesinha eburnea e fina onde corria o seu sangue...
—Que estás tu a olhar para mim? murmurou ella, recuando e
sorrindo, com as mãosinhas cruzadas atraz das saias que
tufavam.
Elle não sabia, parecia-lhe outra Rosa: e á sua
perturbação misturava-se uma saudade pela antiga
Rosa, a outra, a que era filha de Madame Mac-Gren, a quem elle contava
historias de Joanna d'Arc, a quem balouçava na
Toca sob as acacias em
flôr. Ella no emtanto sorria mais, com um brilho
[446]
nos dentinhos miudos, uma
ternura nos bellos olhos azues, vendo-o assim tão grave e
tão mudo,
pensando que elle ia brincar, fazer «voz de Carlos
Magno». Tinha o mesmo sorriso da mãi, com a mesma
covinha no queixo. Carlos viu n'ella de repente toda a graça
de Maria, todo o encanto de Maria. E arrebatou-a de novo nos
braços, tão
violentamente, com beijos tão bruscos no cabello e nas
faces, que Rosa estrebuchou, assustada e com um grito. Soltou-a logo,
n'um receio de não ter sido casto... Depois, muito
sério:
—Onde está a mamã?
Rosa coçava o braço, com a testasinha franzida:
—Apre!... Magoaste-me.
Carlos passou-lhe pelos cabellos a mão que ainda tremia.
—Vá, não sejas piegas, a mamã
não gosta. Onde está
ella?
A pequena, aplacada, já contente, pulava em redor, agarrando
nos pulsos de Carlos para que elle saltasse tambem...
—A mamã foi deitar-se... Diz que está muito
cansada, depois chama-me a mim preguiçosa... Vá,
salta tambem. Não sejas mono!...
N'esse instante, do corredor, miss Sarah chamou:
—Mademoiselle!...
Rosa pôz o dedinho na bôca cheia de riso:
—Dize-lhe que não estou aqui! A vêr... Para a
fazer zangar!... Dize!
[447]
Miss Sarah erguera o reposteiro; e descobriu-a logo escondida, sumida
por traz de Carlos, na pontinha dos pés, fazendo-se
pequenina. Teve um sorriso benevolo, murmurou «good night,
sir». Depois lembrou que eram quasi nove e meia, mademoiselle
tinha estado um pouco constipada e devia recolher-se. Então
Carlos puxou brandamente pelo braço de Rosa, acariciou-a
ainda para que ella obedecesse a miss Sarah.
Mas Rosa sacudia-o, indignada d'aquella traição.
—Tambem nunca fazes nada!... Semsaborão! Pois
olha, nem te digo adeus!
Atravessou a sala, amuada, esquivou-se com um repellão
á governante que sorria e lhe estendia a
mão—e pelo corredor rompeu n'um chôro despeitado
e pêrro. Miss Sarah risonhamente desculpou mademoiselle. Era
a constipação que a tornava
impertinente. Mas se fosse diante da mamã não
fazia aquillo, não!
—Good night, sir.
—Good night, miss Sarah...
Só, Carlos errou alguns momentos pela sala. Por fim ergueu o
pedaço de tapeçaria que cerrava o estreito
gabinete onde Maria se vestia. Ahi, na escuridão, um brilho
pallido d'espelho tremia, batido por um longo raio do candieiro da rua.
Muito de leve empurrou a porta do quarto.
—Maria!... Estás a dormir?
Não havia luz; mas o mesmo candieiro da rua,
através do transparente erguido, tirava das trevas
[448]
a brancura vaga do
cortinado que envolvia o leito. E foi d'ahi que ella murmurou, mal
acordada:
—Entra! Vim-me deitar, estava muito cansada... Que horas
são?
Carlos não se movera, ainda com a mão na porta:
—É tarde, e eu preciso sahir já a procurar o
Villaça ... Vinha dizer-te que tenho talvez de ir a Santa
Olavia, além d'ámanhã, por
dois ou tres dias...
Um movimento, entre os cortinados, fez ranger o leito.
—Para Santa Olavia?... Ora essa, porque? E assim de repente...
Entra!... Vem cá!
Então Carlos deu um passo no tapete, sem rumor. Ainda sentia
o ranger molle do leito. E já todo aquelle aroma d'ella que
tão bem conhecia, esparso na sombra tepida, o envolvia, lhe
entrava n'alma com uma seducção inesperada de
caricia nova, que o perturbava estranhamente. Mas ia balbuciando,
insistindo na sua pressa de encontrar essa noite o Villaça.
—É uma massada, por causa d'uns feitores, d'umas aguas...
Tocou no leito; e sentou-se muito á beira, n'uma fadiga que
de repente o enleára, lhe tirava a força para
continuar essas invenções
d'aguas e de feitores, como se ellas fossem montanhas de ferro a mover.
O grande e bello corpo de Maria, embrulhado
[449]
n'um roupão branco de sêda, movia-se,
espreguiçava-se languidamente sobre o leito brando.
—Achei-me tão cansada, depois de jantar, veio-me uma
preguiça... Mas então partires assim de
repente!... Que sécca! Dá cá a
mão!
Elle tenteava, procurando na brancura da roupa: encontrou um joelho a
que percebia a fórma e o calor suave, através da
sêda leve: e alli
esqueceu a mão, aberta e frouxa, como morta, n'um
entorpecimento onde toda a vontade e toda a consciencia se lhe fundiam,
deixando-lhe apenas a sensação d'aquella pelle
quente e macia onde a sua palma pousava. Um suspiro, um pequenino
suspiro de criança, fugiu dos labios de Maria, morreu na
sombra. Carlos sentiu a quentura de desejo que vinha d'ella, que o
entontecia, terrivel como o bafo ardente d'um abysmo, escancarado na
terra a seus pés. Ainda balbuciou:
«não,
não...» Mas ella estendeu os braços,
envolveu-lhe o pescoço, puxando-o para si, n'um murmurio que
era como a continuação
do suspiro, e em que o nome de
querido susurrava e
tremia. Sem resistencia, como
um corpo morto que um sopro impelle, elle cahiu-lhe sobre o seio. Os
seus labios seccos acharam-se collados n'um beijo aberto que os
humedecia. E de repente, Carlos enlaçou-a furiosamente,
esmagando-a e sugando-a, n'uma paixão e n'um desespero que
fez tremer todo o leito.
[450]
A essa hora Ega acordava no bilhar, ainda estirado na poltrona onde o
cansaço o prostrára. Bocejando, estremunhado,
arrastou os passos até ao escriptorio de Affonso.
Ahi ardia um lume alegre, a que o reverendo Bonifacio se deixava
torrar, enrolado sobre a pelle d'urso. Affonso fazia a partida de whist
com Steinbroken e com o Villaça: mas tão
distrahido,
tão confuso, que já duas vezes D. Diogo, infeliz
e irritado, rosnára que se a dôr de
cabeça assim o
estonteava melhor seria findarem! Quando Ega appareceu, o velho
levantou os olhos inquietos:
—O Carlos? Sahiu?...
—Sim, creio que sahiu com o Craft, disse o Ega. Tinham fallado em ir
vêr o marquez.
Villaça, que baralhava com a sua lentidão
meticulosa, deitou tambem para o Ega um olhar curioso e vivo. Mas
já D. Diogo batia com os dedos no pano da mesa,
resmungando:—«Vamos lá, vamos lá...
Não se ganha nada em saber dos
outros!» Então Ega ficou alli um momento, com
bocejos vagos, seguindo o cahir lento das cartas. Por fim, molle e
seccado, decidiu ir lêr para a cama, hesitou por diante das
estantes, sahiu com um velho numero do
Panorama.
Ao outro dia, á hora do almoço, entrou no
[451]
quarto de Carlos. E
ficou pasmado quando o Baptista—tristonho desde a vespera, farejando
desgosto—lhe disse que Carlos fôra para a Tapada, muito
cedo, a cavallo...
—Ora essa!... E não deixou ordens nenhumas, não
fallou em ir para Santa Olavia?...
Baptista olhou Ega, espantado:
—Para Santa Olavia!... Não senhor, não fallou em
semelhante coisa. Mas deixou uma carta para v. exc.
a
vêr.
Creio que é do snr. marquez. E diz que lá
apparecia depois, ás seis... Acho que
é jantar.
N'um bilhete de visita, o marquez, com effeito, lembrava que esse dia
era «o seu fausto natalicio»,
e esperava Carlos e o Ega ás seis, para lhe ajudarem a comer
a gallinha de dieta.
—Bem, lá nos encontraremos, murmurou Ega, descendo para o
jardim.
Aquillo parecia-lhe extraordinario! Carlos passeando a cavallo, Carlos
jantando com o marquez, como se nada houvesse perturbado a sua vida
facil de rapaz feliz!... Estava agora certo de que elle na vespera
fôra á rua de S. Francisco. Justos
céos! Que se teria lá passado? Subiu, ouvindo a
sineta do almoço. O escudeiro annunciou-lhe que o snr.
Affonso da Maia tomára uma chavena de chá no
quarto e ainda estava recolhido. Todos sumidos! Pela primeira vez no
Ramalhete Ega almoçou solitariamente na larga mesa, lendo a
Gazeta
Illustrada.
[452]
De tarde, ás seis, no quarto do marquez (que tinha o
pescoço enrolado n'uma
boa de senhora de pelle de marta),
encontrou Carlos, o Darque, o Craft, em torno d'um rapaz gordo que
tocava guitarra—emquanto ao lado o procurador do marquez, um bello
homem de barba preta, se batia com o Telles n'uma partida de damas.
—Viste o avô? perguntou Carlos, quando o Ega lhe estendeu a
mão.
—Não, almocei só.
O jantar, d'ahi a pouco, foi muito divertido, largamente regado com os
soberbos vinhos da casa. E ninguem decerto bebeu mais, ninguem riu mais
do que Carlos, resurgido quasi de repente d'uma
desanimação sombria a uma alegria
nervosa—que incommodava o Ega, sentindo n'ella um timbre falso e como
um som de crystal rachado. O proprio Ega por fim á sobremesa
se excitou consideravelmente
com um esplendido Porto de 1815. Depois houve um
baccarat em que
Carlos, outra vez sombrio, deitando a cada instante os olhos ao
relogio, teve uma sorte triumphante, uma «sorte de
cabrão», como a classificou o Darque,
indignado, ao trocar a sua ultima nota de vinte mil reis. Á
meia noite porém, inexoravelmente, o procurador do marquez
lembrou as ordens do medico que marcára esse limite
«ao natalicio». Foi então um
enfiar de paletots, em debandada, por entre os queixumes do Darque e do
Craft, que sahiam escorridos, sem sequer um troco para o
«americano». Fez-se-lhes
[453]
uma
subscripção de caridade, que elles recolheram
nos chapéos, rosnando
bênçãos aos bemfeitores.
Na tipoia que os levava ao Ramalhete, Carlos e Ega permaneceram muito
tempo em silencio, cada um enterrado ao seu canto, fumando. Foi
já ao meio do Aterro que Ega pareceu despertar:
—E então por fim?... Sempre vaes para Santa Olavia, ou que
fazes?
Carlos mexeu-se no escuro da tipoia. Depois, lentamente, como cheio de
cansaço:
—Talvez vá ámanhã... Ainda
não disse nada, ainda não fiz nada... Decidi
dar-me quarenta e oito horas para acalmar, para reflectir...
Não se póde
agora fallar com este barulho das rodas.
De novo cada um recahiu na sua mudez, ao seu canto.
Em casa, subindo a escadinha forrada de velludo, Carlos declarou-se
exhausto e com uma intoleravel dôr de cabeça:
—Ámanhã fallamos, Ega... Boa noite, sim?
—Até ámanhã.
Alta noite Ega acordou com uma grande sêde.
Saltára da cama, esvaziára a garrafa no toucador,
quando julgou sentir por baixo, no quarto de Carlos, uma porta bater.
Escutou. Depois, arrepiado, remergulhou nos lençoes. Mas
espertára
inteiramente, com uma idéa estranha, insensata, que o
assaltára
sem motivo, o agitava, lhe fazia palpitar o
coração no grande silencio da noite. Ouviu assim
dar tres horas. A porta de novo batera, depois uma
[454]
janella: era decerto vento que se
erguera. Não podia porém readormecer,
ás voltas, n'um terrivel mal-estar, com aquella
idéa cravada na
imaginação que o torturava. Então,
desesperado, pulou da cama, enfiou um paletot, e em pontas de chinelas,
com a mão diante da luz, desceu surdamente ao quarto de
Carlos. Na ante-sala parou, tremendo, com o ouvido contra o reposteiro,
na esperança de perceber algum calmo rumor de
respiração. O
silencio era pesado e pleno. Ousou entrar... A cama estava feita e
vazia, Carlos sahira.
Elle ficou a olhar estupidamente para aquella colcha lisa, com a dobra
do lençol de renda cuidadosamente entreaberta pelo Baptista.
E agora não duvidava. Carlos fôra findar a noite
á rua de S. Francisco!... Estava lá, dormia
lá! E
só uma idéa surgia através do seu
horror—fugir, safar-se para Celorico, não ser testemunha
d'aquella incomparavel infamia!...
E o dia seguinte, terça-feira, foi desolador para o pobre
Ega. Vexado, n'um terror de encontrar Carlos ou Affonso, levantou-se
cedo, esgueirou-se pelas escadas com cautelas de ladrão, foi
almoçar
ao Tavares. De tarde, na rua do Ouro, viu passar Carlos, que levava no
break o Cruges e o Taveira—arrebanhados certamente para elle se
não encontrar só á mesa com o
avô. Ega jantou
melancolicamente no Universal. Só entrou no Ramalhete
ás nove horas, vestir-se para a
soirée da Gouvarinho, que
pela manhã no Loreto parára a carruagem
[455]
para lhe lembrar
«que era a festa do
Charlie». E foi já de paletot, de
claque na mão, que
appareceu emfim na salinha Luiz xv onde Cruges tocava Chopin, e Carlos
se installára n'uma partida de bezigue com o Craft. Vinha
saber se os amigos queriam alguma coisa para os nobres condes de
Gouvarinho...
—Diverte-te!
—Sê faiscante!
—Eu lá appareço para a ceia! prometteu Taveira,
estirado n'uma poltrona com o
Figaro.
Eram duas horas da manhã quando Ega recolheu da
soirée—onde por fim
se divertira n'uma desesperada flirtação com a
baroneza d'Alvim, que
á ceia, depois do champagne, vencida por tanta
graça e tanta audacia, lhe tinha dado duas rosas. Diante do
quarto de Carlos, accendendo a vela, Ega hesitou, mordido por uma
curiosidade... Estaria lá? Mas teve vergonha d'aquella
espionagem, e subiu, bem decidido como na vespera a fugir para
Celorico. No seu quarto, diante do espelho, pôz
cuidadosamente n'um copo as rosas da Alvim. E começava a
despir-se, quando ouviu passos no negro corredor, passos muito lentos,
muito pesados, que se adiantavam, findaram á sua porta em
suspensão e silencio. Assustado, gritou: «Que
é lá?» A porta rangeu. E appareceu
Afonso da Maia, pallido, com um jaquetão sobre a camisa de
dormir, e um castiçal onde a vela ia morrendo.
Não entrou. N'uma voz enrouquecida, que tremia:
[456]
—O Carlos? esteve lá?
Ega balbuciou, atarantado, em mangas de camisa. Não sabia...
Estivera apenas um momento nos Gouvarinhos... Era provavel que Carlos
tivesse ido mais tarde com o Taveira, para a ceia.
O velho cerrára os olhos, como se desfallecesse, estendendo
a mão para se apoiar. Ega correu para elle:
—Não se afflija, snr. Affonso da Maia!
—Que queres então que faça? Onde está
elle? Lá mettido, com essa mulher... Escusas de dizer, eu
sei, mandei espreitar... Desci a isso, mas quiz acabar esta angustia...
E esteve lá hontem até de
manhã, está lá a dormir n'este
instante... E foi para este horror que Deus me deixou viver
até agora!
Teve um grande gesto de revolta e de dôr. De novo os seus
passos, mais pesados, mais lentos, se sumiram no corredor.
Ega ficou junto da porta, um momento, estarrecido. Depois foi-se
despindo devagar, decidido a dizer a Carlos muito simplesmente, ao
outro dia, antes de partir para
Celorico, que a sua infamia
estava matando o avô, e o forçava a elle, seu
melhor amigo, a fugir para a não testemunhar por mais tempo.
Mal acordou, puxou a mala para o meio do quarto, atirou para cima da
cama, ás braçadas, a roupa que ia emmalar. E
durante meia hora, em mangas de camisa, lidou n'esta tarefa, misturando
[457]
aos seus pensamentos de cólera lembranças da
sóirée da
vespera, certos olhares da Alvim, certas esperanças que lhe
tornavam saudosa a partida. Um alegre sol dourava a varanda. Terminou
por abrir a vidraça, respirar, olhar o bello azul d'inverno.
Lisboa ganhava tanto com aquelle tempo! E já Celorico, a
quinta, o padre Seraphim, lhe estendiam de longe a sua sombra n'alma.
Ao baixar os olhos viu o dog-cart de Carlos atrellado com a
Tunante, que escarvava a
calçada animada pelo ar vivo. Era Carlos decerto que ia
sahir cedo—para não se encontrar com elle e com o
avô!
N'um receio de o não apanhar n'esse dia, desceu correndo.
Carlos aferrolhára-se na alcova de banho. Ega chamou, o
outro não tugiu. Por fim Ega bateu, gritou
através da porta, sem esconder a sua
irritação:
—Tem a bondade d'escutar!... Então partes para Santa
Olavia, ou quê?
Depois d'um instante, Carlos lançou de lá, entre
um rumor d'agua que cahia:
—Não sei... Talvez... Logo te digo...
O outro não se conteve mais:
—É que se não pôde ficar assim
eternamente... Recebi uma carta de minha mãi... E se
não partes para Santa Olavia, eu vou para Celorico...
É absurdo! Já estamos n'isto ha tres dias!
E quasi se arrependia já da sua violencia, quando a voz de
Carlos se arrastou de dentro, humilde e cansada, n'uma supplica:
[458]
—Por quem és, Ega! Tem um bocado de paciencia commigo. Eu
logo te digo...
N'uma d'aquellas subitas emoções de nervoso, que
o sacudiam—os olhos do Ega humedeceram. Balbuciou logo:
—Bem, bem! Eu fallei alto por ser através da porta...
Não ha pressa!
E fugiu para o quarto, cheio só de compaixão e
ternura, com uma grossa lagrima nas pestanas. Sentia agora bem a
tortura em que o pobre Carlos se debatera, sob o despotismo d'uma
paixão até
ahi legitima, e que n'uma hora amarga se tornava de repente monstruosa,
sem nada perder de seu encanto e da sua intensidade... Humano e fragil,
elle não pudera estacar n'aquelle violento impulso de amor e
de desejo que o levava como n'um vendaval! Cedera, cedera,
continuára a rolar áquelles braços,
que innocentemente o continuavam a chamar. E ahi andava agora,
aterrado, escorraçado, fugindo occultamente de casa,
passando o dia longe dos seus, n'uma vadiagem tragica, como um
excommungado que receia encontrar olhos puros onde sinta o horror do
seu peccado... E ao lado, o pobre Affonso, sabendo tudo, morrendo
d'aquella dôr! Podia elle, hospede querido dos tempos
alegres, partir, agora que uma onda de desgraça
quebrára sobre essa casa, onde o acolhiam
affeições mais largas que na sua propria? Seria
ignobil! Tornou logo a desfazer a mala; e, furioso no seu egoismo com
todas aquellas amarguras que o abalavam,
[459]
arranjava outra vez a roupa
dentro da commoda, com a mesma cólera com que a
desmanchára, rosnando:
—Diabo levem as mulheres, e a vida, e tudo!...
Quando desceu, já vestido, Carlos desapparecera! Mas
Baptista, tristonho, carrancudo, certo agora de que havia um grande
desgosto, deteve-o para lhe murmurar:
—Tinha v. exc.
a razão... Partimos
ámanhã para Santa Olavia e levamos roupa para
muito tempo... Este inverno começa mal!
N'essa madrugada, ás quatro horas, em plena
escuridão, Carlos cerrára de manso o
portão da rua de S. Francisco. E, mais pungente,
apoderava-se d'elle, na frialdade da rua, o medo que já o
roçára, ao vestir-se na penumbra do quarto, ao
lado de Maria adormecida—o medo de voltar ao Ramalhete! Era esse medo
que já na vespera o trouxera todo o dia por fóra
no dog-cart, findando por jantar lugubremente com o Cruges, escondido
n'um gabinete do Augusto. Era medo do avô, medo do Ega, medo
do Villaça; medo d'aquella sineta do jantar que os chamava,
os juntava; medo do seu quarto, onde a cada momento qualquer d'elles
podia erguer o reposteiro, entrar, cravar os olhos na sua alma e no seu
segredo... Tinha agora a certeza
que
[460]
elles sabiam tudo. E mesmo que
n'essa noite fugisse para Santa Olavia, pondo entre si e Maria uma
separação tão alta como o muro d'um
claustro, nunca mais do espirito d'aquelles homens, que eram os seus
amigos melhores, sahiria a memoria e a dôr da infamia em que
elle se despenhára. A sua vida moral estava estragada...
Então, para que
partiria—abandonando a paixão, sem que por isso encontrasse
a paz? Não seria mais logico calcar desesperadamente todas
as leis humanas e divinas, arrebatar para longe Maria na sua
innocencia, e para todo o sempre abysmar-se n'esse crime que se
tornára a sua sombria partilha na terra?
Já assim pensára na vespera. Já assim
pensára... Mas antevira então um outro horror, um
supremo castigo, a esperal-o na solidão onde se sepultasse.
Já lhe percebera mesmo a aproximação;
já n'outra noite recebera d'elle um arrepio; já
n'essa noite, deitado junto de Maria, que adormecera cansada, o
presentira, apoderando-se d'elle, com um primeiro frio d'agonia.
Era, surgindo do fundo do seu sêr, ainda tenue mas
já perceptivel, uma saciedade, uma repugnancia por ella
desde que a sabia do seu sangue!... Uma repugnancia material, carnal,
á flôr da pelle, que
passava como um arrepio. Fôra primeiramente aquelle aroma que
a envolvia, fluctuava entre os cortinados, lhe ficava a elle na pelle e
no fato, o excitava tanto outr'ora, o impacientava tanto agora—que
ainda na vespera se encharcára em agua de Colonia
[461]
para o dissipar. Fôra depois
aquelle corpo d'ella, adorado sempre como um marmore ideal, que de
repente lhe apparecera, como era na sua realidade, forte de mais,
musculoso, de grossos membros de Amazona barbara, com todas as bellezas
copiosas do animal de prazer. Nos seus cabellos d'um lustre
tão macio, sentia agora inesperadamente uma rudeza de juba.
Os seus movimentos na cama, ainda n'essa noite, o tinham assustado como
se fossem os de uma fera, lenta e ciosa, que se estirava para o
devorar... Quando os seus braços o enlaçavam, o
esmagavam contra os seus rijos peitos tumidos de seiva, ainda decerto
lhe punham nas veias uma chamma que era toda bestial. Mas, apenas o
ultimo suspiro lhe morria nos labios, ahi começava
insensivelmente a recuar para a borda do colchão, com um
susto estranho: e immovel, encolhido na roupa, perdido no fundo d'uma
infinita tristeza, esquecia-se pensando n'uma outra vida que podia ter,
longe d'alli, n'uma casa simples, toda aberta ao sol, com sua mulher,
legitimamente sua, flôr de graça domestica,
pequenina, timida, pudica, que não soltasse aquelles gritos
lascivos, e não usasse esse aroma tão quente! E
desgraçadamente agora
já não duvidava... Se partisse com ella, seria
para bem cedo se debater no indizivel horror de um nojo physico. E que
lhe restaria então, morta a paixão
que fôra a desculpa do crime, ligado para sempre a uma mulher
que o enojava—e que era... Só lhe restava matar-se!
[462]
Mas, tendo por um só dia dormido com ella, na plena
consciencia da consanguinidade que os separava, poderia
recomeçar a vida tranquillamente? Ainda que possuisse frieza
e força para apagar dentro em si essa memoria—ella
não morreria no coração do
avô, e do seu amigo. Aquelle
ascoroso segredo ficaria entre elles, estragando, maculando tudo. A
existencia d'ora ávante só lhe offerecia
intoleravel amargôr... Que fazer, santo Deus, que fazer! Ah,
se alguem o podesse aconselhar, o podesse consolar! Quando chegou
á porta de casa o seu desejo unico era atirar-se aos
pés d'um padre, aos pés d'um santo, abrir-lhe as
miserias do seu coração, implorar-lhe a
doçura da sua
misericordia! Mas ai! onde havia um santo?
Defronte do Ramalhete os candieiros ainda ardiam. Abriu de leve a
porta. Pé ante pé, subiu as escadas ensurdecidas
pelo velludo côr de cereja. No patamar tacteava, procurava a
vela—quando, através do reposteiro entreaberto, avistou uma
claridade que se movia no fundo do quarto. Nervoso, recuou, parou no
recanto. O clarão chegava, crescendo: passos lentos,
pesados, pisavam surdamente o tapete: a luz surgiu—e com ella o
avô em mangas de camisa, livido, mudo, grande, espectral.
Carlos não se moveu, suffocado; e os dois olhos do velho,
vermelhos, esgazeados, cheios de horror, cahiram sobre elle, ficaram
sobre elle, varando-o até ás profundidades
d'alma, lendo lá
o seu segredo. Depois, sem uma palavra, com a cabeça
[463]
branca a tremer, Affonso
atravessou o patamar, onde a luz sobre o velludo espalhava um tom de
sangue:—e os seus passos perderam-se no interior da casa, lentos,
abafados, cada vez mais sumidos, como se fossem os derradeiros que
devesse dar na vida!
Carlos entrou no quarto ás escuras, tropeçou n'um
sofá. E alli se deixou cahir, com a cabeça
enterrada nos braços, sem pensar, sem sentir, vendo o velho
livido passar, repassar diante d'elle como um longo phantasma, com a
luz avermelhada na mão. Pouco a pouco foi-o tomando um
cansaço, uma inercia, uma infinita lassidão da
vontade, onde um desejo apenas transparecia, se alongava—o desejo de
interminavelmente repousar algures n'uma grande mudez e n'uma grande
treva... Assim escorregou ao pensamento da morte. Ella seria a perfeita
cura, o asylo seguro. Porque não iria ao seu encontro?
Alguns grãos de laudano n'essa noite e penetrava na absoluta
paz...
Ficou muito tempo, embebendo-se n'esta idéa que lhe dava
allivio e consolo, como se, escorraçado por uma tormenta
ruidosa, visse diante dos seus passos abrir-se uma porta d'onde sahisse
calor e silencio. Um rumor, o chilrear d'um passaro na janella, fez-lhe
sentir o sol e o dia. Ergueu-se, despiu-se muito devagar, n'uma immensa
molleza. E mergulhou na cama, enterrou a cabeça no
travesseiro para recahir na doçura d'aquella inercia, que
era um antegosto da morte, e não sentir mais
[464]
nas horas que lhe restavam nenhuma luz,
nenhuma coisa da terra.
O sol ia alto, um barulho passou, o Baptista rompeu pelo quarto:
—Ó snr. D. Carlos, ó meu menino! O avô
achou-se mal no jardim, não dá accordo!...
Carlos pulou do leito, enfiando um paletot que agarrára. Na
ante-camara a governante, debruçada no corrimão,
gritava, afflicta:—«Adiante, homem de Deus, ao pé
da padaria, o snr. dr. Azevedo!» E um moço que
corria, com que esbarrou no corredor, atirou, sem parar:
—Ao fundo, ao pé da cascata, snr. D. Carlos, na mesa de
pedra!...
Affonso da Maia lá estava, n'esse recanto do quintal, sob os
ramos do cedro, sentado no banco de cortiça, tombado por
sobre a tosca mesa, com a face cahida entre os braços. O
chapéo desabado rolára para o chão;
nas costas, com a gola erguida, conservava o seu velho capote azul. Em
volta, nas folhas das camelias, nas aleas areadas, refulgia,
côr d'ouro, o sol fino d'inverno. Por entre as conchas da
cascata o fio d'agua punha o seu choro lento.
Arrebatadamente, Carlos levantára-lhe a face, já
rigida, côr de cera, com os olhos cerrados, e um fio de
sangue aos cantos da longa barba de
[465]
neve. Depois cahiu de joelhos no
chão humido, sacudia-lhe as mãos,
murmurando:—«Ó
avô! ó avô!»—Correu ao
tanque, borrifou-o d'agua:
—Chamem alguem! chamem alguem!
Outra vez lhe palpava o coração... Mas estava
morto. Estava morto, já frio, aquelle corpo que, mais velho
que o seculo, resistira tão formidavelmente, como um grande
roble, aos annos e aos vendavaes. Alli morrera solitariamente,
já o sol ia alto, n'aquella tosca mesa de pedra onde
deixára pender a cabeça cansada.
Quando Carlos se ergueu, Ega apparecia, esguedelhado, embrulhado no
robe-de-chambre. Carlos abraçou-se n'elle, tremendo todo,
n'um chôro despedaçado. Os criados em redor
olhavam, aterrados. E a governante, como tonta, entre as ruas de
roseiras, gemia com as mãos na
cabeça:—«Ai o meu rico senhor, ai o meu rico
senhor!»
Mas o porteiro, esbaforido, chegava com o medico, o dr. Azevedo, que
felizmente encontrára na rua. Era um rapaz, apenas sahido da
Escóla, magrinho e nervoso, com as pontas do bigode muito
frisadas. Deu em redor, atarantadamente, um comprimento aos criados, ao
Ega, e a Carlos, que procurava serenar com a face lavada de lagrimas.
Depois, tendo descalçado a luva, estudou todo o corpo de
Affonso com uma lentidão, uma minuciosidade que exagerava,
á medida que sentia em volta, mais anciosos e attentos
n'elle, todos aquelles olhos humedecidos. Por fim, diante de Carlos,
passando
[466]
nervosamente os dedos
no bigode, murmurou termos technicos... De resto, dizia, já
o collega se teria compenetrado de que tudo infelizmente
findára. Elle sentia das véras da alma o
desgosto... Se para alguma coisa fosse necessario, com o maximo
prazer...
—Muito agradecido a v. exc.
a, balbuciou Carlos.
Ega, em chinelas, deu alguns passos com o snr. dr. Azevedo, para lhe
indicar a porta do jardim.
Carlos no emtanto ficára defronte do velho, sem chorar,
perdido apenas no espanto d'aquelle brusco fim! Imagens do
avô, do avô vivo e forte, cachimbando ao canto do
fogão, regando de manhã as roseiras, passavam-lhe
n'alma, em tropel, deixando-lh'a cada vez mais dorida e negra... E era
então um desejo de findar tambem, encostar-se como elle
áquella mesa de pedra, e sem outro
esforço, nenhuma outra dôr da vida, cahir como
elle na sempiterna paz. Uma restea de sol, entre os ramos grossos do
cedro, batia a face morta de Affonso. No silencio os passaros, um
momento espantados, tinham recomeçado a chalrar. Ega veio a
Carlos, tocou-lhe no braço:
—É necessario leval-o para cima.
Carlos beijou a mão fria que pendia. E, devagar, com os
beiços a tremer, levantou o avô pelos hombros
carinhosamente. Baptista correra a ajudar; Ega, embaraçado
no seu largo roupão, segurava os pés do velho.
Através do jardim, do
terraço cheio de sol, do escriptorio onde a sua poltrona
[467]
esperava diante do lume
accêso, foram-o transportando n'um silencio só
quebrado pelos passos dos criados, que corriam a abrir as portas,
acudiam quando Carlos, na sua perturbação, ou o
Ega
fraquejavam sob o peso do grande corpo. A governante já
estava no quarto d'Affonso com uma colcha de sêda para
estender na singela cama de ferro, sem cortinado. E alli o depuzeram
emfim sobre as ramagens claras bordadas na sêda azul.
Ega accendera dois castiçaes de prata: a governante, de
joelhos á beira do leito, esfiava o rosario: e Mr. Antoine,
com o seu barrete branco de cozinheiro na mão,
ficára á porta,
junto d'um cesto que trouxera, cheio de camelias e palmas de estufa.
Carlos, no emtanto, movendo-se pelo quarto, com longos
soluços que o sacudiam, voltava a cada instante, n'uma
derradeira e absurda esperança, palpar as mãos ou
o coração do velho.
Com o jaquetão de velludilho, os seus grossos sapatos
brancos, Affonso parecia mais forte e maior, na sua rigidez, sobre o
leito estreito: entre o cabello de neve cortado á escovinha
e a longa barba desleixada, a pelle ganhára um tom de marfim
velho, onde as rugas tomavam a dureza d'entalhaduras a cinzel: as
palpebras engelhadas, de pestanas brancas, pousavam com a consolada
serenidade de quem emfim descança; e ao deitarem-no uma das
mãos
ficára-lhe aberta e posta sobre o
coração, na simples e natural attitude de quem
tanto pelo coração
vivêra!
Carlos perdia-se n'esta contemplação dolorosa.
[468]
E o seu desespero era que o
avô assim tivesse partido para sempre, sem que entre elles
houvesse um adeus, uma dôce palavra trocada. Nada! Apenas
aquelle olhar angustiado, quando passára com a vela
accêsa na mão. Já
então elle ia andando para a morte. O avô sabia
tudo, d'isso morrera! E esta certeza sem cessar lhe batia n'alma, com
uma longa pancada repetida e lugubre. O avô sabia tudo,
d'isso morrera!
Ega veio com um gesto indicar-lhe o estado em que estavam—elle de
robe-de-chambre, Carlos com o paletot sobre a camisa de dormir:
—É necessario descer, é necessario vestir-nos.
Carlos balbuciou:
—Sim, vamo-nos vestir...
Mas não se arredava. Ega levou-o brandamente pelo
braço. Elle caminhava como um somnambulo, passando o
lenço devagar pela testa e pela barba. E de repente no
corredor, apertando desesperadamente as mãos, outra vez
coberto de lagrimas, n'um agoniado desabafo de toda a sua culpa:
—Ega, meu querido Ega! O avô viu-me esta manhã
quando entrei! E passou, não me disse
nada... Sabia tudo, foi isso que o matou!...
Ega arrastou-o, consolou-o, repellindo tal idéa. Que tolice!
O avô tinha quasi oitenta annos, e uma doença de
coração... Desde a volta de
Santa Olavia, quantas vezes elles tinham fallado n'isso, aterrados! Era
absurdo ir agora fazer-se mais desgraçado com semelhante
imaginação!
[469]
Carlos murmurou, devagar, como para si mesmo, com os olhos postos no
chão:
—Não! É estranho, não me
faço mais desgraçado! Aceito isto como um
castigo... Quero que seja um castigo... E sinto-me só muito
pequeno, muito humilde diante de quem assim me castiga. Esta
manhã pensava em matar-me. E agora não!
É o meu castigo viver, esmagado para sempre... O que me
custa é que elle não me tivesse dito
adeus!!
De novo as lagrimas lhe correram, mas lentas, mansamente, sem
desespero. Ega levou-o para o quarto, como uma criança. E
assim o deixou a um canto do sofá, com o lenço
sobre a face, n'um
chôro contínuo e quieto, que lhe ia lavando,
alliviando o coração de todas as
angustias confusas e sem nome que n'esses dias derradeiros o traziam
suffocado.
Ao meio dia, em cima, Ega acabava de vestir-se quando
Villaça lhe rompeu pelo quarto de braços abertos.
—Então como foi isto, como foi isto?
Baptista mandára-o chamar pelo trintanario, mas o rapazola
pouco lhe soubera contar. Agora em baixo o pobre Carlos
abraçára-o, coitadinho, lavado em lagrimas, sem
poder dizer nada, pedindo-lhe só para se entender em tudo
com o Ega... E alli estava.
—Mas como foi, como foi, assim de repente?...
Ega contou, brevemente, como tinham encontrado
[470]
Affonso de manhã no
jardim, tombado para cima da mesa de pedra. Viera o dr. Azevedo, mas
tudo acabára!
Villaça levou as mãos á
cabeça:
—Uma coisa assim! Creia o amigo! Foi essa mulher, essa mulher que ahi
appareceu, que o matou! Nunca foi o mesmo depois d'aquelle abalo!
Não foi mais nada! Foi isso!
Ega murmurava, deitando machinalmente agua de Colonia no
lenço:
—Sim, talvez, esse abalo, e oitenta annos, e poucas cautelas, e uma
doença de
coração.
Fallaram então do enterro, que devia ser simples como
convinha áquelle homem simples. Para depositar o corpo,
emquanto não fosse trasladado para Santa Olavia, Ega
lembrára-se do jazigo do marquez.
Villaça coçava o queixo, hesitando:
—Eu tambem tenho um jazigo. Foi o proprio snr. Affonso da Maia que o
mandou erguer para meu pai, que Deus haja... Ora parece-me que por uns
dias ficava lá perfeitamente. Assim não se pedia
a ninguem, e eu tinha n'isso muita honra...
Ega concordou. Depois fixaram outros detalhes de convite, de hora, de
chave do caixão. Por fim Villaça, olhando o
relogio, ergueu-se com um grande suspiro:
—Bem, vou dar esses tristes passos! E cá
appareço logo, que o quero vêr pela ultima vez,
[471]
quando o tiverem vestido.
Quem me havia de dizer! Ainda antes de hontem a jogar com elle...
Até lhe ganhei tres mil reis, coitadinho!
Uma onda de saudade suffocou-o, fugiu com o lenço nos olhos.
Quando Ega desceu, Carlos, todo de luto, estava sentado á
escrivaninha, diante d'uma folha de papel. Immediatamente ergueu-se,
arrojou a penna.
—Não posso!... Escreve-lhe tu ahi, a ella, duas palavras.
Em silencio, Ega tomou a penna, redigiu um bilhete muito curto. Dizia:
«Minha senhora. O snr. Affonso da Maia morreu esta madrugada,
de repente, com uma apoplexia. V. exc.
a
comprehende que, n'este
momento, Carlos nada mais póde do que pedir-me para eu
transmittir a v. exc.
a esta
desgraçada noticia. Creia-me,
etc.» Não
o leu a Carlos. E como Baptista entrava n'esse momento, todo de preto,
com o almoço n'uma bandeja, Ega pediu-lhe para mandar o
trintanario com aquelle bilhete á rua de S. Francisco.
Baptista segredou sobre o hombro do Ega:
—É bom não esquecer as fardas de luto para os
criados...
—O snr. Villaça já sabe.
Tomaram chá á pressa em cima do taboleiro. Depois
Ega escreveu bilhetes a D. Diogo e ao Sequeira, os mais velhos amigos
d'Affonso: e davam duas horas quando chegaram os homens com o
caixão para amortalhar o corpo. Mas Carlos não
[472]
permittiu que
mãos mercenarias tocassem no avô. Foi elle e o
Ega, ajudados pelo Baptista, que, corajosamente, recalcando a
emoção sob o dever, o lavaram, o vestiram, o
depuzeram dentro do grande cofre de carvalho, forrado de setim claro,
onde Carlos collocou uma miniatura de sua avó Runa.
Á tarde, com auxilio de Villaça, que
voltára «para dar o ultimo olhar ao
patrão», desceram-no ao escriptorio, que Ega
não quizera alterar nem ornar, e que, com os damascos
escarlates, as estantes lavradas, os livros juncando a carteira de pau
preto, conservava a sua feição austera de paz
estudiosa. Sómente, para depôr o
caixão, tinham juntado duas largas mesas, recobertas por um
panno de velludo negro que havia na casa, com as armas bordadas a ouro.
Por cima o Christo de Rubens abria os braços sobre a
vermelhidão do poente. Aos lados ardiam doze
castiçaes de prata. Largas palmas d'estufa cruzavam-se
á cabeceira do esquife, entre ramos de camelias. E Ega
accendeu um pouco de incenso em dois perfumadores de bronze.
Á noite o primeiro dos velhos amigos a apparecer foi D.
Diogo, solemne, de casaca. Encostado ao Ega, aterrado diante do
caixão, só pôde
murmurar:—«E tinha menos sete mezes que eu!» O
marquez veio já tarde, abafado em mantas, trazendo um grande
cesto de flôres. Craft e o Cruges nada sabiam, tinham-se
encontrado na rampa de Santos;—e receberam a primeira surpreza ao
vêr fechado
[473]
o
portão do Ramalhete. O ultimo a chegar foi o Sequeira, que
passára o dia na quinta, e se abraçou em Carlos,
depois no Craft ao acaso, entontecido, com uma lagrima nos olhos
injectados, balbuciando:—«Foi-se o companheiro de muitos
annos. Tambem não tardo!...»
E a noite de vigilia e pezames começou, lenta e silenciosa.
As doze chammas das velas ardiam, muito altas, n'uma solemnidade
funeraria. Os amigos trocavam algum murmurio abafado, com as cadeiras
chegadas. Pouco a pouco, o calor, o aroma do incenso, a
exhalação das flôres
forçaram o Baptista a abrir uma das janellas do
terraço. O céo estava cheio d'estrellas. Um vento
fino susurrava nas ramagens do jardim.
Já tarde Sequeira, que não se movera d'uma
poltrona, com os braços cruzados, teve uma tontura. Ega
levou-o á sala de jantar, a reconfortal-o com um calice de
cognac. Havia lá uma ceia fria, com vinhos e
dôces. E Craft veio tambem—com o Taveira, que soubera a
desgraça na
redacção da
Tarde, e correra quasi sem jantar.
Tomando um pouco de Bordeus, uma
sandwich,
Sequeira reanimava-se, lembrava o passado, os tempos brilhantes, quando
Affonso e elle eram novos. Mas emmudeceu vendo apparecer Carlos,
pallido e vagaroso como um somnambulo, que balbuciou: «Tomem
alguma coisa, sim, tomem alguma coisa...»
Mexeu n'um prato, deu uma volta á mesa, sahiu. Assim
vagamente foi até á ante-camara, onde
[474]
todos os candelabros ardiam. Uma figura
esguia e negra surgiu da escada. Dois braços
enlaçaram-no.
Era o Alencar.
—Nunca vim cá nos dias felizes, aqui estou na hora triste!
E o poeta seguiu pelo corredor, em pontas de pés, como pela
nave d'um templo.
Carlos no emtanto deu ainda alguns passos pela ante-camara. Ao canto
d'um divan ficára um grande cesto com uma corôa de
flôres, sobre que pousava uma carta. Reconheceu a letra de
Maria. Não lhe tocou, recolheu ao escriptorio. Alencar,
diante do caixão, com a mão pousada no hombro do
Ega, murmurava: «Foi-se uma alma de heroe!»
As velas iam-se consumindo. Um cansaço pesava. Baptista fez
servir café no bilhar. E ahi, apenas recebeu a sua chavena,
Alencar, cercado do Cruges, do Taveira, do Villaça, rompeu a
fallar tambem do passado, dos tempos brilhantes d'Arroios, dos rapazes
ardentes d'então:
—Vejam vocês, filhos, se se encontra ainda uma gente como
estes Maias, almas de leões, generosos, valentes!... Tudo
parece ir morrendo n'este desgraçado paiz!... Foi-se a
faisca, foi-se a
paixão... Affonso da Maia! Parece que o estou a
vêr, á janella do palacio em Bemfica, com a sua
grande gravata de setim, aquella cara nobre de portuguez d'outr'ora...
E lá vai! E o meu pobre Pedro tambem... Caramba,
até se me faz a alma negra!
[475]
Os olhos ennevoavam-se-lhe, deu um immenso sorvo ao cognac.
Ega, depois de beber um gole de café, voltára ao
escriptorio, onde o cheiro d'incenso espalhava uma melancolia de
capella. D. Diogo, estirado no sofá, resonava; Sequeira
defronte dormitava tambem, descahido sobre os braços
cruzados, com todo o sangue na face. Ega despertou-os de leve. Os dois
velhos amigos, depois d'um abraço a Carlos, partiram na
mesma carruagem, com os charutos accêsos. Os outros, pouco a
pouco, iam tambem abraçar Carlos, enfiavam os paletots. O
ultimo a sahir foi Alencar, que, no pateo, beijou o Ega, n'um impulso
d'emoção, lamentando ainda o passado, os
companheiros desapparecidos:
—O que me vale agora são vocês, rapazes, a gente
nova. Não me deitem á margem!
Senão, caramba, quando quizer fazer uma visita tenho d'ir ao
cemiterio. Adeus, não apanhes frio!
O enterro foi ao outro dia, á uma hora. O Ega, o marquez, o
Craft, o Sequeira levaram o caixão
até á porta, seguidos pelo grupo d'amigos, onde
destacava o conde de Gouvarinho, solemnissimo, de gran-cruz. O conde de
Steinbroken, com o seu secretario, trazia na mão uma
corôa de violetas. Na calçada estreita os trens
apertavam-se,
n'uma longa fila
que subia, se perdia pelas outras ruas, pelas
travessas: em todas as janellas do bairro se apinhava gente: os
policias berravam com os cocheiros. Por fim o carro, muito simples,
rodou, seguido por
[476]
duas
carruagens da casa, vazias, com as lanternas recobertas de longos
véos de crepe que pendiam. Atraz, um a um, desfilaram os
trens da Companhia com os convidados, que abotoavam os casacos, corriam
os vidros contra a friagem do dia ennevoado. O Darque e o Vargas iam no
mesmo coupé. O correio do Gouvarinho passou choutando na sua
pileca branca. E, sobre a rua deserta, cerrou-se finalmente para um
grande luto o portão do Ramalhete.
Quando Ega voltou do cemiterio encontrou Carlos no quarto, rasgando
papeis, emquanto o Baptista, atarefado, de joelhos no tapete, fechava
uma mala de couro. E como Ega, pallido e arrepiado de frio, esfregava
as mãos, Carlos fechou a gaveta cheia de cartas, lembrou que
fossem para o
fumoir onde havia lume.
Apenas lá entraram, Carlos correu o reposteiro, olhou para o
Ega:
—Tens duvida em lhe ir fallar, a ella?
—Não. Para que?... Para lhe dizer o que?
—Tudo.
Ega rolou uma poltrona para junto da chaminé, despertou as
brazas. E Carlos, ao lado, proseguiu devagar, olhando o lume:
—Além d'isso, desejo que ella parta, que parta
já para Paris... Seria absurdo ficar em Lisboa... Emquanto
se não liquidar o que lhe pertence, ha-de-se-lhe estabelecer
uma mezada, uma larga mezada... Villaça vem d'aqui a bocado
para fallar d'esses
[477]
detalhes... Em todo o caso, ámanhã, para
ella partir, levas-lhe quinhentas libras.
Ega murmurou:
—Talvez para essas questões de dinheiro fosse melhor ir
lá o Villaça...
—Não, pelo amor de Deus! Para que se ha de fazer
córar a pobre creatura diante do
Villaça?...
Houve um silencio. Ambos olhavam a chamma clara que bailava.
—Custa-te muito, não é verdade, meu pobre
Ega?...
—Não... Começo a estar embotado. É
fechar os olhos, tragar mais essa má hora, e depois
descansar. Quando voltas tu de Santa Olavia?
Carlos não sabia. Contava que Ega, terminada essa
missão á rua de S. Francisco, fosse
aborrecer-se uns dias com elle a Santa Olavia. Mais tarde era
necessario trasladar para lá o corpo do avô...
—E passado isso, vou viajar... Vou á America, vou ao
Japão, vou fazer esta coisa estupida e sempre efficaz que se
chama
distrahir...
Encolheu os hombros, foi devagar até á janella,
onde morria pallidamente um raio de sol na tarde que
clareára. Depois voltando para o Ega, que de novo remexia os
carvões:
—Eu, está claro, não me atrevo a dizer-te que
venhas, Ega... Desejava bem, mas não me atrevo!
Ega pousou devagar as tenazes, ergueu-se, abriu os braços
para Carlos, commovido:
[478]
—Atreve, que diabo... Porque não?
—Então vem!
Carlos puzera n'isto toda a sua alma. E ao abraçar o Ega
corriam-lhe na face duas grandes lagrimas.
Então Ega reflectiu. Antes de ir a Santa Olavia precisava
fazer uma romagem á quinta de Celorico. O Oriente era caro.
Urgia pois arrancar á mãi algumas letras de
credito... E como Carlos pretendia ter «bastante para o luxo
d'ambos», Ega atalhou muito sério:
—Não, não! Minha mãi tambem
é rica. Uma viagem á America e ao
Japão são
fórmas de educação. E a
mamã tem o dever de completar a minha
educação. O que acceito, sim, é uma
das tuas malas de couro...
Quando n'essa noite, acompanhados pelo Villaça, Carlos e Ega
chegaram á estação de
Santa Apolonia, o comboio ia partir. Carlos mal teve tempo de saltar
para o seu compartimento reservado—emquanto o Baptista,
abraçado ás mantas de viagem, empurrado pelo
guarda, se içava desesperadamente para outra carruagem,
entre os protestos dos sujeitos que a atulhavam. O trem immediatamente
rolou. Carlos debruçou-se á portinhola, gritando
ao Ega:—«Manda um telegramma ámanhã a
dizer o que houve!»
Recolhendo ao Ramalhete com o Villaça, que ia n'essa noite
colligir e sellar os papeis de Affonso da Maia, Ega fallou logo nas
quinhentas libras
[479]
que
elle devia entregar na manhã seguinte a Maria Eduarda.
Villaça recebera com effeito essa ordem de Carlos. Mas
francamente, entre amigos, não lhe parecia excessiva a
somma, para uma jornada? Além d'isso Carlos
fallára em estabelecer a essa senhora uma mezada de quatro
mil francos, cento e sessenta libras! Não achava tambem
exagerado? Para uma mulher, uma simples mulher...
Ega lembrou que essa simples mulher tinha direito legal a muito mais...
—Sim, sim, resmungou o procurador. Mas tudo isso de legalidade tem
ainda de ser muito estudado. Não fallemos n'isso. Eu nem
gósto de fallar d'isso!...
Depois como Ega alludia á fortuna que deixava Affonso da
Maia—Villaça deu detalhes. Era decerto uma das boas casas
de Portugal. Só o que viera da herança de
Sebastião da Maia,
representava bem quinze contos de renda. As propriedades do Alemtejo,
com os trabalhos que lá fizera o pai d'elle
Villaça, tinham triplicado de valor. Santa Olavia era uma
despeza. Mas as quintas ao pé de Lamego, um condado.
—Ha muito dinheiro! exclamou elle com
satisfação, batendo no joelho do Ega. E isto,
amigo, digam lá o que disserem, sempre consola de tudo.
—Consola de muito, com effeito.
Ao entrar no Ramalhete, Ega sentia uma longa saudade pensando no lar
feliz e amavel que alli houvera e que para sempre se
apagára. Na ante-camara,
[480]
os seus passos
já lhe pareceram soar tristemente como os que se
dão n'uma casa abandonada. Ainda errava um vago cheiro de
incenso e de phenol. No lustre do corredor havia uma luz só
e dormente.
—Já anda aqui um ar de ruina, Villaça.
—Ruinasinha bem confortavel, todavia! murmurou o procurador dando um
olhar ás tapeçarias e aos divans, e esfregando as
mãos, arrepiado da friagem da noite.
Entraram no escriptorio de Affonso, onde durante um momento se ficaram
aquecendo ao lume. O relogio Luiz XV bateu finalmente as nove
horas—depois a toada argentina do seu minuete vibrou um instante e
morreu. Villaça preparou-se para
começar a sua tarefa. Ega declarou que ia para o quarto
arranjar tambem a sua papelada, fazer a limpeza final de dois annos de
mocidade...
Subiu. E pousára apenas a luz sobre a commoda, quando sentiu
ao fundo, no silencio do corredor, um gemido longo, desolado, d'uma
tristeza infinita. Um terror arrepiou-lhe os cabellos. Aquillo
arrastava-se, gemia no escuro, para o lado dos aposentos d'Affonso da
Maia. Por fim, reflectindo que toda a casa estava acordada, cheia de
criados e de luzes, Ega ousou dar alguns passos no corredor, com o
castiçal na mão tremula.
Era o gato! Era o reverendo Bonifacio, que, diante do quarto d'Affonso,
arranhando a porta fechada, miava doloridamente. Ega
escorraçou-o, furioso.
[481]
O pobre Bonifacio fugiu,
obeso e lento, com a cauda fôfa a roçar o
chão: mas voltou
logo, e esgatanhando a porta, roçando-se pelas pernas do
Ega, recomeçou a miar, n'um lamento agudo, saudoso como o
d'uma dôr humana, chorando o dono perdido que o acariciava no
collo e que não
tornára a apparecer.
Ega correu ao escriptorio a pedir ao Villaça que dormisse
essa noite no Ramalhete. O procurador accedeu, impressionado com
aquelle horror do gato a chorar. Deixára o montão
de papeis sobre a mesa, voltára a aquecer os pés
ao lume dormente. E voltando-se para o Ega, que se sentára,
ainda todo pallido, no sofá bordado a matiz, antigo logar de
D. Diogo, murmurou devagar, gravemente:
—Ha tres annos, quando o snr. Affonso me encommendou aqui as primeiras
obras, lembrei-lhe eu que, segundo uma antiga lenda, eram sempre fataes
aos Maias as paredes do Ramalhete. O snr. Affonso da Maia riu d'agouros
e lendas... Pois fataes foram!
No dia seguinte, levando os papeis da Monforte e o dinheiro em letras e
libras que Villaça lhe entregára á
porta do Banco de Portugal, Ega, com o coração
aos pulos, mas decidido a ser forte, a affrontar a crise serenamente,
subia ao primeiro andar da rua de S. Francisco. O Domingos, de
[482]
gravata preta, movendo-se em
pontas de pés, abriu o reposteiro da sala. E Ega
pousára apenas sobre o sofá a velha caixa de
charutos da Monforte—quando Maria Eduarda entrou, pallida, toda
coberta de negro, estendendo-lhe as mãos ambas.
—Então Carlos?
Ega balbuciou:
—Como v. exc.
a póde imaginar, n'um
momento d'estes... Foi
horrivel, assim de surpreza...
Uma lagrima tremeu nos olhos pisados de Maria. Ella não
conhecia o snr. Affonso da Maia, nem sequer o vira nunca. Mas soffria
realmente por sentir bem o soffrimento de Carlos... O que aquelle rapaz
estremecia o avô!
—Foi de repente, não?
Ega retardou-se em longos detalhes. Agradeceu a corôa que
ella mandára. Contou os gemidos, a
afflicção do pobre Bonifacio...
—E Carlos? repetiu ella.
—Carlos foi para Santa Olavia, minha senhora.
Ella apertou as mãos, n'uma surpreza que a acabrunhava. Para
Santa Olavia! E sem um bilhete, sem uma palavra?... Um terror
empallidecia-a mais, diante d'aquella partida tão
arrebatada, quasi parecida com um abandono. Terminou por murmurar, com
um ar de resignação e de confiança
que não sentia:
—Sim, com effeito, n'este momento não se pensa nos
outros...
Duas lagrimas corriam-lhe devagar pela face.
[483]
E diante d'esta dôr, tão humilde e tão
muda, Ega ficou desconcertado. Durante um instante, com os dedos
tremulos no bigode, viu Maria chorar em silencio. Por fim ergueu-se,
foi á janella, voltou, abriu os braços diante
d'ella n'uma
afflicção:
—Não, não é isso, minha querida
senhora! Ha outra coisa, ha ainda outra coisa! Tem sido para
nós dias terriveis! Tem sido dias d'angustia...
Outra coisa!?... Ella esperava, com os olhos largos sobre o Ega, a alma
toda suspensa.
Ega respirou fortemente:
—V. exc.
a lembra-se d'um Guimarães,
que vive em Paris, um
tio do Damaso?
Maria, espantada, moveu lentamente a cabeça.
—Esse Guimarães era muito conhecido da mãi de v.
exc.
a, não é verdade?
Ella teve o mesmo movimento breve e mudo. Mas o pobre Ega hesitava
ainda, com a face arrepanhada e branca, n'um embaraço que o
dilacerava:
—Eu fallo em tudo isto, minha senhora, porque Carlos assim me pediu...
Deus sabe o que me custa!... E é horrivel, nem sei por onde
hei de
começar...
Ella juntou as mãos, n'uma supplica, n'uma angustia:
—Pelo amor de Deus!
E n'esse instante, muito socegadamente, Rosa erguia uma ponta do
reposteiro, com
Niniche ao lado e a sua boneca nos
braços. A mãi teve um grito impaciente:
[484]
—Vai lá p'ra dentro! deixa-me!
Assustada, a pequena não se moveu mais, com os lindos olhos
de repente cheios de agua. O reposteiro cahiu, do fundo do corredor
veio um grande chôro magoado.
Então Ega teve só um desejo, o desesperado desejo
de findar.
—V. exc.
a conhece a letra de sua
mãi, não
é verdade?... Pois bem! Eu trago aqui uma
declaração d'ella a seu respeito... Esse
Guimarães é que tinha este documento, com outros
papeis que ella lhe entregou em 71, nas vesperas da guerra... Elle
conservou-os até agora, e queria restituir-lh'os, mas
não sabia onde v. exc.
a vivia. Viu-a
ha dias n'uma
carruagem, commigo, e com o Carlos... Foi ao pé do Aterro,
v. exc.
a deve lembrar-se, defronte do alfaiate,
quando vinhamos da
Toca... Pois bem! o
Guimarães veio immediatamente ao procurador dos Maias,
deu-lhe esses papeis, para que os entregasse a v. exc.
a...
E nas
primeiras palavras que disse, imagine o assombro de todos, quando se
entreviu que v. exc.
a era parenta de Carlos, e
parenta muito
chegada...
Atabalhoára esta historia de pé, quasi d'um
fôlego, com bruscos gestos de nervoso. Ella mal comprehendia,
livida, n'um indefinido terror. Só pôde murmurar
muito debilmente: «Mas...»
E de novo emmudeceu, assombrada, devorando os movimentos do Ega que,
debruçado sobre o sofá, desembrulhava
a tremer a caixa de charutos da Monforte.
[485]
Por fim voltou para ella com um
papel na mão, atropellando as palavras n'uma debandada:
—A mãi de v. exc.
a nunca lh'o
disse... Havia um motivo
muito grave... Ella tinha fugido de Lisboa, fugido ao marido... Digo
isto assim brutalmente, perdôe-me v. exc.
a,
mas
não é o
momento de attenuar as coisas... Aqui está! V. exc.^a
conhece a letra de sua mãi. É d'ella esta letra,
não é verdade?
—É! exclamou Maria, indo arrebatar o papel.
—Perdão! gritou Ega, retirando-lh'o violentamente. Eu sou
um estranho! E v. exc.
a não se
póde inteirar de
tudo isto emquanto eu não sahir d'aqui.
Fôra uma inspiração providencial, que o
salvava de testemunhar o choque terrivel, o horror das coisas que ella
ia saber. E insistiu. Deixava-lhe alli todos os papeis que eram de sua
mãi. Ella lería, quando elle sahisse, comprehenderia a realidade
atroz... Depois, tirando do bolso os dois pesados rôlos de
libras, o sobrescripto que continha a letra sobre Paris, pôz
tudo em cima da mesa, com a declaração da
Monforte.
—Agora só mais duas palavras. Carlos pensa que o que v.
exc.
a deve fazer já é
partir para
Paris. V. exc.
a tem direito, como sua filha ha
de ter, a uma parte da
fortuna d'esta familia dos Maias, que agora é a sua...
N'este masso que lhe deixo está uma letra sobre Paris para
as despezas immediatas... O procurador de Carlos tomou já um
wagon-salão.
[486]
Quando v. exc.
a decidir partir,
peço-lhe que mande um recado ao Ramalhete para eu estar na
gare... Creio que
é tudo. E agora devo deixal-a...
Agarrára rapidamente o chapéo, veio tomar-lhe a
mão inerte e fria:
—Tudo é uma fatalidade! V. exc.
a
é nova, ainda
lhe resta muita coisa na vida, tem a sua filha a consolal-a de tudo...
Nem lhe sei dizer mais nada!
Suffocado, beijou-lhe a mão que ella lhe abandonou, sem
consciencia e sem voz, de pé, direita no seu negro luto, com
a lividez parada d'um marmore. E fugiu.
—Ao telegrapho! gritou em baixo ao cocheiro.
Foi só na rua do Ouro que começou a serenar,
tirando o chapéo, respirando largamente. E ia
então repetindo a si mesmo todas as
consolações que se poderiam dar a Maria Eduarda:
era nova e formosa; o seu peccado fôra inconsciente; o tempo
acalma toda a dôr; e em breve, já resignada,
encontrar-se-hia com uma familia séria, uma larga
fortuna, n'esse amavel Paris, onde uns lindos olhos, com algumas notas
de mil francos, têm sempre um reinado seguro...
—É uma situação de viuva bonita e
rica, terminou elle por dizer alto no coupé. Ha peor na
vida.
Ao sahir do telegrapho despediu a tipoia. Por aquella luz consoladora
do dia de inverno, recolheu a pé para o Ramalhete, a
escrever a longa
[487]
carta que promettera a Carlos. Villaça já
lá estava installado, com um boné de velludilho
na cabeça, emmassando ainda os papeis de Affonso, liquidando
as contas dos criados. Jantaram tarde. E fumavam junto do lume, na sala
Luiz XV, quando o escudeiro veio dizer que uma senhora, em baixo, n'uma
carruagem, procurava o snr. Ega. Foi um terror. Imaginaram logo Maria,
alguma resolução
desesperada. Villaça ainda teve a esperança
d'ella trazer alguma nova revelação, que tudo
mudasse, salvasse
da «bolada»... Ega desceu a tremer. Era Melanie
n'uma tipoia de praça, abafada n'uma grande
ulster, com uma carta de Madame.
Á luz da lanterna Ega abriu o enveloppe, que trazia apenas
um cartão branco, com estas palavras a lapis:
«Decidi partir ámanhã para
Paris.»
Ega recalcou a curiosidade de saber como estava a senhora. Galgou logo
as escadas: e seguido de Villaça, que ficára na
ante-camara
á espreita, correu ao escriptorio d'Affonso, a escrever a
Maria. N'um papel tarjado de luto dizia-lhe (além de
detalhes sobre bagagens)—que o wagon-salão estava tomado
até Paris, e que elle teria a honra de a vêr em
Santa Apolonia. Depois, ao fazer o sobrescripto, ficou com a penna no
ar, n'um embaraço. Devia pôr «Madame
Mac-Gren» ou
«D. Maria Eduarda da Maia?» Villaça
achava preferivel o antigo nome, porque ella legalmente ainda
não era Maia. Mas, dizia o Ega atrapalhado, tambem
já não era Mac-Gren...
[488]
—Acabou-se! Vae sem nome. Imagina-se que foi esquecimento...
Levou assim a carta, dentro do sobrescripto em branco. Melanie
guardou-a no regalo. E, debruçada á portinhola,
entristecendo a voz, desejou saber, da parte de Madame, onde estava
enterrado o avô do senhor...
Ega ficou com o monoculo sobre ella, sem sentir bem se aquella
curiosidade de Maria era indiscreta ou tocante. Por fim deu uma
indicação. Era nos Prazeres, á
direita, ao fundo, onde havia um anjo com uma tocha. O melhor seria
perguntar ao guarda pelo jazigo dos snrs. Villaças.
—Merci, monsieur, bien le bonsoir.
—Bonsoir, Melanie!
No dia seguinte, na estação de Santa Apolonia,
Ega, que viera cedo com o Villaça, acabava de despachar a
sua bagagem para o Douro, quando avistou Maria que entrava trazendo
Rosa pela mão. Vinha toda envolta n'uma grande
pelliça escura, com um véo dobrado, espesso como
uma mascara: e a mesma gaze de luto escondia o rostosinho da pequena,
fazendo-lhe um laço sobre a touca. Miss Sarah, n'uma
ulster clara de
quadrados, sobraçava um masso de livros. Atraz o Domingos,
com os olhos muito vermelhos, segurava um rôlo de mantas, ao
lado de Melanie carregada de preto que levava
Niniche ao collo. Ega correu
para Maria Eduarda, conduziu-a pelo braço, em silencio, ao
wagon-salão que tinha todas as cortinas cerradas.
[489]
Junto do estribo ella tirou devagar a
luva. E muda, estendeu-lhe a mão.
—Ainda nos vemos no Entroncamento, murmurou Ega. Eu sigo tambem para o
Norte.
Alguns sujeitos pararam, com curiosidade, ao vêr sumir-se
n'aquella carruagem de luxo, fechada, mysteriosa, uma senhora que
parecia tão bella, d'ar tão triste, coberta de
negro. E apenas Ega fechou a portinhola, o Neves, o da
Tarde e do Tribunal de Contas,
rompeu d'entre um rancho, arrebatou-lhe o braço com
sofreguidão:
—Quem é?
Ega arrastou-o pela plataforma, para lhe deixar cahir no ouvido,
já muito adiante, tragicamente:
—Cleopatra!
O politico, furioso, ficou rosnando: «Que asno!...»
Ega abalára. Junto do seu compartimento Villaça
esperava, ainda deslumbrado com aquella figura de Maria Eduarda,
tão melancolica e nobre. Nunca a vira antes. E parecia-lhe
uma rainha de romance.
—Acredite o amigo, fez-me impressão! Caramba, bella mulher!
Dá-nos uma bolada, mas é uma soberba
praça!
O comboio partiu. O Domingos ficava choramingando com um
lenço de côres sobre a face. E o Neves, o
conselheiro do Tribunal de Contas, ainda furioso, vendo o Ega
á portinhola, atirou-lhe de lado,
disfarçadamente, um gesto obsceno.
No Entroncamento Ega veio bater nos vidros
[490]
do salão que se
conservava fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia. Miss Sarah
lia a um canto, com a cabeça n'uma almofada. E
Niniche assustada ladrou.
—Quer tomar alguma coisa, minha senhora?
—Não, obrigada...
Ficaram calados, emquanto Ega com o pé no estribo tirava
lentamente a charuteira. Na
estação mal alumiada passavam saloios, devagar,
abafados em mantas. Um guarda rolava uma carreta de fardos. Adiante a
machina resfolegava na sombra. E dois sujeitos rondavam em frente do
salão, com olhares curiosos e já languidos para
aquella magnifica mulher, tão grave e sombria, envolta na
sua pelliça negra.
—Vai para o Porto? murmurou ella.
—Para Santa Olavia...
—Ah!
Então Ega balbuciou com os beiços a tremer:
—Adeus!
Ella apertou-lhe a mão com muita força, em
silencio, suffocada.
Ega atravessou, devagar, por entre soldados de capote enrolado a
tiracollo que corriam a beber á cantina. Á porta
do buffete voltou-se ainda, ergueu o chapéo. Ella, de
pé, moveu de leve o
braço n'um lento adeus. E foi assim que elle pela derradeira
vez na vida viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade,
á portinhola d'aquelle wagon que para sempre a levava.
VIII
Semanas depois, nos primeiros dias d'anno novo, a
Gazeta Illustrada trazia na
sua columna do
High-life esta
noticia:
« O distincto e brilhante
sportman, o snr. Carlos da Maia, e o
nosso amigo e collaborador João da Ega, partiram hontem para
Londres, d'onde seguirão em breve para a America do Norte,
devendo d'ahi prolongar a sua interessante viagem até ao
Japão.
Numerosos amigos foram a bordo do
Tamar despedir-se dos sympathicos
touristes. Vimos entre outros os
snrs, ministro da Filandia e seu secretario, o marquez de Souzella,
conde de Gouvarinho, visconde de Darque, Guilherme Craft, Telles da
Gama, Cruges, Taveira, Villaça, general Sequeira, o glorioso
poeta Thomaz d'Alencar,
[492]
etc. etc. O nosso amigo e collaborador João da Ega fez-nos,
no ultimo
shake-hands, a promessa de nos
mandar algumas cartas com as suas impressões do
Japão, esse delicioso paiz d'onde nos vem o sol e a moda!
É uma boa nova para todos os que prezam a
observação e o espirito.
Au
revoir!»
Depois d'estas linhas affectuosas (em que o Alencar
collaborára) as primeiras noticias dos
«viajantes» vieram, n'uma carta do Ega para o
Villaça, de New-York. Era curta, toda de negocios. Mas elle
ajuntava um
post-scriptum
com o titulo de
Informações
geraes para os
amigos. Contava ahi a medonha travessia desde
Liverpool, a persistente tristeza de Carlos, e New-York coberta de neve
sob um sol rutilante. E acrescentava ainda:
«Está-se apossando de nós a embriaguez
das viagens, decididos a trilhar este estreito Universo até
que
cancem as nossas
tristezas. Planeamos ir a Pekin, passar a Grande
Muralha, atravessar a Asia Central, o oasis de Merv, Khiva, e penetrar
na Russia; d'ahi, pela Armenia e pela Syria, descer ao Egypto a
retemperar-nos no sagrado Nilo; subir depois a Athenas,
lançar sobre a Acropole uma saudação a
Minerva; passar a Napoles; dar um olhar a Argelia e a Marrocos; e cahir
emfim ao comprido em Santa Olavia lá para os meados de 79 a
descançar os membros fatigados. Não escrevinho
mais porque é tarde, e vamos á Opera
vêr a Patti no
Barbeiro. Larga
[493]
distribuição
d'abraços a todos os
amigos queridos»
Villaça copiou este paragrapho, e trazia-o na carteira para
mostrar aos fieis amigos do Ramalhete. Todos approvaram, com
admiração, tão
bellas, aventurosas jornadas. Só Cruges, aterrado com
aquella vastidão do Universo, murmurou tristemente:
«Não voltam cá!»
Mas, passado anno e meio, n'um lindo dia de março, Ega
reappareceu no Chiado. E foi uma
sensação! Vinha esplendido, mais forte, mais
trigueiro, soberbo de
verve, n'um
alto apuro de
toilette, cheio de historias e de aventuras do Oriente, não
tolerando nada em arte ou poesia que não fosse do
Japão ou da China, e annunciando um grande livro, o
«seu livro», sob este titulo grave de chronica
heroica—
Jornadas da Asia.
—E Carlos?...
—Magnifico! Installado em Paris, n'um delicioso appartamento dos
Campos-Elyseos, fazendo a vida larga d'um principe artista da
Renascença...
Ao Villaça porém, que sabia os segredos, Ega
confessou que Carlos ficára ainda
abalado. Vivia, ria, governava o seu
phaeton no Bois—mas lá no fundo do seu
coração permanecia, pesada e negra, a memoria da
«semana terrivel».
—Todavia os annos vão passando,
Villaça, acrescentou elle. E com os annos, a não
ser a China, tudo na terra passa...
E esse anno passou. Gente nasceu, gente morreu.
[494]
Searas amadureceram, arvoredos
murcharam. Outros annos passaram.
Nos fins de 1886, Carlos veio fazer o Natal perto de Sevilha, a casa
d'um amigo seu de Paris, o marquez de Villa-Medina. E d'essa
propriedade dos Villa-Medina, chamada
La
Soledad, escreveu para Lisboa ao Ega annunciando
que—depois d'um exilio de quasi dez annos, resolvera vir ao velho
Portugal vêr as arvores de Santa Olavia e as maravilhas da
Avenida. De resto tinha uma formidavel nova, que assombraria o bom Ega:
e se elle já ardia em curiosidade, que viesse ao seu
encontro com o Villaça, comer o porco a Santa Olavia.
—Vae casar! pensou Ega.
Havia tres annos (desde a sua ultima estada em Paris) que elle
não via Carlos. Infelizmente não pôde
correr a Santa Olavia, retido n'um quarto
do
Braganza com uma angina, desde
uma ceia prodigiosamente divertida com que celebrára no
Silva a noite de Reis. Villaça, porém, levou a
Carlos para Santa Olavia uma carta em que o Ega, contando a sua angina,
lhe supplicava que se não retardasse com o porco n'esses
penhascos do Douro, e que voasse á grande Capital a trazer a
grande nova.
Com effeito, Carlos pouco se demorou em Rezende.
[495]
E n'uma luminosa e macia
manhã de janeiro de 1887, os dois amigos emfim juntos
almoçavam n'um salão do
Hotel
Braganza, com as duas janellas abertas para o rio.
Ega, já curado, radiante, n'uma
excitação que não se calmava,
alagando-se de café, entalava a cada instante o monoculo
para admirar Carlos e a sua «immutabilidade».
—Nem uma branca, nem uma ruga, nem uma sombra de fadiga!... Tudo isso
é Paris, menino!... Lisboa arraza. Olha para mim, olha para
isto!
Com o dedo magro apontava os dois vincos fundos ao lado do
nariz, na face chupada. E o que o aterrava sobretudo era a calva, uma
calva que começára havia dois annos,
alastrára,
já reluzia no alto.
—Olha este horror! A sciencia para tudo acha um remedio, menos para a
calva! Transformam-se as civilisações, a calva
fica!... Já
tem tons de bola de bilhar, não é verdade?... De
que
será?
—É a ociosidade, lembrou Carlos rindo.
—A ociosidade!... E tu, então?
De resto, que podia elle fazer n'este paiz?... Quando
voltára de França, ultimamente,
pensára em entrar na diplomacia. Para isso sempre tivera a
blague: e agora que a
mamã, coitada, lá estava no seu grande jazigo em Celorico,
tinha a
massa. Mas depois
reflectira. Por fim, em que consistia a diplomacia portugueza? N'uma
outra fórma da ociosidade, passada no estrangeiro, com o
sentimento
[496]
constante da
propria insignificancia. Antes o Chiado!
E como Carlos lembrava a Politica, occupação dos
inuteis, Ega trovejou. A politica! Isso tornára-se
moralmente e physicamente nojento, desde que o negocio
atacára o constitucionalismo como uma phylloxera! Os
politicos hoje eram bonecos de engonços, que faziam gestos e
tomavam attitudes porque dois ou tres financeiros por traz lhes puxavam
pelos cordeis... Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem
envernizados. Mas qual! Ahi é que estava o horror.
Não tinham
feitio, não tinham maneiras, não se lavavam,
não limpavam as unhas... Coisa extraordinaria, que em paiz
algum succedia, nem na Romelia, nem na Bulgaria! Os tres ou quatro
salões que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem
fôr, largamente, excluem a maioria dos politicos. E porque?
Porque as
senhoras têm
nôjo!
—Olha o Gouvarinho! Vê lá se elle recebe
ás terças-feiras os seus correligionarios...
Carlos que sorria, encantado com aquella veia acerba do Ega, saltou na
cadeira:
—É verdade, e a Gouvarinho, a nossa boa Gouvarinho?
Ega, passeando pela sala, deu as novas dos Gouvarinhos. A condessa
herdára uns sessenta contos de uma tia excentrica que vivia
a Santa Isabel, tinha agora melhores carruagens, recebia sempre
ás terças-feiras. Mas soffria uma
doença
[497]
qualquer,
grave, no figado ou no pulmão. Ainda elegante todavia, muito
séria, uma terrivel flôr
de
pruderie... Elle, o Gouvarinho,
ahi
continuava, palrador, escrevinhador, politicote, impertigadote,
já grisalho, duas vezes ministro, e coberto de
gran-cruzes...
—Tu não os viste em Paris, ultimamente?
—Não. Quando soube fui-lhes deixar bilhetes, mas tinham
partido na vespera para Vichy...
A porta abriu-se, um brado cavo resoou:
—Até que emfim, meu rapaz!
—Oh Alencar! gritou Carlos, atirando o charuto.
E foi um infinito abraço, com palmadas arrebatadas pelos
hombros, e um beijo ruidoso—o beijo paternal do Alencar, que tremia,
commovido. Ega arrastára uma cadeira, berrava pelo
escudeiro:
—Que tomas tu, Thomaz? Cognac? Curaçáo? Em todo
o caso café! Mais café! Muito forte, para
o snr. Alencar!
O poeta, no emtanto, abysmado na contemplação de
Carlos, agarrára-o pelas mãos, com um sorriso
largo, que lhe descobria os dentes mais estragados. Achava-o magnifico,
varão soberbo, honra da raça... Ah! Paris, com o
seu espirito, a sua vida ardente, conserva...
—E Lisboa arraza! acudiu Ega. Já cá tive essa
phrase. Vá, abanca, ahi tens o cafésinho e a
bebida!
Mas Carlos agora tambem contemplava o Alencar.
[498]
E parecia-lhe mais bonito, mais
poetico, com a sua grenha inspirada e toda branca, e aquellas rugas
fundas na face morena, cavadas como sulcos de carros pela tumultuosa
passagem das emoções...
—Estás typico, Alencar! Estás a preceito para a
gravura e para a estatua!...
O poeta sorria, passando os dedos com complacencia pelos longos bigodes
romanticos, que a idade embranquecera e o cigarro
amarellára. Que diabo, algumas
compensações havia de ter a
velhice!... Em todo o caso o estomago não era mau, e
conservava-se, caramba, filhos, um bocado de
coração.
—O que não impede, meu Carlos, que isto por
cá esteja cada vez peor! Mas acabou-se... A gente
queixa-se sempre do seu paiz, é habito humano. Já
Horacio se queixava. E vocês, intelligencias superiores,
sabeis bem, filhos, que no tempo de Augusto... Sem fallar, é
claro, na quéda da republica, n'aquelle desabamento das
velhas
instituições... Emfim deixemos lá os
Romanos! Que está alli n'aquella garrafa? Chablis...
Não
desgosto, no outono, com as ostras. Pois vá lá o
Chablis. E á tua chegada, meu Carlos! e á tua,
meu
João, e que Deus vos dê as glorias que mereceis,
meus rapazes!...
Bebeu. Rosnou: «bom Chablis,
bouquet fino». E acabou
por abancar, ruidosamente, sacudindo para traz a juba branca.
[499]
—Este Thomaz! exclamava Ega, pousando-lhe a mão no hombro
com carinho. Não ha outro,
é unico! O bom Deus fel-o n'um dia de grande
verve, e depois quebrou a
fôrma.
Ora, historias! murmurava o poeta radiante. Havia-os tão
bons como elle. A humanidade viera toda do mesmo barro como pretendia a
Biblia—ou do mesmo macaco como affirmava o Darwin...
—Que, lá essas coisas d'evolução,
origem das especies, desenvolvimento da cellula, cá para
mim... Está claro, o Darwin, o Lamarck, o Spencer, o Claudio
Bernard, o Littré, tudo isso, é gente de primeira
ordem. Mas acabou-se, irra! Ha uns poucos de mil annos que o homem
prova sublimemente que tem alma!
—Toma o cafésinho, Thomaz! aconselhou o Ega, empurrando-lhe
a chavena. Toma o cafésinho!
—Obrigado!... E é verdade, João, lá
dei a tua boneca á pequena. Começou logo a
beijal-a, a
embalal-a, com aquelle profundo instincto de mãi, aquelle
quid divino... É
uma sobrinhita minha, meu Carlos. Ficou sem mãi, coitadinha,
lá a
tenho, lá vou tratando de fazer d'ella uma mulher... Has de
vêl-a. Quero que vocês lá
vão jantar um dia, para vos dar umas perdizes
á hespanhola... Tu demoras-te, Carlos?
—Sim, uma ou duas semanas, para tomar um bom sorvo de ar da patria.
—Tens razão, meu rapaz! exclamou o poeta,
[500]
puxando a garrafa do cognac. Isto ainda
não é
tão mau como se diz... Olha tu para isso, para esse
céo, para esse rio, homem!
—Com effeito é encantador!
Todos tres, durante um momento, pasmaram para a incomparavel belleza do
rio, vasto, lustroso, sereno, tão azul como o
céo, esplendidamente coberto de sol.
—E versos? exclamou de repente Carlos, voltando-se para o poeta.
Abandonaste a lingua divina?
Alencar fez um gesto de desalento. Quem entendia já a lingua
divina? O novo Portugal só comprehendia a lingua da libra,
da «massa». Agora, filho, tudo eram syndicatos!
—Mas ainda ás vezes me passa uma coisa cá por
dentro, o velho homem estremece... Tu não viste nos
jornaes?... Está claro, não
lês cá esses trapos que por ahi chamam gazetas...
Pois veio ahi uma coisita, dedicada aqui ao João. Ora eu t'a
digo se me lembrar...
Correu a mão aberta pela face escaveirada, lançou
a estrophe n'um tom de lamento:
Luz d'esperança, luz d'amor,
Que vento vos desfolhou?
Que a alma que vos seguia
Nunca mais vos encontrou!
Carlos murmurou: «Lindo!» Ega murmurou:
[501]
«Muito fino!» E o
poeta, aquecendo, já
commovido, esboçou um movimento d'aza que foge:
Minh'alma em tempos d'outr'ora,
Quando nascia o luar,
Como um rouxinol que acorda
Punha-se logo a cantar.
Pensamentos eram flôres,
Que a aragem lenta de Maio...
—O snr. Cruges! annunciou o criado, entreabrindo a porta.
Carlos ergueu os braços. E o maestro, todo abotoado n'um
paletot claro, abandonou-se á effusão de Carlos,
balbuciando:
—Eu só hontem é que soube. Queria-te ir esperar,
mas não me acordaram...
—Então continúa o mesmo desleixo? exclamava
Carlos, alegremente. Nunca te acordam?
Cruges encolhia os hombros, muito vermelho, acanhado, depois d'aquella
longa separação. E foi
Carlos que o obrigou a sentar-se ao lado, enternecido com o seu velho
maestro, sempre esguio, com o nariz mais agudo, a grenha cahindo mais
crespa sobre a gola do paletot.
—E deixa-me dar-te os parabens! Lá soube pelos jornaes, o
triumpho, a linda opera-comica, a
Flôr de
Sevilha...
—
De Granada! acudiu o maestro. Sim,
uma coisita para ahi, não desgostaram.
[502]
—Uma belleza! gritou Alencar, enchendo outro copo de cognac. Uma
musica toda do sul, cheia de luz, cheirando a laranjeira... Mas
já lhe tenho dito: «Deixa lá a opereta,
rapaz, vôa
mais alto, faze uma grande symphonia historica!» Ainda ha
dias lhe dei uma idéa. A partida de D.
Sebastião para a Africa. Cantos de marinheiros, atabales, o
chôro do povo, as ondas batendo... Sublime! Qual,
põe-se-me lá com castanholas... Emfim, acabou-se,
tem muito talento, e é como se fosse meu filho porque me
sujou muita calça!...
Mas o maestro, inquieto, passava os dedos pela grenha. Por fim
confessou a Carlos que não se podia demorar, tinha um
rendez-vous...
—D'amor?
—Não... É o Barradas que me anda a tirar o
retrato a oleo.
—Com a lyra na mão?
—Não, respondeu o maestro, muito sério. Com a
batuta... E estou de casaca.
E desabotoou o paletot, mostrou-se em todo o seu esplendor, com dois
coraes no peitilho da camisa, e a batuta de marfim mettida na abertura
do collete.
—Estás magnifico! affirmou Carlos. Então outra
coisa, vem cá jantar logo. Alencar, tu tambem, hein? Quero
ouvir esses bellos versos com socego... Ás seis, em ponto,
sem falhar. Tenho um jantarinho á portugueza que encommendei
de manhã,
[503]
com
cozido, arroz de forno, grão de bico,
etc., para matar saudades...
Alencar lançou um gesto immenso de desdem. Nunca o
cozinheiro do
Braganza,
francelhote miseravel, estaria á altura d'esses nobres
petiscos do velho Portugal. Emfim acabou-se. Seria pontual
ás seis para uma grande saude ao seu Carlos!
—Vocês vão sahir, rapazes?
Carlos e Ega iam ao Ramalhete visitar o casarão.
O poeta declarou logo que isso era romagem sagrada. Então
elle partia com o maestro. O seu caminho ficava tambem para o lado do
Barradas... Moço de talento, esse Barradas!... Um pouco
pardo de côr, tudo por acabar, esborratado, mas uma bella
ponta de faisca.
—E teve uma tia, filhos, a Leonor Barradas! Que olhos, que corpo! E
não era só o corpo! Era a alma, a poesia, o
sacrificio!... Já não ha
d'isso, já lá vai tudo. Emfim, acabou-se,
ás
seis!
—Ás seis, em ponto, sem falhar!
Alencar e o maestro partiram, depois de se munirem de charutos. E d'ahi
a pouco Carlos e Ega seguiam tambem pela rua do Thesouro Velho, de
braço dado, muito lentamente.
Iam conversando de Paris, de rapazes e de mulheres que o Ega
conhecêra, havia quatro annos, quando lá
passára um tão alegre
inverno nos appartamentos de Carlos. E a surpreza do Ega, a cada nome
evocado, era o curto brilho, o fim
[504]
brusco de toda essa mocidade
estouvada. A Lucy Gray, morta. A Conrad, morta... E a Maria Blond?
Gorda, emburguezada, casada com um fabricante de velas de estearina. O
polaco, o louro? Fugido, desapparecido. Mr. de Menant, esse D. Juan?
Sub-prefeito no departamento do Doubs. E o rapaz que morava ao lado, o
belga? Arruinado na Bolsa... E outros ainda, mortos, sumidos, afundados
no lodo de Paris!
—Pois tudo sommado, menino, observou Ega, esta nossa vidinha de
Lisboa, simples, pacata, corredia, é infinitamente
preferivel.
Estavam no Loreto; e Carlos parára, olhando, reentrando na
intimidade d'aquelle velho coração da capital.
Nada mudára. A mesma sentinella somnolenta rondava em torno
á estatua triste de Camões. Os mesmos reposteiros
vermelhos, com brazões ecclesiasticos, pendiam nas portas
das duas igrejas. O
Hotel Alliance
conservava
o mesmo ar mudo e deserto. Um lindo sol dourava o lagedo; batedores de
chapéo á faia fustigavam as pilecas;
tres varinas, de canastra á cabeça, meneavam os
quadris, fortes e ageis na plena luz. A uma esquina, vadios em farrapos
fumavam; e na esquina defronte na Havaneza, fumavam tambem outros
vadios, de sobrecasaca, politicando.
—Isto é horrivel quando se vem de fóra! exclamou
Carlos. Não é a cidade, é a gente. Uma
gente feiissima, encardida, mollenga, reles, amarellada,
acabrunhada!...
[505]
—Todavia Lisboa faz differença, affirmou Ega,
muito sério. Oh, faz muita differença! Has de vêr
a Avenida... Antes do Ramalhete vamos dar uma
volta á Avenida.
Foram descendo o Chiado. Do outro lado os
toldos das lojas estendiam no chão uma sombra
forte e dentada. E Carlos reconhecia, encostados ás
mesmas portas, sujeitos que lá deixára havia dez
annos, já assim encostados, já assim melancolicos.
Tinham rugas, tinham brancas. Mas lá estacionavam
ainda, apagados e murchos, rente das mesmas
humbreiras, com collarinhos á moda. Depois,
diante da livraria Bertrand, Ega, rindo, tocou no
braço de Carlos:
—Olha quem alli está, á porta do Baltresqui!
Era o Damaso. O Damaso, barrigudo, nedio,
mais pesado, de flôr ao peito, mamando um grande
charuto, e pasmaceando, com o ar regaladamente
embrutecido d'um ruminante farto e feliz.
Ao avistar tambem os seus dois velhos amigos que
desciam, teve um movimento para se esquivar,
refugiar-se na confeitaria. Mas, insensivelmente,
irresistivelmente, achou-se em frente de Carlos,
com a mão aberta e um sorriso na bochecha, que
se lhe esbrazeára.
—Olá, por cá!... Que grande surpreza!
Carlos abandonou-lhe dois dedos, sorrindo tambem,
indifferente e esquecido.
—É verdade, Damaso... Como vai isso?
[506]
—Por aqui, n'esta semsaboria... E então com demora?
—Umas semanas.
—Estás no Ramalhete?
—No
Braganza. Mas não te
incommodes, eu ando sempre por fóra.
—Pois sim senhor!... Eu tambem estive em Paris, ha tres mezes, no
Continental...
—Ah!... Bem, estimei vêr-te, até sempre!
—Adeus, rapazes. Tu estás bom, Carlos, estás com
boa cara!
—É dos teus olhos, Damaso.
E nos olhos do Damaso, com effeito, parecia reviver a antiga
admiração, arregalados,
acompanhando Carlos, estudando-lhe por traz a sobrecasaca, o
chapéo, o andar, como no tempo em que o Maia era para elle o
typo supremo do seu querido
chic,
«uma d'essas coisas
que só se vêem lá fóra...»
—Sabes que o nosso Damaso casou? disse o Ega um pouco adiante,
travando outra vez do braço de Carlos.
E foi um espanto para Carlos. O quê! O nosso Damaso!
Casado!?... Sim, casado com uma filha dos condes d'Agueda, uma gente
arruinada, com um rancho de raparigas. Tinham-lhe impingido a mais
nova. E o optimo Damaso, verdadeira sorte grande para aquella distincta
familia, pagava agora os vestidos, das mais velhas.
—É bonita?
[507]
—Sim, bonitinha... Faz ahi a felicidade d'um rapazote sympathico,
chamado Barroso.
—O quê, o Damaso, coitado!...
—Sim, coitado, coitadinho, coitadissimo... Mas como vês,
immensamente ditoso, até tem engordado com a perfidia!
Carlos parára. Olhava, pasmado para as varandas
extraordinarias d'um primeiro andar, recobertas, como em dia de
procissão, de sanefas de pano vermelho onde se
entrelaçavam monogrammas. E ia indagar—quando, d'entre um
grupo que estacionava ao portal d'esse predio festivo, um rapaz d'ar
estouvado, com a face imberbe cheia d'espinhas carnaes, atravessou
rapidamente a rua para gritar ao Ega, suffocado de riso:
—Se você for depressa ainda a encontra ahi abaixo! Corra!
—Quem?
—A Adosinda!... De vestido azul, com plumas brancas no
chapéo... Vá depressa... O
João Elyseu metteu-lhe a bengala entre as pernas, ia-a
fazendo estatelar no chão, foi uma scena... Vá
depressa, homem!
Com duas pernadas esguias o rapaz recolheu ao seu rancho—onde todos,
já calados, com uma curiosidade de provincia, examinavam
aquelle homem de tão alta elegancia que acompanhava o Ega, e
que nenhum conhecia. E Ega, no emtanto, explicava a Carlos as varandas
e o grupo:
—São rapazes do
Turf.
É um club novo, o
[508]
antigo Jockey da travessa da Palha.
Faz-se lá uma batotinha barata, tudo gente muito
sympathica... E como vês estão sempre assim
preparados, com sanefas e tudo, para se acaso passar por ahi o Senhor
dos Passos.
Depois, descendo para a rua Nova do Almada, contou o caso da Adosinda.
Fôra no Silva, havia duas semanas, estando elle a cear com
rapazes depois de S. Carlos, que lhes apparecera essa mulher
inverosimil, vestida de vermelho, carregando insensatamente nos
rr, mettendo
rr em todas as palavras, e
perguntando pelo snr.
virrsconde... Qual
virrsconde? Ella não
sabia bem.
Erra um virrsconde que
encontrrárra no Crrolyseu. Senta-se,
offerecem-lhe champagne, e D. Adosinda começa a revelar-se
um sêr prodigioso. Fallavam de politica, do ministerio e do
deficit. D. Adosinda declara
logo que conhece muito bem o
deficit, e que
é um bello rapaz... O
deficit bello rapaz—immensa
gargalhada! D. Adosinda zanga-se, exclama que já
fôra com elle
a Cintra, que é um perfeito cavalheiro, e empregado no Banco
Inglez... O
deficit
empregado no Banco Inglez—gritos, uivos, urros! E não
cessou esta gargalhada contínua, estrondosa, phrenetica,
até
ás cinco da manhã em que D. Adosinda
fôra rifada e sahira ao Telles!... Noite soberba!
—Com effeito, disse Carlos rindo, é uma orgia grandiosa,
lembra Heliogabalo e o Conde d'Orsay...
Então Ega defendeu calorosamente a sua orgia.
[509]
Onde havia melhor, na Europa, em qualquer
civilisação? Sempre queria vêr que se
passasse uma noite mais alegre em Paris, na desoladora banalidade do
Grand-Treize, ou em Londres,
n'aquella correcta e massuda semsaboria do
Bristol! O que ainda tornava a vida
toleravel era de vez em quando uma boa risada. Ora na Europa o homem
requintado já não ri,—sorri regeladamente,
lividamente. Só nós aqui, n'este canto do mundo
barbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bemdita e
consoladora—a barrigada de riso!...
—Que diabo estás tu a olhar?
Era o consultorio, o antigo consultorio de Carlos—onde agora, pela
taboleta, parecia existir um pequeno
atelier de modista. Então
bruscamente os dois amigos recahiram nas
recordações do passado. Que estupidas horas
Carlos alli arrastára, com a
Revista dos Dois Mundos, na espera
vã dos doentes,
cheio ainda de fé nas alegrias do trabalho!... E a
manhã em que o Ega lá apparecera com a sua
esplendida pelliça, preparando-se para transformar, n'um
só inverno, todo o velho e rotineiro Portugal!
—Em que tudo ficou!
—Em que tudo ficou! Mas rimos bastante! Lembras-te d'aquella noite em
que o pobre marquez queria levar ao consultorio a Paca, para utilisar
emfim o divan, movel de serralho?...
Carlos teve uma exclamação de saudade. Pobre
marquez! Fôra uma das suas fortes impressões,
n'esses
[510]
ultimos
annos—aquella morte do marquez, sabida de repente ao
almoço, n'uma banal noticia de jornal!... E
através do Rocio, andando mais devagar, recordavam outros
desapparecimentos: a D. Maria da Cunha, coitada, que acabara hydropica;
o D. Diogo, casado por fim com a cozinheira; o bom Sequeira, morto uma
noite n'uma tipoia ao sahir dos cavallinhos...
—E outra coisa, perguntou Ega. Tens visto o Craft em Londres?
—Tenho, disse Carlos. Arranjou uma casa muito bonita ao pé
de Richmond... Mas está muito
avelhado, queixa-se muito do figado. E, desgraçadamente,
carrega de mais nos alcools. É uma pena!
Depois perguntou pelo Taveira. Esse lindo moço, contou o
Ega, tinha agora por cima mais dez annos de Secretaria e de Chiado. Mas
sempre apurado, já um bocado grisalho, mettido continuamente
com alguma hespanhola, dando bastante a lei em S. Carlos, e murmurando
todas as tardes na Havaneza, com um ar dôce e
contente—«isto
é um paiz perdido»! Enfim um bom typosinho de
lisboeta fino.
—E a besta do Steinbroken?
—Ministro em Athenas, exclamou Carlos, entre as ruinas classicas!
E esta idéa do Steinbroken, na velha Grecia, divertiu-os
infinitamente. Ega imaginava já o bom Steinbroken, têso nos
seus altos collarinhos, affirmando a respeito de Socrates, com
prudencia: «Oh,
[511]
il est très fort, il est excessivement fort!» Ou
ainda, a proposito da batalha das Thermopylas, rosnando, com medo de se
comprometter: «C'est très grave, c'est
excessivement grave!» Valia a pena ir á Grecia
para vêr!
Subitamente Ega parou:
—Ora ahi tens tu essa Avenida! Hein?... Já não
é mau!
N'um claro espaço rasgado, onde Carlos deixára o
Passeio Publico pacato e frondoso—um obelisco, com borrões
de bronze no pedestal, erguia um traço côr
d'assucar na
vibração fina da luz de inverno: e os largos
globos dos candieiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam,
transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão
suspensas no ar. Dos dois lados seguiam, em alturas desiguaes, os
pesados predios, lisos e aprumados, repintados de fresco, com vasos nas
cornijas onde negrejavam piteiras de zinco, e pateos de pedra,
quadrilhados a branco e preto, onde guarda-portões chupavam
o cigarro: e aquelles dois hirtos renques de casas ajanotadas lembravam
a Carlos as familias que outr'ora se immobilisavam em filas, dos dois
lados do Passeio, depois da missa «da uma», ouvindo
a Banda, com casimiras e sêdas, no catitismo domingueiro.
Todo o lagedo reluzia como cal nova. Aqui e além um arbusto
encolhia na aragem a sua folhagem pallida e rara. E ao fundo a collina
verde, salpicada d'arvores, os terrenos de Valle de Pereiro, punham um
brusco
[512]
remate campestre
áquelle curto rompante de luxo barato—que partira para
transformar a velha cidade, e estacára logo, com o
fôlego curto, entre montões de cascalho.
Mas um ar lavado e largo circulava; o sol dourava a caliça;
a divina serenidade do azul sem igual tudo cobria e adoçava.
E os dois amigos sentaram-se n'um banco, junto de uma verdura que
orlava a agua d'um tanque esverdinhada e molle.
Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flôres
na lapella, a calça apurada, luvas claras fortemente
pespontadas de negro. Era toda uma geração nova e
miuda que Carlos
não conhecia. Por vezes Ega murmurava um
ólá!, acenava
com a bengala. E elles iam, repassavam, com um arzinho timido e
contrafeito, como mal acostumados áquelle vasto
espaço, a tanta luz, ao seu proprio
chic. Carlos pasmava. Que faziam
alli, ás horas de trabalho, aquelles moços
tristes, de calça
esguia? Não havia mulheres. Apenas n'um banco adiante uma
creatura adoentada, de lenço e chale, tomava o sol; e duas
matronas, com vidrilhos no mantelete, donas de casa de hospedes,
arejavam um cãosinho felpudo. O que attrahia pois alli
aquella mocidade pallida? E o que sobretudo o espantava eram as botas
d'esses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para
fóra da calça collante com pontas
aguçadas e reviradas como prôas de barcos
varinos...
[513]
—Isto é phantastico, Ega!
Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa
simples fôrma de botas explicava todo o Portugal
contemporaneo. Via-se por alli como a coisa era. Tendo abandonado o seu
feitio antigo, á D. João VI, que tão
bem lhe ficava, este
desgraçado Portugal decidira arranjar-se á
moderna: mas sem originalidade, sem força, sem caracter para
crear um feitio seu, um feitio proprio, manda vir modelos do
estrangeiro—modelos d'idéas, de calças, de
costumes, de leis, d'arte, de cozinha... Sómente, como lhe
falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo
o domina a impaciencia de parecer muito moderno e muito
civilisado—exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até
á caricatura. O
figurino da bota que veio de fóra era levemente estreito na
ponta;—immediatamente o janota estica-o e aguça-o
até ao bico d'alfinete. Por seu lado o escriptor
lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em estylo precioso e
cinzelado;—immediatamente retorce, emmaranha,
desengonça a sua pobre phrase até descambar no
delirante e no burlesco. Por sua vez o legislador ouve dizer que
lá fóra se levanta o nivel da
instrucção;—immediatamente põe no
programma dos exames de primeiras letras a metaphysica, a astronomia, a
philologia, a egyptologia, a chresmatica, a critica das
religiões comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo
por ahi adiante assim, em todas as classes e profissões,
desde o orador até ao photographo,
[514]
desde o jurisconsulto até ao
sportman... É o que
succede com os pretos já corrompidos de S. Thomé,
que vêem os europeus de lunetas—e imaginam que n'isso
consiste ser civilisado e ser branco. Que fazem então? Na
sua sofreguidão de progresso e de brancura acavallam no
nariz tres ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de
côr. E assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos
tropeções, no desesperado e angustioso
esforço de equilibrarem todos estes vidros—para serem
immensamente civilisados e immensamente brancos...
Carlos ria:
—De modo que isto está cada vez peor...
—Medonho! É d'um reles, d'um postiço! Sobretudo
postiço! Já não ha nada genuino n'este
miseravel paiz, nem mesmo o pão que comemos!
Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, n'um gesto lento:
—Resta aquillo, que é genuino...
E mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da Graça e
da Penha, com o seu casario escorregando pelas encostas resequidas e
tisnadas do sol. No cimo assentavam pesadamente os conventos, as
igrejas, as atarracadas vivendas ecclesiasticas, lembrando o frade
pingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes de
procissão, irmandades d'opa atulhando os adros, herva
dôce juncando as ruas, tremoço e fava-rica
apregoada ás
esquinas, e foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto ainda,
recortando no radiante azul a miseria
[515]
da sua muralha, era o castello,
sordido e tarimbeiro, d'onde outr'ora, ao som do hymno tocado em
fagotes, descia a tropa de calça branca a fazer a
bernarda! E abrigados por elle, no
escuro bairro de S. Vicente e da Sé, os palacetes
decrepitos, com vistas saudosas para a barra, enormes
brazões nas paredes rachadas, onde entre a maledicencia, a
devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros
dias, cachetica e caturra, a velha Lisboa fidalga!
Ega olhou um momento, pensativo:
—Sim, com effeito, é talvez mais genuino. Mas
tão estupido, tão sebento! Não
sabe a gente para onde se ha de voltar... E se nos voltamos para
nós mesmos, ainda peor!
E de repente bateu no joelho de Carlos, com um brilho na face:
—Espera... Olha quem ahi vem!
Era uma vittoria, bem posta e correcta, avançando com
lentidão e estylo, ao trote esteppado de duas egoas
inglezas. Mas foi um desapontamento. Vinha lá
sómente um rapaz muito louro, d'uma brancura de camelia, com
uma pennugem no beiço, languidamente recostado. Fez um aceno
ao Ega, com um lindo sorriso de virgem. A vittoria passou.
—Não conheces?
Carlos procurava, com uma recordação.
—O teu antigo doente! O Charlie!
O outro bateu as mãos. O Charlie! O seu Charlie! Como
aquillo o fazia velho!... E era bonitinho!
[516]
—Sim, muito bonitinho. Tem ahi uma amizade com um velho, anda sempre
com um velho... Mas elle vinha decerto com a mãi, estou
convencido que ella ficou por ahi a passear a pé. Vamos
nós
vêr?
Subiram ao comprido da Avenida, procurando. E quem avistaram logo foi o
Eusebiosinho. Parecia mais funebre, mais tisico, dando o
braço a uma senhora muito forte, muito córada,
que estalava n'um vestido de sêda cor de pinhão.
Iam devagar,
tomando o sol. E o Eusebio nem os viu, descahido e mollengo, seguindo
com as grossas lunetas pretas o marchar lento da sua sombra.
—Aquella aventesma é a mulher, contou Ega. Depois de varias
paixões em lupanares, o nosso Eusebio teve este namoro. O
pai da creatura, que é dono d'um prego, apanhou-o uma noite
na escada com ella a surripiar-lhe uns prazeres... Foi o diabo,
obrigaram-no a casar. E desappareceu, não o tornei a
vêr... Diz que a mulher que o derreia á pancada.
—Deus a conserve!
—Amen!
E então Carlos, que recordava a coça no Eusebio,
o caso da
Corneta, quiz saber do
Palma Cavallão. Ainda deshonrava o Universo com a sua
presença, esse benemerito? Ainda o deshonrava, disse o Ega.
Sómente deixára a litteratura, e
tornára-se
factotum do
Carneiro, o que
fôra ministro; levava-lhe a hespanhola ao theatro pelo
braço; e era um bom empenho em politica.
[517]
—Ainda ha de ser deputado, acrescentou Ega. E, da fórma que
as coisas vão, ainda ha de ser
ministro... E isto está-se fazendo tarde, Carlinhos. Vamos
nós tomar esta tipoia e abalar para o Ramalhete?
Eram quatro horas, o sol curto de inverno tinha já um tom
pallido.
Tomaram a tipoia. No Rocio, Alencar que passava, que os viu—parou,
sacudiu ardentemente a mão no ar. E então Carlos
exclamou, com uma
surpreza que já o assaltára essa manhã
no
Braganza:
—Ouve cá, Ega! Tu agora pareces intimo do Alencar! Que
transformação foi essa?
Ega confessou que realmente agora apreciava immensamente o Alencar. Em
primeiro logar no meio d'esta Lisboa toda postiça, Alencar
permanecia o unico portuguez genuino. Depois, através da
contagiosa intrujice, conservava uma honestidade resistente.
Além d'isso havia n'elle lealdade, bondade, generosidade. O
seu comportamento com a sobrinhita era tocante. Tinha mais cortezia,
melhores maneiras que os novos. Um bocado de piteirice não
lhe ia mal ao seu feitio lyrico. E por fim, no estado a que
descambára a litteratura, a versalhada do Alencar tomava
relevo pela correcção, pela
simplicidade, por um resto de sincera emoção. Em
resumo, um bardo infinitamente estimavel.
—E aqui tens tu, Carlinhos, a que nós chegamos!
Não ha nada com efeito que caracterise melhor a pavorosa
decadencia de Portugal, nos ultimos
[518]
trinta annos, do que este simples
facto: tão profundamente tem baixado o caracter e o talento,
que de repente o nosso velho Thomaz, o homem da
Flôr de Martyrio, o
Alencar d'Alemquer, apparece com as proporções
d'um Genio e d'um Justo!
Ainda fallavam de Portugal e dos seus males quando a tipoia parou. Com
que commoção Carlos avistou a fachada severa do
Ramalhete, as janellinhas abrigadas á beira do telhado, o
grande ramo de girasoes fazendo painel no logar do escudo d'armas! Ao
ruido da carruagem, Villaça appareceu á porta,
calçando luvas amarellas. Estava mais
gordo o Villaça—e tudo na sua pessoa, desde o
chapéo novo até ao castão de prata da
bengala, revelava a sua importancia como administrador, quasi directo
senhor durante o longo desterro de Carlos, d'aquella vasta casa dos
Maias. Apresentou logo o jardineiro, um velho, que alli vivia com a
mulher e o filho, guardando o casarão deserto. Depois
felicitou-se de vêr emfim os dois amigos juntos. E ajuntou,
batendo com carinho familiar no hombro de Carlos:
—Pois eu, depois de nos separarmos em Santa Apolonia, fui tomar um
banho ao Central e não me deitei. Olhe que é uma
grande commodidade o tal
sleeping-car! Ah lá
isso, em progresso, o nosso Portugal já não
está atraz de
ninguem!... E v. exc.
a agora precisa
de mim?
—Não, obrigado, Villaça. Vamos dar uma volta
[519]
pelas salas...
Vá jantar comnosco. Ás seis!
Mas ás seis em ponto, que ha petiscos especiaes.
E os dois amigos atravessaram o perystillo. Ainda lá se
conservavam os bancos feudaes de carvalho lavrado, solemnes como coros
de cathedral. Em cima porém a ante-camara entristecia, toda
despida, sem um movel, sem um estofo, mostrando a cal lascada dos
muros. Tapeçarias orientaes que pendiam como n'uma tenda,
pratos mouriscos de reflexos de cobre, a estatua da
Friorenta rindo e arrepiando-se, na
sua nudez de marmore, ao metter o pésinho na agua—tudo
ornava agora os aposentos de Carlos em Paris: e outros
caixões apilhavam-se a um canto, promptos a embarcar,
levando as melhores faianças da
Toca. Depois no amplo corredor, sem
tapete, os seus passos soaram como n'um claustro abandonado. Nos
quadros devotos, d'um tom mais negro, destacava aqui e além,
sob a luz escassa, um hombro descarnado de eremita, a mancha livida
d'uma caveira. Uma friagem regelava. Ega levantára a gola do
paletot.
No salão nobre os moveis de brocado côr de musgo
estavam embrulhados em lençoes d'algodão, como
amortalhados, exhalando um cheiro de mumia a terebinthina e camphora. E
no chão, na tela de Constable, encostada á
parede, a condessa de Runa, erguendo o seu vestido escarlate de
caçadora ingleza, parecia ir dar um passo, sahir do caixilho
dourado, para partir tambem, consummar a dispersão da sua
raça...
[520]
—Vamos embora, exclamou Ega. Isto está lugubre!...
Mas Carlos, pallido e calado, abriu adiante a porta do bilhar. Ahi, que
era a maior sala do Ramalhete, tinham sido recentemente accumulados na
confusão das artes e dos seculos, como n'um armazem de
bric-à-brac, todos os
moveis ricos da
Toca. Ao fundo,
tapando o
fogão, dominando tudo na sua magestade architectural,
erguia-se o famoso armario do tempo da Liga Hanseatica, com os seus
Martes armados, as portas lavradas, os quatro Evangelistas
prégando aos cantos, envoltos n'essas roupagens violentas
que um vento de prophecia parece agitar. E Carlos immediatamente
descobriu um desastre na cornija, nos dois faunos que entre
trophéos agricolas tocavam ao desafio. Um partira o seu
pé de cabra, outro perdera a sua frauta bucolica...
—Que brutos! exclamou elle furioso, ferido no seu amor da coisa
d'arte. Um movel d'estes!...
Trepou a uma cadeira para examinar os estragos. E Ega, no emtanto,
errava entre os outros moveis, cofres nupciaes, contadores hespanhoes,
bufetes da Renascença italiana, recordando a alegre casa dos
Olivaes que tinham ornado, as bellas noites de cavaco, os jantares, os
foguetes atirados em honra de Leonidas... Como tudo passára!
De repente deu com o pé n'uma caixa de chapéo sem
tampa, atulhada de coisas velhas—um véo, luvas
desirmanadas, uma meia de sêda, fitas, flôres artificiaes.
[521]
Eram objectos de
Maria, achados n'algum canto da
Toca, para alli atirados,
no momento de se esvaziar a casa! E, coisa lamentavel, entre estes
restos d'ella, misturados como na promiscuidade d'um lixo, apparecia
uma chinela de velludo bordada a matiz, uma velha chinela de Affonso da
Maia! Ega escondeu a caixa rapidamente debaixo d'um pedaço
solto de tapeçaria. Depois, como Carlos
saltava da cadeira, sacudindo as mãos, ainda indignado, Ega
apressou aquella peregrinação, que lhe
estragava a alegria do dia.
—Vamos ao terraço! Dá-se um olhar ao jardim, e
abalamos!
Mas deviam atravessar ainda a memoria mais triste, o escriptorio de
Affonso da Maia. A fechadura estava pêrra. No
esforço de abrir a mão
de Carlos tremia. E Ega, commovido tambem, revia toda a sala tal como
outr'ora, com os seus candieiros Carcel dando um tom côr de
rosa, o lume crepitando, o reverendo Bonifacio sobre a pelle d'urso, e
Affonso na sua velha poltrona, de casaco de velludo, sacudindo a cinza
do cachimbo contra a palma da mão. A porta cedeu: e toda a
emoção
de repente findou, na grutesca, absurda surpreza de romperem ambos a
espirrar, desesperadamente, suffocados pelo cheiro acre d'um
pó vago que lhes picava os olhos, os estonteava.
Fôra o Villaça,
que, seguindo uma receita d'almanach, fizera espalhar ás
mãos cheias, sobre os moveis, sobre os
lençoes que os resguardavam, camadas espessas de pimenta
[522]
branca! E
estrangulados, sem vêr, sob uma nevoa de lagrimas, os dois
continuavam, um defronte do outro, em espirros afflictivos que os
desengonçavam.
Carlos por fim conseguiu abrir largamente as duas portadas d'uma
janella. No terraço morria um resto de sol. E, revivendo um
pouco ao ar puro, alli ficaram de pé, calados, limpando os
olhos, sacudidos ainda por um ou outro espirro retardado.
—Que infernal invenção! exclamou Carlos,
indignado.
Ega, ao fugir com o lenço na face,
tropeçára, batera contra um sofá,
coçava a canella:
—Estupida coisa! E que bordoada que eu dei!...
Voltou a olhar para a sala, onde todos os moveis desappareciam sob os
largos sudarios brancos. E reconheceu que
tropeçára na antiga almofada de velludo do velho
Bonifacio. Pobre Bonifacio! Que fôra feito d'elle?
Carlos, que se sentára no parapeito baixo do
terraço, entre os vasos sem flôr, contou o fim do
reverendo Bonifacio. Morrera em Santa Olavia, resignado, e
tão obeso que se não movia. E o
Villaça, com uma idéa poetica, a unica da sua
vida de procurador, mandára-lhe fazer um
mausoléo, uma simples pedra de marmore branco, sob uma
roseira, debaixo das janellas do quarto do avô.
Ega sentára-se tambem no parapeito, ambos se esqueceram n'um
silencio. Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua nudez
d'inverno, tinha
[523]
a
melancolia de um retiro esquecido que já ninguem ama: uma
ferrugem verde de humidade cobria os grossos membros da Venus Citherea;
o cypreste e o cedro envelheciam juntos como dois amigos n'um ermo; e
mais lento corria o prantosinho da cascata, esfiado saudosamente gotta
a gotta na bacia de marmore. Depois ao fundo, encaixilhada como uma
tela marinha nas cantarias dos dois altos predios, a curta paizagem do
Ramalhete, um pedaço de Tejo e monte, tomava n'aquelle fim
de tarde um tom mais pensativo e triste: na tira de rio um paquete
fechado, preparado para a vaga, ia descendo, desapparecendo logo, como
já devorado pelo mar incerto; no alto da collina o moinho
parára, transido na larga friagem do ar; e nas janellas das
casas á beira d'agua um raio de sol morria, lentamente
sumido, esvaído na primeira cinza do crepusculo, como um
resto d'esperança n'uma face que se anuvia.
Então, n'aquella mudez de soledade e d'abandono, Ega, com os
olhos para o longe, murmurou devagar:
—Mas tu d'esse casamento não tinhas a menor
indicação, a menor suspeita?
—Nenhuma... Soube-o de repente pela carta d'ella em Sevilha.
E era esta a formidavel nova annunciada por Carlos, a nova que elle
logo contára de madrugada ao Ega, depois dos primeiros
abraços, em Santa Apolonia. Maria Eduarda ia casar.
[524]
Assim o annunciára ella a Carlos n'uma carta muito simples,
que elle recebera na quinta dos Villa-Medina. Ia casar. E
não parecia ser uma
resolução tomada arrebatadamente sob um impulso
do coração; mas antes um proposito lento,
longamente
amadurecido. Ella alludia n'essa carta a ter «pensado muito,
reflectido muito...» De resto o noivo devia ir perto dos
cincoenta annos. E Carlos portanto via alli a união de dois
sêres desilludidos da vida, maltratados por ella, cansados ou
assustados do seu isolamento, que, sentindo um no outro qualidades
sérias de coração e de
espirito, punham em commum o seu resto de calor, d'alegria e de coragem
para affrontar juntos a velhice...
—Que idade tem ella?
Carlos pensava que ella devia ter quarenta e um ou quarenta e dois
annos. Ella dizia na carta «sou apenas mais nova que o meu
noivo seis annos e tres mezes». Elle chamava-se Mr. de
Trelain. E era evidentemente um homem d'espirito largo,
desembaraçado de prejuizos, d'uma benevolencia quasi
misericordiosa, porque quizera Maria, conhecendo bem os seus erros.
—Sabe tudo? exclamou Ega, que saltára do parapeito.
—Tudo não. Ella diz que Mr. de Trelain conhecia do seu
passado «todos aquelles erros em que ella cahira
inconscientemente». Isto dá a
entender que não sabe tudo... Vamos andando, que se faz
tarde, e quero ainda vêr os meus quartos.
[525]
Desceram ao jardim. Um momento seguiram calados pela alea onde cresciam
outr'ora as roseiras de Affonso. Sob as duas olaias ainda existia o
banco de cortiça; Maria sentára-se alli, na sua
visita ao Ramalhete, a atar n'um ramo flôres que ia levar
como reliquia. Ao passar Ega cortou uma pequenina margarida que ainda
floria solitariamente.
—Ella continúa a viver em Orléans,
não é verdade?
Sim, disse Carlos, vivia ao pé d'Orléans, n'uma
quinta que lá comprára, chamada
Les Rosières. O noivo
devia habitar nos arredores algum pequeno
château. Ella chamava-lhe
«visinho». E era naturalmente um
gentilhomme campagnard, de
familia séria, com fortuna...
—Ella só tem o que tu lhe dás, está
claro.
—Creio que te mandei contar tudo isso, murmurou Carlos. Emfim ella
recusou-se a receber parte alguma da sua herança... E o
Villaça arranjou as coisas por meio d'uma
doação que lhe fiz,
correspondente a doze contos de reis de renda...
—É bonito. Ella fallava de Rosa na carta?
—Sim, de passagem, que ia bem... Deve estar uma mulher.
—E bem linda!
Iam subindo a escadinha de ferro torneada que levava do jardim aos
quartos de Carlos. Com a mão na porta da vidraça,
Ega parou ainda, n'uma derradeira curiosidade:
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—E que effeito te fez isso?
Carlos accendia o charuto. Depois atirando o phosphoro por cima da
varandinha de ferro onde uma trepadeira se enlaçava:
—Um effeito de conclusão, de absoluto remate. É
como se ella morresse, morrendo com ella todo o passado, e agora
renascesse sob outra fórma. Já
não é Maria Eduarda. É Madame de
Trelain, uma senhora franceza. Sob este nome, tudo o que houve fica
sumido, enterrado a mil braças, findo para sempre, sem mesmo
deixar memoria... Foi o effeito que me fez.
—Tu nunca encontraste em Paris o snr. Guimarães?
—Nunca. Naturalmente morreu.
Entraram no quarto. Villaça, na
supposição de Carlos vir para o Ramalhete,
mandára-o preparar; e todo elle regelava—com o marmore das
commodas espanejado e vazio, uma vela intacta n'um castiçal
solitario, a colcha de fustão vincada de dobras sobre o
leito sem cortinados. Carlos pousou o chapéo e a bengala em
cima da sua antiga mesa de trabalho. Depois, como dando um resumo:
—E aqui tens tu a vida, meu Ega! N'este quarto, durante noites, soffri
a certeza de que tudo no mundo acabára para mim... Pensei em
me matar. Pensei em ir para a Trappa. E tudo isto friamente, com uma
conclusão logica. Por fim dez annos passaram, e aqui estou
outra vez...
Parou diante do alto espelho suspenso entre as
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duas columnas de carvalho lavrado,
deu um geito ao bigode, concluiu, sorrindo melancolicamente:
—E mais gordo!
Ega espalhava tambem pelo quarto um olhar pensativo:
—Lembras-te quando appareci aqui uma noite, n'uma agonia, vestido de
Mephistopheles?
Então Carlos teve um grito. E a Rachel, é
verdade! A Rachel? Que era feito da Rachel, esse lirio d'Israel?
Ega encolheu os hombros:
—Para ahi anda, estuporada...
Carlos murmurou—«coitada!» E foi tudo o que
disseram sobre a grande paixão romantica do Ega.
Carlos no emtanto fôra examinar, junto da janella, um quadro
que pousava no chão, para alli esquecido e voltado para a
parede. Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de
camurça na mão, os grandes olhos arabes na face
triste e pallida que o tempo amarellára mais. Collocou-o em
cima d'uma commoda. E atirando-lhe uma leve sacudidella com o
lenço:
—Não ha nada que me faça mais pena do que
não ter um retrato do avô!... Em todo o caso este
sempre o vou levar para Paris.
Então Ega perguntou, do fundo do sofá onde se
enterrára, se, n'esses ultimos annos, elle não
tivera a idéa, o vago desejo de voltar para Portugal...
Carlos considerou Ega com espanto. Para que?
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Para arrastar os passos tristes
desde o Gremio até á Casa Havaneza?
Não! Paris era o unico logar da terra congenere com o typo
definitivo em que elle se fixára:—«o homem rico
que vive bem».
Passeio a cavallo no Bois; almóço no Bignon; uma
volta pelo
boulevard; uma hora no
club com os jornaes; um bocado de florete na sala d'armas; á
noite a
Comédie
Française ou uma
soirée; Trouville no
verão, alguns tiros ás lebres no inverno; e
através do anno as mulheres, as corridas, certo interesse
pela sciencia, o
bric-à-brac, e uma pouca
de
blague. Nada mais inoffensivo,
mais
nullo, e mais agradavel.
—E aqui tens tu uma existencia d'homem! Em dez annos não me
tem succedido nada, a não ser quando se me quebrou o phaeton
na estrada de Saint-Cloud... Vim no
Figaro.
Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
—Falhámos a vida, menino!
—Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto
é, falha-se sempre na realidade aquella vida que se planeou
com a imaginação. Diz-se: «vou ser
assim, porque a belleza está em ser assim». E
nunca se é assim, é-se
invariavelmente
assado, como dizia o
pobre marquez.
Ás vezes melhor, mas sempre differente.
Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a
calçar as luvas.
O quarto escurecia no crepusculo frio e melancolico d'inverno. Carlos
pôz tambem o chapéo: e
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desceram pelas escadas forradas de
velludo côr de cereja, onde ainda pendia, com um ar
baço de ferrugem, a panoplia de velhas armas. Depois na rua
Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que
n'aquella primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de
residencia ecclesiastica, com as suas paredes severas, a sua fila de
janellinhas fechadas, as grades dos postigos terreos cheias de treva,
mudo, para sempre deshabitado, cobrindo-se já de tons de
ruina.
Uma commoção passou-lhe n'alma, murmurou,
travando do braço do Ega:
—É curioso! Só vivi dois annos n'esta casa, e
é n'ella que me parece estar mettida a minha vida inteira!
Ega não se admirava. Só alli no Ramalhete elle
vivera realmente d'aquillo que dá sabôr e
relevo á vida—a paixão.
—Muitas outras coisas dão valor á vida... Isso
é uma velha idéa de romantico, meu Ega!
—E que somos nós? exclamou Ega. Que temos nós
sido desde o collegio, desde o exame de latim? Romanticos: isto
é, individuos inferiores que se governam na vida pelo
sentimento e não pela razão...
Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses
que se dirigiam só pela
razão, não se desviando nunca d'ella,
torturando-se para se manter na sua linha inflexivel, sêccos,
hirtos, logicos, sem emoção até ao
fim...
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—Creio que não, disse o Ega. Por fóra,
á vista, são desconsoladores. E por dentro, para
elles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que
n'este lindo mundo ou tem de se ser insensato ou semsabor...
—Resumo: não vale a pena viver...
—Depende inteiramente do estomago! atalhou Ega.
Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua
theoria da vida, a theoria definitiva que elle deduzira da experiencia
e que agora o governava. Era o fatalismo musulmano. Nada desejar e nada
recear... Não se abandonar a uma
esperança—nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem
e o que foge, com a tranquillidade com que se acolhem as naturaes
mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, n'esta
placidez, deixar esse pedaço de materia organisada, que se
chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e
se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter
appetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
Ega, em summa, concordava. Do que elle principalmente se convencera,
n'esses estreitos annos de vida, era da inutilidade de todo o
esforço.
Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa
alguma na terra—porque tudo se resolve, como já
ensinára o sabio do
Ecclesiastes, em
desillusão e poeira.
—Se me dissessem que alli em baixo estava
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uma fortuna como a dos
Rothschilds ou a corôa imperial de Carlos V, á
minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu
não apressava o passo... Não! Não
sahia d'este passinho lento, prudente, correcto, seguro, que
é o unico que se deve ter na vida.
—Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção
decisiva.
E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se
aquelle fosse em verdade o caminho da vida, onde elles, certos de
só encontrar ao fim desillusão e poeira,
não devessem jámais avançar
senão com
lentidão e desdem. Já avistavam o Aterro, a sua
longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de
contrariedade:
—Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este appetite! Esqueci-me
de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com
ervilhas.
E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos,
até ahi esquecido em memorias do passado e syntheses da
existencia, pareceu ter inesperadamente consciencia da noite que
cahira, dos candieiros accêsos. A um bico de gaz tirou o
relogio. Eram seis e um quarto!
—Oh, diabo!... E eu que disse ao Villaça e aos rapazes para
estarem no
Braganza
pontualmente ás seis! Não apparecer por ahi uma
tipoia!...
—Espera! exclamou Ega. Lá vem um
«americano», ainda o apanhamos.
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—Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que
arrojára o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que
lhes cortava a face:
—Que raiva ter esquecido o paiosinho! Emfim, acabou-se. Ao menos
assentamos a theoria definitiva da existencia. Com effeito,
não vale a pena fazer um esforço, correr com
ancia para coisa alguma...
Ega, ao lado, ajuntava, offegante, atirando as pernas magras:
—Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o
poder...
A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no
escuro, parára. E foi em Carlos e em João da
Ega uma esperança, outro esforço:
—Ainda o apanhamos!
—Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslisou e fugiu. Então, para apanhar o
«americano», os dois amigos romperam
a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a
primeira claridade do luar que subia.
FIM DO SEGUNDO VOLUME
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
As
variações de vôvô
(vôvo ou vovô) foram mantidas de acordo com o
original.
As variações de nomes próprios foram
mantidas de acordo com o original.
No original estão presentes dois capítulos VII
(no volume I),
rectificados nesta versão.
No volume II verificamos que se passa do capítulo IV para o VII e
a numeração dos capítulos fica alterada a partir desse momento.
Uma vez que não há páginas em falta, rectificámos nesta versão.