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PRINCIPIOS E QUESTÕES
DE
PHILOSOPHIA POLITICA
POR
ANTONIO CANDIDO RIBEIRO DA COSTA
II
LISTA MULTIPLA E VOTO UNINOMINAL
COIMBRA
LIVRARIA CENTRAL DE JOSÉ DIOGO PIRES
9--Largo da Sé Velha--10
1881
PRINCIPIOS E QUESTÕES
DE
PHILOSOPHIA POLITICA
PRINCIPIOS E QUESTÕES
DE
PHILOSOPHIA POLITICA
POR
ANTONIO CANDIDO RIBEIRO DA COSTA
II
LISTA MULTIPLA E VOTO UNINOMINAL
COIMBRA
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
1881
AO
DR. JOSÉ CABRAL TEIXEIRA COELHO
em homenagem á lealdade do seu coração
e á exemplar probidade do seu talento
Off.
O auctor.
SUMMARIO
I Comprehensão actual do suffragio politico. Opiniões de Dupont White,
Bluntschli, Wirouboff, Oliveira Martins. Antinomias d'aquelle facto
social;
diversas soluções para as reduzir; a que deve ser preferida.--II Estado
da questão tratada n'este folheto: a votação deve ser uninominal, ou de
muitos nomes? É, fundamentalmente, uma questão de anthropologia. A
philosophia naturalista do seculo XVIII em contradicção com a moderna
anthropologia.--III Historia da lista multipla (
scrutin de
liste) na França e
entre nós. Tem por si as melhores tradições democraticas. Juizo de
Gambetta
sobre a revolução de 1848. Como a questão eleitoral foi considerada
no nosso parlamento em 1859.--IV A lista multipla é preferivel ao voto
uninominal. Tem, principalmente, a vantágem de inverter o suffragio,
tornando-o
indirecto. Porque foi inefficaz na constituição da assembléa franceza
de 1871. Objecções contra a lista multipla.--V Analyse da primeira
objecção. O suffragio directo é uma illusão; se tem de ser dirigido,
antes o
seja pelas grandes commissões dos partidos do que pelas influencias
locaes.
Este regimen produz, quasi sempre, as melhores assembléas legislativas.
Importancia da imprensa n'este modo de eleger; sua justificação.--IV
Analyse
da segunda objecção. A lista multipla rompe a intimidade do eleitor
com o seu representante. O sentimento pessoal não é da essencia do
voto.
Aquella intimidade produz as seguintes consequencias: rebaixa a lucta
eleitoral,
permitte a seducção pelo dinheiro, obriga os eleitos a um servilismo
indecoroso. Demonstração.--VII É o regimen mais proprio para a formação
de parlamentos fortes e de governos viaveis. É esta a sua maior
excellencia
n'este momento da civilisação occidental. Apreciação rapida do estado
da
França, da Italia, da Hespanha e de Portugal. A representação das
minorias
é compativel com a fortaleza dos governos. A lista multipla, só por si,
permitte,
até certo ponto, aquella representação. Demonstra-se isto.--VIII
Commentario
a uma phrase de Lord Derby. Considerações sobre o presente estado
da civilisação politica. Perigos das agitações muito repetidas.
Incerteza do
futuro. Gravidade d'esta incerteza.
I
O suffragio politico, que é, desde muito, um facto consummado
na vida dos povos mais cultos, está ainda longe
de ser um raciocinio triumphante uma verdade positivamente
liquidada nas especulações da sciencia.
Em quanto dominou o mundo a philosophia absoluta, que
tinha a intuição por methodo principal, a discussão d'aquelle
facto foi apaixonada, levou alguns interessados n'ella á prova
extrema do martyrio, chegou a determinar uma formidavel
revolução, que é um dos acontecimentos culminantes d'este
seculo; mas a ponderação das suas difficuldades praticas e
o verdadeiro conhecimento da sua indole, antinomica com
irrecusaveis condições sociaes, são obra de outra escola, que
antepõe a analyse ao enthusiasmo inconsciente e a realidade
das cousas ao optimismo dos espiritos.
E não são já sómente os discipulos d'essa escola, os puritanos
seguidores da philosophia experimental, que vêem no
suffragio politico as difficuldades, que elle importa, e as
contradicções, que elle encerra. Graças á influencia dos novos
methodos, sentida ainda por aquelles que fazem gala de os
[2]
combater, essa instituição do Direito Publico perdeu o falso
prestigio sentimental que a aureolava, e é geralmente tida
hoje pela mais perigosa de todas as funcções sociaes.
Ao invez de tantos que saudaram o suffragio generalisado
como aurora d'uma liberdade viavel e fecunda, insignes
publicistas de todos os matizes são attestes em consideral-o
um
mal gravissimo, a que urge applicar remedio.
Dupont
White qualifica a democracia de contra-senso, de pura chimera,
porque entrega e confia o que
a sociedade tem de mais
difficil nas suas obras a quem é mais incapaz entre os seus
membros, e para a mais alta das funcções, que é o governo,
destina o mais grosseiro de todos os orgãos, o suffragio do
povo!
[1]. Bluntschli friza muitas vezes a mesma idéa, e, na
violenta apprehensão que lhe causam os perigosos abusos do
voto universal, propõe, como forçoso antecedente ao exercicio
dos direitos politicos, o que elle chama
consagração
civica,
uma especie de chrisma administrado pelo Estado, n'uma
festa solemne, aos que a edade vai collocando na categoria
de cidadãos
[2]. Wirouboff, o energico continuador de Littré,
teve ainda ha pouco a coragem de dizer em plena França,
no paiz classico do suffragio universal, que este, quando não
era uma flagrante contradicção, não passava d'uma inanidade,
a que a rhetorica constitucional revestia, a seu talante, toda
a sorte de roupagens
[3]. E, para produzirmos uma auctoridade
[3]
nossa, transcrevemos as seguintes palavras de Oliveira
Martins, o poderoso e brilhante escriptor, que dia a dia se
habilita para exercitar gloriosamente o primado das letras
portuguezas:
«O descredito chegou a um ponto que os maiores
amigos do systema são hoje os inimigos da liberdade. Os cesaristas
são os primeiros defensores do suffragio universal,
que a democracia, como partido, não teve ainda a coragem
de confessar que é uma burla»[4].
[4]
Por outro lado, a legislação eleitoral muda, transforma-se
sempre dentro de curtos periodos, revelando-se assim frequentemente
[5]
a desillusão padecida pelos povos, que teem
de repellir, por inefficazes, as suas creações no dia seguinte
ao da
[6]
producção d'ellas. A propria Inglaterra, tão adherente
ás suas tradições de toda a ordem, excepciona, a este respeito,
o temperamento da sua raça.
Que explicação tem este grave conflicto, em que estão empenhados
os mais distinctos entendimentos e os mais importantes
interesses do nosso tempo? Tem a seguinte: a imprudentissima
antecipação de reformas, que o povo,
a ultima
e mais numerosa classe da sociedade, está longe de
comprehender
e executar, e a manifesta impossibilidade de restringir
faculdades, que a lei e o costume consagraram como
direitos.
É certo que na Suissa e nos Estados-Unidos o suffragio
universal funcciona menos imperfeitamente; mas o povo d'essas
duas florescentes republicas tem uma longa educação democratica,
e, sobre tudo, uma larga descentralisação administrativa
e politica, e por isso o voto individual dos seus cidadãos
satisfaz, pelo menos, a estes requisitos de todo o legitimo
suffragio:
interesse immediato e especialisação do
saber. Nos
outros paizes o regimen unitario annulla estas duas condições,
e causa lastima, profunda lastima, ver como a humanidade
culta relucta ahi infructuosamente com a fatalidade
[7]
d'um legado historico, que não sabe aproveitar e não póde
repellir!
Partindo da mesma comprehensão d'este phenomeno social,
são diversissimas as direcções seguidas pelos pensadores
que consideram e sentem as difficuldades do problema. Uns
limitam-se, no maior desalento, á negação pessimista de todo
o progresso. Outros, tão insensatos e estereis como aquelles,
esperam que o suffragio universal se curará a si mesmo todos
os males, como se fosse alguma cousa mais do que um instrumento
material, manejavel a quaesquer impulsos! Não
falta quem se contente com ostentosos programmas das reformas
a operar para que o voto politico seja uma realidade
efficaz, esquecendo-se de que taes reformas só em muito distante
futuro são realisaveis, e de que, no entretanto, a suspensão
do suffragio universal é absolutamente impossivel.
Ha, emfim, alguns espiritos melhormente avisados, que, vendo
as cousas como ellas são, curam de applicar
desde já
ao suffragio
universal um systema de modificações que o torne mais
racionavel na sua organisação e menos damnoso nos seus
effeitos. Para estes toda a discussão dos fundamentos do
suffragio é abandonada por ociosa e inutil. Elles sabem que
são totalmente indifferentes ao interesse real dos povos as
controversias apparatosas, que podem entreter os ocios d'uma
sabia academia, mas não accrescentam um ceitil á economia
das sociedades, nem despontam a rudeza das infimas classes,
que, sem saberem para quê, nem porquê, estão hoje investidas
dos supremos poderes.
Acceito o pensamento d'este grupo de pensadores, e já
procurei servil-o formulando e desenvolvendo a grande verdade
[8]
da
representação proporcional[5]; e hoje
continúo o
primeiro trabalho, examinando uma questão, tambem eleitoral,
que a França retomou ainda ha pouco, e exhibiu ao
mundo n'aquella magnifica fórma com que esta gloriosa nação
avulta e sobredoira sempre todos os assumptos que a impressionam
sériamente.
Esta questão versa sobre a
unidade ou
multiplicidade de
nomes na lista de cada eleitor.
II
O suffragio politico é concedido para a formação de assembléas
legislativas, ou de corporações incumbidas da administração
local. Para que elle produza, pelo melhor modo, o seu
resultado, qual d'estas duas cousas será mais conveniente:
a votação de cada eleitor n'um só nome, destinado a representar
um determinado circulo, ou a votação de lista com
muitos nomes, que ficam constituindo a representação collectiva
d'uma area mais larga?
Do simples enunciado da questão resalta já que ella é
de pura
fórma, extranha ao que poderia chamar-se, em
linguagem antiga, a
essencia do suffragio. O que se
debate
é o valor relativo de dois processos empregados para a consecução
da mesma cousa, de dois modos de aproveitar praticamente
[9]
uma força, que, em qualquer d'elles, subsiste
como era.
Não partem da mesma ordem de idéas os que defendem
o voto uninominal e os que rompem lanças em defesa da lista
multipla. Aquelles preoccupam-se mais do interesse e da competencia
do eleitor; estes visam principalmente á melhor constituição
das assembléas politicas. Os primeiros representam,
n'esta questão, a escola que considera o suffragio como um
direito; os segundos pertencem á que considera o voto politico,
não como um direito do
homem, mas como o privilegio
do
cidadão, subordinado aos interesses geraes do
Estado.
Diga-se de passagem que esta distincção tem um grande
sabor metaphysico. Contra a comprehensão do suffragio como
um direito insurge-se a anthropologia, estudada pelos modernos
processos; contra a definição d'elle como privilegio
levanta-se a historia da sua generalisação, póde dizer-se que
até ao limite extremo, nos mais adeantados povos da Europa
e da America.
É á philosophia naturalista do seculo XVIII que se deve a
idéa de que todos os homens, pelo só facto de serem homens,
devem ter egual participação no governo das sociedades. A
declaração dos direitos do homem e do cidadão, com
que abre
a constituição franceza de 1793, consagra, no art. 6.º, este
principio:
a liberdade tem por fundamento a
natureza. Esta
phrase vem da Encyclopedia.
Mas a natureza, como a entendia aquelle seculo, não é
qual a descrevem as sciencias de hoje. Era então um mixto
de factos positivos e de abstracções idealistas, um conceito
absoluto de que era facil deduzir as mais ousadas consequencias.
[10]
E passava-se da natureza para a sociedade, importando
ao regimen d'esta as mesmas illusões
egualitarias
que a sciencia
consagrava n'aquella. Se a natureza é a mesma em todos
os homens, todos os homens devem ter os mesmos direitos
politicos. Era este o raciocinio, sympathico ás inferioridades
sociaes, fulminante para as tradições estabelecidas, excellente
como instrumento de negação, mas falso, falsissimo, como
base da nova ordem de instituições, que era necessario edificar
sobre os escombros do passado.
O naturalismo de hoje formúla conclusões oppostas áquella
doutrina. Buffon e Diderot são triumphantemente combatidos
por Darwin e Haekel. É já verdade incontestada que os progressos
da civilisação, differentes de povo para povo, e, dentro
do mesmo povo, de classe para classe, produzem novas
faculdades naturaes, e que a obra do esforço humano se perpetúa
conjunctamente nas paginas da historia e na anatomia
do cerebro.
A este modo de explicar as desegualdades sociaes corresponde
a doutrina que considera o voto como um
encargo, na
phrase de Stuart Mill
[6], ou como um direito
publico, por
opposição a direito
natural, na linguagem de
Bluntschli
[7].
O direito de suffragio, diz este illustre professor,
não é um
direito natural do individuo, como pretende o Contracto Social,
mas um direito publico derivado do Estado, existindo
só no Estado, não podendo servir contra elle. É como cidadão,
não como homem, que o eleitor vota; elle não deduz o
[11]
seu direito de si mesmo, das necessidades da sua existencia,
ou do seu desenvolvimento pessoal, mas da constituição do Estado,
e para bem d'este.
Infelizmente as lições da moderna biologia e as profundas
theorias dos mais eminentes publicistas vieram tarde, demasiadamente
tarde. A revolução politica, que estendeu a todas
as classes a faculdade de intervirem na gerencia social, sem
consideração pelo seu estado mental e pela sua situação economica,
estava já consummada quando vieram a lume aquellas
verdades. E uma revolução feita é uma fatalidade indestructivel;
deixa sempre na organisação dos povos um elemento
novo, bom ou máo, mas tão firme, tão persistente como as
camadas geologicas que se sobrepõem na constituição do
nosso planeta.
III
Quando, no verão passado, a questão da lista multipla
(
scrutin de liste) appareceu no parlamento francez
por uma
proposta do deputado Bardoux, defensores e adversarios d'ella
invocaram a historia dos dois regimes eleitoraes, querendo
os primeiros mostrar que estavam com as mais genuinas tradições
republicanas, e sustentando os segundos, com inflammado
interesse, a these opposta.
Sem embargo de ser pouco edificante vêr uma das mais
brilhantes assembléas do mundo dividir-se assim na interpretação
de factos tam proximos e tam geraes, é certo que a
intenção de todos elles era perfeitamente legitima, porque a
[12]
melhor prova d'uma instituição pratica é a experiencia que
d'ella se faz.
Houve exaggero de um e outro lado, mas da parte dos
que pugnavam pela lista multipla estava maior porção de verdade
historica. A lei de 22 de dezembro de 1789, a primeira
que a França teve sobre liberdade politica, mandava
fazer as eleições pelo voto plurinominal, e do mesmo modo
dispunham a Constituição de 1791, o decreto de 12 de agosto
de 1792, a Constituição de 1793 e a do anno III. Este systema,
hybridamente combinado com o do suffragio uninominal,
atravessou todo o periodo da Restauração, e só em 1831,
no estabelecimento da monarchia de julho, foi que elle teve
de ceder, ficando em vigor, até 1848, o suffragio por circulo,
que a revolução d'esta data aboliu logo por um acto do
governo provisorio, sendo a lista multipla adoptada para a
formação das duas assembléas republicanas. O principe L.
Bonaparte, ainda presidente, substituiu-lhe o voto uninominal,
que serviu admiravelmente, em todo o tempo do imperio,
aos nefastos intuitos d'este famoso aventureiro. A terceira republica
reviveu o regimen eleitoral de 1849, e foi por elle
formada a assembléa de 1871. Substituido pelo outro systema
em 1875, voltou, no anno corrente, a ser proposto,
questionado apaixonadamente e por fim votado na camara
franceza, depois d'um dos mais notaveis discursos com que a
poderosa eloquencia de Gambetta tem illuminado a tribuna
de Mirabeau; e se a fortuna lhe foi adversa no senado, talvez
isso se deva antes a rivalidades pessoaes do que a divergencias
de doutrina.
D'este summario historico vê-se que a democracia franceza
[13]
tem decidida predilecção pela
lista multipla, que
ainda póde
invocar em seu favor as malquerenças dos ministros de Luiz
Philippe e dos cortesãos de Napoleão III.
Menos avisado andava, pois, o deputado Charles Boysset,
relator da commissão que deu parecer contrario á proposta
de Bardoux, quando escrevia que aquelle systema eleitoral
não tinha honrosos precedentes; e ainda menos feliz quando
a paixão e o interesse partidario o levavam á injustiça de dizer
que a assembléa de 1848 era
mediocre de espirito e de
coração!
A grande voz de Gambetta vingou nobremente a memoria
da revolução de 1848 n'estas eloquentes palavras:
A assembléa
constituinte d'esta epocha está acima de todas as aggressões
e de todas as criticas, quer se falle do seu coração, quer
do seu espirito. Todos podem julgar, á sua vontade, o coração
das assembléas, mas o brilho do talento, o prestigio dos
caracteres... Qual é o talento, o genio, o illustre homem
politico
que não tinha logar na assembléa de 1848, com excepção
do sr. Guizot? Eu vejo-os ahi todos. A sua politica pertence
ás disputas dos homens, mas não o ascendente do seu
espirito, da sua auctoridade. Eu creio que, depois da Convenção,
a assembléa de 1848 é a maior que a França tem
na ma historia.
A camara de Versailles não merecia ao eminente orador
uma phrase de rehabilitação; mas, n'um dos mais distinctos
movimentos da sua eloquencia, o suffragio universal e a
lista
multipla ficaram salvos d'essa prova,
pela reacção
que logo
operaram contra as suas proprias fraquezas.
Os adversarios da proposta de Bardoux não podiam sustentar-se
dignamente n'este campo. O voto plurinominal, segundo
[14]
o espirito d'aquella proposta, é vulneravel em alguns
pontos, mas, como logo veremos, não se lhe póde negar a
qualidade de ser, mais que outro qualquer systema, favoravel
á formação de assembléas fortes pelo seu pensamento politico
e luzidas pela distincção intellectual dos seus membros. E esta
qualidade, sempre consideravel, é hoje preciosissima, porque
os deveres da civilisação, instantemente reclamados em toda
a parte, só podem ser satisfeitos por situações politicas muito
definidas e muito vigorosas.
Na nossa prática constitucional foram já adoptados os
dois regimens. Estabelecida a eleição directa, começou-se pela
lista multipla. Consagra este systema eleitoral o decreto de
30 de setembro de 1852
[8].
Durou sete annos este regimen, que não pôde resistir á
valente opposição que lhe fez José Estevão. A lei de 23 de
novembro de 1859 foi inspirada por este glorioso orador,
[15]
que, d'essa vez, desserviu um pouco a liberdade que elle
tantas vezes honrara com o seu talento e com o seu caracter,
porque não pôde prever que o systema de 1859 ainda havia
de produzir peores resultados, muito peores, do que o de
1852.
No relatorio do projecto, que se converteu n'aquella lei,
diz-se:
«A commissão adopta o principio dos circulos pequenos,
propondo um só deputado por cada circulo. Buscando
assim a unidade e a verdade da representação, e procurando
obter a expressão genuina de todas as opiniões e conveniencias
das povoações, considerou a commissão que os interesses
locaes são distinctos, mas não contrarios ao interesse geral,
e que este não póde compôr-se senão da somma de todos
aquelles.» E com estas poucas idéas, variadamente
paraphraseadas
nas duas camaras, correu toda a discussão d'um
projecto importantissimo, que interessava á propria existencia
da liberdade, porque esta tem, com o suffragio politico,
a mesma estreita relação que as funcções vitaes têem com os
seus respectivos orgãos!
Estudada nas sessões das camaras, aquella discussão é
d'uma esterilidade absoluta. Não ha alli um argumento estatistico,
uma consideração pratica, uma alta theoria, a comprehensão,
por qualquer modo manifestada, de que se questionava
o mais momentoso assumpto que póde ser sujeito a
assembléas politicas. Passou-se d'um para outro regimen
eleitoral, sem que o systema revogado fosse convencido da
sua iniquidade, e o que vinha substituil-o recebesse a calorosa
consagração que os amigos da liberdade offerecem sempre
ás novas fórmas d'este augusto principio. Pois na camara,
[16]
que votou a lei de 23 de novembro, estavam os eloquentissimos
oradores José Estevão e Rebello da Silva, e batia o
coração do sincero democrata F. Coelho do Amaral!
IV
Prefiro a lista multipla á votação uninominal. Aquella tem
para mim a preciosa vantagem de restringir a extensão do
suffragio e de realisar, pela melhor fórma, a votação em dous
gráus, não como ella é proposta em theoria e tem sido praticada
em todos os paizes, mas de modo inverso: collocando
n'uma especie de assembléa primaria os eleitores influentes,
os que constituem a parte pensante da sociedade, e deixando
aos outros a mera confirmação da escolha feita.
Sei que esta opinião irrita as coleras de todos os visionarios
do suffragio directo, os quaes acham delicioso zelar e defender,
no conforto do gabinete, os direitos da multidão, salva
sempre a disposição de sacrificar esses direitos na primeira
opportunidade que appareça; mas eu procuro uma solução
pratica, e o que menos contribue para isso é o platonismo
de publicistas que, a despeito das mais rudes lições da experiencia,
continuam a considerar o povo uma abstracção, e
a recortar n'esta abstracção os caprichosos arabescos da sua
phantasia.
Se admitisse a realidade d'uma ligação moral entre os
eleitores e os seus representantes; se não soubesse que entre
uns e outros só raramente se produz uma relação politica,
[17]
no mais nobre significado d'esta phrase; se a observação quotidiana
não estivesse ahi a mostrar aos mais refractarios que
a grande maioria dos cidadãos ignora sempre as qualidades,
os precedentes e os intuitos dos candidatos que elege; se fosse
possivel alterar, dentro de curto praso, as condições mentaes
da turba, que não sabe, nem quer saber, os rudimentos da
boa educação civica; se não fosse vão e esteril todo o proposito
de levar, pelos processos usados, á consciencia do povo
a luz dos seus deveres e a dignidade dos seus direitos--ainda
poderia hesitar entre os dois systemas. Mas como voaram,
ha muito, as douradas illusões com que o meu espirito se
creou, e me parece que é perfeitamente legitimo tirar de situações
defeituosas o maior partido possivel, entendo que,
vista a impossibilidade de realisar no maior numero de individuos
a intenção do voto, deve este servir a mais alguma
cousa do que ao triumpho inglorio das insignificancias locaes,
ou ás predilecções dos governos, as quaes recáem quasi
sempre em amigos pessoaes e partidarios accommodaticios,
e lançar-se mão da lista multipla, que não póde, é certo,
photographar as feições miudas da sociedade, mas desenha
as linhas principaes da sua physionomia politica.
Não é infallivel este meio. Em determinadas circumstancias
póde ser inefficaz para a formação de uma boa assembléa
politica; e um exemplo recente, a camara franceza de
1871, é prova d'isso. Caíu o imperio nas ignominias de Sédan;
os deputados de Paris, tendo á sua frente o general
Trochu, assumiram o governo provisorio e deram brilhantes
manifestações do seu patriotismo e da sua coragem; fieis ás
suas tradições, despertadas em 1869 por uma celebre proposta
[18]
de Ferry, Gambetta e Arago, os homens que tinham a
responsabilidade da situação reviveram logo a lista multipla,
suspensa desde 1852; não havia razão para invocar as obliteradas
tradições do velho regimen; a despeito da violenta
compressão exercida sobre o movimento democratico nos
vinte annos precedentes, a corrente das idéas modernas tinha
engrossado de dia para dia; tudo parecia indicar que a urna,
abandonada á sua espontaneidade por expressas recommendações
de F. Herold, o honrado ministro que presidiu ao acto
eleitoral, consagraria definitivamente a republica como fórmula
comprehensiva de todas as aspirações politicas... Pois o
que aconteceu foi exactamente o contrario de quanto se esperava:
os elementos reaccionarios apparecerem em grande
maioria; o partido republicano, com que a França se encontrava
na hora da desgraça, foi o menos considerado pelo
suffragio universal!
As angustiosas circumstancias em que estava, aquelle paiz
explicam sufficientemente este phenomeno sociologico. O desejo
da paz era o mais forte sentimento que dominava os
espiritos; os republicanos, talvez pela vehemencia com que
tinham dirigido a sua recente opposição ao imperio, passavam
na opinião geral por demasiadamente insoffridos, e, por
tanto, perigosos n'aquella difficillima conjuncção. Por outro
lado, os exercitos allemães pesavam ainda, como um castigo
e uma ameaça de ferro, no solo da França, e o delirio communalista,
que era o exaggero d'uma idéa, levava naturalmente
aos extremos da reacção contra tudo o que de algum
modo se assimilhasse a essa idéa, na essencia ou na fórma,
de longe ou de perto, na realidade ou
no nome.
[19]
A lista multipla serviu á situação moral d'aquelle momento.
Traduziu com fidelidade um estado máu, que ella não podia
alterar nem substituir por outro. E, vistas as cousas d'este
modo, a assembléa de 1871,
condemnada ao infortunio de
se reunir por graça e sob a inspecção do vencedor, na phrase
de L. Blanc, não é razão plausivel contra o systema eleitoral
que a formou.
Diz-se contra este systema que elle é a negação do suffragio
universal directo, porque a incidencia do voto tem de ser
regulada, forçosamente, por grandes commissões centraes do
governo e da opposição;
que rompe a intimidade do eleitor com o seu representante;
que favorece os abusos do poder, e permitte, sob apparencias
parlamentares, os maiores excessos da dictadura.
Vejâmos o que estes argumentos valem. Contra elles opponho
desde já a affirmação de que, com a representação
das minorias
[9], a lista multipla é o menos inconveniente
[20]
de todos os regimens applicaveis a um Estado unitario,--e
de que, ainda sem aquella representação, é preferivel a outro
qualquer systema.
V
O que fica dito nos numeros precedentes é bastante para
annullar a preoccupação do suffragio directo, que avulta em
todos os defensores do voto uninominal. O suffragio não é,
em caso algum, verdadeiramente directo, se esta phrase significa
a acção immediata e a intenção conscienciosa do eleitor
no exercicio da sua liberdade politica.
[21]
Em circulos de um só deputado, ou em districtos de muitos,
a maioria dos cidadãos determina-se por motivos completamente
extranhos á inspiração do seu direito, porque esta inspiração
não é possivel na cerrada ignorancia e na invencivel
dependencia das classes inferiores. Isto é evidente a todas as
luzes; é uma verdade de applicação geral a todos os povos,
não lhe escapando a propria França, que tem por si a vantagem
d'uma mais adeantada cultura, e o effeito inapagavel
da sua educação revolucionaria. Lá, como em toda a parte,
o povo é esta grande classe operaria, numerosissima, que trabalha
para viver, sem se importar muito com quem governa,
confundindo as côres das bandeiras politicas, e fazendo do
seu voto um presente de favor ou um objecto de mercancia.
Não podia ser d'outro modo. Que interesse póde ter o
eleitor em decidir com um acto da sua vontade questões que
não conhece, e julgar homens que é incompetente para apreciar?
O suffragio directo é, pois, uma illusão, uma mentira, a
hypocrisia da lei, que se contenta com a apresentação da sua
letra, e não se importa para nada com a sophismação do seu
espirito.
Considerados, sob este aspecto positivo, os factos eleitoraes
de todos os paizes, qual d'estas duas soluções é melhor:
deixar á mercê de pequenos interesses pessoaes e locaes a
faculdade de que a lei investe o povo, ou organisar o suffragio
de maneira que essa faculdade tenha de ser movida por
mais elevadas causas, quaes são o prestigio d'um partido e
a influencia d'uma doutrina?
É esta a melhor solução. Os principios tomam o logar aos
[22]
individuos; o espirito do eleitor sobe da confiança absoluta
n'um homem á comprehensão de que alguma cousa mais importante
depende do seu voto; os cidadãos intelligentes, verdadeiramente
interessados nos negocios publicos, têm uma
area mais larga para o exercicio dos seus direitos; estabelecem-se
correntes de idéas e de factos em que podem colher
ensinamento e lição os que são capazes d'isso; e n'estas condições
sempre o voto dos eleitores, consciencioso ou não,
serve á elevação de homens distinctos, collocados á maior
luz pela fama do seu merecimento e pelo respeito do seu partido.
Com a lista multipla vem a necessidade de commissões
politicas, que discutam e escolham os nomes mais prestigiosos,
combinem as influencias locaes, aconselhem e dirijam
todo o movimento. É isto uma objecção válida contra a lista
multipla, como pretendem os defensores do outro systema?
Pelo contrario. Fica o suffragio popular com o que elle mais
precisa: uma grande escola; advem aos partidos uma nova
força, que elles, em geral, só teem no nome: a força da disciplina.
Não se comprehende o horror que muita gente professa
pelas grandes commissões directoras dos partidos, quando
essa mesma gente vê, sem magua, as que disputam o ascendente
eleitoral no espaço breve e fechado d'uma pequena
localidade; e não se comprehende porque, em primeiro logar,
o systema da lista multipla não inutilisa as influencias que
são legitimas, mas aproveita-as n'um sentido impessoal e
mais nobre,--e depois é claro que aquellas commissões, no
seu proprio interesse, hão de mostrar-se determinadas por
[23]
motivos dignos da ampla discussão a que estão sujeitas, e
da grave responsabilidade que assumem.
Não ha vida publica, elevada e digna, sem partidos fortemente
organisados. Quando a opinião é anarchica, sem principios
certos e indicações positivas, o governo é fatalmente
pessoal, sem culpa sua, por necessidade das cousas. Tudo o
que possa dar cohesão e nervo á disciplina dos partidos é
por tanto de aproveitar a bem da liberdade e da ordem, principalmente
da ordem, porque, segundo um profundo conceito
de Augusto Comte, é por esta que mais hoje se deve receiar,
sendo, como é, a liberdade um facto radicado nos costumes
e, de todo o ponto, superior a quaesquer tentativas para o
annullar.
Não é indifferente á organisação dos partidos o modo de
fazer as eleições. Tal systema póde inutilisar todos os esforços
politicos, por melhor commando que tenham; outro, pelo contrario,
liquída e apura com verdade, pelo menos aproximada,
as forças compromettidas n'uma lucta eleitoral. Na vigencia
do primeiro, produzem-se a inacção e a indifferença; sob garantia
do segundo, a actividade politica multiplica os seus
meios de propaganda e de combate.
Parece-me que, dos regimens usados e conhecidos, é a lista
multipla o mais adequado a fomentar e entreter nos partidos
o seu espirito de disciplina. Este regimen importa uma certa
centralisação eleitoral, e sem esta não ha, como não ha no
governo sem centralisação politica, a energia que convem á
pratica de principios que hão de soffrer opposição, e á realisação
de actos que teem de ser contestados.
Com o voto uninominal é frequente a imposição feita aos
[24]
chefes dos partidos, supremos representantes da sua dignidade
e da sua força, pelas influencias locaes, que fazem questão
d'uma pessoa, recusam toda a transacção proposta, e
reclamam ainda o que julgam preço devido pela sua dedicação,
que não passa de miseravelmente egoista. No outro systema
taes intransigencias seriam quasi sempre impossiveis
por virtude d'este dilemma: sujeição ao pensamento geral do
partido, ou perda dos votos dissidentes. Como esta solução
difficilmente encontraria seguidores, aquella viria a vingar, e,
com ella, o maior lustre da vida publica, que está, evidentemente,
em substituir as mediocridades, que o favor ou a dependencia
dos vizinhos eleva ás assembléas legislativas, pelos
talentos mais prestimosos e pelos mais veneraveis caracteres
que sustentam e brazonam as aggremiações partidarias.
Não falta quem, por uma notavel inversão das observações
mais repetidas, desconheça aquella vantagem da lista multipla,
e até lhe faça cargo de favorecer a elevação de insignificancias
politicas, que só valem porque a opinião, n'um dos
seus movimentos mais imprevistos e menos reflectidos, lhes
põe os nomes no primeiro plano. N'esta falsa preoccupação
escreveu o duque de Broglie
[10]:
É um meio (a lista
multipla)
de dar ingresso no parlamento aos
corypheus do jornalismo,
ás reputações de coterie, a estes idolos de uma popularidade
facticia e ephemera, que um dia levanta e o dia seguinte
abate e prostra no chão inconsistente da capital. Não é
assim.
Se a illusão é possivel, e é algumas vezes, mais facilmente
[25]
irá por deante nos pequenos circulos, onde os echos dos
grandes centros teem sempre uma repercussão amplificada,
do que no juizo de homens illustrados e experientes, que se
não deixam vencer pela fascinação de effeitos postiços, quasi
sempre preparados com uma arte de que só os ingenuos desconhecem
o segredo.
Não haja receio de que a lista multipla sacrifique as influencias
particulares, que têm por objectivo o real, o verdadeiro
merecimento. Essas subsistem, essas fazem-se valer,
seja qual fôr o systema adoptado, porque os homens dignos
e valorosos encontram sempre uma acceitação sympathica, e
se trazem, de virtude propria, a consagração eleitoral das
suas qualidades, tanto melhor para elles e para as causas que
veem servir. Os que padecem, mas justamente, são os que,
tendo alcançado por meios, bons ou máus, um certo ascendente
nas povoações em que vivem, jogam depois com elle a
sabor dos seus interesses, explorando conjunctamente a affeição
dos seus constituintes e a necessidade e dependencia
do seu partido.
É indispensavel vêr as cousas como ellas são na realidade,
e não sómente como as descreve a sciencia de gabinete. Não
se fórma juizo seguro a respeito dos factos sociaes sem praticar
os homens, surprehender as suas paixões, apreciar, pessoalmente,
a intelligencia e a moralidade d'elles, diversas em
cada classe, e acompanhal-os, de perto, nos actos mais importantes
da sua vida publica. Não se estuda a geographia
botanica dentro d'uma estufa; não se apprende a biologia pela
só analyse d'um exemplar vivo; bem clara, bem simples, bem
regular é a existencia das estrellas, e não ha uma, entre as
[26]
que a astronomia conta, que não haja sido observada mil
vezes. Como se ha de dizer, com acerto, das complicações do
suffragio universal, se apenas se conhecem theoricamente de
auctores, que persistem em metter a humanidade nos moldes
brincados da sua artificiosa phantasia?!
Raro adversario da lista multipla deixa de se mostrar apprehensivo
pela grande parte que ella confere á imprensa nas
evoluções eleitoraes. Mas é sem razão. O elogio da imprensa
é um logar commum a que, applicando uma phrase celebre,
já não vale a pena pôr gravatas brancas. A luz, que ella diffunde,
allumia toda a vida moderna. Se fosse possivel extinguil-a,
far-se-ia noite no espirito humano. Quantas faculdades
se lhe concedam, quantas influencias se lhe facilitem, não
serão de mais, não serão nunca excessivas, porque ella retribue,
centuplicadas, as vantagens que se lhe fazem. Por isso
é uma excellencia da lista multipla o que passa, entre muitos,
pelo seu mais grave defeito.
Estabelecida a lucta eleitoral, a imprensa assume as proporções
d'uma aula solemne, em que os partidos discutem
os seus programmas, relembram a sua historia, traçam o seu
itinerario, explicam todo o seu modo de vêr e sentir as necessidades
do seu tempo e do seu paiz. Quem é capaz de
apprender, apprende; quem procura os elementos precisos a
uma orientação segura, colhe-os facilmente. As questões pessoaes,
em que tantas vezes a injuria substitue a critica, cedem
o logar ás correntes de idéas, que circulam copiosamente,
inundando todas as consciencias que a educação predispoz
ás fecundações do ensino; e, d'este modo, as questões politicas,
que o suffragio popular é chamado a decidir, transfiguram-se
[27]
na sua verdadeira luz: em vez de apparecerem na
fórma de um homem, apresentam-se e elevam-se na grandeza
de uma doutrina.
Em face de tudo isto não será conveniente que a direcção
do suffragio popular, o qual é e será ainda por muito tempo
um facto subalterno, suba da intriga local, pequena nos intuitos
e indigna nos processos, para os conselhos centraes
dos partidos, que obedecem a mais altas inspirações?
Penso que é, e sem hesitação, sem uma sombra de duvida.
VI
A lista multipla tira ao suffragio politico o sentimento pessoal,
que deve revestil-o, e rompe toda a intimidade necessaria
entre o eleitor e o seu representante. Eis outro argumento
vibrado contra aquelle regimen, e, de certo, o mais
perigoso pelas falsas apparencias que o esmaltam.
Aquelle sentimento é uma circumstancia sem valor; o rompimento
d'aquella intimidade é inevitavel n'este modo de eleger,
mas é excellente.
O voto eleitoral não é occasião para gosos sentimentaes,
as nupcias mysticas do cidadão com o seu representante, o
vinculo sympathico de pessoas intimamente conhecidas, mas,
simplesmente, a funcção material que serve a liberdade de
opinião sobre os variadissimos negocios do Estado. Ora esta
opinião exerce-se sobre idéas, e só secundariamente sobre
pessoas; e quando se refere a pessoas, é mais ás que commandam
[28]
um partido do que ás que formam o seu cortejo
parlamentar. De maneira que a votação por listas, que significam
programmas, traduz mais propriamente as legitimas
intenções da liberdade politica do que o suffragio praticado
d'outro modo. Se coincide a confiança pessoal com a convicção
politica, o acto do eleitor é mais intenso e mais agradavel,
mas o essencial é que elle diga como entende os negocios
publicos, e não que nos desvele a sua particular sympathia
em algum dos seus amigos.
Mas, concedida a legitimidade d'aquelle sentimento pessoal,
a sua consagração legal não dará azo aos mil inconvenientes
que embaraçam e deshonram o suffragio universal?
Dá.
Em primeiro logar a lucta politica, reduzida á mera concorrencia
de pessoas, é quasi sempre infamada por injurias,
arremessadas de lado a lado, por doestos verbaes e impressos,
por calumnias de todo o genero. No periodo eleitoral
suspendem-se as garantias da moralidade publica, e todos
os ruins instinctos, todos os baixos sentimentos irrompem e
circulam desenfreiados e soltos, n'uma verdadeira profanação
da liberdade que os tolera. E este consectario do systema uninominal
é tão geralmente sentido, que raro publicista deixa
de o ponderar com a devida gravidade, e de lhe procurar um
remedio qualquer, que seja ou pareça efficaz.
A representação das minorias, dando ás aspirações de todos
os partidos uma satisfação proporcional ás suas forças, debellaria
inteiramente aquelles desastrados effeitos; a votação
por lista multipla não os acaba de todo, mas attenua-os muito,
attenua-os consideravelmente, porque dá logar a combinações
[29]
em que podem ser attendidas varias exigencias pessoaes ou
politicas.
Descrevendo aquelle feio aspecto do regimen eleitoral vigente,
e fazendo-o servir á impreterivel necessidade da representação
das minorias, disse eu na minha
dissertação
inaugural[11]:
«Tem ainda contra si o actual systema o imprimir nos
actos eleitoraes o caracter d'uma pugna violenta, intransigente,
farta de odios e de paixões. Só quem não tem assistido
a eleições é que ignora as pequenas miserias que se
exhibem n'ellas. Todas as dependencias são invocadas e não
ha pressão que se não exerça. A lucta é a todo o transe.
Porque não ha espaço para todos nos ambitos da lei, o dilemma
de viver ou morrer apresenta-se fatalmente a todos os
espiritos. Os nomes dos candidatos apparecem aos eleitores
sob esta dupla fórma: vestidos de luz e cheios de lama. Recontam-se
anecdotas, forjam-se calumnias, o libello diffamatorio
dos pretendentes avoluma progressivamente á medida
que se approxima o dia fatal. A divergencia de idéas importa
rompimento de relações, e o sentimento do odio estende-se
a familias inteiras. Não raras vezes a violencia material, o
pugilato, o assassinio até, põem nodoas de sangue n'aquelle
acto, que devia ser incruento e pacifico. Não ha cidadão que
sáia incolume d'um prelio d'esta ordem: um perdeu o amparo
e a protecção que tinha; outro é logo executado pelas suas
dividas; a vingança toma conta de todos e sacrifica-os cedo
[30]
ou tarde. A imprensa, essa augusta tribuna da verdade, demuda-se
em pelourinho de infamias. Finda a lucta, o espaço
em que ella foi ferida fica mais repugnante do que um campo
de batalha em que se dilaceraram dois exercitos: n'este alastram-se
corpos mutilados, horrivelmente desformados, com as
visagens medonhas em que a morte os surprehendeu; mas
n'aquelle, no espaço em que se digladiaram dois partidos,
ha mil reputações feridas de morte, ha muita dignidade trucidada;
e, ao invez do que acontece depois d'um combate ordinario,--depois
da guerra eleitoral continuam os odios, referve
ainda a vindicta, e as paixões imperam com toda a
força, peiores no momento da reflexão do que eram no momento
primitivo!»
O desenho afigura-se-me verdadeiro. As sombras que o
escurentam são copiadas d'uma realidade vulgar e frequente.
Verifique, quem duvidar; julgue, quem tiver consciencia.
Mas ha peior. Aquelle systema importa o emprego de dinheiro
como meio de seducção eleitoral, e o nosso paiz está,
desgraçadamente, exemplificando isso com uma largueza e
uma desvergonha terrivelmente assustadoras! A simonia politica
é já, entre nós, um facto corrente. Esta infamia estadêa
por toda a parte os attributos do seu impudor. O leilão é
publico, á clara luz do sol, ás vistas de toda a gente! É um
commercio de escravos, vestidos pela lei á feição de homens
livres. Uma miseria e uma irrisão! Vendem-se individuos,
freguezias, concelhos, circulos. Já é possivel escrever, no
mappa eleitoral, á margem de muitos circulos o seu preço ordinario!
As cousas têm progredido em tão devastadora proporção
que, apenas aberto o periodo eleitoral, pensa-se mais,
[31]
muito mais, nos homens de dinheiro do que nos que sabem
e querem prestar serviços ao seu paiz e ao seu partido; e
cidadãos distinctos, dignissimos do parlamento, vêem-se inhibidos
de ir lá, ao passo que triumpha facilmente o argentario
boçal, que considera lustre e grandeza para o seu nome
o que é um ridiculo e uma deshonra para o seu caracter. E
ha corretores encartados n'aquelle mercado, que surdem da
sua obscuridade no momento opportuno, apparecem nos gremios
politicos, combinam e discutem o pagamento dos seus
serviços, e dão, com as suas physionomias caracteristicas,
um aspecto repugnante e sordido ás reuniões e conferencias
eleitoraes...
Na Inglaterra, antes da reforma de 1832, era frequente
a exhibição d'estes espectaculos. A expressão
burgos-podres
vem de lá. Na França começa a manifestar-se esta vergonhosa
enfermidade, e é Gambetta
[12] quem a denuncía.
São costumes
que principiam (disse o grande tribuno),
mas se vós
sustentaes
o regimen parcellar applicado ao suffragio universal,
elles propagar-se-hão rapidamente, e vós ficareis, deante da
historia, com esta tremenda responsabilidade: a de ter inoculado
a gangrena do dinheiro na democracia franceza.
É certo que, estabelecido o voto plurinominal, ainda póde
continuar esta miseravel industria, mas não é menos certo
que ella ficará reduzida a mais restrictas proporções, e é
digno de benção tudo o que contribua para apagar esta
mancha nos costumes da liberdade.
[32]
Outro inconveniente do actual modo de fazer eleições é a
dependencia pessoal, quasi servil, do deputado para os seus
constituintes. Isto é sabido. Ou o deputado satisfaz todas as
exigencias, ainda as mais irracionaes, dos seus eleitores, e
n'este caso a sua popularidade alarga-se e consolida-se, mas
á custa da dignidade propria e de graves sacrificios da administração
publica,--ou não faz isso, considera por outra
fórma os deveres do seu mandato, e então os arcos de flores,
que lhe festejaram a eleição, volvem-se-lhe em forcas caudinas,
e o cantico que serviu á celebração do seu triumpho
demuda-se n'um brado geral de indignação e de censura.
Libertar o deputado d'estas relações humilhantes; collocal-o
a salvo de tão indignas dependencias; varrer as secretarias
de Estado das importunas pretensões, que, por necessidade,
os representantes da nação levam lá a toda a hora;
desaffrontar as camaras, vexadas por aquelle dilemma, e deixar
o poder executivo na maior liberdade da sua acção,--seriam
effeitos seguros, certissimos, do systema da lista multipla,
que, só por isto, merece preferido ao que ahi vigora
actualmente.
VII
Com o regimen, que defendemos, formam-se parlamentos
fortes, de côr politica muito definida; os governos, que esses
parlamentos sustentarem, poderão ser energicos, firmes, resolutos
no desenvolvimento dos seus programmas. Está n'isto
a sua maior vantagem, ao menos n'este momento da civilisação
[33]
occidental. Mas nem todos veem as cousas d'este modo,
e foi precisamente por aquelle lado que a proposta de Bardoux
soffreu mais rijas aggressões.
É facil de comprehender o motivo por que este regimen
eleitoral produz assembléas vigorosas, muito accentuadas, e,
por tanto, situações politicas longamente viaveis. Os homens
de maior valor de cada partido são necessariamente os indicados
para os districtos em que a victoria é mais provavel,
e é evidente que as assembléas se caracterisam mais pela
qualidade do que pelo numero das pessoas que as constituem.
Por outro lado, a lista multipla retrata a opinião dominante
no seu conjuncto, toma-a pelo seu relevo, surprehende-a e
colhe-a na sua maior intensidade, e d'esta fórma as maiorias
parlamentares representam o pensamento e a vontade da nação,
no que esse pensamento e essa vontade teem de real e
verdadeiro.
A maior contrariedade de que padece a moderna politica
é a fraqueza dos governos na maior parte das nações. Duram
pouco, e, geralmente, vivem mal. Antithese completa do antigo
regimen, em que a auctoridade era resistente e inabalavel,
e o conceito da ordem, um conceito majestoso e terrivel,
era, ao mesmo tempo, a maior preoccupação dos estadistas
e o principal objectivo das revoluções. Hoje tudo se divide
e subdivide; a unidade é mais um esforço do espirito do que
uma propriedade das cousas; cada fracção social, por minima
que seja, procura tornar-se independente; os elementos de
sua natureza mais affins, em vez de se unirem pelas suas
similhanças, que são essenciaes, separam-se e distinguem-se
pelas suas differenças, que são apenas secundarias. Parece
[34]
que um poderoso dissolvente foi lançado á consciencia humana,
e que, sob a sua irresistivel acção, tudo se desorganisa,
tudo se desfibra, tudo se decompõe!
É uma verdadeira necessidade a reacção immediata contra
este estado de cousas. Até agora a liberdade não tem dado
senão o que póde o seu caracter negativo; é urgente que ella
nos edifique com as fecundas germinações d'uma justiça positiva,
reconstituinte, omnimodamente organisadora. N'um
laboratorio chimico a analyse, levada ás extremas moleculas
da materia, póde desfazer, pulverisar os objectos, e deixar
disgregadas e soltas as particulas que os formavam. A natureza
é um reservatorio infinito, inexhaurivel; a cohesão
e a affinidade são leis muito superiores ás precisões do estudo
e ás contingencias do acaso. Mas na sociologia pratica
a analyse excessiva póde importar uma dissolução perigosa.
As leis que presidem á evolução historica não podem ser
quebradas pelo arbitrio humano, mas podem ser distrahidas
da sua legitima direcção, e modificadas, para mais ou para
menos, na sua progressiva intensidade. As experiencias naturaes
realisam-se n'um determinado ponto, e o universo subsiste
extranho a ellas, na grandiosa majestade da sua immensa
força; as que se operam na consciencia dominam-na, affectam-na
toda, reproduzem-se logo n'um milhão de individuos,
com rapidez e facilidade inapreciaveis...
Um simples relanço de olhos sobre as nações latinas, e
ficará evidente a necessidade de fortalecer em todas ellas as
instituições e os poderes publicos.
A França ainda apenas esboçou as reformas organicas da
democracia. Tem de revolver, e animar d'um novo espirito,
[35]
todos os grandes serviços do Estado: exercito, escola, justiça,
fazenda. O programma de Belleville indica summariamente o
que ha a fazer desde já; da sua leitura vê-se que só um parlamento
seguro e um ministerio largamente apoiado poderão
levar a cabo as idéas formuladas por Gambetta e, ao que parece,
sympathicamente recebidas por todo o paiz. Foi na conscienciosa
comprehensão d'esta verdade que o chefe do opportunismo
protegeu e sustentou a lista multipla; a hostilidade
do Senado a esta proposta obstou a que a maioria da camara
franceza tivesse a direcção e disciplina que aquelle systema
eleitoral lhe havia de imprimir, e com as quaes o annunciado
ministerio de Gambetta assentaria definitivamente, n'uma
base indestructivel, as fórmas e os costumes da republica
conservadora.
Na Italia a onda revolucionaria, conductora do novo ideal
politico, recresce incessantemente e sobe já, de quando em
quando, os proprios degraus do throno. Exhibe-se n'esta
nação o espectaculo unico de transigirem, e se accordarem
na politica interna, o representante da fórma monarchica e os
chefes do partido republicano; por isso alli a republica, ao
estabelecer-se, deve ter uma saudação e uma benção para
a dynastia vencida! Mas apesar da boa vontade de todos, a
existencia dos ultimos governos italianos tem sido angustiosa
e difficil. Ha muito que os ministerios representam, não uma
opinião triumphante, mas transacções que uma conformidade
de momento celebra, e logo qualquer divergencia desfaz e
inutilisa. É recente a famosa crise, que se prolongou por algumas
semanas, sem que o rei Humberto podesse escolher,
á mingua de indicações parlamentares, um chefe de gabinete
[36]
entre os tantos que se habilitavam para isso: Depretis, Zanardelli,
Sella, Crispi, Nicotera... N'estas condições, o que
a Italia necessita é uma reforma eleitoral, que lhe dê camaras
disciplinadas, inspiradas n'um pensamento commum, com
energia necessaria á resolução dos grandes problemas interiores
e diplomaticos, que as circumstancias lhe formulam e
impõem no actual momento. Um projecto de reforma n'este
sentido foi já apresentado; é crivel que seja brevemente convertido
em lei do paiz.
A Hespanha é outro claro argumento da these sujeita.
Ella não deve o seu relativo bem-estar senão á dominação
conservadora de Canovas del Castillo, que realisou o extranho
milagre de se equilibrar n'aquelle meio inconsistente,
onde cada idéa que nasce traz implicita a febre d'uma revolução,
onde os partidos são aguerridos como exercitos e fanatisados
como seitas, onde a concepção theocratica, combatida
ha cinco seculos, é ainda uma escola militante, e o
federalismo communalista uma doutrina publica, com historia,
com hierarchia e com programma! O actual ministerio,
de côr liberal, está, a estas horas, na prova mais solemne da
sua competencia e da sua lealdade; é de receiar que não
sáia d'esta prova tam galhardamente como deseja, porque,
apesar da excellente lei eleitoral de 1878
[13], não tem ainda
[37]
todas as condições precisas para caminhar sem estorvos, e ir
adeante, e depressa, ao seu fim.
Entre nós existe, na maior parte das consciencias, uma
aspiração vehemente para progredir, mas falta vontade, decisão
pratica, determinação decidida para requerer, de modo
efficaz, as reformas necessarias. A esta indolencia da nação
corresponde a esterilidade dos governos. O systema eleitoral
vigente, longe de a combater, favorece a inercia nacional, porque
[38]
toca apenas na superficie do espirito publico, em vez de
o interessar intimamente, revocando-o á vida, obrigando-o a
luctar. Sob este aspecto, Portugal diverge profundamente de
outros povos da mesma communidade historica. Ao passo que
n'esses é flagrante a disparidade entre a força da opinião e
a energia dos governos,--no nosso paiz é tão fraca a opinião
como os governos são debeis, timidos, incoherentes. Se um
logra conservar-se por mais tempo, é á indifferença publica
que deve a sua duração. Mas dura, não vive. Se, de quando
em quando, desperta uma agitação qualquer, não se ennobrece
com ella a liberdade. Em geral, não é o sentimento da justiça
que a determina; é a sensação da fome que lhe dá origem.
E, satisfeita a fome, recomeça o entorpecimento...
É por tanto evidente que se necessita em todos estes Estados
politica activa, com pensamento certo e facilidade de
acção, e que isso não poderá conseguir-se senão fabricando
novos moldes em que o suffragio universal assuma proporções
largas, completas, em substituição das pequenas fórmas
em que elle ahi se retalha e desfigura. A fortaleza do poder
é a primeira garantia da verdadeira liberdade; quem se arreceia
de governos vigorosos não tem, de certo, a melhor comprehensão
do fim do Estado, ou assiste de olhos cerrados á
assombrosa multiplicação de encargos e deveres, que a civilisação
vai creando de dia para dia, de hora para hora, no
commercio, na industria, em todas as applicações do direito,
em todas as repartições do trabalho humano.
Disse, n'um dos numeros precedentes, que a votação por
lista multipla, com representação das minorias, seria um regimen
eleitoral perfeito; depois tentei demonstrar que a mais
[39]
instante necessidade de hoje é a formação de parlamentos
que representem a opinião publica, não nos seus infinitos
desvios, mas nas linhas principaes, mais salientes e mais
caracteristicas.
Parecem contradictorias estas duas affirmações,
porque a representação proporcional de todos os partidos accidenta,
n'uma grande variedade, as assembléas legislativas,
e tira-lhes a força que resulta da unanimidade ou, quando
esta não é possivel, do accordo do maior numero.
Mas a antinomia é só apparente. Se todos os partidos
forem representados na proporção das suas influencias, a
opinião mais seguida no momento eleitoral vingará uma justa
maioria que a exprima e faça valer. Estando n'essa maioria
e nas restantes fracções os homens de mais extremado valor,
a camara terá a elevação d'uma escola onde as doutrinas sociaes
serão discutidas com seriedade e applicadas com prudencia.
Por outro lado, as divisões parlamentares, que correspondem
realmente a aspectos diversos da consciencia publica,
não são as que enfraquecem mais o poder legislativo; as que
o debilitam e embaraçam a olhos vistos são as que se improvisam
no seio de assembléas artificiaes, arranjadas pela habilidade
dos politicos, de todo o ponto alheias ao pensamento
da sociedade, que ellas teem a pretensão, ingenua ou cynica,
de comprehender e significar. N'este caso a ambição pessoal
organisa grupos, inventa programmas, colore bandeiras, consagra
distincções, estabelece categorias, finge que serve doutrinas,
e, com grande dispendio de phantasia e de arte, logra
dar a um parlamento, que a urna não produziu de sua virtude
propria, as postiças apparencias d'uma differenciação
real e positiva! E, ainda n'esta vulgarissima hypothese, vê-se
[40]
frequentemente surdir no primeiro plano um homem sem cortejo
partidario, sem imprensa sua, erguendo a propria vaidade
á altura d'uma indicação politica, reclamando o direito
de governar, atirando com a sua personalidade ao meio da
lucta, como se o certamen fôsse de pessoas apenas, e não
tambem de doutrinas! São estas divisões que esterilisam e
deturpam o systema representativo, não as que resultam de
partidos realmente existentes; e tanto mais que, em geral,
sómente dois d'estes disputam com interessado empenho a
posse immediata do poder, limitando-se um dos extremos a
formular os protestos do passado, com uma logica vencida e
uma sentimentalidade facil, e satisfazendo-se o outro em desenhar,
com mão mais corajosa do que acertada, as nebulosas
prespectivas d'um futuro muito distante...
A lista multipla, ainda que não tenha a intenção de representar
as minorias, póde conseguir approximadamente este
effeito. Quando a votação é só d'um nome, é impossivel a
união das minorias; quando é d'uma lista de nomes, nada
mais facil do que combinarem-se em alguns d'elles. Para
isto requer-se apenas uma condição: a de que estejam organisados
os partidos, obedecendo todas as suas influencias a
uma impulsão central. Desde que se constituam assim, na
verdadeira realidade e na precisa ostentação da sua força,
serão frequentes as concessões reciprocas, e as maiorias serão
predominantes, mas não esmagadoras. E quebrar-se-hão nas
mãos dos empregados administrativos algumas armas das
que elles mais certeiramente apontam á liberdade dos eleitores,
porque é muito mais facil assediar e vencer o corpo
eleitoral no espaço cerrado d'um pequeno circulo, do que n'um
[41]
amplo districto onde as resistencias se multiplicam sempre,
e a estrategia da defesa tem de ser, por necessidade, mais
complicada e mais segura
[14].
Em resumo: não é facil incluir n'uma fórmula todas as
[42]
exigencias da politica de hoje. São complexas como a sociologia,
a que pertencem, cambiantes de momento para momento,
como tudo o que se refere á fórma dos agrupamentos
humanos. Mas parece-me que a mais clara de todas as indicações
é a que visa a reestabelecer em novos fundamentos a
missão dos governos, que deve ser mais comprehensiva do
que a fazem os melindres d'uma mal entendida liberdade, e
superior em força ao que ella é actualmente nos povos de
mais graduada civilisação. Tambem é certo que não ha governos
fortes sem uma solida opinião que os sustente, e que
esta, para que seja válida, tem de ser colhida, não por meios
que a fraccionem, mas com emprego de processos, que a recebam
inteira e viva. Para este effeito a lista multipla é mil
vezes mais apta do que a votação d'um só nome. Aquella dá-lhe
o retrato em tamanho natural; esta, funccionando a pouca luz
e com machinas de pequeno alcance, apenas tira essas miniaturas
imperfeitissimas, em que se convencionou que o povo
reconhecesse a sua imagem.
VIII
Li, não sei onde, que Lord Derby chamára á revolução
franceza de 1848 um
salto nas trevas. É felicissima
a phrase.
O suffragio universal, que tem a sua mais solemne consagração
n'aquella data, lançou a politica n'um caminho de aventuras,
escabroso, cortado de incertezas, não deixando vêr
dois passos seguros para deante do logar occupado.
[43]
Até hoje o excesso da lei tem sido annullado pela habilidade,
mais ou menos digna, dos estadistas. Alguns, sinceramente
convictos de que a liberdade é como a formularam os
clubs revolucionarios de 1848, fazem a sua côrte permanente
ao suffragio universal, tem com elle toda a sorte de
attenções, simulam que o consultam ainda quando procuram
impressional-o ou esclarecel-o, e, se alguma vez o attraiçoam,
não ha véo que não lancem sobre a sua infidelidade. Outros,
descrentes d'aquella instituição por effeito de reflexão ou por
commodidade da propria indolencia, corrompem-n'a, viciam-n'a,
desvirtuam-n'a, violentam-n'a se é preciso, acariciam-n'a
ou insultam-n'a consoante a opportunidade, e sempre conseguem
vencer, com armas boas ou más, as resistencias que
ella lhes oppõe.
O passado é isto. O presente assimilha-se-lhe. Como será
o futuro? A interrogação é difficil, e não é indifferente á
sensibilidade
de quem a formúla que a resposta seja de um ou
de outro modo. Presente-se que terá um termo a meia somnolencia
em que vivem alguns povos, talvez por effeito d'esta
dupla causa: a fadiga do trabalho consummado, um immenso
trabalho de negação e de critica, e o desalento produzido
pelas mil difficuldades a vencer ainda na reconstituição de
tudo o que foi abatido e desmantelado.
D'aquelle torpor desperta-se por uma agitação forte. Mas
de que origem ha de vir? Mas em que sentido deve ser?
Mas que tempo póde durar?... A agitação vale, serve, é excellente
para sacudir uma geração adormecida pelo habito
ou prostrada pelo cansasso; como regimen permanente, e
ainda como expediente muito repetido, é a negação de tudo
[44]
o que a natureza diz e a historia repete. Por meios compassados
e gradações evolutivas é que a nossa especie se
desenvolve, desde o estado rudimentar, em que ella é um
mysterio cheio de sombras, até á perfeição de hoje, em que
ella é já um enigma cheio de luzes. Os movimentos bruscos,
os impulsos violentos são, na sociedade, como os remedios
heroicos na therapeutica: necessarios, mas raros e perigosos.
Collocar um individuo, constantemente, sob a acção convulsionada
d'uma pilha electrica sería desconcertar o seu systema
nervoso, e abreviar-lhe a existencia atormentada e esteril;
ter a humanidade no sobresalto contínuo de crises successivas
e de revoluções interminaveis é deslocal-a dos seus
fundamentos, impellil-a e desvial-a do seu equilibrio, desligal-a
dos seus mais caros interesses, e tirar-lhe, a final, o
proprio gosto da vida! O pessimismo, como escola moral,
não é um facto alheio a estas situações anomalas.
Luctar é viver, diz-se. É uma phrase das muitas que se
constellam na memoria dos povos, mais para seu damno do
que para sua utilidade. A que lamentaveis erros conduzem!
A que desvairamentos levam! Desde crimes individuaes até
grandes perturbações collectivas, a phraseologia de effeito,
repartida em fracções accommodadas a todos os momentos,
tem operado um mal enorme, complexo, irreparavel! Está
por escrever a sua historia, que demanda uma sondagem
profunda e uma observação delicadissima.
Luctar é viver, mas descansar é tambem viver. A verdade
é isto. A propria natureza a exemplifica. Os vulcões não irrompem
todos os dias do seio abrazeado da terra; na machina
complicada do corpo humano revesam-se os orgãos no trabalho
[45]
mais intenso da vida; a morte é o somno, é o socego
preciso á grande força mysteriosa que sustenta e anima tudo.
Se a humanidade tivesse sómente necessidades politicas a
satisfazer, se mais nenhum grande interesse a preoccupasse,
ainda a civilisação da
cidade teria de effectuar-se
n'um progresso
contínuo, mas lento. Exemplo: a de Athenas no periodo
de sua gloriosa hegemonia. Em combinação com aquellas necessidades
existem, porém, outras que se compadecem menos
com surprezas e instabilidades, e hão de formular-se e cumprir-se
a salvo das intermittencias radicaes, que ameaçam
d'uma excessiva prodigalidade o presente e o futuro. A industria,
o entranhado amor ao que se cria ou se possue, a
vantagem, tão legitima, de se contar com o dia seguinte, o
direito de cada cousa a desenvolver-se antes de transformar-se,
são outros tantos obstaculos irremoviveis ao proposito,
aliás generoso e sympathico, de accelerar o movimento da
historia na ousada proporção da logica das doutrinas.
A liberdade politica é uma creação enorme, uma
génese
complicada, a ascenção gradual, successiva, das consciencias
todas á posse absoluta de si mesmas. Mas entre o nada e a
ordem ha o chaos, e é este o periodo que atravessamos, e o
espirito de Deus mal começa a deslisar pela superficie irrequieta
das cousas, na sua missão de as definir, nivelando as
que são eguaes, differenciando as que são diversas.
Ponderando as antinomias do suffragio universal, escrevia,
ha pouco, Alberto Wolf, o jornalista francez que possue a
mais completa fórmula da politica conservadora:
Tout pour le peuple, rien par le peuple.
Sim, mas ha duas pequenas dificuldades: a de convencer
[46]
o povo de que se deixe governar, e a de apparecer quem lhe
inspire confiança. A abdicação obrigada é impossivel, porque
elle tem a força; a abdicação voluntaria é improvavel, porque
elle conhece a historia...
Não é sem dôr que o meu espirito comprehende assim os
factos d'este tempo. Se a verdade não fosse infinitamente
amavel, invejaria o romanesco optimismo dos que, sobreviventes
d'um systema condemnado, ahi se desatam ainda
em festivas saudações ao que julgam felicissimo reinado da
liberdade e do direito. Desservem a humanidade, mas gosam
os prazeres egoistas d'uma illusão, que deve ser deliciosa.
Quero dizer que a sciencia exclue o sentimento? De modo
algum. Toda a philosophia tem uma sensibilidade propria.
Na fórmula actual dos destinos da nossa especie está implicita
a maior acção que os grandes corações podem produzir
e empregar. Quando o pantheismo dominava as consciencias,
a natureza e a sociedade estavam na perennal divinisação
d'uma arte formosissima; compunham-se na mais esplendida
luz os quadros do presente; as prespectivas do futuro, ridentes
de abundosas esperanças, eram o encanto e o enlevo
de quem as contemplava. A phantasia humana revia-se, contentissima,
na sua propria obra! Mas este systema passou,
acabou. Ninguem o reviverá. A prosa eloquente de Renan,
o ultimo pantheista, não é a revelação d'uma escola viva,
actual; é apenas o vestigio luminoso e perfumado d'uma
grande illusão que se extinguiu... É outra hoje, e muito diversa,
a inspiração sentimental das cousas. É melhor? É
peior? É, simplesmente, mais verdadeira. Menos vaga, mas
mais determinada, mais precisa, mais util. Não abarca tanto
[47]
espaço, mas envolve-o, circumda-o, aperta-o mais estreitamente.
Não tenta romper, aguia valentissima, as bramas cerradas
do futuro, nem desfere vôo na direcção do sol; mas
as suas azas desdobram-se como anteparo e abrigo, e a sua
vista, que os grandes deslumbramentos não ferem, conserva-se
limpida e penetrante sobre a terra de que não foge!
É d'esta sentimentalidade que se impressionam quantos
veem claramente as contradicções que a liberdade inclue, as
incertezas gravissimas de que está cheio o mais proximo futuro.
Ha sómente duas soluções: o povo reclama a direcção
de si mesmo, ou continúa sob tutella. No primeiro caso, será
tumulto, anarchia, conflicto permanente o que devera ser progresso
e paz, liberdade e ordem. No outro, quem sabe como
elle será dirigido, se o explorará a ambição, se a lisonja o
adormecerá nos seus braços insidiosos, se o despotismo o
vencerá por muito tempo, se, por tudo isto, elle terá de recomeçar
infinitas vezes a ascenção da suspirada montanha,
onde o espirito é livre, amplo o horisonte e o ar purissimo!
Tudo é possivel. O salto foi grande, mas...
foi nas
trevas,
como disse Lord Derby.
Notas:
[1] Politique Actuelle, pag. 249.
[2] La Politique, pag. 277 e 278.
[3] Les elections nouvelles et la vieille
politique--
Revue de la Phil. Posit.,
septembre-octobre, 1881.
[4] As Eleições, pag. 24.
N'este opusculo, fortemente pensado e escripto com grande eloquencia,
procura o sr. Oliveira Martins resolver o problema eleitoral pela
representação
organica das categorias sociaes. Apreciando a obra do radicalismo
individualista, que só foi excellente na sua parte critica,
attribue-lhe com
evidentissima razão a geral desordem de interesses e de idéas que
caracterisa
a evolução politica do nosso tempo. «Por ter cahido a crença no
principio
esoterico, onde se estribava a hierarchia das classes, cahiu tambem
a organisação inteira. Ao apagar-se a luz dentro do sanctuario
desabaram
as paredes por terra. Em nome da liberdade prégou-se a destruição de
tudo. Do principio de que em todos os homens havia capacidade juridica
egual, deduziu-se o de que, entre os homens, eram todos aptos para
tudo,
e assentou-se em que á lei não cumpria especialisar funcções, nem
dividir
o trabalho, nem tornar independentes os orgãos sociaes. Opinou-se e
fez-se.
A sociedade passou, em nome da liberdade, a ser uma massa inorganica
de homens, um cahos, onde os individuos, como os elementos nas edades
geologicas, deixam debater e debatem os seus interesses e paixões,
agitando-se
á tôa, inteiramente entregues a si, e abrindo por tal fórma a era das
revoluções e das crises permanentes ou successivas» (pag. 35).
A observação é profunda e exacta. O gravissimo defeito da nossa
civilisação
está aqui apontado com coragem e verdade. Cahiu em descredito o
optimismo
dos que pensavam que as consciencias individuaes, libertas das pressões
antigas, tinham, de propria iniciativa, o poder de se organisar, e que
a solidariedade humana era um sentimento universal, independente de
qualquer
consagração politica. A reacção contra a concepção
atomistica do Estado
é um facto geral na mais moderna sciencia; mas, como é natural, não
falta quem a exaggere fóra de termo e medida. O ultimo
numero da
Philosophia
Positiva dá conta de um livro em que Armand Hayem intenta
provar
que as
classes sociaes constituem fórmas tão irreductivas como
as de
especie e de raça! A verdade é muito menos do que isto. As
classes têm um
estreito laço de união, que é a communidade do mesmo interesse
profissional,
mas isso não é bastante para alterar as linhas predominantes na
physionomia
moral dos povos. A preoccupação profissional não é tão intensa
que importe modificações organicas; por outro lado a successão dos
officios
ou misteres sociaes dentro das familias é excepcionada a cada momento.
O sr. Oliveira Martins intenta remediar os inconvenientes do actual
estado
de cousas reestabelecendo a Ordem, não com o velho conteúdo d'este
termo,
mas com a realidade de todas as forças, de todos os elementos activos,
que são o nervo e a substancia das nações. «Desde que a origem do Poder
é immanente e social, o modo de tornar concreta ou positiva essa
auctoridade
é constituil-a por meio da reunião de todos os orgãos da sociedade
n'um corpo uno. Esses orgãos são de varias naturezas: são as classes ou
profissões, base economica da sociedade; são as escolas e as
instituições,
base intellectual e administrativa; são as regiões, base natural e
geographica.
A reunião d'esses orgãos constitue a sociedade, e o Estado, que a
exprime
syntheticamente, têm de formar-se por
emanações ou delegações de cada
um d'elles.» Os periodos transcriptos resumem o pensamento todo do
eminente
publicista, que, com Hartmann, considera a Vontade como synthese
do Estado, e, com Krause, comprehende o direito como um principio de
coordenação,
só com a differença de que o philosopho allemão deduzia-o da
propria essencia do Bem, manifesta na consciencia, ao passo que o sr.
Oliveira
Martins infere-o da observação objectiva de factos biologicos e
sociaes.
A indole d'este trabalho, e a forçada rapidez com que escrevo,
inhibem-me
de consagrar á apreciação do systema exposto o espaço que seria
preciso.
Por isso resumo em poucas palavras a impressão que me deixou a recente
leitura do sr. Oliveira Martins.
Muito antes d'este illustre escriptor, em 1830, o eminente Silvestre
Pinheiro
Ferreira combatia a representação dos individuos, consagrada nas
instituições da Inglaterra e dos Estados Unidos, e d'ahi
trasladada para
todos os paizes liberaes. Queria a representação dos tres estados:
propriedade,
industria,
serviços publicos,
subdivididos esses estados nas suas classes
naturaes. «É falso, dizia elle, que n'um determinado assumpto em que
divergem especialistas, possam ter opinião segura individuos dotados
apenas
de conhecimentos geraes; é absurdo que uma opinião de especialistas
possa
ser annullada por uma maioria de homens que não têem, para julgar o
objecto
em discussão, senão aquelles conhecimentos geraes.» (
Cours de
Droit
Public interne e externe, pag. 373 e seg.).
Seja dicto de passagem que este absurdo, se o é, seria sempre
inevitavel
desde que não houvesse para cada classe um parlamento soberano.
Não me parece que a representação dos
estados ou das
categorias resolvesse
as difficuldades sentidas por aquelles illustres pensadores; e ainda
que tal se conseguisse, não seria isso de realisação facil e immediata.
Em primeiro logar, essa representação não faria variar o suffragio pelo
que respeita á sua extensão. Deixava-o como está, como a historia o
produziu.
E o grande inconveniente de attribuir o direito de voto a individuos
analphabetos subsiste n'esta theoria, como necessariamente tem de
subsistir
em todas, porque a razão dos homens cultos é e será sempre impotente
contra a corrente dos factos consummados. Além d'isto, o suffragio
universal
não ficaria efficazmente descentralisado, visto que todos os cidadãos
da
mesma categoria teriam egual ingerencia politica; e é certo que de
individuo
para individuo da mesma classe ha muitas vezes maior differença de
nivel
intellectual do que de classe para classe ou de categoria para
categoria.
Isto pelo que respeita á eleição da maior parte dos representantes;
para a
de alguns, propõe o sr. Oliveira Martins o suffragio universal em
unidade
de collegio, o que não diminue, antes aggrava os actuaes
inconvenientes.
A organisação dos grupos naturaes e convencionaes da sociedade é
necessaria,
será utilissima, mas isso resolverá, quando muito, metade das
difficuldades;
ainda fica tudo o que se refere á adaptação d'um delicadissimo
instrumento politico, qual é o suffragio, a individuos e classes que
não sabem
usal-o, não comprehendem a sua funcção, nem calculam o seu effeito.
Por ultimo, afigura-se-me que a lei é inefficaz para influir nas
classes um novo espirito de solidariedade, e o que ellas têm não lhes dá a
cohesão e disciplina necessarias para a realisação prática
d'aquelle projecto. Tendo
desapparecido as razões historicas que mantiverem cada classe dentro da
sua area definida; tendo acabado a necessidade que havia de resistir,
por aquelle meio, a conflictos que já hoje não podem ter logar, julgo que o
Estado, havendo de limitar-se a consagrar o que existe, não lograria a
pretendida reorganisação, que, por outro lado, o preconceito radical prejudicaria
por todas as fórmas. Se o nosso paiz não chegou a comprehender ainda
a necessidade e a virtude do principio de associação...
[5] Principios e Questões de Philosophia
Politica--I.
[6] Gouvern. Représ., pag. 226.
[7] La Politique, pag. 275.
[8] «Art. 38.º A eleição de deputados faz-se por circulos
eleitoraes.
«Art. 39.º Os circulos elegem um deputado por cada 6:500 fogos.
«Se a fracção restante dos fogos de qualquer circulo eleitoral for
egual
ou superior a 4:332 fogos, eleger-se-ha mais um deputado.
«Art. 40.º O continente de Portugal, as ilhas adjacentes e as
provincias
ultramarinas são, para este fim, divididas nos circulos que constam do
mappa juncto.
«O numero de deputados, que compete a cada circulo eleitoral, é o que
se acha designado no mesmo mappa.»
Segundo este decreto, o continente, as ilhas adjacentes e as provincias
ultramarinas comprehendiam 48 circulos, e elegiam 156 deputados.
D'estes
circulos o maior, pertencente ao districto de Vizeu, tinha 47:416
fogos, e
elegia 7 deputados. Faziam excepção ao principio geral, estabelecido
n'este
decreto, os circulos de Macau e de Solor e Timor, cada um dos quaes
elegia
sómente um deputado.
[9] O sr. Oliveira Martins considera a representação das
minorias um expediente
provisorio, acceitavel como meio de combater, em parte, o vicio
das organisações vigentes, mas inefficaz para regenerar a pratica do
suffragio
universal. «Minoria, maioria, são expressões relativas do numero dos
eleitores; a minoria é ainda uma maioria, porque, a menos de se achar
reduzida
a um voto, representa sempre um numero superior a um outro. E,
perante a critica, como se distingue entre o valor de uma minoria de
100,
de 20, de 2 votos?» (
Eleições, pag. 51).
Discordo do sr. Oliveira Martins n'esta parte da sua publicação, por
tantos
titulos recommendavel. Afigura-se-me que o trahiu n'este ponto o
criterio,
talvez exaggeradamente negativo, com que o seu grande entendimento
invade e desbasta o que encontra estabelecido na philosophia e na
historia.
É isto apenas defeito d'uma eminente qualidade, a meu vêr.
Um pensamento social ou politico, que não agremiou ainda uma
consideravel quantidade de cidadãos, está longe da sua verdade
historica, e por isso
não tem direito a ser representado no parlamento, que é destinado á
discussão
das doutrinas vivas, de interesse immediato, questionadas pela opinião
geral, e não á apresentação e defesa de convicções isoladas, que só um
longo discurso de tempo póde apurar e desenvolver. Antes de entrarem
nas
assembléas deliberativas, aquellas convicções têm o seu tirocinio e a
sua
prova na sciencia e na propaganda.
Mas ainda que a representação não seja proporcional e completa, e
fiquem
algumas escolas politicas sem consagração eleitoral, é isso razão para
rejeitar
um systema que melhora o actual estado de cousas e satisfaz uma
grande parte do ideal democratico? Não. Está longe de ser boa norma
scientifica
desprezar o que é menos defeituoso só porque não é absolutamente
perfeito.
Preoccupado com a idéa de realisar a representação das classes, idéa
digna
de sérias meditações, esquece-se o sr. Oliveira Martins de que dentro
da mesma classe ha sempre conflictos de opiniões e antagonismos de
interesses,
e de que a lei da maioria, applicada á hypothese da sua organisação
social, produziria o despotismo do numero, certamente mais damnoso do
que o actual, porque n'aquella hypothese a politica teria de ser mais
intensa
na sua força e muito mais comprehensiva na sua applicação do que é
hoje.
[10] Vues sur le gouvernement de la France,
pag. 162.
[11] Principios e Questões de Philosophia
Politica, pag. 119 e 120.
[12] Discurso de 19 de maio, na discussão da proposta de
Bardoux.
[13] Tem a data de 28 de novembro, e é assignada pelo ministro
da
governação,
Francisco Romero y Robledo.
N'uma carta celebre, dirigida por E. Castelar a E. Girardin, pouco
antes
da morte d'este eminente jornalista, affirmava o grande tribuno
hespanhol
que aquella lei era a mais perfeita de toda a Europa. Tinha toda a
razão.
Quem extranhou e combateu aquelle juizo desconhecia as melhores
theorias do direito eleitoral, ou nunca tinha lido as
disposições da lei de 28 de
novembro. Esta lei resolve, em grande parte, as maiores difficuldades
do
suffragio politico: o despotismo das maiorias, e a excessiva
intervenção dos
governos. Contra a primeira adopta o conhecido systema da
lista incompleta,
não em toda a extensão da Hespanha, mas nos seguintes districtos, que
são
os mais importantes de todo o paiz: Madrid, Barcelona, Sevilha, Cadiz,
Carthagena,
Palma de Mallorca, Jerez de la Frontera, Valencia, Malaga, Murcia,
Tenerife, Zaragoza, Granada, Alicante, Almeria, Badajoz, Burgos,
Cordoba,
Coruña, Jaen, Lugo, Oviedo, Pamplona, Santander, Tarragona, Valladolid
(artt. 2.º e 84.º); e tambem, no mesmo intuito, para corrigir o
inconveniente
de ainda ficarem muitos circulos uninominaes, admitte, em cada camara,
10 deputados que tenham obtido em diversos districtos, e em eleição
geral, em minoria ou empate, a accumulação de 10:000 votos cada um,
pelo
menos (art. 115.º). A este systema de accumulação tem devido o seu
ingresso
no parlamento hespanhol alguns dos homens mais benemeritos e notaveis.
Ainda na recente eleição geral se aproveitou d'elle o illustre
Salmeron.
Para garantir a genuinidade do voto tem excellentes disposições,
designadamente
a que prohibe nomeações, transferencias, suspensões de empregados
administrativos de qualquer categoria, no periodo que vai desde o
decreto
que convoca os collegios eleitoraes até que esteja concluida a eleição,
sempre
que taes actos não sejam fundamentados em causa legitima (art. 147.º).
D'este simples extracto vê-se que a apreciação de Castelar era
profundamente
verdadeira. A França, a Inglaterra, a propria Dinamarca não merecem
comparadas á Hespanha n'este importantissimo ramo da administração
publica.
[14] Do mappa seguinte vê-se, approximadamente, qual tem sido a
proporção
em que os partidos teem podido resistir á pressão eleitoral dos
governos.
O mappa designa o numero de deputados opposicionistas no principio
de cada legislatura, numero que, como é sabido, varia depois por
influencia
de varias causas... Até 1859 vigorou a lista multipla; n'este periodo
a opposição conseguiu, termo medio, vingar mais candidaturas do que sob
o regimen eleitoral inaugurado n'aquella data. E é de notar que os
primeiros
annos immediatos ao movimento de 1852 foram assignalados por uma
pacificação,
relativamente grande, para a qual contribuiram a fadiga das luctas
de 1844 a 1851 e a nefasta corrupção politica de Rodrigo da Fonseca
Magalhães.
Duração das legislaturas desde 1852 a 1881
|
Deputados da opposição
|
15 de dezembro de 1851 a 24 de julho de 1852
|
34
|
2 de janeiro de 1853 a 19 de
julho de 1856
|
35
|
2 de janeiro de 1857 a 26 de
março de 1858
|
38
|
7 de junho de 1858 a 23 de
novembro de 1859
|
24
|
26 de janeiro de 1860 a 27 de
março de 1861
|
15
|
20 de maio de 1861 a 18 de
junho de 1864
|
40
|
2 de janeiro de 1865 a 20 de
maio de 1865
|
32
|
30 de julho de 1865 a 14 de
janeiro de 1868
|
47
|
15 de abril de 1868 a 23 de
janeiro de 1869
|
53
|
26 de abril de 1869 a 20 de
janeiro de 1870
|
12
|
30 de março de 1870 a 21 de
julho de 1870
|
14
|
15 de outubro de 1870 a 3 de
junho de 1871
|
18
|
22 de julho de 1871 a 9 de
abril de 1874
|
10
|
2 de janeiro de 1875 a 4 de
maio de 1878
|
11
|
2 de janeiro de 1879 a 20 de
agosto de 1879
|
32
|
2 de janeiro de 1880 a 4 de
junho de 1881
|
19
|