Nota de editor:
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foram tomadas várias decisões quanto à
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mantida de acordo com o original. No final deste livro
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Rita
Farinha (Junho 2014)
EURICO O PRESBYTERO
QUINTA EDIÇÃO
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1864
Para as almas, não sei se diga demasiadamente
positivas, se demasiadamente grosseiras,
o celibato do sacerdocio não passa
de uma condição, de uma formula social
applicada a certa classe d'individuos cuja
existencia ella modifica vantajosamente por
um lado e desfavoravelmente por outro. A
philosophia do celibato para os espiritos vulgares
acaba aqui. Aos olhos dos que avaliam
as cousas e os homens só pela sua utilidade
social, essa especie d'insulação domestica do
sacerdote, essa indirecta abjuração dos affectos
mais puros e sanctos, os da familia,
[vi]
é condemnada por uns como contraria ao
interesse das nações, como damnosa em moral
e em politica, e defendida por outros
como util e moral. Deus me livre de debater
materia tantas vezes disputada, tantas
vezes exhaurida pelos que sabem a sciencia
do mundo e pelos que sabem a sciencia do
céu! Eu, por minha parte, fraco argumentador,
só tenho pensado no celibato á luz
do sentimento e sob a influencia da impressão
singular que desde verdes annos fez em
mim a idéa da irremediavel solidão d'alma
a que a igreja condemnou os seus ministros,
especie de amputação espiritual, em
que para o sacerdote morre a esperança de
completar a sua existencia na terra. Supponde
todos os contentamentos, todas as consolações
que as imagens celestiaes e a crença
viva podem gerar, e achareis que estas não
supprem o triste vacuo da soledade do coração.
Dae ás paixões todo o ardor que poderdes,
aos prazeres mil vezes mais intensidade,
[vii]
aos sentidos a maxima energia e convertei o
mundo em paraizo, mas tirae delle a mulher,
e o mundo será um ermo melancholico,
os deleites serão apenas o preludio do
tedio. Muitas vezes, na verdade, ella desce,
arrastada por nós, ao charco immundo da extrema
depravação moral; muitissimas mais,
porém, nos salva de nós mesmos e, pelo
affecto e enthusiasmo, nos impelle a quanto
ha bom e generoso. Quem, ao menos uma
vez, não creu na existencia dos anjos revelada
nos profundos vestigios dessa existencia
impressos n'um coração de mulher? E porque
não sería ella na escala da creação um
anel da cadeia dos entes, presa, de um lado,
á humanidade pela fraqueza e pela morte e,
do outro, aos espiritos puros pelo amor e
pelo mysterio? Porque não sería a mulher
o intermedio entre o céu e a terra?
Mas, se isto assim é, ao sacerdote não
foi dado comprehendê-lo; não lhe foi dado
julgá-lo pelos mil factos que no-lo tem dicto,
[viii]
a nós os que não jurámos juncto do altar
repellir metade da nossa alma, quando a
providencia no-la fizesse encontrar na vida.
Ao sacerdote cumpre acceitar esta por verdadeiro
desterro: para elle o mundo deve
passar desconsolado e triste, como se nos
apresenta ao despovoarmo-lo daquellas por
quem e para quem vivemos.
A historia das agonias íntimas geradas
pela lucta desta situação excepcional do clero
com as tendencias naturaes do homem
sería bem dolorosa e variada, se as phases
do coração tivessem os seus annaes como os
tem as gerações e os povos. A obra da logica
potente da imaginação que cria o romance
sería bem grosseira e fria comparada
com a terrivel realidade historica de uma
alma devorada pela solidão do sacerdocio.
Essa chronica de amarguras procurei-a
já pelos mosteiros quando elles desabavam
no meio das nossas transformações politicas.
Era um buscar insensato. Nem nos codices
[ix]
illúminados da idade média, nem nos pallidos
pergaminhos dos archivos monasticos estava
ella. Debaixo das lageas que cubriam
os sepulchros claustraes havia, por certo,
muitos que a sabiam; mas as sepulturas dos
monges achei-as mudas. Alguns fragmentos
avulsos que nas minhas indagações encontrei
eram apenas phrases soltas e obscuras
da historia que eu buscava debalde; debalde,
porque á pobre victima, quer voluntaria,
quer forçada ao sacrificio, não era lícito
o gemer, nem dizer aos vindouros:—«sabei
quanto eu padeci!»
E, por isso mesmo que sobre ella pesava
o mysterio, a imaginação vinha ahi para supprir
a historia. Da idéa do celibato religioso,
das suas consequencias forçosas e dos
raros vestigios que destas achei nas tradições
monasticas nasceu o presente livro.
Desde o palacio até a taberna e o prostibulo;
desde o mais esplendido viver até o
vejetar do vulgacho mais rude, todos os logares
[x]
e todas as condições tem tido o seu romancista.
Deixae que o mais obscuro de todos
seja o do clero. Pouco perdereis com isso.
O
Monasticon é uma intuição quasi prophetica
do passado, ás vezes intuição mais
difficultosa que a do futuro.
Sabeis qual seja o valor da palavra monge
na sua origem remota, na sua fórma primitiva?
É o de—
só e triste.
Por isso na minha concepção complexa,
cujos limites não sei de antemão assignalar,
dei cabida á
chronica-poema, lenda ou o
que quer que seja do Presbytero godo: dei-lh'a,
tambem, porque o pensamento della
foi despertado pela narrativa de certo manuscripto
gothico, affumado e gasto do roçar
dos seculos que outr'ora pertenceu a
um antigo mosteiro do Minho.
O
Monge de Cister, que deve seguir-se
a
Eurico, teve, proximamente, a mesma
origem.
ajuda—novembro de 1843.
EURICO O PRESBYTERO
I
OS WISIGODOS
A um tempo toda a raça goda,
soltas as redeas do governo, começou
a inclinar o animo para a
lascivia e suberba.
Monge de Silos: Chronicon. c.
2.
A raça dos wisigodos conquistadora das
Hespanhas subjugara toda a Peninsula havia
mais de um seculo. Nenhuma das tribus germanicas
que, dividindo entre si as provincias
do imperio dos cesares, tinham tentado vestir
sua barbara nudez com os trajos despedaçados,
mas esplendidos, da civilisação romana
[2]
soubera como os godos ajunctar esses fragmentos
de purpura e ouro para se compôr
a exemplo de povo civilisado.
Leuwighild expulsara
da Hespanha os derradeiros soldados
dos imperadores gregos, reprimira a audacia
dos frankos, que em suas correrias assolavam
as provincias wisigothicas d'além
dos Pyreneus, acabara com a especie de monarchia
que os suevos tinham instituido na
Gallecia e expirara em Toletum, depois de
ter estabelecido leis politicas e civis e a paz
e ordem publicas nos seus vastos dominios,
que se estendiam de mar a mar e, ainda,
transpondo as montanhas da Vasconia, abrangiam
uma grande porção da antiga Gallia
narbonense.
Desde essa epocha a distincção das duas
raças, a conquistadora ou goda e a romana
ou conquistada, quasi desapparecera, e os
homens do norte haviam-se confundido com
os do meio-dia em uma só nação, para cuja
grandeza contribuira aquella com as virtudes
asperas da Germania, esta com as tradições
da cultura e policia romanas. As leis
dos cesares, pelas quaes se regiam os vencidos,
misturaram-se com as singelas e rudes
instituições wisigothicas, e já um codigo
unico, escripto na lingua latina, regulava
[3]
os direitos e deveres communs quando o
arianismo, que os godos tinham abraçado
abraçando o evangelho, se declarou vencido
pelo catholicismo, a que pertencia a raça
romana. Esta conversão dos vencedores á
crença dos subjugados foi o complemento
da fusão social dos dous povos. A civilisação,
porém, que suavisou a rudeza dos barbaros
era uma civilisação velha e corrupta.
Por alguns bens que produziu para aquelles
homens primitivos trouxe-lhes o peior
dos males, a perversão moral. A monarchia
wisigothica procurou imitar o luxo do imperio
que morrera e que ella substituira.
Toletum quiz ser a imagem de Roma ou de
Constantinopola. Esta causa principal, ajudada
por muitas outras, nascidas em grande
parte da mesma origem, gerou a dissolução
politica por via da dissolução moral.
Debalde muitos homens de genio revestidos
da auctoridade suprema tentaram evitar
a ruina que viam no futuro: debalde o
clero hespanhol, incomparavelmente o mais
alumiado da Europa naquellas eras tenebrosas
e cuja influencia nos negocios publicos
era maior que a de todas as outras classes
junctas, procurou nas severas leis dos concilios,
que eram verdadeiros parlamentos politicos,
[4]
reter a nação que se despenhava. A
podridão tinha chegado ao amago da arvore,
e ella devia seccar: o proprio clero se corrompeu
por fim. O vicio e a degeneração
corriam soltamente, rota a ultima barreira.
Foi então que o celebre Ruderico se apossou
da coroa. Os filhos do seu predecessor
Witiza, os mancebos Sisebuto e Ebbas, disputaram-lh'a
largo tempo; mas, segundo parece
dos escaços monumentos historicos dessa
escura epocha, cederam por fim, não á usurpação,
porque o throno gothico não era legalmente
hereditario, mas á fortuna e ousadia
do ambicioso soldado, que os deixou viver
em paz na propria corte e os revestiu
de dignidades militares. D'ahi, se dermos
credito a antigos historiadores, lhe veiu a
ultima ruina na batalha do rio Chryssus ou
Guadalete, em que o imperio gothico foi anniquilado.
No meio, porém, da decadencia dos godos
algumas almas conservavam ainda a tempera
robusta dos antigos homens da Germania.
Da civilisação romana ellas não haviam
acceitado senão a cultura intellectual
e as sublimes theorias moraes do christianismo.
As virtudes civís e, sobretudo, o
amor da patria tinham nascido para os godos
[5]
logo que, fixando o seu domicilio nas
Hespanhas, possuiram de paes a filhos o
campo agricultado, o lar domestico, o templo
da oração e o cemiterio do repouso e
da saudade. Nestes corações, onde reinavam
affectos ao mesmo tempo ardentes e profundos,
porque nelles a indole meridional se
misturava com o caracter tenaz dos povos
do norte, a moral evangelica revestia esses
affectos d'uma poesia divina, e a civilisação
ornava-os de uma expressão suave, que lhes
realçava a poesia. Mas no fim do seculo septimo
eram já bem raros aquelles em quem
as tradições da cultura romana não haviam
subjugado os instinctos generosos da barbaria
germanica e a quem o christianismo fazia
ainda escutar o seu verbo intimo, esquecido
no meio do luxo profano do clero
e da pompa insensata do culto exterior.
Uma longa paz com as outras nações tinha
convertido a antiga energia dos godos em
alimento das dissensões intestinas, e a guerra
civil, gastando essa energia, havia posto em
logar della o habito das traições covardes,
das vinganças mesquinhas, dos enredos infames
e das abjecções ambiciosas. O povo,
esmagado debaixo do peso dos tributos, dilacerado
pelas luctas dos bandos civis, prostituido
[6]
ás paixões dos poderosos, esquecera
completamente as virtudes guerreiras de seus
avós. As leis de Wamba e as expressões de
Erwig no duodecimo concilio de Toletum
revelam quão fundo ía nesta parte o cancro
da degeneração moral das Hespanhas. No
meio de tantos e tão duros vexames e padecimentos,
o mais custoso e aborrecido de
todos elles para os afeminados descendentes
dos soldados de Theoderik, de Thorsmund,
de Theudes e de Leuwighild era o vestir as
armas em defensão daquella mesma patria
que os heroes wisigodos tinham conquistado
para a legarem a seus filhos, e a maioria do
povo preferia a infamia que a lei impunha
aos que recusavam defender a terra natal
aos riscos gloriosos dos combates e á vida
fadigosa da guerra.
Tal era, em resumo, o estado politico e
moral da Hespanha na epocha em que aconteceram
os sucessos que vamos narrar.
II
O PRESBYTERO
Sublimado ao grau de presbytero....
quanta brandura, qual
caridade fosse a sua o amor de
todos lh'o demonstrava.
Alvaro de Cordova: Vida
de S. Eulogio c. 1.
No reconcavo da bahia que se encurva ao
oeste do Calpe, Carteia, a filha dos phenicios,
mira ao longe as correntes rapidas do
estreito que divide a Europa da Africa. Opulenta
outr'ora, os seus estaleiros tinham sido
famosos antes da conquista romana, mas apenas
restam vestigios delles; as suas muralhas
[8]
haviam sido extensas e solidas, mas jazem
desmoronadas; os seus edificios foram cheios
de magnificencia, mas cahiram em ruinas; a
sua povoação era numerosa e activa, mas
rareiou e tornou-se indolente. Passaram por
lá as revoluções, as conquistas, todas as vicissitudes
da Iberia durante doze seculos, e
cada vicissitude dessas deixou ahi uma pégada
de decadencia. Os curtos annos d'explendor
da monarchia wisigothica tinham sido
para ella como um dia formoso d'inverno, em
que os raios do sol resvalam pela face da
terra sem a aquecerem, para depois vir a
noite, humida e fria como as que a precederam.
Debaixo do governo de Witiza e de
Ruderico a antiga Carteia é uma povoação
decrepita e mesquinha, á roda da qual estão
espalhados os fragmentos da passada opulencia
e que, talvez, na sua miseria, apenas nas
recordações que lhe suggerem esses farrapos
de louçainhas juvenis acha algum refrigerio
ás amarguras da malfadada velhice.
Não!—Resta-lhe ainda outro: a religião
do Christo.
O presbyterio, situado no meio da povoação,
era um edificio humilde, como todos
os que ainda subsistem alevantados pelos
godos sobre o sólo da Hespanha. Cantos
[9]
enormes sem cimento alteiam-lhe os muros,
cobre-lhe o ambito tecto achatado, tecido
de grossas traves de carvalho sobpostas ao
ténue colmo: o seu portal profundo e estreito
presagia de certo modo a mysteriosa
portada da cathedral da idade-média: as suas
janellas, por onde a claridade, passando para
o interior, se transforma em tristonho crepusculo,
são como um typo indeciso e rude
das frestas que, depois, alumiaram os templos
edificados no decimo quarto seculo, através
das quaes, coada por vidros de mil cores,
a luz ia bater melancholica nos alvos
pannos dos muros gigantes e estampar nelles
as sombras das columnas e arcos enredados
das naves. Mas se o presbyterio wisigothico,
no escaço da claridade, se approxima do
typo christão d'architectura, no resto revela
que ainda as idéas grosseiras do culto de
Odin não se tem apagado de todo nos filhos
e netos dos barbaros, convertidos ha tres ou
quatro seculos á crença do crucificado.
O presbytero Eurico era o pastor da pobre
parochia de Carteia. Descendente de
uma antiga familia barbara,
gardingo na
corte de Witiza, tiuphado ou millenario do
exercito wisigothico, vivera os ligeiros dias
da mocidade no meio dos deleites da opulenta
[10]
Toletum. Rico, poderoso, gentil, o
amor viera, apesar disso, quebrar a cadeia
brilhante da sua felicidade. Namorado d'Hermengarda,
filha de Favila, duque de Cantabria,
e irman do valoroso e depois tão celebre
Pelagio, o seu amor fora infeliz. O orgulhoso
Favila não consentira que o menos
nobre gardingo pusesse tão alto a mira dos
seus desejos. Depois de mil provas de um
affecto immenso, de uma paixão ardente, o
moço guerreiro vira submergir todas as suas
esperanças. Eurico era uma destas almas ricas
de sublime poesia a que o mundo deu
o nome d'imaginações desregradas, porque
não é para o mundo entendê-las. Desventurado,
o seu coração de fogo queimou-lhe o
viço da existencia ao despertar dos sonhos
do amor que o tinham embalado. A ingratidão
d'Hermengarda, que parecera ceder
sem resistencia á vontade de seu pae, e o
orgulho insultuoso do velho procer deram
em terra com aquelle animo, que o aspecto
da morte não sería capaz de abater. A melancholia
que o devorava, consumindo-lhe
as forças, fe-lo cahir em longa e perigosa
enfermidade, e, quando a energia de uma
constituição vigorosa o arrancou das bordas
do tumulo, semelhante ao anjo rebelde, os
[11]
toques bellos e puros do seu gesto formoso
e varonil transpareciam-lhe a custo através
do véu de muda tristeza que lhe entenebrecia
a fronte. O cedro pendia fulminado pelo
fogo do céu.
Uma destas revoluções moraes que as grandes
crises produzem no espirito humano se
operou então no moço Eurico. Educado na
crença viva daquelles tempos; naturalmente
religioso porque poeta, foi procurar abrigo
e consolações aos pés d'Aquelle cujos braços
estão sempre abertos para receber o desgraçado
que nelles vai buscar o derradeiro
refugio. Ao cabo das grandezas cortesans o
pobre gardingo encontrara a morte do espirito,
o desengano do mundo. Ao cabo da
estreita senda da cruz acharia elle, porventura,
a vida e o repouso intimos? Era este
problema, no qual se resumia todo o seu futuro,
que tentava resolver o pastor do pobre
presbyterio da velha cidade do Calpe.
Depois de passar pelos differentes gráus
do sacerdocio, Eurico recebera ainda de Siseberto,
o predecessor de Oppas na sé de
Hispalis, o encargo de pastoreiar esse diminuto
rebanho da povoação phenicia. O moço
presbytero, legando á cathedral uma porção
dos dominios que herdara junctamente com
[12]
a espada conquistadora de seus avós, havia
reservado apenas uma parte das proprias riquezas.
Era esta a herança dos miseraveis,
que elle sabia não escaceiarem na quasi solitaria
e meia arruinada Carteia.
A nova existencia d'Eurico tinha modificado,
porém não destruido o seu brilhante
caracter. A maior das humanas desventuras,
a viuvez do espirito, abrandara, pela melancholia,
as impetuosas paixões do mancebo
e apagara nos seus labios o riso do contentamento,
mas não podera desvanecer no
coração do sacerdote os generosos affectos
do guerreiro, nem as inspirações do
poeta.
O templo havia sanctificado aquelles, moldando-os
pelo evangelho, e tornado estas
mais solemnes, alimentando-as com as imagens
e sentimentos sublimes estampados nas
paginas sacrosanctas da Biblia. O enthusiasmo
e o amor tinham resurgido naquelle
coração que parecera morto, mas transformados;
o enthusiasmo em enthusiasmo pela
virtude; o amor em amor dos homens. E a
esperança? Oh, a esperança, essa é que não
renascera!
III
O POETA
Nenhum de vós ouse reprovar
os hymnos compostos em louvor
de Deus.
Concilio de Toledo IV. can. 13.
Muitas vezes, pela tarde, quando o sol,
transpondo a bahia de Carteia, descia affogueiado
para a banda de Mellaria, dourando
com os ultimos resplendores os cimos da
montanha pyramidal do Calpe, via-se ao longo
da praia vestido
com a fluctuante stringe
o presbytero Eurico, encaminhando-se para
[14]
os alcantis aprumados á beira-mar. Os pastores
que o encontravam, voltando ao povoado,
diziam que, ao passarem por elle e
ao saudarem-no, nem sequer os escutava e
que dos seus labios semi-abertos e tremulos
rompia um sussurro de palavras inarticuladas,
semelhante ao ciciar da aragem pelas
ramas da selva. Os que lhe espreitavam os
passos, nestes largos passeios da tarde, viam-no
chegar ás raizes do Calpe, trepar aos
precipicios, sumir-se entre os rochedos e
apparecer, por fim, lá ao longe, immovel sobre
algum pincaro requeimado pelos soes do
estio e poido pelas tempestades do inverno.
Ao lusco-fusco, as amplas pregas da stringe
d'Eurico, branquejando movediças á mercê
do vento, eram o signal de que elle estava
lá, e, quando a lua subia ás alturas do céu,
esse alvejar de roupas tremulas durava, quasi
sempre, até que o planeta da saudade se atufava
nas aguas do Estreito. D'ahi a poucas
horas, os habitantes de Carteia que se erguiam
para os seus trabalhos ruraes antes
do alvorecer, olhando para o presbyterio,
viam, através dos vidros corados da solitaria
morada de Eurico, a luz da lampada nocturna
que esmorecia, desvanecendo-se na claridade
matutina. Cada qual tecia então sua novella
[15]
ajudado pelas crenças da superstição popular:
artes criminosas, tracto com o espirito
mau, penitencia de uma abominavel vida
passada e, até, a loucura, tudo serviu successivamente
para explicar o proceder mysterioso
do presbytero. O povo rude de Carteia
não podia entender esta vida d'excepção,
porque não percebia que a intelligencia do
poeta precisa de viver n'um mundo mais amplo
do que esse a que a sociedade traçou tão
mesquinhos limites.
Mas Eurico era como um anjo tutelar dos
amargurados. Nunca a sua mão benefica deixou
de estender-se para o logar em que a
afflicção se assentava; nunca os seus olhos
recusaram lagrymas que se misturassem com
lagrymas d'alheias desventuras. Servo ou homem
livre, liberto ou patrono, para elle todos
eram filhos. Todas as condições se livelavam
onde elle apparecia; porque, pae
commum daquelles que a providencia lhe confiara,
todos para elle eram irmãos. Sacerdote
do Christo, ensinado pelas largas horas de
intima agonia, esmagado o seu coração pela
suberba dos homens, Eurico percebera, emfim,
claramente que o christianismo se resume
em uma palavra—fraternidade. Sabía
que o evangelho é um protesto dictado por
[16]
Deus, para os seculos, contra as vans distincções
que a força e o orgulho radicaram
neste mundo de lodo, d'oppressão e de sangue;
sabía que a unica nobreza é a dos corações
e dos entendimentos que buscam erguer-se
para as alturas do céu, mas que essa
superioridade real é exteriormente humilde
e singela.
Pouco a pouco, a severidade dos costumes
do pastor de Carteia e a sua beneficencia,
tão meiga, tão despida das insolencias que
costumam acompanhar e encher d'amargor
para os miseraveis a piedade hypocrita dos
felizes da terra; essa beneficencia que a religião
chamou caridade, porque a linguagem
dos homens não tinha palavra que exprimisse
rigorosamente um affecto revelado á terra
pela victima do Calvario; essa beneficencia
que a gratidão geral recompensava com amor
sincero tinha desvanecido gradualmente as
suspeitas odiosas que o proceder extraordinario
do presbytero suscitara a principio.
Emfim, certo domingo em que, tendo aberto
as portas do templo, e havendo já o psalmista
entoado os canticos matutinos,
o ostiario
buscava cuidadoso o sacerdote, que
parecia ter-se esquecido da hora em que devia
sacrificar a hostia do cordeiro e abençoar
[17]
o povo, foi encontrá-lo adormecido juncto á
sua lampada ainda accesa e com o braço firmado
sobre um pergaminho cuberto de linhas
desiguaes. Antes de despertar Eurico,
o ostiario correu com os olhos a parte da
escriptura que o braço do presbytero não
encobria. Era um novo hymno no genero
daquelles que Isidoro, o celebre bispo de
Hispalis, introduzira nas solemnidades da
igreja goda. Então o ostiario entendeu o
mysterio da vida errante do pastor de Carteia
e as suas vigilias nocturnas. Não tardou
em espalhar-se na povoação e nos logares
circumvizinhos que Eurico era o auctor de alguns
canticos religiosos transcriptos nos hymnarios
de varias dioceses, e uma parte dos
quaes brevemente foi admittida na propria
cathedral d'Hispalis. O caracter de poeta tornou-o
ainda mais respeitado. A poesia, dedicada
quasi exclusivamente entre os wisigodos
ás solemnidades da igreja, sanctificava a
arte e augmentava a veneração publica para
quem a exercitava. O nome do presbytero
começou a soar por toda a Hespanha, como
o de um successor
de Draconio, de Merobaude
e de Orencio.
Desde então ninguem mais lhe seguiu os
passos. Assentado nos alcantis do Calpe,vagabundo
[18]
pelas campinas vizinhas ou embrenhado
pelas selvas sertanejas, deixaram-no
tranquillo embalar-se nos seus pensamentos.
Na conta de inspirado por Deus, quasi na
de propheta, o tinham as multidões. Não
gastava elle as horas que lhe sobejavam do
exercicio de seu laborioso ministerio n'uma
obra do Senhor? Não deviam esses hymnos
da soledade e da noite derramar-se como um
perfume ao pé dos altares? Não completava
Eurico a sua missão sacerdotal, revestindo
a oração das harmonias do céu, estudadas
e colhidas por elle no silencio e na
meditação? Mancebo, o numeroso clero das
parochias vizinhas considerava-o como o mais
veneravel entre os seus irmãos no sacerdocio,
e os velhos procuravam na sua fronte,
quasi sempre carregada e triste, e nas
suas breves mas eloquentes palavras o segredo
das inspirações e o ensino da sabedoria.
Mas, se os que o acatavam como um predestinado
soubessem quão negra era a predestinação
do poeta, porventura que essa especie
de culto de que o cercavam se converteria
em compaixão ou antes em terror. Os
hymnos tão suaves, tão cheios d'uncção, tão
intimos, que os psalmistas das cathedraes de
[19]
Hespanha repetiam com enthusiasmo eram
como o respirar tranquillo do somno da madrugada
que vem depois de arquejar e gemer
de pesadello nocturno. Rapido e raro
passava o sorrir nas faces de Eurico; profundas
e indeleveis eram as rugas da sua
fronte. No sorriso reverberava o hymno pio,
harmonioso, sancto dessa alma, quando, alevantando-se
da terra, se entranhava nos sonhos
de um mundo melhor. Ás rugas, porém,
da fronte do presbytero, semelhantes ás
vagas varridas pelo noroeste, respondia um
canto lugubre de colera ou desalento, que
rebramia lá dentro, quando a sua imaginação,
cahindo, como a aguia ferida, das alturas
do espaço, se rojava pela morada dos
homens. Era este canto doloroso e tetrico,
o qual lhe transsudava do coração em noites
não dormidas, na montanha ou na selva, na
campina ou no estreito aposento, que elle
derramava em torrentes de amargura ou de
fel sobre pergaminhos que nem o ostiario
nem ninguem tinha visto. Estes poemas, em
que palpitava a indignação e a dor de um
animo generoso, eram o Gethsemani do poeta.
Todavia, os virtuosos nem sequer o imaginavam,
porque não perceberiam como, tranquilla
a consciencia e repousada a vida, um
[20]
coração póde devorar-se a si proprio, e os
maus não criam que o sacerdote, embebido
unicamente em suas esperanças credulas, em
suas cogitações d'além do tumulo, curasse
dos males e crimes que roíam o imperio moribundo
dos wisigodos; não criam que tivesse
um verbo de colera para amaldicçoar os
homens aquelle que ensinava o perdão e o
amor. Era por isto que o poeta escondia as
suas terriveis inspirações. Monstruosas para
uns, objecto de ludibrio para outros, n'uma
sociedade corrupta, em que a virtude era
egoista e o vicio incredulo, ninguem o escutara
ou, antes, ninguem o entenderia.
Levado á existencia tranquilla do sacerdocio
pela desesperança, Eurico sentira a principio
uma suave melancholia refrigerar-lhe a
alma requeimada ao fogo da desdita. A especie
de torpor moral em que uma rapida
transição de habitos e pensamentos o lançara
pareceu-lhe paz e repouso. A ferida affizera-se
ao ferro que estava dentro della, e Eurico
suppunha-a sarada. Quando um novo
affecto veio espremê-la é que sentiu que não
se havia cerrado e que o sangue manava
ainda, porventura, com mais força. Um amor
de mulher mal correspondido a tinha aberto:
o amor da patria, despertado pelos acontecimentos
[21]
que rapidamente succediam uns
aos outros na Hespanha despedaçada pelos
bandos civis, foi a mão que de novo abriu
essa chaga. As dores recentes, avivando as
antigas, começaram a converter pouco a pouco
os severos principios do christianismo em
flagello e martyrio daquella alma, que, a um
tempo, o mundo repellia e chamava e que nos
seus transes d'angustia sentia escripta na
consciencia com a penna do destino esta sentença
cruel:—nem a todos dá o tumulo a
bonança das tempestades do espirito.
As scenas de dissolução social que naquelle
tempo se representavam na Peninsula eram
capazes de despertar a indignação mais vehemente
em todos os animos que ainda conservavam
um diminuto vestigio do antigo caracter
godo. Desde que Eurico trocara o gardingato
pelo sacerdocio, os odios civís, as
ambições, a ousadia dos bandos e a corrupção
dos costumes haviam feito incriveis progressos.
Nas solidões do Calpe tinha reboado a
desastrada morte de Witiza, a enthronisação
violenta de Ruderico e as conspirações que
ameaçavam rebentar por toda a parte e que
a muito custo o novo monarcha ía affogando
em sangue. Ebbas e Sisebuto, filhos de Witiza,
Oppas, seu tio, successor de Siseberto
[22]
na sé de Hispalis, e Juliano, conde dos dominios
hespanhoes nas costas d'Africa, do outro
lado do Estreito, eram os cabeças dos
conspiradores. Unicamente o povo conservava
aínda alguma virtude, a qual, semelhante ao
liquido transvasado por cendal delgado e gasto,
escoara inteiramente atravez das classes
superiores. Opprimido, todavia, por muitos
generos de violencias, esmagado debaixo
dos pés dos grandes que luctavam, descrera
por fim da patria, tornando-se indifferente
e covarde, prestes a sacrificar a sua existencia
collectiva á paz individual e domestica.
A força moral da nação tinha, portanto,
desapparecido, e a força material era apenas
um phantasma; porque, debaixo das lorigas
dos cavalleiros e dos saios dos peões
das hostes não havia senão animos gelados,
que não podiam aquecer-se ao fogo do sancto
amor da terra natal.
Com a profunda intelligencia de poeta, o
Presbytero contemplava este horrivel espectaculo
de uma nação cadaver e, longe do bafo
empestado das paixões mesquinhas e torpes
daquella geração degenerada, ou derramava
sobre o pergaminho em torrentes de fel,
d'ironia e de colera a amargura que lhe trasbordava
do coração ou, recordando-se dos
[23]
tempos em que era feliz porque tinha esperança,
escrevia com lagrymas os hymnos de
amor e de saudade. Das elegias tremendas
do Presbytero alguns fragmentos que duraram
até hoje diziam assim:
IV
RECORDAÇÕES
Onde é que se escondeu enfraquecida a
antiga fortaleza?
S. Eulogio:
Memorial dos Sanct.
liv. 3.º
Presbyterio de Carteia. Á meia noite
dos Idos de Dezembro de 748.
1
Era por uma destas noites vagarosas do
inverno em que o brilho do céu sem lua é
vivo e tremulo; em que o gemer das selvas
é profundo e longo; em que a soledade das
praias e ribas fragosas do oceano é absoluta
e tetrica.
[25]
Era a hora em que o homem está recolhido
nas suas mesquinhas moradas; em que
pelos cemiterios o orvalho se pendura do topo
das cruzes e, sósinho, goteja das bordas
das campas; em que só elle chora os mortos.
As larvas da imaginação e o gear nocturno
affastam do campo sancto a saudade da viuva
e do orpham, a desesperação da amante, o
coração despedaçado do amigo. Para se consolarem,
os infelizes dormiam tranquillos em
seus leitos macios!... em quanto os vérmes
íam roendo esses cadaveres amarrados pelos
grilhões da morte. Hypocritas dos affectos
humanos, o somno enxugou-lhes as lagrymas!
E depois, as lousas eram já tão frias! Nos
seios de um torrão humido o sudario do cadaver
tinha apodrecido com elle.
Haverá paz no tumulo? Deus sabe o destino
de cada homem. Para o que ahi repousa
sei eu que ha na terra o esquecimento!
Os mares pareciam naquella hora recordar-se
ainda do rugido harmonioso do estio,
e a vaga arqueiava-se, rolava e, espreguiçando-se
pela praia, reflectia a espaços
nas golfadas de escuma a luz indecisa dos
céus.
E o animal que ri e chora, o rei da creação,
[26]
a imagem da divindade, onde é que se
escondera?
Tremia de frio em aposento cerrado, e
sentia confrangido a brisa fresca do norte
que passava nas trevas e sibilava contente
nas sarças rasteiras dos maninhos desertos.
Sem dúvida, o homem é forte e a mais
excellente obra da creação. Gloria ao rei da
natureza que tiritando geme!
Orgulho humano, qual és tu mais?—feroz,
estupido ou ridiculo?
2
Não eram assim os godos do oeste quando,
ora arrastando por terra as aguias romanas,
ora segurando com o seu braço de
ferro o imperio que desabava, imperavam na
Italia, nas Gallias e nas Hespanhas, moderadores
e arbitros entre o Septemtrião e o
Meio-dia:
Não era assim, quando o velho Theoderik,
semelhante ao urso feroz da montanha,
combatia
nos campos catalaunicos rodeiado de
tres filhos contra o terrivel Attila e ganhava
no seu ultimo dia a sua ultima victoria:
Quando a larga e curta espada de dous
gumes se convertera em fouce de morte nas
[27]
mãos dos godos, e diante della retrocedia a
cavallaria dos gépidas, e os esquadrões dos
hunos vacillavam, dando roucos gritos d'espanto
e terror.
Quando as trevas eram mais cerradas e
profundas viam-se á claridade das estrellas
relampagueiar as armas dos hunos, volteiando
em roda dos seus carros, que lhes serviam
de vallos. Como o caçador espreita o leão
tomado no fojo, os wisigodos os vigiavam,
esperando o romper da alvorada.
Lá, o sopro gelado da noite não fazia
confranger nossos avós debaixo das armaduras.
Lá, a neve era um leito como outro
qualquer, e o rugir do bosque, debatendo-se
nas azas da tempestade, era uma cantilena
de repouso.
O velho Theoderik cahira atravessado por
uma frecha despedida pelo ostrogodo Handags,
que com os da sua tribu combatia
pelos hunos.
Os wisigodos viram-no, passaram ávante
e vingaram-no. Ao pôr do sol, gépidas, ostrogodos,
scyros, burgundos, thuringios, hunos,
misturados uns com outros, tinham mordido
a terra catalaunica, e os restos da innumeravel
hoste d'Attila, encerrados no seu
acampamento fortificado, preparavam-se para
[28]
morrer; porque Theoderik jazia para sempre,
e o frankisk dos wisigodos era vingador
e inexoravel.
O romano Aecio teve, porém, piedade
d'Attila e disse aos filhos de Theoderik:—ide-vos,
porque o imperio está salvo.
E Thorsmund, o mais velho, perguntou
a seus dous irmãos Theoderik e Friederik:—está
acaso vingado o sangue de nosso pae?
De sobejo o estava elle! Ao apparecer do
dia, por quanto os olhos podiam alcançar,
não se viam senão cadaveres.
E os wisigodos deixaram entregues a si
os romanos, que, desde então, não souberam
senão fugir diante d'Attila.
Quem contará, porém, as victorias de nossos
avós durante tres seculos de gloria? Quem
poderá celebrar o esforço d'Eurik, de Theudes,
de Leuwighild; quem saberá todas as
virtudes de Rekkáred e de Wamba?
Mas, em qual coração resta hoje virtude
e esforço no vasto imperio d'Hespanha?
3
Era, pois, n'uma destas noites como a
que desceu do céu depois do desbarato dos
hunos; era n'uma destas noites em que a
[29]
terra, envolta no seu manto d'escuridade, se
povôa de terrores incertos; em que o sussurro
do pinhal é como um coro de finados,
o despenho da torrente como um ameaçar
d'assassino, o grito da ave nocturna como
uma blasphemia do que não crê em Deus.
Nessa noite fria e humida, arrastado por
agonia intima, vagava eu ás horas mortas
pelos alcantis escalvados das ribas do mar e
enxergava ao longe o vulto negro das aguas
balouçando-se no abysmo que o Senhor lhes
deu para perpetua morada.
Por cima da minha cabeça passava o norte
agudo. Eu amo o sopro do vento, como
o rugido do mar.
Porque o vento e o oceano são as duas
unicas expressões sublimes do verbo de Deus,
escriptas na face da terra quando ainda ella
se chamava o cahos.
Depois é que surgiu o homem e a podridão,
a arvore e o verme, a bonina e o emmurchecer.
E o vento e o mar viram nascer o genero-humano,
crescer a selva, crescer a primavera;—e
passaram, e sorriram-se.
E, depois, viram as gerações reclinadas nos
campos do sepulchro, as arvores derribadas
no fundo dos valles seccas e carcomidas, as
[30]
flores pendidas e murchas pelos raios do sol
do estio;—e passaram, e sorriram-se.
Que tinham elles, de feito, com essas existencias,
mais passageiras e incertas que as
correntezas de um e que as ondas buliçosas
do outro?
4
O mundo actual nunca poderá entender
plenamente o affecto que, vibrando-me dolorosamente
as fibras do coração, me arrastava
para as solidões marinhas do promontorio,
quando os outros homens nos povoados
se apinhavam á roda do lar acceso e falavam
das suas mágoas infantis e dos seus
contentamentos de um instante.
E que m'importa a mim isso? Virão um
dia a esta nobre terra d'Hespanha gerações
que comprehendam as palavras do Presbytero.
Arrastava-me para o ermo um sentimento
intimo, o sentimento de haver acordado,
vivo ainda, deste sonho febril chamado vida
e de que hoje ninguem acorda, senão depois
de morrer.
Sabeis o que é esse despertar de poeta?
É o ter entrado na existencia com um
coração que trasborda d'amor sincero e puro
por tudo quanto o rodeia, e ajunctarem-se
[31]
os homens e lançarem-lhe dentro do seu vaso
d'innocencia lodo, fel e peçonha e, depois,
rirem-se d'elle:
É o ter dado ás palavras—virtude, amor
patrio e gloria—uma significação profunda
e, depois de haver buscado por annos
a realidade dellas neste mundo, só encontrar
ahi hypocrisia, egoismo e infamia:
É o perceber á custa de amarguras que
o existir é padecer, o pensar descrer, o experimentar
desenganar-se e a esperança nas
cousas da terra uma cruel mentira de nossos
desejos, um fumo tenue que ondeia em
horisonte áquem do qual está assentada a
sepultura.
Este é o acordar do poeta. Depois disso,
nos abysmos da sua alma só ha para mandar
aos labios um sorriso de desprezo em resposta
ás palavras mentidas dos que o cercam
ou uma voz de maldicção desabridamente
sincera para julgar as acções dos homens.
É então que para elle ha unicamente uma
vida real—a intima; unicamente uma linguagem
intelligivel—a do bramido do mar
e do rugido dos ventos; unicamente uma convivencia
não travada de perfidia—a da solidão.
[32]
5
Tal era eu quando me assentei sobre as
fragas; e a minha alma via passar diante de
si esta geração vaidosa e má, que se crê grande
e forte, porque sem horror derrama em
luctas civis o sangue de seus irmãos.
E o meu espirito atirava-se para as trévas
do passado.
E o sopro rijo do norte affagava-me a
fronte requeimada pela amargura, e a memoria
consolava-me das dissoluções presentes
com a aspiração suave do formoso e energico
viver d'outr'ora.
E o meu meditar era profundo como o
céu, que se arqueia immovel sobre nossas cabeças;
como o oceano, que, firmando-se em
pé no seu leito insondavel, braceja pelas bahias
e enseadas, tentando esmigalhar e desfazer
os continentes.
E eu pude, emfim, chorar.
6
Que fora a vida, se nella não houvera lagrymas?
O Senhor estende o seu braço pesado de
maldicções sobre um povo criminoso: o pae
[33]
que perdoara mil vezes converte-se em juiz
inexoravel; mas, ainda assim, a Piedade não
deixa de orar juncto dos degráus do seu
throno.
Porque sua irman é a Esperança, e a esperança
nunca morre nos céus. De lá ella
desce ao seio dos máus antes que sejam precítos:
E os desgraçados na sua miseria conservam
sempre olhos que saibam chorar.
A dor mais tremenda do espirito quebrantam-na
e entorpecem-na as lagrymas.
O Sempiterno as creou quando nossa primeira
mãe nos converteu em réprobos: ellas
servem, porventura, ainda de algum refrigerio
lá nas trévas exteriores, onde ha o
ranger dos dentes.
Meu Deus, meu Deus!—Bemdicto seja
o teu nome, porque nos déste o chorar.
V
A MEDITAÇÃO
Então os godos cahirão na guerra;
Então fero inimigo ha-de opprimi-los
Com ruinas sem conto, e o susto e a fome.
Hymno de S. Isidoro
em Lucas de Tui.
Chronicon liv. 3.º
No templo—Ao romper d'alva—Dia
de Natal da era de 748.
1
Mais de sete seculos são passados depois
que tu, oh Christo, vieste visitar a terra.
E as tuas palavras foram escutadas pelos
indomaveis filhos da Gothia, e elles ajoelharam
aos pés da cruz.
Era que nessas palavras divinas havia uma
poesia celeste, a qual as almas rudes mas
[35]
virgens do septemtrião sentiam casar-se com
as suas primitivas virtudes.
Tu evangelisavas a liberdade e condemnavas
todo o genero de tyrannia: tu restituias
ao valor a sua generosidade, á generosidade
a sua modestia; tu revelavas inauditos mysterios
no esforço do morrer: a constancia
dos teus martyres escurecia a dos nossos
guerreiros quando, debaixo do punhal de inimigo
victorioso, recusavam confessar-se vencidos.
Tu convertias o amor, esse sentimento delicioso,
até então limitado ao goso material
da mulher, em um grande e sublime affecto:
alargavas o ambito do coração por toda a
terra, por tudo quanto nella vive e respira,
e davas-lhe para conquistar todas as existencias
dos céus.
A generosidade, o esforço e o amor, ensinaste-os
tu em toda a sua sublimidade: só
nas almas dos barbaros estavam elles em germen.
Não para os romanos corrompidos, mas
para nós, os selvagens septemtrionaes, era o
christianismo. Para estes o evangelho assemelhava-se
ao sol que rompe d'além das serras
e que illumina, aquece e alegra; para
os escravos abjectos dos cesares assemelhava-se
ao sol mergulhando-se no mar, que só
[36]
deixa nos campos escuridão, frialdade e tristeza.
Por isso, emquanto elles voltavam as costas
á tua cruz ou a lançavam d'envolta com
os idolos nos seus mesquinhos lararios, nós
quebravamos no fundo das selvas ou no topo
das montanhas as imagens d'Odin, de Thor
e de Freda e corriamos a abraçarmo-nos
com ella.
Tem compaixão de nós, oh Christo: lembra-te
de que os ossos dos que assim o fizeram
ainda não são inteiramente cinzas debaixo
das lousas; porque só quatro seculos
tem passado por cima delles.
2
Quem é hoje christão e godo nesta nossa
terra d'Hespanha?
Uma geração degenerada pisa os restos
d'heroes: homens sem crença, blasphemos
ou hypocritas, succederam aos que criam
na grandeza moral do genero-humano e na
providencia de Deus.
D'antes, os principes do povo eram os capitães
das hostes: a espada dos reis a primeira
que se tingia no sangue dos inimigos
da patria.
[37]
D'antes, o sacerdote era o anjo da terra:
os que passavam curvavam-se para beijar a
fimbria da sua stringe; porque a paz e a
esperança entravam em todas as moradas
sobre que desciam as bençams delle.
D'antes, o juiz era o pae do opprimido, o
tribunal o abrigo do innocente, a justiça o
nervo do imperio gothico.
D'antes, nos concelhos dos prelados, dos
nobres, dos homens livres as leis íam buscar
a sancção da sabedoria e afferir-se pela
utilidade commum. Lá, o rei sabía que o
poder lhe vinha de Deus e da vontade dos
godos, que o sceptro era cajado de pastor,
não cutello d'algoz, e a coroa uma carga
pesada, não uma aureola de vangloria.
Hoje, nos paços de Toletum só retumba
o ruido das festas, os frankos e os vasconios
talam as provincias do norte, e a espada dos
guerreiros só reluz nas luctas civís.
Hoje, os principes na embriaguez dos banquetes
esqueceram-se das tradições d'avós;
esqueceram-se de que era aos capitães das
hostes da Germania que os romanos imbelles
davam o nome de reis.
Hoje, a prostituição entrou no templo do
Crucificado: os claustros das cathedraes velam
com o seu manto de pedra as abominações
[38]
da torpeza, e as mãos do sacerdote
deixam muitas vezes humedecida a tela que
veste os altares com vestigios do sangue derramado
covarde e vilmente.
Hoje, a cubiça assentou-se no logar da
equidade: o juiz vende a consciencia no mercado
dos poderosos, como as mulheres de
Babylonia vendiam a pudicicia nas praças
publicas aos que passavam, diante da luz
do dia.
Hoje, a espada substituiu o conselho dos
prelados, dos nobres e dos homens livres: a
coroa é uma conquista, a lei uma vontade do
deshonrado vencedor de pelejas domesticas,
a liberdade uma palavra mentida.
Imperio d'Hespanha, imperio d'Hespanha!
porque foram os teus dias contados?
3
O sol oriental que ora bate ridente no pavimento
da igreja afflige a minha alma, porque
me parece que, alumiando esta terra
condemnada, se assemelha a homem cruel
que viesse dar uma risada juncto ao leito do
moribundo.
Porque te havia eu de amar, oh sol, se
tu és o inimigo dos sonhos do imaginar; se
[39]
tu nos chamas á realidade, e a realidade é
tão triste?
Pela escuridão da noite, nos logares ermos
e ás horas mortas do alto silencio a
phantasia do homem é mais ardente e robusta.
É então que elle dá movimento e vida
aos penhascos, voz e entendimento ás selvas
que se meneiam e gemem á mercê da brisa
nocturna.
É então que elle collige as suas recordações;
une, parte, transmuda as imagens
das existencias que viu passar ante si e estampa
nas sombras que o rodeiam um universo
transitorio, mas para elle real.
E é bello esse mundo de phantasmas aereos,
por entre cujos labios descorados não transpiram
nem perjurio nem dobrez e a cujos
olhos sem brilho não assoma o reflexo de
animos pervertidos.
Ahi ha o repouso, a paz e a esperança
que desappareceram da terra; porque o mundo
das visões cria-o a mente pura do poeta:
ella dá corpo e vulto ao que já só é ideal,
e o passado, deixando cahir o seu immenso
sudario, ergue-se em pé e, pondo-se diante
do que medita, diz-lhe:—aqui estou eu!
E este o compara com o presente e recúa
d'involuntario terror:
[40]
Porque o cadaver que se alevanta do pó
é formoso e sancto, e o presente que vive e
passa e sorri é horrendo e maldicto.
E o poeta atira-se chorando ao seio do
cadaver e responde-lhe:—esconde-me tu!
É lá que esta alma, arida como a urze,
sente, quando ahi se abriga, refrescá-la um
como orvalho do céu.
VI
SAUDADE
Christo!—dá-me o perdão; dá-me remedio;
Que entre tão vario mal fraqueia a mente!
Eugenio Toledano:
Opusculos—XI.
Na Ilha-verde. Ao pôr do sol das
kalendas de abril da era de 749.
1
O mar estava tranquillo, e o ar puro e
diaphano. As costas d'Africa fronteiras, lá
na extremidade do horisonte, pareciam uma
orla escura bordada no manto azul do firmamento.
A aragem do norte encrespava suavemente
a superficie das aguas: as ondas vinham
espraiar-se preguiçosas no areial da bahia.
[42]
O barqueiro Ranimiro dormia na sua barca
amarrada na foz do Palmonio. Uma saudade
indizivel attrahia-me para o mar.
Saltei na barca; o ruido que fiz despertou
Ranimiro.—«Ao largo»—disse-lhe eu.
Empunhou os remos, e partimos.
«Para onde, Presbytero?»—perguntou o
barqueiro, depois de vogar alguns momentos
em silencio.
«Quero respirar o ar puro e fresco da tarde;
mais nada:—repliquei.—Leva-me para
onde te approuver.»
—Se vos parece—tornou Ranimiro—
rodeiaremos
a Ilha Verde, entraremos no
canal, e saltareis na margem. Pelo tempo
que vai, ella estará agora esmaltada de verdura
e boninas.»
Calei-me: o barqueiro tomou por approvação
o meu silencio. Voltando a proa para
poente, corremos ao largo da ilha e, rodeiando
a sua margem occidental, abicámos em
terra pelo lado da enseada que a separa do
continente.
Ranimiro não se enganara: como uma tapeçaria
riquissima lançada ao som das aguas,
a superficie da ilha agitava-se trémula com
a aragem da terra, que curvava brandamente
as flores e as folhinhas lanceoladas da relva.
[43]
Assentado á sombra de uma rocha que formava
um promontoriosinho do lado do sul,
lancei os olhos em volta até onde se descubria
o horisonte. Lá, no extremo do Estreito
para a banda do mar interior, viam-se na
ponta da Africa os cimos das torres de Septum
fronteiras aos cerros escalvados do Calpe.
De Septum para o occidente as costas africanas
contrastavam nas suas ondulações suaves
com a penedia aspera das ribas hispanicas,
e, confrangido entre os dous continentes,
o mar balouçava-se resplandecente com os
raios já inclinados do sol.
De roda de mim a atmosphera estava impregnada
de um halito perfumado: era a natureza
que sorria affagada pela primavera.
As aves aquaticas redemoinhavam nos ares
ou pousavam sobre as aguas e pareciam, nos
seus vôos incertos, ora vagarosos, ora rapidos,
folgarem com os primeiros dias da estação
dos amores.
Uma melancholia suave se me erguia lentamente
no coração, debaixo daquelle céu
puro, n'aquella atmosphera balsamica, ante
aquelles horisontes saudosos. As lagrymas rebentaram-me
involuntariamente dos olhos.
Era feliz neste momento, porque repousava
d'amarguras. Olhei para a barca: Ranimiro
[44]
adormecera de novo á proa. Repousavam
bem perto um do outro a materia e
o espirito.
Bemaventurado, pensei eu comigo, aquelle
em quem os affagos de uma tarde serena de
primavera no silencio da solidão produzem
o torpor dos membros; porque nessa alma
dormem profundamente as dores no meio
do ruido da vida!
E este pensamento trouxe-me pouco e
pouco á memoria as tempestades do passado.
Ai de mim! Logo se me enchugaram
as lagrymas, porque eram de consolação, e
essa lembrança as estancou!
2
Porque não adormeço eu, como o rude
barqueiro, ao murmurio das vagas somnolentas,
ao sussurro da brisa do norte?
Porque mulher barbara não entendeu o
que valia o amor d'Eurico; porque velho
orgulhoso e avaro sabía mais um nome de
avós do que eu, e porque nos seus cofres
havia mais alguns punhados d'ouro do que
nos meus.
As mãos imbelles de uma donzella e de
um velho esmagaram e despedaçaram o coração
[45]
de um homem, como os caçadores
covardes assassinam no fojo o leão indomavel
e generoso.
E, todavia, este coração sentia a voz da
consciencia pregoar-lhe largos destinos! Porque
não emmudeceu essa voz quando do portico
do templo lancei ao mundo a maldicção
da despedida?
Porque me lembra com saudade, aqui, a
estas horas, o tempo das minhas esperanças?
É porque o viver é o éculeo do espirito:
a alma estorce-se como agonisante no meio
dos mais incomportaveis tormentos, sem nunca
poder expirar, e os seus affectos profundos
são com ella; não lhes é dado o morrer.
Paz e esquecimento, oh meu Deus!
3
Os raios derradeiros do sol desappareceram:
o clarão avermelhado da tarde vai quasi
vencido pelo grande vulto da noite, que se
alevanta do lado de Septum. Nesse chão tenebroso
do oriente a tua imagem serena e
luminosa surge a meus olhos, oh Hermengarda,
semelhante á apparição do anjo da
esperança nas trevas do condemnado.
E essa imagem é pura e sorri; orna-lhe
[46]
a frente a coroa das virgens; sobe-lhe ao
rosto a vermelhidão do pudor;
o amiculo
alvissimo da innocencia, fluctuando-lhe em
volta dos membros, esconde-lhes as fórmas
divinas, fazendo-as, porventura, suspeitar menos
bellas que a realidade.
É assim que eu te vejo em meus sonhos
de noites de atroz saudade: mas, em sonhos
ou desenhada no vapor do crepusculo, tu não
és para mim mais do que uma imagem celestial;
uma recordação indecifravel; um consolo
e ao mesmo tempo um martyrio.
Não eras tu emanação e reflexo do céu?
Porque não ousaste, pois, volver os olhos
para o fundo abysmo do meu amor? Verias
que esse amor do poeta é maior que o de nenhum
homem; porque é immenso, como o
ideal, que elle comprehende; eterno, como o
seu nome, que nunca perece.
Hermengarda, Hermengarda, eu amava-te
muito! adorava-te só no sanctuario do meu
coração, emquanto precisava de ajoelhar ante
os altares para orar ao Senhor. Qual era o
melhor dos dous templos?
Foi depois que o teu desabou, que eu me
acolhi ao outro para sempre.
Porque vens, pois, pedir-me adorações
quando entre mim e ti está a cruz ensanguentada
[47]
do Calvario; quando a mão inexoravel
do sacerdocio soldou a cadeia da minha
vida ás lageas frias da igreja; quando o
primeiro passo alèm do limiar desta será a
perdição eterna?
Mas, ai de mim! essa imagem que parece
sorrir-me nas solidões do espaço está estampada
unicamente em minha alma e reflecte-se
no céu do oriente através destes olhos
perturbados pela febre da loucura, que lhes
queimou as lagrymas.
Tu, Hermengarda, recordares-te?! Mentira!...
Crês que morri, ou, porventura, nem
isso crês; porque para creres era preciso
lembrares-te, e nem uma só vez te lembrarás
de mim!
Lá, no tumulto dos cortezãos, onde o
amor é calculo ou sentimento grosseiro, terás
achado quem te chame sua, quem te
aperte entre os braços, quem tivesse para
dar a teu pae o preço do teu corpo e te
comprasse como alfaia preciosa para serviço
domestico. O velho estará contente, porque
trocou sua filha por ouro.
A isto chama prudencia o mundo estupido
e ambicioso; a isto, que não é mais do
que uma prostituição abençoada sacrilegamente
perante as aras sacrosanctas.
[48]
Oh, quantas vezes esse pensamento repugnante
me tem feito vagueiar louco pelas
montanhas, uivando como o lobo esfaimado
e tentando despedaçar os rochedos com
as mãos, d'onde me goteja o sangue!
E tu folgas e ris! Oxalá nunca saibas quão
intenso e atroz é o meu tormento, que devo
velar diante dos homens debaixo de aspecto
tranquillo, como se, em vez de martyrio, elle
fosse um abominavel crime.
4
E quem te disse, Presbytero, que o teu
amor não era um crime?
Tens razão, consciencia! Quando aos pés
do veneravel Siseberto o gardingo Eurico jurou
que abandonava o mundo devia despir
as paixões que do mundo trouxera.
A luz brilhante d'affeições e esperanças a
que vivia e que me povoava o coração de
felicidade devia apagar-se então, como a lampada
do templo ao amanhecer; porque eu
voltava-me para o céu, buscando a luz do
Senhor.
Mas o sol, apenas nasceu para mim, logo
desappareceu no occaso, e os que me creem
alumiado mal pensam que vivo em trevas!
[49]
As minhas paixões não podiam morrer,
porque eram immensas, e o que é immenso
é eterno.
E assim, nem ouso pedir a paz do sepulchro;
porque para mim não haveria paz,
senão no anniquilamento!
O anniquilamento! Que mal te fiz eu, oh
meu Deus, para me não deixares cá dentro
mais que uma idéa risonha, mais que um
desejo capaz de encher o abysmo da minha
desventura? Que mal te fiz eu para que esse
desejo, essa idéa seja a que unicamente resta
ao precíto que se revolve em perpetuas
angustias?
Mas para mim, como para elle, tal pensamento
é vão e mentido! Eternidade, eternidade,
a alma do homem está encerrada e
captiva no illimitado do teu imperio!
VII
A Visão
No espelho da visão está a segurança
da verdade.
Codigo wisigothico—I-1-2.
Presbyterio. Antemanhan. Oito dos
idos d'abril da era de 749.
1
O somno ou a vigilia, que me importa esta
ou aquelle? As horas da minha vida são
quasi todas dolorosas; porque a imaginação
do homem não póde dormir.
Para o povo, ignorante e impiamente credulo,
a noite é cheia de terrores; em cada
folha que range na selva elle ouve um gemido
de alma que vagueia na terra; em
[51]
cada sombra de arvore solitaria que se balouça
com a aragem sente o mover de um
phantasma; as exhalações dos bréjos são para
elle luz de demonios, alumiando folgares de
feiticeiras.
Mas, quando jaz no leito do repouso, o
seu dormir é tranquillo. Ao cruzar os umbraes
domesticos esses terrores sumiram-se
com os objectos que os geraram. A sua alma
parece despir-se da phantasia grosseira,
como o corpo se despe da stringe aspera que
lhe resguarda os membros.
Não assim eu. Quando as palpebras, cerrando-se,
m'escondem o mundo das realidades,
os olhos do espirito volvem-se para o
mundo das existencias ideaes. Ás vezes, a felicidade
e a esperança vem consolar-me então;
muitas mais, porém, os sonhos maus me
perseguem; e por bem alto preço me saem
os instantes de ventura transitoria trazidos
por visões consoladoras.
Esta foi para mim uma noite cruel. Ainda
o suor frio que me corria da fronte se não
seccou; ainda o coração parece mal caber no
peito, e o pulso bate desordenado e violento.
Terribilissimos foram os sonhos que Deus
mandou ao Presbytero; mas, porventura, mais
terrivel é a sua significação.
[52]
Diz-me voz intima que esse doloroso espectaculo
a que assistiu a minha alma é, oh
Hespanha, o mysterio dos teus destinos.
E esta foi a visão:
2
Eram as horas das trevas profundas. Sem
saber como, achava-me no viso mais alto do
Calpe: traspassava-me a medúla dos ossos
o vento frio da noite, e parecia-me que os
membros hirtos se me haviam pregado no
topo da penedia.
Olhava fito ante mim, e os meus olhos
rompiam a escuridão do horisonte, como se
a luz do sol o illuminasse.
O espectaculo maravilhoso que se passava
nesse espaço insondavel fazia-me erriçar os
cabellos, que o norte me açoutava com o
sopro gelado.
Eis o que eu vi nessa hora de agonia, depois
de estar alli alguns não sei se instantes
ou seculos.
O mar cessou de agitar-se e rugir, semelhante
ao metal fervente destinado para
a feitura d'estatua colossal que resfriasse de
subito em vasta caldeira.
E era horribilissimo ver convertido em
[53]
cadaver, de todo immovel e mudo, o oceano;
aquelle oceano que ha mais de quarenta
seculos nem um só dia deixou de revolver-se
e bramir em torno dos continentes,
como o tigre ao redor da rez que jaz
morta.
O sibillar das rajadas tambem cessou completamente.
Parado sobre a face da terra, o
ar era semelhante ao lençol do finado a
quem recalcaram a gleba que o cobre, frio,
humido, pesado, sem ranger, sem movimento,
cosido sobre o peito, onde acabou o
bater do coração e o arfar compassado dos
pulmões.
Então, muito ao longe, uma vermelhidão
tenuissima foi avultando pouco a pouco, derramando-se
pelo horisonte e repintando a
abobada immensa dos céus.
Depois, esse clarão sinistro reverberou na
terra: as cimas agudas, dentadas, tortuosas,
alvacentas das fragas marinhas tinham-se
abatido e livelado, como os cerros informes
de neve amontoada, que, derretidos nos primeiros
dias do estio, vão, despenhando-se,
formar um lago chão e morto na caldeira
mais funda do valle fechado.
Tudo a meus pés era um plano uniforme,
ermo, affogueiado, como a atmosphera
[54]
que pesava em cima delle: e, além, jazia o
cadaver do mar.
Eu, o Silencio e a Solidão eramos quem
estava ahi.
3
Subitamente, naquelle vasto horisonte, até
então puro na sua luz horrenda, dous castellos
de nuvens cerradas e negras começaram
a alevantar-se, um da banda da Europa,
outro do lado d'Africa.
Os bulcões conglobados corriam um para
o outro e multiplicavam-se, vomitando novos
castellos de nuvens, que se diffundiam, fluctuando
ennoveladas com fórmas incertas.
E aquellas montanhas vaporosas e negras
rasgaram-se d'alto a baixo em fendas semelhantes
a algares profundos, e os seus fragmentos
informes e cambiantes vacillavam
tremulos em ascensão diagonal para as alturas
do céu.
Ao approximarem-se, os dous exercitos
de nuvens prolongaram-se em frente um do
outro e toparam em cheio. Era uma verdadeira
batalha.
Como duas vagas encontradas, no meio
de grande procella, que, tombando uma sobre
a outra, se quebram em cachões que espadanam
[55]
lençoes de escuma para ambos os
lados, antes que a menos violenta se incorpore
na mais possante, assim aquellas nuvens
tenebrosas se despedaçavam, derramando-se
pela immensidão da abobada affogueiada.
Então, pareceu-me ouvir muito ao longe
um choro sentido misturado com gritos agudos,
como os do que morre violentamente,
e um tinir de ferro, como o de milhares de
espadas, batendo nas cimeiras de milhares de
elmos.
Mas este ruido foi-se alongando e cessou:
os bulcões alevantados da banda d'Africa tinham
embebido em si os que subiam da Europa,
e desciam rapidamente
para o lado
dos campos gothicos.
Depois, sentí lá embaixo, na raiz da montanha,
um rir diabolico. Olhei: o Calpe esboroava-se
ao redor de mim, e os rochedos
sobre que eu estava assentado vacillavam nos
seus fundamentos.
Despertei. Tinha os cabellos hirtos, e o
suor frio manava-me da fronte aquecida por
febre ardente.
Senhor, Senhor! foste tu que déste a ler
á minha alma a ultima pagina do livro eterno
em que a providencia escreveu a historia
do imperio godo?
[56]
Contam-se cousas incriveis desses povos
que assolam a Africa, chamados os arabes, e
que, em nome de uma crença nova, pretendem
apagar na terra os vestigios da cruz.
Quem sabe se aos arabes foi confiado o castigo
desta nação corrupta?
Já as nossas praias foram visitadas por
elles, e para os repellir cumpriu que desembainhasse
a espada o illustre Theodemiro, o
ultimo guerreiro, talvez, que mereça o nome
de neto dos godos.
Terra em que nasci, se o teu dia de morrer
é chegado, eu morrerei comtigo. Na procella
que se alevanta d'Africa deixarei submergir
o meu debil esquife, sem que a esses
gemidos que ouvi se vão ajunctar os meus.
Que m'importa a vida ou a morte, se o padecer
é eterno?
VIII
O DESEMBARQUE
E eu estava em um angulo, observando
com temor.
Paulo Diacono: Vidas dos PP.
Emeritenses.
DO PRESBYTERO DE CARTEIA AO DUQUE DE CORDUBA
Ao Duque Theodemiro, saude!
Quando Witiza reinava, na corte esplendida
de Toletum, havia dois tiuphados que
a todos serviam d'exemplo d'intima e sincera
amizade. Opiniões e intentos, alegrias e
tristezas eram communs para ambos. Chamava-se
Theodemiro o mais velho, Eurico o
mais moço. Nas suas esperanças de mancebos,
[58]
as Hespanhas foram-lhes, muitas vezes,
limitado theatro para illusões de ambição. A
gloria era o seu perpetuo sonho, e as recordações
das façanhas dos antigos godos embriagavam-lhes
os animos ao lembrarem-se
de que as armas dos seus avós da Germania
tinham brilhado victoriosas sempre sobre os
membros despedaçados do imperio romano.
Quando o grito da revolta soou na Cantabria
as tiuphadias dos dous mais irmãos que
amigos acompanhavam Witiza na expedição
contra os montanhezes rebeldes e contra os
frankos seus alliados. Então, n'essa guerra
d'exterminio, os dous mancebos viram saciada
sua sede de renome. Como os macissos
de neve que se despenham das montanhas
escarpadas da Vasconia, as duas tiuphadias
de Theodemiro e de Eurico appareciam,
ás vezes, subitamente, nos visos das serras e,
apenas os primeiros raios do sol faziam reluzir
as armas, semelhantes no brilho tremulo
ao alvejar da geada, ei-las que pareciam
rolar-se pela encosta, e, dentro de pouco,
os acampamentos dos frankos e cantabros
ficavam esmagados debaixo do impeto irresistivel
dessas pinhas de soldados que eram
arremessados sobre os inimigos por duas vontades
emulas de gloria. Expulsos os estrangeiros
[59]
e submettidos os rebellados, a hoste
real entrou victoriosa em Tárraco. O duque
Favilla recebeu em triumpho os pacificadores
de Cantabria, e Theodemiro e Eurico
obtiveram a recompensa do que combateu
pela patria, a gratidão dos seus naturaes.
Foi ahi que o destino preparou a separação
dos dous guerreiros que parecia só a morte
poder dividir. Favilla tinha dous filhos,
Hermengarda e Pelagio. Pelagio saía apenas
da infancia, mas para Hermengarda despontavam
já então os risonhos dias da juventude.
A sua formosura era celestial: Eurico
viu-a e amou-a. Quando as tiuphadias
foram chamadas a Toletum, Eurico voltou
triste á terra da sua infancia. Dir-se-hia que
eram os contentamentos da patria que elle
trocava pelas tristezas do desterro. Debalde
buscou Theodemiro apagar aquella paixão
violenta no coração do seu amigo, lançando-se
com elle nas festas ruidosas de uma corte
dissoluta. A embriaguez dos banquetes era
para Eurico tristonha; as caricias feminís,
facilmente compradas e profundamente mentidas,
atrás das quaes correra loucamente outr'ora,
tinham-se-lhe tornado odiosas; porque
o amor, com toda a sua virgindade sublime,
lhe convertera em podridão asquerosa
[60]
os deleites grosseiros que o mundo offerece
á sensualidade do homem. Theodemiro acreditara
na efficacia da bruteza para matar o
mais formoso dos affectos humanos; mas o
amor devorou na mente de Eurico todos os
outros sentimentos, como a lava candente devora
tudo o que encontra, quando o vulcão
a vomita, alagando a superficie da terra.
Favila veio á corte: Hermengarda acompanhava-o.
Theodemiro recordar-se-ha ainda
de qual foi o desfecho do amor de Eurico,
que ousou dizer ao velho procer: «Dá-me
por mulher tua filha.» A amizade de Theodemiro
salvou então o desprezado gardingo
da morte do corpo, mas não pôde salva-lo
da morte da alma. Razões, rogos, lagrymas;
quanto a eloquencia de affeição mais que fraterna
tem de vehemencia; quantas cordas do
coração sabe fazer vibrar a mão de um amigo,
tudo elle tentou debalde! Não ha palavras
que possam erguer um espirito que deu
em terra; mão nenhuma tira sons de cordas
que estalaram. Eurico ou, antes, a sua sombra,
fugiu do lado de Theodemiro, e da porta
do sanctuario disse-lhe um adeus eterno,
como ao resto do mundo.
Mal sabía o desgraçado que n'esse adeus
a sua consciencia mentia a si propria! Theodemiro,
[61]
tu hoje és duque de Corduba: entre
os povos sujeitos ao teu imperio; entre
os que abençoam a tua justiça e bondade,
n'um angulo da vasta provincia da Betica,
em Carteia, vive um pobre presbytero que
para ti pede ao Senhor tanto o renome e o
poderio quanto para si deseja a obscuridade
e o esquecimento. Este presbytero é quem
te escreve; quem limitou a bem poucos annos
a eternidade do adeus que te dissera;
é aquelle que se chamava no mundo o gardingo
Eurico, aquelle de quem foste amigo,
e que foi teu rival de gloria.
Duque de Corduba, não creias que o meu
espirito se volte hoje para as miserias da
terra, impellido por uma tardia saudade.
Não! De que me serviriam o ouro, o poder
e a grandeza? Para tomar um punhado desse
lodo não se curvaria o Presbytero. O unico
affecto eterno que, talvez, resta a este coração
depurado pelo fogo ardente da desdita,
o amor da patria, sentimento confuso e
indefinido, mas indelevel, é quem obriga Eurico
a dizer-te o logar em que veio coar gota
a gota as horas aborridas da sua tormentosa
existencia.
Theodemiro! Theodemiro! Um dia tremendo
se approxima em que a Hespanha
[62]
deve ser o tumulo da raça goda. Em sonhos
antevi esse dia, e, após dos sonhos, a medonha
realidade ahi se me alevanta diante
dos olhos. Carteia está deserta, como as demais
povoações vizinhas. Apenas eu ouso demorar-me
nas immediações do Calpe; porque
sei, passo a passo, todas as veredas que
guiam ao topo dos desfiladeiros, tendo-as
regado muitas vezes com lagrymas, tendo-lhes
muitas mais confiado a historia das minhas
agonias. As cidades despovoam-se, e,
como ellas, os campos convertem-se em ermos.
Embora ainda sorriam no vecejar das
searas, no florescer dos pomares, no murmurar
das fontes: semelhante sorrir consterna;
porque o homem desappareceu do
meio desta scena formosa, e o ruido da vida
converteu-se em silencio de morte.—Os
arabes!—eis o unico grito que o interrompe;
e esta palavra maldicta é como a peste
quando passa: seguem-na o susto e o desacordo.
A vileza do coração humano surge após
ella em toda a hediondez do seu aspecto. O
terror acabou com os mais sanctos affectos
e, até, com o amor filial e paterno. Cada qual
busca salvar-se a si proprio. Os netos dos
nobres godos converteram-se n'um bando
desprezivel de covardes egoistas.
[63]
Ha tres dias, ao romper da manhan, um
grande numero de velas branquejava sobre
as aguas do Estreito; vinham do lado de
Septum. Corremos á praia. Dentro de poucas
horas entraram na bahia de Carteia, e
algumas entestaram com a Ilha-Verde. Via-se
distinctamente o reluzir das armas, e varios
soldados que tinham ajudado a repellir
os primeiros saltos dos africanos nas costas
d'Hespanha reconheceram logo os trajos e
as armas dos arabes. Entre estes, porém,
divisavam-se muitos godos, pelas armaduras
pesadas, pelos largos ferros dos frankisks e
pelas stringes mais curtas que as amplas vestiduras
dos filhos do Oriente. D'ahi a pouco
toda a frota velejou para o lado do Calpe,
e, quando anoiteceu, as faldas da montanha
appareceram alumiadas por muitos fachos.
Os arabes tinham desembarcado.
A anciedade era indizivel. Demudadas as
faces, olhavamos uns para os outros. Elles
tremiam por si: eu pela sorte da Hespanha.
Mas porque entre esses que pareciam inimigos
se achava tão avultado numero de godos?
Esta pergunta significava a nossa derradeira
esperança.
Ao entenebrecer, alguns barqueiros saíram
ao largo e, vogando surdamente, foram espiar
[64]
a frota. Tomando os atalhos mais curtos,
eu encaminhei-me sósinho para o Calpe,
cujo vulto gigante, rodeiado de fachos ao
sopé, negrejava no topo sobre o fundo alvacento
do céu limpo de nuvens, onde a lua
passava tranquilla, embargando com o seu
clarão pallido o scintillar das estrellas.
Era alta noite quando cheguei á montanha.
Subindo pelas quebradas, salvando precipicios,
cozendo-me com as fragas tortuosas,
descendo pelos leitos das torrentes, cheguei
a um rochedo contiguo á planicie que das
raizes da serrania vai morrer no rolo do mar,
na costa oriental da bahia. Era ahi que os
arabes, desamparando a frota, se haviam
acampado. Comprimindo o alento, approximei-me
insensivelmente de uma tenda mais
vasta, alevantada juncto do penhasco a que
eu chegara sem ser percebido. Por uma fenda
que deixavam as telas mal unidas do pavilhão
descortinei o que se passava no interior
á luz das tochas que tinham nas mãos
dous ethiopes, cujos rostos negros contrastavam
com a brancura das suas roupas. Assentado
no chão, com os braços cruzados,
um arabe mancebo parecia escutar attentamente
um guerreiro godo que, em pé no meio
de outros dous, tinha as costas voltadas para
[65]
mim. Com espanto e ao mesmo tempo com
alegria, percebi que se exprimia em romano
rustico, o qual, d'ahi a pouco, vi que o moço
arabe falava como se fosse a propria linguagem.
Comecei então a escutar attentamente.
«Tarik—dizia o godo—ámanhan ao romper
d'alva é necessario que todos estes penhascos
empinados sobre nossas cabeças se
coroem de teus soldados e que não tardes
em fortificar essa estreita passagem que une
o promontorio do Calpe com o resto do continente.
É aqui, nestas serras inaccessiveis,
que deves esperar o resto dos libertadores
da Hespanha: é d'aqui que deves saír com
os teus irmãos do deserto para quebrar o
sceptro do tyranno Ruderico. Se a sorte das
armas nos for contraria, esperaremos neste
logar novos soccorros d'Africa. Septum nos
fica fronteiro, e Septum entreguei-t'o eu...»
Tarik não o deixou continuar. Como o leão,
pulando subitamente dos juncaes da Mauritania,
o moço arabe pôs-se em pé, com o
gesto colerico, e exclamou:
«Wali dos christãos! quem te fez crer que
Tarik podia ser vencido? Vi em sonhos o propheta
de Deus que me disse:—a Hespanha
curvar-se-ha ao koran:—e Mohammed não
[66]
mente! Ainda sem ti, eu me teria arrojado
sobre o imperio godo, e a minha lança o faria
cahir a meus pés moribundo, quando Sebta
me tivesse fechado as portas; quando todos
vós os godos estivesseis unidos contra mim.
Deus é grande, e Mohammed o seu propheta!»
As palavras violentas do arabe revelaram-me
quem era o guerreiro godo. Juliano capitaneiou,
como nós, uma tiuphadia na guerra
cantabrica e foi valente soldado. Sabía que
elle fora elevado á dignidade de conde de Septum
e que ahi se cubrira de gloria, repellindo
os inimigos do imperio, que já tinham
tentado conquistar aquella provincia. Como
e porque atraiçoou a terra natal? Odios civís
o levaram a tanta infamia, segundo entendi
das suas palavras. Parricida e fratricida
a um tempo, busca vingar-se, talvez de bem
poucos de seus irmãos, esmagando-os debaixo
das ruinas da patria. A memoria deste
malaventurado será reproba e maldicta das
gerações remotas!
Juliano parecia querer responder ao mancebo,
quando um soldado entrou com um
rolo de pergaminho na mão e, entregando-o
a Tarik, proferiu algumas palavras em arabe.
Tarik olhou então para Juliano com um
[67]
sorriso e, estendendo-lhe a dextra, disse-lhe
em voz baixa:
«
Wali de Sebta! perdoa-me este impeto,
como me tens perdoado tantos outros. Bem
sei que não podes comprehender o que é a
fé viva de um mosselemano na protecção de
Deus: mas eu sería réu do inferno, se duvidasse
um instante das promessas do Propheta.
O judeu Zabulon acaba de chegar com
essa carta do que vós chamaes bispo de Hispalis.
Lê-a e dize-me que novas ha de Ruderico.»
Juliano desdeu o nó da carta e leu. Batia-me
o coração de furor; mas procurei tranquillisar-me.
Importava-me assás conhecer o
que ella continha para dever prestar toda a
attenção possivel ás palavras do conde Juliano.
«Ruderico—disse este, acabando de correr
com os olhos o rolo de pergaminho—entregue
aos banquetes e festas, não acredita
que o dia da vingança amanhecesse para
a Hespanha: todavia, logo que a noticia indubitavel
da nossa vinda retumbar sob os
tectos dourados dos paços de Toletum, elle
convocará os seus numerosos soldados, as
suas tiuphadias veteranas, e arremessar-se-ha
contra nós; porque Ruderico é dissoluto
e perverso, mas nunca foi covarde. O prudente
[68]
Oppas pensa, como eu, que importa fortificar-nos
no Calpe. Aconselha-o a sciencia
da guerra, e, se, como crente, confias no teu
propheta para contar com a victoria, como
capitão deves seguir os conselhos da prudencia
humana. Tambem eu espero no Deus das
batalhas—proseguiu o conde em tom de
mofa, batendo no punho da espada;—tambem
eu tenho a minha providencia; mas a
aguia, quando se arroja sobre a prêa, tem
já construido o seu ninho no penhasco da
montanha, e as penedias do Calpe devem ser
o ninho das aguias que pairam sobre o throno
de Ruderico.»
Tarik ficou por alguns momentos calado
e pensativo:
«Seja como te aprouver:—disse por fim.—Busca
no exercito os melhores artifices
arabes e com elles e com os teus godos alevanta
esses vallos em que põe sua confiança
o teu coração descrido.»
«Houve um tempo em que não o foi:—replicou
Juliano com o accento da colera misturada
de indignação e tristeza:—mas Witiza
dorme debaixo d'uma lousa o somno da
eternidade, e o seu assassino chama-se o rei
dos godos. Elle folga e ri assentado no throno
que lhe deu a traição e o perjurio. Tarik,
[69]
o teu propheta inspira-te em sonhos; mas a
vingança é mais segura inspiração, porque
é o sonho perenne do homem desperto, quando
vê, assim, falhar a justiça do céu, se é que
nelle ha justiça.»
Proferindo estas palavras blasphemas, Juliano
saíu da tenda. Tarik bateu as palmas,
e um guerreiro ethiope, cujos olhos lhe reluziam
sanguineos na pretidão do rosto, entrou
com os braços cruzados e ficou immovel
e curvado diante de Tarik. Pareceu-me
que este lhe ordenava o que quer que fosse;
mas falava na sua linguagem barbara, e
não o pude entender.
Sabía assás qual era a situação e quaes
os accidentes do solo de todos os desvios do
Calpe para perceber que a minha demora
naquelles sitios podia tornar-me impossivel a
saída. A defensa do promontorio consistia
unicamente em cortar com vallos e cavas o
isthmo que o liga ao continente. Juliano começaria,
talvez, a alevantar as tranqueiras nessa
mesma noite; era, portanto, necessario partir.
Quando atravessei a serra pelos trilhos
mais curtos e escusos, conheci que o meu
receio fora bem fundado. Parando no topo
de uma penedia, donde se divisava ao redor
quasi toda a montanha, vi centenares de fachos
[70]
que vacillavam, correndo tortuosamente
pelas ladeiras, sumindo-se, tornando a apparecer,
retrocedendo. O todo daquella illuminação
terrivel estendia-se em volta da montanha,
formando uma extensa meia lua, cujas
pontas cresciam para o isthmo, ao passo
que se approximavam uma da outra, estreitando
o cume da serrania. Era visivel que
alguem practico nas apertadas gargantas, nas
sendas intrincadas do promontorio, guiava os
barbaros. Convinha fugir, não porque m'importasse
o morrer, mas porque, talvez, a Providencia
me guiara á tenda de Tarik para
que as Hespanhas fossem salvas, se é que
ella não escreveu irrevogavelmente a sua condemnação
no livro dos eternos designios.
Theodemiro, vê que a traição, semelhante
ao veneno recentemente bebido, que gyra nas
veias e ainda não apparece no aspecto, está
por toda a parte e, até, penetra no sanctuario.
É necessario esforço e vigilancia, já que as
dissenções civís quizeram que
os golpes do
frankisk godo hajam de se vibrar sobre a
fronte de godos que combatem ao lado do estrangeiro
infiel; já que a perfidia póde abrir
as portas das nossas cidades aos africanos,
sem que estes tenham de passar por cima
dos cadaveres de seus irmãos, para se assenhoreiarem
[71]
dellas. Cumpre que avises Ruderico.
Em Hispalis está Oppas, e Oppas tem
comsigo numerosos clientes, que, porventura,
entregarão aos invasores a mais formosa
e opulenta entre as povoações da Betica. Não
tardará que os arabes desçam do Calpe e
se derramem pelas provincias da Hespanha.
Ha dous dias, em que vagueio, quasi só, nas
immediações de Carteia, não se passa uma
hora, sem que os navios d'Africa venham vomitar
na bahia novos esquadrões de soldados.
Semelhante aos éstos do mar, é rapido
o seu ir e voltar. Dentro d'oito dias, bem
custoso sería resistir a Tarik com todo o poder
do imperio, quanto mais divididos os godos
em dous bandos, um dos quaes pelejará
ao lado dos inimigos.
Dir-to-hei, Duque de Corduba: tambem
eu não amo Ruderico; porque a memoria
de Witiza nunca morrerá no coração do seu
antigo gardingo. Sei por quaes meios Ruderico
subiu ao throno, que não obteria pela
eleição dos godos. Mas não é a sua coroa que
os filhos das Hespanhas tem hoje que defender;
é a liberdade da patria; é a nossa crença;
é o cemiterio em que jazem os ossos dos
nossos paes; é o templo e a cruz, o lar domestico,
os filhos e as mulheres, os campos
[72]
que nos sustentam e as arvores que nós plantámos.
Para mim, de todos estes incentivos,
apenas restam dous; o amor da terra natal
e a crença do evangelho. No dia do combate,
Eurico despirá a stringe innocente do sacerdocio
e vestirá as armas para defender estes
objectos queridos dos seus derradeiros
affectos. Que, tambem, esses que ainda se enlaçam
ás illusões e esperanças, como a hera
ás ruinas, se ergam para pelejarem batalhas
tremendas, porque o serão, por certo, as que
nos aguardam; e oxalá que os meus tristes
sonhos sejam desmentidos pelo esforço dos
guerreiros godos; oxalá que não esteja para
bater a derradeira hora do dominio da cruz
nesta terra do occidente, regada pelo sangue
de tantos martyres!
De Mellaria, aonde me acolhi com grande
numero dos moradores de Carteia e dos
seus arredores, continuarei as minhas correrias
nocturnas para as bandas do Calpe, com
os homens mais ousados que quizerem acompanhar-me,
até que os arabes desçam da sua
guarida, e seja inutil o vigiá-los; até que chegue
o dia em que os desgraçados, como eu,
achem na morte honrada das pelejas o repouso
das amarguras da vida, se é que além
do morrer ha o repouso do espirito.
[73]
DO DUQUE DE CORDUBA AO PRESBYTERO.
Ao Gardingo Eurico, saude!
Vives ainda Eurico! Perto de Corduba,
onde existia o seu antigo irmão d'armas, o
heroe da guerra cantabrica nunca teve um
impulso de affecto que o levasse a revelar o
mysterio do seu retiro, em que enviasse uma
palavra de consolação para a saudade fraterna.
Accusas de egoismo e fereza os filhos da
Hespanha, e cahiste na mesma culpa: foste
egoista e cruel. Não podias crer por certo
que eu me houvesse esquecido de ti: larga
experiencia te ensinou que as minhas affeições
são duradouras e profundas. Mas aquelle
que te amou tanto; aquelle que poria a vida
para salvar a tua; que nunca teve contentamento
ou magua que fosse para ti segredo,
tractaste-o com o mesmo desprezo, com que,
no teu nobre orgulho de desgraçado, tractaste
o resto do mundo; e do limiar do templo
disseste-lhe, talvez, o mesmo adeus de
odio e despeito que disseste ao resto do genero
humano.
É nos dias em que se abre para a patria
uma longa carreira de desventuras, que tu
[74]
surges, gardingo, como a lembrança querida
dos formosos dias da nossa mocidade; é na
vespera de uma lucta em que se vai resolver
se ha-de ser livre ou serva a terra dos
godos; em que mil cogitações tristemente solemnes
me assaltam o espirito e me obrigam
a não me afastar de Corduba, onde incessantemente
trabalho por ajunctar os valentes
companheiros de nossas glorias de outr'ora;
é quando a voz do dever me tem como captivo,
que d'um angulo da Betica me dizes—eu
vivo!—Embora! Já que não me é dado
buscar-te, serás tu que virás lançar-te nos
braços do teu amigo.
Sim, gardingo!—Hoje que o imperio é
abalado nos seus fundamentos; que os pagãos
d'Africa ameaçam derribar a cruz erguida
no cimo das nossas cathedraes; hoje,
tu despirás a stringe sacerdotal e cingirás
de novo a deposta e esquecida espada. Em
Corduba, onde se ajunctam já as tiuphadias
da Betica, Eurico achará bom numero dos
seus antigos guerreiros, e os mais ousados
mancebos, que ora encetam a vida dos combates
em defesa da patria e da fé, acceitarão
com jubilo para seu capitão o homem
que deixou um nome que não morrerá emquanto
durar a memoria do desbarato dos
[75]
vasconios e francos. Na ebriedade da gloria
que te espera, porventura, achará o teu pobre
coração, despedaçado pelas paixões que
ahi passaram, o allivio e conforto que vejo
teres buscado debalde nos braços de uma
piedade austera, de uma vida d'humildade e
abnegação. Esta gloria será tanto maior,
quanto é certo que nunca o imperio godo se
viu tão perto da sua ultima ruina e que nunca
foram postos a tão dura prova o esforço
e a lealdade dos seus filhos.
As novas que me dás da traição do bispo
d'Hispalis são assás graves; mas são necessarias
a circumspecção e a prudencia. Os teus
ouvidos podem ter-te enganado. Se essa trama
horrivel existisse, estender-se-hia por toda
a Hespanha. Sabes que Oppas é tio dos moços
Sisebuto e Ebbas, cujas pretensões á coroa
são conhecidas, pretensões que os beneficios
de Ruderico ainda, por certo, lhes
não fizeram esquecer. Diz-se que o rei dos
godos lhes confiará o mando de uma das alas
do exercito com que se encaminha á Betica.
Este procedimento generoso obstaria a que
rebentasse a conjuração. Não se tracta agora
de satisfazer odios de parcialidades civís:
tracta-se de salvar o imperio. Fora mais que
infamia; não tem nome, immolar a Hespanha
[76]
no altar de ambiciosa vingança. Não!
Embora estejamos corruptos: o exemplo do
conde de Septum não será entre nós seguido.
Vem, Eurico, para que reverdeçam os
louros da tua gloria. Ouves a voz da patria?
É ella que te brada:—Vem combater por
salvar-me, tu, o mais valente dos meus filhos!
DO PRESBYTERO AO DUQUE DE CORDUBA.
Eurico a Theodemiro, saude!
Não comprehendeste, duque de Corduba,
quão fundo é o abysmo cavado neste coração
pela desventura. Não me queixo de ti;
porque nem a ti, nem a ninguem é dado
comprehendê-lo. Medes o meu espirito pelos
affectos humanos; mas é porque não sabes
como elle saíu depurado do crisol de padecer
infernal.
Gloria! Que m'importa a mim a gloria?
Que posso fazer dessa riqueza, inutil como
as outras riquezas?
Examina bem a consciencia e dize-me qual
é para os corações puros e nobres o motivo
immenso, irresistivel das ambições de poder,
de opulencia, de renome? É um só—a mulher:
é esse o termo final de todos os nossos
[77]
sonhos, de todas as nossas esperanças,
de todos os nossos desejos. Para o que encontrou
na terra aquella que deve amar para
sempre, aquella que é a realidade do typo
ideal que desde o berço trouxe estampado
na alma, a mira das mais exaltadas paixões
é a aureola celestial que cinge a fronte da
virgem, idolo das suas adorações. Para o que
anda, por assim dizer, perdido nas solidões
do mundo, porque ainda não descubriu a estrella
polar da sua existencia, o astro que ha-de
illuminar-lhe a noite do coração, como o
sol com os seus primeiros raios illumina as
trevas de um templo, para esse a mulher é
uma idéa vaga e confusa, mas formosa e
querida. Não a conhece, não sabe onde esteja
a imagem visivel da filha da sua imaginação,
e, todavia, é para lhe pôr aos pés
gloria, poderio, riqueza, que elle cubiça tudo
isso. Tirae do mundo a mulher, e a ambição
desapparecerá de todas as almas generosas.
Realidade ou desejo incerto, o amor é o elemento
primitivo da actividade interior; é a
causa, o fim e o resumo de todos os affectos
humanos.
Theodemiro, eu amei como ninguem, talvez,
ainda amara. Este amor foi desprezado e
ludibriado e, depois, comprimido pelo desprezo
[78]
e pelo ludibrio no fundo do coração do teu
pobre amigo. Sabes o que faz um amor immenso
assim recalcado?—Devora e consome
o futuro e entenebrece para sempre o horisonte
da vida. Nada ha, depois disso, que possa
restaurar o que elle tragou: nada que possa
rasgar as trevas que elle estendeu. No mesmo
sepulchro não ha porvir d'esperança, nem,
porventura, luz de consolação; porque ao passamento
do corpo precedeu a morte do espirito.
Não, eu não quero a gloria inutil e inintelligivel
hoje para mim. Não, eu não quero
o mando e o poderio, porque já não sei para
o que elles prestam. Como o febricitante em
dia ardente do estio, que aspira a brisa da
tarde, a qual não póde sará-lo, mas que lhe
refrigera por momentos o ardor do sangue,
assim eu ainda me deixo affagar pela idéa
de me atirar ao maior fervor das batalhas
pelejadas em nome da patria: esse delirio
dos perigos, essa loucura que o cheiro de
sangue produz é um respiradouro por onde
resfolegará a indignação e a colera enthesourada
por annos neste coração. Tiuphado, seria
constrangido a vigiar as acções dos outros,
a usar do valor tranquillo que affronta
immovel a morte; mas que é tal valor
[79]
para aquelle a quem a vida serve só de martyrio?
Uma hypocrisia mais; mais um meio
de enganar o mundo. E que tenho eu com
o mundo para curar d'enganá-lo?
Homem de paz—dir-me-has tu—pela
profissão do sacerdocio; tendo buscado o
repouso á sombra eterna da cruz, como é
que desejas só o que nos combates ha mais
brutal, ignobil e obscuro, o furor da matança,
e recusas o que nelles ha mais nobre e
puro, a intelligencia com que um unico individuo
move milhares delles e lhes multiplica
a força com a rapidez das idéas, com
a sublimidade das concepções, com a robustez
de uma vontade immutavel? Homem de
paz, cingindo a espada do guerreiro, que
outro mister deverá ser o teu?
Busquei, é verdade, o repouso e a paz
no sanctuario de Deus!—Dias e dias, passei-os
orando com a fronte unida ás lageas
do pavimento sagrado, esperando que da morada
dos mortos surgisse para mim descanço
e esquecimento; mas o sepulchro foi esteril.
Noites e noites, vagueei-as pelas solidões:
assentei-me ao luar sobre os penhascos
dos promontorios, com os olhos cravados
no céu ou errantes pela vastidão das aguas,
e onde todos acham lagrymas de consolo e
[80]
d'esperança eu não achei uma só, porque as
minhas morriam apenas brotavam. O Senhor
não me escutou as preces: não me acceitou
a resignação. Este espirito, que tentava erguer-se
nas asas da philosophia do Christo
para as alturas, despenhava-se de novo para
o pelago medonho das recordações amargas.
Ainda os homens abençoavam o Presbytero,
e já a consciencia lhe bradava, a todos os
momentos:—condemnação para a tua alma!
Quando o céu é um deserto para a esperança,
onde a acharei na terra? Que póde hoje
embriagar-me, senão uma festa de sangue?
Já me teria assentado a esse phrenetico
banquete nas guerras civís, se ainda não
vivesse em mim o sentimento moral, ultimo
que se desvanece naquelle que por largos annos
viveu vida pura de crimes. Mas, sem crime,
se póde assentar a elle um desgraçado
como eu, ao chamar por nós todos, no meio
de um grande perigo, a terra de que somos
filhos.
Theodemiro, breve virá, talvez, o dia em
que vejas que o braço do gardingo não enfraqueceu
debaixo das roupas do Presbytero;
em que elle te prove que a mortiça côr de
uma negra armadura póde ser tão bella ao
sol das batalhas como as couraças e os elmos
[81]
resplandecentes de nobres guerreiros: que o
frankisk grosseiro de um obscuro soldado
póde contribuir para a victoria como a pericia
militar de capitão famoso. Oxalá que,
entretanto, seja verdade o que dizes!—Oxalá
que eu me enganasse, e que a traição não
tenha tornado inuteis a intelligencia e o braço
do homem para salvar as Hespanhas!
IX
JUNCTO AO CHRYSSUS
Congregados todos os godos, oppôs-se
á entrada dos arabes e valorosamente
foi ao encontro da invasão.
Rodrigo de Toledo: Das Cousas
d'Hesp. L. 3.º
Poucos dias haviam passado depois que o
duque de Corduba recebera a ultima carta
do infeliz Eurico. Á frente das suas tiuphadias,
elle se encaminhara para Hispalis, seguindo
as margens do Betis. Ao chegar
á
antiga Romula, o bispo Oppas recebeu-o com
demonstrações de alegria taes, que as suspeitas
[83]
de Theodemiro, suscitadas, máu grado
seu, pelas revelações do Presbytero, quasi
se desvaneceram. Na linguagem do sacerdote
parecia reverberar-se uma indignação profunda
contra o conde de Septum e contra os
demais godos que tentavam, unidos com os
barbaros, assolar a terra natal. O metropolita,
segundo os costumes daquella epocha,
tinha deposto o baculo de pastor para cingir
a espada do guerreiro, e aos paços episcopaes
de Hispalis viam-se chegar todos os
dias os parentes de Oppas e, por isso, de
Witiza, cujo irmão este era. Os nobres que
tinham seguido o bando dos mancebos Sisebuto
e Ebbas e que, pela maior parte, viviam
longe da corte ajunctavam os seus servos
e clientes á hoste do bispo guerreiro,
que promettia acompanhar o rei godo com
um esquadrão mais lustroso que os de seus
sobrinhos, a quem Ruderico dera de feito o
mando supremo de uma das alas do exercito
que congregara em Toletum.
Em Hispalis, como por todos os angulos
da Hespanha, os martellos dos fundidores e
armeiros retumbavam nas bigornas com ruido
incessante; açacalavam-se as armas, puliam-se
e provavam-se as armaduras, e os corceis
rapidos e robustos da Betica e da Lusitania,
[84]
impacientes nas tendas alevantadas em roda
dos muros da cidade, mordiam os freios brilhantes
e pareciam adivinhar que estava proximo
um dia de combate. Os servos e os libertos,
em competencia com os homens livres
e nobres, corriam a rodeiar os pendões
da independencia da patria, e o sangue generoso
dos godos como que se despertava
mais ardente e cheio de vigor ao grito da
guerra sancta, depois de uma somnolencia
de seculos, em que a sua antiga ousadia só
dera signaes de vida nas luctas sem gloria
das dissenções intestinas.
E toda esta energia, todo este recordar-se
da rica herança d'esforço legado pelos conquistadores
septemtrionaes a seus netos da
Iberia, dir-se-hia que eram suscitados pela
Providencia para salvar a monarchia gothica,
porque de tudo isso ella carecia para resistir
aos invasores. Desde que o exercito
destes, semelhante a serpe monstruosa, tinha
cingido estreitamente a montanha do Calpe,
não se passara um unico dia em que não se
fortalecesse e engrossasse. As encostas do
Abyla e os despenhadeiros do Atlas, os valles
da Mauritania e os areiaes de Sahara e
de Barca de contínuo arrojam para a Europa,
através do Estreito, os seus filhos tostados
[85]
ao sol fervente d'Africa. Sem pericia militar,
estes barbaros são todavia temerosos
nas pelejas, porque os capitães experimentados
da Arabia os dirigem e movem como
lhes apraz, e porque, sectarios de uma religião
nova, credulos martyres do inferno,
buscam os embusteiros e torpes deleites que,
além da morte, lhes prometteu
o propheta
de Yatrib, arremessando-se com um valor que
se creria de desesperados diante do ferro dos
seus contrarios e contentando-se de acabar,
com tanto que sobre seus cadaveres se hasteie
victorioso o estandarte do Islam.
A esta gente bruta e indomavel, cujo esforço
vem das crenças da outra vida, se ajunctam
os esquadrões dos cavalleiros sarracenos
que vagueiam pelas solidões da Arabia,
pelas planicies do Egypto e pelos valles da
Syria, e que, montados nas suas eguas ligeiras,
podem rir-se do pesado frankisk dos godos,
acommettendo e fugindo para acommetterem
de novo, rapidos como o pensamento, volteiando
ao redor dos seus inimigos, falsando-lhes
as armas pelas juncturas das peças,
cerceiando-lhes os membros desguarnecidos,
quasi sem serem vistos, e, apesar da sua incrivel
destreza, pelejando, quando cumpre,
frente a frente, descarregando tremendos
[86]
golpes de espada, topando em cheio com a
lança no riste, como os guerreiros da Europa,
e assás robustos para, muitas vezes, os
fazerem voar da sella nestes recontros violentos:
homens, emfim, que, sem orgulho,
se podem crer os primeiros do mundo n'um
campo de batalha, pelo valor e pela sciencia
da guerra. É esta cavallaria irresistivel que
constitue o nervo da hoste dos mosselemanos
e em que funda todas as suas esperanças o
impetuoso Tarik.
Pouco depois da chegada de Theodemiro
a Hispalis, um dia ao romper do sol, viu-se
ao longe para a banda das serranias ao norte
do Betis resplandecerem as cumiadas das montanhas,
como se um grande incendio devorasse
as brenhas e os carvalhaes antigos que povoavam
as quebradas das serras. Era a hoste
do rei dos godos, que, saíndo de Oretum, se
encaminhava por Ilipa e Italica, seguindo a
margem direita do rio, para a antiga capital
da Betica. D'aqui, engrossando com as
tiuphadias de Theodemiro e com os que seguiam
o pendão de Oppas, o exercito de Ruderico
devia marchar para acommetter os
arabes e entregar á sorte das batalhas os
futuros destinos da Hespanha.
Era já tempo. A torrente dos inimigos
[87]
descera, emfim, do
Calpe ou Geb-al-Tarik,
cujo nome de muitos seculos o capitão arabe
tinha apagado, para escrever o proprio nome
no collar servil de muralhas que lhe lançara.
O estandarte do propheta de Mekka
já fluctuava nos campos da Betica, e a sua
passagem era assignalada com ruinas, sangue
e incendios. Por onde quer que os mosselemanos
tinham atravessado ficavam assentados
o silencio do sepulchro e a assolação do
anniquilamento. Tarik era o anjo exterminador
mandado por Deus ás Hespanhas, e a
sua espada o raio despedido do céu para fulminar
o imperio dos godos.
Saíndo do seu ninho d'aguia, construido
no promontorio do Estreito, os invasores internavam-se
no coração da provincia. Depois
de haverem transposto as montanhas que se
alteiam desde as ribas septemtrionaes do
Belon até Lastigi, onde as serranias se enlaçam
com as alturas de Nescania, tinham-se
assenhoreado sem resistencia da cidade
episcopal d'Asido, e, descendo d'alli para os
valles que serpeiam de Gades a Segoncia,
haviam assentado as tendas do Islam nas
margens do Chryssus. Tarik esperava lá o
recontro dos godos. Desde que partira do
Calpe, todos os dias, quasi todas as horas,
[88]
se viam chegar á hoste dos mosselemanos
christãos vindos do lado d'Hispalis, conduzidos
pelos caudilhos dos almogaures ou corredores
africanos. Apenas estes homens desconhecidos
eram levados ante o capitão arabe,
elle enviava um dos seus cavalleiros ao
logar onde tremolava o pendão de Juliano,
e o conde de Septum não tardava a vir
ajunctar-se com Tarik. Por vezes, á sombra
de carvalho frondoso, no meio dos bosques
cerrados das montanhas ou debaixo do pavilhão
alevantado á hora da sésta em campina
abrazada do sol, demoravam-se os dous,
por largo espaço, a sós com esses homens,
em cujo aspecto era facil ler estampada a
traição e a vileza. Depois, os desconhecidos
partiam, sem que ninguem ousasse atalhar-lhes
os passos; e, quando Juliano voltava para
a pequena ala dos soldados da provincia transfretana,
via-se-lhe o rosto, não radiante do
contentamento que ressumbra de um coração
puro quando folga, mas como sulcado por um
raio da alegria feroz do criminoso que vê
chegar o momento do crime ha muito meditado
e previsto.
Havia dous dias que nenhum incognito
atravessava o Chryssus para falar a sós com
Juliano e Tarik. Estes passavam horas inteiras
[89]
vagueiando nas alturas vizinhas do acampamento
pelo lado do meio-dia e do oriente.
D'alli olhavam para a montanha em cujo
cimo campeiava a antiga povoação d'Asta, e,
depois de a examinarem por largo espaço,
voltavam ao campo ou corriam as atalaias,
que se multiplicavam continuamente. Depois,
tudo recahia no silencio e na escuridão; porque
as almenaras ou fogueiras nocturnas, que
eram d'uso entre os arabes, haviam inteiramente
cessado desde a primeira noite em
que estes assentaram as tendas perto da beira
do rio.
Ia em meio a terceira noite após aquella
em que
os crentes do Islam tinham parado
nas faldas septemtrionaes das cordilheiras de
Asido. Eram profundas as trevas que se dilatavam
pela face da terra, mas os raios scintillantes
das estrellas rareiavam o manto negro
da atmosphera. Esta luz incerta reverberava
tremula e fugitiva nas pontas das lanças
dos atalaias, que, apinhados na coroa dos
outeirinhos ou embrenhados entre as sebes
dos vallados, observavam os picos agudos
que, ao longe para o norte, negrejavam como
recortados nas profundezas do céu. O Chryssus
murmurava lá em baixo, e a esteira da
corrente faiscava, tambem, com o reverberar
[90]
da luz dos astros, emquanto o vento, passando
pelas ramas de algumas arvores solitarias,
respondia ao seu murmurar com o gemer da
folhagem movediça.
Subitamente, no meio deste silencio,
alguns
esculcas e vigias lançados além do rio,
na margem direita, creram perceber um ruído
longinquo, que menos exercitados ouvidos não
saberiam distinguir de remoto e quasi imperceptivel
despenhar de torrente. Então elles
se debruçaram no chão e, unindo a face á
terra, escutaram por alguns momentos. Depois,
erguendo-se a um tempo, ouviu-se entre
elles uma voz sumida, que dizia—
Os romanos!—e
a turba repetiu:—Os romanos!
E, unindo-se n'uma fileira, encurvaram os
arcos e ficaram immoveis.
Pouco a pouco aquelle ruído, mal sentido
a principio, cresceu e tornou-se mais distincto.
Brevemente, facil foi de perceber o tropeiar
de milhares de cavallos e o bater confuso
dos pés de milhares d'homens. Os esculcas
arabes conservavam-se unidos e em
silencio.
De repente o grito de:—Allah!—retumbou
d'além do Chryssus: seguiu-se um estridor
de poucas frechas, e n'um instante os
atalaias do campo viram alvejar fitas d'escuma,
[91]
que se estendiam através do rio para
a margem esquerda. Eram os esculcas que
o cruzavam a nado, tendo empregado na
dianteira dos godos os seus primeiros tiros.
Uma nuvem de settas respondeu ao sibillar
das dos esculcas arabes: algumas das fitas
de escuma ondeiaram, derivaram pela
corrente e desvaneceram-se no dorso escuro
e scintillante das aguas. O Chryssus recolhia
os primeiros despojos de um terrivel combate.
Na principal atalaia dos mosselemanos soou
então uma trombeta; centenares dellas responderam
por todos os angulos do campo a
este convocar para a morte. Os esquadrões
uniam-se com a rapidez do relampago e,
abandonando o recincto das tendas, arrojavam-se
para a margem do rio.
Os godos, porém, tinham a vantagem de
caminharem ordenados e, por isso, haviam
topado com a corrente, antes que os seus contrarios
começassem a atravessar a planicie
fronteira. As frechas cahiam sobre os arabes
que se approximavam, como saraiva espessa:
largas e solidas jangadas, trazidas em carros
puxados pelas mulas possantes da Lusitania,
baqueiavam sobre a agua e, desdobrando-se
com engenhosa arte, cresciam até entestar
com a margem opposta. Então, os melhores
[92]
cavalleiros godos, curvando-se para diante,
com o frankisk erguido, corriam para as
pontes, vergadas debaixo do peso dos cavallos
e dos homens cubertos de armaduras, e
vinham bater em cheio nos corredores arabes,
que, no meio das trevas, não podiam
esquivar-se aos golpes do ferro inimigo. Já,
nas bocas d'algumas dessas estradas movediças,
os cadaveres amontoados começavam
a embargar os passos dos vivos; mas por outras,
onde os arabes ainda mal ordenados e
menos numerosos não tinham podido resistir
ao impeto dos godos, golfavam torrentes
de guerreiros, que, marchando unidos para
uma e outra parte, accommettiam de lado
os arabes, os quaes, feridos pela frente e
pelas costas, vacillavam e retrocediam. Debalde
a voz retumbante de Tarik sobrelevava
por cima dos gritos de furor e de agonia de
mosselemanos e christãos. O numero dez vezes
maior dos godos tornava impossivel a resistencia,
e a passagem do exercito de Ruderico
para a margem esquerda do Chryssus
só Deus a poderia impedir.
Era quasi manhan quando o capitão arabe
se desenganou da inutilidade de se oppôr
por mais tempo á passagem dos inimigos. As
tiuphadias godas achavam-se pela maior parte
[93]
na campina onde se deviam resolver os
destinos da Hespanha, e, bem que a este
tempo todo o exercito do Islam estivesse já
em ordem de pelejar, a noite dava grande
vantagem aos godos, cuja cavallaria, cuberta
de armas defensivas mais solidas que as
dos arabes, resistia facilmente aos cavalleiros
do deserto, para quem a maior ligeireza e
o mais déstro modo de acommetter eram
baldados no meio das trevas. A um signal
das trombetas os esquadrões mosselemanos
começaram a recuar e, alongando-se pela
frente do acampamento, esperaram o romper
do dia emquanto o exercito godo acabava
de transpôr o rio e vibrava milhares
de frechas perdidas para o lado onde os capilhares
alvissimos dos arabes branquejavam
á luz duvidosa do céu recamado d'estrellas.
Quando o sol, rompendo detrás dos outeiros
de Segoncia, veiu com o seu clarão
avermelhado inundar as veigas do Chryssus
o espectaculo que ellas offereciam era variado
e sublime. De um lado as tendas dos
arabes, derramadas pelas raizes dos montes
e pelos cimos dos outeiros, podiam comparar-se
ao acampamento das tribus do deserto,
que, emprazadas á voz do propheta, se
houvessem ajunctado n'um ponto unico das
[94]
solidões onde vagueiam. Diante desta cidade
immensa e movediça, os esquadrões dos
mosselemanos, divididos por familias e raças,
estavam firmes e cerrados em frente de seus
pendões, que os alféreces, montados em ginetes
possantes, sustinham erguidos na rectaguarda
de cada tribu. Os raios matutinos faziam
alvejar os turbantes e scintillavam nos
ferros das lanças que os cavalleiros tinham
em punho, e os leves escudos orbiculares,
que os compridos saios de malha pareciam
tornar inuteis, embraçados já para o combate,
brilhavam com as suas cores vivas e variadas
á claridade serena do romper do dia.
Os esquadrões arabes eram a flor do exercito
de Tarik; mas a catadura selvagem dos
africanos seus alliados, neophytos do Islamismo,
produzia, porventura, mais temor do
que o aspecto delles. Torvos e ferozes eram
o gesto e os meneios destes homens sem disciplina,
cujas paixões se lhes pintavam nos
rostos tostados e rugosos, nos olhos banhados
de fel e orlados de sangue, e de cuja
bruteza e miseria davam testemunho os mangoaes
que lhes serviam d'armas (armas terriveis,
com que abolavam os elmos mais reforçados),
e a hediondez dos seus albornozes
pardos, immundos e despedaçados. Tudo, emfim,
[95]
nelles contrastava com as armas brilhantes,
com os ricos trajos e com os vultos magestosos
dos cavalleiros do oriente, que, conservando-se
em silencio e immoveis, pareciam
desprezar as tribus bereberes de Zeneta,
de Mazmuda, de Zanhaga, de Ketama
e de Hoara, que formavam as alas e que,
brandindo as rudes armas, com gritos medonhos
se appellidavam para a batalha.
Tal era o espectaculo que offerecia o exercito
dos mosselemanos. Defronte delle, a
hoste goda apresentava os massiços profundos
dos seus soldados, cobrindo, como grossa
muralha de metal reluzente, a margem esquerda
do rio. Rodeiado dos mais illustres
guerreiros, Ruderico estava no centro das
tiuphadias formadas pelos espadaúdos soldados
da Lusitania septemtrional e da Gallecia,
em cujas feições se divisava ainda que
descendiam dos indomaveis suevos. Unidos
com elles sob os pendões reaes, estavam os
guerreiros veteranos da Narbonense, habituados
a cruzar diariamente as espadas com
os orgulhosos frankos, que estanceiavam pelas
Gallias, além das fronteiras do imperio. A
ala direita, dividida em dous esquadrões capitaneiados
pelos dous filhos de Witiza, Sisebuto
e Ebbas, continha a flor dos cavalleiros
[96]
da provincia Carthaginense. Com estes
estava o corpo que o metropolitano de Hispalis
ajunctara, composto em grande parte
de nobres que haviam deposto a espada desde
que Ruderico subira ao throno e que a cingiam
de novo nesta guerra de independencia.
A ala esquerda, mais pequena que as
outras duas, não parecia por isso menos de
temer para os arabes. O duque de Corduba,
Theodemiro, era o capitão dessa ala, em que
estavam todos os veteranos que o tinham ajudado
a repellir as primeiras tentativas dos mohametanos
e que já conheciam por experiencia
o modo de pelejar delles. Estes velhos
soldados deviam levar ao combate os mancebos
que, á voz de Theodemiro, tinham corrido
ás armas de todos os lados da Betica e
em cujos corações o affamado guerreiro soubera
despertar o sentimento da gloria e do
amor da patria. Com elle militavam, emfim,
as reliquias dos soldados tingitanos que não
tinham querido associar-se á traição do conde
de Septum.
Como os arabes, os godos tinham no meio
de si uma nuvem de peões armados, não
menos barbaros e ferozes que os filhos da
Mauritania. Os montanheses do Herminio na
Lusitania, aborigenes, talvez, daquelle paiz,
[97]
os quaes, na epocha das invasões germanicas,
bem como já na da conquista romana, a
custo haviam submettido o collo ao jugo de
extranhos, e os vasconios, habitadores selvagens
das cordilheiras dos Pyrenéus, constituiam
com os servos um grosso de gente a
que hoje chamariamos a infantaria do exercito.
As suas armas offensivas eram a cateia
teutonica, especie de dardo, a funda, a clava
ferrada e o arco e a setta. Requeimados pelo
sol ardente do estio ou pelo vento gelado dos
invernos rigorosos das serranias, incapazes
de conhecerem a vantagem da ordem e da
disciplina, estes homens rudes combatiam
meios nús e desprezavam todas as precauções
da guerra. O seu grito de acommetter era
um rugido de tigre. Vencidos, nunca se lhes
ouvia pedir compaixão; porque, vencedores,
não havia a esperar delles misericordia. Taes
eram os soldados que a Hespanha oppunha
á mourisma que circumdava os arabes.
Por algum tempo os dous exercitos conservaram-se
em distancia um do outro, como
dous antigos gladiadores, observando-se mutuamente
antes de começarem uma lucta que
para algum delles tinha de ser, forçosamente,
a ultima. A consciencia da terribilidade
do drama que ía representar-se penetrou,
[98]
por fim, até nos corações dos barbaros de
um e d'outro campo: as vozerias que sussurravam
ao longe foram pouco a pouco esmorecendo,
até cahirem n'um silencio tremendo,
só cortado pelo respirar comprimido de
tantos homens ou pelo relinchar dos cavallos
que, impacientes, escarvavam a terra.
X
TRAIÇÃO
A transgressão dos juramentos tem
crescido despeiadamente, e o costume
de trahir os nossos principes cada
vez é mais frequente.
Concilio Toledano XVI c. 10.
O sol ía já em alto quando
o grito
d'Allah-hu-Acbar!
soou no centro dos esquadrões do
Islam. Era a voz sonora e retumbante de Tarik.
Repetido por milhares de bocas, este
grito restrugiu e ecchoou, como o estourar
de uma trovoada distante, pelos pendores das
[100]
serras e murmurou e perdeu-se pelos desfiladeiros
e valles. A cavallaria arabe, enristando
as lanças, arremessou-se pela planicie
e desappareceu n'um turbilhão de pó.
«Christo, e avante!—bradaram os godos,
e os esquadrões de Ruderico precipitaram-se
ao encontro dos mosselemanos. São
como dous bulcões ennovelados que, em vez
de correrem pela atmosphera nas azas da
procella, rolam na terra, que parece tremer
e vergar debaixo do peso daquella tempestade
d'homens. O ruído abafado e bem distincto
do mover dos dous exercitos vai-se
gradualmente confundindo n'um som unico
ao passo que o chão intermedio se embebe
debaixo dos pés dos cavallos. Essa distancia
entre as duas muralhas de ferro estreita-se,
estreita-se! É apenas uma faixa tortuosa lançada
entre as duas nuvens de pó. Desappareceu!
Como o estourar do rolo de mar encapellado,
tombando de subito sobre os alcantis
d'extensas ribas, as lanças cruzadas
ferem quasi a um tempo nos escudos, nos
arnezes, nos capacetes. Um longo gemido,
assonancia horrenda de mil gemidos, sobreleva
ao som cavo que tiram as armaduras
batendo na terra. Baralham-se as extensas
fileiras: cruzam-nas espantados os ginetes
[101]
sem donos, nitrindo de terror e de colera,
com as crinas erriçadas e respirando um
alento fumegante. Não se distingue naquelle
oceano agitado mais que o afuzilar tremulo
das espadas, o relampagueiar rapido dos frankisks,
o scintillar passageiro dos elmos de
bronze; não se ouve, senão o tinir do ferro
no ferro e um concerto diabolico de blasfemias,
de pragas, d'injurias em romano e em
arabe, intelligiveis para aquelles a quem são
dirigidas, não pelos sons articulados, mas
pelos gestos de odio e desesperação dos que
as proferem. De vez em quando, um brado
retumba por cima do estrupido: são os capitães
que buscam ordenar as batalhas. Debalde!
As fileiras tem rareiado: o combate
converteu-se n'um duello immenso ou, antes,
em milhares de duellos. Cada cavalleiro arabe
travou-se com um cavalleiro godo, e os
dous contendores esquecem-se de tudo quanto
os rodeia: são dous inimigos, cujo odio nasceu
e encaneceu n'um momento, e n'um momento
esse rancor é intenso quanto o fora,
se por largos dias se accumulara sem poder
resfolgar. Firmes, os guerreiros christãos vibram
a pesada acha d'armas que tomaram
dos frankos ou jogam a espada curta e larga
dos antigos romanos; porque as lanças
[102]
voaram em rachas, tanto das mãos dos godos,
como das dos arabes. Estes, curvados
sobre os collos dos cavallos e cubertos com
os leves escudos, volteiam em roda dos adversarios
e, quasi ao mesmo tempo, os acommettem
por um e por outro lado, tão rapido
é o seu perpassar. Nesta lucta da força
e da destreza, ora o duro neto dos wisigodos,
deslumbrado pelo incessante dos golpes,
esvaído pelas muitas feridas, suffocado pelo
peso da armadura, vacilla e cai, como o pinheiro
gigante; ora o ligeiro agareno vê
coriscar em alto o frankisk e logo o sente,
se ainda sente, embargar-lhe o ultimo grito
na garganta, até onde rompeu, partindo-lhe
o craneo e sulcando-lhe o rosto. Assim, os
centros dos dous exercitos semelham o tigre
e o leão no circo, abraçados, despedaçando-se,
estorcendo-se ennovelados, sem que seja
possivel prever o desfecho da lucta, mas tão
sómente que, ao adejar a victoria sobre um
dos campos, terá descido sobre o outro o silencio
e o repouso do anniquilamento.
Os soldados que seguiam a bandeira de
Theodemiro tinham-se abalado para o combate
apenas viram partir os esquadrões de
Ruderico. A ala direita dos mohametanos era
capitaneiada pelo amir da cavallaria africana,
[103]
Mugueiz, a quem a sua origem christan
fizera dar o nome de Al-Rumi. O amir era
o mais valente e experimentado dos capitães
de Tarik, e por isso este fiara do renegado
o mando daquella ala, na qual tambem esvoaçava
o pendão de Juliano, que, se não
abandonara, como Al-Rumi, a crença do
Calvario, tinha, comtudo, amaldicçoado tambem
a sancta religião da patria. Estes dous
guerreiros, ferozes ambos, um por indole e
habito, outro por vingança e ambição, amavam-se
mutuamente, porque os fizera irmãos
uma palavra escripta em suas consciencias,
a maxima affronta humana, o nome de renegados.
O recontro dessa ala foi semelhante em
tudo ao do grosso das suas hostes, salvo que
ahi o frankisk encontrava no ar o frankisk,
a injuria de godos respondia á injuria proferida
por bocas de godos, e as imprecações
do odio trocavam-se com maior violencia
ainda. Theodemiro combatia á frente das
suas tiuphadias onde mais acceso ía ser o
travar da batalha, sem, todavia, esquecer o
officio de capitão. Era isto; era o exemplo
que tornava invenciveis os seus soldados.
Guiando os cavalleiros tingitanos, Juliano
tambem rompera primeiro adiante dos arabes.
[104]
Os dous antigos companheiros de combates
haviam topado em cheio, e as lanças
voaram-lhes das mãos em rachas. Os cavalleiros
passaram um pelo outro como relampagos,
para logo tornarem a voltar, arrancando
das espadas.
«Circumcidado!—bradou Theodemiro, ao
perpassar por Juliano na rapidez da carreira.
«Escravo!—replicou o conde de Septum,
rangendo os dentes.
A injuria vibrada pelo duque de Corduba
penetrara mui fundo. Semelhante a Judas,
o conde da Tingitania trahira a patria pela
cubiça e, defendendo o estandarte do propheta
de Medina, fazia triumphar o koran.
Duas vezes a sua alma era a d'um circumciso.
Os dous cavalleiros godos acommetteram-se
com toda a furia de rancor entranhavel:
as espadas, encontrando-se no ar, faiscaram
como o ferro abrazado na incude; mas a de
Theodemiro fora vibrada por braço mais robusto
e, postoque o golpe descesse amortecido,
ainda entrou profundamente no escudo
que o seu adversario levava erguido sobre a
cabeça. Entretanto Juliano, revolvendo ligeiro
a espada, rompeu a couraça do duque
de Corduba e feriu-o levemente no lado.
«Vencedor dos vasconios,—gritou, rindo
[105]
diabolicamente, o conde de Septum—olha
por ti! Nas margens do Chryssus não ha taças
de vinho, como aquellas com que te embriagavas
nos paços do teu senhor. Aqui o
que corre é sangue!»
Theodemiro tinha já desencravado a espada
do escudo de Juliano, em que ficara embebida.
Rapidamente ella descera de novo
guiada pela raiva de que abafava o guerreiro.
O golpe quebrou o escudo já falsado e
bateu no elmo brilhante do conde, com tal
furia, que este perdeu a luz dos olhos e,
curvando-se para diante, se abraçou ao collo
do cavallo, quasi sem sentidos. Outra vez
que o duque de Corduba vibrasse o ferro,
Juliano estava perdido: o caminho da morte
lá lhe ficara indicado no elmo.
«Que olhas para o chão, traidor?—disse
Theodemiro, com voz tremula de colera e
d'escarneo e segundando o golpe.—É a terra
da patria, que vendeste aos infieis como tu!»
O ferro, porém, não pôde chegar á cimeira
do capacete do conde. Outro ferro, seguro
por mão robusta, se metteu de permeio.
Era a espada de Mugueiz, o qual, passando,
vira o perigo imminente do seu amigo e correra
para o salvar.
Então Theodemiro voltou-se contra o renegado,
[106]
e um violento combate se travou
entre ambos. Mugueiz não era menos déstro
que o principe da Betica. Mais membrudo e
robusto que elle e, além disso, ainda não ferido,
a vantagem era toda sua; mas o esforço
de Theodemiro suppria essa inferioridade.
Entretanto Juliano recobrara o alento: a
vergonha, o despeito, a sede de vingança
estorciam-lhe o coração. O nobre ginete em
que cavalgava, sentindo seu senhor semi-morto,
tinha corrido espantado até onde a
multidão de christãos e arabes, travados em
peleja sanguinolenta, lh'o consentia. O conde,
cravando-lhe os acicates, com a espada
erguida na mão, arremessou-o para o logar
onde o duque de Corduba pelejava com Mugueiz.
Era um feito covarde; mas que importava
a Juliano a deshonra? Assignalado
com o ferrete indelevel de traidor, havia-se
habituado a viver para um sentimento unico—a
vingança. E a vingança era quem o impellia.
Neste momento, por uma das pontes já
desertas lançadas na noite antecedente sobre
o Chryssus, soava um correr de cavallo á
rédea solta. Alguns soldados que andavam
mais perto da margem volveram para lá os
olhos. Um cavalleiro d'extranho aspecto era
[107]
o que assim corria. Vinha todo cuberto de
negro: negros o elmo, a couraça, e o saio;
o proprio ginete murzello. Lança não a trazia.
Pendia-lhe da direita da sella uma grossa
maça ferrada de muitas púas, especie de
clava conhecida pelo nome de borda, e da
esquerda a arma predilecta dos godos, a bipenne
dos frankos, o destruidor frankisk.
Subiu rapido a encosta, d'onde Ruderico
attendia aos successos da batalha. Parou um
momento e, olhando para um e outro lado,
endireitou a carreira para o logar em que
fluctuavam os pendões das tiuphadias da Betica.
Como um rochedo pendurado sobre as
ribanceiras do mar, que, estalando, rola pelos
despenhadeiros e, abrindo um abysmo, se
atufa nas aguas, assim o cavalleiro desconhecido,
rompendo por entre os godos, precipitou-se
para onde mais cerrado em redor
de Theodemiro e Mugueiz fervia o pelejar.
Juliano tinha-se aproximado no emtanto
do esforçado duque de Corduba, que, ferido
e obrigado a combater com o déstro e feroz
renegado, a custo se poderia defender dos
golpes do conde, golpes que o odio e a colera
dirigiam. Alguns cavalleiros da Betica
voaram a soccorrer Theodemiro; mas os arabes
com que andavam travados tinham-nos
[108]
seguido de perto e, rodeiando Mugueiz, haviam
tornado inutil o soccorro dos cavalleiros
christãos. O apertado revolver das armas
formava uma selva de ferros em volta dos
dous capitães inimigos, através da qual debalde
o conde de Septum buscara muitas vezes
abrir caminho para ferir Theodemiro, até
que, finalmente, galgando por cima de um
arabe derribado, podera vibrar um golpe. O
elmo do nobre godo restrugira, e o guerreiro
vacillara. A ultima pagina da sua vida parecia
estar escripta no livro dos destinos. Os
dous adversarios do duque de Corduba íam
tingir de negro as que ainda lhe restavam
em branco.
Mas o cavalleiro desconhecido havia passado
através da hoste goda e chegara á dianteira
dos arabes. Com a maça jogada ás mãos
ambas abolava e rompia as armas mais bem
temperadas, e as púas, entrando pelas carnes
dos que se lhe punham diante, iam esmigalhar-lhes
os ossos. Por onde elle atravessava
nem as fileiras se uniam, nem os
godos achavam adversarios. Como a charrúa
tirada com violencia em chão batido de planicie
deixa após si grossas glebas revolvidas,
assim aquella arma irresistivel deixava,
ao passar, uma larga cauda de cadaveres entretecida
[109]
de moribundos debatendo-se em
terra. Os godos, espantados, perguntavam
uns aos outros quem sería aquelle temeroso
guerreiro; mas entre elles ninguem havia
que podesse dizê-lo. Se combatesse pelos
mosselemanos, crêlo-hiam o demonio da assolação;
mas, pelejando pela cruz, dir-se-hia
que era o archanjo das batalhas mandado
por Deus para salvar Theodemiro e, com
elle, os esquadrões da Betica.
No instante em que o cavalleiro negro
chegou ao logar onde já o duque de Corduba
só procurava amparar-se contra Mugueiz e
Juliano, este, cego de furor, descia com segundo
golpe: a espada, porém, voou-lhe das
mãos em pedaços, batendo na maça do cavalleiro
negro, que, deixando depois cahir
a pesada borda
ao longo da ephippia, ergueu
o frankisk e, descarregando-o sobre o hombro
do renegado, lhe fez uma ferida profunda.
A dor arrancou um brado a Mugueiz,
a cujo som o seu ginete amestrado o
arrebatou para o meio dos arabes, e Juliano,
vendo-se desarmado, fugiu após elle. Então
o desconhecido disse a Theodemiro algumas
palavras sumidas e, sem esperar resposta,
internou-se outra vez no meio dos esquadrões
agarenos.
[110]
Desde este momento a ala direita dos mosselemanos
começou de affrouxar, porque Mugueiz,
mal ferido, se retrahira para o acampamento.
Alguns cheiks illustres jaziam moribundos
ou mortos ás mãos do cavalleiro
negro, que parecia escolher as suas victimas
entre os mais nobres guerreiros do Islam.
Animados por elle, os godos, cobrando novos
brios, procuravam imitá-lo e arremessavam-se
destemidos através da hoste inimiga,
que debalde procurava resistir á torrente.
Os signaes da victoria dos godos eram já
dolorosamente certos para os mosselemanos.
Ruderico viu isto e exultou. O sol inclinava-se
para o occaso, e o centro do exercito
arabe, onde se achava Tarik, estava firme;
mas os clamores do triumpho, que já
soavam na ala esquerda dos christãos, começavam
a espalhar a incerteza entre os soldados
do propheta. Foi então que o rei dos
godos ordenou á sua ala direita descesse contra
os bereberes e, dispersando-os, acommettesse
os esquadrões de Tarik, que pareciam
haver lançado raizes no solo ensanguentado
do campo da batalha.
Um quingentario partiu á rédea solta
para levar a ordem fatal aos filhos de Witiza.
Á frente dos seus soldados os dous irmãos
[111]
falavam a sós com Oppas e contemplavam
o combate. Apenas ouviram o que
se lhes ordenava, Sisebuto e Ebbas, voltando-se
para os esquadrões que lhes obedeciam,
clamaram:—vingança!—Este brado
foi repetido por Oppas e pelos nobres que o
seguiam. Então, no meio daquella espessa
selva de lanças repercutiu um grito que respondia
ao dos capitães:—Gloria ao rei Sisebuto!
Morte ao traidor Ruderico!
E os filhos de Witiza e o hypocrita bispo
d'Hispalis, com as lanças aprumadas e as espadas
na bainha, lançaram-se pelo valle abaixo,
e a mór parte dos esquadrões seguiram-nos.
Apenas Pelagio, duque de Cantabria,
ficou immovel á frente dos selvagens vasconios
e d'algumas tiuphadias da Gallecia e da
Narbonense que, alheias á traição daquelles
mal-aventurados, recusaram segui-los.
Ruderico viu ennovelarem-se nos ares os
rolos de pó que se alevantavam sob os pés
dos ginetes: Valentes mancebos—exclamou—hoje
a Hespanha vai ser salva por vós! Vêde—accrescentava,
sorrindo e falando com
os guerreiros que o cercavam, muitos dos
quaes haviam condemnado a sua arriscada
confiança na generosidade dos filhos de Witiza:—vêde
como elles voam contra os africanos!
[112]
Quando um grande risco ameaça a
patria não ha odios entre os godos; todos
elles são irmãos, porque todos elles são filhos
desta nobre terra d'Hespanha.
E o quingentario que voltava gritou de
longe:—Somos trahidos!
Ruderico empallideceu. A certeza da victoria
tinha-se desvanecido.
XI
DIES IRAE
Por quantas desventuras a patria dos
Godos tem sido abalada: quão repetidos
a pungem os golpes dos fugitivos e a nefanda
suberba dos transfugas, quasi ninguem
ignora.
Codigo wisigothico II-1-7.
A passagem de tão avultado numero de
godos para os inimigos e o crepusculo que
descia obrigaram Ruderico a fazer cessar o
combate, emquanto a noite pousava tranquilla
sobre aquella campina povoada de afflicções
e dores. A aurora rompeu meiga e serena,
como nos dias em que vinha trazer as
[114]
alvoradas alegres ás malhadas dos pastores
que, colmadas, amarelejavam outr'ora pelas
margens relvosas do Chryssus, em vez das
tendas de guerra que alli alvejavam agora
com os primeiros resplendores da madrugada.
O homem debatia-se ahi nas vascas da
morte, e o sol passava envolto na sua gloria,
indifferente ás angustias d'aquelles que, em
seu ridiculo orgulho, se chamavam monarchas
e conquistadores do mundo; passava,
sem lh'importar se os vermes vestidos de
ferro chamados guerreiros se despedaçavam
uns aos outros, com o delirio insensato das
viboras no momento dos seus amorosos ardores.
Pelas trevas, um ruído sumido, mas incessante,
de passadas d'homens e de tropeiar de
cavallos soara horas inteiras em um e em outro
campo. Era que em ambos elles surgira
uma idéa unica. O rei godo havia resolvido
formar um corpo só das reliquias da sua hoste
e com elle acommetter a principal batalha
dos inimigos, para a destruir rapidamente
antes que as alas podessem soccorrê-la. O
mesmo pensamento tivera Tarik. Semelhante
á trovoada do estio, que se amontoa durante
a noite em dous polos encontrados e ao alvorecer
semeia de coriscos as solidões do céu
[115]
e povoa d'estampidos discordes os echos da
terra, assim cada um dos campos se agglomerava
em uma pinha gigante; convertia-se
n'um homem só, para em duello de morte
resolver com o seu contendor se os filhos
das Hespanhas deviam acceitar a lei do koran
ou continuar a abrigar-se á sombra da
divina cruz.
Tarik lançara na frente da hoste mosselemana
os transfugas do inimigo. Sisebuto,
Ebbas, o bispo d'Hispalis e o conde de Septum
com os seus numerosos guerreiros constituiam
a vanguarda. Seguia-se a cavallaria arabe: os
bereberes cingiam este massiço de homens e
ginetes, em parte cubertos de ferro, e os indisciplinados
cavalleiros da Mauritania, dispersos
como almogaures, deviam vagar soltos
para fazer entradas nas alas inimigas e
impedir assim que ellas podessem a tempo soccorrer
o centro do exercito, que o general arabe
esperava desbaratar no primeiro impeto.
Ruderico, pela sua parte, tinha posto na
vanguarda as tiuphadias victoriosas de Theodemiro,
os cavalleiros da Cantabria guiados
pelo moço Pelagio, filho de Favilla, que succedera
a seu pae no governo daquella provincia,
e, finalmente, os guerreiros escolhidos
da Lusitania e da Gallecia, que elle proprio
[116]
capitaneiava. Como Tarik, o rei godo collocara
de um e de outro lado da hoste apinhada
os frecheiros e fundibularios selvagens
do Herminio e os montanhezes vasconios,
antiga raça de celtas, irmãos em linhagem,
em valor, em crueza, em armas e em costumes.
Na retaguarda estavam os soldados da
provincia Carthaginense que não tinham seguido
o exemplo dos transfugas por andarem
derramados em outros logares ou, talvez, porque,
não corrompidos, guardavam ainda no
coração vestigios d'amor da patria.
Ao amanhecer, cada um dos capitães inimigos
viu com assombro que a mesma traça
de guerra de que pretendera valer-se para
obter a victoria occorrera á mente do seu
adversario. Era, porém, tarde para alterar a
ordem da batalha. Ao mesmo tempo as trombetas
godas e os anafis arabes deram o signal
do combate, e o grito de—Christo e ávante!—confundiu-se
em estampido medonho
com o brado de—
Allah-hu-Acbar—o brado
de guerra dos pelejadores sarracenos.
O chão pareceu affundir-se com o encontro
daquellas duas mós enormes de homens
armados, e o echo dos botes das lanças nos
escudos convexos e nas armas sonoras dos
cavalleiros repercutiu nas encostas fronteiras
[117]
e desvaneceu-se ao longe, murmurando entre
as quebradas. Desde o primeiro embate, não
mais fora possivel distinguir os exercitos, travados
como dous luctadores furiosos. Eram
um vulto só, indelineavel, monstruoso, immenso,
cujo topo ondeiava, semelhante ao de
cannaveal movido pelo vento, cujos contornos
indecisos se agitavam, torciam, alargavam,
diminuiam, oscillavam, como tapete de
nenuphars sobre marnel revolto pelo despenhar
das torrentes. Nuvens de settas sibillavam
nos ares: as espadas sarracenas cruzavam-se
com as espadas godas: a cateia teutonica
ía, zumbindo, abrir fundos regos nas
fileiras arabes, e os membros ossudos dos
peões lusitanos e cantabros estouravam
debaixo
das pancadas violentas dos mangoaes
da peonagem mourisca. Muitos ginetes vagueiavam
sem donos; muitos cavalleiros combatiam
a pé. Desgraçado do que, ferido, cahia
em terra; porque para elle não havia misericordia:
o punhal acabava o que o frankisk
ou a cimitarra começara. Dir-se-hia que
os regatos de sangue, serpeiando por entre
as duas hostes enredadas e salpicando as frontes
e corpos, eram as veias descarnadas e
rotas daquelle grande vulto, coleiando na derradeira
agonia.
[118]
O cavalleiro negro, ao cessar a batalha do
dia antecedente, desapparecera do campo,
sem que ninguem soubesse dizer como ou
onde se escondera. Só Theodemiro parecia
não o ignorar; porque, ao falarem do desconhecido
e das suas quasi incriveis façanhas,
os tiuphados e quingentarios que em volta
delle esperavam o romper da manhan e o
recomeçar da peleja, o duque de Corduba
buscara sempre mudar de conversação ou
respondera, carregando-se-lhe o semblante
de tristeza:—«É, porventura, algum desgraçado
que procura o repouso da morte,
e para o homem que resolveu morrer, que
feito de valor será impossivel? Se elle não
quer deixar na terra nem o echo vão de um
nome glorioso, respeitae-lhe os desejos, porque
profundo deve ser o abysmo da sua desventura!»
Ao som, porém, das trombetas que annunciavam
o renovar do combate, o cavalleiro
negro não tardara a apparecer onde
mais accesa andava a briga. Via-se, comtudo,
que era principalmente nas fileiras dos
arabes, onde as púas agudas e cortadoras da
sua temerosa borda ou maça d'armas faziam
maiores estragos. Mas, quando algum dos
godos transfugas ousava esperar-lhe os golpes
[119]
ou tentava ferí-lo, ouvia-se-lhe um rugido
como o de maldicção preso na garganta
por colera immensa, e o seu miseravel contrario
não tardava a golfar o sangue na terra
da patria que trahira e a entregar aos demonios
a alma tisnada pela infamia da perfidia.
Os arabes supersticiosos quasi criam ver nelle
Iblis, o rei infernal do Gehenna, armado da
espada percuciente, solto por Deus para os
punir das offensas commettidas contra o divino
koran. Diante delle recuavam os mais
esforçados mosselemanos, e só de longe os
frecheiros lhe disparavam alguns tiros, que
se lhe empennavam no escudo ou, roçando
por este, vinham bater-lhe na armadura, debaixo
da qual manava já o sangue de algumas
feridas, e os membros lassos começavam
a desmentir a impetuosidade do espirito.
Como na vespera, o sol inclinava-se das
alturas do céu para o occaso, e ainda a batalha
estava indecisa, se é que o terror que
incutia o cavalleiro negro no logar onde pelejava
não fazia pender um pouco a balança
do lado dos godos. De repente, um grito
agudo partiu do mais espesso revolver do
combate; este grito gigante, indizivel, d'intima
agonia, era o brado unisono de muitos
homens; era o annuncio doloroso de um successo
[120]
tremendo. O cavalleiro negro, que, impellido
pela ebriedade do sangue, e semelhante
a rochedo que se despenha pelo pendor
da montanha, ia derramando a morte
através dos esquadrões do Islam, volveu os
olhos para o logar onde soara o bramido retumbante
da multidão. Era no centro do
exercito godo. As tiuphadias vergavam em
semicirculos para a banda do Chryssus, como
o açude minado pela torrente, a ponto de
desprender-se das margens, oscilla e se curva,
bojando sobre a veia inferior das aguas.
A muralha de ferro que, posta entre o Islamismo
e a Europa, dizia á religião do propheta
d'Yatrib—não passarás d'aqui—vacilla,
como a quadrella da cidade fortificada
batida muitos dias por vaivem d'inimigos.
Por fim, aquelles vastos massiços d'homens
ligados pela cadeia fortissima da disciplina,
do pudor militar e do esforço, derivam rotos
ante os turbilhões dos arabes, ondeiam e derramam-se
na campina. Pelo boqueirão enorme
aberto no centro da hoste goda precipitam-se
as ondas dos cavalleiros mohametanos,
e, após elles, a turba dos bereberes, com
um bramido barbaro. Debalde as alas tentam
ajunctar-se, travar-se uma com outra, soldar
os membros despedaçados do leão iberico.
[121]
Passa por lá a impetuosa corrente dos netos
d'Agar, que envolve e arrasta os que pretendem
vadeia-la. Deus contara os dias do
imperio de Lewighild, e o sol do ultimo delles
era o que descia já para o occidente!
O cavalleiro negro vira a fuga das batalhas
godas, advertido pelo clamor que a precedera.
Voltando as rédeas do seu murzello,
esporeiou-o para aquella parte. Levava
lançado ás costas o escudo, onde os tiros
dos archeiros africanos ciciavam, como a saraiva
no inverno batendo nos troncos despidos
do roble. Pendia-lhe da esquerda do
arção a borda ensanguentada, da direita o
frankisk. O ginete tresfolegava na furia da
carreira, açoutando os ares com as crinas
ondeiantes e atirando-se ao meio da especie
de voragem aberta nas fileiras christans, a
qual como que tragava uns após outros os
esquadrões mosselemanos. Ao chegar á confluencia
daquellas encontradas torrentes de
homens armados, o guerreiro parou e, olhando
em roda por um momento, ouviu-se-lhe
um grande brado. Era a primeira vez que
a sua voz soava no meio da batalha, e a
unica palavra que lhe saíu da boca foi o
nome de Theodemiro. Esse brado devia chegar
longe, reboando como o trovão. Dir-se-hia
[122]
que o cavalleiro estava habituado á conversação
do bramido dos mares revoltos e do
rugir das ventanias pelas fragas das serras;
porque naquelle grito, conjuncto inexplicavel
de colera e de dor, havia uma semelhança,
uma harmonia com o gemido immenso
da natureza quando lucta comsigo mesma no
passar da tempestade.
Mas aos ouvidos de Theodemiro não podia
chegar a voz do desconhecido. Arrastado
pelos turbilhões de fugitivos, forcejando
por obrigá-los a voltar o rosto contra os arabes,
ora com palavras de amarga reprehensão,
ora com o exemplo, o duque de Corduba
combatia mui longe delle. Em vão o
cavalleiro negro lhe repetia o nome: era
inutil este chamar e, apenas, servia para
attrahir os golpes dos agarenos victoriosos.
As achas d'armas, as cimitarras, os dardos
faziam centelhar a armadura e o escudo do
desconhecido, que, tomado, ao que parecia,
d'um pensamento doloroso, alongava os olhos
por toda a parte em busca de Theodemiro.
Com um gemido de desalento, o cavalleiro
saíu, emfim, da especie de torpor que o tornava
immovel ante o espectaculo de tanta
desventura, e o seu despertar foi tremendo.
Erguendo em alto a maça d'armas e vibrando-a
[123]
furiosamente em volta de si, começou
a partir espadas e a abolar armaduras. Em
breve, ao redor delle, no meio dos mosselemanos
vencedores, o terror invadia os animos,
como na vespera, como nesse mesmo
dia, se espalhara por toda a parte onde haviam
reluzido as púas da sua ensanguentada
borda ou o ferro do seu cortador frankisk.
Apenas, á força de golpes, o cavalleiro negro
abriu no meio dos mosselemanos vencedores
uma larga clareira, esporeiando o ginete,
lançou-se para o lado em que os godos
desordenados se retrahiam ante as espadas
do Islam. No espaço intermedio entre
os fugitivos e os arabes fluctuava sem recuar
o pendão do duque de Corduba. Em volta
desse pendão tremolavam as signas das tiuphadias
da Betica, que, cercadas por todos
os lados, resistiam ainda ao embate dos sarracenos.
No meio, porém, dos que abandonavam
vilmente o campo de batalha nem
uma unica bandeira se hasteiava; mas, pelo
esplendido das armas, o guerreiro conheceu
aquelles que não ousavam resgatar com a vida
a deshonra da Hespanha. Eram os soldados
escolhidos de Ruderico; era a brilhante
cavallaria que elle proprio capitaneiava! A
indignação trasbordou da alma do guerreiro:
[124]
«Rei dos godos, rei dos godos!—exclamou
elle—és covarde! Embora vás esconder
a tua ignominia nos muros de Toletum. Ainda
neste campo de batalha restam homens
valentes: ainda Theodemiro combate, não por
teu throno deshonrado, mas pela terra de
nossos paes. Foge tu com os que não sabem
morrer pela patria; que nas margens do
Chryssus ficam os que hão-de perecer com
ella! Maldicto o godo e christão que foge para
ser servo!»
E o cavalleiro apertou de novo as esporas
ao possante murzello.
Não tardou, porém, que o furor se lhe
convertesse em tristeza, e que as lagrymas,
rebentando-lhe dos olhos, lhe apagassem a
maldicção que haviam murmurado os labios.
O seu valente cavallo galgava na carreira por
cima de cadaveres e de moribundos, de christãos
e de infiéis, e a terra, convertida em
bréjo de sangue, apenas soava debaixo dos
pés do ligeiro animal. Passando por meio dos
esquadrões sarracenos, podia-se dizer que o
desconhecido se assemelhava ao anjo do Senhor,
quando desce por entre os mundos onde
habitam os demonios, solitario e temido no
imperio dos filhos das trevas que o odeiam.
A fama das suas façanhas tinha-o cercado
[125]
d'uma auréola de terror supersticioso, e,
quando passava, os guerreiros do deserto
apontavam para elle e em voz sumida diziam
uns aos outros—«Ei-lo que vem! ei-lo, o
cavalleiro negro!»
Mas, porque parou elle, soffreiando subitamente
o ginete? Que ha ahi, nessa extensa
seara ceifada de homens de guerra, que possa
attrahir os olhos do mais incansavel dos segadores?
No sitio em que parou estava, poucas
horas antes, hasteiada a signa real: era
o centro da hoste goda; mas dos que ahi pelejavam,
uns lá vão ao longe precipitar-se no
abysmo da ignominia; outros, os mais felizes,
adormeceram do seu ultimo somno no regaço
da patria. O guerreiro fitou os olhos no chão:
a fouce da morte, passando por alli, cerceiara
a derradeira esperança do imperio de Theoderik.
O espectaculo que se lhe antolhava
era a explicação do terror que se apossara
de tantos homens valentes. Fugiam:
Ruderico,
porém, estava ahi! mas retalhado de
golpes; mas sem vida! Já não sería debaixo
de seus pés que o throno da Hespanha se
desfaria aos golpes do machado dos arabes.
Um sceptro sem dono em Toletum e
mais um cadaver juncto ás margens do Chryssus,
eis o que restava do ultimo rei dos godos!
[126]
Com a sua morte fenecera ao redor delle
a esperança, e com a esperança dera em terra
o esforço dos animos mais robustos. As
alas ignoravam este triste acontecimento e
por isso pelejavam ainda.
Mas pouco tardou a ser geral a róta; porque
pouco tardou a espalhar-se aquella nova
fatal. Um dia bastara para anniquilar o imperio
que durante quatro seculos fora o mais
poderoso e civilisado entre as nações germanicas
estabelecidas nas diversas provincias romanas.
A corrupção dos ultimos tempos concluira
a sua obra, e o edificio da monarchia
gothica, ainda rico de magestade exterior,
mostrara, emfim, desconjunctando-se e desabando,
o ferver dos vermes que interiormente
o roíam. A cruz, derribada com elle,
só devia tornar a hasteiar-se triumphante em
todos os angulos da Hespanha depois do combater
de oito seculos.
Uma parte do exercito godo ainda podera
salvar-se atravessando o rio; mas as pontes
lançadas na vespera tinham por fim estalado,
derivando pela corrente, debaixo do peso dos
fugitivos, e as aguas devoravam muitos que
o ferro havia poupado. Theodemiro, que não
perdera o animo no meio daquella desventura,
alcançara fazer passar á margem opposta as
[127]
reliquias dos soldados da Betica e os restos
de muitas tiuphadias de outras provincias.
Nos arraiaes, os arabes, senhores do campo,
saudavam a victoria com o som dos instrumentos
barbaros e com clamores de alegria
que íam sussurrar ao longe pelos valles e campos,
desertos dos seus moradores. Um homem
só combatia ainda daquelle lado á beira do
rio. Era o cavalleiro negro. Cercavam-no muitos
sarracenos, mas de longe, porque os que
ousavam approximar-se delle cahiam a seus
pés moribundos. Ás vezes, como que tentava
romper por entre os inimigos, mas era
tentar o impossivel. No volver dos olhos inquietos
para um e para outro lado, parecia
buscar descubrir alguma cousa naquelle vasto
campo, onde só descortinava os cadaveres
dos vencidos e os vultos ferozes dos vencedores.
Por fim, voltando o rosto para a margem
opposta, viu fluctuar sobre uma eminencia
o pendão de Theodemiro. Uma expressão
fugitiva de contentamento lhe assomou
então ao gesto. Despedindo das mãos
a borda ensanguentada, que sibilou por meio
dos arabes apinhados em volta, o guerreiro
arrojou-se á torrente. Á luz do sol que se
punha, viu-se-lhe umas poucas de vezes reluzir
o elmo, alongando-se pela superficie das
[128]
aguas e desapparecendo por largos espaços.
As trevas, que já desciam densas, e a impetuosidade
da corrente que o arrastava não
permittiram prever-se qual sería a sua sorte.
Eurico era a ultima e tenuissima esperança
que bruxuleiava nos horisontes do imperio
godo: como uma estrella cadente que se immerge
nos mares, aquelle esforço brilhante
se desvanecera na escuridão que tingia as
aguas do Chryssus!
XII
O MOSTEIRO
Se a todos se convertessem todos
os membros em linguas, ainda assim
não caberia nas forças humanas o
narrar as ruinas d'Hespanha e os seus
tão diversos e multiplicados males.
Isidoro de Béja: Chronicon.
O mosteiro da Virgem Dolorosa estava situado
n'uma encosta, no topo da extrema
ramificação oriental das que a dilatada cordilheira
dos Nervasios estende para o lado
dos Campos-gothicos. A pouca distancia do
valle onde se viam as ruinas de Augustobriga,
caminho de Legio, no meio de uma solidão
[130]
profunda aquella silenciosa morada de
virgens innocentes achava-se convertida em
praça de guerra. Edificio sumptuoso, construido
no tempo de Rekkáred, as suas grossas
muralhas de marmore pareciam, na verdade,
quadrellas de castello roqueiro; porque
na architectura dos godos a elegancia romana
era modificada pela solidez excessiva do
edificar germanico ou saxonio, que os rudes
wisigodos do tempo de Theoderik e de
Ataulph haviam introduzido no meio-dia da
Europa. Os restos dispersos das tiuphadias
da Gallecia tinham-se encerrado em todas
as povoações e logares fortificados ou por
qualquer modo defensaveis, e os habitantes
dos povoados, acolhendo-se ahi com elles,
deixavam desertas as suas moradas, incertos
do dia em que veriam reluzir ao longe as
lanças dos agarenos, que já devastavam o
norte da Lusitania e parecia encaminharem-se
para o lado de Tude. Os muros fortissimos
daquelle vasto edificio, as suas portas
tecidas de ferro e carvalho, as estreitas frestas,
que apenas lhe deixavam penetrar no
interior uma luz duvidosa, os tectos ameiados
e, finalmente, os fossos profundos que o circumdavam,
tudo o tornava acommodado para
larga defensão. Com algumas decanias de veteranos
[131]
que no meio do terror podera ajunctar,
o quingentario Atanagildo se havia acolhido
ahi, e com elle um grande numero dos
mais abastados habitantes d'aquelles contornos.
Protegido pela vizinhança das serras das
Asturias, ainda livres, Atanagildo cria que o
mosteiro fortificado sería sempre inexpugnavel
barreira contra a violencia e cubiça dos
arabes. Entretidos em submetter e pôr a sacco
as opulentas cidades do meio-dia, contentes
com as veigas feracissimas da Betica, da Lusitania
e da Carthaginense e com o sol quasi
africano que as aquecia, que viriam elles buscar
nas brenhas intractaveis e frias da Gallecia
e da Cantabria? Sería, apenas, algum
troço dos inquietos e selvagens bereberes, os
que se derramavam por estas partes; mas,
contra esses, eram de sobra os tiros de catapulta
arrojados das torres do mosteiro e as
cateias e frechas despedidas d'entre as ameias
que lhe cingiam a fronte, como a coroa de
um rei gigante, e que não podiam ser derribadas
pelos mangoaes brutescos, unicas armas
dos broncos e seminús montanheses do
Atlas.
No centro do immenso edificio erguia-se
o templo monastico; peça quadrangular, construida
de grossos cantos de marmore, arrancado
[132]
das pedreiras inexgotaveis que se estendem
desde os Nervasios até as cercanias
de Legio. No exterior do templo, do meio
d'um vasto pateo que o rodeiava, viam-se
negrejar na sua cincta de estreitas cellas as
vestiduras severas das monjas, cuja oração
contínua, quer em commum no sanctuario,
quer na solidão das suas breves moradas, só
era interrompida por somno curto, dormido
sobre a dura enxerga da penitencia. Esta
parte do mosteiro era a que ellas unicamente
occupavam havia alguns dias. Os seus claustros
pacificos e saudosos, onde nunca soara o
ruido tormentoso da vida, onde nunca as dolorosas
realidades do mundo haviam penetrado,
salvo nos sonhos passageiros e dourados
de algum coração mais ardente, restrugiam
com o bater das armas, com o amontoar
das provisões, com o carpir dos que
abandonavam seus lares, com a violenta e
brutal linguagem da soldadesca. No meio daquella
vasta mole de marmore, em que os
sons discordes reboavam, ecchoando soturnos
nas arcadas e corredores profundos, o templo,
aonde se acolhera a quietação monastica,
era como um oasis frondoso e abrigado
por seus palmares no meio do deserto que
o sopro infernal do simûm revolve, fazendo
[133]
redemoinhar nos ares aquelle oceano de areia
fervente.
Era ao anoitecer de um dia de novembro.
Por entre o nevoeiro cerrado que, alevantando-se
do valle vizinho, trepava pela encosta,
deixando apenas livres as negras agulhas dos
cerros, lá no viso da montanha, divisavam-se
a custo as ameias e muralhas á luz baça do
crepusculo, refrangido em céu pardo e humido.
A brisa morna de oeste gemia nos
troncos dos castanheiros nús, nas ramas esguias
dos pinheiros bravos, e as passadas monotonas
dos vigias ao longo dos adarves formavam
um concerto accorde com o aspecto
melancholico do céu e da terra.
A esta hora duvidosa entre a claridade e
as trevas, uma numerosa cavalgada atravessava
o ribeiro no fundo do valle e encaminhava-se
para o mosteiro da Virgem Dolorosa.
Dez cavalleiros, cujas barbas alvas lhes
cahiam sobre o peito, saíndo por baixo das
redes de ferro que lhes serviam de gorjal,
rodeiavam uma dama, cujo rosto occultava o
comprido véu que, pendente do retíolo, lhe
descia sobre o alvo amiculo, mas cujos meneios
airosos e talhe esbelto revelavam nella
o viço e as graças da idade juvenil. Seguiam-na
alguns pagens desarmados, cujos rostos
[134]
imberbes já o temor e o desalento que se
pintavam em todos os semblantes nesta epocha
desastrada haviam sulcado de rugas.
Vadiado o rio, a cavalgada encaminhou-se
por uma senda tortuosa que ía dar á entrada
do mosteiro, aonde, ao que parecia, desejavam
chegar antes que de todo se fechasse
a noite. Ao approximar-se aquella comitiva,
os vigias conheceram que eram godos—provavelmente
alguns desgraçados que vinham
buscar o abrigo dos seus muros fortificados—,
e as grossas portas não tardaram a abrir-se
para recolherem mais esses pobres fugitivos.
Apenas os recem-chegados, atravessando
o atrio do fundo portal, saíram á cerca interior,
o que parecia mais auctorisado entre
os velhos cavalleiros pediu para falar a sós
com Atanagildo. Levado o ancião á torre
onde o quingentario habitava, não tardou este
em descer á cerca, no meio da qual, ainda
a cavallo e sem erguer o véu, a dama desconhecida
esperava rodeiada dos seus. Com
todos os signaes de respeito, Atanagildo dirigiu-lhe
algumas palavras em voz submissa
e, tomando a redea do palafrem, guiou-o para
uma porta contígua ao frontispicio da igreja.
A um signal seu a porta abriu-se, e um vulto
negro de monja appareceu no limiar della.
[135]
O quingentario, tomando pela mão a desconhecida
e apresentando-a á monja, disse-lhe:
«Veneravel Chrimhilde, acolhei entre as
puras virgens que vos obedecem uma das
mais nobres donzellas d'Hespanha: é por uma
noite, apenas, que ella vos pede abrigo: ámanhan
ao romper d'alva partirá para Legio.»
«Ámanhan ou depois, que importa?—replicou
a monja, cujo semblante austero descubria
não tanto a decadencia dos annos,
como os vestigios da penitencia:—emquanto
Chrimhilde reger o mosteiro da Virgem Dolorosa,
nunca a hospitalidade será refusada
nelle ao que a implorar. E quando a virtude
de nobre donzella tiver um fiador tal como
vós, esta achará sempre em mim o carinho
de mãe e nas escolhidas do Senhor, que
me alevantaram do meu nada ao tremendo
ministerio de sua abbadessa, encontrará o
amor e o gasalhado d'irmans para com irman
querida.»
Dizendo isto, a boa abbadessa tomou pela
mão a desconhecida e, internando-se com
ella pelas arcadas que diziam para o interior
do edificio, allumiadas escaçamente pelas lampadas
turvas que d'espaço a espaço pendiam
das abobadas achatadas, desappareceu aos
olhos de Atanagildo.
[136]
A noite vai no seu fim: a campa do mosteiro
dá o signal do terceiro nocturno. Subitamente,
o sanctuario illumina-se, e os vidros
multicores jorram nas trevas externas a claridade
dos candelabros e tochas, como, de
dia, deixam transudar a luz do sol no ambito
interior da igreja; ésto perpetuo de resplendores,
que ora descem do céu para a terra,
ora tentam, subindo da terra para as alturas,
desfazer o manto das trevas. N'uma
extensa fileira, a cuja frente vem a veneravel
Chrimhilde, as monjas entram no coro
e, tomando para um e outro lado, param
voltadas para o altar. Juncto da abbadessa
uma donzella de trajos brancos sobresái entre
as monjas vestidas de negro, não tanto
pela alvura das roupas, como pela formosura:
e todavia, são formosas muitas das virgens
que a rodeiam, pela maior parte ainda
no viço da vida. É a nobre dama recem-chegada,
á qual nem o cansaço de trabalhosa
jornada, nem o habito dos commodos
do mundo poderam impedir acompanhasse
na oração aquellas que o tracto de poucas
horas já lhe fazia amar como irmans. Chrimhilde
prostra-se com a face no chão: as monjas
e a dama vestida de branco seguem o
seu exemplo. Através desses labios innocentes
[137]
que beijam o pavimento do templo murmuram
durante alguns instantes as orações
submissas. Depois, a abbadessa ergue-se, e
pouco a pouco aquelles semblantes, que cobre
uma pallidez d'ineffavel repouso e brandura,
vão-se alevantando da terra, com os
olhos voltados para o céu, semelhantes aos
de anjos de marmore ajoelhados em roda de
um tumulo, que surgissem pouco a pouco
animados por vida repentina e, cheios de
saudade da morada celeste, enviassem aos
pés do Senhor o seu primeiro suspiro. Então
a psalmista começa a entoar um dos hymnos
sacros do Presbytero de Carteia que havia
pouco se tinham introduzido no ritual gothico,
e as demais monjas respondem em córos
alternos. O hymno dizia assim:
«As azas da tua providencia, oh Senhor,
despregam-se por cima da terra, e o justo
desgraçado acolhe-se debaixo dellas:»
«Porque ahi moram os sanctos contentamentos;
esquecem as dores da vida; vive-se
á luz da esperança.»
«Confiado em ti, o fraco affronta as tyrannias
do forte; o humilde ri das suberbas
do poderoso.»
«Quem revelou aos pequeninos e oppressos
esta divina guarida? Quem nos ensinou
[138]
a esperar? Quem a ser felizes pela fé no meio
das agonias?»
«Foi Christo, o teu filho querido. A tua
justiça condemnava á dor o genero-humano,
ainda no berço: elle nos conquistou para a
felicidade no meio dos tormentos da cruz.»
«Nós tomaremos, tambem, esta em nossos
hombros: ella é a guia da bemaventurança.»
«O seu peso é suave; porque sob ella os
espinhos da existencia que ensanguentam os
membros do peregrino sem repouso, chamado
o homem, convertem-se em prado macio de
relva e boninas.»
«Que reine para sempre a cruz!»
«Erguei-a sobre todos os pincaros das serranias,
gravae-a em todas as arvores dos bosques,
hasteae-a sobre as rochas maritimas,
estampae-a nas muralhas das cidades, na
fronte dos edificios, apertae-a ao
coração.»
«E depois, que o genero-humano se prostre
e adore nella a redempção que nos trouxe
o Ungido de Deus.»
«A cruz triumphará eterna!»
Neste momento aquellas vozes harmoniosas
cessaram, como se de subito nos labios
de todas as monjas se houvesse posto o sello
da morte. A porta do templo, aberta com
[139]
violento impulso, rangera nos gonzos, e um
velho ostiario viera cahir de bruços sobre as
lageas do pavimento, soltando o grito doloroso
que por tantos milhares de bocas diariamente
se repetia na Hespanha:—Os arabes!
As vozes confusas dos vigias, misturadas
com o tinir do ferro, responderam, como um
uivar de feras, ás palavras do ostiario: as faces
pallidas das virgens empallideceram ainda
mais.
A alvorada começava a repintar na terra
a claridade do sol, escondido ainda no oriente.
Os godos com as armas nas mãos coroavam
as ameias. Do alto de uma das torres
Atanagildo observava a campanha, e a fronte
entenebrecia-se-lhe com um véu de tristeza.
Naquella noite muitos nobres senhores de
terras tinham chegado ao mosteiro, vindos
da banda de Legio. Um numeroso exercito
d'arabes apparecera subitamente na vespera
juncto aos muros da cidade, que logo fora
acommettida pelos pagãos. Era o que sabiam.
Fugitivos desde o apparecimento dos inimigos,
ao anoitecer haviam enxergado para
aquella parte um clarão grande e duradouro.
Se eram as fogueiras dos arraiaes arabes,
se o incendio de Legio, não o podiam resolver;
só, sim, que sería impossivel resistir
[140]
por largo tempo cidade tão mal defendida a
tamanha copia d'infiéis, que não tardariam
a derramar-se para o lado do mosteiro, proseguindo
nas suas devastadoras conquistas
pela Gallecia e pela Tarraconense.
Era esta negra prophecia dos fugitivos que
se tinha verificado ao romper da manhan.
Atanagildo, do alto da torre principal, vira
ao longe um vulto negro que descia dos outeiros,
onde já allumiava tudo a luz matutina.
Esse vulto assemelhava-se a serpe monstruosa
que, rolando-se do monte para a planicie
em collos tortuosos, se lhe reflectissem
nas duras conchas os raios solares; porque
naquelle corpo gigante havia um contínuo e
rapido scintillar. Atanagildo percebera o que
era, e por isso a tristeza lhe obscurecia a
fronte.
Como a faisca electrica, o terror se espalhara
no mosteiro apenas se dissera que os
arabes se approximavam. Mais de um coração
de guerreiro batia apressado, como o do
pobre ostiario que buscara na piedade de
Deus o amparo que mal podia esperar das
muralhas do forte edificio; do pobre ostiario,
que, sem o saber, fora desmentir o hymno
triumphal da cruz, diariamente derribada dos
altares nos templos profanados da Hespanha.
[141]
Dentro em breve, o exercito do Islam se
approximara a tão curta distancia que facilmente
se distinguiam os esquadrões dos filhos
do deserto e as turmas dos berebéres.
Tambem os arabes tinham observado o reluzir
das armas através das ameias do mosteiro.
A hoste inteira parou no valle, e alguns
cavalleiros encaminharam-se pela senda
tortuosa que findava na ponte levadiça contigua
ao grande portal, erguida desde que
pelos fugitivos constara que os mosselemanos
se avizinhavam.
Quando o quingentario conheceu que os
arabes paravam no fundo do valle, o seu
coração generoso verteu sangue com a lembrança
de que todo o esforço dos soldados
que coroavam os adarves do mosteiro, por
muito que houvera sido, não fora bastante
para salvar os desgraçados que tinham buscado
abrigo á sombra daquellas muralhas.
Viu o desalento pintado nos semblantes dos
mais valorosos, e a ultima esperança varreu-se-lhe
da alma. Todavia, esperou com rosto
seguro a chegada dos cavalleiros que subiam
a encosta.
Estes approximaram-se, emfim. Pelo seu
aspecto e trajo via-se que na maior parte
eram godos. Com as espadas nas bainhas,
[142]
pareciam vir em som de paz: tambem, por
isso, nem uma frecha só se disparou contra
elles dos muros.
Pouco antes de chegarem ao fosso profundo
que circumdava o edificio, um cavalleiro
que parecia o principal daquelle pequeno
esquadrão, adiantando-se aos demais,
veio topar com a entrada da ponte e, olhando
para as muralhas, onde reluziam immoveis
as lanças dos christãos, chamou:—«Atanagildo!»
Ao ouvir aquella voz, o quingentario empallideceu:
com visivel anciedade, voltou-se
para um centenario que estava juncto delle
e disse-lhe:
«Mandae descer a ponte e dae passagem
franca a esse cavalleiro que proferiu o meu
nome: mas a elle, unicamente a elle!»
O centenario obedeceu. D'ahi a pouco as
armas do guerreiro tiniam pelas escadas da
torre. Apenas subiu ao terrado, encaminhou-se
para Atanagildo e, estendendo-lhe a dextra,
exclamou:—«Meu irmão!»
O quingentario, em cujas faces pallidas
passara um relampago de vermelhidão, recuou
e, com voz affogada, respondeu:
«Atanagildo teve um irmão; mas esse morreu
para elle: porque entre elle e Suintila
[143]
está a cruz quebrada aos pés dos pagãos;
está o céu e o inferno. A minha herança é
a ignominia do vencimento, os ferros d'escravo
e as promessas do Christo: a tua as
riquezas, a victoria e a maldicção de Deus.
Não tróco os nossos destinos, nem quero a
amizade do precíto. Arrepende-te, abandona
os infiéis, e então Atanagildo te apertará ao
peito e te dará aquelle nome tão suave da
nossa infancia, o sancto nome de irmão.»
«Estás louco!—replicou Suintila—...Porém,
não foi para disputar comtigo que vim
aqui: vim para te salvar. Olha para o valle:
áquella hoste numerosa que lá vês poucas horas
poderão resistir estes muros mal guarnecidos,
Abdulaziz, o invencivel filho do amir
d'Africa, é quem a capitaneia: Legio cahiu
hontem em nosso poder, e de parte nenhuma
podes ser soccorrido. O bispo d'Hispalis e o
conde de Septum, que vem comnosco, offerecem-te
o mando de um dos seus esquadrões.
Os arabes pedem aos godos que os seguem
fidelidade ao estandarte do kalifa, não á crença
do Islam: pódes guardar tua fé. Eis o que
Suintila alcançou a teu favor. Estas velhas
muralhas e as donzellas encerradas nestes
claustros, que Abdulaziz soube serem pela
maior parte formosas e que elle destina para
[144]
enviar a Kairwan, são o vil preço da tua salvação.
Suintila aconselha-te que o entregues;
porque, apesar das injurias, ainda se não esqueceu
de que é irmão de Atanagildo. Resolve
e responde: que devo dizer a Juliano e a Oppas,
a quem suppliquei para ser mandado aqui?»
«Dize-lhes—atalhou o quingentario, cujos
olhos faiscavam d'indignação—que eu
respeito a vida de um aráuto, ainda quando
este é um miseravel renegado, como tu ou
como elles, aliás não fora Suintila quem lhe
levaria minha resposta. Dize-lhes que as suas
infames offertas são para mim tão abominaveis
como elles. Dize-lhes que, antes de um
sacerdote sacrilego e de um conde traidor
poderem estampar o ferrête da prostituição
na fronte das innocentes virgens do Senhor,
terão de passar por cima das ruinas destes
muros e dos cadaveres dos seus e dos meus
soldados. E tu, renegado, sae d'aqui! Possa
eu nunca mais vêr-te o rosto e esquecer-me
na hora de morrer de que nessas veias gyra
o sangue de nossos nobres e generosos avós.»
«Como te aprouver, meu irmão!»—replicou
Suintila, e um sorriso lhe deslisou nos
labios, descorados por mal disfarçada colera.
Proferidas estas palavras, desceu as escadas
da torre.
[145]
A cavalgada, que lenta subira a encosta,
descia-a rapidamente emquanto Atanagildo,
visitando os muros, exhortava os guerreiros
da cruz a pelejarem esforçadamente. Quando
estes souberam quaes eram as intenções dos
arabes ácerca das virgens do mosteiro, a atrocidade
do sacrilegio affugentou-lhes dos corações
a menor sombra d'hesitação. Sobre
as espadas juraram todos combater e morrer
como godos. Então o quingentario, a
quem parecia animar sobrenatural ousadia,
correu ao templo. Era necessario que as monjas
soubessem qual futuro as aguardava. Resignado
a acabar defendendo-as, Atanagildo
nem por isso esperava salvá-las das mãos dos
agarenos. Dolorosa era a nova; mas cumpria
não lhes esconder o seu horrivel destino.
As mulheres e os velhos que tinham vindo
buscar asylo no mosteiro enchiam já o
templo, em cujas abobadas murmuravam e
repercutiam os gemidos e as preces. Rompendo
pela multidão, o quingentario encaminhou-se
para o coro e chamou por Chrimhilde,
que com as monjas acompanhava o
povo nas suas orações fervorosas. A abbadessa
aproximou-se das reixas douradas que
a separavam do guerreiro.
«Chrimhilde,—disse Atanagildo em voz
[146]
baixa—é necessario valor! Dentro de poucas
horas sobre os muros do mosteiro da
Virgem Dolorosa estará hasteiado o pendão
dos infiéis, e eu terei deixado d'existir, porque
jurei sobre a cruz desta espada ficar sepultado
debaixo das ruinas delle. O exercito
dos arabes é irresistivel, e a unica esperança
que me resta é que o Senhor acceitará
o meu sangue, derramado em seu nome, como
um testemunho da minha fé.»
«Os infiéis—acudiu a abbadessa, procurando
dar ás palavras que proferia um tom
de firmeza que o tremulo da voz lhe desmentia—contentar-se-hão,
talvez, com as riquezas
aqui amontoadas imprudentemente e
com a posse destes logares. Se é isto o que
pretendem, saiamos e cedamos ao culto impio
de Mohammed o templo do Deus vivo,
já que para o salvar sería inutil todo o sangue
que se vertesse. Com as virgens esposas
do Senhor buscarei os ermos das serras do
norte, e, como as monjas primitivas, ahi acharemos
a paz e o repouso, emquanto o pae
celestial nos não chama á nossa verdadeira
patria.»
«Prouvera a Deus, veneravel Chrimhilde—tornou
o quingentario—que nos fosse licito
desamparar estes muros: deixar só entregues
[147]
ás profanações dos infiéis a pedra e
o cimento! Mas uma atroz mensagem acaba
de me ser mandada por quem, como eu, devia
horrorisar-se della. Repelli-a, porque se
me offereciam vida e honras a troco de perpetua
infamia. Agora resta-me unicamente
o morrer como godo e como soldado da cruz.»
«E qual era essa mensagem?—perguntou
a abbadessa anciosamente.—Em nome de
quem vinha ella?»
«Do bispo d'Hispalis e do conde de Septum;
de um sacerdote e de um nobre. O
preço da nossa liberdade era a prostituição
das vossas filhas queridas, das monjas consagradas
á Virgem Dolorosa, que esses malaventurados
destinam para saciar as paixões
brutas daquelles a quem venderam a terra
d'Hespanha. Para o obter cumpre-lhes, porém,
passar por cima dos membros despedaçados
dos guerreiros que povoam estas muralhas.
Pela cruz assim o jurámos todos. Havemos
de cumpri-lo.»
As palavras de Atanagildo vibraram no coração
de Chrimhilde, como vibra o primeiro
dobre pelo finado que ainda jaz em seu leito
da derradeira agonia na alma do bom filho,
que resa, chorando, ajoelhado ao pé delle. Recuou
atterrada e, volvendo para o céu os
[148]
olhos enxutos, porque a afflicção nelles estancara
as lagrymas que despontavam, ficou
por alguns momentos com as mãos erguidas,
como implorando uma inspiração de cima.
Pouco a pouco, porém, as suas faces tingiram-se
da cor da vida, o sorriso da esperança
rodeiou-lhe os labios, e as lagrymas,
consolo supremo das maiores magoas e, tambem,
expressão eloquente dos contentamentos
mais intimos, lhe rebentaram com força e
lhe orvalharam a negra estamenha do habito.
«O martyrio! o martyrio!—murmurou a
abbadessa.—Oh Christo! bemdicto seja o
teu nome.»
«O martyrio, sim:—interrompeu o quingentario—mas
depois do sacrilegio; mas depois
que as victimas da corrupção dos traidores
tiverem sido arrastadas para longe da
Hespanha e depois que nos harems do oriente
houverem sido polluidas pela sensualidade
brutal dos conquistadores. Eu, ao menos, não
verei esta ultima offensa á crença sacrosancta
de nossos paes...»
«Ide:—proseguiu a abbadessa, que parecia
não o haver escutado, embebida em meditação
profunda:—Quando os infiéis se approximarem,
enviae-lhes mensageiros de paz.
Que vos deixem acolher ás montanhas com
[149]
essa multidão d'infelizes que vieram buscar
o abrigo destes muros. Não cureis das monjas
da Virgem Dolorosa, nem receieis por
ellas. Achei um meio para as salvar da sorte
medonha que as ameaça. Desamparae-nos;
porque o archanjo do esforço é o nosso defensor.
O meu arbitrio será acceito pelas escolhidas
do Christo; sê-lo-ha, porque o Senhor
m'o inspirou. Nada mais é preciso dizer-vos.»
E, de feito, o seu olhar e gesto eram de
uma inspirada: mas nesse olhar e gesto havia
o que quer que era de severa aspereza
misturado com alegria suave, como em céu
que varre o noroeste as nuvens tenebrosas
remendam o azul purissimo do firmamento,
d'onde, através dellas, jorram torrentes de luz.
«Mas o juramento?—tornou tristemente
o quingentario.—Devo respeitar o vosso segredo;
todavia parece-me licito duvidar da
efficacia dos meios que imaginaes para vos
salvardes das mãos dos mosselemanos.»
«O vosso juramento é inutil—acudiu
Chrimhilde—e eu vos escuso delle. A resistencia
só servirá para arrastardes comvosco
á morte os velhos inermes e as criancinhas
innocentes. Ide e abri pacificamente
as portas aos pagãos. Se tanto é preciso, eu
[150]
vo-lo ordeno. Atanagildo, um dia nos veremos
no céu.»
Dictas estas palavras com toda a firmeza
de uma resolução inabalavel, a abbadessa
affastou-se da reixa e encaminhou-se para o
meio das freiras, que, entretanto, haviam estado
immoveis com os olhos cravados no pavimento.
O quingentario ficou por alguns momentos
pensativo: depois, agitado pela lucta
cruel dos affectos e pensamentos oppostos que
tumultuavam no seu coração, atravessou vagarosamente
o templo e desappareceu.
A um signal de Chrimhilde as monjas saíram
do coro; a donzella vestida de branco,
ao lado da veneravel abbadessa, apertava-lhe
a mão entre as suas; mas os seus meneios
eram firmes como os della e mais do que os
della altivos. Desde que a ultima freira passou,
as préces misturadas de soluços que
sussurravam na egreja converteram-se n'um
som unico de chôro perdido, como se a ultima
esperança houvera desapparecido com
ellas.
A campa do mosteiro bateu tres pancadas
com largos intervallos: é o signal que convoca
as monjas a capitulo. Para lá se encaminham.
A donzella que nessa noite chegara
acompanha-as, tambem, ahi. Entraram. As
[151]
pesadas portas da casa capitular rangem nos
gonzos cerrando-se, e o correr dos ferrolhos
interiores reboa ao longe pelos corredores
monasticos. Ao mesmo tempo a ponte levadiça
cai sobre o fosso que rodeia as muralhas
do vasto edificio; um cavalleiro se arroja
sózinho ao meio dos esquadrões do Islam,
que já subiram a encosta, e pede para
falar com o conde de Septum em nome de
Atanagildo. Dentro de poucos instantes ei-lo
que volta, e os mosselemanos param a curta
distancia. Então um grande numero de crianças,
de velhos e de mulheres, saíndo, como
torrente comprimida, do portal profundo do
mosteiro, atravessam por meio de duas fileiras
de soldados de Juliano e de guerreiros arabes
que vieram collocar-se aos lados da ponte.
Esta multidão desordenada ondeia, separa-se,
apinha-se de novo, para tornar a espalhar-se,
até que desapparece ao longe, caminho
das montanhas. Após ella, cubertos dos
seus saios de malha, mas sem armas, os soldados
de Atanagildo seguem com rosto melancholico
as mesmas trilhas por onde se vai
escoando a turba, até que, tambem como
esta, se derramam pelas selvas densas dos
montes e pelos barrancos escarpados que, retalhando
os Nervasios, dão passagem através
[152]
delles para as regiões septemtrionaes da Hespanha.
Apenas o quingentario, que fora o derradeiro
a atravessar a ponte levadiça, volvendo
ainda os olhos arrasados de lagrymas para
aquella sancta morada, desceu a encosta, as
duas fileiras de soldados arremessaram-se ao
fundo portal, cujas abobadas pela primeira
vez reboaram com os gritos discordes de homens
desenfreiados, e o edificio solitario respondeu-lhes
com um silencio lugubre. Diante
delles estavam patentes as vastas arcarias e
escadas, os longos corredores, os pateos espaçosos.
Lá, no centro, o templo solitario,
com as portas abertas de par em par, amostra-lhes
aos olhos ávidos as suas riquezas, ao
passo que parece querer vedar ao sol, com
as cores sombrias das vidraças das janellas,
o espectaculo das profanações de que na sua
existencia secular vai ser theatro e testemunha
pela primeira vez.
Como o tufão, rugindo, se abysma nas galerias
tortuosas de mina extensa, assim os
godos renegados e os mosselemanos, que os
seguem de perto, se precipitam dentro do
mosteiro. Pelas arcadas e corredores, pelas
salas e aposentos ouve-se o rir e falar desentoado,
o ruído de passadas rapidas, o tinir
[153]
das armas, o estourar das portas. Arabes,
mouros, soldados godos da Tingitania misturam-se,
disputam, ameaçam-se, dividindo
o sacco.
Os cheiks e os capitães do conde
de Septum vedam-lhes unicamente a entrada
das habitações interiores, onde a riqueza
do templo lhes promette á cobiça mais avultada
presa. Elles sós se encaminham para
essa parte e desapparecem nos claustros monasticos,
onde não se ouve outro signal de
vivos, senão o som de seus pés e, a espaços,
o tinir das proprias armaduras, que roçam
pelos pilares de marmore.
Suintila, o deshonrado irmão do virtuoso
Atanagildo, era do numero dos capitães que
haviam primeiramente penetrado no claustro
solitario. Tinha-se adiantado mais e descia
por uma escadaria lobrega que terminava,
segundo parecia, n'uma quadra allumiada
por muitas tochas. Esta circumstancia, que
lhe excitava viva curiosidade, o obrigou a
apertar o passo. A meia descida parou. Crera
ouvir um cantico entoado por muitas vozes
accordes, que a espaços era interrompido por
gemidos dolorosos. Escutou: não se enganava!
Então o terror começou a apossar-se
delle, e, porventura, teria retrocedido, se não
sentira que alguem mais o seguia. Eram dous
[154]
cheiks arabes e um centenario do conde de
Septum que o acaso guiara para aquella parte.
Interposto entre o clarão avermelhado que
saía do subterraneo e os tres que se approximavam,
Suintila fez-lhes signal de silencio
e continuou a descer mansamente, até chegar
á porta que dava da escadaria para o
aposento illuminado. Então conheceu onde
estava. Era um desses logares mysteriosos e
sanctos que a primitiva architectura religiosa
construía debaixo dos templos—templos tambem,
mas da morte; porque ahi, sobre os altares,
repousavam as cinzas dos martyres, e aos
pés delles os fiéis que obtinham para ultima
jazida uma pouca de terra onde ainda fossem
affagar-lhes as cinzas o sussurro longinquo
das préces e o perfume dos sacrificios.—Suintila
achava-se na crypta do mosteiro da
Virgem Dolorosa. O clarão que vira era o
de muitos lumes, accesos em lampadarios gigantes,
e reverberando nas stalactites penduradas
das juncturas do marmore: era o reflexo
das tochas que ardiam diante dos crucifixos,
unicas imagens que se viam sobre as
aras núas. Em cada um dos tumulos das
monjas antigas, enfileirados ao comprido dos
muros, negrejavam apenas uma data e um
nome. Era o que restava para memoria de
[155]
muitas virtudes naquelles annaes do mosteiro,
naquella chronologia de pedra. O sepulchro
da viuva d'Hermeneghild, o desgraçado
irmão de Rekkáred, elevado mais que os outros
á entrada do templo subterraneo, semelhava
um throno de rainha em palacio de
sombras, porque o ambiente grosso e frio e
o halito das sepulturas revelavam que ahi era
o imperio da morte.
As torrentes de luz que inundavam esta
morada de terror não permittiram a Suintila
enxergar no primeiro volver de olhos
os objectos que estavam ante elle. Espantado,
tentava descobrir no meio daquella resplandecente
solidão algum vulto humano,
quando os cantos e gemidos, suspensos momentaneamente,
romperam de novo: primeiro
as vozes harmoniosas; depois o gemido íntimo,
doloroso, affogado; logo outra vez o
silencio.
Os dous cheiks e o centenario tinham chegado
ao pé de Suintila. Animados uns pela
presença dos outros, encaminham-se para o
grande tumulo e d'alli olham para o logar
d'onde haviam soado os canticos. Eis o temeroso
espectaculo que têem diante de si:
Grossos e altos cancellos de roble separam
do resto do templo um extenso recincto sem
[156]
sepulchros, immediato ao altar principal: uma
cruz agigantada se ergue no topo: por um
e outro lado daquelle espaço além das grades
negrejam duas fileiras de monjas: muitas
estão de joelhos e debruçadas sobre o primeiro
degrau do altar: em pé, entre as duas
fileiras, uma dellas, cujos olhos desvairados
reluzem á claridade das tochas e cujo aspecto
severo infunde uma especie de terror,
tem na mão um punhal, cujo ferro sem brilho
parece tincto em sangue. Juncto da monja
um vulto de mulher vestida de branco sobresáe
no meio das virgens cubertas de lucto:
unido ás grades que defendem a entrada daquelle
recincto, um velho, cujas melenas e longa
barba lhe alvejam sobre os hombros e peito,
está de joelhos com os braços estendidos
através da balaustrada: agita-o uma convulsão
horrivel de pavor, que lh'embarga na
garganta os sons articulados e só lhe consente
murmurar um ruído confuso, semelhante
ao respiro ancioso de agonisante. Um
dos dous córos de freiras começa a entoar
de novo os psalmos: a monja do punhal estende
a mão, ordenando silencio. Vai falar.
Suintila, a ponto de arremessar-se para aquelle
lado, pára e escuta as suas palavras. São
lentas e lugubres, como as de um espectro,
[157]
que se alevantasse d'alguma das campas derramadas
ao longo da crypta. Dirige-as ao
vulto branco que está a seu lado:
«Ainda uma vez, nobre dama, attendei
ás
supplicas do velho buccellario que tenta salvar-vos.
Para vós ha esperança na terra: a
nossa mora no céu. Quando os infiéis souberem
que ainda existe na Hespanha quem
possa quebrar com ouro o vosso captiveiro
ou vingar com ferro a vossa affronta, respeitarão
a pureza de nobre virgem. A nós, que
não temos ninguem no mundo, restava-nos
unicamente o tremendo arbitrio que o Senhor
nos inspirou. O martyrio não tardará a cingir-nos
a fronte d'uma aureola de gloria: os
anjos de Deus nos esperam.»
«A minha ultima resolução, veneravel
Chrimhilde, é acabar juncto de vós e de nossas
irmans. O meu animo saírá, como o dellas,
illeso da ultima prova que o Christo nos pede
na vida. Como ellas, darei sem hesitar testemunho
da cruz. O velho buccellario de meu
pae mente á propria consciencia quando affirma
que os infiéis respeitarão a pureza de
uma donzella goda: a infamia tem sido escripta
por elles na fronte das familias mais
illustres da Hespanha: o cutello ou a prostituição
é o que os arabes offerecem á innocencia.
[158]
Eu escolho o cutello: a morte val
mais que a deshonra. Porventura, para a evitar
me guiou o Senhor ao mosteiro da Virgem
Dolorosa.»
Seja feita a vontade do Altissimo:—respondeu
a abbadessa alevantando ao céu as
mãos, entre as quaes apertava o punhal.
Depois de um momento de silencio, Chrimhilde
disse, voltando-se para o lado esquerdo:
«Hermentruda, approximae-vos!»
Uma das monjas saiu d'entre as outras e
veio ajoelhar aos pés da abbadessa; as suas
companheiras ajoelharam tambem voltadas
para o altar; e o hymno que Suintila ouvira
ao descer para a crypta murmurou de novo
naquellas curvas abobadas.
Como lá no horisonte o sol tremulo e sereno
se reclina ao fim da tarde no seio tenebroso
dos mares, assim o canto melancholico
e melodioso das virgens foi pouco a pouco
enfraquecendo até expirar no cicío de orações
submissas. Apenas cessou de todo, um
gemido de agonia agudo e rapido soou juncto
da abbadessa. Aos olhos de Suintila figurou-se
que o punhal de Chrimhilde descera
duas vezes sobre a monja que estava a seus
pés. Um brado de colera e horror, saíndo
involuntariamente da bocca do godo, restrugiu
[159]
pelo templo. Crera o renegado que Hermentruda
havia sido assassinada. Pareceu-lhe
então claro o sentido das palavras mysteriosas
que ouvira. As monjas fugiam ao captiveiro
do harem pelo ádito do sepulchro.
Elle assistia a uma scena horrenda de suicidio,
e o braço mais robusto de Chrimhilde
apenas era o instrumento cego movido por
todas essas vontades, conformes para morrer.
«Mulher ou demonio, detem-te!—bradou
Suintila, correndo com os cheiks e o centenario
para o recincto fechado e procurando
abrir os fortes cancellos que lh'embargavam
os passos.
Embebidas no seu drama cruel, nem as
monjas, nem Chrimhilde volvem sequer os
olhos para os quatro guerreiros, cujas armas
reluzem ao fulgor das tochas. Hermentruda
não está morta. Ergueu-se. Tem a cabeça
descuberta, os louros cabellos esparzidos,
o collo nú. Bem como o aspecto do formoso
archanjo de luz no dia em que, rebelde,
a espada de fogo lhe estampou na fronte
a condemnação eterna, o seio e o rosto da
monja, suavemente pallidos, estão sulcados
por betas escuras, que serpeiam por aquelle
gesto, como as viboras estiradas ao sol sobre
um busto grego tombado entre as ruinas
[160]
de antigo templo pagão. É que, semelhantes
ao nordeste frio e agudo, que, passando pela
bonina viçosa, lhe desbarata os encantos, os
fios do punhal de Chrimhilde correram por
lá violentos e rapidos, e n'um momento anniquilaram
a formosura da virgem.
As grades, fechadas interiormente, balouçam
aos empuxões de Suintila; mas não cedem.
«Okba, diz o godo a um dos cheiks,
correi! Chamae os mais robustos zenetas e
os negros de Takrur armados dessas achas
a cujo primeiro golpe nunca resistiu elmo
de bronze. Prestes! chamae-os aqui. Abdulaziz
deve ter chegado. Que venha! Mulher
infernal lhe vai destruindo peça a peça os
despojos mais ricos, os que elle destinava
para si e para o khalifa. Que venha salvá-los!
Que venha! Prestes, cheik de Hoara!»
E, emquanto o cheik galga a extensa escadaria
os tres tentam muitas vezes fazer estourar
os grossos ferrolhos, que resistem ás
suas diligencias. Arquejando, Suintila abandona
a tentativa inutil. Ameaça Chrimhilde:
as injurias acompanham as ameaças: seguem-nas
as supplicas, as promessas e logo, de novo,
as pragas e as affrontas. Baldado é tudo.
Chrimhilde lançou ao renegado um olhar de
compaixão e conservou-se em silencio.
[161]
Mas os canticos cessaram de todo: as monjas
saem successivamente de ambos os lados
e vem ajoelhar aos pés da abbadessa: vem
despir as galas da formosura e comprar á
custa dellas a pureza da virgindade e a palma
do martyrio. Cada vez mais rapido range
o punhal nos collos purissimos das virgens
do mosteiro. O gemido que expira, comprimido
pela constancia, já se prende com o
que a dor e a fraqueza mulheril arrancam do
seio das victimas ao descer do primeiro golpe,
e a fileira das que se vão debruçar sobre
os degráus do altar cresce d'instante a
instante, ao passo que rareiam as outras duas.
A terrivel sacerdotisa parou. Está o seu
braço cansado de tão largo sacrificio? Não!
Braço e animo são robustos, porque os fortalece
o espirito do Senhor. É que o momento
supremo da morte se approxima. A mourisma
jorra subitamente pelo portal estreito,
como o rio caudal na caverna que se lhe estendia
debaixo do leito e cuja abobada fendeu
tremor de terra. Os guerreiros negros
das tribus de Takrur, á voz de Abdulaziz que
os precede, precipitam-se contra os solidos
cancellos do logar vedado: vinte machados
ferem a um tempo nas grades, que gemem
sob a furia dos golpes e mal resistem ás
[162]
pancadas violentas dos negros possantes, aos
quaes redobra os brios a presença do amir,
cuja colera resfólega em maldicções e blasphemias.
Entre as monjas e os arabes bem curta
distancia medeia: e todavia, lá no mais pequeno
recincto, onde soam os gemidos de
dores atrozes, onde só ri uma esperança, a
da morte, ha paz íntima, ha o céu: aqui, na
vasta crypta, onde a ebriedade de facil triumpho,
a riqueza dos despojos, o futuro de uma
larga existencia de gloria e deleites sorriem
na mente dos infiéis, está o furor insensato,
está o inferno. O evangelho e o koran estão
frente a frente no resultado das suas doutrinas.
É sublime a victoria do livro do Nazareno!
Os golpes de machado redobram: os troncos
affeiçoados do roble começam a estourar
nas suas juncturas. A ultima freira fora já
curvar-se juncto aos degráus do altar: a donzella
vestida de branco vai ajoelhar aos pés
de Chrimhilde, exclamando:
«Para mim tambem o martyrio! Salvae-me
do opprobrio!»
«A tua constancia, filha, na dura prova
de agonia por que tens passado te purificou.
Sê uma das monjas da Virgem Dolorosa e
[163]
vai com tuas irmans receber a coroa de martyr.»
O ferro, porém, que descia sobre o collo
da donzella foi cair com a mão de Chrimhilde
aos pés da cruz gigante do altar. Um
revés do alfange de Abdulaziz lh'a cerceiara:
as solidas grades estavam despedaçadas.
A abbadessa vacillou e, ao cair, só pôde
murmurar:—Jesus, recebe a minha alma!
Foram as suas palavras extremas: um segundo
golpe lhe atalhou na garganta o derradeiro
suspiro.
As freiras ergueram-se e encaminharam-se
para o logar em que jazia o cadaver destroncado
da abbadessa. Ajoelharam juncto
della, com a face voltada para a turba dos
infiéis. Os seus rostos, inchados e manando
sangue, eram disformes e horriveis.
«Ao menos, tu serás minha!—exclamou
o amir, lançando a mão ao braço da donzella
vestida de branco, a quem o terror desta
scena rapidissima tornara immovel, como
uma dessas estatuas que parecem orar sobre
os sepulchros nas cathedraes da idade-média.—Filhos
valentes do Sudan, conduzí-a
á minha tenda. As outras, que as azas
do anjo Azrael se estendam sobre os seus
cadaveres.»
[164]
D'ahi a poucas horas a crypta estava em
silencio. As monjas da Virgem Dolorosa jaziam
degoladas em volta da veneravel Chrimhilde,
e as suas almas puras abrigavam-se
no seio immenso de Deus.
XIII
COVADONGA
Ao sopé daquelle monte um penhasco
defendido pela natureza e
não por arte, dilatando-se vasto,
resguarda uma caverna inteiramente
inexpugnavel para qualquer ardil
d'inimigos.
Monge de Silos: Chronicon c.
3.º
A victoria do Chryssus assegurara aos arabes
a conquista da Hespanha inteira, porque
o desalento entrara em todos os corações, e
o terror quebrara todos os brios. O duque
de Cantabria, Pelagio, fora o unico em cuja
alma
não morrera inteiramente a esperança.
Errante pelos cerros quasi inaccessiveis que
[166]
se elevam no extremo oriental da Gallecia e
que, passando ao norte da Carthaginense, vão
entroncar-se no vulto gigante dos Pyrenéus,
o mancebo não dobrara a cerviz ao fado cruel
que pesava sobre seus irmãos. Poucos o haviam
seguido naquella vida quasi selvagem;
mas esses poucos eram homens a quem a
aura da liberdade parecia a unica atmosphera
em que seus pulmões robustos poderiam
resfolegar; homens a cujos olhos as affrontas
da cruz derribada do cimo das cathedraes sería
espectaculo incrivel e insupportavel. Uma
caverna servia de paço ao joven rei das montanhas
e de templo ao Crucificado. Os dominios
de Pelagio eram as serranias e os valles
profundos onde, porventura, até então
nunca soara a voz humana. O urso ferocissimo,
o javalí indomavel, a leve corça abasteciam
a grosseira mesa desses godos, a quem
a desgraça e a vida dura das solidões fizera
mais féros, mais indomaveis e mais ligeiros
do que elles. Ás vezes, Pelagio e os seus soldados
desciam das montanhas para largas correrias,
semelhantes á tempestade nocturna,
e, como a tempestade, passavam pelas tendas
dos arabes ou pelas aldeias, despovoadas de
christãos, onde os infiéis começavam a fazer
assento. Alta noite ouvia-se ahi um gemer
[167]
de moribundos, via-se o brilhar do incendio.
Era o bulcão do deserto que rugia por lá.
Ao amanhecer tudo estava tranquillo; porque,
bem como a procella, Pelagio era repentino
e destruidor e só escrevia na terra com os
caractéres sanguinolentos de ruinas e mortes
a noticia da sua quasi invisivel passagem.
Não assim Theodemiro. Depois da batalha,
os restos das tiuphadias desbaratadas haviam-no
proclamado successor de Ruderico.
Era de ferro e espinhos a coroa que se lhe
offerecia sobre a campa do imperio godo.
Acceitou-a; porque em acceitá-la havia mais
abnegação que orgulho. Emquanto Tarik,
rendida Toletum, subjugava uma parte da
Carthaginense, Musa, o amir d'Africa, desembarcando
nas costas da Hespanha com um
novo exercito, rendia Hispalis e, atravessando
o Ana, submettia ao jugo do khalifa todo
o occidente da peninsula iberica. As reliquias
do exercito godo, que não haviam podido resistir
a Tarik, muito menos poderiam impedir
a passagem do amir. Assim, Theodemiro,
ajunctando esses soldados dispersos, acolhera-se
ás serranias d'Ilipula, na extremidade
oriental da Betica. Musa, porém, enviara contra
elle seu filho Abdulaziz, um dos mais famosos
guerreiros do Islam. Apesar da superioridade
[168]
do exercito arabe, a lucta fora longa
e terrivel. Theodemiro succumbira por
fim; mas, posto que vencido, o seu valor obrigara
os mosselemanos a concederem-lhe vantajosas
condições de paz. Os vastos dominios
que ainda possuia foram-lhe conservados, reconhecendo
elle a supremacia do amir, e os
godos poderam, ao menos nesse canto da Betica,
achar uma parte da segurança e repouso
que faltava no resto da Hespanha, onde
o alfange da conquista assignalava todas as
frontes com o ferrete da servidão e reduzia
a montões de ruinas as cidades, nas quaes o
espirito do christianismo e da liberdade ousava
reluctar contra o dominio do khalifa e contra
a religião do koran.
Theodemiro reinou largo tempo nos districtos
orientaes da Betica, mas abandonado
pelos mais nobres guerreiros, para quem a
paz com os infiéis seria incomportavel deshonra.
As montanhas das Asturias eram o
verdadeiro e unico refugio da independencia
goda. Em volta de Pelagio ajunctavam-se todos
os homens esforçados que não tinham
ainda desesperado da providencia e da propria
espada. Muitos delles adormeceram para
sempre nas solidões daquelles agrestes escondrijos,
sem que vissem verificar-se as suas
[169]
esperanças; outros, porém, saudaram ainda
a aurora do dia da vingança e poderam dizer,
morrendo:—a Hespanha será salva!
Era passado um anno depois da batalha
do Chryssus. O numero dos companheiros de
Pelagio augmentava diariamente com os homens
generosos que, depois da paz de Theodemiro
com os arabes, o deixavam, para salvarem
a sua independencia nos fraguedos das
Asturias e da Cantabria. Estes soccorros continuos
fortaleciam a constancia do moço guerreiro,
que via crescer e sussurrar a torrente
dos invasores em volta das suas montanhas.
Abdulaziz, o valente filho de Musa, subjugara
a Lusitania e a Carthaginense e, saqueando
as cidades opulentas do norte que lhe abriam
as portas, mettia a ferro e fogo as que tentavam
resistir-lhe. Os rolos de fumo que se
alevantavam das povoações incendiadas mostravam
aos cavalleiros de Pelagio que já pelos
campos gothicos fluctuava triumphante o estandarte
de Mohammed. Rugindo de colera
ao contemplarem este espectaculo, apertavam
contra o peito a cruz das espadas. Então,
sentiam escorregarem-lhes as lagrymas pelas
faces tostadas, e descer-lhes com ellas aos
seios d'alma a resignação e a esperança na
piedade de Deus.
[170]
Debaixo d'um semblante severo, mas sereno,
Pelagio sabía esconder a amargura que
lhe trasbordava do coração. No viço da juventude,
o espirito lhe encanecera em meio
dos dolorosos successos da sua ainda tão curta
vida. A todas as maguas communs se lhe
accrescentavam outras particulares, porventura
mais pungentes. A maior parte dos seus
companheiros haviam trazido para as Asturias
os paes decrepitos, os filhos e as esposas,
todos aquelles por quem repartiam os
affectos do seu coração. Elle, porém, não
pudera salvar uma irman que adorava e que
Favila, expirando, entregara em seus braços,
para que fosse o defensor e o abrigo da que
ficava orphan no mundo. Ao sair de Tárraco,
para se ir ajunctar á hoste de Ruderico, o
mancebo deixara Hermengarda nos paços paternos,
encommendada á guarda de alguns
velhos buccellarios de seu pae. Quando, depois
da batalha juncto do Chryssus, se acolhera
ás montanhas, onde só podia conservar
a liberdade, Pelagio avisara sua irman do logar
em que existia e lhe communicara todos
os meios de penetrar n'aquella quasi inaccessivel
guarida. A resposta d'Hermengarda foi
digna de uma neta dos godos: dizia-lhe que
brevemente sería com elle; porque preferia
[171]
um covil de feras habitado por Pelagio ás
delicias de Tárraco, sobre a qual não tardaria,
talvez, a pesar o ferreo jugo dos mosselemanos.
Com os buccellarios que lhe deixara,
ella ía atravessar a Hespanha, encaminhando-se
a Legio, onde devia chegar dentro
de poucos dias.
Esta carta d'Hermengarda produzira crueis
receios no animo do mancebo. Sabía que os
arabes, derramados já pela Gallecia, não tardariam
a envolver na torrente das suas assolações
a antiga cidade romana: elle, que experimentara
qual era a furia dos guerreiros
do oriente, compadecia-se das vans esperanças
de resistencia que os habitantes de
Legio alimentavam ainda. De feito, um dia,
em que enviara alguns cavalleiros pelos diversos
caminhos que Hermengarda poderia
seguir na sua arriscada e longa peregrinação,
estes voltaram sobre a tarde com uma
bem triste nova. Os arabes, capitaneiados por
Abdulaziz, haviam chegado juncto aos muros
daquella forte povoação, e poucas horas lhes
tinham bastado para hasteiarem nas suas torres
o estandarte de Mohammed e para passarem
á espada os seus defensores. Deixando
ahi uma das tribus bereberes, o exercito
dos conquistadores guiara rapidamente para
[172]
a Tarraconense, e os esculcas godos haviam
escapado a custo aos almogaures arabes, desapparecendo
entre os desvios das serras e espreitando
das apertadas portellas o caminho
que seguia a multidão dos infiéis, os quaes lhes
pareceu dirigirem-se para o lado do celebre
mosteiro da Virgem Dolorosa. Quanto á irman
de Pelagio, nenhuns vestigios haviam
encontrado da sua passagem, nenhuma esperança
traziam.
Taes foram as novas que os cavalleiros enviados
aos valles além de Legio deram ao moço
guerreiro, que já os esperava impaciente
em uma das gargantas do Vinnio. Cheio de
tristeza, Pelagio voltou então para a sua morada
selvatica, para o escondrijo pelo qual
havia tanto tempo trocara os paços paternos
da esplendida Tárraco. Durante muitas horas,
no meio do denso nevoeiro acamado sobre
as encostas, pelas sendas tortuosas das
montanhas, os cavalleiros que seguiam o duque
de Cantabria não ousaram quebrar-lhe
o doloroso silencio. Apenas, pela calada da
noite negra e fria, soava lá ao longe o ruido
do Sallia, de cujas margens por vezes se approximavam.
O sussurrar, porém, da corrente,
amortecido de quando em quando pela
distancia, confundia-se com o ramalhar nas
[173]
sarças do lobo que fugia e com o brando rugir
dos pinhaes, balouçados pela bafagem do
vento. Estes sons vagos e confusos respondiam
ao tropeiar dos ginetes, galgando as
serras ou descendo lentamente e enfileirados
á borda dos precipicios. O nevoeiro, mergulhando-se
nestes, branqueiava-lhes os seios
e revelava a sua existencia, deixando entre
uns e outros como uma fita tortuosa e escura,
que ía morrer mui perto no breve horisonte,
encurtado pela cerração e pelas trevas.
Tarde, já bem tarde, uma luz baça e duvidosa
bruxuleiou sem brilho adiante dos cavalleiros,
que haviam rodeiado as montanhas,
fazendo um largo semicirculo. Naquelle momento
elles transpunham uma garganta medonha.
Pelo contrario de outros logares que
tinham atravessado, aqui as serras erguiam-se
quasi a prumo de uma e d'outra parte da estreita
passagem. Por meio della sentia-se o
ruido de torrente caudal, que parecia vir da
banda da luz que se via em distancia, e o nevoeiro,
cada vez mais cerrado, pendurava-se
em orvalho na barba espessa dos guerreiros
e nos cabellos que lhes ondeiavam pelos hombros,
saindo de sob os elmos.
Seguindo o curso do ribeiro, a cavalgada
chegou, por fim, a um valle mais amplo, mas
[174]
tambem rodeiado de serras, cuja sombra gigante
sería facil perceber, apesar da cerração,
a quem olhasse attentamente em roda.
A luz que parecia guiar os cavalleiros, a principio
duvidosa, tenue, sumindo-se a espaços,
crescia rapidamente e era já um grande clarão,
que reflectia pelos penhascos, visiveis
para um e outro lado, e scintillava no dorso
da corrente. Um grito de esculca veio quebrar
o silencio dos caminhantes, que durante tantas
horas não tinham proferido uma unica syllaba.
As palavras—Covadonga e Pelagio!—repetidas
pelos cavalleiros da frente responderam
á voz do esculca, que, em pé e quedo
sobre um outeirinho, os deixou passar ávante.
Em breve chegaram ao termo da sua viagem.
O valle findava em extensa penedia cortada
a pique. Á direita uma subida ingreme, talhada
na pedra viva, conduzia a um arco irregular
aberto na penedia. Era a claridade
do fogo acceso debaixo delle a que se derramava
no valle e que ainda ía allumiar frouxamente
o passo estreito que os cavalleiros
haviam atravessado. Encostados aos rochedos,
dispersos juncto á raiz daquella muralha
altissima, estavam derramadas muitas choupanas,
grosseiramente construidas de mal acepilhados
troncos e cubertas de ramos e colmo.
[175]
Em frente de varias dellas ainda fumegava
o brazido das fogueiras nocturnas daquella
especie de arraial, onde ciciava o respirar
compassado dos que dormiam. Ao pé
da primeira e mais extensa choupana, Pelagio
descavalgou; os mais seguiram o seu
exemplo.
«Gutislo!—bradou um dos cavalleiros,
cujo elmo se distinguia dos demais, porque
era o unico em cuja superficie negra e baça
se não reverberava o clarão avermelhado dos
carvões accesos que ainda restavam de uma
grande fogueira, juncto da subida ingreme
que guiava á caverna.
Um homem agigantado e de fera catadura
saíu da choupana murmurando sons mal articulados
e que pareciam de agastamento.
Dos recem-vindos os principaes começaram
a subir vagarosamente a senda fragosa que
tinham ante si emquanto Gutislo recolhia os
ginetes, que mal se podiam meneiar de cansados,
e os simples buccellarios se derramavam
pelas tendas erguidas juncto dos penhascos.
Os cavalleiros chegaram ao topo da subida.
A caverna de Covadonga, o palacio do
duque de Cantabria, estava patente. Da esquerda,
em vasta lareira, ardia um grosso
[176]
cepo de sobreiro, que conservava tepida e enxuta
a atmosphera, naturalmente fria e humida:
da direita, pelas quebras angulosas das
rochas, viam-se deitados capacetes, saios de
malha e muitas armas offensivas. Escabellos
grosseiros, mesas de carvalho e alguns leitos
de pelles d'animaes silvestres, amontoadas sobre
a cortiça que servia de pavimento, completavam
o adereço daquelle rude aposento.
Todavia, as armas pulidas, ordenadas em feixes,
e as stalactites seculares, penduradas do
tecto, reverberando o clarão da fogueira, davam
ao topo da lapa um aspecto esplendido,
que de algum modo assemelhava esta habitação
de feras a uma sala d'armas de paços
afortalezados.
É alta noite: os cavalleiros que haviam
acompanhado Pelagio dormem profundamente,
estirados nos pobres leitos da gruta. Quem
ouvisse os nomes desses rudes soldados saberia
quaes eram os restos da mais illustre
nobreza goda: eram muitos daquelles que,
havia poucos meses, nos paços magnificos de
Toletum passavam as noites em festas, os dias
em banquetes e que, depois de existencia deleitosa,
esperavam ir dormir, sob as arcarias
das cryptas das cathedraes, nos tumulos soberbos
de seus avós. E todavia, a conquista
[177]
reduziu-os á vida de barbaros e fê-los retroceder
aos costumes duros e ferozes dos companheiros
de Theoderik e de Ataulph; aos
habitos de rudeza dos primitivos wisigodos.
O moço duque de Cantabria véla, porém.
Assentado em um escabello juncto do lar
acceso, com a face encostada ao punho, deixa
balouçar a sua alma em tempestade de dolorosos
pensamentos, lembrando-se de Hermengarda.
Por mais de uma hora, Pelagio se
conservara nesta situação, quando, ao voltar
a cabeça, viu que mais alguem velava, como
elle. O cavalleiro que ao chegarem chamara
por Gutislo, em pé por detrás do escabello,
com os braços cruzados e os olhos fitos
na chamma, parecia meditar profundamente.
No seu aspecto havia o que quer que fosse
tenebroso e sinistro.
«Como assim!—exclamou o mancebo—ainda
não buscastes o repouso? Depois de tão
larga correria, não imaginava achar-vos ao
pé de mim, que vélo, porque a amargura não
consente que o somno me cerre as palpebras.
Tendes, acaso, uma irman querida, uma esposa
que muito ameis, por quem devais tremer,
e que, talvez, neste momento seja victima
das paixões desenfreiadas dos infiéis?»
«Não tenho ninguem no mundo:—respondeu
[178]
o cavalleiro, cujo aspecto se carregou
ainda mais ao ouvir estas ultimas palavras:—mas
não póde aquelle cujo coração é ermo
desses affectos ser tambem infeliz?»
«Infelizes são todos os moradores de Covadonga—acudiu
Pelagio:—mas o que á
desventura commum ajuncta receios bem fundados
pela honra ou, ao menos, pela vida daquelles
que muito amou é mil vezes mais desventurado.»
«Duque de Cantabria, quando tiverdes medida
por onde afferir ao certo o meu e o vosso
coração podereis falar assim.»
«Te-la-hia, talvez, se conhecesse a historia
da vossa vida: mas vós a cubrís de impenetravel
mysterio.»
«Porque é o segredo mais sancto da minha
alma—interrompeu com vehemencia o
cavalleiro;—segredo que esta boca nunca
revelará na terra.»
«Nem eu o exijo: longe de mim tal intento.
A carta que me trouxestes de Theodemiro
me assegura que sois um nobre gardingo:
tanto bastou para que vos recebesse
entre aquelles com quem reparto a minha caverna
de foragido. Nunca vos perguntei, sequer,
porque abandonastes um homem que
de suas palavras vejo vos amava como irmão.»
[179]
«Oh, quanto a isso, dir-vo-lo-hei—atalhou
de novo o guerreiro, pondo a mão sobre
o punho da espada.—Foi porque eu o
cria um anjo de virtude e esforço, e elle era
apenas um homem! Foi porque a paz que
pactuou com os mosselemanos, honrosa aos
olhos do vulgo, era, a meus olhos, infamia.
Paz com o infiel? Ao christão só cabe fazê-la
quando dormir ao lado delle somno perpetuo
no campo de batalha; quando, ao lado um do
outro, esperarem ambos que as aves do céu
venham banqueteiar-se em seus cadaveres.
Antes disso, não a comprehendo. Disse-lh'o,
sem colera, sem injurias, ao abandoná-lo
para sempre. Nesse momento algumas lagrymas
correram destes olhos; porque a alma
de Theodemiro era a ultima em que morava
um affecto que respondesse aos meus;
era o ultimo templo em que me sorria a esperança!»
E as lagrymas que elle dizia haver derramado
nessa triste separação corriam, de
novo, quatro a quatro pelas faces do guerreiro.
Apenas o gardingo proferira estas derradeiras
palavras, o clarão avermelhado da lareira
bateu subitamente no vulto agigantado
de Gutislo, que surgira á boca da gruta e
[180]
parecia hesitar se devia ou não interromper
o dialogo dos dous guerreiros.
«Velho lobo do Herminio, approxima-te—disse
Pelagio em tom de gracejo, como
que tentando affastar as tristes idéas que lhe
opprimiam o espirito.—Que buscas a taes
deshoras? Tiveste, acaso, em sonhos saudades
das barrocas das tuas serras nevadas e creste
que Covadonga era o antro de teu irmão, o
javali?»
«O caçador das montanhas—replicou o
lusitano, na sua linguagem pinturesca de barbaro—não
estaria aqui, se a saudade dos logares
em que nasceu lhe morasse no coração.
Os homens d'além do mar lhe mataram
ou captivaram mulher e filhos quando estes,
por seu mal, n'um dia em que elle perseguia
nos cimos da serra os lobos cervaes, ousaram
descer com o rebanho aos valles do Munda.
Por isso te seguí eu, oh godo: tu derramas
o sangue dos homens d'além do mar, e eu
quero derrama-lo tambem.»
«A que vens, pois, aqui?—replicou Pelagio,
a quem as palavras do celta traziam de
novo ao espirito a lembrança de que tambem
elle era, talvez, orpham de irman querida.
«A dizer-te que um desconhecido chegou
ao valle. Fala não sei de que nome godo,
[181]
como o teu; d'Hermengarda, me parece. Pede
para te falar.»
«Onde está elle?—exclamou Pelagio, em
cujos olhos brilhara a esperança misturada
de temor.—Que venha! oh que venha
breve!»
E, alevantando-se, encaminhou-se ligeiro
para a entrada da gruta, d'onde Gutislo outra
vez desapparecera. Antes, porém, que ahi
chegasse, um velho, cujos trajos desordenados,
rotos e cubertos de lodo davam indicios
de ter atravessado largo espaço das serranias,
entrou na caverna e, arrojando-se aos
pés do duque de Cantabria, rompeu em soluços,
sem poder proferir palavra.
N'um relance Pelagio o conhecera.
«Aldephonso! onde está Hermengarda?
Buccellario! onde está a filha do teu patrono?»
O velho tentou responder; porém não pôde,
e continuou a soluçar.
«Entendo-te: é morta! Nunca mais te verei,
minha pobre irman!—murmurou o mancebo,
escondendo o rosto entre as mãos.
Ao gardingo, que durante esta scena se
conservara immovel, fugiu um gemido abafado.
Depois, levou o punho cerrado á fronte,
como se quizesse conter ahi uma idéa dolorosa
que tentava resfolegar.
[182]
Houve um largo espaço de temeroso silencio.
O velho o quebrou por fim:
«Não; não é morta! Mas, porventura, ainda
o seu fado é mais horrivel. Jaz captiva em
poder dos infiéis. Não me foi dado salvá-la,
e não quiz morrer sem vos dar esta nova
cruel. Agora...»
Um brado de Pelagio atalhou as palavras
do buccellario suffocadas pelo choro.
«As minhas armas e o meu cavallo! Que
me deem o meu frankisk! Velho vilissimo, já
que não soubeste deixar-te despedaçar juncto
della, dize, ao menos, onde poderei encontrar
os pagãos que captivaram Hermengarda.»
Lavado em lagrymas, o ancião narrou-lhe
em breves palavras os successos que se haviam
passado no mosteiro da Virgem Dolorosa.
Elle tinha feito tudo para a resolver a
tentar a fuga. «Ainda na crypta fatal—concluia
Aldephonso—através das grades que
me embargavam os passos, por vós, pelas cinzas
de vosso pae, lhe suppliquei de joelhos
que me acompanhasse. Os velhos buccellarios
de Favila, no meio do tumulto, a teriam,
talvez, posto em salvo! Sorriu, porém,
das minhas esperanças e conservou-se firme
no seu proposito. Mas Deus tinha ordenado
[183]
que, em vez de obter o martyrio, cahisse nas
mãos dos agarenos. De todos os que vinhamos
em sua guarda, só eu, acaso, pude escapar,
misturado com os soldados de Transfretana.
Assim, segui por algum tempo os arabes,
que se encaminham para o lado do Segisamon.
Ao anoitecer, embrenhei-me nas
montanhas. Um pastor que encontrei me serviu
de guia, até que cheguei aos pés de meu
senhor para lhe pedir a morte e para lhe jurar
que estou innocente.»
«De pé, cavalleiros! Aos infiéis, em nome
de Christo!—gritou o duque de Cantabria,
com uma voz que retumbou nas profundezas
da caverna.
Habituados ás subitas arrancadas nocturnas
contra os arabes, quando vagueiavam em
correrias longinquas, os companheiros de Pelagio
ergueram-se de salto, ainda mal despertos,
e por uma especie d'instincto lançaram
mão das armas penduradas por cima de suas
cabeças. Era solemne e tremendo o espectaculo
que apresentava a gruta naquelle alçar
repentino de tantos homens, no brilho das
armas que relampagueiavam á luz da fogueira
e tiniam umas nas outras. Entretanto Pelagio
ordenava a Gutislo que despertasse os
homens d'armas espalhados pelas choupanas
[184]
do valle e fizesse dar o signal d'encavalgar.
Era necessario partir.
No meio, porém, da revolta, havia alguem
que se conservava quedo e que parecia tranquillo.
Era o gardingo desconhecido. Encostado
á parede anfractuosa da gruta e demudado
o gesto, contemplava aquella scena com
o vago olhar de quem alongara o pensamento
para mui longe d'alli. Emquanto todos
os demais cavalleiros rodeiavam Pelagio,
indagando inquietos a causa daquelle
subito apellidar para uma correria nocturna,
elle só ficara immovel e como indifferente
ao tumulto que as vozes do duque de
Cantabria tinham excitado entre os seus guerreiros.
«Qual de vós outros cavalleiros—dizia Pelagio
aos que o rodeiavam—duvidará um
momento de que, se um mensageiro chegasse
e lhe dissesse: «vossa esposa, vossa filha, vossa
irman cahiu em poder d'infiéis» eu hesitasse
em ir ajudá-lo a arrancar essa victima
querida á bruteza cruel dos pagãos? Nenhum;
porque mais d'uma vez tenho arriscado a vida
para curar saudades e amarguras dos desterrados
como eu. Deu-me o céu uma irman;
deu-me o ultimo suspiro de meu pae uma filha;
deu-me a ternura por essa virgem, cuja
[185]
imagem vive eterna neste coração virgem
como ella, uma esposa. Quando a triste innocente
vinha abrigar-se á sombra do escudo
de seu irmão, os infiéis roubaram-ma. Viuvo
e orpham, appello para os ultimos corações
generosos da Hespanha. Por Deus, que me
ajudeis a salvar a minha pobre Hermengarda.
Como tua filha Brunehilde, ella é formosa,
Gudesteu! Como tua esposa Elvira,
ella é boa e carinhosa, Algimiro! Como tua
irman, Munio, ella é innocente e pura. Godos,
por tudo quanto amaes, salvae-a, salvae
a mesquinha!»
O nobre esforço do mancebo desapparecera
ante a idéa dolorosa da sorte que a providencia
reservara á desventurada filha de Favila.
Elle estendia as mãos unidas para os cavalleiros,
como uma creança timida que implora
compaixão.
«Partamos!—exclamaram ao mesmo tempo
os nobres foragidos.—Tua irman será salva
ou nenhum de nós voltará mais á gruta
de Covadonga!»
Uma voz trémula, mas retumbante, trovejou
por detrás delles:
«Não partireis d'aqui!»
Voltaram-se. Era o gardingo.
«Quem o ordena?—bradou Pelagio, com
[186]
toda a energia que esta inesperada resistencia
despertara subitamente nelle.
«Um homem—replicou o desconhecido,
atravessando o circulo dos guerreiros que rodeiavam
o duque de Cantabria e lançando em
volta olhos altivos;—um homem cujo coração
é ha longo tempo morto, porque as paixões
o queimaram; mas cuja intelligencia por
isso mesmo é mais fria. Quantos sois vós?
Quantos buccellarios dormem pelas tendas
desse valle? Apenas alguns centenares de lanças
poderiam, ao todo, transpôr comvosco os
passos das serras. Os infiéis e os renegados
que os servem quantos são? Se podeis contar
as estrellas que ora recamam o céu, podereis
dizer-me o numero delles. Tu, Pelagio,
braço de ferro, coração de bronze,
quem és tu? O guardador das ultimas esperanças
da cruz e da patria. Quem te deu,
pois, o direito de correres a morte certa?
Quem te deu o direito de apagar no sangue
dos ultimos godos o unico facho que alumia
as trevas do futuro da escravisada Hespanha?»
«E a ti—interrompeu furioso e arrancando
meia espada o violento Sancion—quem te
incumbiu de nos dizeres: «não saireis d'aqui?
Quem és tu, que, vindo não sei d'onde, pretendes
[187]
dominar como senhor aquelles que só
obedecem a Deus?»
O desconhecido olhou para o movimento
ameaçador de Sancion, e pelo rosto passou-lhe
um sorriso desdenhoso. Cruzou os braços
e respondeu com voz lenta e solemne:
«Por minha boca falaram milhares de godos
que gemem no captiveiro e que voltam
de continuo os olhos para os cerros das Asturias,
onde apenas fulgura tenue o sancto
fogo da liberdade: falaram por minha boca
as aras do Senhor calcadas pelos pés dos pagãos,
as imagens do Christo derribadas no
lodo, os muros ennegrecidos das cidades incendiadas.
É isto tudo que vos diz:—não saireis
d'aqui!—Perguntas quem sou? Dir-t'o-hei.
O ultimo homem que, juncto do Chryssus,
viu, combatendo, a face dos arabes vencedores,
emquanto os valentes fugiam; o homem
que tentou morrer com a patria, e que
a mão de Deus salvou para neste momento
vos dizer: «não saireis d'aqui! Queres saber
quem eu sou? Lê, Pelagio, o que escreveu
ahi Theodemiro. Dize-lhe depois qual é o
meu nome!»
E, tirando da escarcella uma tira de pergaminho
dobrada, abriu-a e entregou-a a
Pelagio.
[188]
O duque de Cantabria correu-a pelos olhos
e, deixando-a cahir em terra, murmurou:—«Meu
Deus, o cavalleiro negro!»
Os godos apinhados em roda recuaram alguns
passos, e houve um momento de ancioso
silencio.
«Anjo ou demonio, que nos explicas um
mysterio por outro mysterio—exclamou,
emfim, Pelagio visivelmente perturbado:—christãos
e arabes lembram-se ainda das tuas
incriveis façanhas nas margens do Chryssus.
Mil vezes eu proprio tenho dicto: dez como
elle haveriam salvado o imperio de Theoderik!
Devemos obedecer-te, se és um homem,
como dizes, porque vales mais que nós. Se
és o anjo que preside ao fado da Hespanha,
mais submisso ainda será o nosso obedecer.
Mas que mal te fez minha desgraçada
irman?...»
«Que mal me fez tua irman?—atalhou
com vehemencia o gardingo.—Nenhum!...
E quem te disse que não quero, que não posso
salva-la, eu que não sou anjo, que sou,
como tu, um homem? Quaes d'entre vós—proseguiu,
voltando-se para os cavalleiros que
o rodeiavam—sois n'este mundo sós e não
tendes quem na morte regue com lagrymas
a terra que vos cobrir? Quaes de vós sois,
[189]
como eu, desterrados no meio do genero-humano?
Que os orphams de coração ergam
a dextra para o céu, onde só ha um seio que
lhes receba os gemidos de amargura, o seio
immenso de Deus!»
Doze guerreiros, e entre elles o fero Sancion,
alevantaram a dextra para o ar á voz
imperiosa do gardingo.
«A cavallo!—gritou este, apertando o
largo cincto da espada e enfiando no braço
a ferrea cadeia do frankisk.—Pelagio! se
dentro de oito dias não houvermos voltado,
ora ao Christo por nós, que teremos dormido
o nosso ultimo somno, e chora por tua
irmã, cujo captiveiro já ninguem, provavelmente,
quebrará, senão o anjo da morte.
Partamos!»
Proferindo estas palavras, o gardingo atravessou
rapidamente a caverna e desappareceu
nas trevas exteriores: os doze guerreiros
escolhidos seguiram-no machinalmente,
porque os seus meneios e gesto os tinham fascinado,
ao lembrarem-se de que este homem
era o cavalleiro negro. O duque de Cantabria,
subjugado tambem pela especie de mysterio
solemne que cercava todas as acções d'este
ente extraordinario, nem ousou perguntar-lhe
por que meio intentava salvar Hermengarda.
[190]
Todavia, uma voz intima e irresistivel
lhe dizia: «resigna-te e confia». Confiado
e resignado esperou, portanto, o cumprimento
das promessas do incognito gardingo.
XIV
A NOITE DO AMIR
Arrebatada no pallor das trevas.
Breviario Gothico—Hymno
de S. Geroncio.
Era ao cahir do dia. O nordeste secco e
regelado corria as campinas do espaço, onde,
através da atmosphera purissima, scintillavam
as estrellas. O clarão de Segisamon
incendiada reflectia de longe nas brancas tendas
dos arabes, acampados a bastante distancia
dos muros da povoação destruida. Em
[192]
volta do arraial, pelas coroas dos outeiros,
accendiam-se as almenaras, a cuja luz tenue,
comparada com a do incendio de Segisamon,
se viam passar os atalaias nocturnos. Abdulaziz,
semelhante a cometa caudato, seguia
a sua orbita d'exterminio, deixando após si
vestigios de fogo. O exercito devia ao romper
da alva internar-se nos valles da Tarraconense.
Segisamon tinha na vespera offerecido um
espectaculo semelhante ao de muitas outras
cidades da Hespanha levadas á escala pelos
mosselemanos. Não só a cubiça e o desenfreiamento
da soldadesca multiplicavam ahi
as scenas de rapina, de violencia e de sangue,
mas tambem a politica dos capitães arabes
procurava augmentar a terribilidade desses
dramas repetidos para quebrar os animos
dos godos e persuadi-los á submissão. O dia
precedente a esta noite que começava tinha
sido consagrado pelos vencedores ao repouso,
depois de um duro lavor de morte e ruinas.
Os jogos, os banquetes, as dissoluções
de todo o genero haviam recompensado brutalmente
o esforço brutal dos destruidores de
Segisamon.
Ás cohortes do renegado Juliano tocava
nesta noite a vigia do arraial: eram godos
os que guardavam o campo, onde as virgens
[193]
da Hespanha tinham sido violadas; onde a
cruz captiva fora mais uma vez ludibriada;
onde os velhos sacerdotes haviam soffrido
contentes o martyrio no meio das affrontas.
Aquelles homens perdidos, rodeiando esse
montão de abominações, ainda não fartos dos
deleites infernaes em que tinham tido parte
com os infiéis, embriagavam-se, bebendo
pelos vasos sagrados, e escarneciam blasphemos
a crença da sua infancia no meio de
hedionda ebriedade.
O murmurio immenso do arraial foi amortecendo
gradualmente com o fechar da noite.
Em breve, não se ouviu nas tendas do
Islam mais que o respirar lento de tantos
milhares d'homens adormecidos nos braços
do goso. Juncto, porém, das almenaras as
risadas dos soldados do conde de Septum,
os cantos obscenos inspirados pela embriaguez,
as disputas ardentes do jogo, em que
o ouro corria de mão em mão, soavam ainda
em volta do silencio do campo. Pouco e pouco,
este mesmo ruído foi affrouxando, ao
passo que os fachos accesos nas chapadas dos
outeiros esmoreciam. A escuridão e o silencio
reinaram, emfim, até nas atalaias. Os
soldados godos, cansados de dissoluções, haviam
tambem repousado. E para que prestaria
[194]
velar? O terror que inspiravam os arabes
era o melhor guardador do arraial. Como
ousariam os christãos, medrosos atrás dos
muros dos seus castellos, salteiar o campo de
Abdulaziz? As vigias e almenaras eram apenas
uma velha formula militar, cuja significação
a serie não interrompida dos triumphos até
então alcançados tornara inintelligivel.
Pela calada, porém, da alta noite e no
meio das trevas que cobrem, como amplo
manto, aquelle turbilhão d'homens de guerra,
descansando então para ao romper do
sol rugir de novo impetuoso, vê-se ainda,
através das telas mal unidas de uma tenda
mais vasta, reverberar vivo clarão, e ouve-se
o rir alegre, o altercar, o tinir argentino das
taças; todos os indicios, emfim, de que a
orgia se prolongou ahi até mais tarde. Ao
redor da tenda jazem por terra, com os alfanges
nús junctos a si, alguns soldados da
guarda de Abdulaziz, composta dos guerreiros
mais temidos do exercito, os negros
do remoto paiz de Al-Sudan. Nos ouvidos
delles restruge debalde o alto ruído que soa
do interior do pavilhão. Dormem, tambem,
profundamente, e apenas á porta da tenda
um delles vela immovel encostado á acha
d'armas.
[195]
A tenda era, de feito, a do esforçado filho
de Musa. A mesa do banquete ainda vergava
com os restos das iguarias: os brandões
já gastos e os candieiros mortiços derramavam
uma claridade suave pelo aposento. Reclinado
sobre um almatrah cuberto de preciosa
alcatifa do oriente, o amir escutava o
mais moço dos cheiks que estavam juncto
delle, o qual, ora cantava os versos voluptuosos
de Zohèir, que accendiam a imaginação
do joven guerreiro, ora lhe repetia
os antigos poemas licenciosos e satyricos de
Ibn-Hagiar, que elle applaudia com estrondosas
risadas.
O conde de Septum e os mais capitães
godos alliados dos agarenos conservavam-se
ainda nos logares que haviam occupado durante
o banquete. Para aquella extremidade
da vasta mesa viam-se algumas amphoras
tombadas e outras ainda cheias dos vinhos
mais preciosos da Hespanha: as taças que
gyravam ao redor eram as que produziam o
tinir que soava fóra, no meio do ruído das
falas, dos gritos, e dos cantos monotonos do
cheik Abdallah.
Um guerreiro, cuja barba crespa e cerrada
lhe cahia como frócos de neve sobre os
anneis dourados do saio de malha, estava assentado
[196]
á direita de Juliano. A brancura dos
seus cabellos era o unico signal que se lhe
enxergava de uma larga peregrinação na terra;
porque o rosado da tez, a viveza dos
olhos azues, o garbo nos meneios e a robustez
dos membros agigantados mostravam
n'elle mais que muito a compleição vigorosa
de homem de boa idade. Era Oppas, o bispo
Oppas, que se esquecera do sacerdocio,
como se havia esquecido da patria, e que,
habituado á vida solta dos arraiaes, excedia
já na violencia de paixões ignobeis os mais
desenfreiados e barbaros chefes das tribus
semi-selvagens da Africa. Muitos outros tiuphados
e quingentarios, assentados ao longo
da mesa, davam mostras de infernal alegria,
despejando as taças de prata, que os libertos
lhes enchiam de novo para de novo rapidamente
se esgotarem.
«Vêde os nazarenos maldictos—dizia
Abdulaziz em voz baixa ao cheik Abdallah,
olhando de través para os godos.—O amor
da embriaguez nunca os deixará ver a luz
que mana das paginas do divino koran. Para
elles o fructo da vide será sempre a ponte
estreita, da qual, ao passarem na morte, se
despenharão no inferno.»
«E que nos importam as suas almas tisnadas—replicou
[197]
Abdallah—se elles nos ajudam
a sujeitar á lei do sancto propheta
o imperio
de Andalús? Sem Deus e sem patria,
deixae-lhes ao menos a sua bruteza.»
O bispo d'Hispalis percebeu que falavam
delle e dos outros godos, porque os cheiks
haviam volvido para lá os olhos. Erguendo-se
então com a taça em punho, exclamou em
arabico:
«Ao invencivel Abdulaziz; a um dos mais
nobres vingadores de Witiza!»
«
Alfaqui dos romanos—respondeu o amir—a
lei do propheta não consente que eu acceite
a saudação que atravessou por labios
tinctos no licor amaldicçoado por elle.»
«E que montam as maldicções do teu propheta?—replicou
Oppas em tom de gracejo.—Devemos
nós por isso deixar de saudar
o illustre filho de Musa com o abençoado e
generoso vinho dos ferteis outeiros da Hespanha?...»
«Infiel!...—interrompeu o amir, em cujos
olhos scintillara o despeito. Depois, reportando-se,
proseguiu em tom brando, mas
firme, como quem queria ser promptamente
obedecido:—Nobres cavalleiros do Gharb,
valentes cheiks do Negid, de Berryah, e d'Almoghreb,
a noite vai alta, e ao romper da
[198]
manhan é necessario partir. Que o somno
vos desça sobre as palpebras nas vossas tendas
de guerra!»
A estas palavras, godos e arabes, alevantando-se,
foram sahindo da tenda vagarosamente
e em silencio. Só o bispo d'Hispalis,
apertando a mão de Juliano, murmurou:—«Oh,
quanto fel se mistura com o prazer da
vingança! Mas cumpra-se o nosso fado.»
Ao atravessarem o arraial, os dous filhos
renegados da Hespanha notaram que nos cabeços
das almenaras a escuridão era tão profunda
como no resto do campo. Tudo, porém,
estava tranquillo. Apenas a pouca distancia
lhes pareceu verem passar como sombra
um cavalleiro, que se encaminhava para
o lado do pavilhão de Abdulaziz. Era, provavelmente,
algum soldado d'Al-Sudan, que,
transnoitado, se retrahia para o seu alojamento
juncto da tenda do amir.
Entretanto este, apenas só, começou a caminhar
agitado e a passos largos de uma até
outra extremidade do aposento, que ricos
pannos da Syria dividiam dos que occupavam
os servos. No seu gesto, turbado por
affectos encontrados, passavam successivamente
os vestigios destes: ora a indignação
lhe pesava nos sobrolhos confrangidos; ora
[199]
lhe sorria nos olhos um pensamento voluptuoso;
ora a compaixão parecia suavisar-lhe
esse feroz sorrir. Por fim, o moço Abdulaziz,
como vencido pela tempestade da sua
alma, assentou-se no almatrah e cobriu o rosto
com ambas as mãos. Conservou-se assim
por largo tempo, em silencio e quedo, até
que, a final, as suas paixões triumpharam
e rebentaram com violencia.
Batendo as palmas, o amir bradou:—«Al-Fehri!»
Um dos pannos que dividiam a tenda em
varias quadras alevantou-se de um lado, e
um vulto negro e disforme, que parecia
arrastar-se com difficuldade, encaminhou-se
para o amir. Era como um tronco de gigante
pelo espadaúdo do corpo, pela amplidão
do ventre e pela desmesurada grossura da
cabeça, onde só lhe alvejavam os olhos embaciados.
O monstro, apenas deu alguns passos,
parou, cruzando sobre o peito os braços
grossos e curtos, semelhantes a dous madeiros
informes.
«Eunucho—disse Abdulaziz com voz agitada—conduze
aqui a ultima das minhas captivas
que especialmente confiei de ti.»
O vulto recuou e, franzindo a especie de
reposteiro que lhe dera passagem, desappareceu.
[200]
Passados alguns momentos, tornou.
Uma figura de mulher, cujas fórmas mal se
podiam adivinhar através d'um raro cendal
que a cubria até os pés, acompanhava-o. Com
passo firme, ella se encaminhou para Abdulaziz,
e o eunucho desappareceu de novo.
«Filha dos christãos—disse em lingua romana
o amir—os dous dias que me pediste
para chorares o teu captiveiro passaram. Resolveste,
finalmente, ser a mais amada entre
as mulheres de Abdulaziz; ser a invejada
das donzellas do oriente e quasi a
rainha das provincias de Andalús, porque
acima de Abdulaziz só dous homens existem
na terra, o amir d'Almoghreb, aquelle que
me gerou, e o descendente do propheta, o
que rege todo o imperio dos crentes?»
«A minha resolução é morrer, quando te
approuver:—replicou a captiva com serenidade;—porque
essa resolução ha muito que
eu a tomei. Enganei-te, pagão, quando te
pedi dous dias para chorar! Escarneci de ti,
porque te abomino. Esperava que um braço
de guerreiro que vale mais que o teu viesse
arrancar-me do captiveiro. Ai de ti, se elle
soubesse qual tinha sido o meu fado! Folga,
pagão, de que a sentença fulminada por Deus
contra os filhos da Hespanha me abrangesse
[201]
tambem. Nesta hora não fora eu; foras tu
quem deveria perecer. Mas elle não pôde
salvar-me: só me resta dizer-te: infiel, tu
és maldicto de Deus: principe dos arabes,
tu és servo dos demonios: homem que me
pedes amor, sabe que eu te detesto.»
«Dize tudo:—interrompeu o amir, apertando
com força o braço da captiva e fitando
nella os olhos, onde luctavam amor profundo
e colera violenta:—exhala em injurias
a tua dôr orgulhosa: sê, até, blasphema; mas
não digas que detestas Abdulaziz; não digas
que amas um godo e que elle fora capaz de
te vir roubar da minha tenda. Desgraçado
do nazareno que se lembrasse de amar-te depois
que Abdulaziz te chamou sua. Onde se
iria esconder esse malaventurado filho de
uma raça vil e covarde, que podesse escapar
a este braço, o qual ao estender-se arranca
pelos fundamentos os vossos castellos e reduz
a pó os templos do vosso Deus e os muros
das vossas cidades?»
«Aquelle que eu cria viesse em meu soccorro—tornou
com voz firme a captiva—não
se esconderá de ti no dia em que estiverem
em volta delle todos os seus irmãos
em esforço e amor da terra natal; porque
nesse dia das grandes vinganças vê-lo-has
[202]
face a face. Muitas vezes os teus guerreiros
têem fugido diante delle; muitas vezes o incendio
dos arraiaes pagãos tem ajudado o
incendio das nossas cidades a alumiar as
trevas da noite, e a sua mão foi a que lançou
o facho sobre a tenda do agareno. Esse, ao
menos, se ainda se esconde, não é por temor
de ti, nem dos teus cavalleiros, que, tantos
por tantos e ainda em dobro, muitas vezes
tem visto fugir.»
«Entendo-te, altiva filha dos godos:—replicou
Abdulaziz.—Falas do que vós outros
chamaes Pelagio, e que só de noite ousa
saír das suas solidões das montanhas para
acommetter as tribus d'Almoghreb que fizeram
assento no conquistado Gharb ou para
assassinar os cavalleiros do deserto transviados.
Apenas Sarkosta e Tarkuna vissem
fluctuar sobre as suas muralhas os estandartes
do Islam, eu iria arrancá-lo dos seus escondrijos
para o punir. Mas tu abbreviaste
os dias do foragido nazareno. Dentro de pouco
o seu cadaver servirá de pasto ás aves do
céu, porque amou aquella que eu escolhi.»
«Deus defenderá meu irmão:—disse titubeiando
a donzella, cuja firmeza começava
a abandona-la, receiando ver cumprida a
ameaça do amir.
[203]
«Irman de Pelagio?! Oh, repete-o mil vezes!
São as prisões do sangue que te unem
ao cruel inimigo dos crentes?»
«Porque finges ignora-lo? Os velhos cavalleiros
que me acompanhavam e que comigo
foram captivos no mosteiro que profanaste
já o terão revelado.»
«Nem as promessas, nem os tormentos
poderam tirar de suas bocas o teu nome e a
tua jerarchia. Mas jura-me que és a irman
de Pelagio, e elle poderá esquivar, se quizeres,
o seu tremendo destino.»
«Fora inutil negar o que eu propria confessei.
O meu nome é Hermengarda: o duque
de Cantabria, Favila, foi meu pae, e
Pelagio é o filho e successor de Favila.»
O amir ficou alguns momentos calado com
o braço d'Hermengarda preso na mão robusta,
que ella sentia tremula com o tumultuar
dos affectos que agitavam o coração do arabe.
Este, por fim, exclamou:
«Pelo precursor do sancto propheta; por
Issa
[1], Hermengarda, que, se amas teu irmão,
me digas:—eu serei tua. Estas palavras
o farão senhor da mais rica provincia
do Andalús, daquella que elle escolher para
reinar como amir: os guerreiros que o seguem
[204]
serão os walis das suas cidades, os
kaiyds dos seus castellos: dos meus thesouros
metade será delle. As escravas que muito
hei amado não mais verão sorrir-lhes o rosto
de seu senhor. Tu serás rainha do meu
coração; rainha sem rival; senhora de tudo
sobre quanto se estende o poder de Abdulaziz,
do filho querido do invencivel Musa.
Profere só essas palavras, e a sorte de Pelagio
será invejada pelos nossos mais illustres
guerreiros!...»
No gesto do agareno todos os vestigios da
colera tinham desapparecido: só nelle se lia
a anciedade
de um amor immenso, que precisa,
mais que do goso brutal, de um sentimento
accorde com os proprios sentimentos.
Mas Hermengarda só vira affronta e opprobrio
nas palavras do amir, e o odio a este
homem, cuja natural fereza e orgulho o amor
convertera em brandura e, talvez, em submissão,
tornou-se ainda maior ao ouvi-lo. Recobrando
toda a energia da sua alma, que
por um momento vacillara, respondeu, olhando
para Abdulaziz com ar de desprezo:
«Nem sempre os valentes conquistadores
da Hespanha podem achar traidores que vendam
por ouro e honras infames os sepulchros
de seus paes e os altares do Senhor. Não!
[205]
Pelagio não acceitará nunca um logar entre
os filhos de Witiza e o conde de Septum;
porque Deus o guarda para vingador de seus
trahidos irmãos. Infiel, grande era o preço
que davas por uma filha da serva raça dos
godos: guarda-o para o empregares melhor;
para comprares as nobres e livres donzellas
do teu paiz. Tudo o que me offereces é vil;
porque vem de ti, maldicto. Só uma offerta
te acceito; ha muito que t'a pedi: a morte...
a morte, e que seja breve. Abomino-te, destruidor
da Hespanha... Não! Enganei-me!
Desprezo-te, salteador do deserto.»
Com os labios brancos e o olhar desorientado,
o amir ouvia as palavras d'Hermengarda,
e a sua fronte enrugava-se como a face
do oceano ao passar do furacão. Tremendo
silencio reinou por alguns momentos na tenda.
Com um rir abafado e diabolico, o amir
o rompeu por fim:
«A morte?—Não terás a morte: juro-t'o
pelo sepulchro do propheta. Porque a abelha
zumbiu aos ouvidos do caçador faminto,
arrojará elle para longe o mel do seu favo e
esmagará o insecto? Tu serás minha, mulher
orgulhosa; porque o meu amor é, como o
meu odio, inexoravel e fatal. Depois, quando
o incendio que me devora estiver extincto;
[206]
quando o tedio morar para mim nos teus braços,
irás cevar nas tendas dos bereberes a
sensualidade brutal dessa soldadesca selvagem.
Póde ser que teu nobre irmão venha
entretanto salvar-te!... Guarda para então as
suberbas; que hoje, pobre escrava, só te resta
obedecer á voz do teu senhor.»
Ao dizer isto, Abdulaziz, segurando com
a dextra o braço d'Hermengarda, apertou-o
com tanta violencia que a desgraçada deu
um grito de agonia e cahiu de joelhos aos
pés do arabe. O amir ergueu-a e, impellindo-a
com força, ao mesmo tempo que despedaçava
com a esquerda o raro cendal que
lhe velava o rosto, a fez cahir pallida e trémula
sobre o almatrah. Os labios da donzella
quizeram ainda proferir algumas palavras—porventura
uma supplica; mas apenas murmurou
sons inarticulados, que expiraram em
arquejar doloroso.
No seu furor, o filho de Musa não sentira
um rugido de colera que respondera ao grito
d'Hermengarda, nem um ai passageiro e sumido,
que, segundo era intimo, parecia de
homem a quem a ponta de um punhal rasgara
subitamente o coração. Nas telas, porém,
que dividiam o aposento do logar d'onde
pouco antes saíra o eunucho e que ficavam
[207]
fronteiras á entrada principal da tenda uma
figura humana se estampou negra sobre o
chão brilhante da tapeçaria. O amir, volvendo
casualmente os olhos, a viu. Crescia rapida.
Escutou. Passos ligeiros soavam no vasto
aposento. Voltou-se. Mas apenas pôde erguer
o braço: vira reluzir no ar um ferro:
vira um vulto cuberto d'armas semelhantes
ás dos cavalleiros d'Al-Sudan: sentiu um golpe
que lhe partia o braço erguido e, batendo-lhe
ainda no craneo, lhe retumbava no
cerebro. Deu um grito, fechou os olhos e
cahiu aos pés d'Hermengarda, manando-lhe
o sangue da fronte. O monstro humano que
conduzira alli a irman de Pelagio, assomou
então no topo interior da tenda: o brado do
amir o attrahira. Vendo seu senhor derribado
e juncto delle o que o feríra, o eunucho
fez uma horrivel visagem, como pretendendo
falar; mas sómente soltou um rugido acompanhado
de um gesto d'ameaça. Segundo o
atroz costume do oriente, Al-Fehri, destinado
desde a infancia ao serviço mysterioso
do harem, fora condemnado em tenros annos
a nunca imitar a voz humana. Privado da
lingua, as suas expressões eram acenos ou
afflictivos e inarticulados rugidos.
O cavalleiro observava-o. Fê-lo sorrir o
[208]
ademan feroz e ameaçador do eunucho. Tinha
previsto todas as difficuldades daquella
arriscada empreza e contava com o seu esforço
e frieza d'animo para as vencer. Ligeiro,
travou de uma das tochas que ardiam
juncto da mesa do banquete e chegou-a ás ricas
tapeçarias que forravam a tenda. A chamma
enredou-se na tela: um rolo de fumo espesso
trepou em espiraes, ennegrecendo-lhe
os recamos e lavores brilhantes. Em breve,
as labaredas abraçadas com os feixes de lanças,
com os pannos custosos, que ondeiavam
torcendo-se, treparam até o cimo e, curvando-se
espalmadas sob o tecto, romperam
em linguas ardentes aprumadas para o céu.
O incendio, espalhando ao longe a sua sinistra
claridade, erguia-se como um tocheiro
disforme acceso no meio do arraial e despertava
assim do somno profundo os soldados
d'Al-Sudan lançados em volta do pavilhão
do amir.
Mas já a este tempo o cavalleiro se affastava
do logar daquella scena medonha. As
palavras—«liberdade e Pelagio!» proferidas
por elle, tinham calado como um balsamo de
vida no coração d'Hermengarda. O desconhecido,
tomando-a nos braços, atravessou
ligeiro para o lado do arraial onde estanceiavam
[209]
os godos. Outro cavalleiro lhe tinha
de rédea dous ginetes. Hermengarda, a quem
o perigo e a esperança haviam restituido toda
a natural energia, não hesitou em acompanhar
o seu audaz e mysterioso salvador. Seguindo
os caminhos tortuosos e incertos que
as tendas do immenso arraial formavam e
guiando-se pela lua, que principiava a saír
detrás dos outeiros, os tres fugitivos encaminharam-se
para o lado do campo além do
qual as montanhas, lá ao longe, reflectiam
já o luar das cumiadas cubertas de neve.
Entretanto Al-Fehri correra a despertar
os negros da guarda do amir, e o cavalleiro
ainda ouviu os gritos destes ao contemplarem
o incendio, mais prestes em acorda-los
que o eunucho. Á entrada da tenda, o vigia
que devera despertá-los ao primeiro signal
de Abdulaziz havia adormecido de somno mais
profundo que o delles. Um punhal enterrado
na garganta até o punho lhe sellara para
sempre os labios. Os gestos de desesperação
d'Al-Fehri fizeram conhecer aos soldados o
perigo do amir. Por entre as chammas, ferido
e semi-morto, a custo poderam salvá-lo.
Pouco a pouco, o tumulto se alongou pelo arraial:
os cheiks arabes e os capitães de Juliano
corriam para o logar onde brilhava o
[210]
incendio, e, dentro em pouco, as vozes desentoadas,
o tocar das trombetas, o rufar dos
tambores, o tropeiar dos cavallos naquella
vasta planicie fariam crer a quem olhasse
para alli dos montes vizinhos que no arraial
se pelejava uma batalha nocturna.
No meio da confusão que produzíra por
toda a parte este acontecimento inesperado
e cujo motivo e circumstancias inteiramente
se ignoravam, ninguem reparou nos dous cavalleiros
e na donzella que, atravessando rapidamente
por entre as tendas dos arabes e
dos godos, se dirigiam para as atalaias do
norte. Era, porém, aqui onde os maiores perigos
aguardavam os tres fugitivos.
A revolta do campo chegara aos ouvidos
dos vigias. Sobresaltados pelo clarão que refulgia
do logar do incendio e pelo rumor que
soava dessa parte, o grito de alarma correra
de boca em boca, de uns para os outros outeiros,
que successivamente se illuminavam.
No largo gyro que tal bradar fizera, aquella
cadeia de sons uniformes fora subitamente
quebrada. Lá, na almenara do norte, nenhuma
voz respondera ao vozeiar dos esculcas;
nenhuma luz de fogueira brilhara de novo.
De cada um dos postos vizinhos, uma decania
de corredores transfretanos desceu, então,
[211]
aos valles e, subindo depois por uma e
outra encosta, vieram todas topar na coroa
do outeiro. Á claridade da lua, cujos raios
inclinados roçavam já pela terra, viram reluzir
no chão troços d'armas, e, estirados ao
pé dellas, estavam os corpos de seus donos
involtos nos saios de malha. Rapido e violento
devia ter sido o commettimento, numerosos
os cavalleiros inimigos; porque nem
um dos atalaias podera escapar. Nem um:
que todos ahi jaziam! Braço robusto tinham
por certo aquelles que assim ousavam penetrar
no campo de Abdulaziz: as feridas profundas
assignadas nos cadaveres davam disso
testemunho. Não havia que duvidar: Pelagio
salteiara o arraial. O incendio que reverberava
ao longe e o arruído como de um grande
combate diziam que o facho da vingança fora
arrojado ao meio das tendas do Islam, e que
o ferro dos defensores da Hespanha viera, nas
trevas da noite, lavar com sangue o logar dos
banquetes, tincto ainda de vinho e immundo
de prostituição.
Este pensamento passou fugitivo e confuso
pelo espirito dos guerreiros, que olhavam
como petrificados para a scena de morte que
tinham ante si a qual, de um lado, era alumiada
pela luz debil da lua nascente, e, do
[212]
outro, pelo clarão avermelhado e ainda mais
frouxo do incendio ao longe. Um correr de cavallos
que subiam ligeiro a encosta da banda
do arraial lhes divertiu a attenção. Volveram
para lá os olhos. Tres vultos a cavallo se dirigiam
para alli. Dous, cubertos de armas escuras,
ladeiavam o terceiro, cujas roupas alvejavam
ao luar. Os corredores transfretanos
adiantaram-se para elles. Ao aproximarem-se,
viram que o vulto branco era de
mulher e que os outros trajavam saios e elmos
e traziam achas d'armas. Eram em tudo
semelhantes aos guerreiros d'Al-Sudan que
compunham a guarda do amir.
Um dos dous cavalleiros affastou-se da
donzella e, dirigindo-se aos capitães das decanias,
unidas no topo do outeiro, disse-lhes
em romano, com voz que simulava profunda
colera:
«Os inimigos entraram no campo e accommetteram
a propria tenda de Abdulaziz.
Os soldados do conde de Septum lhes deram
passagem; porque a elles estava confiada a
guarda do campo. Em qual das atalaias estão
os traidores?»
«Os valentes da Transfretana nunca mereceram
esse nome—replicou um dos decanos
ou capitães dos esculcas.—Foi aqui onde
[213]
deram o passo aos inimigos; mas o caminho
destes foi por cima dos seus cadaveres. Julgae-os.»
E as duas decanias affastaram-se para os
lados. Vinte cadaveres estavam lançados por
terra.
«Sobre elles não cahiu o opprobrio na sua
ultima hora:—disse o guerreiro depois de
contemplar um momento aquelle espectaculo.—Abdulaziz
ordena que se guardem estreitamente
as saídas do campo. Não tardam
os cavalleiros zenetas que vem ajunctar-se
nas atalaias comvosco, a fim de que nenhum
infiel possa escapar, emquanto nós vamos conduzir
para logar seguro, fóra do arraial revolto,
a escrava querida do amir. Vinde!—proseguiu
elle, voltando-se para o companheiro.
Atravessando por entre os soldados tingitanos,
a donzella e os seus libertadores começaram
a descer apressadamente a encosta.
Já os tres fugitivos íam a alguma distancia,
quando, como tomado de uma idéa subita,
um dos esculcas exclamou:
«Aquelle homem é godo!—Nenhum arabe
fala assim a lingua romana: muito menos
os broncos guerreiros d'Al-Sudan. Por minha
fé, que são inimigos!»
[214]
Os acontecimentos inesperados dessa noite,
a incerteza em que se achavam os esculcas
sobre o que succedia no arraial, a rapidez
com que se passara esta scena e, sobretudo,
a audacia e o tom imperativo com que
o desconhecido falara não haviam dado logar
á reflexão e ás suspeitas. Mas as palavras do
soldado foram para todos um raio de luz:
«Tens razão, buccellario:—atalhou o capitão
da decania.—Fazei-os parar.»
Os tres, que já íam a meia encosta, ouviram
muitas vozes clamar:—esperae!
«Somos perseguidos!—disse em voz baixa
aquelle que ficara juncto da donzella emquanto
o outro falava com os vigias.
«Está salva!—respondeu o companheiro,
que parecia ter concentrado todos os seus cuidados
n'um pensamento unico, a fuga d'Hermengarda.
Duas frechas lhes sibillaram então por
cima das cabeças.
«Covadonga e Pelagio!—gritou o que proferira
as ultimas palavras. Eram chegados á
raiz do monte, juncto ao qual uma planicie
inculta e cuberta d'urzes se estendia até ir
topar com os bosques que povoavam os primeiros
cabeços das serranias septemtrionaes.
A esta voz, lá na orla da floresta, ao cabo
[215]
do sarçal, surgiram de repente uns reflexos
metalicos, que se agitavam trémulos, semelhantes
á phosphorencia de um marnel por
noite sem lua. Depois, o grito de—Covadonga
e Pelagio—foi repetido daquelle lado da
gandra, como respondendo ao que soltara o
cavalleiro.
«São os nossos valentes irmãos—disse ao
companheiro o que falara com os decanos
das tiuphadias transfretanas.—São nossos irmãos,
que nos esperam. Tu, Sancion, guiarás
ao meio delles a nobre irman do duque de
Cantabria. Entretanto eu reterei aqui os miseraveis
renegados, que já descem do outeiro
a perseguir-nos; retê-los-hei emquanto alcançaes
a entrada do bosque e vos embrenhaes
na serrania, seguindo ao norte. A agrura
das montanhas e a profundeza dos valles
das Asturias demorarão os inimigos, quando
eu haja de perecer e não podér embargar-lhes
os passos. Ide-vos.»
«Não perecerás sem mim, cavalleiro negro:—replicou
o fero Sancion.—Cumprirei
o que ordenas, porque jurei obedecer-te
cegamente emquanto não salvassemos a irman
de Pelagio. Mas, apenas alcançar a orla
da floresta onde mandaste esperar os nossos
dez companheiros, voltarei com todos os que
[216]
me quizerem seguir. Para guiar a filha de
Favila bastam dous guerreiros: o resto não
bastará, talvez, a reter durante o tempo necessario
para a fuga a turba dos infiéis que
se approxima.»
E, sem esperar a resposta do cavalleiro
negro, Sancion adiantou-se, dizendo á donzella,
que apenas podera perceber algumas
palavras truncadas da conversação dos dous:
«Partamos!»
E a galope, acompanhado d'Hermengarda,
brevemente se alongou pela vereda torcida,
que se distinguia no meio das moutas,
como beta alvacenta estampada no tapete escuro
das sarças.
A attenção do cavalleiro negro, que os seguira
com os olhos, foi, porém, distrahida
para o outro lado pelo tropeiar, já pouco
distante, dos corredores transfretanos, que a
toda a brida se acercavam delle. Era chegada
a occasião de mostrar o extremo do seu
esforço.
XV
AO LUAR
Das brenhas através affugentando-os,
C'o a rapida carreira á ponte impelle-os.
Officio Mosarabe—Hymno de S. Torquato.
Os soccorros dados immediatamente a
Abdulaziz tinham-lhe restituido o sentimento
da vida. O clarão da sua tenda, que ainda
ardia a poucos passos do logar para onde o
haviam transportado, foi a primeira cousa
que lhe feriu a vista ao descerrar os olhos
do lethargo em que estivera submerso. Esse
[218]
facho desmesurado, cujo fóco vermelho lhe
apparecia cuberto de vasta cupula de fumo
negro, o crepitar do incendio, o rumor e
alarido do arraial e a inquietação que se lia
nos gestos dos que o rodeiavam retraçaram-lhe
subitamente no espirito a scena que se
passara, pouco antes, naquelle pavilhão incendiado.
Era um quadro complexo e terrivel;
e o primeiro signal de vida que o amir
deu foi um grito d'horror e desesperação.
Alçando violentamente o corpo, ficou assentado
sobre o almatrah em que estava deitado.
Com o rosto livido e tincto do sangue
que lhe corria da fronte e o olhar espantado
e feroz, hesitar-se-hia ao vê-lo, se esse
vulto era o de um homem vivo, se o de um
morto que, afastando o sudario, se fosse a
erguer da tumba para revelar algum dos temerosos
mysterios que encerra a apparente
quietação do sepulchro. Parecia que o aspecto
do amir convertera em estatuas todos
os circumstantes: a immobilidade era completa,
e o silencio profundo.
Mas uma e outra cousa duraram apenas
rapido instante. Com a voz rouca e affogada,
o arabe rugia:
«Segui-o! segui o infiel!... As suas armas
são negras e semelhantes ás dos guerreiros
[219]
d'Al-Sudan... A melhor cidade do
Gharb e a mais bella das minhas escravas
a quem m'o trouxer vivo aqui. Todos!...
Ide, trazei-m'o vivo! Prestes, cheiks, walis,
kaiyds, cavalleiros do propheta! Prestes! correi
após o meu assassino!»
As palavras de Abdulaziz revelavam o delirio
da sua alma; cheiks, walis, e kaiyds
olharam tristemente uns para os outros e
não fizeram um unico movimento.
«Que! Não me obedeceis? Não obedeceis
ao filho de Musa—exclamou o amir—porque
a sua voz não soa no meio das trombetas
e tambores; porque elle não cinge a espada,
nem cavalga o seu corcel de batalha?
Sem mim, atterram-vos as solidões das montanhas?
Cheiks do Sahará e de Barca, walis
d'Andalús, kaiyds e almocadens do exercito
dos crentes... sois covardes e desleaes.
Quando corre este sangue, vós não sabeis
vingá-lo!»
«Não somos desleaes nem covardes, Abdulaziz:—interrompeu
o mancebo Abdallah, o
unico dos chefes arabes que ousava replicar
ao amir nos seus violentos accessos de furor.—Mas
como queres que te obedeçamos, se
não sabemos de quem te havemos de vingar?
De um individuo ou de milhares delles; dos
[220]
adoradores de Deus ou dos infiéis nazarenos;
de nossos irmãos ou de nossos inimigos, não
nos importa! Terás a vingança que pedes,
inteira quanto mãos d'homens a podem dar.
A torrente dos teus cavalleiros espera, apenas,
que profiras um nome e apontes um logar,
para correr destruidora e irresistivel.
Não deves antes d'isso condemnar-nos.»
«Quereis um nome e um logar?—interrompeu
o amir.—Ainda, pois, não os adivinhastes?
Pelagio e as montanhas do norte.
Lá, lá!... Era elle ou um demonio o que
me feriu... Porque?... Quando?... Oh, agora
me lembra. Ía possuí-la, e roubaram-m'a!
Por alto preço pagarão
os nazarenos d'Al-Djuf
tanta audacia. A cavallo os almogaures
do deserto... Persegui-o até o encontrardes.
Mas vivo... quero-o vivo em minhas mãos!
Ai daquelle que o matar!»
Alguns dos cheiks íam já a saír da tenda
para executar as ordens do amir. Um brado
subito deste os fez parar.
«Não!... Não partireis sem mim! Quero
acompanhar-vos; hei-de acompanhar-vos pelas
brenhas e desvios; quero assistir á carnificina
desses malaventurados que ainda resistem
aos decretos de Deus. É preciso que
em breve estejam nas minhas mãos Pelagio
[221]
e sua irman. Ambos!... Que me tragam
ambos!»
D'ahi a pouco, umas andas forradas de
telas preciosas recebiam Abdulaziz, conduzido
para alli sobre o mesmo almatrah ensanguentado
em que os medicos judeus lhe
haviam ligado as feridas. Rodeiavam as andas
os cavalleiros negros de Al-Sudan. Duzentos
bereberes, filhos das serranias do Atlas,
estavam, tambem, em volta dellas: estes deviam
transportá-las a gyros pelos alcantis das
Asturias. As renques de tendas alvejantes,
ponteagudas, formando uma como vasta cidade,
que, ao subir da lua, davam ao arraial
o aspecto de um cemiterio do oriente, sem
os cyprestes funebres e esguios; toda essa
multidão de pavilhões brancos, semelhantes
a um mar de pyramides, havia desapparecido,
e, apenas, o luar, batendo nos ferros das
lanças dos esquadrões cerrados e na geada
que cahia sobre os turbantes dos cavalleiros,
refrangia trémulo um clarão prateiado.
E o sussurro que se ouvia entre tantos
milhares de homens era, apenas, o murmurio
das respirações oppressas pelo frio nocturno
e o resfolegar dos ginetes, aspirando o
nevoeiro humido que se alevantava da terra.
Mas lá, na vanguarda, para o lado das
[222]
atalaias do norte, d'onde se descortinavam
os topos recortados das montanhas sobre o
chão claro do céu, como fileira de gigantes
petrificados durante uma dança de embriaguez,
tão phantasticos eram os seus contornos,
ouvia-se o ruído alto e indistincto do
cruzar de muitas vozes, do tropeiar de muitos
cavallos: viam-se lampejar as armas nos visos
dos dous ultimos outeiros que por aquella
parte rodeiavam o campo, e agitarem-se ondas
de vultos humanos e sumirem-se, onda
após onda, como se os devorasse voragem
aberta de subito debaixo dos seus pés: eram
os cavalleiros que transpunham a eminencia. O
exercito, detrás daquelles dous outeiros, que
formavam como um ponto unico, vinha successivamente
engrossando até o logar em que
estava Abdulaziz. Parecia um desmesurado
triangulo de ferro, a ponto de ir bater na
muralha da serrania, que, vestida com a sua
armadura de selvas, esperava o embate daquelle
disforme vaivem, que já começava a
oscillar ante ella.
Uma scena horrenda se passava, entretanto,
além das atalaias, no extenso sarçal que
se estendia até o sopé das primeiras montanhas.
Os soldados transfretanos tinham-se
lançado pela encosta abaixo atrás dos fugitivos.
[223]
Ao chegarem á planicie, um dos tres
desconhecidos estava diante delles, esperando-os
quedo no meio da estreita trilha aberta
por entre as urzes. A acha d'armas goda e
a cadeia que lh'a prendia ao braço reluziam
unicamente naquelle vulto, cujo saio e cavallo
negros e cujo silencio profundo faziam
lembrar um desses espectros errantes alta
noite pelos logares desertos.
Os outros dous vultos galopavam a alguma
distancia, encaminhando-se para a orla do
bosque, onde continuavam a reverberar reflexos
de armas polidas.
«Quem és tu?—disse um dos capitães das
decanias, dirigindo o cavallo para o vulto negro.—Quem
és tu, que ousaste enganar os
atalaias do campo d'Abdulaziz, os guerreiros
do conde de Septum?»
«Sou um homem que aínda não renegou
nem da cruz, nem da Hespanha; um homem
que não acceitou o ouro dos barbaros para
ser o assassino covarde de seus irmãos.»
«Miseravel, que ajunctas ao engano a insolencia!—rugiu
o decano, alçando a espada.—As
derradeiras palavras de orgulho e
rebeldia acabam de sair-te dos labios.»
Ultímas palavras foram, porém, as do decano:
a borda gyrou sibilando no ar, e o
[224]
guerreiro transfretano cahiu para o lado morto,
como se o fulminara o raio.
Com um grito de horror e de colera, os
que o seguiam precipitaram-se para o desconhecido.
Rodeiado de quasi vinte homens, o cavaleiro
negro repetia apenas uma parte das
gentilezas que practicara na fatal jornada do
Chryssus. A cada golpe da borda respondia
um gemido de moribundo; depois, uma injuria
ameaçadora dos que ficavam; depois,
um rir de desprezo do cavalleiro, e, d'ahi a
pouco, um novo gemido d'alma que se despedia
da terra. O tropel dos pelejadores rareiava
de instante a instante.
Mas os que expiraram não ficarão sem
vingança. Os cabos das decanias, antes de
seguirem os fugitivos, tinham enviado um
buccellario que relatasse a Juliano o que
succedera na atalaia e como elles íam no alcance
daquelles a quem irreflectidamente haviam
dado passagem. O buccellario fora encontrar
o conde juncto de Abdulaziz. A sua
narração e o que se passara na tenda do amir
eram dous factos que mutuamente se explicavam.
Os esquadrões mais bem encavalgados
foram despedidos logo em seguimento
dos fugitivos. Na idéa de que só Pelagio podia
[225]
ter audacia bastante para vir accommetter
o filho de Musa na sua propria tenda, os
capitães do exercito mosselemano não duvidaram
um momento de que fosse elle o desconhecido.
Colhendo-o ás mãos antes de se
unir aos seus montanhezes, o exterminio destes
sería facil empreza. Assim, os melhores
almogaures deviam perseguil-o sem descanço
nem treguas até o captivarem. Sendo assás
numerosos para resistirem a qualquer recontro
inesperado dos godos das Asturias, bastaria
que o grosso do exercito os seguisse de
perto para fazer que a victoria fosse indubitavel
e completa.
Uns após outros, os esquadrões dos almogaures
desciam já dos outeiros: o ruído do
combate e o brilho das armas serviam-lhes
de guia. Pareciam rolar pela encosta e, cegos
na carreira, atufavam-se no mato, que
estalava debaixo dos leves pés dos ginetes
arabes. O cavalleiro viu-os e pensou. Esperar
a pé firme milhares d'homens não era
esforço, era loucura. Além disso, os seus
companheiros deviam ter-se já embrenhado
nas selvas com a irman de Pelagio. Até ahi
não fizera mais do que defender-se dos soldados
transfretanos que o cercavam; mudando,
porém, da defensão para o commettimento,
[226]
arrojou-se contra os seus adversarios,
e em poucos instantes os que não cahiram
ante a acha d'armas foram constrangidos a
fugir, buscando amparar-se no meio dos esquadrões
que se approximavam.
Então o cavalleiro deu volta. A senda alvacenta
que se estirava por entre o mato
até a floresta começou a embeber-se-lhe debaixo
dos pés do ginete. Á vista, assemelhava-se
a um rolo de fita, estendido e retesado
por momentos, que, solto, busca, volvendo-se
de novo, a sua curvatura anterior. A rapidez
da corrida era quem o podia salvar: a dianteira
dos almogaures arabes hesitara vendo
recuar tantos homens diante de um homem
só; porém, ao retroceder do cavalleiro, lançavam-se
despeiadamente após elle para o alcançarem
antes que chegasse ao bosque.
Mas a distancia que os separava era grande,
e os arabes, lançando-se ás cégas por
entre as sarças e enredando-se nellas, retardavam-se
a si proprios e augmentavam essa
distancia. A sua alarida, que ía retumbar ao
longe nas anfractuosidades da serra, ajudava
o esporeiar do guerreiro com o espanto que
produzia no agil e robusto ginete.
Já bem perto do extremo da selva, o cavalleiro
pôde distinguir uns vultos que pareciam
[227]
espera-lo. Ao seu bradar—Covadonga
e Pelagio!—respondeu o mesmo brado, proferido
por uma voz retumbante. Conheceu-a:
era a de Sancion. O fero gardingo cumprira
a sua promessa. A despedida dos christãos
do campo de Abdulaziz devia ficar escripta
com letras de sangue na historia dos triumphos
do Islam.
Chegando á orla do bosque, as primeiras
palavras que o cavalleiro negro soltou foram
dirigidas a Sancion:
«Porque voltastes sem vo-lo eu ordenar,
vós os que tinheis jurado obedecer-me em
tudo? Onde está a irman de Pelagio?»
«Segue os desvios da serra: respondeu Sancion.
Astrimiro e Gudesteu a acompanham:
Hermengarda está salva. Só até este ponto
nos ligava o juramento que démos. Foste
nosso capitão: agora cessaste de o ser. Homens
livres n'uma terra serva, queremos combater
onde tu combates, morrer se tu morreres.
Ao menos—accrescentou em tom amargo—não
poderás dizer de novo que foste
o ultimo no pelejar em quanto os valentes
fugiam.»
«Louco!—exclamou o cavalleiro negro.—Juncto
do Chryssus a Hespanha pedia aos
seus filhos que morressem sem recuar: aqui
[228]
é tambem a patria que exige dos seus ultimos
defensores que não se votem a morte
inutil. Fujamos! vos digo eu: porque a fuga
não póde deshonrar aquelles que mil vezes
tem provado quanto desprezam a vida. Vede...
Não são apenas alguns corredores que nos
perseguem: são esquadrões e esquadrões d'agarenos
que transpõem após nós a assomada.
Mas elles não o escutavam: Sancion, seguido
dos seus nove companheiros, investia
com os arabes, que tinham entretanto chegado.
Semelhante á segure, entrando no amago
do carvalho, sob os golpes do robusto lenhador,
aquelle punhado de homens, a cuja frente
se achava Sancion, penetrou no massiço
da cavallaria arabe. O ferir das espadas nos
saios e elmos retiniu n'um som estridente, e
a alarida dos sarracenos foi cortada por momentaneo
silencio: depois, ouviram-se alguns
gemidos abafados, a que succederam novos
gritos de ameaça e furor e o bater e o reluzir
trémulo do ferro, cruzando-se com o
ferro, e o tropeiar confuso dos ginetes em
recontro bem travado. Os arabes haviam parado
diante de tanta ousadia. Mas, logo que
o primeiro espanto passou, os dez guerreiros
christãos, accommettidos por todos os
[229]
lados, começaram a recuar. O cavalleiro negro,
que ficara quedo, disse-lhes então:
«Quizestes tentar o Senhor com uma façanha
inutil, e o Senhor vos abandona. Salvae
as vidas! Exige-o o desaggravo da cruz
e a liberdade da Hespanha!»
E pondo-se ao lado de Sancion fez gyrar
a sua borda destruidora no meio dos infiéis.
Naquelle impeto os inimigos tambem recuaram,
e o cavalleiro, aproveitando este rapido
instante, proseguiu:
«Aos que se envergonham de poupar a
vida, para a perder com gloria quando o
dia do sacrificio chegar, darei eu o exemplo!
Podeis dizer aos nossos irmãos que o
primeiro em fugir foi aquelle que nunca fugiu;
foi o cavalleiro negro!
E, voltando as costas aos agarenos, internou-se
na espessura.
Habituados a considerar o desconhecido
como um ente mysterioso e extraordinario,
os guerreiros de Sancion deram volta, e o
orgulhoso gardingo viu-se obrigado a imitá-los.
Ei-los vão! Endireitando a carreira para
o lado do norte, dirigem-se após Hermengarda,
emquanto os almogaures arabes, guiados
pelo ruído dos ginetes, os cerram de
[230]
perto. Os esquadrões, penetrando na selva,
assemelhavam-se a uma serpe disforme, que
se desenrolava, colleiando e estirando-se por
entre o arvoredo, e que de momento a momento
ameaçava tragar os fugitivos, os quaes
mal podiam conservar uma pequena distancia
entre si e os seus implacaveis perseguidores.
A lua passava então nas alturas do céu.
O ar, postoque frio, estava manso e diaphano.
Era uma formosa noite de inverno; mais
formosa que as socegadas noites do estio. As
arvores, na maior parte desfolhadas, deixavam
o luar, por entre os ramos despidos e
tortuosos, desenhar no chão figuras extranhas,
que vacillavam indecisas: os robles nodosos
e calvos, misturados com os rochedos
pyramidaes, que se alevantavam irregulares
e phantasticos nas arestas das encostas ingremes,
nas lombadas penhascosas das serras,
pareciam fileiras de demonios, caminhando
de roldão a despenharem-se nos valles ou
dançando nos visos das alturas. Os cavalleiros,
correndo á redea solta, sentiam coar-lhes
nas veias involuntario terror, augmentado
pelo estrupído soturno da cavallaria sarracena,
que soava e ía morrer a grande distancia
n'um quasi imperceptivel sussurro.
A furia da carreira crescia ao passo que
[231]
os fugitivos se embrenhavam na maior espessura
da floresta. Durante algum tempo,
elles tinham podido descortinar os pincaros
das montanhas e, lá muito ao longe, os mais
altos cabeços do Vinnio, que reflectiam o
luar no seu manto prateiado de neve.
Mas a selva já começa a rareiar, e os ginetes
a resfolegarem com mais violencia: d'instante
a instante os cavalleiros christãos, espreitando
as estrellas do horisonte, que lhes
servem de guias, vêem fugir aquella teia enredada,
que as franças das arvores lhes affiguram
como lançada sobre o chão claro do
firmamento. Menos frequentes, as bastas e
perennes folhagens dos medronheiros passam
como globos negros, que, elevando-se a pouca
altura da terra, voam despedidos, por um e
por outro lado, para trás delles. É que os onze
guerreiros principiam a galgar as alturas que
são como a base irregular das montanhas,
como o pedestal commum d'aquelles obeliscos
da creação. O galope dos corceis dá um
som aspero de ferro batendo em pedra, e o
alvejar desta revela que as torrentes passaram
por lá e arrastaram a relva e os musgos
que a humidade fizera nascer no outono
sobre o pó, accumulado nos barrocaes pelas
ventanias do estio. Naquelle solo pedregoso
[232]
e revolto torna-se mais difficultosa a fuga, e
o impeto da carreira affrouxa visivelmente.
Os arabes começam a saír d'entre os arvoredos
e a approximar-se dos christãos. Emquanto
estes tenteiam a medo o chão malgradado,
que lhes rola debaixo dos pés dos
cavallos, porque para elles o tropeçar, o vacillar
é a morte, os seus numerosos perseguidores,
attentos só a alcançá-los, galgam
por cima do desgraçado almogaure que, derribado
pelos proprios companheiros, expira
sem combate, sem gloria e sem que a perseguição
dos fugitivos deixe por isso de ser,
como até ahi, incessante, implacavel, vertiginosa.
Depois de subirem a encosta, o cavalleiro
negro e os que o seguiam viram alongar-se
diante delles uma chapada plana, em cujo
topo a serra se alteiava de novo, com os seus
mil accidentes de cordilheiras cortadas, de
algares profundos, de gargantas selvosas, ao
lado das quaes os picos agudos se atiravam
para o ar ou pendiam sobre os abysmos e
torrentes. A natureza, mais rude naquellas
paragens, tinha um aspecto soturno, vista assim,
ao perto e á luz da lua: era como um
oceano tempestuoso, onde todas as gradações
da morte-cor se confundiam e misturavam,
[233]
desde a brancura desbotada e pallida
do rochedo até a pretidão fechada dos pinheiros
retinctos nas sombras da noite.
E por aquella dilatada chan os onze esforçados
largam redeas aos ginetes e ensanguentam-lhes
o ventre com o esporeiar
incessante: o ruído do proprio correr já não
o sentem; confunde-se no estrépito do esquadrão
d'arabes que de mais perto os segue.
A vingança vai-lhes no alcance; e, se
algum volve atrás os olhos, aquelle turbilhão
ennovelado que rola após elles, negro,
rapido, tortuoso, composto de centenares de
vultos, cujos olhos affogueiados reluzem nas
trevas, cujos dentes alvejam como os do javali
irritado, assemelha-se-lhes a uma legião
de demonios, e a um rir infernal o tinir das
espadas, o resfolegar dos cavallos, e o murmurar
dos cavalleiros, que parece entoarem-lhes
já o hymno da morte.
Na extensa chapada, tanto a fuga como
a perseguição eram um phrenesi, um delirio.
Christãos e mosselemanos desappareciam
por entre as sarças cubertas de orvalho, e o
ar, dividido violentamente, zumbia-lhes em
roda, como um gemido contínuo. Christãos
e mosselemanos punham o extremo da diligencia
nesta ultima tentativa. Além da planicie,
[234]
os alcantis e as selvas gigantes eram
a esperança de uns, o desalento d'outros.
Alli, os precipicios cortavam subitamente os
caminhos abertos pelas feras nas balsas, e ao
cabo de valle fundo os rochedos fechavam
imprevistamente a saída: aqui, a senda tortuosa
ía morrer na torrente; lá, a torrente
em catadupa. Os godos, affeitos áquelles desvios
alpestres, sabiam-no; os arabes adivinhavam-no
ao descortinarem o espectaculo
que tinham ante si, essa especie de cahos
nascido das grandes convulsões do globo na
sua vida de muitos seculos, que a baça claridade
da noite tornava ainda mais phantastico.
Emfim, os christãos atravessam a campina
e começam a embrenhar-se nas solidões
das mais agras montanhas. Os agarenos redobram
então de energia; mas debalde. Poucos
passos medeiam entre uns e outros, e
os fugitivos sentem já o resfolegar dos cavallos
e o respirar alto dos inimigos; mas
esse espaço não se encurta. Ahi, parece estar
de permeio o braço da providencia, que
quer salvar os defensores da cruz. Furiosos,
esquecidos da vontade de Abdulaziz, que exige
para pasto dos tormentos aquellas poucas vidas,
os guerreiros do amir despedem de longe
as lanças, que vão pela maior parte cravar-se
[235]
nos troncos dos robles. Duas, porém, silvam
por entre os fugitivos; ao mesmo tempo
dous ginetes param, vacillam e cahem. São
os de Viterico e Liuba, os mais moços dos
onze guerreiros. Sem transição, sem esperança,
o espectro da morte se lhes ergue diante
dos olhos fatal, incontrastavel.—Oh minha
mãe, vem receber teu filho!—foram as unicas
palavras que proferiu Viterico. Era ás
recordações maternas e á saudade que esse
ultimo grito de um moribundo cheio de vida
se dirigia. Liuba tambem murmurou um nome;
mas só elle e Deus o ouviram. Era o
da sua amante, violada e morta na tomada
d'Emerita. No transe final, aquella alma pura
não revelara aos homens o mysterio do amor,
da desesperação e do sepulchro. Orpham no
mundo, separado daquella em quem empregara
o affecto de um coração virgem e que
tão tristemente perdera, Liuba, solitario sobre
as ruinas da Hespanha e sobre as ruinas da
propria existencia, era o primeiro em se arrojar
aos perigos; e nessa noite, emfim, chegava
para o desgraçado a hora appetecida do
repousar eterno.
Debalde os almogaures dianteiros tentaram
suster a corrida, para colher ás mãos
os dous godos derribados. Impellidos pelos
[236]
que os seguiam e arrastados pela propria furia,
galgaram por cima delles; e quando, aos
gritos dos almocadens, ao soffreiar dos cavallos,
ao baralharem-se os esquadrões em
mó apinhada e ao abrirem aos lados, poderam
erguê-los do chão onde jaziam, as suas
almas tinham subido ao céu, e os seus cadaveres,
esmagados, sanguinolentos, desconjunctados,
eram duas cousas informes, em
que apenas se divisavam vestigios de vultos
humanos.
Logo que Viterico e Liuba cahiram, um
movimento incerto de hesitação affrouxara
um pouco a fuga dos seus companheiros; mas
a voz de—ávante—proferida pelo cavalleiro
negro, lhes troou nos ouvidos, e essa voz foi
seguida de algumas palavras travadas de lagrymas,
de que davam visivel signal o trémulo
e cortado com que eram proferidas:
«As almas de dous martyres sobem neste
momento ao céu: elles orarão ao Senhor para
que salve a liberdade e a vida de seus irmãos,
que só querem uma e outra para combaterem
pelos altares do Christo.»
Dictas estas palavras, o cavalleiro negro
cravou as esporas no ventre do ginete e repetiu:—ávante!—
E os outros godos seguiram-no sem hesitar
[237]
mais: a carreira tinha-se convertido
n'uma especie de furia louca e desesperada.
Os almogaures, desordenados já, retidos
pelas diligencias que faziam para alçar os
dous cadaveres, e embaraçando-se uns aos
outros, viram desapparecer os godos n'uma
garganta estreita, entre rochedos e balsas,
emquanto os almocadens lhes bradavam tambem—ávante!—
E os primeiros que poderam obedecer-lhes
atiraram-se por aquella especie de fojo cavado
pelas torrentes de muitos seculos; mas
as sinuosidades da penedia encobriam-lhes
os godos, e, obrigados a parar frequentemente
para conhecerem a que parte elles se encaminhavam,
cada vez sentiam mais remoto
e tenue o tropel dos ginetes.
Dir-se-hia que as palavras do cavalleiro
negro haviam sido propheticas: o sangue dos
dous martyres fora, talvez, o preço da redempção
dos fugitivos.
XVI
O CASTRO ROMANO
A desconforme profundeza do alto
precipicio ahi está patente: elle gera
terror no homem que o contempla de
cima.
Valerio
Bergidense—Explanações.
A hora de amanhecer approximava-se: o
crepusculo matutino alumiava frouxamente
as margens de rio malassombrado, que corria
turvo e caudal com as correntes do inverno.
Apertado entre ribas fragosas e escarpadas,
sentia-se mugir ao longe com incessante
ruído. A espaços, destorcendo-se em
[239]
milhões de fios, despenhava-se das catadupas
em fundos pegos, onde refervia, escumava
e, golfando em olheirões, atirava-se, massiço
e atropelando-se a si mesmo, pelo seu leito
de rochas, até de novo tombar e despedaçar-se
no proximo despenhadeiro. Era o Sallia,
que, de quéda em quéda, rompia d'entre
as montanhas e se encaminhava para o
mar cantabrico. Perto ainda das suas fontes,
o estio via-o passar pobre e limpido, murmurando
á sombra dos choupos e dos carvalhos,
ora por meio das balsas de carrascos
e silvados, que se debruçavam, aqui e
acolá, sobre a sua corrente, ora por entre
penedias calvas ou corregos estereis, onde em
vão tentava, estrepitando, recordar-se do seu
bramido do inverno. Mas, quando as aguas
do céu começavam nos fins do outono a fustigar
as faces pallidas dos cabeços, a ossada
núa das serras, e a unir-se em torrentes pelas
gargantas e valles, ou quando o sol vivo
e o ar tepido d'um dia formoso derretiam
as orlas da neve que pousava eterna nos picos
inaccessiveis das montanhas mais elevadas,
o Sallia precipitava-se como uma besta-fera
raivosa e, impaciente na sua soberba, arrancava
os penedos, alluía as raizes das arvores
seculares, carreiava as terras e rebramia com
[240]
som medonho, até chegar ás planicies, onde
o solo o não comprimia e o deixava espraiar-se
pelos paúes e juncaes, correndo ao mar,
onde, emfim, repousava, como um homem
completamente ebrio que adormece, depois
do bracejar e lidar da embriaguez.
Na margem direita do rio, que então passava
grosso de cabedaes por um dos valles
que retalham as montanhas das Asturias no
seu pendor occidental, viam-se ainda no principio
do oitavo seculo as ruinas de antigo
castro ou arraial romano. Jaziam estas em
uma especie de promontorio de rochas pendurado
sobre a veia d'agua e talhado quasi
a pique por todos os lados. Na borda de espaçoso
lagedo, que formava como uma eira
irregular, avultavam fragmentos de grossos
pannos de vallos de pedra, e no alto de uma
ladeira ingreme que conduzia á entrada daquelle
circuito achavam-se os vestigios de
uma porta de campo, provavelmente a pretoria:
a decumana, fronteira a ella, fazia, fóra
do vallo, um limitado terreirinho, em cujo
topo, e a bastante profundidade passava o
rio negro e veloz com mugido contínuo. Ainda
na borda do rochedo aprumado sobre a agua
se enxergavam alguns orificios profundos, que
mostravam terem servido para embeber as
[241]
traves de ponte lançada para a outra margem,
tambem elevada e penhascosa. A situação
daquellas ruinas, a fórma quasi circular
dos vallos e a sua disposição interior
evidentemente indicavam um desses hibernáculos
ou arraiaes do inverno levantados pelas
legiões de Roma nas suas tentativas repetidas
e quasi sempre inuteis para subjugar
os celtiberos das cordilheiras da Cantabria
e das Asturias.
A ponte romana, porém, se outr'ora ahi
existira, haviam-na consumido as injurias das
estações. Em logar della, os habitantes daquelles
desvios tinham tombado através do
Sallia um roble gigante, um dos filhos primogenitos
da terra que nos seus dias seculares
fora enredando as raizes nos seios da
pedra, até irem beber no leito do rio. A arvore
monstruosa, derribada por cima da corrente,
caira sobre o alcantil fronteiro e vivia
de uma vegetação moribunda, que mal podia
conservar através do cepo, arrancado quasi
inteiramente do sólo. Calva e musgosa, apenas
alguma vergontea, que lhe rompia da
enrugada epiderme na primavera para morrer
no estio, dava signal de que o rei dos
bosques ainda não era inteiramente um cadaver.
Mas essa pouca vida bastava para que
[242]
a obra rude dos barbaros montanheses durasse
por mais annos que a edificação regular
e solida dos antigos metatores ou engenheiros
das legiões romanas. Para aquelles,
todavia, que não estivessem affeitos a perseguir
a zebra pelas encostas escarpadas, a galgar
os precipicios após a cabra montez e a
combater com os ursos e javalís nas bordas
dos fojos, sem se lhes turbar a vista; para
esses taes a ponte vegetal dos asturios sería
um sitio arriscado. No meio do passo estreito,
irregular e cylindrico, sentindo e vendo
mugir e desapparecer debaixo dos pés a corrente
inchada e turva, quasi impossivel lhes
fora não vacillar: mas ao vacillar seguir-se-hia
o despenhar-se, e ao despenhar-se a morte.
Á altura da quéda e ao impeto das aguas
ajunctava-se o agudo dos rochedos, entre os
quaes o rio, escumando, se estorcia e despedaçava.
Ao partir de Covadonga e ao dirigir-se
para o campo de Abdulaziz, os cavalleiros
christãos tinham rodeiado o Vinnio, seguindo
mais ao oriente; mas, habituados nas suas
contínuas correrias a discorrerem pelos atalhos
e carrís das montanhas, de antemão previam
que, no caso de levarem a cabo a temeraria
empreza que commettiam, a agrura
[243]
da serra sería a sua melhor defesa contra a
perseguição dos arabes. Assim delinearam o
caminho que deviam seguir na fuga, vindo
atravessar o Sallia, já perto do seu escondrijo,
naquella especie de passo fortificado,
conhecido ainda entre os godos pelo nome de
Castrum Paganorum ou arraial dos pagãos.
Foi justamente ao tingir-se o céu da faixa
avermelhada que precede o surgir do sol que
dous cavalleiros galgaram ao galope a ladeira
que dava accesso para as ruinas do castro
romano. No meio delles, cavalgando tambem
um alazão agil e ao mesmo tempo robusto,
uma dama vestida de branco parecia mal poder
já manter-se na sella, segurando-se umas
vezes ao arção, outras ás crinas fluctuantes
do valente animal. Eram Hermengarda e os
seus dous guardadores que chegavam, finalmente,
ás margens do Sallia. Pouco devia tardar
o instante em que a formosa irman de
Pelagio achasse, depois de tantos perigos e
terrores, abrigo e paz nos rudes paços de
seu esforçado irmão.
Mas a corrida violenta e incessante por
sendas montuosas e asperas tinha exhaurido
as forças da filha de Favila, como os successos
por que passara desde que partíra de
Tárraco lhe tinham quasi anniquilado as do
[244]
espirito. Ao chegar ao meio daquelles restos
do acampamento romano sentia-se desfallecer
de cansaço, ao passo que a febre e a
sêde lhe devoravam as entranhas. Os dous
cavalleiros, olhando para ella, viram-lhe, com
a luz da alvorada, as faces tinctas de pallidez
mortal. Ás vezes, durante o caminho e, sobretudo,
nos sitios mais altos, quando as lufadas
do norte acalmavam momentaneamente,
percebiam ao longe um debil ruído, soturno
e contínuo, que se assemelhava ao tropeiar
de cavallos; mas havia horas em que
apenas sentiam o estrepito do galopar dos
proprios ginetes, bem que o vento houvesse
cahido de todo na antemanhan. Inquietos,
tambem, pela sorte dos companheiros que
tinham deixado atraz de si, resolveram parar
no meio daquellas ruinas. Salteiados de
improviso pelos arabes, facil lhes sería transpôr
a ponte natural que tinham diante, e as
poucas raizes que prendiam o moribundo
carvalho á margem opposta cederiam bem
depressa aos gumes afiados dos seus frankisks.
Então o tronco da velha arvore se despenharia
no abysmo, e o leito profundo e escarpado
do Sallia ficaria como uma barreira
entre elles e os inimigos.
Descavalgando, os dous guerreiros tomaram
[245]
nos braços a irman de Pelagio e foram
recliná-la sobre um monticulo cuberto de
relva e musgos, que, pela sua situação no
logar onde, provavelmente, ficava a divisão
entre o pretorio e a parte inferior do campo,
dava indicios de ser o assento das aras
dos deuses, que os romanos usavam collocar
no meio dos arraiaes. Regelada exteriormente
ao passo que o ardor febril lhe queimava
o sangue, Hermengarda, apenas tocou em
terra, só pôde pronunciar a palavra «sêde»,
cahindo amortecida sobre a relva orvalhada.
O unico signal que nella revelava a vida era o
tremor convulso que violentamente a agitava.
Emquanto Astrimiro subia ao vallo, de
cujo topo se descortinava melhor, postoque
a breve distancia, o caminho que haviam seguido,
Gudesteu trabalhava em ajunctar alguns
troncos de arvores e as folhas seccas
amontoadas pelos ventos do estio que as chuvas
outonaes ainda não tinham arrastado.
Brevemente, o ar tepido de uma fogueira
fez volver a si a donzella: o cavalleiro offereceu-lhe
um pequeno frasco de sicera que
desprendera do arção e que lhe restituiu algum
vigor aos membros entorpecidos. Depois,
Gudesteu chamou o seu companheiro
e disse-lhe:
[246]
«Os ginetes não podem passar além. Ide
e lançae-os para o lado oriental da montanha:
elles buscarão o trilho acima das fontes
do Sallia e descerão a Covadonga.»
E Astrimiro, guiando os tres ginetes pela
ladeira abaixo, affagou-os um a um e, segurando-lhe
as rédeas á ephippia, deu um silvo
com soído particular. Os ginetes fitaram as
orelhas, aspiraram ruidosamente o ar e partiram
ao galope, por meio da selva, para o
lado que Gudesteu indicara.
Este, apenas os viu desapparecer, dirigiu-se
para Hermengarda.
«É necessario, senhora,—disse elle—uma
derradeira prova d'esforço: é necessario
partir já. Os nossos ginetes, ensinados a voltarem
sós ao campo christão do deserto
quando os ardís ou os perigos da guerra nos
obrigam a abandoná-los, não causariam nem
extranheza nem receio ao apparecerem ahi
sem seus donos, se não fossem as circumstancias
extraordinarias da nossa correria. Mas,
quem poderá dizer ao duque de Cantabria
qual sorte nos coube na temeraria empreza
que commettemos? Quem, senão vós mesma
restituida aos seus braços, lhe dará a certeza
de que estaes salva das mãos dos infiéis? Para
nós, habituados a descer precipicios e a salvar
[247]
torrentes, aquella ponte estreita e selvatica
é facil de transpôr, galgando-a rapidamente
e sem volver os olhos para o abysmo.
Invocae toda a energia da vossa alma,
todas as vossas forças, para vencer este ultimo
obstaculo, e, dentro de poucas horas, veremos
os cabeços que rodeiam a caverna de
Covadonga. Em leito de ramos tomar-vos-hemos
sobre nossos hombros na margem fronteira:
homens livres e gardingos, faremos mister
de servos; porque sois uma dama e porque
sois a irman do nobre e valente Pelagio...
Astrimiro, mostrae que o risco só existe
quando existe o temor.»
Então Astrimiro, olhando fito ante si, atravessou
com passos firmes e ligeiros por cima
do tronco arredondado e nodoso, e, n'um
relanceiar d'olhos, achou-se do outro lado.
Hermengarda comprehendera bem a necessidade
de colligir toda a robustez da sua
alma naquelle momento; mas, ao erguer-se,
conheceu que seus membros doridos e exhaustos
quasi recusavam obedecer-lhe. Firmando-se,
todavia, no braço de Gudesteu,
encaminhou-se para o terreirinho exterior
que se abria além dos vallos sobre a torrente.
Ahi, antes de chegar ao temeroso transito,
ajoelhou e, alevantando as mãos e os olhos
[248]
ao céu, nem sequer se lhe viam mover os labios,
embebida em oração fervorosa e íntima.
Com os seus trajos brancos e em completa
immobilidade, dir-se-hia que era um
destes anjos curvados sobre os lodams de capitel
gothico, que, no frontispicio de cathedral,
parecem ser o symbolo da morada das
preces, se os primeiros raios do sol, cujo orbe
mal despontava detrás das collinas, não revelassem
nella a vida, scintillando-lhe nos cabellos
dourados e no véu de duas lagrymas
que lhe offuscava os olhos e começava a deslisar-se-lhe
em dous fios brilhantes ao longo
das faces, onde o rubor da febre rompia por
entre a pallidez, como as papoulas rompem
no meio da seara madura.
Depois de alguns instantes, alevantou-se
de novo e encaminhou-se para o roble, cujo
topo monstruoso se assemelhava á cabeça calva
de um gigante que, inteiriçado, fincasse
os pés na outra riba. Gudesteu seguia-a de
perto, estendendo os braços involuntariamente,
como querendo sustê-la, emquanto Astrimiro,
tambem por um movimento machinal,
em pé sobre as raizes torcidas da arvore e
curvando-se para diante, lhe offerecia a mão
robusta, como se a distancia lhe permittisse
alcançá-la.
[249]
No momento em que já punha o pé sobre
o tronco, o reflexo alvacento da escuma, que
fervia lá embaixo no meio do crepusculo frouxo
do corrego profundo, e o estrepito da torrente,
espadanando por entre os musgos e
limos estampados nos pannos irregulares do
despenhadeiro, fizeram abaixar os olhos a
Hermengarda para o abysmo, como uma fascinação
irresistivel, como um conjuro diabolico.
Cravados naquelle horrendo espectaculo,
fitos, espantados, ella não os podia despregar
desse cahos infernal das aguas, que, redemoinhando
ou jorrando contra os rochedos,
ora negrejavam, precipitando-se compactas
para diante, ora, repellidas, despedaçadas
em ondas d'escuma, repuxando cruzadas
no ar ou espalmando-se nas faces da
penedia, misturavam no seu confuso soído
um murmurar e rugir como de dôr, de colera,
de desesperação, d'agonia, que vozes
humanas não saberiam ajunctar e que só póde
ser semelhante ao concerto de blasphemias
dos condemnados, entoando o hymno atroz
das eternas maldicções contra Deus.
E Hermengarda sentia uma ancia vertiginosa
de se atirar áquella voragem; uma
como attracção magnetica, voluptuaria, indizivel,
a favor da qual luctava um sentimento
[250]
mysterioso e vago, mas que nem por isso
era menos ardente, ao mesmo tempo que
alma e corpo a repelliam pelo instincto e
pelo amor da vida. Com as mãos contrahidas,
a fronte pendida e o olhar incerto de um
moribundo, a donzella parecia haver sido petrificada
no momento em que dera a primeira
passada para transpôr essa meta, além
da qual, unicamente, existia a esperança.
Observando o gesto da irman de Pelagio,
Gudesteu viu que um instante bastaria para
anniquilar o fructo dos perigos até ahi corridos.
Mais de uma vez, antes que se habituasse
á sua vida de foragido, passando pelas
bordas dos fojos, pelas arestas dos precipicios,
elle proprio sentira essa fascinação do
terror, esse magnetismo da morte que costuma
subjugar-nos e attrahir-nos quando pelas
primeiras vezes nos achamos sobranceiros
a algum abysmo; sentimento de voluptuosidade
dolorosa, que, paralisando-nos os movimentos,
porque dobra em nós o terror, nos
salva, talvez, do suicidio, ao mesmo tempo
que para elle nos convida com attractivo inexplicavel.
O cavalleiro, segurando violentamente o
braço da donzella, desfez aquella especie do
encanto fatal, obrigando-a a recuar alguns
[251]
passos. Então Hermengarda, como se acordasse
de um sonho, murmurou: «Não posso!»—E
soluçava, e as lagrimas rolavam-lhe
abundantes pelas faces macilentas. Em tremor
convulso, os joelhos vergavam-lhe, e teria
cahido por terra, se Gudesteu não a houvera
sustentado.
Astrimiro, que vira o movimento do seu
companheiro, atravessou de novo a arriscada
passagem. Um pensamento horrivel passou a
ambos pelo espirito: era que os arabes podiam
chegar! Encararam-se mutuamente, e
cada um delles notou que o outro tinha o
gesto demudado. Gudesteu, volvendo a cabeça,
lançou os olhos para a selva de que
haviam saído, porque lhe parecera ouvir um
rumor abafado. Astrimiro, que crera ouvir
o mesmo, correu de novo ao vallo.
E o ruído soava, de feito. Os dous cavalleiros
nem respiravam. Era um tropeiar de
cavallos á rédea solta: não havia que duvidar.
Para elles em alguns instantes se resumiu,
então, um seculo de trances mortaes.
São nove: nove os que sáem da espessura,
correndo desordenados, e que se precipitam
para as ruinas. São godos! Os largos ferros
dos frankisks lá reluzem, batendo-lhes sobre
as coxas no rapido galope: o lodo dos brejos
[252]
ennodoa-lhes as armas escuras e pulidas.
Ondeiam eriçadas as crinas dos corceis, cujos
peitos mosqueia a escuma, cujos freios tinge
o sangue. O mysterioso cavalleiro negro vem
á frente delles.—«Ei-los!—brada Astrimiro,
com uma especie de alegria phrenetica.—Estão
salvos!»
«Salvos?!—interrompeu tristemente Gudesteu
e, sem se mover, olhou para Astrimiro
e, depois, para Hermengarda, que sustinha
nos braços.
«Perdidos! perdidos comnosco e como nós!—replicou
em tom lugubre Astrimiro, para
quem a interrupção e o olhar de Gudesteu tinham
sido um raio de luz medonha. O Sallia
era a linha traçada pela feiticeira com a verbena
magica, além da qual não passará jámais
aquelle ante cujos pés ella a riscou. O juramento
que tinham dado e, mais do que isso,
a lealdade de guerreiros godos não lhes consentiam
abandonarem a irman do seu capitão;
não lh'o consentiria o fero cavalleiro negro,
esse homem ou esse phantasma, cuja vida
era um segredo, cuja vontade era de ferro,
cuja voz era um terror para inimigos e,
para os seus, um decreto de cima.
E os nove n'um relance transpuseram o
valle, galgaram a ladeira e atiraram-se de
[253]
tropel ao meio das ruinas do arraial romano.
O cavalleiro negro foi o primeiro em
desmontar; os outros oito imitaram-no.
«Rapido, rapido!—disse elle—Lançae os
cavallos para as brenhas, e atravessemos o
Sallia! Não ha um momento que perder, se
queremos salvar-nos.»
E ouviu-se um silvo accorde, unico, estridente
de todos os recem-vindos. Os ginetes
soltos desceram de novo a ladeira, respirando
com violencia e seguiram a pista dos tres
que pouco antes, ao sibillar d'Astrimiro, se
haviam embrenhado na floresta, seguindo ao
oriente as margens do Sallia.
O cavalleiro negro, porém, ao volver-se,
recuou com um grito d'espanto, que não pôde
conter: fora naquelle momento que vira Gudesteu
e Hermengarda quasi desfallecida, que
este amparava.
«Vós aqui?! Ainda aqui?!—exclamou
elle, com gesto d'espanto misturado de afflicção
e perdendo a compostura solemne e
altiva que soubera até então conservar nas
mais arriscadas situações, nos trances mais
dolorosos.—Prestes passae o rio. Os infiéis
seguem-nos de perto, e os seus esquadrões
não tardarão a transpôr aquellas collinas. O
Sallia é a unica barreira que póde tolher os
[254]
passos a esses corredores africanos, iguaes
em robustez e ligeireza aos nossos corceis das
montanhas. Irman de Pelagio!—accrescentou,
dirigindo-se á donzella, que parecia alheia
ao que passava juncto della, volvendo d'instante
a instante para a borda do despenhadeiro
um olhar de terror.—Irman de Pelagio,
por Deus, que cobreis animo! Dous dos
mais valentes guerreiros da cruz lá os deixámos
despedaçados sob os pés da cavallaria
arabe: estes que vedes breve acabarão nos
gumes dos ferros inimigos, se não podérem
salvar-vos. Juraram-no: hão-de cumpri-lo.
Não vo-lo imploro por mim: não quero; não
posso querer de vós piedade nem recompensa;
mas os meus rogos são pelos irmãos d'armas
do duque de Cantabria, pelos que têem
misturado com as delle as lagrymas do desterro,
com elle tragado o pão negro do proscripto.
Diante do Senhor não vos pediriam
conta do seu sangue; não valera a pena: mas,
quem sabe se não vo-la pedirá o Christo pela
sua religião, a Hespanha pela sua liberdade?»
Hermengarda não tinha ouvido ainda ao
cavalleiro negro senão os sons quasi inarticulados
do seu grito de guerra: agora, porém,
estas palavras, proferidas em tom energico,
mas com voz tremula, troaram-lhe nos
[255]
ouvidos, semelhantes á voz de alguem que
na vida conhecera e que o sepulchro, provavelmente,
tragara. O terror que lhe tolhia
os membros redobrou com esta voz: por um
impeto convulso de desesperação encaminhou-se,
todavia, com passos incertos para a ponte
fatal; mas, ao chegar a ella, recuou: tinha
abaixado de novo os olhos para a torrente,
e de novo a torrente, como um sortilegio
diabolico, a havia fascinado.
«Por tudo quanto haveis amado, cavalleiros
da cruz:—exclamou ella desvairada:—em
nome do céu, abandonae-me! O desalento
e o susto me abrigarão no seio da morte da
violencia dos infiéis. Não posso!... Não posso
vencer esse terrivel abysmo, que ha-de tragar-me!»
Os guerreiros de Pelagio, escolhendo aquella
senda para a fuga, não haviam calculado
com um coração feminino, mistura d'esforço
e timidez, d'energia e de fraqueza, que será
sempre para a philosophia um mysterio.
«Os arabes!—Esta palavra, cem mil vezes
repetida na Hespanha, como o dobrar
por finado em paiz assolado da peste, soou
atrás dos cavalleiros apinhados juncto aos
vestigios da porta decumana. Saira da boca
de Astrimiro, que, sem deixar o vallo, tinha
[256]
a vista cravada nos visos dos montes
fronteiros, até cujas gargantas se dilatava a
selva.
Os guerreiros abriram subitamente aos lados,
e olharam para as cumiadas da cordilheira
coroadas de mosselemanos: os ferros
pulidos dos frankisks, que tinham pendentes
dos pulsos por uma cadeia de ferro, scintillavam
levemente trémulos.
Só Hermengarda abaixou os olhos, e ajoelhou
com as mãos erguidas no meio delles,
murmurando:—Não posso! Abandonae-me!»
Então o cavalleiro negro, tomando-a pela
mão, correu a vista pelas duas alas: no seu
gesto havia a mesma expressão imperiosa e
sinistra de que se revestira quando em Covadonga
embargara a saída de Pelagio.
«Qual de vós ousa tomar nos braços a irman
do duque de Cantabria e conduzí-la por
cima do abysmo para a outra margem? Qual
de vós ousa jurar sobre a cruz da sua espada
que sem vacillar o fará?
Houve um momento de silencio: todos os
rostos empallideceram; todos os labios calaram.
Um alarido de muitas vozes o interrompeu:
eram os infiéis, que a meia encosta haviam
[257]
enxergado os fugitivos e que se atiravam
para o valle.
«Não ha entre vós um que o ouse?—reperguntou
o mysterioso guerreiro, fitando o
olhar successivamente em todos.—Vai seguro
o que o tentar. A entrada deste recincto
é estreita, e os pagãos antes de chegarem
ao Sallia passarão por cima do meu
cadaver. Direis depois a Pelagio que sómente
o cavalleiro negro lhe pede, a elle e a sua
irman, algumas lagrymas em memoria de um
tiuphado de Witiza, que deixou de viver...
Chamava-se Eurico... Elle nos tenros annos
ainda o conheceu em Tárraco... Fruela, Gudesteu,
e tu Sancion, qual de vós será o mensageiro?
qual de vós será o salvador d'Hermengarda?»
Todos calaram de novo; mas aqui não houve
silencio: ouvia-se já o ruído dos corredores
sarracenos, bem de perto, no fundo do valle.
E, ao proferir o cavalleiro negro o nome
de Eurico, a irman de Pelagio soltou um
gemido e deu em terra como se fora morta.
«Nenhum!—rugiu o guerreiro quasi suffocado
de furor e de angustia: e, alongando
a vista pelo portal do recincto, viu alvejar
os turbantes, e, depois, surgirem rostos tostados,
e, depois, reluzirem armas. Os arabes
[258]
começavam a galgar a ladeira. Astrimiro descera
de um pulo do vallo.
A contracção d'agonia que neste momento
passou nas faces do cavalleiro negro, estendendo
para o céu os punhos cerrados, não
haveria ahi palavras humanas que a pintassem.
Não disse mais nada. Tomou nos braços
aquelle corpo de mulher que lhe jazia
aos pés e encaminhou-se para a estreita ponte
do Sallia. Era o seu andar hirto, vagaroso,
solemne, como o de um phantasma:
parecia que as suas passadas não tinham
som; que lhe cessara o coração de bater, e
os pulmões de respirar.
Viram-no atravessar, lento como sombra;
como sombra, lento, hirto, solemne, internar-se
com Hermengarda na selva da outra
margem.
Era um corpo ou um cadaver que conduzia?
Estava morta ou estava salva?
Sancion e os demais godos tinham ficado
immoveis d'espanto e de susto. Aquelle homem,
menos habituado a transitar por meio
dos precipicios das montanhas, commettera
um feito, para o qual lhes fallecera o animo.
Mal sabiam elles quanto os alcantis do Calpe
eram mais asperos, os seus despenhadeiros
mais frequentes, os seus corregos mais
[259]
fundos e quantas vezes esse homem os havia
galgado na escuridão d'alta noite, por entre
o redemoinhar e bramir do vento e das tempestades.
Foi por um momento rapidissimo que durou
a immobilidade dos godos, porque tanto
bastou ao cavalleiro negro para transpôr a
breve largura do Sallia e sumir-se na floresta
que, descendo das montanhas fronteiras,
vinha quasi tocar na borda dos alcantis
pendurados sobre as aguas.
Os dez guerreiros, uns após outros, galgaram
ligeiros por cima do roble nodoso, sem
abaixarem os olhos para a especie de sorvedouro
negro, revolto, ruidoso, que, mugindo
lá embaixo, parecia, com seu estrepito
violento, tentar attrahí-los e devorá-los.
Sancion foi o derradeiro a passar: a meio
rio sentiu após si o tumulto dos arabes que
se precipitavam dentro dos arruinados vallos
romanos. Não titubeiou e seguiu ávante.
Chegando á margem opposta, volveu os olhos
e viu que alguns dos inimigos punham pé em
terra e, cegos na sua furia, se arrojavam
para a ponte fatal.
«Godos, aqui!—gritou elle; e o primeiro
golpe do frankisk deu um som baço, entrando
nas raizes ainda vivas da velha arvore.
[260]
E, manso e manso, os agarenos, lançando-se
ao comprido sobre o cepo que estremecera
ao golpe de Sancion e segurando-se
ás cavidades do velho tronco e ás asperezas
do seu grosseiro cortex, se approximavam,
semelhantes ao estellio que se arrasta, nas ruinas
de Balbek, ao longo de columna tombada.
Christãos e infiéis fizeram silencio: era
uma destas situações em que a voz expira na
garganta; porque o viver parece quasi paralisar-se.
E os arabes avançavam sempre, e os golpes
das pesadas secures godas batiam roucos
e cada vez mais violentos e repetidos nas raizes
que estalavam, lascando; e já os olhos
esverdeados de colera, faiscantes, desvairados
dos infiéis, cujas barbas negras varriam o
tronco, se encontravam com o olhar torvo
de Sancion, curvo, vibrando golpes sobre
golpes, e cercado de alguns companheiros
que o imitavam,—aquelles a quem o consentia
a apertura do sitio, emquanto os outros,
com os frankisks nas mãos, se preparavam
para repellir os inimigos, que só um
a um poderiam transpôr a estreita passagem.
Subitamente estouram as ultimas fibras do
lenho: a arvore monstruosa despenha-se da
sua base de pedra, escapa da riba fronteira,
[261]
tomba pelas pontas dos rochedos limosos,
fa-las voar em rachas e bate sobre o dorso
da torrente, cujo ruído não póde devorar inteiramente
o alarido dos infiéis precipitados,
que deixam os fragmentos das armas, dos
vestidos e dos membros pendentes dos bicos
das rochas. As aguas, espadanando, trepam
em lençoes d'escuma pelas paredes anfractuosas
do precipicio e lambem o sangue que
por instantes as tingiu. Depois, o grosso madeiro
fluctua, deriva pela corrente e lá vai,
d'envolta com ella, em demanda das solidões
do mar.
Os arabes que enchem o recincto das ruinas
recuam diante de tão horroroso espectaculo:
os godos enviam-lhes uma risada feroz
de insulto e desapparecem na espessura das
brenhas que se dilatam até as raizes da montanha
d'Auseba, onde deve ser o termo da
sua viagem.
XVII
A AURORA DA REDEMPÇÃO
Desprezamos essa multidão de pagãos,
e nenhum temor ha em nós.
Sebast. de
Salamanca—Chronicon.
O espectaculo que offerecia a caverna de
Covadonga na noite immediata áquella que
se terminou com os successos das margens
do Sallia era mui semelhante ao dess'outra
noite em que Pelagio recebera a nova do
captiveiro d'Hermengarda;—espectaculo semelhante,
mas personagens, em parte, diversas.
[263]
Na vasta lareira proxima da entrada
da gruta e a que servia de chaminé uma larga
fenda dos rochedos superiores ardiam alguns
cepos de carvalho, que, repassados do
fogo durante uma longa noite de novembro
e abrazados até a medúlla, davam apenas uma
chamma tenue e azulada, cujo fraco esplendor
se perdia na claridade brilhante de cinco
ou seis fachos encostados pelas paredes irregulares
da caverna. Do numeroso tropel de
guerreiros que naquella memoravel noite se
tinham erguido á voz do moço duque de Cantabria,
travando das armas, apenas se viam
agora, estendidos nos grosseiros leitos formados
das pelles de animaes bravios, dez
cavalleiros, que no seu profundo somno, no
transfigurado do gesto e no desalinho dos
trajos faziam antes lembrar o jazer de cadaveres,
que o repousar de vivos. Perto do
lar acceso, assentado em escabello tosco
e com a cabeça encostada ao braço firmado
n'uma anfractuosidade do rochedo, via-se,
tambem adormecido, um guerreiro em cujo
rosto os sulcos das rugas e o cavado das faces
davam, porventura, mostra de mais dilatada
vida do que, na realidade, era a sua.
O somno parecia nelle unicamente o entorpecimento
das forças physicas exhaustas e
[264]
não o repouso do espirito; porque, de quando
em quando, os membros se lhe agitavam por
estremeção violento, ou se lhe descerravam
os olhos, e moviam os labios, como se tentasse
falar; mas sussurrava apenas alguns sons
inarticulados e cahia de novo em torpor, que
não tardava em ser outra vez interrompido.
N'um recésso da gruta, formado pelos resaltos
das rochas e que servia como de camara
ao joven capitão dos foragidos, parecia
tambem jazer um vulto sobre telas mais delicadas
que os despojos d'animaes silvestres,
as quaes eram, talvez, ainda restos do anterior
luxo dos paços de Tárraco; talvez, vestigios
da passada grandeza dos duques de
Cantabria e da antiga civilisação gothica.
Um panno de purpura franjado d'ouro pendia
da abobada natural, preso nas stalactites
seculares que della desciam, semelhantes aos
penduróes do tecto de um templo normando-arabe.
A luz dos fachos mal alumiava
aquelle recanto affastado; mas nessa meia-claridade
branquejavam roupas alvas de mulher,
que tambem parecia agitada por sonhos
dolorosos, se é que o seu gemer de espaço
a espaço, o soluçar contínuo, o agitar-se
d'instante a instante não eram antes indicios
dessa modorra febril, dessa hesitação entre
[265]
o dormir e a vigilia, semelhante ao arquejar
do moribundo que já perdeu a consciencia
da vida que vai fugindo. No meio desta scena
de duvidosa quietação uma personagem velava.
Era o moço Pelagio, que, atravessando
a caverna a passos lentos e cautelosos, de
um para outro lado, ora applicava o ouvido
aos movimentos irrequietos e ao respirar agitado
do vulto branco, ora parava á entrada
da gruta, fitando os olhos na escuridão exterior
e escutando com todos os signaes d'impaciencia
de quem espera alguem que tarda.
Depois, dirigia-se para o lado do vermelho
brasido e, cruzando os braços, punha-se
a contemplar o torvo aspecto do cavalleiro
do escabello, com um olhar de sympathia e
compaixão, misturada do que quer que era
de admiração e de terror involuntario.
Estes movimentos successivos do mancebo
repetiram-se umas poucas de vezes; por fim,
a figura membruda e selvatica do lusitano
Gutislo assomou no arco irregular que servia
de portico áquella habitação roubada pela
desventura ás feras.
«Voltaram?—perguntou em voz baixa
ao barbaro do Herminio o duque de Cantabria.
«Desmontam agora:—respondeu Gutislo:—Vellido,
[266]
o centenario, disse-me viesse
vêr se repousavas.»
«Repousar!—replicou Pelagio, sorrindo
tristemente e olhando para o sitio onde o
panno de purpura occultava o vulto branco.
«Que venha; que venha já.»
Gutislo desappareceu. D'ahi a alguns momentos,
o centenario entrava.
Era um guerreiro, cujos cabellos brancos,
cujos meneios pausados e cujo olhar
penetrante davam testemunho de prudencia
e discrição. Parecia inquieto e assustado.
«Que novas nos trazes, Vellido? Qual caminho
seguem os arabes?»
«O que prouvera a Deus elles nunca houvessem
encontrado. Ao amanhecer os cavallos
africanos beberão as aguas do Deva; os
sons das trombetas agarenas ouvir-se-hão retumbar
pelas encostas de Concana e ecchoarão
nos alcantís do Auseba. Vagueiámos dispersos
a tarde inteira e a maior parte da
noite. Pelas alturas do sul e do oriente reluziam
ao longe as armas dos infiéis, e depois
as suas almenaras. Os pastores asturios,
que já nos esperavam no valle d'Onis, onde
todos os esculcas se ajunctaram á hora de
terça nocturna, nos relataram então o que,
[267]
sumidos por entre as brenhas, tinham podido
observar de perto...»
«E quaes foram as novas dos pegureiros?—interrompeu
vivamente Pelagio.—São
muitos ou poucos os inimigos? A que
distancia se acham?»
«Pouco depois do amanhecer devem ter
descido os ultimos outeiros do Vinnio e quando
o sol brilhar em todo o seu esplendor poderão
pisar o solo, até hoje livre, do valle de
Covadonga. Os pastores viram os nossos cavalleiros
transpôrem o Sallia: viram despenhar-se
o roble, e os infiéis recuarem espantados.
Mas, esquadrões após esquadrões
desciam das montanhas, e dentro em breve
na margem do rio não se descortinavam por
grande espaço senão tropeis d'arabes. Ao pôr
do sol ainda as gargantas das serranias golfavam
torrentes de infiéis, e as selvas retumbavam
com os golpes de machado. Antes de
anoitecer, uma ponte espaçosa estava lançada
sobre o Sallia n'um sitio menos profundo, e
os inimigos começavam a atravessá-la. Entre
os primeiros que passaram áquem, asseguram
os zagaes terem visto muitos cavalleiros
que, pelos elmos e couraças, pelas cateias e
frankisks, eram, sem duvida, godos.»
«São as tiuphadias da Tingitania: são os
[268]
soldados réprobos do conde de Septum, que
Deus conduz aos desertos das Asturias para
que os abutres e javalís tenham lauto banquete
de cadaveres.»
Pelagio e o centenario voltaram-se: a
voz que proferíra estas palavras soára atrás
delles. Era o cavalleiro do escabello, que despertara
ás primeiras palavras do capitão dos
esculcas e que, firmados os cotovelos sobre
os joelhos e com a cabeça entre os punhos,
escutara todo o dialogo.
«Que?!—exclamou o mancebo—ainda
ha pouco havieis cerrado as palpebras, e já
despertastes, Eurico?»
«Duque de Cantabria, desde muito que o
somno é sempre breve para mim: ha muito
que nestas veias elle não derrama consolação
nem frescor. Adormecido ou desperto, o
meu espirito vê sempre ante si immutavel a
realidade, e a realidade é medonha. Oxalá
podesse esta alma dormir!»
«Bem o sei:—replicou o filho de Favila.—A
imagem da patria, sancta e melancholica,
se misturava sanguinolenta nos vossos
sonhos do dormitar. Algumas palavras soltas
que proferieis...»
«Ah!—interrompeu o cavalleiro, pondo-se
em pé rapidamente, com um gesto d'espanto.—Eu
[269]
falava?! Eram tão extravagantes
os meus sonhos!... Que palavras me ouvistes?
Delirios, loucuras!... Dizei; não é
assim?»
E olhava inquieto para o mancebo, como
se receiasse que um segredo importante lhe
houvesse fugido dos labios.
«As vossas palavras eram quasi inintelligiveis—respondeu
Pelagio.—Perdida para
sempre; para sempre!—Eis o que repetieis
muitas vezes; e depois:—Não resta uma esperança!...
Oh, tão formosa e gentil!... Homem
infame, que tinhas em mais o ouro que
a virtude e a gloria, maldicto sejas tu!—E
então os dentes vos rangiam, e, entreabrindo
os olhos, o vosso aspecto era terrivel! Pensaveis,
por certo, na Hespanha, na formosa
terra dos godos, e a indignação vos arrancava
maldicções contra Oppas, e contra os que
venderam pelo ouro dos arabes as aras de
Christo e a liberdade de seus irmãos. Enganaram-vos,
porém, os sonhos, cavalleiro! A
esperança resta ainda, e a Hespanha não se
perdeu para sempre! Vós mesmo agora o
dissestes. Abundante cevo de cadaveres humanos
vão ter os abutres e os javalís das
montanhas.»
«Tendes razão!—replicou o guerreiro,
[270]
deixando-se cahir de novo sobre o escabello
e voltando á postura anterior.—Os meus
labios mentiram ao coração, se disseram que
para a Hespanha não havia esperança. Mas
a mentir não tornarão elles, porque estes
olhos só hão-de cerrar-se, já agora, em somno
bem profundo, no qual não haja sonhar!
Depois dos combates é que se dorme bem
placidamente! É então que eu dormirei.»
Era sinistro e lugubre e, todavia, tranquillo
o modo com que elle o dizia. Pelagio,
preoccupado pelas novas que o centenario
trouxera, não reparou no sorriso doloroso
que enrugava as faces de Eurico e, voltando-se
para Vellido, proseguiu:
«Oh! Abdulaziz busca a ultima guarida
dos christãos,
os ultimos aripennes de terra
livre da Hespanha: persegue-nos como a besta-feras?...
Pois bem! Vai, e dize aos nossos
cavalleiros que antes de romper a manhan
estejam a cavallo com a lança em punho
promptos a marcharem para a entrada
do valle. Os fundeiros e mais buccellarios de
pé que se preparem para subir aos pincaros
sobranceiros por ambos os lados do arraial.
Dize-lhes, tambem, a uns e a outros, que
sem demora eu serei com elles.»
O centenario saiu.
[271]
Pelagio chegou-se então aos que dormiam
e, despertando-os um a um, fe-los approximar
da boca da gruta:
«Vedes vós a estrella matutina que empallidece?—disse,
apontando para um breve
espaço do firmamento, onde, atravez do
portal irregular, se via fulgir o planeta Venus.—Não
tarda muito que ella desappareça
mergulhada na vermelhidão da aurora.
Essa vermelhidão tingirá em breve o céu,
como o sangue ha-de hoje tingir a terra: mas
confio em Deus que, tambem, como após ella
ha-de surgir o sol envolto no seu fulgor glorioso,
assim a cruz e o nome dos godos se
alevantarão triumphantes, após o sangue vertido
por esses dous objectos sanctos e queridos,
que nos tem alimentado a energia da
alma no meio dos trabalhos e perigos. Guerreiros!
os arabes seguiram as vossas pisadas.
Abdulaziz e Juliano, um insensato e um renegado,
ousaram approximar-se ao antro dos
leões d'Hespanha, e os leões hão-de despedaçá-los.
O céu condemnou-os: diz-me íntima
voz que elle os condemnou, inspirando-me
um estratagema a que os infiéis não poderão
resistir.»
No gesto de Pelagio, ao proferir estas palavras,
estava estampada a expressão da confiança,
[272]
do esforço e do enthusiasmo; daquelle
enthusiasmo que elle sabía communicar aos
que o ouviam e que, na situação quasi desesperada
em que se achavam os foragidos das
Asturias, fizera com que lhe cedessem voluntariamente
o mando supremo os mais velhos
e experimentados guerreiros.
Pelagio expôs em breves palavras os seus
desenhos para obter dos arabes um triumpho
completo. O caminho que seguiam devia forçosamente
trazê-los ás gargantas das serras.
Collocados na entrada do valle, uma parte
dos cavalleiros offerecer-lhes-hiam debil resistencia,
cedendo pouco a pouco e retirando-se
para o topo daquella especie de caldeira
cortada nas montanhas: apenas ahi chegados,
abandonando os ginetes, precipitar-se-hiam
para a caverna, aonde já se teriam
acolhido as mulheres, creanças e velhos dispersos
pelas tendas do campo, e em cujo estreito
e escarpado portal poucos pelejadores
bastavam para resistir á multidão dos inimigos.
Então o grosso dos cavalleiros, em cilada
nas selvas que se dilatavam para as alturas,
á esquerda das gargantas do valle,
acommette-los-hiam pelas costas, emquanto
os buccellarios, sumidos pelas penedias, lá
no alto dos barrocaes que formavam como
[273]
um muro de ambos os lados do arraial, fariam
chover sobre os infiéis as armas de arremesso,
sem que a estes fosse possivel repelli-los,
ignorando os caminhos que conduziam
áquelles logares, na apparencia só accessiveis
ás aguias e aos abutres, que alli tinham,
de feito, a sua guarida solitaria.
«Mas a vós, cavalleiros—concluia Pelagio—que
provastes extremos de esforço na
correria a que devo a salvação de minha pobre
irman, a vós pertence o acabar a victoria
que o Senhor nos vai dar. Ha mais de
um anno que as nossas mãos se tem callejado
a alluir os penhascos que coroam o
tecto desta caverna; ha mais de um anno que
raro dia se passa sem que o suor das nossas
frontes os humedeça, ao tombarmo-los lentamente
para a borda do despenhadeiro que
se eleva a prumo sobre o ádito deste recincto.
Ahi, acompanhados dos meus robustos cantabros
e dos selvagens do Herminio, será o
vosso pelejar: ahi, quando os inimigos, apinhados
ante aquelle portal, se arremessarem
contra os guerreiros que o hão-de defender;
quando as trombetas dos que os ferirem pelas
costas soarem uma toada de morte, e os
invisiveis buccellarios fizerem chover sobre os
infiéis os tiros de funda, as settas e os dardos,
[274]
cumpre que esses rochedos que, lá no
cimo, parecem embebidos na penedia, cáiam
rapidamente e esmaguem os esquadrões cerrados
dos inimigos da Hespanha. Pelo caminho
talhado na rocha sobre as nascentes
subterraneas do Deva, ireis assentar-vos no
cume do Auseba, e o anjo do exterminio pairará
juncto de vós: sereis a intelligencia que
guie o duro braço dos cantabros e dos lusitanos
para lhes dirigir os golpes, para os reter
quando, rareiados, confundidos, esmagados
os troços da serpente maldicta que ousa
colleiar juncto de Covadonga, nós podermos
arremessar-nos ao meio delles e fazer cahir
sobre a cabeça dos pagãos os golpes dos nossos
frankisks, não menos destruidores que os
rochedos despenhados.
«Como assim?!—replicou Sancion, que
por vezes estivera a ponto d'interromper o
mancebo.—Nós, próceres e gardingos, nós
que meneiamos a facha e a espada; nós que
trajamos o ferro, combateremos, como os
servos e vís, de longe e sem risco? Nós, que
por tantas milhas através das serras démos
as costas aos infiéis, não poderemos, embebendo-lhes
as espadas no peito, dizer-lhes
emfim:—Eis-nos aqui?...—Pelagio, isso é
impossivel!»
[275]
«Impossivel!—repetiram todos os outros
cavalleiros apinhados ao redor de Sancion.
«Impossivel é—interrompeu o duque de
Cantabria com gesto severo—que haja guerreiros
christãos que recusem obedecer-me, no
momento em que se tracta, não de ambições
de gloria, mas da redempção da Hespanha.
Cavalleiros, o esforço de vossos corações vos
engana! Exhaustos pela correria da proxima
noite, os braços vos desmentiriam o animo,
e eu não consentirei jámais um sacrificio inutil,
quando de outro modo podeis contribuir
para salvarmos as Asturias. Gutislo!—clamou
elle approximando-se da boca da caverna—dize
aos teus irmãos do Herminio
que venham aqui e ao quingentario da minha
tiuphadia que vos siga com os soldados cantabros.
Sancion, Gudesteu, Astrimiro, Énecon,
vós todos que me cercaes, eis alli o vosso
caminho! Parti.»
E apontava para um lado da gruta, onde
quem chegava ao perto via, lá em cima, o
céu estrellado, por uma especie de claraboia
natural, e, quasi debaixo dos pés, um como
sorvedouro escuro, em cujas profundezas se
percebia o ruído das nascentes do Deva. Na
circumferencia daquelle abysmo, desde o chão
da caverna, os foragidos, aproveitando as escabrosidades
[276]
das paredes circulares, tinham
formado uma escada tosca, ora cavada na
pedra, ora firmada sobre troncos de arvores
fixos nas fendas e cavidades da rocha, e que,
lançada em espiral, saía perto do cimo calvo
do Auseba. Assim, quando o valle fosse occupado
dos sarracenos, os christãos poderiam
defender-se por largo tempo, obtendo por
esse caminho occulto os soccorros dos montanheses.
Entre os cavalleiros a quem Pelagio dirigíra
aquellas palavras houve alguns instantes
de hesitação, e um murmurio de descontentamento;
mas, por fim, Sancion, pegando em
um dos fachos, encaminhou-se para a escada
subterranea, e os outros seguiram-no. Os
quasi selvagens filhos do Munda, vestidos de
pelles de alimarias, e os cantabros, cujas feições
e trajos tambem revelavam a sua origem
celtica, não tardaram a entrar na caverna.
Pelagio então lhes ordenou obedecessem
aos guerreiros que os haviam precedido,
e em breve o som das passadas daquelle tropel
desordenado, alongando-se pelo abysmo,
morreu em silencio total.
Eurico parecia indifferente ao que se passava
ao pé delle, assentado no escabello e
com os olhos cravados no cepo candente que
[277]
se consumia no afumado lar. Pelagio voltou-se
para elle, e disse-lhe:
«Vós, Eurico, ficareis aqui: vós que salvastes
minha irman, sereis o seu guardador.
Quem melhor vigiaria por Hermengarda do
que esse homem que nella tem um testemunho
perenne do mais indizivel esforço, da
mais pura e generosa lealdade? Desejaria ver
juncto de mim no combate o melhor guerreiro
da Hespanha: ter-vo-lo-hia, até, pedido
quando o mysterio em que vos involvieis
nos fazia suspeitar a todos que vós, o cavalleiro
negro, ereis um ente privilegiado e não
um mortal como nós. Agora, porém, depois
que no trance horroroso das margens do Sallia
nos revelastes quem sois, quando, resolvido
a morrer, pedieis apenas algumas lagrymas
para a vossa memoria áquelles que
vos sobreviviam, pedir-vos-hei eu, tambem,
que não queiraes encontrar o primeiro impeto
dos sarracenos. Se na defensão desta
nossa triste morada, aonde cumpre attrahi-los,
for necessario o auxilio do vencedor dos
vasconios, do mais illustre dos tiuphados de
Witiza, ou se a colera de Deus ainda não
está satisfeita, e devem hoje perecer os ultimos
homens livres da Hespanha, vireis vós
morrer comnosco. Entretanto, continuae a
[278]
ser o anjo da guarda da pobre filha de Favila.
Ella parece mais tranquilla, e o monge
Bacchiario, em cuja sciencia tem achado allivio
tantos de nossos irmãos, recommendou
o repouso como o melhor remedio para a
febre que a devora. Retardarei quanto podér
o instante de se acolherem aqui as mulheres,
as creanças e os velhos inuteis para o combate.
Fazei, entretanto, que nestes logares
reine profundo silencio.»
Silencio guardava o cavalleiro: no seu olhar
incerto e scintillante descobria-se que lá, naquella
alma, tumultuavam paixões violentas
e oppostas. Não respondeu; nem Pelagio lhe
dera para isso tempo. Crendo ler no seu gesto
perturbado a mesma repugnancia que tinham
mostrado os outros guerreiros em não
assistir ao primeiro recontro dos infiéis, o
duque de Cantabria atravessou apressado a
boca da gruta e desceu a senda tortuosa que
conduzia ao fundo do valle. D'ahi a pouco,
sentiu-se o galopar de um cavallo á rédea
solta, que se confundiu, por fim, no sussurro
longinquo do arraial que se agitava, preparando-se
para o temeroso dia que pouco
tardaria a nascer.
Eurico estava, emfim, só.
XVIII
IMPOSSIVEL!
Nada neste mundo me agita o seio,
senão o teu amor.
Lenda de S. Pedro Confessor—9.
Apenas Pelagio transpôs o escuro portal
da gruta, Eurico alevantou-se. Aspirava com
ancia, como se aquelle ambiente tepido não
bastasse a saciá-lo. O desgraçado resumia
n'um pensamento devorador, n'uma synthese
atroz, o seu longo e doloroso passado e o seu
torvo e irremediavel futuro. Como voltara
[280]
áquelle logar? Como, sem lhe vergarem os
joelhos, tinha elle descido das alturas do Vinnio
com Hermengarda nos braços? Que tempo
durara essa carreira deliciosa e ao mesmo
tempo infernal? Não o sabía. Imagens confusas
de tudo isso eram apenas o que lhe
restava,—do sol, que pouco a pouco lhe
viera alumiar os passos, dos ribeiros que vadeiara,
das penedias agras, dos recostos dos
montes, das selvas que recuavam para trás
delle, dos cabeços negros que, ás vezes, lhe
parecera debruçarem-se no cimo dos despenhadeiros,
como para o verem correr. No
meio destas recordações incertas e materiaes
outras passavam íntimas, ardentes, voluptuosas,
negras, desesperadas. Por horas, que haviam
sido para elle uma eternidade de ventura,
o respirar daquella que amava como
insensato se misturara com o seu alento; por
horas sentira o ardor das faces della aquecer
as suas, e o coração bater-lhe contra o seu
coração. Depois, avultavam-lhe no espirito a
imagem veneranda de Siseberto e o altar da
sé d'Hispalis, juncto do qual vestira a pura
stringe de sacerdote, e Carteia e o presbyterio
e as noites de agonia volvidas nos ermos
do Calpe. E tudo isto se contradizia, se
repellia, se condemnava, o amor pelo sacerdocio,
[281]
o sacerdocio pelo amor, o futuro pelo
passado; e aquella alma, dilacerada no combate
destes pensamentos, quasi cedia ao peso
de tanta amargura.
Eurico deu alguns passos e encostou-se á
boca da gruta; porque os membros exhaustos
lhe fraqueiavam, apesar de que nem um
momento o abandonasse a força da sua alma
energica. A brisa frigidissima da madrugada
consolava-o como ao febricitante a aragem
de um sol-posto do outono. A seus pés estavam
as trevas do valle, sobre a sua cabeça
as solidões profundas e serenas do céu semeiado
dos pontos rutilantes das estrellas e
mal desbotado ao occidente pela ultima claridade
da lua minguante que desapparecia.
Era a imagem da sua vida. Serena e esperançosa,
como o crepusculo do luar fugitivo,
lhe fora a juventude. Desde que um amor
desditoso o fizera alevantar uma barreira entre
si e o ruído do mundo; desde que se votara
ás solemnes tristezas da soledade e a
derramar beneficios e consolações sobre a cabeça
dos miseraveis e humildes; pela alta noite
do seu viver muitas vezes fulgurara uma
luz de alegria, como esses astros que brilham
a espaços nos abysmos do firmamento: lá, ao
menos, havia instantes em que se esquecia
[282]
do seu destino. Mas, depois que o phrenesi
das batalhas o arrastara; depois que trocara
as harmonias das tempestades do Calpe e o
rugido das vagas do Estreito pelo gemer de
moribundos nos combates e pelo retinir dos
golpes, nunca mais descera um raio de cima
a alumiar-lhe o espirito. O seu presente e
o seu porvir eram, como esse valle, um precipicio
sem fundo, indelineavel, tenebroso e
maldicto.
E pelo céu tão placido e melancholico;
pelo céu, que elle ás vezes se punha a contemplar
ás horas mortas no pobre presbyterio
de Carteia ou assentado em algum promontorio,
a sua imaginação voou até os desvios
do sul, e as lagrymas de saudade começaram
a rolar-lhe mansamente pelas faces.
O desventurado tinha saudades das tristezas
do ermo, porque já não podia ter desejos
dos contentamentos humanos.
Engolfado naquellas cogitações dolorosas,
o guerreiro conservou-se por algum tempo
immovel e com os olhos cravados nos astros
scintillantes, que pareciam sorrir-lhe e chamá-lo
para o seio immenso do Senhor. As
lagrymas correram-lhe então mais abundantes,
e o coração parecia dilatar-se-lhe com o
pensamento da morte. Insensivelmente ajoelhou
[283]
e estendeu as mãos para o firmamento:
os seus labios murmuravam com cicío quasi
imperceptivel. Era a oração d'alma, férvida,
procellosa, que os agitava: era essa oração
que todos nós sabemos no momento de suprema
agonia e que nenhumas palavras, nenhuma
escriptura poderiam representar; oração
que é um mysterio entre Deus e o homem
e que nem os anjos comprehendem;
gemido energico de todas as miserias terrenas,
cuja intensidade só a providencia, que
as accumula ou dissipa, sabe pesar nas balanças
da justiça e da piedade divinas.
A morte; esta idéa, tremenda, indifferente
ou formosa, segundo a vida é risonha, pallida
ou negra, veio suavisar o martyrio daquella
alma attribulada, como em estio ardente
as grossas aguas da trovoada refrigeram
a terra, que estûa sob os raios aprumados
do sol. Tinha-a buscado; buscado com
a placidez horrivel da desesperança; como
um remedio de cuja efficacia a consciencia
da immortalidade o fazia duvidar. Sería não
mais do que ir deitar-se em leito de dores
eternas? Talvez: mas a mudança podia ser
refrigerio: tanto bastava. A morte parecia,
comtudo, fugir delle para que nem este ultimo
desejo se lhe cumprisse. Houve um instante
[284]
em que lhe occorreu o pensamento de subir
ao pinaculo escarpado do Auseba e despenhar-se
no valle. Refugiu d'esta idéa, porque
era covarde. Eurico, o sacerdote soldado, não
devia fenecer impia e vilmente; devia depôr
o peso intoleravel da vida no campo das batalhas
pelejadas em nome da cruz e da Hespanha.
E no recontro daquelle dia, uma voz
íntima lhe murmurava que o havia de obter.
Este anhelar pela morte era uma bem
triste cubiça! E quando se lembrava de que
essa mulher que ahi jazia a poucos passos
delle; essa mulher, em cuja adoração concentrara
todos os affectos dos mais formosos
dias da vida; cuja imagem sonhada nas solidões
do Calpe, desenhada de contínuo diante
dos olhos da sua alma, gravada como um
sello de saudade e de amargura em todas
as suas cogitações; essa mulher que, pouco
havia, por horas de delicioso delirio, apertara
contra o peito, e o podera, outr'ora, tornar
o mais feliz dos homens; quando se lembrava
de que sobre isso tudo elle deixara
cahir a campa de bronze do sacerdocio, que
ninguem podia erguer, o desgraçado sentia
estalarem-lhe uma a uma todas as fibras do
coração, e fugir-lhe do seio um grito semelhante
ao que rebenta dos labios do condemnado
[285]
ao supplicio do potro, no primeiro
movimento da mão pesada do algoz.
E, como se quizesse ainda mais saciar-se
de dor, encaminhou-se para o lado onde Hermengarda
repousava. Ao clarão da tocha que
espargia uma luz mortiça, o guerreiro contemplou-a
naquelle inquieto dormir. Era bella;
mais bella que nos tempos da primeira
mocidade! O seu gesto angelico, desbotado
pela pallidez, emmagrecido pelos pesares e
terrores, ganhara em expressão, em reflexo
dos íntimos pensamentos o que perdera em
viço e em toques d'innocencia. Bonina desabrochada
nos campos da vida, brilhara com
todas as pompas do seu vecejar á luz da manhan;
o ardor intenso do meio-dia a fizera
pender; a viração da tarde lhe traria, talvez,
ainda frescor e viveza; mas a sua fragrancia
perdia-se nas auras que passavam; nas suas
côres harmoniosas revia-se, apenas, o céu!
Aquella alma fugia solitaria pela terra n'um
viver incompleto e volveria aos abysmos da
creação sem conhecer o mais profundo e energico
dos affectos humanos, o amor, que une
dous espiritos como dous fragmentos de um
todo, os quaes a providencia separou ao lançá-los
na terra, e que devem buscar-se, unir-se,
completar-se, até irem, depois da morte,
[286]
formar, talvez, uma só existencia de anjo no
seio de Deus.
Mas quando Eurico se lembrou de que,
porventura, isto era um sonho; de que podia
ser que essa alma não passasse na vida
tão vazia e solitaria como elle julgava, e que
esse coração que poucas horas antes pulsára
tão perto do seu batia, acaso, por outrem,
sentiu o suor frio manar-lhe da fronte. A
tocha baça e funebre que mal alumiava a irman
de Pelagio pareceu-lhe retincta em sangue;
e, como o cedro arrancado por tufão
repentino, foi encostar-se á rocha lateral, cuja
superficie irregular lhe escondia Hermengarda.
O vê-la despertara todo o delirio do seu
primeiro amor, e aquella idéa intoleravel, que
tantas vezes o atormentara nas solidões do
Calpe, espremia-lhe agora o coração com redobrado
furor.
E assim ficou por alguns momentos mudo,
anhelante, anniquilado. Quem era, onde estava,
porque viera alli, não o saberia dizer:
os pensamentos revolviam-se-lhe na mente,
como as ondas n'um sorvedouro maritimo,
tempestuosos, rapidos e indistinctos.
De repente, um ai comprimido veio acordá-lo
daquella especie de torpor doloroso.
Estremeceu. Era a voz de Hermengarda. Approximou-se
[287]
manso e manso, de modo que
ella o não visse. Assentada sobre o leito, demudado
o gesto, e com o susto pintado no
olhar, a irman de Pelagio estendia os braços,
voltando o rosto para o lado, como quem
tentava affastar visão medonha. Pelas suas
palavras incoherentes e truncadas, o guerreiro
conheceu que um sonho máu a agitava,
até que, inteiramente desperta, essas palavras
confusas se começaram a coordenar em
periodos intelligiveis. O pulsar do coração
d'Eurico redobrava de violencia, ao passo que
o seu respirar se ia tornando cada vez mais
imperceptivel.
«Sempre elle! sempre esta visão de remorso!—murmurou
Hermengarda.—Meu
pae, meu pae! Perdoe-te o céu o orgulho
com que repelliste o gardingo... Perdoe-te
o céu o haveres-me obrigado a sacrificar aos
pés desse orgulho o sentimento de amor que
se alevantara neste coração. Nós ambos assassinámos
o desgraçado; mas a punição cahiu
inteira sobre mim! Embora. Eu não te
amaldicçoarei, oh meu pae! A tua filha nunca
te accusará ante o supremo juiz.»
Depois, ficou por alguns instantes calada,
com os olhos fitos no rochedo fronteiro, em
cuja face escabrosa as sombras pareciam dançar
[288]
e agitar-se á luz da tocha que ardia a
curta distancia, e que a aragem movia. Crera
perceber perto de si um gemido abafado,
cortando fugitivo o grande silencio nocturno.
«Vai-te, vai-te!—proseguiu ella.—Que
posso eu fazer-te, infeliz?... Bem longo e
atroz tem sido o meu martyrio, porque ainda
não achei no mundo alma com quem me fosse
dado repartir o calis do infortunio; a quem
houvesse de contar os tormentos que ha tanto
tempo me varreram dos labios o sorrir.
Se vivesses, sería tua; tua esposa, tua escrava!...
mas a benção nupcial não póde descer
entre o tumulo e a vida. Favila!... meu
pae!... diante do throno do Senhor, onde
são iguaes o duque e o gardingo, jura-lhe
que tua filha repelliu o seu amor por obedecer-te:
dize-lhe que o pranto correu destes olhos
ao ouvir a nova da sua morte. Oh, dize-lhe,
dize-lhe que não fui eu que o assassinei!»
E aqui, deixando pender a cabeça sobre
o peito, pareceu voltar ao sentimento da realidade;
mas aquella especie de terror febril
que lhe haviam gerado no espirito os trances,
qual mais doloroso, por que successivamente
passara, se tornou a apossar della. Favoreciam-no
o logar, a hora, o silencio. Hermengarda
alevantou de novo os olhos desvairados
[289]
e, firmando-se no rochedo, tentava
erguer-se.
«Era Eurico!—murmurou ella.—Depois
de dez annos, bem conheci a sua voz! Mais
triste, só: triste, como tantas vezes a tenho
ouvido nos meus sonhos de remorsos! Bem
conheci o seu gesto! Mais pallido e carregado,
só: pallido e carregado, como tantas
vezes tem surgido do sepulchro para vir mudamente
accusar-me, silencioso e quedo ante
mim, por longas e não dormidas noites. Era
elle!... um espectro cujo coração eu sentia
bater, cujos braços me apertaram por cima
do abysmo revolto, através da floresta, pelos
recostos das serranias. Dos seus olhos cahiu
sobre o meu seio uma lagryma! As lagrymas
dos mortos queimam... devoram a vida; porque
bem sinto a morte chamar-me...»
Tinha-se posto de joelhos e, com as mãos
estendidas, parecia implorar piedade.
«Morrer! tão cedo! Quando apenas tórno
a vêr meu irmão?!... Pelagio! Pelagio! porque
me deixaste? Vem despedir-te da tua
pobre Hermengarda. Eurico a espera para o
noivado do sepulchro, e eu não posso tardar.»
E desvairada, poz-se em pé, chamando
por Pelagio com voz suffocada. Apenas, porém,
dera os primeiros passos, soltou um
[290]
gemido agudo e ficou immovel. Diante della,
realidade ou phantasma, estava a origem dos
seus terrores secretos. Era o gardingo que
a amara, que ella cria morto, e cuja imagem
vingadora vinha mais uma vez atormentá-la.
O vulto cravara nella um olhar ardente,
que a fascinava. Sorriso doloroso lhe pousava
nos labios. Estendeu o braço, segurando
a mão de Hermengarda, que pretendeu recuar
e não pôde. Como petrificada, parecia
que os pés se lhe haviam enraizado no chão
da caverna. Aquella mão, que segurava a sua
escaldando de febre, era gelada como a de
um morto. A vida do gardingo tinha-se concentrado
toda no coração, que lhe despedaçavam
duas idéas, horriveis porque associadas:
o amor correspondido e tornado ao mesmo
tempo maldicto, monstruoso, impossivel
por uma palavra fatal, que lá estava escripta
em caracteres de fogo, e que elle via, escutava,
sentia—o sacerdocio!
«Oh, Deus t'o pague!—disse Eurico em
voz baixa e lenta—que lançaste na tão longa
noite da minha alma um raio fugitivo de luz,
luz sancta e pura de contentamento e felicidade!...
Ha dez annos que não me alumia,
e ella é tão bella, ainda quando passa como
o relampago!»—E, depois de estar calado
[291]
alguns instantes, com um gesto de íntimo e
angustiado cogitar, proseguiu:—Não, Hermengarda,
não! Os vermes ainda não receberam
a parte da sua herança que eu lhes
retenho. Morri; porém não para isso que, na
linguagem mentirosa do mundo, se chama a
vida. Durante annos dei-a a devorar á desesperação,
e a desesperação não pôde consummi-la.
Pendurei-a alta noite, pela espessura
das trevas, nas rochas escarpadas do mar
do occidente, á beira dos precipicios, e o mar
e os precipicios não quizeram tragá-la. Atirei-a
á torrente impetuosa das batalhas, e o
ferro embotou-se n'ella. O céu guardava-me
para te ouvir palavras de amor e arrependimento;
essas palavras de ineffavel doçura que
nunca esperei escutar. É que na minha fronte
está gravada a maldicção de cima: é que
ainda me faltava o derradeiro martyrio...
Ao menos posso acabar o teu: o pensá-lo é
um refrigerio. Hermengarda, eu vivo ainda!
Vivi para te salvar da deshonra, e todo o
meu passado esqueci-o. Só uma cousa não,
porque me subverteu para sempre o futuro;
porque, depois de passageira alegria, me recalcou
mais violentamente esperanças que
ousaram um momento agitar-se no fundo desta
alma, tranquilla na desesperança. Agora,
[292]
se ha repouso debaixo da campa, posso ir
buscar lá meu repouso. Mas dize-me; oh,
dize-me, ainda outra vez, que amas Eurico!
Repete diante do que respira aquillo que
proferiste diante da sombra creada pelo teu
terror. Essas palavras e o morrer!... O
teu amor e a morte; eis para mim a unica
ventura possivel, mas que não tem igual
na terra.
E Hermengarda sentia ao contacto daquella
mão fria e trémula apertando a sua,
no accento dessas phrases, tempestuosas como
o oceano, tristes como céu procelloso, que lá,
no peito do vulto que tinha ante si, havia um
coração de homem vivo, onde chaga antiga
e cancerosa vertia ainda sangue. A especie
de pesadelo em que se debatia desapparecera
com a realidade. O repentino impulso da sua
alma foi lançar-se nos braços de Eurico. Fora
elle o objecto do seu quasi infantil e unico
amor, amor condemnado ao silencio antes do
primeiro suspiro, antes do primeiro volver
d'olhos; era elle o cavalleiro negro, cujo nome
se tornara conhecido e glorioso por todos os
angulos da Hespanha; era elle, finalmente,
o homem que duas vezes acabava de salva-la.
Reteve-a, todavia, o pudor e, talvez, aquella
mysteriosa tristeza que escurecia as idéas desordenadas
[293]
vindas de tropel aos labios do guerreiro.
Procurando asserenar a violencia dos
affectos que a agitavam, Hermengarda respondeu
com voz fraca e tremula:
«Bemdicta a mão do Senhor, que te salvou,
Eurico, leal e nobre entre os mais nobres
e leaes filhos dos godos! Graças á piedade
do céu, que por meio de tantas desventuras
e perigos nos uniu nos paços que
restam ao filho do duque de Cantabria! No
devaneiar do terror revelei-te, sem querer, o
segredo do meu coração: a sua historia, ouviste-a.
Perdoa á memoria de meu pae, e,
se de mim depende a tua felicidade, as palavras
que me saíram involuntariamente da
boca te asseguram que serás feliz. O orgulho
que a ambos nos fez desgraçados não o herdou
Pelagio. Que o herdasse, mal caberia
n'estas brenhas, na caverna dos fugitivos. E
depois, que nome ha hoje na Hespanha mais
illustre que o do cavalleiro negro, o nome
de Eurico? Morreres?!... Oh, não? Salvaste
Hermengarda do opprobrio: se nunca te houvera
amado, ella te diria como te diz hoje:
Sou tua, Eurico!»
A filha de Favila, cujo profundo e energico
sentir mal poderia comprehender quem
só a houvera visto no momento em que timida
[294]
recuava diante do perigo mais apparente
que real das margens do Sallia, proferiu
estas palavras com um tom de enthusiasmo,
com uma expressão affectuosa tão
íntima, que o guerreiro cahiu a seus pés. A
ventura embargava-lhe a voz. O que lhe tumultuava
no coração não tem nome na linguagem
dos homens: era mais que a loucura.
Com um movimento delirante, apertou
contra os labios a mão da donzella. Queimavam!
Depois de largo silencio, elle murmurou
emfim:
«Minha!... Quem ha na terra que possa
roubar-m'a?... Annos de tormentos, fostes
como um dia de bonança e deleite! Imagem
que absorveste esta existencia inteira; anjo
que me fazes surgir do meu inferno para o
teu céu, tu foste que me salvaste a mim! Oh,
como é bom ser feliz!... Tinha-me já esquecido!...
Como o sol deve agora ser bello,
serena a aragem da tarde, meigo o murmurar
do ribeiro, viçosa a verdura do prado!...
Tinha-me tambem esquecido! Tens razão,
Hermengarda. Quero viver: o viver é delicioso;
delicioso, porque será comtigo... ao
pé de ti... a adorar-te sempre, sem me lembrar
do que existe, além de ti, no universo.
Vem, minha amante, minha esposa! vem jurar
[295]
que me pertences, perante o altar e aos
pés do sacerdote...»
A esta palavra fatal, um grito semelhante
ao de homem ferido de morte, rompeu agudo
e rapido do seio do cavalleiro. A mão d'Eurico
abandonou a mão d'Hermengarda, e os
seus olhos brilharam com fulgor infernal.
Recuou, affastando de si a irman de Pelagio,
sobresaltada por aquelle gesto subitamente
demudado, por aquelle olhar ardente e vago.
Ella não podia comprehender a causa de semelhante
mudança... Com o braço esquerdo
estendido, o guerreiro parecia querer arredá-la
de si, emquanto com a mão confrangida
apertava a fronte, como se buscasse esmagar
um pensamento atroz que lhe surgia
lá dentro.
«Affasta-te, mulher, que o teu amor me
perdeu!—murmurou emfim.—Ha entre nós
um abysmo: tu o abriste; eu precipitei-me
nelle. Um crime, só um crime, póde unir-nos...»
Fez uma pausa, e proseguiu:—E
porque não se commetterá elle? Talvez
obtivessemos perdão!... Perdão? Oh meu
Deus, não o terias para o sacrilego... não!—Affasta-te,
Hermengarda. Diante de ti
tens um desgraçado, um desgraçado que fizeste!»
[296]
A donzella uniu as mãos lavada em lagrymas,
e exclamou:
«Eurico! Eurico! enlouqueceste?... Por
piedade, explica-me este horroroso mysterio!
Porque me repelles? que te fiz eu... eu que
te amo, que sou tua, tua para sempre?!»
Mas os olhos scintillantes do cavalleiro tinham
amortecido: derribado na lucta que
travara com o destino, o seu combater de
tantos annos terminava, finalmente. Um sorriso
insensato substituiu-lhe no rosto as contracções
habituaes de melancholia. Affigurava-se-lhe
que em roda delle balouçava a caverna,
e a luz fumosa da tocha que ardia
segura no braço de ferro cravado na pedra
parecia-lhe faiscar em fitas cor de sangue. Esvaído,
vacillante, assentou-se n'um fragmento
da rocha e, estendendo a mão para Hermengarda,
pegou de novo na della e, com
um sorriso indizivel, continuou em voz submissa:
«Dez annos!... Sabes tu, Hermengarda,
o que é o passar dez annos amarrado ao proprio
cadaver? Sabes tu o que são mil e mil
noites consummidas a espreitar em horisonte
illimitado a estrella polar da esperança e,
quando, no fim, os olhos cansados e gastos
se vão cerrar na morte, ver essa estrella reluzir
[297]
um instante e, depois, desfechar do céu
nas profundezas do nada? Sabes o que é caminhar
sobre silvados pelo caminho da vida e
achar ao cabo, em vez do marco milliario
onde o peregrino dê treguas aos pés rasgados
e sanguentos, a borda de um despenhadeiro,
no qual é força precipitar-se? Sabes
o que isto é? É a minha triste historia! Estrella
momentanea que me illuminaste, cahiste
no abysmo! Arbusto que me retiveste
um instante, a minha mão desfalecida abandonou-te,
e eu despenhei-me! Oh, quanto o
meu fado foi negro!»
Hermengarda contemplava-o com assombro
e terror... Como o entenderia ella? Eurico
proseguiu:
«Olha tu! Ao pôr do sol, no estio, ía eu
assentar-me sobre um cerro maritimo, alongando
a vista pelo oceano tranquillo, e parecia-me
divisar-te desenhada na atmosphera
a sorrir-me. Então, as lagrymas de felicidade
começavam a brotar-me dos olhos: depois,
lembrava-me de quem eu era, e essas lagrymas
condensavam-se a meio das faces e
queimavam como se fossem de metal candente.
A horas mortas, correndo pelos desvios,
quando o vento açoutava os arbustos
enfezados da montanha, cada sombra que se
[298]
meneiava ao luar, sobre o chão pardacento,
era a tua sombra que eu via. Outras noites,
em que mais tranquillo podia, a sós comigo,
engolfar-me nos pensamentos de Deus, a tua
imagem vinha interpôr-se entre mim e a lampada
mortiça que me alumiava, e o hymno
do Presbytero de Carteia, que devia, talvez,
escrever-se nos hymnarios das cathedraes da
Hespanha, ficava incompleto ou terminava
por uma blasphemia; porque, tambem, te via
sorrir, mas a outrem, mas a homem feliz
com o teu amor, e eu tinha então sede...
sede de sangue... Era uma lenta agonia! E
sempre tu ante mim: nas solidões das brenhas,
na immensidade das aguas, no silencio
do presbyterio, nos raios esplendidos do sol,
no reflexo pallido da lua e, até, na hostia do
sacrificio... sempre tu!... e sempre para
mim impossivel!»
«Mas deliras!...—interrompeu Hermengarda.—Que
tens tu com o Presbytero de
Carteia; com esse illustre sacerdote, cujos
hymnos sacros reboavam ainda ha pouco pelos
templos da Hespanha, e a quem, de certo,
o
ferro impio dos arabes não respeitou?
A tua gloria é outra e mais bella; a gloria
de seres o vencedor dos vencedores da cruz.
A sua era sancta e pacifica. Deus chamou-o
[299]
para si, e tu vives para ser meu. Ninguem
existe hoje no mundo que possa embaraçá-lo.
Esquece o passado; esquece-o por amor
de mim!»
O cavalleiro sorriu de novo dolorosamente,
e disse-lhe:
«Que tenho eu com o Presbytero de Carteia?!...
Hermengarda, lembras-te do seu
nome?»
Os labios da donzella fizeram-se brancos
ao ouvir esta pergunta: um pensamento monstruoso
e incrivel lhe passara pelo espirito.
Com voz affogada e quasi imperceptivel replicou:
«Era.... era o teu, Eurico!... Mas que
póde haver commum entre o guerreiro e o
sacerdote? Que importa um nome... uma
palavra?.... que...»
O cavalleiro pôs-se em pé e, deixando descahir
os braços e pender o rosto sobre o
peito, murmurou:
«Ha commum, que o guerreiro e o presbytero
são um desgraçado só!... Importa,
que esse desgraçado é neste momento um
sacerdote sacrilego. O pastor de Carteia...»
«Oh não acabes!—interrompeu Hermengarda,
com indizivel afflicção.
«Era Eurico, o gardingo!»
[300]
Proferindo estas palavras, que explicavam
o mysterio da sua existencia, o cavalleiro negro
viu cahir como fulminada a filha de Favila.
E elle não se moveu. A sua imaginação
tresvariada affigurou-lhe perto de si o vulto
suave e triste do veneravel Siseberto, que
estendia a mão mirrada entre ambos, como
para os dividir em nome da religião, que os
devia salvar, e do sepulchro, a quem pertenciam.
Neste momento uma grande multidão de
creanças, de velhos, de mulheres penetraram
na caverna com gritos e chóros de terror.
No coração das Asturias, entre alcantis intractaveis,
no fundo de um vasto deserto, repetia-se
o grito que mil vezes tinha soado na
devastada Hespanha: «Os arabes!»
Amanhecera.
Aquelle sobresalto, tão impensado, revocou
o cavalleiro ao sentimento da sua situação.
Ajoelhou juncto de Hermengarda e, pegando-lhe
na mão já fria, beijou-lh'a. Nas
raias da vida, aquelle beijo, primeiro e ultimo,
era purificado pelo halito da morte que
se approximava: era innocente e sancto, como
o de dous cherubins ao dizer-lhes o Creador:
«existí!»
Depois ergueu-se, vestiu a sua negra armadura,
[301]
cingiu a espada, lançou mão do
frankisk e, rompendo por entre o tropel, que
fizera silencio ao vê-lo, desappareceu através
da porta da gruta, cujas rochas tingia
cor de sangue a dourada vermelhidão da
aurora.
XIX
CONCLUSÃO
Da morte ás trévas,
Immortal, te diriges!
Merobaude:
Poema de Christo.
A ventura das armas mosselemanas tinha
chegado ao apogeu, e a sua declinação começava,
finalmente. E na verdade, a ira celeste
contra os godos parecia dever estar satisfeita.
O solo da Hespanha era como uma
ara immensa, onde as chammas das cidades
incendiadas serviam de fogo sagrado para
[303]
consummir aos milhares as victimas humanas.
O silencio do desalento reinava por toda
a parte, e os christãos viam com apparente
indifferença os seus vencedores polluirem as
ultimas cousas que, até sem esperança, ainda
defende uma nação conquistada—as mulheres
e os templos. Theodemiro pagava bem
caro o procedimento que o desejo de salvar
os seus subditos o movera a seguir. O pacto
feito por elle com os arabes não tardou a ser
por mil modos violado, e o illustre guerreiro
teve de se arrepender, mas já debalde, por
haver deposto a espada aos pés dos infiéis,
em vez de pelejar até a morte pela liberdade.
Fora isto o que Pelagio preferira, e a victoria
coroou o seu confiar no esforço dos verdadeiros
godos e na piedade de Deus.
Os que tem lido a historia daquella epocha
sabem que a batalha de Cangas de Onis
foi o primeiro élo dessa cadeia de combates
que, prolongando-se através de quasi oito
seculos, fez recuar o koran para as praias
d'Africa e restituiu ao evangelho esta boa
terra d'Hespanha, terra, mais que nenhuma,
de martyres. Na batalha de juncto do Auseba
foram vingados os valentes que pereceram
nas margens do Chryssus; porque mais
de vinte mil sarracenos viram pela ultima vez
[304]
a luz do sol naquellas tristes solidões. Mas,
nesse dia da punição, esta devia abranger
assim os infiéis, como os que lhes haviam
vendido a patria e que ainda vinham disputar
a seus irmãos a dura liberdade de que gosavam
nas brenhas intractaveis das Asturias.
O ardil de Pelagio para resistir com vantagem
aos mosselemanos, cem vezes mais numerosos
que os christãos, surtira o desejado
effeito. Ainda que muito a custo, os cavalleiros
enviados em cilada para a floresta á
esquerda das gargantas de Covadonga poderam
chegar ahi sem serem sentidos dos arabes,
que se haviam approximado mais cedo
do que o fizera crer a narração do velho
Vellido. Os infiéis pararam nas bordas do
Deva, no sitio em que rompia do valle, e
os seus almogaures tinham ousado penetrar
ávante. Os cavalleiros da cilada, que a pouca
distancia passavam manso e manso, ouviram
distinctamente o tropeiar dos ginetes inimigos.
Mas, quando, ao primeiro alvor da manhan,
Pelagio se encaminhava com o seu pequeno
esquadrão para a garganta das serras,
já os arabes rompiam por ella e começavam
a espraiar-se, como ribeira que, saindo de
leito apertado, se dilata pela campina. Os
christãos recuaram, e os infiéis, attribuindo
[305]
ao temor esta fuga simulada, precipitaram-se
após elles. Pouco a pouco, o duque de Cantabria
attrahiu-os para a entrada da gruta
de Covadonga. Chegado alli, pondo á boca
a sua buzina, tirou um som prolongado. Immediatamente
os cimos dos rochedos, que
pareciam inaccessiveis, cubriram-se de fundibularios
e frecheiros, e uma nuvem de tiros
choveu de toda a parte sobre os africanos
e sobre os renegados godos. Vacillaram;
mas o desejo da vingança levou-os a apinharem-se,
esquadrões após esquadrões, á entrada
da caverna, onde, finalmente, encontravam
desesperada resistencia. Então, como se
despegassem do céu, grandes rochedos começaram
a rolar sobre elles dos cimos do
precipicio que lhes ficava sobranceiro. Mãos
invisiveis os impelliam. Cada rocha traçava
no meio daquelle vulto informe que oscillava,
naquella vasta planicie de alvos turbantes
e de capacetes reluzentes, uma escura mancha,
semelhante a chaga horrivel. Eram dez
ou vinte guerreiros, cujos membros esmagados,
cujos ossos triturados, cujo sangue confundido
espirravam por cima das frontes dos
seus companheiros. Era medonho!—porque
a esse espectaculo se ajunctava o grito de
raiva e desesperação dos pelejadores, grito
[306]
feroz e agudo, só comparavel ao bramido de
cem leoas a quem os caçadores do Atlas houvessem,
na ausencia dellas, roubado os seus
cachorrinhos.
Pela volta da tarde, apenas do numeroso
e brilhante exercito dos arabes alguns milhares
de cavalleiros fugiam desalentados diante
dos foragidos das Asturias, que os perseguiam
incansaveis além de Cangas de Onis.
Fora no momento em que Pelagio penetrava,
na sua fingida fuga, sob o vasto portal
da gruta que o cavalleiro negro saía. O
joven guerreiro viu-o e estremeceu. Eurico
tinha as faces encovadas, o rosto pallido e
transtornado, e havia em todo o seu gesto
uma tão singular expressão de tranquillidade
que fazia terror. Emquanto os christãos defendiam
a entrada elle esteve quedo, como
indifferente ao combate; mas, logo que os
arabes, acommettidos já pelas costas, principiaram
a recuar, e que Pelagio pôde combater
na planicie, o cavalleiro, abrindo caminho
com o frankisk, desappareceu no meio
dos inimigos. Desde esse momento, debalde
o duque de Cantabria o buscou: nem elle,
nem ninguem mais o viu.
Era quasi ao pôr do sol. Seguindo a corrente
do Deva, a pouco mais de duas milhas
[307]
das encostas do Auseba, dilatava-se nessa
epocha denso bosque de carvalhos, no meio
do qual se abria vasta clareira, onde sobre
dous rochedos aprumados assentava um terceiro.
Era, provavelmente, uma ara celtica.
Em frente de tosca ponte de pedras brutas
lançada sobre o rio, uma senda estreita e
tortuosa atravessava a selva e, passando pela
clareira, continuava por meio dos outeiros
vizinhos, dirigindo-se, nas suas mil voltas,
para as bandas da Gallecia. Quatro cavalleiros,
a pé e em fio, caminhavam por aquelle
apertado carreiro. Pelos trajos e armas, conhecia-se
que eram tres christãos e um sarraceno.
Chegados á clareira, este parou de
repente e, voltando-se com aspecto carregado
para um dos tres, disse-lhe:
«Nazareno, offereceste-nos a salvação, se
te seguissemos: fiámo-nos em ti, porque não
precisavas de trahir-nos. Estavamos nas mãos
dos soldados de Pelagio, e foi a um aceno
teu que elles cessaram de perseguir-nos. Porém
o silencio tenaz que tens guardado gera
em mim graves suspeitas. Quem és tu? Cumpre
que sejas sincero, como nós. Sabe que
tens diante de ti Mugueiz, o amir da cavallaria
arabe, Juliano, o conde de Septum e
Oppas, o bispo d'Hispalis.»
[308]
«Sabía-o:—respondeu o cavalleiro—por
isso vos trouxe aqui. Queres saber quem sou?
Um soldado e um sacerdote do Christo!»
«Aqui!?... atalhou o amir, levando a mão
ao punho da espada e lançando os olhos em
roda. Para que fim?»
«A ti, que não eras nosso irmão pelo berço;
que tens combatido lealmente comnosco,
inimigos da tua fé; a ti que nos opprimes,
porque nos venceste com esforço e á luz do
dia, foi para te ensinar um caminho que te
conduza em salvo ás tendas dos teus soldados.
É por alli!... A estes, que venderam
a terra da patria, que cuspiram no altar
do seu Deus, sem ousarem francamente renegá-lo,
que ganharam nas trevas a victoria
maldicta da sua perfidia, é para lhes ensinar
o caminho do inferno... Ide, miseraveis,
segui-o!»
E quasi a um tempo dous pesados golpes
de frankisk assignalaram profundamente os
elmos de Oppas e Juliano. No mesmo momento
mais tres ferros reluziram.
Um contra tres!—Era um combate calado
e temeroso. O cavalleiro da cruz parecia
desprezar Mugueiz: os seus golpes retiniam
só nas armaduras dos dous godos.
Primeiro
o velho Oppas, depois Juliano cahiram.
[309]
Então, recuando, o guerreiro christão exclamou:
«Meu Deus! Meu Deus!—Possa o sangue
do martyr remir o crime do Presbytero!»
E, largando o frankisk, levou as mãos ao
capacete de bronze e arrojou-o para longe
de si.
Mugueiz, cego de colera, vibrara a espada:
o craneo do seu adversario rangeu, e
um jorro de sangue salpicou as faces do sarraceno.
Como tomba o abeto solitario da encosta
ao passar do furacão, assim o guerreiro mysterioso
do Chryssus cahia para não mais se
erguer!...
Nessa noite, quando Pelagio voltou á caverna,
Hermengarda, deitada sobre o seu
leito, parecia dormir. Cansado do combate
e vendo-a tranquilla, o mancebo adormeceu,
tambem, perto della, sobre o duro pavimento
da gruta. Ao romper da manhan, acordou
ao som de cantico suavissimo. Era sua irman
que cantava um dos hymnos sagrados que
muitas vezes elle ouvira entoar na cathedral
de Tárraco. Dizia-se que seu auctor fora um
Presbytero da diocese de Hispalis, chamado
Eurico.
Quando Hermengarda acabou de cantar
[310]
ficou um momento pensando. Depois, repentinamente,
soltou uma destas risadas que fazem
erriçar os cabellos, tão tristes, soturnas
e dolorosas são ellas: tão completamente exprimem
irremediavel alienação d'espirito.
A desgraçada tinha, de feito, enlouquecido.
NOTAS
Sou eu o primeiro que não sei classificar este livro;
nem isso me afflige demasiado. Sem ambicionar
para elle a qualificação de poema em prosa—que
não o é por certo—tambem vejo, como todos
hão-de ver, que não é um romance historico, ao
menos conforme o creou o modelo e a desesperação
de todos os romancistas, o immortal Scott. Pretendendo
fixar a acção que imaginei n'uma epocha de
transição—a da morte do imperio gothico, e do
[312]
nascimento das sociedades modernas da Peninsula,
tive de luctar com a difficuldade de descrever successos
e de retratar homens que, se, por um lado,
pertenciam a eras que nas recordações da Hespanha
tenho por analogas aos tempos heroicos da Grecia,
precediam immediatamente, por outro, a epocha
a que, em rigor, podemos chamar historica,
ao menos em relação ao romance. Desde a primeira
até a ultima pagina do meu pobre livro caminhei
sempre por estrada duvidosa traçada em terreno
movediço; se o fiz com passos firmes ou vacillantes,
outros, que não eu, o dirão.
Conhecemos, talvez, a sociedade wisigothica
melhor que a d'Oviedo e Leão, que a do nosso
Portugal no primeiro periodo da sua existencia
como individuo politico. Sabemos melhor quaes
foram as instituições dos godos, as suas leis, os
seus usos, a sua civilisação intellectual e material,
do que sabemos o que era isso tudo em seculos
mais proximos de nós. O esplendor dos paços, as
formulas dos tribunaes, os ritos dos templos, a
administração, a milicia, a propriedade, as relações
civís são menos nebulosas e incertas para nós nas
eras gothicas que durante o longo periodo da restauração
christan. E, comtudo, o reproduzir a vida
dessa sociedade, que nos legou tantos monumentos,
com as fórmas do verdadeiro romance historico
temo-lo por impossivel, ao passo que o representar
a existencia dos homens do undecimo ou
dos seguintes seculos será para o que os tiver estudado,
não digo facil, mas, sem duvida, possivel.
Qual é a causa d'isto?
É que nós conhecemos a vida publica dos wisigodos
e não a sua vida íntima, emquanto os seculos
[313]
da Hespanha restaurada revelam-nos a segunda
com mais individuação e verdade que a primeira.
Dos godos restam-nos codigos, historia, litteratura,
monumentos escriptos de todo o genero,
mas os codigos e a litteratura são reflexos, mais ou
menos pallidos, das leis e erudição do imperio romano,
e a historia desconhece o povo. O gothicismo
hespanhol, ao primeiro aspecto, parece mover-se.
Palpamo-lo: é uma estatua de marmore, fria,
immovel, hirta. As portas das habitações dos cidadãos
cerram-nas os sete sellos do Apocalypse: são
a campa da familia. A familia goda é para nós como
se nunca existira.
Não cabe n'uma nota o fazer sentir esse não sei
quê de magestade
esculptural que conserva sempre
a raça wisigothica, por mais que tentemos galvanisá-la,
nem o contrapor-lhe as gerações nascidas
durante a reacção contra o islamismo, que surgem
e agitam-se e vivem quando lhes applicamos
a corrente electrica e mysteriosa que, partindo da
imaginação, vai despertar os tempos que foram do
seu calado sepulchro.
Desta differença, que é mais facil sentir que definir,
nasce a necessidade de estabelecer uma distincção
nas fórmas litterarias applicadas ás diversas
epochas da antiga Hespanha, a romano-germanica,
e a moderna.
O periodo wisigothico deve ser para nós como
os tempos homericos da Peninsula. Nos cantos do
Presbytero tentei achar o pensamento e a cor que
convem a semelhante assumpto, e em que cumpre
predominem o estylo e fórmas da Biblia e do Edda—as
tradições christans, e as tradições gothicas,
que, partindo do oriente e do norte, vieram encontrar-se
[314]
e completar-se, em relação á poesia da vída
humana, no extremo occidente da Europa.
O romance historico, como o concebeu Walter
Scott, só é possivel áquem do oitavo—talvez só
áquem do decimo seculo; porque só áquem dessa
data a vida da familia, o homem sinceramente homem,
e não ensaiado e trajado para apparecer na
praça publica, se nos vai pouco a pouco revelando.
As fórmas e o estylo que convem aos tempos wisigothicos
seriam, desde então, absurdos e, parece-me,
até, que ridiculos.
A Hespanha romano-germanica transformou-se
na Hespanha rigorosamente moderna no terrivel
cadinho da conquista arabe. A obra litteraria (novella
ou poema—verso ou prosa—que importa?)
relativa a essa transição deve combinar as duas
fórmulas—indicar as duas extremidades a que se
prende; fazer sentir que o descendente de Theoderik
ou de Leuwighild será o ascendente do Cid
ou do lidador; que o heroe se vai transformar em
cavalleiro; que o servo, entidade duvidosa entre
homem e cousa, começa a converter-se em altivo
e irrequieto burguez.
E a fórma e o estylo devem approximar-se mais
ou menos d'um ou d'outro extremo, conforme a
epocha em que lançamos a nossa concepção está
mais vizinha ou mais remota da que vai deixando
d'existir ou da que vem surgindo. A difficultosa
mistura dessas cores na palheta do artista nenhuma
doutrina, nenhum preceito lh'a diz: ensinar-lh'a-ha
o instincto.
Tive eu esse instincto?—É mais provavel o não
que o sim.—Se a arte fora facil para todos os que
tentam possuí-la, não nos faltariam artistas!
[315]
Hesitei muito tempo sobre se conviria usar dos
nomes proprios, quer de pessoas quer de logares,
como as successivas alterações da linguagem na
Hespanha os foram transformando, a ponto de muitos
delles se acharem hoje totalmente diversos do
que eram na sua origem. Destas mudanças, aquellas
que apenas consistiam no augmento ou diminuição
de uma letra, ou na diversidade das desinencias,
podiam, talvez, ser admittidas sem darem
um aspecto anachronico ao livro. Outros nomes,
porém, havia, sobretudo nas designações corographicas,
tão completamente alterados, que me repugnava
o substituir o moderno ao antigo. Assim
Toletum, Emérita seriam sem difficuldade representados
por Toledo e Mérida; mas, como substituir,
sem anachronismo na expressão, Sevilha a
Hispalis, Leão a Legio, Guadalete a Chryssus e,
finalmente, Burgos a Augustobriga, quando, como
neste caso, até a situação da moderna cidade não
é exactamente a da antiga povoação? Preferi, portanto,
conservar os nomes primitivos, os quaes,
não influindo de modo algum na ordem e clareza
da narrativa, podem facilmente encontrar-se em
qualquer diccionario ou tractado de geographia
antiga.
Aos nomes individuaes dos primeiros wisigodos
procurei conservar, quando alludi a elles, os vestigios
da origem gothica: aos dos personagens do
[316]
meu livro conservei as fórmas alatinadas que se
encontram nos monumentos contemporaneos, porque,
segundo todas as probabilidades, já nesta epocha
o elemento romano de todo havia triumphado
na lingua.
Uma das cousas mais disputadas na historia das
instituições gothicas é a natureza dessa classe de
individuos, que tantas vezes figuram nos monumentos
daquellas epochas, chamados gardingos
(
gardigg em lingua gothica). Masdeu e com elle
Romey, que o traduz quasi sempre ácerca da historia
dos wisigodos, postoque não o cite senão neste
logar, são de parecer que o gardingato não era um
titulo de nobreza, mas do cargo de substituto do
duque (governador de provincia) como o
vicarius
o era do conde (governador de cidade). Aschbach
deriva a palavra de
Gards, que significa
solar com
terras adjacentes, e parece querer confirmar assim
a opinião de Vossio, que pretendia fossem os administradores
ou almoxarifes dos palacios reaes, opinião
que sería mui difficil de sustentar á vista de
varios monumentos hispano-gothicos. Segui o parecer
de Grimm e Lembke, que suppõem formarem
os
gardiggos uma classe de
curiales (cortesãos)
ou nobres. Neste caso não serviria a etymologia
gards para indicar no gardingato uma nobreza
estribada
sobre certa extensão e importancia de propriedade
territorial, formando a terceira classe de
nobreza depois dos
duces e
comites? Rosseeuw-Saint-Hilaire
[317]
pensa-o assim e faz o gardingo synonimo
de
Procer. Procer, todavia, não indicava
em especial o gardingo, mas era denominação generica
da nobreza.
Quanto ao cargo de tiuphado ou tiufado, deve
saber-se que o exercito godo se dividia em corpos
de mil homens, e estes em companhias e esquadras
de cem e de dez. Abaixo do tiuphado (
thiud ou
theod povo e
fath conduzir, ou,
segundo outra
derivação,
taihunda mil e
fath)
que, tambem, se
chamava millenario (da etymologia latina
mille)
estava o quingentario, segundo uns, capitão de
quinhentos homens, especie de major dos regimentos
modernos, e, segundo outros, substituto
do tiuphado ou semelhante aos nossos tenentes-coroneis.
A companhia de cem homens (
centuria)
era regida por um
centenario, e a de dez
(
decania)
por um
decano.
O vestido civil dos wisigodos era uma especie
de tunica chamada
Stringe ou
Strigio, já d'antes
conhecida pelos romanos. O clero usava deste trajo
como os seculares, com a differença de ser branco
ou d'outra cor modesta, porque o havia, até, cor
de purpura, o uso da qual era severamente prohibido
aos sacerdotes. Veja-se Masdeu, Hist. Crit.
d'Esp. T. 11, p. 63 e 197, e Ducange e Carpentier
ás palavras
Stringes,
Strigio.
[318]
A igreja goda empregava oito ministros na celebração
do culto: 1.º o Ostiario, que abria e fechava
o templo, cuidava da conservação dos objetos
do culto e vigiava que não assistissem ao sacrificio
herejes ou excommungados: 2.º o Acolito,
que illuminava os altares e tinha na mão um candelabro
emquanto se lia o evangelho: 3.º o Exorcista,
a quem incumbia o expulsar o demonio dos
possessos: 4.º o Psalmista, que levantava no coro
as antiphonas, psalmos e hymnos: 5.º o Leitor, que
lia em alta voz as prophecias do Antigo Testamento
e as Epistolas e as explicava ao povo: 6.º o Subdiacono,
que recebia as oblações dos fiéis e dispunha
as vestiduras e vasos sagrados para a missa:
7.º o Diacono, que ajudava a esta e dava a
communhão:
8.º o Presbytero, que sacrificava, prégava
e dava a benção ao povo.
Poetas celebres hispano-godos do seculo V.—De
Draconcio resta-nos o
Carmen de Deo e uma
epistola dirigida a Gunth-rik rei dos vandalos. De
Merobaude subsiste um fragmento do
Poema de
Christo. D'Orencio, tão elogiado pelo poeta Fortunato
e por Sidonio Apollinario, apenas resta uma
pequena poesia na
Bibliotheca Veterum Patrum.
[319]
A raça dos godos, asiatica na origem e germanica
na lingua, que, antes de occupar uma
parte do territorio romano, habitava ao norte do
Ponto Euxino (Mar Negro), dividia-se em duas
grandes familias, cujas denominações provieram
da sua situação relativa. Os que estanceiavam ao
oriente chamavam-se
ost-goths (godos de leste) e
depois,
corruptamente, ostrogodos; os que demoravam
ao occidente eram os
west-goths (godos de
oeste) ou wisigodos, que, depois de ora servirem o
imperio como alliados, ora assolarem-no como inimigos,
vieram fazer assento no sul das Gallias e na
Peninsula, estabelecendo, a final, em Toledo o centro
do seu imperio.
A celebre batalha dada por Theoderik, rei dos
wisigodos, e pelo general romano Aecio, seu alliado,
ao feroz Attila nos
campi catalaunici (planicies
de Chalons-sur-Marne) é o mais celebre entre
os terriveis combates que custou á Europa no
V seculo a dissolução do grande cadaver romano.
Podem-se ver em Jornandes e no Panegyrico de
Avito por Sidonio Apollinario as particularidades
deste successo.
[320]
Algeziras. Este nome foi posto pelos arabes ao
logar onde Tarik veio aportar, saindo de Ceuta
para a conquista d'Hespanha. O ilheu, hoje chamado
das Pombas, fica a um tiro d'espingarda daquella
povoação, á qual passou o nome que os arabes
tinham dado á ilhota, vendo-a verdejar ao
longe:—
Djezirat-al-Hadra
(ilha-verde). Ignorando-lhe
o nome antigo, suppuz que essa denominação de
origem arabica era anterior e que já os godos lh'a
attribuiam. O anachronismo é, a meu ver, assás
desculpavel.
O
amiculo, que entre os romanos era proprio
das mulheres de baixa esphera, tornou-se em Hespanha
trajo commum das mais honestas e nobres:
era uma especie de manto, com que cubriam as
vestiduras inferiores: Os cabellos encerravam-nos
n'uma como coifa, denominada
retíolo. Veja-se
Masdeu, Hist. Crit. T. 11, p. 6.
Os wisigodos tinham dado em especial o nome
[321]
de
Campi gothici ás planicies de Leão e da
Extremadura
Hespanhola. D'ahi, contrahida a menor
territorio, veio a denominação da terra de
Campos.
«
Wali: Prefeito, caudilho principal, governador
de provincia, general d'exercito:»
Conde,
Declar.
de alg. nom. arabes. Juliano era, segundo
parece, o governador da provincia gothica d'além
do Estreito, chamada
Transfretana; cabia-lhe por
isso entre os arabes o titulo de Wali. Sebta é a
corrupção arabica do nome de Septum, corrupção
d'onde os nossos antigos formaram
Cepta e, depois,
Ceuta.
O
frankisk ou
frankiska era uma
especie de
machadinha de dous gumes, usada pelos frankos,
de quem os godos a tomaram. Consulte-se Masdeu,
Hist. Crit. T. 11, p. 52—e Ducange, verb.
Francisca.
A
Cateia, de que adiante se ha-de falar,
era uma lança curta ou dardo, a origem, talvez,
da
azcuma dos tempos posteriores.
Sevilha no tempo dos romanos tinha dous nomes—
Romula
[322]
e
Hispalis. Este
ultimo veio a prevalecer,
emfim. Veja-se
Flores, Esp. Sagr. T.
9,
p. 87.
Mohammed era natural de Medina. Esta cidade
chamava-se Yatrib. Foi elle quem lhe poz o nome
de Medina-al-Nabi—
Cidade do Propheta.
Os arabes, tendo desembarcado nas costas d'Hespanha
e vendo que a montanha do Calpe era um
logar grandemente defensavel, fortificaram-se ahi,
porventura emquanto esperavam o resto do exercito
que passava d'Africa. A montanha recebeu então
o nome de
Geb-al-Tarik (monte de Tarik) e,
tambem, o de
Gel-al-Fetah (monte da Entrada).
Da palavra Geb-al-Tarik se formou depois a de
Gibraltar.
Islam em arabe, o islamismo ou religião do koran.
Significa, propriamente, esta palavra
resignação;
resignação em Deus.
[323]
Esculcas eram, nos tempos barbaros, chamadas as
rondas ou sentinellas nocturnas dos arraiaes. Esta
palavra encontra-se nos escriptores do VI seculo e
dos seguintes, como em S. Gregorio Magno;
sculcas
quos mittitis sollicitè requirant: Epist. 12—23.—A
fórma pura do vocabulo,
Exculcatores,
apparece já em Vegecio: depois, por abbreviatura,
Exculcae e
Sculcae.
Sculcas são contrapostos aos
atalaias nas leis das Partidas. P. 2. tit 26, onde
estes significam
guardas de dia.
Os arabes designavam os christãos ou, antes,
em geral, qualquer europeu pelo nome de
al-rumi,
o romano, quer fosse grego, franko ou hespanhol.
Aquelles mesmos que abraçavam o islamismo conservavam
este appellido. Tal era o amir ou general
da cavallaria, Mugueiz, um dos mais famosos
companheiros de Tarik. Quando, em especial, os
pretendiam designar, não pela differença de raça,
mas pela de crença, denominavam-nos
Nassrani
(nazarenos).
[324]
Deus só é grande! era para os arabes a voz de
accommetter, como, depois, foi para os christãos o
grito de
Sanctiago!
A ephippia era uma especie de sella de lan que
os godos haviam imitado da cavallaria romana.
«As armas delles (dos berebéres e arabes africanos)
quasi se limitam a páus compridos a que se
prendem pequenos tóros atados pelo meio, que no
combate descarregam sobre os inimigos com ambas
as mãos:» Alkhathib,
Pleni-Lunii Splendor, em
Casiri, T. 2, p. 258.
Como a palavra latina
senior (o mais velho) veio
a significar no latim barbaro e no romance ou linguas
vulgares das nações modernas, o
principal, o
senhor, assim a palavra arabe
Cheik, Chek,
Xeque,
[325]
isto é, o
ancião, tomou entre os sarracenos a
significação
de senhor ou chefe de uma tribu.
No imperio godo os buccellarios vinham a ser o
mesmo que os clientes dos romanos, homens livres
addictos ás familias poderosas, por quem eram patrocinados
e, talvez, sustentados, se, como pretende
Masdeu e o seu, nesta parte, quasi traductor Romey,
o nome
buccellarius lhes provinha de
buccella
(migalha de pão). O Codigo Wisigothico (Liv.
5. tit. 3.º) estabelece os deveres e relações destes
homens com seus amos e patronos. A obrigação
mais importante do buccellario parece ter consistido
no serviço militar:
Si ei... arma dederit. É
por isso que se me affigura mais provavel a etymologia
que a semelhante denominação attribue
com preferencia o erudito Canciani (Barbar. Leg.
Ant. Vol. 4, p. 117) derivando-a da palavra scandinava
buklar (o escudo), transformada no idioma
germanico em
buckel e nas linguas modernas em
buckler, bouclier, broquel. Neste caso o buccellario
corresponderia ao
armigero ou
escudeiro do seculo
12 e 13, que, significando na sua origem o que
trazia as armas ou o escudo do seu senhor ou amo,
veio a tomar-se por um homem d'armas de certa
distincção, a quem, todavia, faltava o grau de cavalleiro.
[326]
O facto narrado neste capitulo é historico. O
logar da scena e a epocha é que são inventados.
Foram as monjas de Nossa Senhora do Valle, juncto
d'Écija, que, em tempos posteriores, practicaram
este feito heroico, para se esquivarem á sensualidade
brutal dos arabes. Parece que o procedimento
das freiras d'Écija foi imitado em muitas
outras partes. Consulte-se
Berganza,
Antiguedades
de España, T. 1, pag. 139; e
Morales, Cron.
Gener. T. 3, pag. 105.
Segundo Lembke, cuja opinião assenta no testemunho
de Ibn-Said e de Ahmed-Al-makkari, os
arabes conheciam a Hespanha, antes da conquista,
pelo nome de
Andalós ou
Andalús,
nome que, depois,
applicaram em especial ao territorio entre o
Wadi-Al-Kebir e o Wadi-Ana (Guadalquivir e
Guadiana), isto é, á moderna Andalusia. O nome
de Al-Gharb (o occidente) que, igualmente, deram
á Peninsula para a distinguir da Mauritania (Al-Moghreb)
veio, tambem, a contrahir-se á nossa
provincia do Algarve.
[327]
Alfaquih. É titulo que os africanos dão aos seus
sacerdotes e sabios da lei: Moura, Vestig. da Lingua
Arab. p. 38.
As grandes divisões da Hespanha, segundo a
geographia arabe, eram quatro:—
Al-Gharb o
occidente;
Al-Sharhiah o oriente;
Al-Kiblah o
meio-dia;
Al-Djuf o norte. Era esta, por isso, a
designação dos territorios christãos das Asturias e
Cantabria.
O
aripennis,
arapennis,
agripennis, ou
arpentum,
d'onde veio a palavra franceza
arpent, era
uma medida d'extensão igual a metade do
jugerum,
d'onde tomámos a palavra
geira. O aripenne
media-se em quadro e tinha de cada lado 12
pérticas,
medida que equivalia a dous palmos. Masdeu
affirma que o aripenne era medida especial da
Betica, o que é inexacto; porque ella se acha mencionada
em muitos documentos, não só de outras
provincias d'Hespanha, mas tambem de diversos
paizes, como se póde ver em Ducange, á palavra
Arapennis.
[328]
Nas mil tradições diversas, quer antigas, quer
inventadas em tempos mais modernos, sobre o modo
como se constituiu a monarchia das Asturias
procurei cingir-me, ao menos no desenho geral,
ao que passa por mais rigorosamente historico. Todavia,
cumpre advertir que Pelagio viveu, segundo
todas as probabilidades, em tempos um pouco
posteriores á conquista arabe e que a morte de
Oppas e de Juliano na batalha de Cangas de Onis,
successo narrado por alguns escriptores, tem sobrados
caractéres de fabulosa. A minha intenção,
porém, foi, como já notei, pintar os homens da
epocha de transição, digamos assim, dos tempos
heroicos da historia moderna para o periodo da
cavallaria, brilhante ainda, mas já de dimensões
ordinarias. O meu heroe do Chryssus é como o ultimo
semideus que combate na terra; os foragidos
de Covadonga são como os primeiros cavalleiros da
longa, patriotica e tenaz cruzada da Peninsula contra
os sarracenos. Deste modo, sendo hoje difficultoso
separar, em relação áquellas eras, o historico
do fabuloso, aproveitei d'um e d'outro o que me
pareceu mais appropriado ao meu fim.
Notas de Rodapé:
[1] Jesus.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
As aspas foram mantidas tal como surgiam no original (mesmo que pareçam em falta).