Pérez Galdóz
VERSÃO PORTUGUEZA
DE
Ramalho Ortigão
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1901
Unica traducção portugueza auctorisada pelo auctor
Porto—Imprensa Moderna
Sala sumptuosa no palacio dos senhores de Garcia Yuste. Á direita, sahida para o jardim. Ao fundo, communicação para outras salas do palacio. Á direita, no primeiro plano, porta dos quartos d’Electra.
MARQUEZ E JOSÉ
José
Estão no jardim... Vou dar parte.
Marquez
Espera lá. É esta a primeira visita que faço aos senhores de Garcia Yuste no seu palacio novo... Deixa-me dar uma vista d’olhos... Está n’um grande pé... Bem hajam os que tão bem empregam o seu dinheiro! Porque não é sómente o seu estado de casa, é o bem que fazem, o generosos que são em obras pias...
José
Oh! lá isso...!
Marquez
E tão mettidos comsigo! tanto da paz e do socego do lar!... Ainda que, segundo cuido, ha novidade agora na familia...
José
Novidade? Ah! já sei... Quer o snr. Marquez referir-se...
Marquez
Escuta, José! Promettes fazer o que eu te peça?
José
Já o snr. Marquez sabe que eu me não esqueço nunca dos quatorze annos que servi na sua casa... O snr. Marquez manda, não pergunta.
Marquez
Pois venho cá de proposito para conhecer essa interessante senhorita, que os teus amos trouxeram agora d’um collegio de França...
José
A senhorita Electra.
Marquez
Podes dizer-me se os senhores estão contentes com essa nova sobrinha? É pessôa amoravel, agradecida?
José
Oh! n’esse particular!... Os senhores morrem por ella... Sómente...
Marquez
Quê?
José
A menina é travessasita...
Marquez
A edade!
José
Brincalhôna, oh! mas brincalhôna, que se não faz uma ideia...
Marquez
Mas diz que é linda, que é um anjo...
José
Um anjo sim, se ha anjos parecidos com mafarricos... É que nos põe o sal na moleira a todos cá de casa!
Marquez
Estou morto por conhecêl-a!
José
No jardim a encontra o snr. Marquez. É lá que passa as manhãs pondo em redemoinho tudo.
Marquez
(olhando para o jardim) Lindo jardim, bello parque, as velhas arvores do antigo palacio das Gravelinas...
José
É exacto.
Marquez
O grande predio, ao fundo da alameda, é tambem dos senhores de Yuste?
José
Tambem. Com entrada pelo jardim e pela rua. Em baixo tem o seu laboratorio o sobrinho dos patrões, o senhorito Maximo, primeiro dos trunfos de Hispanha nas mathematicas, e... na outra coisa... na...
Marquez
Bem sei... Chamam-lhe o Magico prodigioso... Conheci-o em Londres... ainda a mulher d’elle era viva.
José
Morreu em fevereiro do anno passado... e deixou-lhe dois filhos, dois amores!
Marquez
Ultimamente renovei com elle o meu antigo conhecimento, e, apesar de nos não visitarmos, por certos motivos, somos muito amigos.
José
Tambem eu gósto d’elle. Optimo sujeito...!
Marquez
E outra coisa: não estão arrependidos os teus amos de terem mettido em casa esse diabretesito?
José
(receoso de que venha gente) Eu direi a V. Ex.ª... Tenho notado... (Vê vir D. Urbano pelo jardim) Ahi vem o senhor.
Marquez
Põe-te a andar.
MARQUEZ E D. URBANO
Marquez
(abrindo-lhe os braços) Querido Urbano!
Urbano
Marquez! ditosos olhos!...
Marquez
E Evarista?
Urbano
Bem... Sómente extranhando muito as grandes ausencias do marquez de Ronda...
Marquez
Oh! você não imagina o inverno que passámos...
Urbano
E Virginia?
Marquez
Assim, assim... Sempre achacada, mas reagindo constantemente pela força de uma vontade tenaz, cabeçuda lhe chamarei.
Urbano
Pois ainda bem! ainda bem!... Com quê... quer que desçamos ao jardim?
Marquez
Vamos já! Deixe-me tomar assento, pouco a pouco, na sua casa nova... (Senta-se) E conte-me lá, querido, conte-me d’essa menina encantada, que foram buscar ao collegio.
Urbano
Não, não estava já no collegio. Tinha ido para Hendaya, para uns parentes da mãe. Eu nunca fui muito da opinião de a trazer para cá. Mas Evarista emprehendeu n’isso... Quer sondar o caracter da pequena, apurar se d’ella se poderá fazer uma mulher em termos, ou se nos estará destinada a vergonha de a vêr herdar as tendencias da mãe... Você sabe que era uma prima irmã de minha mulher; e escuso de lhe lembrar os escandalos que deu essa Eleuteria desde o anno de 80 a 85.
Marquez
Nem me fale n’isso!
Urbano
Emfim, foi a ponto de que a familia, vexada, rompeu com ella de todo e para sempre! Esta menina, agora, cujo pae se não sabe quem seja, criou-se com a mãe até os cinco annos. Depois levaram-a para as Ursulinas de Bayona. Lá, ou por abreviar ou pelo que fosse, puzeram-lhe esse nome, exquisito e novo, de Electra.
Marquez
Novo, propriamente, não. Á pobre mãe—coitadita—Eleuteria Dias, todos nós, os intimos da casa, lhe chamavamos tambem Electra, em parte talvez por abreviatura, e em parte porque ao pae, militar valente mas assignaladamente desditoso na vida conjugal, tinham posto a alcunha de Agamemnon.
Urbano
D’essa não sabia... Tambem nunca vivi com elles. Eleuteria, pela fama que tinha, figurava-se-me uma creatura repugnante...
Marquez
Por amor de Deus, querido Urbano, não sejamos pharisaicos... Lembre-se que Eleuteria—a quem chamaremos Electra I—mudou de vida, ahi por 88...
Urbano
E não deu pouco que falar esse arrependimento tambem. Lá foi morrer a S. João da Penitencia, em 95, regenerada, abominando a monstruosa libertinagem da sua vida...
Marquez
(como quem lhe reprehende o rigorismo) Deus lhe perdoou...
Urbano
Sim, sim... perdão, esquecimento...
Marquez
E tratam então agora de tentear Electra II a vêr se inclinará para bem ou se lhe dará para mal... Que resultado vão dando as provas?
Urbano
Resultados obscuros, contradictorios, variaveis de dia para dia, de hora para hora. Ha momentos em que ella nos revela qualidades sublimes, mal encobertas pela sua innocencia; outros, em que nos apparece como a creatura mais doida a quem Deus deu licença de vir ao mundo. Tão depressa encanta pela sua candura angelica como aterra a gente pelas diabolicas subtilezas que desfia da sua propria ignorancia.
Marquez
Natural desequilibrio da edade, excesso de imaginação, talvez. É esperta?
Urbano
Como a electricidade em pessoa, mysteriosa, repentista, de grande tino. Destroe, transtorna, perturba, illumina.
Marquez
(levantando-se) Fervo em curiosidade. Vamos vêl-a.
MARQUEZ, URBANO, CUESTA, pelo fundo
Cuesta
(entra com mostras de cançaço, tira do bolso a carteira de negocios, e dirige-se á mesa) Marquez... Tudo bom por cá?
Marquez
Oh! grande Cuesta! que nos conta o nosso incançavel agente?
Cuesta
(senta-se. Revela um padecimento de coração) O incançavel... começa a cançar.
Urbano
Homem! e que me dizes da alta d’hontem no Amortisavel?
Cuesta
Veio de Paris com dois inteiros.
Urbano
Fizeste a nossa liquidação?
Marquez
E a minha?
Cuesta
Estou com isso... (Tira papeis da carteira e escreve a lapis) N’um instante saberão as cifras exactas. Tirou-se todo o partido que se podia tirar da conversão.
Marquez
Naturalmente... Sendo o typo de emissão dos novos valores 79,50... tendo nós comprado por preço muito baixo o papel recolhido...
Urbano
Naturalmente...
Cuesta
O resultado foi enorme.
Marquez
Querido Urbano, esta facilidade com que se enriquece é positivo que dá o amor da vida e o enthusiasmo da belleza humana. Vamos para o jardim.
Urbano
(a Cuesta) Vens?
Cuesta
Preciso de dez minutos de silencio para pôr em ordem os meus apontamentos.
Urbano
Deixamos-te em socego. Não queres nada?
Cuesta
(abstrahido nas suas contas) Não... quero dizer... Sim: manda-me vir um copo de agoa. Estou abrasado.
Urbano
Immediatamente. (Sae com o Marquez para o jardim)
CUESTA E PATROS
Cuesta
(corrigindo as suas notas) Ah! cá está o erro. Aos de Yuste toca... um milhão e seiscentas mil pezetas. Ao marquez de Ronda, duzentas e vinte e duas mil... Temos que descontar as doze mil e tanto, equivalentes aos nove mil francos... (Entra Patros com copos d’agoa, caramellos e cognac. Espera que Cuesta termine a sua conta)
Patros
Ponho aqui, D. Leonardo?
Cuesta
Põe e espera um instante... Um milhão e oitocentos... com os seiscentos e dez... fazem... claro! está certo. Bem bom! bem bom!... Com que então, Patros... (tira do bolso dinheiro, que lhe dá) Toma lá!
Patros
Muito obrigado!
Cuesta
E já te aviso que espero de ti um favôr...
Patros
Dirá, D. Leonardo.
Cuesta
Pois, minha amiga... (remechendo um caramello) Escuta...
Patros
Não quer cognac?... Se vem cançado, a agoa só pode fazer-lhe mal.
Cuesta
Sim: deita um poucochito... Pois o que eu quereria...—Não vás pôr malicia no que a não tem: sentido!—o que eu quereria era falar alguns momentos, a sós, com a senhorita Electra. Conhecendo-me como me conheces, comprehenderás de certo que o meu fim é o mais honrado e o mais digno... Mas sempre t’o digo para te tirar todo o escrupulo... (Recolhe os papeis) Antes que venha alguem, poderás dizer-me que occasião e que logar será melhor?
Patros
Para dizer duas palavras á senhorita Electra... (meditando) terá de ser então quando os senhores estiverem com o procurador... Eu verei.
Cuesta
Se pudesse ser hoje, melhor.
Patros
Ainda cá volta hoje?
Cuesta
Volto. Avisa-me.
Patros
Esteja certo. (Recolhe o serviço e sae)
CUESTA E PANTOJA, que entra em scena meditabundo, abstraído, todo vestido de preto
Cuesta
Amigo Pantoja, salve-o Deus! Como vamos?
Pantoja
(suspira) Vivendo, amigo, que é o mesmo que dizer: esperando.
Cuesta
Esperando melhor vida...
Pantoja
Padecendo n’esta o que Deus determine para merecer a outra.
Cuesta
E de saude que tal?
Pantoja
Mal e bem. Mal, porque me affligem desgostos e achaques; bem, porque me apraz a dôr, e me regosija o soffrimento. (Inquieto, e como dominado por uma ideia fixa, olha para o jardim)
Cuesta
Que ascetico vem hoje!
Pantoja
Olhe que cabecinha de vento a d’aquella Electra...! Lá vae ella de corrida com os pequenos do porteiro, com os dois filhos do Maximo, e ainda com filhos dos visinhos. Quando a deixam n’aquellas travessuras de creança é que ella é feliz.
Cuesta
Adoravel creaturinha! Que Deus a fade bem, para ser uma mulher como se quer!
Pantoja
D’aquella graciosa boneca, d’aquella voluvel menina facilmente se poderia tirar um anjo; da mulher que ella ha de ser, não sei.
Cuesta
Não o entendo bem, amigo Pantoja.
Pantoja
Entendo-me eu... Olhe, olhe como brincam... (Assustado) Deus de misericordia! quem é que vae com ella?... Não é o marquez de Ronda?
Cuesta
Elle mesmo.
Pantoja
Que corrupto homem! Tenorio da geração passada não se decide a jubilar-se para não dar um desgosto a Satanaz!
Cuesta
Para que mais uma vez se possa dizer que não ha paraizo sem serpente...
Pantoja
Para isso não! serpente já tinhamos. (Passeia nervoso e displicente pela sala)
Cuesta
E diga-me, passando a outra coisa: teve já noticia do dinheirão que lhes trouxe?
Pantoja
(sem prestar grande attenção e fixando-se n’outra ideia que não formúla) Ah! sim, já... Ganhou-se muito.
Cuesta
Evarista completará agora a sua grande obra religiosa.
Pantoja
(maquinalmente) Sim.
Cuesta
E poderá o amigo Pantoja consagrar muito maiores recursos a S. José da Penitencia.
Pantoja
Sim... (Voltando á sua ideia fixa) Serpente já tinhamos... Que dizia, amigo Cuesta?
Cuesta
Dizia eu...
Pantoja
Desculpe interrompel-o... Sabe se sempre é certo que o nosso visinho de defronte, o nosso maravilhoso sábio, inventor e quasi thaumaturgo, projecte mudar de casa?
Cuesta
Quem? Maximo? Acho que sim... Parece que em Bilbau e em Barcelona acolhem com enthusiasmo os seus admiraveis estudos para novas applicações da electricidade; e lhe offerecem todos os capitaes que elle queira para proseguir nas experiencias que encetou.
Pantoja
(meditativo) Oh! capitaes eu lh’os daria tambem, comtanto que...
PANTOJA, CUESTA, EVARISTA, URBANO E O MARQUEZ, que veem do jardim
Evarista
(soltando o braço do Marquez) Bons dias, Cuesta. Pantoja, quanto estimo vêl-o! (Cuesta e Pantoja inclinam-se e beijam-lhe respeitosamente a mão. A senhora de Yuste senta-se á direita; o Marquez em pé ao lado d’ella. Os outros agrupam-se á esquerda falando de negocios.)
Marquez
(reatando com Evarista uma conversação interrompida) Por este andar a minha boa amiga não sómente passa á Historia mas passa a figurar tambem no Anno Christão.
Evarista
Não me gabe por coisas em que não ha merecimento nenhum, Marquez... Não temos filhos: Deus cumula-nos de riqueza. Temos em cada anno uma herança. Sem trabalho nenhum—nem, sequer o de discorrer—o excesso dos nossos rendimentos, habilmente manejados pelo amigo Cuesta, capitalisa-se sem darmos por isso, e cria novas fontes de dinheiro. Se compramos[21] uma quinta, a subida dos productos triplica n’esse mesmo anno o valor da terra. Se ficamos senhores de um baldio inteiramente sáfaro, acontece que no subsolo se descobre um jazigo immenso de carvão, de ferro ou de chumbo... Que quer dizer tudo isto?
Marquez
Quer dizer—acho eu—que quando Deus multiplica tantas riquezas sobre quem nem as deseja nem as estima, bem claramente elle está indicando que as concede para que sejam empregadas em servil-o.
Evarista
É claro. Interpretando-o tambem assim, eu apresso-me a cumprir a vontade de Deus. O dinheiro que Cuesta nos veio hoje trazer apenas me passará pelas mãos, e com elle completarei a somma de sete milhões consagrados á obra do Santo Patrocinio. E mais farei para que a casa e o collegio de Madrid tenham o decoro e a magnificencia adequada a um tão grande instituto. Desenvolveremos tambem as obras do collegio de Valencia e do de Cadiz...
Pantoja
(passando para o grupo da direita) Sem esquecer, minha senhora, a casa dos altos estudos, a sua escola de instrucção superior, que virá a ser o santuario da verdadeira Sciencia.
Evarista
Bem sabe que é esse o meu constante pensamento.
Urbano
(passando tambem para a direita) N’isso se pensa n’esta casa de noite e de dia.
Marquez
Admiravel, minha querida amiga, admiravel! (Levanta-se)
Evarista
(a Cuesta, que igualmente tem passado para a direita) E agora, amigo Leonardo, que vamos fazer?
Cuesta
(sentando-se ao lado de Evarista, a quem propõe novas operações) Por hoje nos limitaremos a metter algum dinheiro...
(Pantoja, em pé, colloca-se á esquerda de Evarista)
Marquez
(passeando na scena com Urbano) Ha de permittir, querido Urbano, que, proclamando os merecimentos sublimes da senhora de Garcia Yuste, eu não deite em sacco roto os nossos: falo da minha mulher e de mim. Saberá que Virginia já fez a caridade de transferir para as Escravas de Jesus um bom terço da nossa fortuna...
Urbano
Das mais solidas da Andaluzia.
Marquez
E por nosso testamento deixamos tudo a essas senhoras, menos a parte destinada a certos encargos e aos parentes pobres.
Urbano
Ora vejam lá!... Mas, segundo me constou, o Marquez aqui ha annos parece que não via com enthusiasmo illimitado que a piedade da marqueza, minha senhora, se tornasse tão angelicamente dispendiosa...
Marquez
É certo... mas converti-me. Abjurei todos os meus erros. A minha mulher catechisou-me.
Urbano
Exactissimamente o que me succedeu a mim. Evarista virou-me com o forro de santo para fóra.
Marquez
Para conservar a paz e estabelecer a harmonia conjugal, principiei por contemporisar, continuei contemporisando... Pois, meu amiguinho, contemporisação foi ella que, a pouco e pouco, cheguei ao que se vê: Sou um escravo... das Escravas de Jesus! E não me arrependo. Vivo n’uma placidez beatifica, curado de todas as inquietações da minha vida. E estou já agora a convencer-me de uma coisa: é que a minha mulher não sómente salva a sua alma, mas que me salva a minha tambem!
Urbano
Pois é o que eu egualmente recommendo cá em casa: que não se esqueçam, podendo tambem ser, de me salvar a mim!
Marquez
Nós, homens, não temos iniciativa para nada.
Urbano
Absolutamente para nada!
Marquez
Verdade seja que ás vezes até o que se chama respirar nos prohibem!
Urbano
Prohibida a respiração... Conheço!
Marquez
Mas vivemos em paz.
Urbano
E servimos a Deus sem esforço nenhum. Isso é que é.
Marquez
As nossas mulheres lá vão adeante de nós, por esse bemdito caminho da eternidade, pela gloria fóra; e podemos estar socegados, que nos não deixam na estrada.
Urbano
Pois! é a sua obrigação.
Evarista
Urbano?...
Urbano
(acudindo pressuroso) Menina...
Evarista
Põe-te á disposição de Cuesta para a liquidação e para a entrega aos padres.
Urbano
Hoje mesmo. (Cuesta levanta-se)
Evarista
E outra coisa: faze-me favor de chegar ao jardim, e dizer a Electra que tem já tres horas de brincadeira.
Pantoja
(imperioso) Que se venha embora. É brincar de mais.
Urbano
Vou já. (Vendo vir Electra) Ella ahi vem.
ELECTRA, atraz d’ella MAXIMO
Electra
(Entra a correr e a rir, perseguida por Maximo, a quem ganhou na corrida. O seu riso é de medo infantil) Bem feito, que não me pilhas!... Enraivece-te, brutamontes!
Maximo
(traz em uma das mãos varios objectos que indicará, e na outra um ramo de choupo, que esgrime como um chicote) Eu te digo se te pilho ou não, selvagem!
Electra
(sem fazer caso dos que estão em scena, corre a casa com infantil ligeiresa e vae refugiar-se no vestido de D. Evarista, ajoelhando-se-lhe aos pés e abraçando-a pela cinta) Estou salva!... Tia, ponha-o fóra!
Maximo
Ah! já foges! já tens medo, minha menina!
Evarista
Mas, filha da minh’alma! quando é que terás modos de senhora? E tu, Maximo, és tão creança como ella.
Maximo
(mostrando as coisas que traz) Vejam o que esse demonico me fez. Quebrou-me estes dois tubos... E olhem o estado em que poz estes papeis, contendo calculos que representam um trabalho enorme. (Mostra os papeis suspendendo-os de alto) D’este fez uma passarola; este deu-o aos pequenos para pintarem elephantes, burros e um couraçado a atirar balas a um castello...
Pantoja
Então ella foi ao laboratorio?
Maximo
E revolucionou os pequenos... Revolveram-me tudo!
Pantoja
(com severidade) Isso, menina...
Evarista
Electra!
Marquez
(enthusiasmado) Electra! Encanto de menina grande! Bemditas travessuras!
Electra
Eu não lhe quebrei os tubos. Não ha tal! Foi Pepito que lhe fez esse obsequio. Os papeis, sim senhor; fui eu que peguei n’elles, imaginando que não serviam para nada com os hediondos esgaravunhos que tinham.
Cuesta
Basta! haja pazes!
Maximo
Pois vá lá, por esta vez... (a Electra) Perdôo-te. Deves-me a vida... Toma lá. (Entrega-lhe a chibata; Electra recebe-a, e bate-lhe brandamente)
Electra
Toma agora tu! Esta é pelo que me disseste. (Batendo-lhe com mais força) Esta agora pelo que não quizeste dizer-me.
Maximo
Disse-te tudo.
Pantoja
Moderação! juizo!
Evarista
Que te disse elle?
Maximo
Disse-lhe verdades uteis... Que aprenda por si mesma o muito que ainda ignora; que abra bem abertos esses grandes olhos e que os estenda pela vida humana, para que veja que nem tudo é alegria, que ha tambem no mundo deveres, desenganos e sacrificios...
Electra
Chega o lobishomem! (Occupa o centro da scena, onde todos a rodeiam, menos Pantoja, que se colloca ao lado d’Evarista)
Cuesta
Nem tudo applausos!
Urbano
A severidade é precisa.
Maximo
Em severidade ninguem me ganha... Dize: é ou não é verdade que sou severo, e que tu m’o agradeces? Confessa que me agradeces!
Electra
(batendo-lhe de leve) Peste de sábio! Se isto fôsse um açoite verdadeiro, ainda com mais alma te batia.
Marquez
(risonho e encarinhado) Electra, veja se me bate em mim tambem... Faça-me essa esmola!
Electra
Em si não, porque não tenho confiança... Só se fôr muito de levesinho... assim... assim... assim... (Toca levemente no Marquez, em Cuesta e em Urbano)
Evarista
Melhor seria que tocasses piano para esses senhores ouvirem.
Maximo
Quê, se não estuda nada! Só uma coisa se póde comparar á sua grande disposição artistica, é o seu espantoso desapego de todas as artes.
Cuesta
Que nos mostre as aquarellas e os desenhos. O Marquez vae vêr. (Juntam-se todos em volta da meza, menos Evarista e Pantoja, que conversam áparte)
Electra
Ahi sim senhor! (Procurando a pasta de desenhos entre os livros e as revistas que estão na mesa) Agora se vae vêr se sou ou se não sou uma artista!
Maximo
Forte gabarola!
Electra
(desatando as fitas da pasta) Pois sim! tu a desfazeres e eu a augmentar-me veremos quem póde mais. Ora aqui está, e pasmem! (Mostrando os desenhos) Que teem que dizer a estes portentosos esboços de paizagem, de figura, de animaes? a estas vaccas que parecem pessoas? a estas naturezas mortas que parecem vivas? a estes rochedos que só lhes falta fallarem?! (Todos se extasiam no exame dos desenhos, que passam de mão em mão)
Evarista
(tendo desviado a attenção do grupo do centro, entabolou conversa intima com Pantoja) Tem razão, Salvador. Quando é que a não tem? Agora, no caso de Electra, o seu argumento é um clarão que nos illumina a todos.
Pantoja
Não vá crêr que seja a minha pobre intelligencia que projecta essa luz. Ella é apenas o resplendor de um fogo intenso que tenho em mim: a vontade! Por meio d’esta força, que devo a Deus, esmaguei o meu orgulho e emendei os meus erros.
Evarista
Depois da confidencia que hontem á noite me fez é indiscutivel para mim o seu direito de intervir na educação d’essa cabeça de vento...
Pantoja
Para lhe ensinar o caminho da vida, para lhe mostrar o alto fito da nossa misera existencia na terra...
Evarista
E esse direito que indubitavelmente lhe cabe, implica deveres inilludiveis...
Pantoja
Quanto lhe agradeço que tão perfeitaimente o comprehenda, minha senhora e amiga da minha alma! Eu receava que a minha confidencia d’hontem, historia funesta que reveste de negro os melhores[34] annos da minha vida, me tivesse feito decaír da sua estima!
Evarista
Não, meu amigo. Quem é que dentro da humanidade se póde considerar liberto da fraqueza humana? Em si o peccador regenerou-se, castigando a vida com as mortificações do arrependimento, e dignificando-a com a pratica da virtude.
Pantoja
A divina tristeza, o amor da solidão, o convicto desprezo de todas as vaidades do mundo foram a salvação da minha alma. Pois bem: eu não estaria completamente purificado perante a minha consciencia se n’esta occasião não interviesse nos negocios da terra para salvar dos seus perigos a angelica innocencia d’essa menina, fatalmente destinada, se lhe não acudirmos, a precipitar-se pelo caminho em que se perdeu a sua desgraçada mãe.
Evarista
A minha opinião é que fale com ella...
Pantoja
A sós.
Evarista
Assim o entendo: a sós. Faça-lhe comprehender, o mais delicadamente que possa, a especie de auctoridade que tem...
Pantoja
É todo o meu desejo esse... (Continuam em voz baixa)
Electra
(no grupo do centro disputando com Maximo) Deixa-te de sentenças, que tu d’isto não sabes nada! Então não querem vêr com a que elle se sae? que o passaro parece um velho pensativo, e que a mulher faz lembrar uma lagosta desmaiada...
Marquez
Não senhor... Eu acho que está muito bem feito!
Maximo
Ás vezes tambem lhe dá para ahi! Quando menos pensa saem-lhe coisas prodigiosamente exactas.
Cuesta
É certo que estas velhas arvores, atravez das quaes se descobre uma triste faixa de mar, ao longe...
Electra
A minha especialidade aposto que ainda nenhum adivinhou qual é?... Pois são os troncos velhos, são os carcomidos muros em ruina. É singular que só pinto bem aquillo que não conheço: a tristeza, o passado, o môrto! A grande luminosidade radeante da alegria, da mocidade, não me sae! (Com pena e assombro) Sou uma grande artista para tudo que não sou eu!
Urbano
Tem graça.
Cuesta
Esta menina é optima!
Marquez
É scintillante!
Maximo
Esperemos que lhe venha a reflexão tambem... a seu tempo...
Electra
(zombando de Maximo) A reflexão! a gravidade! o tempo que ha de vir!... É a sombra que sempre me deita este cipreste!... Ora fica sabendo que eu hei de ter[37] tudo isso quando me dér para ahi... e mais do que tu, meu sabichão!
Maximo
Veremos... veremos isso quando te chegar a vez!
Pantoja
(que não tem dado attenção ao que se passa no grupo) Não posso occultar-lhe, minha senhora, que me desagrada muito a familiaridade de Electra com o sobrinho do seu marido.
Evarista
Ha de se lhe corrigir. Mas no emtanto sempre tenha você em conta que este Maximo, que ahi vê, é um homem perfeitamente de bem e raramente serio...
Pantoja
Bem sei, minha amiga... Mas nos desfiladeiros da confiança excessiva resvalam os mais solidos e os mais firmes; uma triste experiencia m’o ensinou a mim!
Electra
(no grupo do centro) Eu hei de tomar todo o juizo que eu quizer quando elle me fôr preciso. Ninguem se põe serio emquanto Deus não manda. Ninguem diz ai ai senão quando alguma coisa lhe doe.
Marquez
Lá isso é verdade!
Cuesta
Um dia aprenderá a ser pratica.
Electra
De certo que sim! No dia em que venha Deus e me diga: «Menina: aqui tens a dôr, a duvida, a responsabilidade, o dever...»
Maximo
E breve o dirá!...
Electra
Para que eu lhe responda!
Evarista
Electra, minha filha, não disparates.
Electra
Tia, é este Maximo... (passa para o lado de Evarista)
Urbano
O Maximo tem razão...
Cuesta
Certamente que sim. (Cuesta e Urbano passam tambem para o lado de Evarista e de Pantoja, ficando sós á esquerda Maximo e o Marquez)
Maximo
Então, Marquez, qual é o resultado da sua primeira observação?
Marquez
Encantou-me a rapariga. Vejo que você não exagerava nada.
Maximo
E por baixo do fascinante encanto d’essa innocencia não pôde a sua penetração descobrir alguma coisa...
Marquez
Ah! sim... belleza moral, juizo pratico... Ainda não tive tempo para isso... Continúo a observar...
Maximo
É que eu—você sabe—consagrado ao estudo desde muito moço, mal conheço o mundo, e os caracteres humanos são para mim uma escripta em que apenas soletro.
Marquez
Pois esse, meu amigo, é o unico dos livros em que eu leio de cadeira.
Maximo
Quer vir a minha casa?
Marquez
Com muito gosto. É possivel que minha mulher me reprehenda se souber que eu visito uma officina de electrotechnia, uma escandalosa fabrica de luz. Mas não será de uma severidade que eu não aguente. Posso aventurar-me... Voltarei depois[41] aqui, e com o pretexto de admirar a menina ao piano falarei com ella e proseguirei os meus estudos.
Maximo
(alto) Vem, Marquez?
Urbano
Então assim nos deixam?
Marquez
Vamos vêr o laboratorio do nosso amigo.
Evarista
Marquez, estou muito sentida, mas muito, pela sua longa ausencia. Quererá descarregar-se de tantos peccados velhos almoçando hoje comnosco? É o seu castigo...
Marquez
Acceito-o em desconto da minha culpa e beijo a mão que tão docemente me corrige.
Evarista
Maximo, tu vens tambem.
Maximo
Se me deixarem livre, virei, de certo.
Electra
Não venhas, homem de Deus, não venhas! (Com alegria que não dissimula) Vens? Dize que sim! (Corrigindo-se) Não, não: dize que não.
Maximo
Descança que te não livras de mim! Á força has de ganhar juizo...
Electra
E has de perdêl-o tu, caturra velho! (Segue-o com a vista até que sae. Saem Maximo e o Marquez pelo jardim. José entra pelo fundo)
ELECTRA, EVARISTA, URBANO, PANTOJA, CUESTA E JOSÉ
José
(annunciando) A senhora Superiora de S. José da Penitencia.
Pantoja
Ah! a nossa bôa soror Barbara da Cruz...
Evarista
Que entre para aqui. (Levanta-se) Espera! Iremos recebêl-a ao salão.
Pantoja
Feliz opportunidade! escuso de ir ao convento.
Evarista
Electra, estudar. (Indica-lhe a sala proxima)
Cuesta
(despedindo-se) Eu saio e volto logo.
Evarista
Adeus.
Cuesta
(áparte, referindo-se a Electra) Deixam-a só?
Pantoja
(a Electra) Menina! Cultive com esmero a grande arte sagrada. Applique todo o seu talento ao estudo de Bach... para que se compenetre do admiravel estylo religioso. (Saem todos menos Electra)
ELECTRA, pouco depois CUESTA
Electra
(entoando uma psalmodia de egreja, reune os desenhos e recolhe-os nas suas pastas) Bach... para que me compenetre do estylo religioso... é bom!... É bom, e é engraçado. (Canta)
Cuesta
(entra pelo fundo, recatando-se) Só...!
Electra
(canta algumas notas liturgicas. Vendo Cuesta) Oh! D. Leonardo...! Cuidei que tinha sahido...
Cuesta
(com timidez) Sahi mas voltei, minha querida menina. Preciso muito de lhe falar.
Electra
(um poucochinho assustada) A mim!
Cuesta
É um assumpto delicado, extremamente delicado... (Com fadiga e difficuldade em respirar) Perdoe-me. Padeço do coração... não posso estar de pé. (Electra chega-lhe uma cadeira. Senta-se) Tão delicado este assumpto, que não sei por onde comece...
Electra
Deus meu, que é?
Cuesta
(animando-se) Electra, eu conheci sua mãe.
Electra
Ah! a minha mãe foi bem desgraçada...
Cuesta
Que entende a menina por ser desgraçada?
Electra
Eu... entendo que viveu entre pessoas que a não deixaram ser tão bôa como ella queria.
Cuesta
Ahi está uma profunda verdade que, sem querer, a menina disse... Lembra-se da sua mãe?... Pensa algumas vezes n’ella?...
Electra
A minha mãe é para mim uma recordação, vaga sim, mas de uma doçura incomparavel... uma querida imagem que nunca me abandona... Guardo-a viva no meu coração, que não é mais que uma grande memoria, no fundo da qual a procuram sempre os meus olhos anciosos de vêl-a. Minha pobre mamãsinha! (Leva o lenço aos olhos. Cuesta suspira) Diga-me, D. Leonardo, quando você conheceu minha mãe era eu muito pequenina...
Cuesta
Era um miminho. Faziamos-lhe cócegas para a vêr rir... o seu riso parecia-me o encanto da natureza, a alegria do universo.
Electra
Ahi está, D. Leonardo, ahi está porque eu sahi tão doida, tão travêssa, tão desparafusada... você alguma vez me teria pegado ao collo...
Cuesta
Innumeraveis vezes.
Electra
(sorrindo sem ter acabado de enxugar as lagrimas) E eu não lhe puxava pelos bigodes?
Cuesta
Ás vezes com tanta força que me fazia doer.
Electra
E de certo então me batia nas mãos...
Cuesta
Devagarinho, sim.
Electra
Pois ha de crêr que talvez que ainda me doam tambem?
Cuesta
(impaciente por entrar em materia) Mas vamos ao caso... E antes de mais nada a advirto, minha querida Electra, que é muito reservado o que lhe vou dizer... para nós ambos unicamente.
Electra
Mette-me medo...
Cuesta
Não, não é uma coisa que assuste... Veja em mim a menina um amigo, o melhor de todos os seus amigos; veja n’este acto o interesse mais puro e o mais elevado sentimento...
Electra
(confusa) Sim, não duvído, mas...
Cuesta
Eis aqui porque dou este passo... Com quanto não seja ainda muito velho, não me sinto com corda para longo tempo de vida. Viuvo ha vinte annos, não tenho mais familia que a minha filha Pilar, já casada e longe. Estou quasi só n’este mundo, tenho o pé no estribo para marchar para o outro... E a minha solidão, ai! parece empurrar-me e dar-me pressa... (Com grande difficuldade de expressão) Mas antes de partir... (Pausa) Electra, quanto pensei em si antes de a trazerem para Madrid!... E desde que chegou, Deus meu, senti—como lh’o direi?... Imagine o[49] mais profundo, o mais puro affecto de um coração, envolvido nos gritos de uma consciencia...
Electra
(aturdida) Que grave coisa deve ser essa, a consciencia! A minha é, por ora, como um menino que dorme no seu berço.
Cuesta
(com tristeza) A minha é velha e memoriosa. Nem dorme, nem me deixa dormir, assignalando-me sempre, a grandes brados, os erros graves da minha vida.
Electra
Erros graves na vida... você, tão bom...
Cuesta
Bom? Sim... talvez... Bom mas peccador... Emfim deixemos os erros, tratemos dos seus resultados. Eu não quero de nenhum modo que a menina se possa achar ao desabrigo. Não tem fortuna propria, e é duvidoso que a protecção de Urbano e d’Evarista seja persistente e constante. Como havia de consentir eu que um dia se visse pobre, desamparada?
Electra
(com penosa lucta entre o seu conhecimento e a sua innocencia) Eu não sei se o entendo... não sei se devo entendel-o.
Cuesta
O mais apropositado será que me entenda, e não o diga; que acceite a minha protecção, e a não agradeça. Vão juntos o meu dever e o seu direito. Por culpa minha, Electra, não se quebrará o fio que une cada creatura na terra, com as creaturas que foram e com as que ainda vivem... E se hoje me determino a resolver este caso é porque... porque ha uns tempos me assalta o terror das mortes subitas. Meu pae e meu irmão morreram como fulminados de raio. A lesão cardiaca, destruidora da familia, sinto-a bem aqui: (indicando o coração) é um triste relogio que me conta as horas e os dias. Não posso adiar mais... Que me não colha a morte deixando abandonada no mundo a sua preciosa existencia! E concluo aqui, pedindo-lhe que tenha como assegurado na vida um bem estar modesto...
Electra
Um bem estar modesto... Eu?... para mim?
Cuesta
O sufficiente para viver n’uma decorosa independencia...
Electra
(confusa) Mas eu, que merecimentos tenho?... Perdôe-me, se não posso acabar de me convencer...
Cuesta
Mais tarde o convencimento virá.
Electra
E por que não fala n’isso a meus tios?...
Cuesta
(preoccupado) Porque... A seu tempo o saberão. Por agora ninguem mais deve ter conhecimento da resolução que tomei.
Electra
Mas...
Cuesta
(commovido, levantando-se) E agora, Electra, não quererá mal a este pobre enfermo, que tem contados os seus dias?
Electra
Querer-lhe mal!? Se é tão facil e tão doce para mim o querer bem! Mas não fale em morrer, D. Leonardo.
Cuesta
Completamente me consola saber que chorará talvez por mim...
Electra
Não faça com que eu chore já...
Cuesta
(apressando a sahida para vencer a sua commoção) E agora, minha querida filha, adeus.
Electra
Adeus... (retendo-o) E que nome lhe devo dar?
Cuesta
O de amigo me basta. Adeus. (Arranca-se para saír pelo fundo. Electra segue-o com a vista até que desappareça)
ELECTRA E O MARQUEZ
Electra
(meditativa) Meu Deus, que devo pensar? Aquellas meias palavras parece que ainda me dizem mais do que palavras completas. Mãesinha da minha alma!... (O marquez entra pelo jardim e adeanta-se devagar) Ah! O snr. Marquez!
Marquez
Assustei-a?
Electra
Não: surprehendeu-me apenas... Se vem para me ouvir tocar, aviso-o de que perdeu a viagem. Eu não toco hoje.
Marquez
Tanto melhor: assim fallaremos... Mal lhe sou apresentado entro em cheio na admiração das suas prendas, e, conhecida uma parte do seu caracter, vivamente desejo conhecel-a mais... Vae estranhar esta curiosidade, e julgar-me importuno...
Electra
Não acho. Eu sou curiosa tambem, e tanto que desde já me permitto fazer-lhe uma pergunta: é amigo de Maximo?
Marquez
Estimo-o e admiro-o muito... Coisa rara não é verdade?
Electra
Coisa naturalissima, me parece.
Marquez
Tão moça como é, talvez que se não dê bem conta das causas da minha amisade com o magico prodigioso... Vamos a vêr se me faço entender.
Electra
Explique-m’o bem.
Marquez
Senhorita, a sociedade que eu frequento, o circulo da minha propria familia e os habitos da minha casa produzem em mim um effeito de asphyxia, de lento ameaço apopletico. Quasi que sem dar[55] por isso, por simples impulso instinctivo de conservação, lanço-me de vez em quando á procura de um pouco d’ar respiravel. Os meus olhos, velhos e nostalgicos, voltam-se então avidamente para a sciencia e para a natureza... Maximo, para mim, é um sanatorio.
Electra
Quer-me parecer que vou começando a entendêl-o, e á sua doença de confinado, com faltas d’ar e de vida...
Marquez
Prova de que raciocina. Devo tambem dizer-lhe que tenho por esse homem um interesse immenso.
Electra
Estima-o devidamente, admira-o pelas suas altas qualidades...
Marquez
E lastimo-o pelo seu infortunio.
Electra
(surprehendida) Maximo, desafortunado?
Marquez
Que desdita maior que a da solidão em que elle vive? A viuvez prematura submergiu-o nos estudos mais profundos e mais absorventes, que podem comprometter-lhe a saude e a vida. É um dos meus receios.
Electra
Tem os filhos, que o acompanham e a consolam... O Marquez viu-os hoje... Que lindas creaturinhas! O maior, que vae fazer agora cinco annos, é um prodigio de intelligencia. O pequenito, de dois annos, é o mais engraçado sujeitinho de todo o mundo. Eu adoro-os, sonho com elles, e gostava, por elles, de ser creada de meninos.
Marquez
O pobre Maximo, aferrado aos seus estudos, não pode attendêl-os como devia ser.
Electra
É o que eu digo tambem.
Marquez
Claro! Maximo do que precisa é de uma mulher... Aqui principiam as difficuldades e as dúvidas. Por mais que olhe e que procure, não vejo, não encontro a mulher digna de repartir a sua vida com a do grande homem.
Electra
Não a encontra, está visto, porque a não ha, não a ha. Para Maximo deve-se arranjar uma mulher, principalmente, de muito juizo...
Marquez
Primeiro que tudo, isso: de muito juizo.
Electra
O contrario de mim, que, não tenho nenhum, nenhum, nenhum!
Marquez
Não direi eu isso...
Electra
Que, ainda assim, quando lhe digo tolices e lhe chamo brutamontes, tonto e sabichão, não vá o Marquez pensar que o digo a sério. É brincadeira!
Marquez
Tambem me queria parecer que não era uma convicção philosophica.
Electra
Brincadeira descabida, talvez, porque elle é seriissimo... E sobre esse ponto gostaria de ouvir o seu conselho: acha que eu deva tornar-me séria?
Marquez
Nunca! Cada creatura é como Deus a quiz fazer. Ninguem precisa de ser serio para ser bom.
Electra
Pois veja lá! eu que não sei nada, tinha pensado isso mesmo!
ELECTRA, MARQUEZ E PANTOJA pelo fundo
Pantoja
(do fundo, áparte) E atreve-se a pôr os olhos peçonhentos n’uma tal flôr de candura, este libertino, velho e incorrigivel! (Adeanta-se lentamente)
Marquez
(dando por Pantoja, áparte) Cae-nos o apagador em cima. Apaguemo-nos!
Electra
O snr. Marquez tinha vindo para me ouvir tocar, mas eu estou muito estupida hoje. Ficou para outra vez.
Marquez
O meu caro snr. Pantoja sabe que Beethoven é a minha paixão. Como me tinham dito que Electra o interpreta bem, esperava ouvir-lhe a Sonata pathetica ou o Clair de lune... Puzemo-nos a conversar, e, visto que não é occasião agora...
Pantoja
(com desabrimento) A hora do estudo acabou.
Marquez
(recobrando o seu papel de sociedade) Outro dia será! Virginia e eu, meu presado snr. Pantoja, muito estimariamos que quizesse honrar-nos com os seus conselhos relativamente ao Recolhimento das Escravas de Jesus.
Pantoja
Sim senhor, hoje irei vêr a marqueza, e fallaremos...
Marquez
Nas Escravas a encontrará o meu illustre amigo toda a santissima tarde... E como creio que sou demais... (Movimento de retirar-se)
Electra
O snr. Marquez não estorva.
Marquez
Vou-me com a musica... até o laboratorio de Maximo.
Pantoja
Vá, vá, que ha de gostar!
Marquez
Até ao almoço, meu muito respeitavel amigo.
Pantoja
Guarde-o Deus. (Sae o marquez pelo jardim)
ELECTRA E PANTOJA
Pantoja
(vivamente) Que é que elle lhe dizia? que lhe estava contando esse depravador de innocencias?
Electra
Nada: historias vagas, anecdotas para rir...
Pantoja
As taes historias! Desconfie sempre das anecdotas jocosas, e dos narradores amenos, que escondem entre suavidades e fragrancias de jasmins uma ponta envenenada de estilete... Estou a achal-a perplexa, enleada, abstrahida, quasi medrosa, como quem acaba de sentir pela macia relva matisada de lirios um roçagar de reptil.
Electra
Ah! não.
Pantoja
Essa inquietação resultante das conversações perturbadoras ha de acalmal-a a minha palavra serena e benefica.
Electra
Vejo que é poeta, snr. de Pantoja; e dá-me prazer ouvil-o.
Pantoja
(indica-lhe uma cadeira, e sentam-se ambos) Minha presada filha, vou dar-lhe a explicação da intensa ternura que me inspira... Terá dado por isso?
Electra
Tenho.
Pantoja
Tal explicação equivale á revelação de um segredo...
Electra
(muito assustada) Deus do ceu! estou a tremer...
Pantoja
Socegue, minha filha... E ouça primeiro a parte d’esta confidencia mais dolorosa para mim. Fui muito mau, Electra.
Electra
Como assim, com a fama de santidade que tem!
Pantoja
Fui mau—digo-lh’o eu—em certa occasião da minha vida. (Suspirando) Já lá vão alguns annos.
Electra
(vivamente) Quantos? Poderei eu lembrar-me ainda do tempo da sua maldade, snr. de Pantoja?
Pantoja
Não pode. Quando eu me depravei, quando me afundi no lodaçal do peccado, não tinha a menina ainda nascido...
Electra
Mas nasci afinal...
Pantoja
(depois de uma pausa) É certo.
Electra
Nasci... e d’ahi? Por quem é, abrevie essa historia...
Pantoja
A sua perturbação me indica que devemos desviar os olhos do passado. A sua condição presente socega-me.
Electra
Porquê?
Pantoja
Porque ha de ter um amparo, um arrimo para toda a vida. Nada mais ineffavel para mim do que a fortuna de velar pelo destino de uma creatura tão bella e tão nobre! Quero consagrar-me a defendel-a de todo o mal, a guardal-a, a acalental-a, a dirigil-a, para que sempre se conserve incolume, intemerata e pura; para que nunca lhe toque nem a mais tenue sombra, nem o mais afastado respiro do mal. É hoje uma menina que parece um anjo. Não me conformo com que unicamente o pareça; quero que para mim o seja.
Electra
(friamente) Que eu seja um anjo de sua composição e propriedade sua?... E parece-lhe que se deva considerar como um rasgo de caridade extraordinaria e sublime esse fervoroso desejo que mostra de ter assim, um anjo de seu?
Pantoja
Não é caridade: é obrigação. Tu—entendes?—tens o direito de ser amparada por mim; eu tenho o dever de amparar-te.
Electra
Tamanha confiança... tão severa auctoridade...
Pantoja
A minha auctoridade provém do meu entranhado affecto, assim como do calor do sol provém a força da terra. A minha protecção é um producto da minha consciencia.
Electra
(levanta-se muito agitada, e afastando-se de Pantoja, áparte) Virgem mãe santissima! dois protectores! e um que precisa de opprimir para proteger! (alto) Olhe: eu admiro-o e respeito muito as suas virtudes. Emquanto á sua auctoridade—perdoe-me o atrevimento de lh’o dizer—não a comprehendo bem claramente, e parece-me que só a minha tia é que devo submissão e obediencia.
Pantoja
Vem a ser a mesma coisa. Evarista faz-me a honra de me consultar em tudo. Obedecer-lhe a ella é submetter-te a mim.
Electra
Então tambem a tia me quer para anjo d’ella? ainda por cima de eu já estar para anjo do snr. de Pantoja?!
Pantoja
Anjo de todos, de Deus principalmente. Convence-te, filha da minha alma, que vieste a bôas mãos, e que só te cumpre deixar-te guiar na virtude e na purificação.
Electra
(com displicencia) Pois, se querem purificar-me, purifiquem-me... Mas estão bem certos de que eu seja impura e má?
Pantoja
Poderias vir a sel-o. Melhor se vence o mal prevenindo que remediando.
Electra
Pobre de mim! (Levantando os olhos em extase, suspira. Pausa)
Pantoja
Porque suspiras assim?
Electra
Deixe-me aliviar o meu triste coração. Pesam-me demais em cima d’elle as consciencias dos outros.
ELECTRA, PANTOJA E EVARISTA, pelo fundo
Evarista
Amigo Pantoja, a Madre Barbara da Cruz espera-o para se despedir e receber as suas ordens.
Pantoja
Ah! não me lembrava... Vou immediatamente. (Áparte a Evarista) Falamos. Vigie. Acautelemo-nos! (Antes de saír Pantoja, pelo fundo, entram o Marquez e Maximo pela direita)
ELECTRA, EVARISTA, MARQUEZ E MAXIMO
Marquez
Tardamos?
Evarista
Não. Estiveram no laboratorio?... (Formam-se dois grupos: Electra e Maximo á esquerda; Evarista e o Marquez á direita.)
Marquez
Lá estivemos. É um prodigio este homem... (Segue falando no que viu)
Electra
(suspirando) Sim, Maximo, preciso de consultar-te sobre um caso grave.
Maximo
(com vivo interesse) Conta depressa!
Electra
(receosa olhando para o outro grupo) Impossivel agora.
Maximo
Quando então?
Electra
Não sei... Não sei quando t’o poderei dizer... Não se resume em quatro palavras...
Maximo
Pobre rapariga!... O que eu te predisse... Chegam as seriedades da vida, os deveres, as amarguras...
Electra
Talvez.
Maximo
(olhando-a fito, com grande interesse) Na expressão da tua physionomia ha um veu de tristeza e um estremecimento de susto... Desconheço-te.
Electra
Querem annular o que eu sou, e reduzir-me a outra coisa... a uma coisa angelical e celeste, que não sei o que é!
Maximo
(vivamente) Por Deus, não consintas isso! Defende-te, Electra.
Electra
Que me aconselhas?
Maximo
(sem vacillar) A independencia.
Electra
A independencia!
Maximo
Sim, a emancipação... N’uma palavra: Insurge-te!
Electra
Queres dizer que faça quanto me vier á cabeça, que danse, que pule, que corra pelo parque emquanto me appeteça, que entre na tua casa como em paiz conquistado, que conspire com os teus pequenos, que fuja com elles para o jardim, para longe, para onde eu quizer?...
Maximo
Tudo!
Electra
Olha o que dizes!?...
Maximo
Digo-te isto.
Electra
Mas é o contrario que me tens recommendado sempre!
Maximo
(olhando-a fixamente) Na tua cara, no vinco dos teus sobrolhos, na tremura da tua bocca, eu vejo que estão radicalmente transformadas as condições da tua vida. Tu agora tens medo.
Electra
(medrosa) Tenho, sim.
Maximo
Tu... (Hesitando no verbo que ha de empregar. Vae a dizer amar, mas não ousa) Tu queres ardentemente que alguma coisa succeda...
Electra
(com effusão) Quero. (Pausa) E dizes-me tu que contra o medo... a insubordinação.
Maximo
Sim: solta livremente todos os teus impulsos para que quanto ha em ti se manifeste, e se saiba quem tu és.
Electra
O que eu sou? Queres conhecer...
Maximo
A tua alma...
Electra
Os meus segredos...
Maximo
A tua alma... N’ella se comprehende tudo.
Electra
(notando que Evaristo a observa) Basta... Olham para nós.
OS MESMOS, URBANO E PANTOJA, pelo fundo
Urbano
Almoça-se?
Pantoja
(a Evarista, suffocado, vendo Electra com Maximo) Então assim a deixa só com Mephistopheles?
Evarista
Não tenha sustos, Pantoja.
Marquez
(rindo) Não tem de que os ter. Esse Mephistopheles é um santo. (Dá o braço a Evarista)
Pantoja
(imperiosamente, pegando na mão de Electra para a conduzir) Commigo! (Electra, andando com Pantoja, volta a cabeça para olhar para Maximo)
Maximo
(olhando para Electra e para Pantoja) Comtigo?... Havemos de vêr com quem! (Maximo e Urbano são os ultimos que saem)
FIM DO PRIMEIRO ACTO
Scenario do primeiro acto
EVARISTA, URBANO, á banca, despachando negocios, BALBINA, que serve á snr.ª de Yuste uma taça de caldo
Urbano
(dispondo-se a escrever) Que é que se diz ao reitor do Patrocinio?
Evarista
O que se combinou: approvamos a planta, e acceitamos o orçamento. Depois nos entenderemos com o empreiteiro.
Urbano
Já sabes a quanto monta a obra... (Lendo n’um apontamento) Trezentas e vinte e duas mil pezetas...
Evarista
Bem. Ainda nos sobeja dinheiro para a continuação do Soccorro. (A Balbina, que recolhe a taça) Não te esqueças do que te incumbi.
Balbina
Continúo vigiando, como a senhora determinou. Mas este recreio a que a menina agora se entrega não me parece de cuidado. Tantas cartas de namorados juntas são carteio de mais. A menina, emquanto a mim, para o que puxa não é para a tolice, é para a risota.
Evarista
Mas quem traz todas essas cartas que ella recebe?
Balbina
Isso não sei... Mas ando de pedra no sapato com a Patros.
Evarista
Espreita-as, e informa-me.
Balbina
Fica ao meu cuidado, deixe estar! (retira-se Balbina)
OS MESMOS E MAXIMO, apressado, com plantas e papeis
Maximo
Estórvo?
Evarista
Não, filho, podes entrar.
Maximo
São dois minutos, tia.
Urbano
Vens do ministerio?
Maximo
Venho da conferencia com os bilbaínos. Tenho hoje um dia de prova tremenda... Immenso que conferir, immenso que falar, immenso que correr, e, para me não faltar mais nada, a casa toda revirada com o debaixo para cima!
Evarista
Mas, homem, que foi isso?! Diz a Balbina que despediste as creadas...
Maximo
Pessoal infame, tia! Tres ladras! Pul-as na rua. Estou com o ordenança e com a ama. Que lindo arranjo, hein?
Evarista
Vem comer cá.
Maximo
Comer cá é bom de dizer. A tia fala bem! E os pequenos com quem ficam? Se os trago põem-lhe a cabeça em agoa, desarranjam-lhe tudo...
Evarista
Não tragas. Eu adoro as creanças. Mas têl-as commigo, não. Revolvem tudo, sujam tudo! corridas, risadas, cantatas, berratas, guinchos, patadas medonhas no chão! fazem-me doida. E mêdo que caiam, que se mólhem, que as arranhem os gatos, que rachem as cabeças, que esburaquem os olhos uns dos outros. Nada... Não quero responsabilidades.
Maximo
Eu o que queria é que a tia me mandasse uma cosinheira.
Evarista
Manda-se-te para lá a Henriqueta. Urbano, toma nota.
Maximo
Bom. (Dispondo-se a partir)
Evarista
Olha lá! os teus negocios parece que vão bem... Já sabes o que te tenho dito: Se o magico prodigioso precisar de dinheiro para a implantação dos seus inventos, não tem mais do que dizel-o...
Maximo
Obrigado, tia... Tenho á minha disposição quanto dinheiro queira... Assim eu tivesse uma creatura que me soubesse fazer sôpa!
Urbano
Esse senhor dentro de poucos annos ha de estar muito mais rico do que nós.
Maximo
Isso bem pode ser que sim.
Urbano
Obra do seu talento.
Maximo
(com modestia) Não: do trabalho, da perseverança, da paciencia...
Evarista
Nem me digas! Trabalhas monstruosamente.
Maximo
Quanto é preciso que trabalhe, por obrigação, por consolação, por prazer, e, a final, por enthusiasmo adquirido tambem.
Urbano
Passa a monomania isso. É uma borracheira de estudo.
Evarista
(grave) Não: é a ambição, a maldita ambição, que a tantos fascina e a tantos deita a perder.
Maximo
Ambição legitima e indispensavel á humanidade. Imagine a tia...
Evarista
(cortando-lhe a palavra) É a ancia das riquezas, para saciar com ellas a avidez do goso. Gosar, gosar, gosar: isso unicamente quereis, e para isso vos consumis, sacrificando o estomago, o cerebro, o coração e a propria alma, sem vos lembrardes da inanidade das coisas da terra e da brevidade da vida. Rapidamente nos vamos, e tudo cá fica.
Maximo
(impaciente por sahir) Tudo, menos eu, que me safo já.
OS MESMOS E JOSÉ
José
(annunciando) O snr. marquez de Ronda.
Maximo
(detendo-se) Esperarei já agora para o vêr.
Evarista
(recolhendo os papeis) Não manda Deus que trabalhemos hoje.
Urbano
Adivinho ao que vem.
Evarista
Que entre, José, que entre! (José sae)
Maximo
Vem convidal-os para a inauguração da nova Irmandade da Escravidão fundada por Virginia. Disse-m’o hontem á noite.
Evarista
Bem sei... Então é hoje?
EVARISTA, URBANO, MAXIMO E O MARQUEZ
Marquez
(saudando com affabilidade) Querida amiga... Urbano... (A Maximo) Olá! não esperava encontrar o magico...
Maximo
O magico diz-lhe adeus e some-se.
Marquez
Um momento. (Retendo-o)
Evarista
Sim, Marquez: iremos.
Marquez
Já sabem?
Urbano
A que horas?
Marquez
Ás cinco em ponto. (A Maximo) A si não lhe digo porque sei que não tem tempo.
Maximo
Desgraçadamente. Segue-se então que o não espero hoje.
Marquez
Como, se temos essa festa rija de religião e de mundanismo! mas lá vou á noite.
Evarista
(levemente zombeteira) Já cá se tem notado, com muito regosijo é claro, a frequencia das visitas do Marquez á caverna do nigromante.
Maximo
O Marquez dá-me muita honra com a sua amizade e com o interesse que toma pelos meus estudos.
Marquez
Veio-me agora o delirio das maquinas e dos phenomenos electricos... Caturrices de velho!
Urbano
(a Maximo) Parabens pelo discipulo.
Evarista
Deus sabe... (Maliciosa) Deus sabe quem será o mestre e quem o alumno!
Marquez
A respeito do mestre, sinto que elle esteja presente porque isso me priva de applicar aos seus meritos todas as mordeduras que a inveja me inspira.
Evarista
Retira-te, Maximo; vamos dizer mal de ti.
Maximo
Repaste-se a má lingua! Adeusinho todos. Adeus, tia.
Evarista
Vae com Nossa Senhora!
Marquez
(a Maximo que sae) Até á noite, se me deixarem. (A Evarista) Extraordinario homem! Sempre o admirei muito, mas agora que tenho apreciado mais de perto todas as suas qualidades, sustento que não ha outro no mundo como este seu sobrinho.
Evarista
No terreno scientifico.
Marquez
Em todos os terrenos, senhora de Yuste. Pois quê?!...
Evarista
De certo que como intelligencia...
Marquez
(com enthusiasmo) Como intelligencia, como caracter, como coração, como tudo... Quem é que é melhor?
Evarista
(sem querer empenhar-se n’uma discussão delicada) Bem, bem, Marquez... (Variando de tom) É então ás cinco, disse...?
Marquez
Em ponto. Contamos tambem com Electra.
Evarista
Não sei se a leve...
Marquez
Ora essa! Tenho incumbencia especialissima de conseguir a presença da senhorita Electra n’esta solemnidade, e já prometti que sim. Virginia deseja muito conhecêl-a.
Urbano
Á vista d’isso...
Marquez
Não me deixem ficar mal!
Evarista
Bem: conte com ella.
Marquez
Teremos muita gente, toda a nossa roda...
Urbano
Oh! vae estar brilhante com certeza.
Marquez
Com que então, até já. Tenho de ir a casa de Otumba, e passarei por cá na volta. (Ouve-se a voz de Electra pela esquerda, chalrando e rindo alegremente. O marquez pára a escutal-a)
OS MESMOS E ELECTRA
Electra
Pois sim, sim... rica, minha riquinha! mais um beijo... Que doida que és! que doida que sou! mas entendemo-nos ambas. (Apparece pela esquerda com uma grande e rica boneca, que beija e que embala. Detem-se envergonhada)
Evarista
Que vem a ser isto, rapariga?
Marquez
Não lhe ralhe.
Electra
Mademoiselle Lulu e eu damos á lingoa, contamo-nos coisas.
Urbano
(ao Marquez) Anda desatinada hoje.
Electra
(afastando-se, diz segredinhos á boneca. Os outros olham) Que linda que és, Lulu! Mas elle, ainda mais lindo que tu. Que feliz seria o meu amor com elle e comtigo!
Marquez
Sempre folgazã, pelo que vejo...
Evarista
Pelo contrario: desde hontem n’uma tristeza que nos dá cuidado.
Marquez
Tristeza? idealidade antes.
Evarista
E, agora, está vendo...
Marquez
(carinhoso, dirigindo-se para ella) Rica menina!
Electra
(approximando a cara da boneca da do marquez) Vamos, Mademoiselle, não se me faça môna: dê um beijinho a este senhor. (Antes que o marquez beije a boneca dá-lhe um leve carolo com a cabeça de Lulu)
Marquez
A Lulu não beija: a Lulu marra. (Acariciando o queixinho de Electra) Por isso gósto mais da sua amiguinha do que d’ella.
Electra
De miôlo póde crêr que tanto tem uma como outra.
Urbano
Mas que conversas tu com a boneca?
Electra
Desafógo com ella, conto-lhe as minhas penas.
Evarista
Penas, tu?
Electra
Penas eu, sim, pois quê?... E quando nos vê muito caladas ambas é porque nos estão lembrando as nossas coisas passadas...
Marquez
Ah! se a interessa o passado já é um signal de que pensa pela sua cabecinha.
Evarista
E que coisas passadas são essas que dizes?
Electra
Digo do tempo em que nasci. (Com gravidade) O dia em que eu vim ao mundo foi um dia muito triste, pois não foi? Lembra-se aqui alguem de como foi esse dia?
Evarista
Filha, que tontices que dizes! E não tens vergonha de que o snr. Marquez te veja tão adoidada?
Electra
Creia, tia, que não ha doidos tão doidos, nem creanças tão creanças, que não tenham sua razão para dizer o que dizem e para fazer o que fazem.
Marquez
Muito bem pensado.
Evarista
Qual é então a tua razão para esses brinquedos tão fóra da tua edade?
Electra
(olhando para o marquez, que sorri ao seu lado) Isso não posso contar agora.
Marquez
Quer dizer que me retire.
Evarista
Electra!
Marquez
Eu ia já despedir-me... com bem pena de que as minhas occupações me privem de convivencia tão interessante. Adeus, senhorita; volto ás cinco para a levar commigo.
Electra
A mim!
Evarista
Sim; vamos á inauguração das Escravas.
Electra
E eu tambem?
Evarista
Podes-te ir vestindo.
Electra
(assustada) Ha de estar muita gente... A gente mette-me medo. Gósto mais de ficar só.
Marquez
Estaremos em familia. E com isto me despégo.
Evarista
Até logo, Marquez.
Marquez
(a Electra) Menina, ás cinco; aprendámos a ser pontuaes. (Sae pelo fundo com Urbano)
EVARISTA E ELECTRA
Evarista
Explicarás agora a extranha maluquice em que andas.
Electra
Eu lhe digo, tia: tenho uma dúvida... como direi?... um problema...
Evarista
Problemas, tu!
Electra
Exactamente, no plural, problemas... porque é de mais d’um que se trata.
Evarista
Valha-te Nossa Senhora!
Electra
E quero vêr se m’os resolve...
Evarista
Quem?
Electra
Uma pessôa que já não vive.
Evarista
Que dizes?
Electra
Minha mãe. Não se afflija... Minha mãe pode-me dizer o que eu pretendo... e aconselhar-me. A tia não acredita que as pessôas do outro mundo podem vir a este? (Gesto de incredulidade de Evarista) Não acredita. Acredito eu. Acredito porque o tenho visto. Eu tenho visto minha mãe...
Evarista
Virgem Maria! como tens essa cabeça!
Electra
... Quando era muito pequenina, assim, d’este tamanho...
Evarista
Nas Ursulinas de Bayona?
Electra
Sim... Minha mãe apparecia-me.
Evarista
Em sonhos, naturalmente.
Electra
Não, não: estando eu acordada, tão bem acordada como estou agora. (Colloca a boneca n’uma cadeira)
Evarista
Pensa no que dizes, Electra...
Electra
Quando eu estava só, sósinha, triste ou doente; quando alguem me lastimava dando-me a perceber a desairosa situação que eu tinha no mundo, a minha mãe vinha, e consolava-me. Primeiro via-a imperfeitamente, confusa, como vaporosa, a parecer diluir-se nas coisas distantes, nas coisas proximas. Adeantava-se, n’uma claridade que tremeluzia... Depois, não bulia mais; era uma fórma quieta, uma serena imagem triste... E eu não podia então duvidar de que a tinha ali... Era minha mãe... Das primeiras vezes via-a em traje elegante de grande dama... Um dia, por fim, appareceu-me de habito e escapulario de monja. O seu rosto envolvido[96] nas toucas brancas, e o seu corpo coberto pela estamenha pendente tinham uma magestade de belleza que não póde imaginar quem a não viu.
Evarista
Tu deliras, minha pobre filha!
Electra
Junto de mim abria os braços como se quizesse enlaçar-me. Falava-me n’uma voz dôce, mas longinqua e recondita... não sei como lh’o explique... Eu perguntava-lhe coisas, e ella respondia-me... (maior incredulidade de Evarista) A tia não acredita?
Evarista
Vae dizendo.
Electra
Nas Ursulinas tinha uma bella boneca, a que eu chamava tambem Lulu... Veja a tia que mysterio este!... Sempre que eu andava pela horta, ao cahir da tarde, só, levando ao colo a minha boneca—tão melancolica eu como ella—olhando muito para o ceu, era certa, segura, infallivel, a visão de minha mãe... primeiro entre as arvores, como enformada no ôco das folhagens;[97] depois, desenhando-se de luz, e caminhando para mim, vagarosamente, por entre os troncos escuros...
Evarista
E em mais crescida, quando vivias em Hendaya... tambem?...
Electra
Nos primeiros tempos não... Então já eu brincava com bonecas vivas: os dois pequerruchinhos da minha prima Rosalia, menina e menino, que nunca se separavam de mim, e me adoravam, como eu a elles. De noite, na solidão do nosso quarto, com os meninos dormidinhos, como elles aqui... e eu aqui (indica o logar dos dois leitos parallelos) por entre as duas caminhas brancas a minha mãe passava, meiga, silenciosa, aeria, sem pisar o chão... E debruçava-se para mim...
Evarista
Cala-te, por Deus, que até me fazes medo... Mas depois que foste mais crescida... agora—digamos—acabaram essas visões...
Electra
Nunca mais as tive desde que deixei de viver com bonecas e com meninos. É por isso que eu trato de voltar á edade da innocencia, e de me fazer creança pequena outra vez, a vêr se, tornando a ser o que fui, voltará tambem minha mãe a vêr-me, como d’antes... Para que falemos, e me responda ao que lhe quero perguntar... e me dê conselho...
Evarista
E que dúvidas são as tuas, que assim precisas...
Electra
(pondo os olhos no chão) Dúvidas?... coisas que a gente não sabe, e quer saber.
Evarista
Tolice! Que tão grave caso vem a ser esse para que precises de consulta e de conselho?...
Electra
Cá uma coisa... (Vacilla, está quasi a dizêl-o)
Evarista
O quê? dize.
Electra
Uma coisa... (Com timidez infantil dando voltas á boneca e sem se atrever a revelar o seu segredo) Uma certa coisa...
Evarista
(severa e affectuosa) Ih! que intoleravel que estás, com tanta creancice! (Tira-lhe a boneca) Que estupida e ao mesmo tempo que atilada que tu és! Tão depressa te mostras um prodigio de intelligencia e de graça como parece que não passas de maluca... Andam ás bulhas com a tua alma cherubins e demonios. Temos que intervir para acabar com essa lucta e dar em Satanaz muitos açoites, ainda que algum te caia em ti e te dôa um poucochito... (Beija-a) Vamos! juizo. Precisas de te occupar n’alguma coisa, de distrahir essa cabeça... Não te esqueça de que é ás cinco a festa... Vae-te arranjar, anda...
Electra
Sim, tia.
Evarista
Faltam tres quartos.
Electra
Vou apromptar-me.
Evarista
E poucas brincadeiras... cuidado! (Sae pelo fundo levando a boneca pendida, suspensa por um braço)
ELECTRA E PATROS
Electra
(olhando para a boneca) Pobre Lulu! como te levam á dependura! (Imitando a postura da boneca e apalpando o seu proprio braço dolorido) Que dôr que vaes ter, coitada, no hombro desengonçado! (Senta-se meditabunda) E o outro á minha espera... Como foi triste a separação! como elle chorava, estendendo-me os bracinhos!... e eu que lhe prometti voltar...
Patros
(assomando cautelosa pela esquerda) Senhorita, senhorita...
Electra
Entra.
Patros
(avançando com precaução) Não está ninguem?
Electra
Estamos sós.
Patros
Não se pilha outra occasião assim, menina! Ou agora ou nunca.
Electra
Vens de lá?
Patros
Agora mesmo... Muitos senhores que dizem numeros... milhões, bilhões e quatrilhões... E lá dentro, ninguem.
Electra
(vacillando) Atrevo-me?
Patros
(decidida) Atreva-se, menina.
Electra
Nossa Senhora do Carmo, protegei-me! (Dirige-se á sahida que dá para o jardim. Pára assustada) Espera. Não será melhor sahirmos pelo outro lado? Pode estar a tia á janella da casa de jantar...
Patros
Pode, pode! Demos a volta por aqui. (Pela esquerda)
Electra
Sim, por aqui... Estou a tremer toda... de valentia! e de medo. Ávante! (Saem a correr pela esquerda)
URBANO E JOSÉ, que entram pelo fundo ao tempo a que saem as duas
Urbano
Quem vae ali?
José
É a Patros.
Urbano
Então que temos?... conta lá.
José
São já cinco os que fazem olho á menina: cinco vistos por mim. Fóra os que não vi.
Urbano
E quê? rondam a casa?
José
Dois pela manhã, dois de tarde, e o mais pequenitate de todos, de sol a sol.
Urbano
Tens notado se ha communicação entre a janella do quarto da senhorita Electra e a rua por meio de cesto pendente ou de cordão telephonico?
José
Não vi nada d’isso. Mas cá eu, se fôsse os senhores, mudava a menina para os quartos d’acolá. (Á esquerda)
Urbano
E algum d’esses meninos não se coará para dentro do jardim?
José
Isso sim! Não que elles teem espinhaço e querem-o para mais d’uma vez.
Urbano
Bem: vae vigiando sempre. (Entra Cuesta pelo fundo)
URBANO E CUESTA, com papeis e cartas
Urbano
Ora graças a Deus, Leonardo!
Cuesta
Já te tinha dito que não vinha de manhã. (A José, dando-lhe uma carta) Isto para registar. Logo irão mais cartas. (Sae José)
Urbano
(pegando n’um papel que Cuesta lhe entrega) Que vem a ser isto?
Cuesta
O recibo das cem mil e tantas pesetas... assigna-me agora um talão de sessenta e sete mil...
Urbano
Para a remessa para Roma...
Cuesta
Isso mesmo. E Evarista?
Urbano
A vestir-se.
Cuesta
Já sei que vaes á inauguração das Escravas e que tambem vae Electra.
Urbano
Essa pequena, positivamente, não promette coisa boa. Está cada vez mais caprichosa e mais leviana...
Cuesta
(vivamente) Sem maldade!
Urbano
Mas com symptomas d’isso. Evarista, que é a cautella e a prudencia em pessoa, anda a pensar em submettel-a a um regimen sanitario em S. José da Penitencia.
Cuesta
Has de me permittir que discorde inteiramente d’esse alvitre. Tu dirás que quem me manda a mim...
Urbano
Pelo contrario: como amigo da casa muito estimo que dês opinião e conselho.
Cuesta
Isso de arrastar para a vida claustral uma rapariga que não denota manifesta vocação de piedade, é grave... E não devereis extranhar que porventura alguem se opponha...
Urbano
Quem se ha de oppôr?
Cuesta
Que sei eu! alguem... Na vida d’esta menina ha, por emquanto, um factor desconhecido... Um bello dia poderá succeder... não direi que succeda... Um bello dia, quando puxeis pela corda com mais força, poderá vir uma voz que diga: «Alto lá, senhores de Yuste!»
Urbano
E nós responderemos: «Querido snr. factor desconhecido, aqui tem a menina, com o que nos livra d’uma tutella difficil e incommoda.»
Cuesta
(senta-se com muita fadiga) Isto, Urbano, é apenas uma supposição minha... é um modo de fallar...
Urbano
Não te sentes bem? Queres tomar alguma coisa?
Cuesta
Não... Este maldito coração recusa-se a ser dirigido pela vontade...
Urbano
Descansa... Queres-te tu deitar?
Cuesta
Pois não sabes o que tenho que fazer? (Tirando papeis do bolso) Para já, duas carta urgentes, que teem de partir hoje.
Urbano
Escreve-as aqui. (Fazendo um logar á meza, e retirando livros e papeis)
Cuesta
Está dito... installo-me ahi.
Urbano
Eu estou atarefadissimo tambem. Tenho voltas que dar...
Cuesta
Não penses mais em mim. (Escreve)
Urbano
Desculpa. Evarista não tarda ahi.
Cuesta
(sem olhar) Até logo... (Sae Urbano pelo fundo)
CUESTA, ELECTRA E PATROS (Assomam as duas á porta da esquerda como para reconhecer o terreno)
Electra
Cuidado, Patros... Por aqui é difficil trazêl-o.
Patros
(reconhecendo Cuesta, que vê de costas) D. Leonardo!
Electra
Chut!... O mais seguro é deixal-o no teu quarto até á noite. Que massada a tal inauguração!
Cuesta
(volta-se ao ouvir vozes) Ah! Electra...
Electra
Importunamos, D. Leonardo?...
Cuesta
Não, minha amiguinha. Quer fazer-me o favor de esperar um pouquinho... que termine uma carta? Tenho que lhe dizer.
Electra
Aqui me tem. (Áparte a Patros) Que sécca! (Alto) Vinhamos unicamente buscar um papel e um lapiz para umas contas. (Tira da meza um lapiz e papel. Áparte a Patros) Cuida bem d’elle... Que amor que elle está adormecido! Com o seu focinhinho côr de rosa e as mãos sujas, com as unhitas pretas de andar a escarvar na terra... Dá vontade de o engulir!
Patros
Com os lindos pés gordos, e a espessa carapinha d’ouro que elle tem...
Electra
(com effusão de carinho) Dá volta á cabeça da gente. Olha bem por elle, Patros; vê lá!...
Patros
Levo-lhe agora um bôlo.
Electra
Não dou licença. Prohibo rigorosamente os bôlos. Para lhe sujarem o estomago!... Leva-lhe uma sopinha...
Patros
Mas como hei de eu arranjar sopinha?
Electra
Tens razão... Ah! pede na cosinha uma taça de leite para mim.
Patros
Isso mesmo! E dou-lh’a quando acordar.
Electra
Toma lá tambem o papel e o lapiz para elle fazer os seus rabiscos... É a coisa de que mais gosta... Depois, á noite, na primeira occasião, mette-o no meu quarto, para dormir comigo.
Cuesta
(fechando a carta) Acabei.
Electra
Perdoe um momento, D. Leonardo. (Áparte a Patros) Não o deixes nem um momento... Muito cuidadinho! Se D. Leonardo me não prender muito, ainda irei dar-lhe um beijo antes de me vestir.
Cuesta
Patros, estas cartas para o correio!
Patros
Vão-se levar já.
CUESTA E ELECTRA
Cuesta
(pegando-lhe nas mãos) Venha cá, sua grande extravagante... quanto me alegra vêl-a!
Electra
É muito meu amigo, D. Leonardo? Não imagina como eu gosto de que me estimem!
Cuesta
Mas precisamos tambem de ter mais um poucochinho de proposito e d’assento n’essa cabecinha... É bom que não haja nada que se nos dizer... E a mim contaram-me—pêtas já se vê!—que fervilham os namorados...
Electra
Ah! Sim, eu já lhes perdi a conta! Mas não gosto senão d’um.
Cuesta
D’um! E quem é?
Electra
Isso... lá me parece perguntar de mais...
Cuesta
Eu conheço-o?
Electra
Se conhece!
Cuesta
Fez-lhe a sua declaração d’uma maneira decente?
Electra
Não me fez declaração nenhuma, nem me disse nada... até agora.
Cuesta
E a menina ama esse timido donzel, e julga-se correspondida?
Electra
Suspeito que me corresponde... Mas não o asseguro...
Cuesta
Tenha confiança em mim, e conte-me isso.
Electra
Agora não, que vou vestir-me.
Cuesta
Falaremos depois.
Electra
(medrosa, olhando para o fundo) Se não viesse a tia...
Cuesta
Vista-se... Ámanhã será.
Electra
Sim, ámanhã. Adeus. (Corre para a direita. Movida de uma ideia repentina dá meia volta) Antes de me vestir... (Áparte) Não resisto. Vou dar-lhe um beijo. (Sae correndo pela esquerda. Cuesta segue-a com a vista e suspira)
CUESTA, URBANO E EVARISTA; depois ELECTRA
Cuesta
(reunindo e recolhendo os papeis) Que felicidade a minha, se publicamente a pudesse amar!
Evarista
(vestida para sahir) Desculpe terem-no deixado para ahi, Leonardo. Já me disse Urbano que lançamos uma grande operação.
Urbano
(entregando a Cuesta um talão) Ahi tens.
Evarista
Não me espantarei se o vir apparecer-nos com outra carga de dinheiro... Deus o dá, Deus o recebe... (Assoma Electra pela porta da esquerda. Ao vêr a tia hesita, não se atreve a atravessar. Decide-se por fim, procurando escapulir-se. Evarista segura-a) Ora não ha! Então ainda te não vestiste? D’onde vens?
Electra
Da casa de engommar. Fui á Patros para me alisar um papo...
Evarista
Gabo-te a pachorra! (Notando que sae a ponta de uma carta de uma das algibeiras do avental de Electra) Que tens aqui? (Pega na carta)
Electra
Uma carta.
Cuesta
Creancices.
Evarista
Não imagina, Cuesta, o desgosto que esta rapariga me dá com as suas travessuras, que já não são tão innocentes como isso! (Dá a carta a Urbano) Lê tu.
Cuesta
Vamos a vêr isso.
Urbano
(lendo) Senhorita—Tenho para mim que n’esse rosto feiticeiro...
Evarista
(zombando) Muito bonito! (Electra contém difficilmente o riso)
Urbano
(continúa a ler) ...que n’esse rosto feiticeiro escreveu o Supremo artifice o problema do... do... (Sem entender a palavra seguinte)
Electra
(apontando) ...do «cosmos».
Urbano
Isso mesmo: do cosmos, symbolisando em seu luminoso olhar, na sua bocca divina, o poderoso agente physico, que...
Evarista
(arrebatando a carta) Que indecencias!
Urbano
(descobrindo outra carta em outro bolso) está outra. (Pega n’ella)
Cuesta
Vejamos essa!
Evarista
Isto, Electra, não é o corpo de uma menina: é um marco postal.
Urbano
(lendo) Desapiedada Electra, com que palavras exprimirei o meu desespero, a minha loucura, o meu frenesi...?
Evarista
Basta... Isso revolta-me. (Incommodada revista as algibeiras de Electra) Apostaria que ainda ha mais.
Cuesta
Indulgencia, Evarista!
Electra
Tia, não se amofine mais...
Evarista
Que me não amofine!... A amofinação eu t’a contarei... Veste-te immediatamente.
Urbano
(consultando o relogio) É quasi a hora.
Electra
N’um momento!
Evarista
Avia-te, avia-te! (Electra, contente de se vêr solta, corre para o seu quarto)
CUESTA, URBANO, EVARISTA E PANTOJA
Evarista
(com tristeza e desalento) E então, Leonardo, que me diz a isto?
Cuesta
O socego com que deixou devassar os seus segredos demonstra bem a pouca importancia que lhes dá e que elles teem.
Evarista
Não, não é tanto assim...
Pantoja
(pelo fundo, anciado) Está o Cuesta! Já se não pode dizer o que se quer...
Evarista
(contente de vêl-o) Até que emfim, Pantoja... (Formam-se dois grupos: á esquerda Cuesta sentado, Urbano em pé; á direita, Pantoja e Evarista, sentados)
Pantoja
Venho contar-lhe coisas da maior gravidade.
Evarista
Ai de mim! seja o que Deus quizer.
Pantoja
(repetindo a phrase com reservas) Seja o que Deus quizer... está muito bem, mas queiramos tambem nós o que quer Deus, e empenhemos toda a nossa vontade em produzir o bem, por mais que nos custe!
Evarista
A sua energia fortifica a minha... Então... que ha?
Pantoja
Ha pouco, em casa de Requesens, falou-se de Electra em termos dissolutos.
Contavam que, indecorosamente envolvida[121] por um vespeiro de namorados, ella se divertia a receber e a mandar cartas a toda a hora do dia.
Evarista
Infelizmente, Salvador, a frivolidade d’esta menina é tal que, com toda a minha ternura por ella, nem eu mesma a sei defender!
Pantoja
(angustiado) Pois saiba mais, e veja que não tem limites a maldade humana. Hontem á noite o marquez de Ronda, na tertulia da sua casa, na presença de Virginia, sua santa mulher, e de outras pessoas do maior respeito, não cessou de exaltar os encantos de Electra com expressões do mais material e repugnante mundanismo.
Evarista
Tenhamos paciencia, meu amigo.
Pantoja
Paciencia... Paciencia é uma virtude que vale muito pouco sempre que se não reforça com a resolução. Não confundamos essa virtude com o vicio da negligencia, e determinemo-nos com firmeza, minha[122] querida amiga, a resguardar Electra da infamia do mundo, em logar onde não veja exemplos de leviandade e onde não ouça uma só palavra do contagioso impudor da sociedade em que vivemos.
Evarista
Onde respire um ambiente de pura virtude...
Pantoja
E não a perturbe o zumbido de pretendentes impudicos e infecciosos... Na critica edade da formação do caracter, em que ella está, temos nós a obrigação de livral-a do immenso perigo, do maior de todos...
Evarista
Que perigo?
Pantoja
O homem. Nada na terra peor que o homem... quando não é bom. Por mim o sei: fui o meu proprio mestre. O meu desvario, de que pela graça de Deus me curei, e depois d’isso a minha tão longa e entristecida convalescença, duramente me ensinaram a grave e delicada medicina[123] das almas... Deixe-me, e eu lhe salvarei essa menina... (Interrompe-o Urbano, que passa para o grupo da direita)
Urbano
(dando importancia á sua revelação) Sabem o que me disse Cuesta? Que entre a cafila dos pretendentes ha um preferido. Electra mesma o confessou.
Evarista
E quem é? (Passa da direita para a esquerda, ficando á direita de Pantoja e d’Urbano)
Urbano
(a Pantoja) Isto poderia modificar os termos do problema.
Pantoja
(mal humorado) E que significa essa preferencia? É um affecto puro, ou é uma paixoneta immoderada, febril e ephemera, d’essas que constituem o mais grave symptoma da loucura do seculo? (Excitado e levantando a voz) É o que é preciso saber-se! que se saiba quem é!
Urbano
Saberemos...
Pantoja
(passando para junto de Cuesta) O snr. Cuesta não a interrogou?
Evarista
(ao centro, a Urbano) Procura tu certificar-te.
Cuesta
(enfadado, em resposta a Pantoja) Parece-me que estão os snrs. desenvolvendo um zelo excessivo e contraproducente.
Pantoja
(com uma suavidade que não encobre a sua altaneria) O meu zelo, meu muito querido D. Leonardo, é o zelo que devo ter.
Cuesta
(um tanto ferido) Eu julguei na minha qualidade de velho amigo da casa...
Pantoja
(levando Urbano comsigo para a direita) Cuesta mette-se demais com o que não é da sua conta.
Cuesta
(a Evarista sem lhe dar cuidado que Pantoja o ouça) O nosso presado snr. Pantoja é talvez demasiadamente afouto na facilidade com que penetra nas attribuições dos outros.
Evarista
(sem saber bem que explicação dar) Emfim, como nosso amigo muito antigo e leal...
Cuesta
Tambem eu o sou.
Urbano
(olhando para o fundo) Ahi está já o Marquez.
OS MESMOS E O MARQUEZ
Marquez
Em boa hora chego!
Pantoja
(áparte) Em pessima!
Marquez
(depois de saudar Evarista) E Electra?
Evarista
Vem já.
Marquez
(cortejando os outros) Já não é cêdo.
Urbano
É a hora. (Pantoja, impaciente, espera Electra á porta do seu quarto. Cuesta fala com Urbano)
OS MESMOS E ELECTRA
Pantoja
(com alegria annunciando-a) Eil-a aqui. (Electra entra pela direita, muito elegantemente vestida com singeleza e distincção)
Marquez
(encomiastico) Que elegante!
Electra
(satisfeita, voltando-se para que a vejam de todos os lados) Meus senhores, que me dizem?
Cuesta
Divina!
Marquez
Ideal!
Evarista
Sim: estás bem.
Pantoja
(fastiento dos elogios tributados a Electra) Vamo-nos? (Preparam-se para sahir)
OS MESMOS E BALBINA, que interrompe bruscamente a scena, entrando pela esquerda, pressurosa e suffocada
Balbina
Minha senhora! Minha senhora! (Suspensão geral)
Todos
(menos Electra) Que é?
Balbina
Ai! o que a menina foi fazer!
Electra
(áparte, batendo o pé) Descobriram-me!
Balbina
Santo nome de Jesus!... Do que ella se havia de lembrar!... (rindo) Não, que uma coisa assim!... Em nome do Padre...
Evarista
(impaciente) Acaba...
Electra
Eu confessarei, se me deixam. Foi que...
Balbina
Foi a casa do snr. D. Maximo, e roubou-lhe... com muita graça, mas roubou...
Urbano
O quê?...
Balbina
O menino mais pequeno! (Olham todos para Electra, que promptamente se recompõe do susto e assume uma altitude serena e grave)
Evarista
(a Electra) Isto que vem a ser?
Pantoja
Electra!
Balbina
Estava o menino dormindo muito socegadinho. A senhorita e a maluca da Patros entraram pela casa dentro, ás escondidas e em bicos de pés... Embrulharam-o, muito bem embrulhado, e fugiram com elle para cá.
Evarista
É inacreditavel.
Pantoja
(reprimindo a sua irritação) E não é decente.
Electra
(com effusão) Tia! pois se nos queremos tanto, tanto d’alma!... eu a elle e elle a mim!
Marquez
(enthusiasmado) Que exemplar mulher!
Cuesta
Merece todo o perdão.
Evarista
Maximo estará furioso a estas horas...
Balbina
O José já para lá foi a correr...
Urbano
E a creança onde está?
Balbina
Está no quarto da Patros. A menina escondeu-o lá até que ella de noite lh’o leve para dormir com a menina. (Sorrisos dos homens, menos de Pantoja) O menino acordou ha um momento, e a Patros quiz dar-lhe um biscouto para o entreter... Eu, que o ouço, acudo, e vejo-o... Virgem Maria! Quiz pegar n’elle... Qual! estrebuchou e bateu-me... Tive de lhe dar uma palmadinha tambem...
Electra
(correndo para a esquerda com um impulso instinctivo) Oh! meu querido amorsinho!
Pantoja
(procurando contel-a) Não.
Evarista
(segurando-a por um braço) Espera.
Balbina
(á porta da esquerda) Ainda se ouve chorar.
Electra
Pobresinho d’elle!
Evarista
Que o levem para a sua casa.
Electra
Ninguem lhe toque... Ninguem se atreva a tocar-lhe... É meu. (Desprende-se á força de Evarista e de Pantoja, que querem contel-a, e sae de uma corrida pela esquerda)
OS MESMOS E JOSÉ
Pantoja
(colerico, passando para a direita) Que falta de dignidade e de juizo!
José
(pressuroso, pelo jardim) Minha senhora...
Evarista
O snr. D. Maximo que disse?
José
Não sabia de nada. Está lá com uns senhores. Quando lhe contei poz-se a rir... Como se nada!... Diz que o menino que está muito bem entregue á menina.
Urbano
Já é pachorra!
Evarista
(a José) Vaes leval-o a casa. Para que a menina aprenda.
Marquez
Voto por que a deixem gosar um pouco mais do seu lindo crime.
OS MESMOS E ELECTRA, pela esquerda, trazendo nos braços o menino, que tem pouco mais ou menos dois annos
Electra
Queridinho da minh’alma!
Evarista
Deixa o menino, e vamo-nos.
Urbano
São horas.
Cuesta
(ao marquez) Eu, pela minha parte, acho que é um rasgo de maternidade. E applaudo-o.
Marquez
Eu digo que é um lance angelico. E adoro-o.
Evarista
(querendo pegar no menino) Então, Electra?
Electra
(em passo ligeiro afasta-se dos que querem tirar-lhe o pequerrucho. Este abraça-lhe o pescoço) Não, não posso deixal-o agora.
Evarista
Balbina, pega n’esse menino.
Electra
(passa de um lado para o outro, procurando um refugio) Não! e não!
Urbano
Dá-m’o a mim.
Electra
Não!
Pantoja
(imperioso, a José) Pegue n’elle, José.
Electra
Não, já disse!... Ninguem lhe toca... É meu.
Evarista
Mas, filha, se temos de sahir!
Electra
Saiam! vão com Deus. (Vendo que o chapeu a inhibe de abraçar e beijar o seu amiguinho, arranca-o rapidamente da cabeça e atira-o para longe. Continúa a passear o menino, fugindo dos que lh’o querem tirar, e, sem ouvir, falando com o pequerrucho, que lhe deita os braços ao pescoço e a beija) Dorme, dorme, meu amor. Não tenhas medo, filhinho... Dorme, que não te largo.
Evarista
Então vamos ou não vamos?
Electra
Eu não vou... Tens fome? tens sede, meu anjo? Eu te acalentarei... Deixa berrar esses egoistas todos, que se não lembram de que não tens mãe!
Pantoja
Mas tem quem olhe por elle.
Evarista
Basta! (Imperiosa, aos creados) levem-o para a sua casa.
Electra
(resolutamente, sem deixar que toquem na creança) A casa! a casa! (Com passo decidido, sem olhar para ninguem, corre para o jardim e sae. Seguem-a todos com a vista, indecisos, não ousando dar um passo para ella)
Pantoja
Que escandalo!
Evarista
Que loucura!
Marquez
Que juizo! o juizo mais perfeito da mulher! Achou o seu caminho.
FIM DO SEGUNDO ACTO
O laboratorio de Maximo. Ao fundo, occupando grande parte da parede, divisoria com revestimento de madeira na parte inferior e envidraçada para cima. Este tapamento separa a scena d’um vasto local, em que se vêem maquinas e apparelhos para a producção de energia electrica. A porta praticavel no socco divisoria communica com a rua.
Á direita, no primeiro plano, um corredor que dá passagem para o jardim dos snrs. de Garcia Yuste. No ultimo plano, uma porta de communicação com a habitação de Maximo e com a cosinha. Entre a porta e o corredor, uma estante com livros.
Á esquerda, porta de passagem para as casas em que trabalham os ajudantes. Junto a esta porta, uma estante com apparelhos de physica e objectos de uso scientifico.
Ao fundo, dos dois lados do socco de madeira, prateleiras com frascos de diversas substancias e livros. No angulo da direita um pequeno aparador.
Á esquerda da scena, a mesa do laboratorio com os objectos que no dialogo se indicam. Fazendo angulo com ella, a balança de precisão sobre um supporte de fabrica.
Ao centro pequena mesa de jantar, e quatro cadeiras.
MAXIMO, trabalhando n’um calculo, com grande attenção ao que está fazendo—ELECTRA em pé, arranjando os multiplos objectos que estão na meza: livros, capsulas, tubos de ensaio, etc. Veste com simplicidade caseira, e grande avental branco.
Maximo
(sem levantar os olhos do papel) Para mim, Electra, a dupla historia que me contas, esse supposto poder dos dois cavalheiros, é um facto destituido de valor positivo.
Electra
(suspirando) Deus te ouça!
Maximo
Tudo se reduz a duas paternidades platonicas sem nenhum effeito legal... até agora. O mais feio do caso é a auctoridade que quer assumir o snr. de Pantoja...
Electra
Auctoridade oppressiva, suffocante, que me tira o ar. Nem me fales n’isso, se não me queres amargurar a alegria de estar cá em casa!
Maximo
Devéras? assim te affliges?
Electra
Ainda mais: ponho-me n’esse estado singularissimo de cabeça e de nervos... Já te contei... Em certas occasiões da minha vida apodera-se de mim um desejo, fixo, fundo, absorvente, de tornar a vêr a imagem da minha pobre mãe, como a via na minha meninez... Pois sempre que se aggrava para mim a tyrannia de Pantoja, renasce o meu doloroso e invencivel anceio; e sinto a perturbação nervosa e mental que me annuncia...
Maximo
A visão da tua mãe? Isso, rapariga, não é d’um espirito rijo e são. Aprende-me a governar essa imaginação... Trabalha-me para a frente, e á má cara. O ocio é o peor de todos os perturbadores da intelligencia.
Electra
(muito animada) Cá estou seguindo á risca o que me mandaste fazer. (Pega n’uns frascos de substancias mineraes e leva-os para uma das estantes) Estes frascos para o seu logar... Emquanto penso n’isto nem penso na furia da tia logo que souber...
Maximo
(attento ao trabalho) A tia até ha de acabar por gostar... Mas deixa que tu, tambem!... Não te bastou a loucura d’hontem... raptar insidiosamente o menino... Tornas a trazer-m’o... ficas-te a embalal-o e adormecel-o, muito mais tempo que o regular... E, não contente ainda com a saturnal d’hontem, pespegas-te hoje cá em casa, e aqui andas a sargentear, para uma banda e para outra, muitissimo fresca da tua vida!... Ainda foi por Deus, que convidados para a distribuição dos premios e para o almoço em Santa Clara os tios ainda a estas horas ignorem o pulo medonho que a boneca deu da casa d’elles para a minha!
Electra
Tu é que me aconselhaste que me insubordinasse... «Insubordina-te!»
Maximo
Sim senhor: fui o instigador do delicto... E gabo-me d’isso.
Electra
A minha consciencia diz-me que não ha mal nenhum no que faço.
Maximo
Pois está bem de vêr que não ha... Foi talvez para casa de um pulha que tu vieste!... Não faltaria mais nada senão que principiasse agora a haver mal em estar alguem na minha casa!
Electra
(trabalhando sempre e falando sem se distrahir do que faz) Eu digo mais: estando tu esmagado de trabalho, só, sem creados, e estando eu para ahi, de mãos a abanar, sem ter absolutamente nada que fazer, o que pareceria mal, o que seria indecente, é que eu não viesse...
Maximo
Cuidar de mim e dos pequenos... Effectivamente, se isso não é logica, digo-te[142] que botemos luto, porque já não ha logica no mundo!
Electra
Queridos pequerruchinhos! Toda a gente sabe que os adoro... São a minha paixão, o meu fraco... (Maximo, abstrahido n’uma conta, cessa de dar attenção ao que ouve) Chega-me a parecer... (Approxima-se da mesa levando uns livros que não estavam no seu logar)
Maximo
(vagamente) Quê?
Electra
Que nem a sua propria mãe lhes quereria tanto como eu!
Maximo
(satisfeito com o resultado do seu calculo, lendo em voz alta uma cifra) Zero, trezentos e dezoito... Fazes favor de me dar as Tabellas de resistencias... aquelle livro encarnado...
Electra
(correndo á estante da direita) Não é este?
Maximo
Mais adeante.
Electra
É verdade... que tôla!
Maximo
Fica-te muito bem,—sabes?—que em tão pouco tempo conheças todos os meus livros e os seus logares na estante...
Electra
Não dirás que te não puz tudo muito arranjadinho.
Maximo
Não; e darei graças a Deus, porque entrou finalmente n’este antro, revolto e poeirento, a limpeza e a ordem!
Electra
(desvanecida) Confessas então que não sou absolutamente, absolutamente inutil?
Maximo
(olhando com fixidez para ella) Não ha nada inutil na creação. Quem te diz a ti que te[144] não creou Deus para altos destinos? Quem te diz que não virás a ser...
Electra
(anciosa) O quê?
Maximo
Uma alma grande, formosa e nobre, que está por hora meia afofada ainda na serradura e na estopa de uma boneca?
Electra
(com alegria) Pae do ceu, se assim fosse! (Maximo levanta-se e, na estante da esquerda, pega n’umas barras de metal, que examina) Nem me digas isso que me entonteces de alegria... Pode-se cantar?...
Maximo
Podes cantar... (Electra repete trauteando o andante de uma sonata) A boa musica é a espóra das ideias preguiçosas, que não affluem; e é o gancho que puxa pelas que estão agarradas de mais ao fundo do entendimento. Canta, companheira, canta... (Prosegue attento á sua occupação)
Electra
(á estante do fundo) Continúo coordenando isto. Os metaloides para este lado. Já os conheço pelos rotulos... Como este trabalhito entretem! Era capaz de ficar aqui todo o santo dia...
Maximo
(jovial) Camarada!
Electra
(correndo para elle) Que manda o magico?
Maximo
Eu não mando por ora. Proponho. (Pega n’um frasco que contém um metal em limalha) Se a menina magica quer collaborar commigo ha de fazer favor de me pesar trinta grammas d’este metal.
Electra
Péso.
Maximo
Sabes já pesar na balança de precisão...
Electra
Perfeitamente. Dá cá. (Alegre, contente, ao deitar o metal na capsula, admira-lhe a belleza) É lindo! Que é isto?
Maximo
É aluminio. Parece-se comtigo. Pesa pouco...
Electra
Ah! eu então?...
Maximo
Pesa pouco, mas é extremamente tenaz. (Olhando-lhe para a cara) Tu tambem?
Electra
Em coisas que eu cá sei, sou tenaz até á barbaridade, e, chegado o momento, estou certa de que o seria até ao martyrio. (Continúa pesando sem interromper a operação)
Maximo
Que coisas são essas?
Electra
Que te importa! Tu és o magico, mas eu é que magíco... commigo, ás vezes.
Maximo
(attento ao trabalho) Pesas-me depois setenta grammas de cobre. (Dá-lhe outro frasco)
Electra
O cobre então serás tu... Não: é tambem feio de mais para se parecer comtigo.
Maximo
É feio, mas util.
Electra
Compara-te antes ao ouro, que é o que vale mais.
Maximo
Nada de ditos! Estás a desmoralisar-me o laboratorio.
Electra
Dá ao menos licença de que me reveja nas qualidades do metal bonito que se parece commigo... Sou tenaz... Não me quebro... Farás favor de o dizer á tia e ao tio Urbano, que, no sermão que me prégaram esta manhã, por umas quarenta vezes me disseram que sou fragil... Fragil, eu!
Maximo
Não sabem o que dizem.
Electra
Sabem lá elles... nem o que é o aluminio, nem o que eu sou!
Maximo
Mas toma sentido, que te não equivoques no peso!
Electra
Equivocar-me eu! Pateta! Eu tenho muito mais tino do que ninguem cuida!
Maximo
Já vou vendo, já vou vendo! (Dirige-se a uma das estantes em procura d’um cadinho) A tia, quando chegar a casa, é que lhe ha de custar um pouco mais a compenetrar-se de que tenhas todo o tino que dizes...
Electra
Deus, que vê os corações, sabe se eu tenho culpa! Porque é que a tia não deixa que eu venha para cá?
Maximo
(voltando com o cadinho que escolheu) Por que tu és uma menina solteira, e as meninas solteiras não podem ficar assim em casa d’um homem só, por mais honrado e por mais digno que elle seja.
Electra
Pois, senhor, não haja dúvida que, por essa regra, estão divertidas as pobres meninas solteiras! (Termina o peso e apresenta os dois metaes pesados nas suas duas capsulas de porcelana) Aqui tens o aluminio e o cobre.
Maximo
(pegando nas capsulas) Um primor. Que limpeza de mãos... Que firmeza de pulso, e que serenidade de attenção para não fazer d’isto uma trapalhada! Estás fina.
Electra
Estou contente apenas. Quando se tem a alegria tudo corre bem.
Maximo
Ahi disse a collega uma importantissima verdade. (Verte os dois corpos no cadinho)
Electra
Isso é um cadinho, não é?
Maximo
Sim senhor, para fundirmos os dois metaes.
Electra
Para nos fundirmos tu e eu, se não pegarmos á bulha no meio do fogo... (Trauteia a sonata)
Maximo
Faze favor de chamar o Ricardo.
Electra
(correndo á porta da esquerda) Ricardo!
Maximo
Que venha tambem o Gil.
Electra
Gil! Venham ambos, que manda o mestre... não se demorem!
ELECTRA, MAXIMO, RICARDO E GIL, o primeiro vestido de operario, com blusa, o segundo em trage burguez, com mangas de alpaca, pena na orelha
Gil
(mostrando um calculo) Aqui está o valor obtido.
Maximo
(lê rapidamente a cifra) 0,158,073... Está errado (Seguro do que diz e com certa severidade) Não é possivel que para um diametro de cabo menor de quatro millimetros obtenhamos um circuito maior, segundo o teu calculo. A verdadeira distancia deve ser inferior a duzentos kilometros...
Gil
Não sei então... eu... (Confuso)
Maximo
Está mal. É que te distrahiste.
Electra
É que vocês, coitados, não teem... a attenção serena...
Maximo
Emquanto fazeis os calculos estaes a pensar em historias da carocha.
Electra
E a conversar, a falar de touros, de theatros, da politica... assim não fazemos nada.
Gil
Vou rectificar as operações.
Electra
E, sobretudo, muita paciencia, muita contensão, todos os cinco sentidos!... Senão tornamos á mesma.
Gil
Vou vêr isto.
Maximo
Anda lá e não te descuides (Gil sae e Maximo, virando-se para Ricardo, entrega-lhe o cadinho) Aqui tens.
Ricardo
Para fundir...
Maximo
Está preparado o forno?
Ricardo
Sim senhor.
Maximo
Mette immediatamente, e quando esteja em fusão, avisa. Com esta aleação vamos fazer um novo ensaio de conductibilidade... Espero chegar aos duzentos kilometros com perda escassissima.
Ricardo
Faz-se o ensaio hoje?
Maximo
(atormentado por uma ideia fixa) Sim, quanto antes. Não abandono este problema. (A Electra) É a minha ideia fixa, que me não deixa viver.
Electra
Ideia fixa tambem eu tenho uma, e por ella vivo. Avante!
Maximo
Avante, Electra! Avante, Ricardo!
Ricardo
Não manda mais nada, patrão?
Maximo
Que actives a fusão.
Electra
Que se fundam bem os metaes!
Ricardo
Hão de ficar os dois em um só, senhorita.
Electra
Dois n’um.
Maximo
(como preparando-se para outra occupação) Agora, minha graciosa discipula...
Electra
Agora ha de o mestre perdoar, mas tenho de ir vêr se acordaram os meninos.
Maximo
Ha quanto tempo comeram?
Electra
Ha trez quartos d’hora. Devem dormir meia hora mais. Está bem regulado assim?
Maximo
Está bem tudo o que determines.
Electra
Olha o que dizes, que estarás por tudo...
Maximo
(carinhosamente) Por tudo.
Electra
Que se fique sabendo!... Eu venho já. (Sae ligeira e cantando pela esquerda. Entra ao mesmo tempo um operario, pelo fundo)
MAXIMO E O OPERARIO
Maximo
Que ha?
Operario
Veio aquelle senhor, o marquez de Ronda...
Maximo
Porque não entrou?
Operario
Perguntou pelo patrão... Disse-lhe que tinha uma visita... Elle então, como pessoa da casa, logo disse: «Já sei... ha de ser a senhorita Electra... Voltarei logo».
Maximo
Porque lhe não disseste que entrasse, meu pascacio?
Operario
Como me disse que voltava...
Maximo
Pois sempre que vier, que entre, esteja que não esteja a senhorita Electra, e sobretudo estando.
Operario
Assim se fará. (Sae pelo fundo)
MAXIMO E ELECTRA
Electra
(voltando do interior da casa) Dormidinhos como dois anjos... até d’aqui a meia hora...
Maximo
E os adultos não comem? não se almoça hoje n’esta casa?
Electra
Quando queiras. Está feito o almoço. (Dirige-se para o aparador, onde está a pequena baixella: talheres, toalha, guardanapos, fructeira)
Maximo
É como deve ser... Tudo a horas... assim se chega sempre ao que se quer.
Electra
(estendendo a toalha) Ao que eu quero não chegarei nunca por mais pontualidade que ponha...
Maximo
Deixa-me ajudar-te... (Vae-lhe passando os pratos, os talheres, o pão, o vinho) Chegas, sim.
Electra
Achas?
Maximo
Acho. Tão certo que chegas como que tenho uma fome de cincoenta cavallos de força.
Electra
Melhor, para que te agrade o almoço.
Maximo
A elle!
Electra
N’um minuto. (Sae)
MAXIMO E GIL
Maximo
Bemdita seja essa mulhersinha preciosa, que tão simples, tão instinctiva, tão ingenuamente, traz a sua grande alma inquieta, torturada e núa, a inundar de alegria e de luz este esconderijo da sciencia, transformando tão estreita aridez em tão vasto paraizo! Bemdita a que com um mero sorriso de creança vem arrancar da sua abstracção consumidora este pobre Fausto, envelhecido aos trinta e cinco annos, e dizer-lhe: «Nem só de verdades se vive!» (Interrompe-o Gil, que tem entrado um pouco antes e se approxima sem ser visto)
Gil
(satisfeito mostrando o calculo) Pronto. Creio ter achado a cifra exacta.
Maximo
(pega no papel e olha-o vagamente, sem se fixar) A exactidão!... E tambem tu pensarás[160] que só de coisas exactas vive o homem!? Saturada de certeza, a alma insaciada appetece, mais que tudo, o que é apenas o sonho, e vôa para elle, avassalada e rendida, sem nem sequer tentar saber se é para a realidade, se para a illusão, que vôa!... Considerando bem, Gil, nada mais natural do que um equivoco de calculo.
Gil
Sim, senhor, muito facilmente se distrae uma pessoa pensando em...
Maximo
Em coisas vagas, indefinidas, aereas, vaporosamente illuminadas de côr de rosa e d’azul...
Gil
Eu, distrahido, confundi a cifra da potencial com a da resistencia... Mas já rectifiquei... Queira vêr se está bem.
Maximo
(lê) 0,318,73... (Com repentina transição para um goso expansivo) Homem! e que não estivesse! Se ainda errasses outra vez?... A exactidão dos mathematicos perdoaria, por hoje, á nossa phantasia de poetas.
Gil
Ah! a exactidão não perdôa nunca: é a tyrannia da nossa vida; opprime-nos, escravisa-nos, não nos deixa respirar.
Maximo
Essa mestra implacavel tambem algumas vezes nos sorri, nos acalenta e nos encanta. Vês essa cifra?
Gil
(contente, dizendo de memoria) 0,318,73.
Maximo
Pois sabe que nunca os maiores poetas do mundo, Virgilio ou Homero, Dante, Lope de Vega ou Calderon escreveram estrophe mais inspirada e mais poetica do que é hoje para mim a d’esses miseros numeros! É verdade que a harmonia, o encanto poetico não é n’elles que está. Está em que... Adeus, vae almoçar... Deixa-me, deixa-nos... (Afasta-o com a mão para que saia. No ponto da scena em que pode olhar para o interior da habitação) Ali é que está a imaginação, a poesia, o ideal, no fundo d’essa cosinha, onde n’este momento ondula a mais altiva e a mais virginal flôr da innocencia, da candura e da bondade humana.
MAXIMO E ELECTRA
Electra
(entrando com uma terrina fumegante) Aqui está o banquete.
Maximo
A vêr o que se fez! arroz com menudilhos... O thema é digno de Lucullo.
Electra
Elogia-o sem provar: está superfino. (Senta-se) Vou-te servir. (Servindo-o)
Maximo
Não tanto.
Electra
Olha que não tens mais nada... Acho que se não deve ter mais d’uma coisa... e escolher a melhor.
Maximo
Meu Deus! o que diria a tia, se agora nos visse aqui almoçando juntos...
Electra
Um almoço feito por mim!
Maximo
Sabes que está maravilhoso o teu arroz?
Electra
Foi minha mestra, em Hendaya, uma senhora valenciana. Eu fiz um curso de arrozes. Sei-os fazer de sete maneiras differentes, todos riquissimos.
Maximo
Decididamente és todo um mundo novo.
Electra
E quem é o meu Colombo?
Maximo
Não ha Colombo que ousasse descobrir-te. Tu és um mundo que apparece.
Electra
Será talvez por eu ser um mundosito assim desconhecido, que querem metter-me no convento para me livrar do perigo[164] de que dêem commigo. E é o que me espera...
Maximo
D’essa é bem natural que não escapes.
Electra
(assustada) Que dizes!
Maximo
Quero dizer: escapas... porque te hei de salvar eu.
Electra
Prometteste-me o teu amparo.
Maximo
E dou-t’o.
Electra
Que tencionas fazer?
Maximo
Eu te digo: o negocio é grave...
Electra
Falas com a tia, já se sabe...
Maximo
Falo com a tia...
Electra
E que lhe dizes?
Maximo
Falo com o tio...
Electra
Façamos de conta que se acabaram todos os tios com quem fazes tenção de falar. E depois?
Maximo
Depois, tendo-te provisoriamente abrigado no mais inviolavel sacrario, procederei minuciosamente ao exame e á sellecção dos noivos. E sobre este assumpto temos que conversar...
Electra
Vaes ralhar-me?
Maximo
Não: já me disseste que te enfastia esse brinquedo de bonecos vivos.
Electra
Cuidei que me distrahiriam, e cada vez me entristeciam mais!
Maximo
Nenhum d’elles te inspirou um sentimento especial, distincto do dos outros?
Electra
Nenhum!
Maximo
Declararam-se todos por escripto?
Electra
Uns por escripto; outros por meio de olhares espantosos, que nunca cheguei a comprehender bem o que quizessem exprimir, e por isso não metto estes em conta...
Maximo
Perdão: teem de entrar todos no rol: epistolares e olheiros. E aqui chegamos ao ponto sobre que devo dar-te, desde já, a minha sincera opinião: casa-te, Electra; casa-te quanto antes!
Electra
(envergonhada, baixando os olhos) Assim... tão breve!...
Maximo
O mais breve possivel. Precisas de ter a teu lado um homem, um marido. Tens a alma, a tempera, os instinctos e as virtudes da casa conjugal. É portanto forçoso que da grande lista dos teus pretendentes se escolha um, o melhor, o mais digno de te amar e de ser amado por ti, porque, sem amor, considera bem que não ha familia.
Electra
Estou certa.
Maximo
E tu nasceste destinada para a vida exemplar e fecunda de um lar feliz... (Teem acabado de comer o arroz)
Electra
Queres mais?
Maximo
Não: estou satisfeito.
Electra
De sobremesa tens fructa, que é do que mais gostas. (Põe na mesa o fructeiro)
Maximo
(pegando n’uma bella maçã) Gósto, porque esta (mostrando-lhe a maçã) é a verdade em toda a sua pureza. Aqui não interveio a mão do homem senão para a colher.
Electra
É a obra divina, bella, simples, admiravel.
Maximo
Faz Deus esta prodigiosa maravilha para a dar ao homem; e nem sempre lh’a agradece aquelle que foi eleito para em certo dia e a certa hora passar por baixo da macieira em fructo!
Electra
Quantas vezes basta, para colher a felicidade, esquecer-se a gente por um momento da terra, e levantar os olhos para cima!
Maximo
(contemplando-a) Pois é o que eu faço, Electra.
ELECTRA, MAXIMO E RICARDO, pela esquerda
Ricardo
Mestre...
Maximo
Quê?
Ricardo
Chegamos ao rubro.
Electra
A fusão!
Maximo
Avisa-me ao branco incipiente.
Ricardo
Virei dizer.
Maximo
Olha. Que preparem na officina a bateria Bunsen. E previne de que hei de precisar para logo do dinamo grande.
ELECTRA E MAXIMO, depois o OPERARIO
Electra
(com tristeza) D’aqui a um instante vaes tratar da fusão, e eu...
Maximo
Tu—está claro—irás para casa.
Electra
Nem é bom pensar no que vae ser quando eu chegue!
Maximo
Tu ouves, calas-te, e esperas.
Electra
Esperar... esperar sempre! (Acabam de almoçar) Ai que, se tu me não vales, não sei o que será de mim, com a tia e com o snr. de Pantoja... Elles a teimarem que eu vá para anjo, e Deus a desageitar-me cada vez mais para a carreira angelical!
Maximo
(que se tem levantado e parece disposto a continuar o trabalho) Não tenhas cuidado. Confia em mim. Eu te irei requerer como teu protector e teu mestre...
Electra
(approximando-se supplicante) Não te demores então, Maximo. Por amor dos teus filhos, não te demores. Se tu me tomasses tambem como filha, para estar com os meninos, para viver com elles!
Operario
(pelo fundo) O snr. marquez de Ronda.
Electra
(assustada) Vou-me embora?
Maximo
Por vir o Marquez? (Ao creado) Que entre. (O operario sae) Offerecia-se-lhe café, se houvesse.
Electra
Vou buscal-o. (Sae com pressa)
MAXIMO, MARQUEZ E ELECTRA. No fim da scena, RICARDO
Maximo
Entre, Marquez.
Marquez
Maximo... (Olhando em redor, desconsolado) E Electra?
Maximo
Na cosinha. Foi buscar-nos café.
Marquez
Na cosinha! Continua-se vivendo então n’esta casa como na ilha de Robinson? Ahi está o que não comprehendo: como tendo você lá em cima todos os confôrtos d’um palacio...
Maximo
É muito simples... O trabalho e o habito do estudo enclausuram-me aqui. Puz os pequenos ao lado da officina para os ter ao pé de mim; e, reduzindo o[173] mais que me foi possivel a minha orbita d’acção, para aqui me fiquei, recluso no dever que me impuz, como um asceta na estreiteza da sua gruta.
Marquez
Sem nem sequer se lembrar de que é rico...
Maximo
A minha riqueza é a singeleza, o meu luxo é a sobriedade, o meu repouso é o trabalho, e assim viverei emquanto viver só...
Marquez
Não tardará então muito em mudar de vida... Precisamente lhe venho contar... (Entra Electra com a bandeja contendo o serviço e a maquina de café) Oh! a deusa do lar!
Electra
(adeanta-se cautelosa de que não caia alguma peça) Por Deus, Marquez, não me ralhe.
Marquez
Eu ralhar?
Electra
Nem me faça rir... para não haver um desastre. Sentido! (O marquez pega na bandeja)
Marquez
Aqui me tem para companheiro de infortunios... Ainda então lhe parece que eu seja dos que ralham? Eu sou dos que explicam. Mas não pertencem a esta seita os senhores ali do outro lado do jardim...
Electra
Os tios.
Marquez
A noticia do lindo idyllio, que se está passando aqui como na inverosimilhança de uma tapeçaria ou de um panno de leque, lá chegou já á distribuição dos premios em Santa Clara, onde a estas horas estará deliberando o conclave. As suas resoluções serão terriveis.
Electra
A Virgem Maria me valha!
Marquez
Socegue...
Maximo
Isso tem de ser agora commigo.
Marquez
Será comnosco. O seu café, minha menina, está digno de Jupiter, pae dos deuses: é do que elles tomam no olympo, aos domingos.
Maximo
Segue-se, Electra, que em vez de regressar sósinha, teremos de ir ambos levar-te aos snrs. de Yuste.
Ricardo
(assumando á porta da esquerda) Snr. D. Maximo, o branco incipiente!
Electra
(com inconsciente alegria infantil) A fusão!
Maximo
(a Ricardo) Não posso agora. Chama-me quando chegar o branco resplandecente. (Ricardo sae)
Marquez
Peço licença... (Tendo-se servido de vinho) Eu brindo o hymeneu dos metaes, saudando os cadinhos do magico prodigioso.
MAXIMO, ELECTRA, MARQUEZ E PANTOJA
Electra
(aterrada) D. Salvador! Deus me acuda!
Maximo
Queira entrar, snr. de Pantoja. (Pantoja adeanta-se lentamente) A que devo a honra...?
Pantoja
Antecipando-me aos meus bons amigos, tios d’esta menina, que d’aqui a um momento terão voltado a casa, aqui me acho resolvido a cumprir o dever d’elles e o meu.
Maximo
A familia toda consubstanciada no snr. de Pantoja...
Marquez
Para metter medo á gente.
Maximo
Considera-nos reus d’algum tremendo crime...
Pantoja
Não considero senão unicamente que esta menina não pode estar aqui. Venho buscal-a. Ha de sahir commigo. (Pega na mão de Electra, insensivel, immobilisada pelo medo) Vem.
Maximo
Queira perdoar (Sereno e grave, approxima-se de Pantoja) Com todo o respeito que lhe devo, rogo-lhe, snr. de Pantoja, que solte a mão d’esta senhora. Antes de lhe tocar, teria sido mais opportuno que falasse commigo, que sou o dono d’esta casa, e o responsavel de tudo o que n’ella se passa, de tudo o que vê... e de tudo o que não queira vêr.
Pantoja
(depois de uma breve hesitação larga a mão de Electra) Seja assim. Deixarei de dirigir-me a esta pobre creatura, desvairada ou trazida aqui ao engano, e falarei comtigo, a quem quizera dizer apenas muito breves palavras:—Venho buscar Electra. Dá-me o que não te pertence, o que não te pertencerá nunca.
Maximo
Electra é inteiramente livre. Nem eu a trouxe aqui contra sua vontade, nem contra sua vontade a levará d’aqui quem quer que seja.
Marquez
Se se pudesse, pelo menos, conhecer os fundamentos da auctoridade do snr. de Pantoja...
Pantoja
Eu não preciso de lhes dizer, aos senhores, qual é a proveniencia da auctoridade de que disponho, e que esta menina me reconhece, prestando-me a obediencia que lhe peço. Não é verdade, Electra, que basta uma palavra minha para immediatamente te separar d’estes homens, e levar-te para quem depositou em ti o seu mais puro amor, e nem vive nem quer viver na terra senão para ti? (Electra, immobilisada, olhando para o chão, cala-se)
Maximo
Não, bem vê que não basta essa unica palavra sua.
Marquez
Não offerece dúvida que é uma palavra bôa, mas insufficiente.
Maximo
Quer permittir que a interrogue eu? Electra, minha querida amiga, assegura-te o coração e a consciencia que entre todos os homens que conheces, entre os que vês aqui e os que não estão presentes, é sómente e exclusivamente ao muito dedicado e ao muito respeitavel snr. de Pantoja que tu deves submissão e amor?
Marquez
Fale abertamente e destemidamente, menina! Diga-nos o que o seu coração e a sua consciencia lhe dictarem.
Maximo
E se este senhor, a quem indubitavelmente deves toda a consideração e todo o respeito, te ordenar que o sigas, e nós outros te dissermos que fiques, de tua livre e plena vontade, que determinas?
Electra
(depois de penosa lucta) Ficar.
Marquez
Já vê...
Pantoja
Não está em si... Fascinaram-a.
Maximo
Parece-me inutil a insistencia...
Marquez
Para acabar vencido...
Pantoja
(com fria tenacidade) Eu não sou dos que os homens vencem. A razão é vencedora sempre, e eu seria indigno da que Deus me deu, e que defenderei até o meu derradeiro alento, se a não puzesse continuamente acima de todo o erro e de todo o extravio. Maximo, os metaes que ardem nos teus fornos são menos duros do que eu. As tuas mais poderosas maquinas são brinquedos de vidro comparadas com a minha vontade. Electra pertence-me: basta que eu o diga.
Electra
Que terror, meu Deus!
Maximo
Se quer assegurar-se do que póde a sua vontade opponha-a á minha.
Pantoja
Dispenso demonstrações comtigo ou com quem quer que seja. Basta-me saber o que devo fazer, e fazer o que devo.
Maximo
Pois toda a minha força é essa: o dever.
Pantoja
O teu dever é uma hypothese terrena e accidental. O meu gira em torno de uma consciencia tão rija e tão forte como o eixo do universo; e os meus fins são tão altos que nem tu os alcanças nem poderás alcançal-os nunca.
Maximo
Por mais incommensuravel que seja a elevação dos seus fins, pelo amor de Electra eu irei a toda essa altura, para a defender.
Marquez
Esta senhora voltará comnosco á sua casa.
Maximo
Commigo. E isso bastará para justificação de todos os seus actos, e para que os tios lhe perdoem, se teem que perdoar-lhe.
Pantoja
Os senhores de Yuste não renegarão n’esta conjunctura os sentimentos e as convicções de toda a sua vida. (Exaltando-se) Eu estou no mundo unicamente para que Electra se não perca. E não se ha de perder. Assim o quer a vontade divina, de que a minha é um reflexo, e que vós confundis com um capricho da brutalidade humana, porque não sabeis nada do que são nas puras regiões espirituaes as emprezas de uma alma... Pobres cegos! pobres loucos!...
Electra
(consternada) D. Salvador, não se desgoste—por Nossa Senhora lh’o peço! Eu não sou má, Maximo é bom... Sabem-o todos... Sabem-o os tios... e o snr. de[183] Pantoja bem o sabe! Não deveria sublevar-me até o ponto de vir para aqui sósinha, como determinei vir... Foi um acto de grave rebeldia, concordo. Voltarei para casa... Maximo e o snr. de Ronda irão commigo, e os tios hão de perdoar-me... (A Maximo e ao Marquez) Não é verdade que me perdoarão? (A Pantoja) Porque é esta má vontade a Maximo, que nunca lhe fez mal nenhum?... Confessa—pois não é assim?—que elle nunca lhe fez nem lhe quiz mal? Em que se funda essa aversão?
Maximo
Não é aversão: é odio recondito, inextinguivel.
Pantoja
Odiar-te, não. As minhas crenças prohibem-me o odio. De certo que ha entre nós ambos uma incompatibilidade proveniente da nossa differença de principios... Teu pae, Lazaro Yuste, e eu, tivemos desavenças profundas, que é melhor esquecer... Mas a ti, Maximo, nunca te quiz mal... Antes te quero bem. (Mudando de tom para mais suave e conciliador) Perdôa a severidade com que te falei, e permitte que,[184] fazendo um grande esforço sobre mim, eu te implore que deixes Electra partir commigo.
Maximo
(inflexivel) Não posso annuir.
Pantoja
(violentando-se mais) Por segunda vez, Maximo, esquecendo todos os resentimentos, profundamente humilhado, eu te supplico... Deixa-a.
Maximo
Não.
Pantoja
(devorando o vexame) Bem... Pela segunda vez m’o negaste... Para offerecer ás tuas bofetadas não tenho mais de duas faces, por isso te não peço por terceira vez a mesma coisa. (Com gravidade e rigidez) Adeus, Electra... Maximo, Marquez, adeus.
Electra
(baixo a Maximo) Por quem és, Maximo, transige um pouco...
Maximo
(redondamente) Não.
Electra
Não disseste que me levarieis, tu e o Marquez? Vamos todos. (Esta phrase é ouvida por Pantoja que se detem na sua marcha lenta para a sahida)
Maximo
Não... Ha de ir primeiro elle. Nós iremos quando nos convenha, e sem a salvaguarda de ninguem.
Pantoja
(friamente da porta) E a que vaes senão a aggravar a situação d’essa menina?
Maximo
Vou ao que devo ir.
Pantoja
Pode-se saber o que é?
Maximo
Escusado.
Pantoja
Não preciso de que me reveles as tuas intenções. Para quê, se as conheço? (Dá alguns passos para o centro da scena, cravando a vista em Maximo) Não me fio na expressão dos teus olhos. Penetro na tua mente, e descubro o que pensas... Interroguei-te, não para saber da tua intenção mas para ouvir as promessas com que a encobres... Em ti não mora a verdade, nem o bem... não, não, não... (Sae repetindo as ultimas palavras)
ELECTRA, MAXIMO, MARQUEZ E RICARDO (Principia a escurecer)
Electra
(consternada, procurando um refugio em Maximo) Maximo, ampara-me! Livra-me do terror que me inspira este homem.
Maximo
Conta commigo. Não tenhas medo. (Pega-lhe nas mãos)
Marquez
Começa a escurecer. Vamos.
Electra
Vamos... (Incredula e medrosa) Então, deveras, sempre vou comtigo?
Maximo
Juntos n’esta hora, como o seremos para toda a vida...
Electra
Comtigo para sempre? (Augmenta a escuridão)
Ricardo
(á porta da esquerda) Snr. D. Maximo, o branco deslumbrante!
Marquez
(a Ricardo) A fusão está feita. Creio que se podem apagar os fornos.
Maximo
(com effusão beijando as mãos de Electra) Minha alma, minha consolação, minha alegria! comtigo para todo sempre... O que[188] vou dizer aos nossos tios é que te peço, que te faço minha, que serás a minha mulher e a mamãsinha dos meus filhos.
Electra
(opprimida, como se a alegria a transtornasse) Não me enganas?... Virei a viver sempre com os teus meninos? Serei entre elles a menina maior?... Serei tua mulher?
Maximo
(com voz forte) Sim. (Illuminada a casa do fundo, resplandece com viva claridade toda a scena)
Marquez
Vamo-nos. É noite.
Electra
É o dia!... o meu dia eterno! (Maximo enlaça-a pela cintura e saem. O marquez segue-os)
FIM DO TERCEIRO ACTO
Jardim do palacio de Garcia Yuste. Á direita, a entrada para o palacio, com escadaria larga de poucos degraus. Á esquerda, jogando com a entrada, um corpo de architectura grutesca, ornado com baixos-relevos: junto d’esta construcção, um banco de pedra, em angulo, de risco elegante. Jarrões ou plantas exoticas adornam este terraço, com pavimento de mosaico, entre o edificio e o solo areado do jardim.
No segundo plano e no fundo, o jardim com grandes arvores e macissos de flores. Do centro partem trez arruamentos em curva. O da esquerda leva á rua. Cadeiras de ferro. É de dia.
ELECTRA E PATROS, com um cesto de flores que acabam de colher
Electra
(tirando uma carta da algibeira) Deixa ficar as flores, e aqui tens a carta.
Patros
(pousando as flores) Com esta faz trez desde esta manhã!
Electra
(escolhendo as flores mais pequenas com que fórma tres ramilhetes) São tantas as coisas que Maximo tem que me dizer, e eu a elle...
Patros
Bemdito seja Deus, que da noite de hontem para hoje tanta felicidade lhe deu, senhorita Electra!
Electra
E que depressa, Patros! que rapidamente! como n’um sonho, que tudo se fez! Hontem á noite fiquei pedida, e hoje marcam os tios o dia do casamento...
Patros
E no emtanto, carta para lá, carta para cá... de não acabar nunca...
Electra
Que queres? Se desde hontem nos não podemos vêr como companheiros, na fabrica, porque sômos noivos agora... Temos de nos corresponder por escrito. Na carta das oito horas e um quarto falava-lhe das coisas muito serias que estou impaciente por dizer-lhe. Na das nove e[191] vinte e cinco recommendava-lhe que se não esquecesse da colhér de xarope que tem de se dar a Pepito de duas em duas horas... N’esta agora digo-lhe que a tia foi para a missa e que tem demora... É natural que elle lhe queira falar...
Patros
Até ás onze horas de certo que não volta a senhora da egreja...
Electra
E ás onze vou eu para a missa com o tio. (Atando os tres ramilhetes) Pronto! Este para elle, estes para cada um dos meninos... Um a cada um para que não briguem... (Dispondo-se a compôr o ramo grande) E agora o ramo grande para a Senhora das Dôres... Vae, e volta depressa para me ajudares... Espera resposta—é claro—uma palavra que seja!
Patros
Vou de corrida. (Sae pelo fundo)
Electra
(escolhendo as mais lindas flores para o grande ramo) Hoje, minha querida Mãe Santissima, ha de ser maior a minha offerenda; e a minha pena é que não seja tão grande que fique sem uma só flôr o jardim dos tios... Deante da tua santa imagem queria eu hoje collocar todas as mais lindas coisas da terra: as rosas, as estrellas e os corações amantes... Virgem Maria! consolação e esperança nossa! não me desampareis, levae-me ao bem que te pedi, e que hontem á noite me prometteu a expressão dos teus divinos olhos quando as minhas lagrimas te disseram a gratidão e a esperança da minha alma...!
Patros
(pressurosa pelo fundo) Não trago carta, mas trago um recadinho, que ainda é melhor...
Electra
Que vem cá?
Patros
Logo que saiam uns senhores, que estavam já a despedir-se... Que a menina o espere aqui para lhe falar um momento... Tem de ir a uma conferencia depois...
Electra
(olhando para o fundo) Virá já?...
Patros
Ahi vem.
Electra
(dando-lhe o ramo) Toma lá... para Nossa Senhora... Para a Nossa Senhora do meu quarto, bem entendido! Não é para a do altar do oratorio, toma sentido: é para a da cabeceira da minha cama.
Patros
Pois pudera! (Entra correndo pela escada)
ELECTRA, MAXIMO, depois o MARQUEZ
Maximo
(a distancia, abrindo um pouco os braços) Menina!
Electra
(mesma attitude) Maximo!
Maximo
Aqui estamos embaçados, deante um do outro, sem saber que dizer.
Electra
Embaçadissimos. Começa tu.
Maximo
Tu... para te desacanhares... Dize-me uma grande mentira: que me não amas.
Electra
Dize-me primeiro tu uma grande verdade.
Maximo
Que te adoro. (Approximam-se)
Electra
Em paga d’essa mentira toma esta rosa que te escolhi, sem brilho, pequena, singela, humilde, como eu quero ser para ti.
Maximo
Tu tens um grande coração e um alto espirito...
Electra
Não tenho; mas gostava de ser ainda mais tôsca e mais informe do que sou para que tu me ensinasses tudo, e eu não tivesse nada que não fôsse teu.
Maximo
Deus fez de ti a sua obra mais preciosa...
Electra
E deu-te essa obra, que é apenas o esboço d’uma creatura humana, para que tu a completes e aperfeiçôes.
Maximo
Para que eu a enthronise e a corôe, deixando desenvolver-se d’ella a immortal flôr de humanidade, que é a simples mulher da casa, forte, pura, alegre e compadecida. (Consulta o relogio)
Electra
Tens essa conferencia... Vae á tua obrigação... Não te demorarás muito?
Maximo
Virei encontrar-me com a tia quando ella vier da missa.
Electra
E o marquez, desde hontem... voltou como tinha dito?
Maximo
Deixei-o agora na fabrica a escrever ao tabellião. Incomparavel amigo!... Hontem á noite—sabes?—contei-lhe, ao voltar para casa, o teu romance paterno... esse romance dos dois capitulos... Indignou-o a intervenção despotica de Pantoja e de Cuesta na tua vida; e essa lamentavel historia mais ainda o fortaleceu na firme determinação de defender-nos...
Electra
(surprehendida) Mas então precisamos ainda de que nos defendam?
Maximo
No essencial é claro que não... Mas quem nos assegura que esses dois homens não tentem oppôr-nos alguns obstaculos de jurisdicção theorica?
Electra
(tranquillisando-se) D’essa jurisdicção nos riremos nós.
Maximo
Mas rindo, rindo, teremos de a prevenir e de a annullar.
Marquez
(pressuroso pelo fundo) Então ainda aqui?
Maximo
Falavamos de si, e deliberavamos nomeal-o procurador dos nossos negocios de familia...
Marquez
Acceito a procuração... (Reprehendendo-o com doçura) Mas, homem, que se lhe faz tarde!
Maximo
Adeus, adeus! até já.
Electra
(vendo-o partir) Vae, e vem depressa.
ELECTRA E O MARQUEZ
Marquez
Ahi está o que é um galan de categoria scientifica... Parabens pelo achado d’esta preciosidade rara. A graça e a alegria da sua edade precisava da alliança de uma razão grave e de um coração firme, como o d’este homem. É elle, entre quantos eu conheço, o mais perfeitamente destinado para fazer da minha querida menina uma grande e exemplar mulher.
Electra
Fará de mim o que elle quizer que eu seja. (Com muita curiosidade) Mas diga-me, snr. de Ronda, conheceu a primeira mulher de Maximo? Perdôe-me esta curiosidade, e não extranhe que eu deseje saber da vida toda do homem que amo.
Marquez
Não convivi com ella... Vi-a com Maximo uma ou duas vezes. Era uma[199] vascongada, sêcca, vulgar, pouco intelligente, bôa esposa para um lar tranquillo mas sem felicidade...
Electra
Os paes d’elle sim, conheceu-os muito?
Marquez
A mãe nunca a vi. Era uma senhora franceza, de alto merito. Foi em môça uma das amigas de minha mulher. O pae, Lazaro de Yuste, conheci-o ha trinta annos em Hispanha e em França. Era homem muito intelligente, bem parecido, felicissimo em negocios de minas, e não menos afortunado em negocios de amor. Era falado.
Electra
N’esse ponto não se parece com elle o filho, que é a austeridade em pessôa.
Marquez
De certo que sim. O seu futuro marido, minha querida Electra, é o modelo dos homens, e a honra de uma geração muito mais perfeita do que infelizmente foi a minha. Para que nada lhe falte, esse portentoso[200] magico até é rico... rico pelo que lhe deixou o pae e mais rico ainda pelo que herdou agora dos tios de França. Que mais quer? Peça por bôca, e verá como Deus lhe responde: «Menina, não tenho mais que lhe dar.»
Electra
(suspirando) Ai!... E agora, outra coisa... diga-me, meu querido Marquez: posso estar socegada?
Marquez
Inteiramente.
Electra
Escuso de ter medo das pessôas...—já lhe disseram—das pessôas que se julgam com sufficiente auctoridade...
Marquez
Essas pessôas poderão talvez incommodar-nos passageiramente, emquanto nós não resolvermos encurtar-lhes os vôos.
Electra
O snr. de Cuesta...
Marquez
Esse não é de cuidado. Ainda hoje lhe falei, e estou certo de que nos dará o seu mais convicto assentimento.
Electra
O snr. de Pantoja...
Marquez
Esse ha de resmungar um pouco mais, e pretenderá fazer-nos ouvir as trombetas biblicas para nos assustar; mas não lhe tenha medo.
Electra
Deveras?
Marquez
Não vale nada.
Electra
Não tenho de que me atterrar quando o encontre?
Marquez
Não mais que da importunidade de um mosquito.
Electra
Que allivio me dá! (Com enthusiasmo carinhoso) Deus lhe pague! Deus o bemdiga, snr. de Ronda!
Marquez
(muito affectuoso) Deus será comvosco.
OS MESMOS E URBANO, vindo de casa, de chapeu na cabeça
Urbano
Marquez, bons dias.
Marquez
Querido Urbano, posso falar comsigo?
Urbano
Não lhe faz differença depois da missa...? (A Electra) Então, rapariga, que vagares são esses? Está a tocar.
Electra
Só tenho que pôr o chapeu. Meio minuto, tio. (Entra correndo em casa)
MARQUEZ E URBANO
Marquez
Temos de pôr dia para o casamento, e de fazer escriptura de consentimento em regra.
Urbano
Será talvez melhor que você trate de tudo directamente com minha mulher.
Marquez
Mas, meu amigo, chegou o momento de fazer frente a certas ingerencias que annullam a sua auctoridade de chefe de familia.
Urbano
Meu caro de Ronda, peça-me você que altere, que transtorne todo o systema planetario, que tire os astros d’aqui assim e que os ponha para acolá; mas não peça coisa nenhuma que seja contraria ao parecer de minha mulher.
Marquez
Homem, isso tambem lá me parece submissão de mais!... Eu pela minha parte insisto em que devo tratar este negocio particularmente com você e não com Evarista.
Urbano
Vamos á missa e depois falaremos.
Marquez
Pois vamos lá, eu tambem vou.
OS MESMOS, ELECTRA, EVARISTA E PANTOJA
Electra
(de chapeu, luvas, livro de missa) Pronta.
Urbano
Vamos. O Marquez vae comnosco.
Evarista
(pelo fundo, á esquerda, seguida de Pantoja) Vão ligeiros.
Pantoja
Depressa, se querem chegar.
Evarista
O marquez volta?
Marquez
Infalibillissimamente, minha senhora.
Evarista
Até logo. (Saem Electra, o marquez e Urbano pelo fundo, á esquerda)
EVARISTA E PANTOJA, que com mostras de cansaço e desalento se atira para o banco da esquerda, primeiro plano.
Evarista
Entramos?
Pantoja
Perdão: deixe-me respirar por um momento. Na egreja abafava-se... com o calôr, com o apertão de gente...
Evarista
Vou-lhe mandar vir alguma coisa fresca... (chamando) Balbina!
Pantoja
Não, obrigado.
Evarista
Uma taça de tilia...
Pantoja
Tambem não. (Na occasião de Balbina sahir, a senhora dá-lhe a mantilha, que acaba de tirar, e o livro de missa)
Evarista
Não ha motivo, emquanto a mim, para nos affligirmos tanto...
Pantoja
Não é, como querem dizer, o meu orgulho; é n’um ponto mais delicado e mais profundo que eu me sinto ferido. Nega-se-me a consolação e a gloria de dirigir essa creatura e de a levar commigo pelo caminho do bem. E vejo com grande magoa que você, tão affecta aos meus principios,[207] e que eu considerava uma fiel amiga e uma fervorosa alliada, me abandona na hora critica.
Evarista
Perdoe-me, D. Salvador. Eu não o abandono. Estavamos inteiramente de accordo, com relação a Electra, em guardal-a por algum tempo—nunca se tratou de a encerrar para sempre—em S. José da Penitencia, attendendo á disciplina e purificação d’aquella casa... Mas surge agora repentinamente esta inesperada veneta de Maximo, e eu não posso, realmente, não posso de modo nenhum recusar o meu consentimento... É uma loucura? será... Mas de Maximo, como homem de honrado e correcto procedimento, que tem que dizer?
Pantoja
Nada. (corrigindo-se) Isto é: alguma coisa poderia talvez... Mas, por agora, o que unicamente digo é que Electra não está preparada para o casamento, não tem aptidão para eleger marido... Não reprovo em absoluto que se case, quando seja com um homem cujas ideias a não pervertam... Mas este ponto é para mais tarde... O essencial n’este momento é[208] que essa tenra creatura entre quanto antes no sagrado asylo, onde nos cumpre estudar, com o tacto mais subtil e mais carinhoso, a configuração do seu caracter, as suas predilecções, as suas tendencias, os seus affectos; e em vista do que observarmos, fundamentadamente e seguramente depois d’este prévio exame, resolveremos... (Altaneiro) Que ha que dizer a isto?—pergunto eu agora.
Evarista
(acobardada) O que digo é que para esse plano... na realidade perfeito... eu não posso, não ouso offerecer-lhe a minha cooperação.
Pantoja
(com arrogancia, passeando) De modo que, segundo os seus caridosos principios, se Electra se quer perder, que se perca!... que importa?... Se ella quer condemnar a sua alma, que a condemne!... Que temos nós com isso?
Evarista
(com maior timidez, suggestionada) Perder-se! condemnar-se! E está porventura na minha mão evital-o?
Pantoja
(com energia) Está.
Evarista
Oh! não... Não tenho a audacia de intervir... E com que direito?... Impossivel, Salvador, impossivel...
Pantoja
(affirmando mais a sua auctoridade) Saiba, minha amiga, que o acto de apartar Electra de um mundo nefasto, em que por todos os lados a rodeiam appetites e voracidades ferozes, não é um despotismo: é o amor na expressão mais alta e mais pura do carinho paternal. Ainda por acaso ignora, Evarista, que o fim supremo e unico da minha vida não é hoje outro senão o bem d’esta menina?
Evarista
(acobardando-se mais) Bem sei que é assim.
Pantoja
(com effusão) Eu amo Electra com um amor que as grosseiras palavras do homem não podem definir. Desde que os meus[210] olhos a viram, a voz do sangue me bradou do mais fundo do meu ser que essa creatura me pertence... Quero têl-a, e devo têl-a, santamente, debaixo do meu dominio paternal... Quero que ella me ame como os anjos amam... que seja a pura imagem da minha crença, o limpido espelho do meu eterno ideal... que se reconheça obrigada a padecer por aquelles que lhe deram a vida, e purificando-se pela mortificação, nos ajude a nós, que fômos maus, a alcançar o perdão de Deus... Não comprehende estas coisas, Evarista?
Evarista
(abatida) Comprehendo-as e profundamente admiro a elevação do seu entendimento.
Pantoja
Menos admiração e mais eficacia em meu auxilio é o que lhe peço.
Evarista
Não posso... (Senta-se chorosa e abatida)
Pantoja
É bem natural que Electra lhe não mereça o mesmo interesse que tão profundamente[211] me inspira a mim. (Empregando suavidades de persuasão) Convenho em que n’estes primeiros tempos lhe tenha de pesar algum tanto o seu brusco apartamento das alegrias mundanas, mas muito rapidamente se adaptará á dôce paz, á venturosa quietação do claustro... Eu a dotarei amplissimamente. Tudo quanto tenho será para ella, para o esplendor da sua santa casa... Será nomeada Superiora, e sob a minha auctoridade, e pelo meu conselho, governará a congregação... (Com profunda commoção) Que celestial ventura, meu Deus! Que felicidade para ella, e para mim! (Fica-se como em extase)
Evarista
Comprehendo que por não acceder ao que deseja de mim eu privo talvez uma creatura de chegar ao estado mais perfeito da condição humana... Conhece bem os meus sentimentos, Salvador... Sabe com quanto prazer eu trocaria sem vacillar toda a opulencia em que vivo pela gloria de dirigir obscuramente uma modesta casa religiosa do maior trabalho e da maior humildade! Sempre o admirei pela sua larga protecção a S. José da Penitencia, e subiu de ponto essa admiração quando[212] soube que redobrou o seu auxilio desde a occasião em que a minha pobre Eleuteria foi procurar n’esse instituto o esquecimento, a paz e o perdão dos seus erros de amor, como os de Magdalena. N’esse acto da vida do rico snr. de Pantoja se me revelou a espiritualidade mais pura a que se pode elevar um homem.
Pantoja
Sim: desde que a sua desventurada prima deu entrada n’aquelle sagrado asylo, a minha protecção não sómente se tornou mais positiva mas ainda mais espiritual. Nunca, nunca mais tornei a pôr os meus olhos em Eleuteria depois de convertida, porque de ninguem—nem de mim!—ella se tornou a deixar vêr desde que lhe cortaram os cabellos e lhe botaram o escapulario. Mas eu ia quotidianamente á egreja; e invisivel do côro, n’um recanto da nave, praticava em espirito com a penitente, considerando-a tão perfeitamente regenerada como eu proprio o estava. Morreu a infeliz aos quarenta e cinco annos da sua edade. Então obtive o consentimento de uma sepultura no interior do edificio. E desde esse dia não protegi mais a congregação, tornei-a inteiramente minha, porque[213] n’ella repousavam debaixo da pedra de uma campa os restos d’aquella que eu amei. Juntára-nos o peccado, reunia-nos o arrependimento, ella na paz da morte, eu na tempestuosa provação da vida...
Evarista
E ainda agora aquelle a que bem podemos chamar o senhor e o reformador do convento, todos os dias, sem excepção de um unico, visita aquella santa casa e se ajoelha no cemiterio humilde e docemente poetico, onde as monjas dormem o somno eterno.
Pantoja
(vivamente) Sabia isso?
Evarista
Sabia... E que no claustro, silencioso e florido, entre loendros e cyprestes...
Pantoja
É certo... quem lh’o disse?
Evarista
...vagueia, como um propicio phantasma da saudade, o sombrio fundador d’aquella casa, implorando de Deus o descanço d’ella e o seu.
Pantoja
Sim... Ali repousarão tambem os meus pobres ossos. (Com vehemencia) Quero, além d’isso, que assim como em espirito eu me não aparto por um só momento d’aquella casa, ahi passe tambem, pelo tempo que fôr preciso, o espirito de Electra... Não a violentarei á vida claustral; mas se, experimentando essa existencia, e apreciando o seu incomparavel sabor, ella deliberasse persistir na clausura, eu acreditaria então que Deus me destinara para a mais ineffavel graça. Ali as cinzas adoradas da peccadora redimida; ali, na candida alvura do seu habito de noviça, a minha filha; ali eu, pedindo a Deus para ellas a gloria eterna. E na morte, o escondido e imperturbado repouso na mesma terra amada,—todos os meus amores commigo e todos nós em Deus...
Evarista
(com viva commoção) Perfeita grandeza, por certo... Idealidade incomparavel.
Pantoja
Duvída ainda de que o meu pensamento seja o mais elevado? De que me não move nenhuma paixão ruim?
Evarista
Como quer que duvíde?
Pantoja
Pois se com effeito lhe parece bello o meu plano, porque me não ajuda a realisal-o?
Evarista
Porque me não considero com poderes para isso.
Pantoja
Nem assegurando-lhe eu que a reclusão de Electra terá um caracter provisorio?
Evarista
Nem assim. Não, D. Salvador, não conte commigo... (luctando com a sua consciencia) Reconheço toda a elevação, toda a formosura das suas ideias... D’ellas sinto um ecco suave e acariciador na minha propria alma. Mas—que quer, meu bom amigo—vivo no mundo em que Deus me collocou: tenho tambem para com este mundo deveres sagrados. Dêvo-me, com aquelles que me rodeiam, á vida social; e na vida da sociedade e da familia o seu projecto é... como lh’o direi, sem o magoar?... é uma anomalia angelica.
Pantoja
(dissimulando o seu enfado) Bem. Paciencia... (Passeia caviloso e sombrio)
Evarista
(depois de uma pausa) Em que pensa? Desiste?
Pantoja
(com naturalidade e firmeza) Não, minha senhora.
Evarista
Qual então o seu projecto?
Pantoja
Não sei... Ha de acudir-me uma ideia... Pensarei... (Resolvendo-se) Minha cara amiga, quer fazer-me o favor de escrever uma carta á superiora da Penitencia?
Evarista
Dizendo-lhe...?
Pantoja
Que venha aqui immediatamente, com duas irmãs, n’uma carruagem.
Evarista
Porque lhe não escreve directamente?
Pantoja
Porque tenho de acudir a outras coisas.
Evarista
Quer já?
Pantoja
O mais breve possivel...
Evarista
Bem. (Dirige-se para casa)
Pantoja
Peço-lhe que mande a carta sem perda de tempo.
Evarista
(olhando do alto da escada para o jardim) Creio que elles ahi vem.
Pantoja
Depressa a carta, minha cara amiga.
Evarista
Vae já... Deus nos inspire a todos. (Entra em casa)
Pantoja
Lá vou ter. (Áparte) Que me não vejam! (Esconde-se atraz do macisso da direita junto da escada)
PANTOJA, occulto; ELECTRA, URBANO, MARQUEZ, que voltam da missa—PATROS, que desce de casa.
Electra
(adeantando-se encontra-se com Patros junto da escada) Veio?
Patros
Não, senhorita. (Ouve-se o canto afastado dos meninos que brincam no jardim)
Electra
Morro de impaciencia. (Tira o chapeu e as luvas, que entrega a Patros com o livro de missa) Vou brincar com os pequenos emquanto espero... Não... Vou apanhar flôres. (Colhe algumas no macisso da esquerda)
Urbano
(a Patros) A senhora?
Patros
Em casa.
Marquez
Vamos ter com ella.
Urbano
Vamos a isso. (Entram em casa. Patros segue-os)
Electra
(admirando as flôres que acaba de cortar) Que lindos, que graciosos rainunculos! (Pantoja apparece e Electra assusta-se ao vêl-o) Ai!
ELECTRA E PANTOJA
Pantoja
Assim te assusto, minha filha?
Electra
É verdade... Não posso evital-o... Que quer? Bem sei que não devia, e que não tenho de que ter medo... Perdôe-me por quem é, D. Salvador... Vou jogar ao côrro com os pequenos...
Pantoja
Um momento. Vaes aos meninos para que elles te dêem da sua alegria?
Electra
Não, hoje não; vou repartir com elles da que trasborda da minha alma. (Afasta-se o canto de roda dos meninos)
Pantoja
Já sei a causa d’essa grande alegria, já a sei...
Electra
Uma vez que sabe, não tenho então que lhe contar. Até logo snr. de Pantoja.
Pantoja
Ingrata! Concede-me um instante...
Electra
Um instantinho só?
Pantoja
Unicamente.
Electra
Bom. (Senta-se no banco de pedra. Colloca a um lado as flôres e vae escolhendo aquellas com que se touca, mettendo-as no cabello)
Pantoja
Não sei porque tens reservas commigo sabendo quanto me interesso pela tua felicidade e pela tua vida...
Electra
(sem olhar para elle, attenta ás flôres) Pois, se o interessa a minha felicidade, alegre-se commigo: sou a creatura feliz.
Pantoja
Feliz hoje. E amanhã?
Electra
Amanhã mais feliz do que hoje... E sempre mais, sempre o mesmo!
Pantoja
A alegria verdadeira e constante, o goso perenne e indestructivel só existem no amor eterno, superior ás inquietações e ás miserias humanas.
Electra
(adornado o cabello, põe flôres no seio e no cinto) Toca-me outra vez no antigo registro de que tenho de ser anjo... Sou uma pobre pessoasinha summamente terrestre, D. Salvador.[223] Deus fez-me para mulher, e botou-me a este mundo. Já vê que, se estou aqui, é porque elle não precisava de mim para o ceu n’esta occasião.
Pantoja
Ha tambem anjos na terra, minha filha. Anjos são todos aquelles que no meio das desordens da materia sabem viver a pura vida do espirito.
Electra
(mostrando o collo e o busto ornados de florinhas. Ouve-se mais perto o coro dos meninos) Que tal? não lhe pareço um anjo?
Pantoja
Pareces, e quero que o sejas.
Electra
Assim me adorno para divertir os meninos. Se visse a graça que elles me acham! (Com uma triste ideia subita) Sabe com que eu me estou parecendo agora? Com um menino morto. Assim se enfeitam os meninos quando os levam a enterrar.
Pantoja
Para symbolisar a ideal belleza do ceu para onde elles vão.
Electra
(arrancando as flôres) Não, isso não, não quero parecer menina morta. Dá-me a ideia de que vem o snr. de Pantoja para me levar á sepultura!
Pantoja
Oh! eu não te quero enterrada. Quereria rodear-te de luz. (Vae esmorecendo e cessa de todo o côro dos meninos)
Electra
Tambem se põem luzes aos meninos mortos.
Pantoja
Não quero a tua morte, quero a tua vida; não a vida inquieta e vulgar, mas dôce, livre, elevada, amorosa, com um eterno e puro amor divino.
Electra
(Confusa) E porque é que me deseja tudo isso?
Pantoja
Porque te quero muito, com um amor mais excelso que todos os amores humanos. Melhor comprehenderás a grandeza d’este affecto, dizendo-te que para evitar-te a mais leve dôr eu tomaria para mim os mais espantosos tormentos que se possam imaginar.
Electra
(estonteada, sem entender bem) É o cumulo da abnegação uma coisa d’essas.
Pantoja
Considera agora quanto soffrerei por não poder evitar um desgostosinho, um dissabor, que te vou dar.
Electra
A mim?
Pantoja
A ti mesma.
Electra
Um desgosto?
Pantoja
Desgosto que mais me afflige por ter de ser eu que t’o cause.
Electra
(rebelando-se, levanta-se) Desgostos! Não os quero. Não os acceito. Guarde-os. Que ninguem hoje me traga senão alegrias!
Pantoja
(condoído) Bem quizera dar-t’as, mas não posso.
Electra
Que terror que tenho! (Com subita ideia que a tranquillisa) Ah! já sei... Pobre D. Salvador!... É que me quer dizer mal de Maximo... Alguma coisa que lhe parece mal, mas que a mim me parece bem... Escusa de se cançar porque nem me convence nem o acredito. (Precipitando-se na emissão das palavras sem dar tempo a que Pantoja fale) Maximo é o maior e o melhor homem do mundo, é o primeiro, e todo aquelle que me disser uma palavra contraria a esta verdade, mente, e detesto-o pela mentira, e detesto-o...
Pantoja
Por Deus, minha filha! Não te arrebates assim... Ouve. Eu não digo mal de ninguem, nem dos que me odeiam. Maximo é bom, é trabalhador, é intelligentissimo... Que mais queres?
Electra
(satisfeita) Assim, continue assim... Vae dizendo muito bem.
Pantoja
Digo mais ainda: que podes amal-o, que deves amal-o...
Electra
(com alegria) Ah!
Pantoja
Amal-o entranhadamente... (Pausa) A culpa não é d’elle, não é...
Electra
(assustada outra vez) Querem vêr que ainda acaba por lhe attribuir maldades?
Pantoja
A elle não.
Electra
Então a quem? (Recordando-se) Ah! adivinho: o snr. de Pantoja e o pae de Maximo foram implacaveis inimigos. Tambem me disseram já que esse senhor de Yuste, honradissimo nos seus negocios,[228] foi, talvez, um pouco demais galanteador e mundanario... Mas que me importa isso?
Pantoja
Pobre innocente! não sabes o que dizes.
Electra
Digo que esse excellente homem...
Pantoja
Lazaro Yuste, sim... Ao nomeal-o tenho de associar a sua triste memoria á de uma pessoa que já não vive... muito querida de ti...
Electra
(comprehendendo e não querendo comprehender) De mim!
Pantoja
Que morreu, e a quem tu muito queres. (Pausa. Olham um para o outro)
Electra
(com terror e em voz apenas perceptivel) Minha mãe! (Pantoja faz um signal affirmativo) Minha mãe! (Attonita, desejando e temendo uma explicação)
Pantoja
Chegaram os dias de perdão. Perdoemos.
Electra
(indignada) Minha mãe, a minha pobre mãe! Não falam d’ella senão para a deshonrar, para a denegrir... E ultrajam-a aquelles mesmos que a envilleceram! Pudesse eu tel-os a todos na mão para os desfazer, para os destruir, para não deixar d’elles nem uma migalha assim!
Pantoja
Terias que principiar por Lazaro Yuste.
Electra
O pae de Maximo!
Pantoja
O primeiro depravador da desgraçada Eleuteria.
Electra
Quem é que o diz?
Pantoja
Quem o sabe.
Electra
E... (Fixam-se nos olhos. Electra não se atreve a expôr a sua ideia)
Pantoja
Triste de mim!... Não deveria falar-te d’isto. Dera para o esconder todos os dias que me restam de vida. Comprehenderás que não podia ser... O meu amor por ti ordena-me que fale.
Electra
(angustiada) Meu Deus! e ter eu de ouvil-o!
Pantoja
Disse eu que foi Lazaro Yuste...
Electra
(tapando os ouvidos) Não quero, não quero ouvir.
Pantoja
Tinha então tua mãe a edade que tens agora: desoito annos...
Electra
Não acredito, não acredito...
Pantoja
Era uma jovem senhora encantadora, quasi uma creança, que supportou com a mais corajosa dignidade o horror d’aquella vergonha...
Electra
(rebelando-se com energia) Cale-se! Cale-se!
Pantoja
A vergonha do nascimento de Maximo.
Electra
(apavorada, com o rosto demudado, recua cravando os olhos em Pantoja) Ah!
Pantoja
Procurando com discrição attenuar a affronta da sua victima, Lazaro occultou o menino e levou-o misteriosamente comsigo para França.
Electra
A mãe de Maximo foi uma senhora franceza: Josephina Perret.
Pantoja
Mãe adoptiva.
Electra
(tapando os olhos com ambas as mãos) Divino Jesus! É o ceu que desaba...
Pantoja
(condoído) Filha da minha alma, volve para Deus os teus olhos.
Electra
(demudada) É um sonho... Tudo o que estou vendo é illusão, é mentira. (Olhando espantadamente para uma parte e para outra) Mentira estas arvores, esta casa, este ceu... Mentira tu! tu! tu, que não existes, monstro d’um pesadelo horrivel!... (Com os punhos na cabeça) Acorda, desgraçada, acorda!
Pantoja
(tentando socegal-a) Electra, querida Electra! Pobre innocente!
Electra
(com um grito d’alma) Mãe, minha mãe!... A verdade, dize-me a verdade... (Fóra de si percorre a scena) Onde estás, mãe?... Quero a morte ou a verdade... Minha mãe! minha mãe!... (Sae pelo fundo, perdendo-se na longinqua espessura das arvores. Ouve-se proximo o canto dos meninos jogando ao côrro)
PANTOJA, URBANO, MARQUEZ, vindos de casa, á pressa. Depois d’elles BALBINA E PATROS
Urbano
Que é?
Marquez
Ouvimos gritar Electra.
Balbina
Foi a correr pelo jardim.
Patros
Por aqui. (As duas creadas assustadas correm e internam-se no jardim)
Marquez
(olhando por entre as arvores) Lá vae correndo... Continúa a gritar... Pobre Electra! (Adeanta-se para o jardim)
Urbano
Que foi isto?
Pantoja
Eu lh’o direi... Um momento... Providenciemos antes de mais nada...
Urbano
O quê?
Pantoja
(procurando coordenar as suas ideias) Deixe-me pensar... Trazel-a para casa já... Ir buscal-a... Vá!
Urbano
(olhando para o jardim) Lá está já o meu sobrinho...
Pantoja
(contrariado) Em que má hora!
Urbano
Correm para elle os meninos... Parece que o informam... Electra foge-lhe... Não o quer vêr... Mette-se na gruta... O Marquez intervem... Pobre Maximo!
Pantoja
Vá! vá ter com elles!... Não deixe que Maximo intervenha...
Urbano
Que balburdia! (Interna-se no jardim)
Pantoja
Se eu podesse... (hesitante em ir e não ir)
Balbina
(voltando pressurosa do jardim) Pobre menina! Chama aos gritos pela sua mãe... Sentou-se agarrada aos meninos á porta da gruta, e ninguem a tira d’ali...
Pantoja
E Maximo?
Balbina
Muito inquieto, sem saber o que ha de fazer, como todos nós... Vou chamar a senhora...
Pantoja
Não, não vá. Já chegaram a senhora superiora e as irmãs de S. José?
Balbina
Já, sim senhor, chegaram agora.
Pantoja
Não diga nada á senhora. Vá para casa e espere por mim.
Balbina
Sim, senhor. (Sobe para casa)
Pantoja
(indeciso e como assustado) Não sei que faça... Pela primeira vez na minha vida hesito... Irei?... Esperarei aqui? (resolvendo-se) Vou. (A poucos passos encontra-se com Maximo, agitado e colerico, que vem do jardim e o detem)
PANTOJA E MAXIMO
Maximo
(ardentemente em toda a scena) Alto!... Diz-me o marquez de Ronda que d’aqui, depois de uma demorada conversação comsigo, sahiu Electra no delirio em que está.
Pantoja
(perturbado) Aqui... de certo... falamos... A senhorita Electra...
Maximo
Foi mordida pelo monstro.
Pantoja
Talvez... mas o monstro não sou eu. É um mais terrivel, que se alimenta de factos e que se chama a Historia. (Querendo ir-se) Adeus.
Maximo
(agarrando-o fortemente por um braço) Espere. Primeiro vae repetir aqui, já, immediatamente, o que foi que disse a Electra esse seu monstro da Historia...
Pantoja
(sem saber que dizer) Eu... convém assentar préviamente que...
Maximo
Nada de preambulos... Quero aqui a verdade, concreta, exacta, precisa... Electra foi offendida de um modo tão profundo que lhe alterou a razão... Com que palavras, com que suggestões? Preciso de sabel-o prontamente. Trata-se da mulher que é tudo para mim no mundo.
Pantoja
Para mim é mais: é o ceu e a terra.
Maximo
Quero saber, n’este mesmo instante, que horrivel maquinação foi esta, urdida por si, contra essa menina, contra mim, contra nós ambos eternamente unidos pela effusão das nossas almas. Com que baba se envenenou aquella a quem eu posso e devo chamar desde já a minha legitima mulher? Que responde?
Pantoja
Nada.
Maximo
(acommette-o explodindo em colera) Pois por esse infame silencio, mascara impudente e abjecta de um egoismo tão grande que não cabe no mundo; por essa virtude não sei se falsa, se verdadeira, que da sombra desfere o raio que nos aniquilla; (agarra-o pela garganta e derriba-o no banco) por essa doçura que envenena, por essa suavidade que estrangula, Deus te confunda, homem grande ou miseravel reptil, aguia, serpente, ou o que sejas!
Pantoja
(recobrando alento) Que brutalidade! que infamia! que demencia!
Maximo
Bem sei. Estou doido... (Recompondo-se) E quem é que dispõe assim do poder diabolico de desvirtuar o meu caracter, arrastando-me a esta colera insensata, fazendo-me o estupido aggressor de um ente debil e mesquinho, incapaz de responder á força com a força?
Pantoja
(tomando aprumo) Com a força te respondo. (Voltando á sua condição normal, exprimindo-se com serenidade sentenciosa) Tu és a força do musculo, eu a força da alma. (Maximo olha para elle, attonito e confuso) Posso mais do que tu, infinitamente mais. Duvídas?
Maximo
De que póde mais?
Pantoja
A ira suffoca-te, e cega-te o orgulho. Eu, injuriado e escarnecido, recobro a serenidade. Tu não. Tu tremes. Tu, que te julgas a força, tu, Maximo, tremes!
Maximo
É a ira. Não a provoque.
Pantoja
Nem a provoco nem a temo. (Cada vez mais senhor de si) Tu maltratas-me. Eu perdôo-te.
Maximo
Que me perdôa a mim! (iracundo) Mas é para o homicidio que assim me empurra!
Pantoja
(com serena e fria gravidade, sem jactancia) Enfurece-te, grita, bate-me... Aqui me tens inabalavel e indifferente... Não ha força humana que me dobre nem poder nenhum da terra que me afaste do meu caminho. Injuria-me, fere-me, mata-me: não me defendo. O martyrio não me repugna. Póde a violencia destruir o meu pobre corpo, que nada vale. Mas o que está aqui (na sua mente) é indestructivel. Na minha vontade só um poder impera: o de Deus. E se a minha vontade se extinguir na morte, a ideia que sustento lhe sobreviverá, triumphante e eterna.
Maximo
Não póde ter ideias grandes quem não tem grandeza, nem piedade, nem ternura, nem compaixão.
Pantoja
O meu fim é mais alto que todos os raciocinios. Para elle me dirijo por qualquer caminho que se me depare.
Maximo
(aterrado) Por qualquer caminho!? Para ir para Deus não ha senão um: o da Bondade Humana. (Com exaltação) Deus do ceu! tu não pódes permittir que ao teu reino se chegue por lobregas e tortuosas alfurjas, nem que á tua gloria se suba calcando os corações que te amam... Não; Deus não permitte isso. Vêr tal absurdo seria vêr toda a Natureza em ruina, toda a maquina do Universo destruida e aniquillada.
Pantoja
Estás offendendo Deus com as tuas palavras blasphemas.
Maximo
Mais o offendes tu com os teus actos sacrilegos.
Pantoja
Basta. Não disputo comtigo. Não tenho mais que dizer-te.
Maximo
Não tem mais? Se ainda me não disse nada! (Segura-o vigorosamente por um braço) Vamos d’aqui ter com Electra, e, na presença d’ella, ou esclarece as minhas dúvidas e me tira da anciedade horrivel em que estou, ou ahi morre, e morro eu, e morreremos todos trez. Assim lh’o juro pela memoria de minha mãe.
Pantoja
(depois de o encarar fixamente) Vamos. (Ao darem os primeiros passos sae Evarista de casa)
OS MESMOS, EVARISTA E PATROS. Atraz d’Evarista a superiora e as duas irmãs de S. José
Evarista
Que succedeu, Maximo?... Que colera é essa?
Maximo
É este homem que me enlouquece... Venha, tia, venha tambem comnosco... (Vendo a superiora e as irmãs, amedrontado) Que mulheres são aquellas? Que querem essas senhoras? (Chega Patros do jardim, correndo)
Patros
(pesarosa, choramigando) Minha senhora, a senhorita enlouqueceu... Corre, foge, desapparece, chamando em gritos por sua mãe... Não quer que a consolem... não ouve, não vê ninguem, não conhece ninguem!
Evarista
(caminhando para o jardim) Filha da minh’alma!
Maximo
(olhando para o jardim) Ahi vem. (Larga Pantoja e dirige-se a ella)
Patros
O senhor e o snr. Marquez conseguiram convencel-a e trazem-a para casa... (Apparece Electra conduzida pelo marquez e por Urbano. Junto d’elles, Maximo. Ao vêr os que estão em scena Electra oppõe alguma resistencia. Suave e carinhosamente a obrigam a approximar-se. Traz o cabello e o seio adornado de flôrzinhas)
ELECTRA, MAXIMO, EVARISTA, PANTOJA, URBANO, MARQUEZ E PATROS (Conservam-se na scena a superiora e as irmãs)
Evarista
Deliras, minha pobre filha!
Maximo
Ouve, minh’alma, vem, escuta. O meu carinho será a tua razão.
Electra
(afasta-se de Maximo com um movimento de pudor. O seu delirio é sereno, sem gritos, sem risadas. Manifesta-o com uma accentuação de dôr resignada e melancolica) Não te approximes. Não te pertenço. Já não sou tua.
Maximo
Porque me foges? para onde vaes sem mim?
Pantoja
(que passou para a direita, junto de Evarista) Para a eterna verdade, para a inalteravel paz.
Electra
Vou por minha mãe. Sabem onde está minha mãe?... Vi-a no côrro dos meninos... Foi depois até a mimosa que está á entrada da gruta... E eu a seguil-a sem a alcançar... Olhava para mim e fugia... (Ouve-se ao longe o canto dos meninos)
Marquez
Aqui está Maximo... Olhe... É o seu noivo.
Maximo
(vivamente) Serei o teu marido... Ninguem se oppõe, e não ha força nenhuma que o empeça, Electra, minha vida.
Electra
(impondo silencio) Quem fala aqui de noivos e noivas? Quebradas as festas do noivado: não ha bôda... Que tristeza a da minha alma!... Só ha padres com tochas a rezar por defuntos... Que grande é o mundo, e que só que está! que vazio!... Acima da terra, pelo ceu, passam nuvens negras, que são illusões, as illusões que foram minhas e não são de ninguem agora... as illusões sem dôno!... Que solidão!... Tudo escurece, tudo chora...[246] Vae acabar o mundo... vae acabar. (Com arrebatamento de medo) Quero fugir, quero-me esconder. Não quero padres, não quero tochas, não quero officios... Quero ir para a minha mãe... Onde m’a enterraram?... Levem-me á pedra da sua campa, e ali juntas, nós ambas, minha mãe e eu, lhe direi as penas da minha alma, e ella me dirá verdades... verdades!
Pantoja
(áparte, a Evarista) É a occasião. Aproveitemol-a.
Evarista
Vem, minha filha, nós te levaremos á quietação e á paz.
Maximo
Não: o descanso e a razão estão aqui. Electra é minha... (Evarista procura leval-a) Exijo-a.
Electra
Adeus, Maximo... Já te não pertenço: pertenço á minha dôr... A minha mãe chama-me para o seu lado... (Extactica, anciosa, prestando uma attenção intensissima) Ouço-lhe a voz...
Maximo
A voz!
Electra
Silencio, que me chama! (delirando de alegria) que está chamando por mim!
Evarista
Torna a ti, meu amor!
Electra
Não ouviram? Não ouvem?... Lá vou, mamãsinha, lá vou! (Corre para o alto da escada) Vamo-nos! (A Maximo, que quer seguil-a) Eu só... É por mim só que chama. Tu não... Para estar sósinha commigo... Não ouves a voz d’ella dizendo: Eleectra! Eleeeectra!... Vou vêl-a, vou falar-lhe... (Vae entrando na casa com Evarista e Pantoja)
Maximo
Que iniquidade e que horror! Para m’a roubarem, enlouqueceram-na. (Quer desprender-se dos braços de Urbano e do marquez)
Marquez
(contendo-o) Não enlouqueças tambem tu.
Urbano
Socega!
Marquez
Descansa, que eu te asseguro que a recobraremos!
Maximo
Amarrem-me! Levem-me manietado para a solidão, para a sciencia, para a verdade. Este mundo incerto, mentiroso e iniquo, não é para mim!
FIM DO QUARTO ACTO
Sala do locutorio em S. José da Penitencia. Portas lateraes.
Ao fundo uma grande janela d’onde se vê o claustro.
EVARISTA E SOROR DOROTHÊA
Evarista
(entrando com a freira) D. Salvador...?
Dorothêa
Chegou ha um momento: está no escritorio com a superiora e com a madre escrivã.
Evarista
Então Urbano lá irá ter com elle... Emquanto esperamos, dê-me noticias de Electra... Foi muito feliz a escolha que fizeram de si, irmã Dorothêa—tão sympathica[250] e tão dôce—para a acompanhar, para viver com ella, para ser a sua amiga e a sua confidente...
Dorothêa
Electra não me quer mal, e é talvez certo que por essa razão algum tanto contribuirei para a socegar.
Evarista
(aponta para a cabeça) E como está ella de...?
Dorothêa
Bem. Recuperou inteiramente a razão, e não tem nenhum vestigio de delirio, a não ser ainda aquella ideia fixa de querer vêr a mãe, de lhe falar, de ter d’ella a solução das suas dúvidas. Todo o tempo que tem livre das obrigações religiosas, e todo o que póde alcançar, o passa no pateo do nosso cemiterio, e na horta contigua; e tanto ahi como no dormitorio, sempre a mesma preoccupação a absorve.
Evarista
E lembra-se de Maximo? fala d’elle?
Dorothêa
Fala: mas nas suas meditações e nas suas rezas a ideia que mais acaricia é de poder amal-o como um irmão, e, pelo que ainda hoje me disse, espera conseguil-o.
Evarista
Mas é uma ideia apenas! É preciso que a essa ideia se associe o coração... E bem poderia ser que assim succedesse se a desgraça de antes d’hontem não viesse alterar o seguimento dos factos...
Dorothêa
Uma desgraça!...
Evarista
Morreu o nosso velho amigo D. Leonardo Cuesta...
Dorothêa
Não sabia...
Evarista
Que immensa tristeza para todos nós! Ha dias que se sentia mal, e presagiava o seu fim. Sahiu na segunda feira muito cêdo, e na rua perdeu os sentidos. Levaram-o para casa, e ás tres horas da tarde estava morto.
Dorothêa
Pobre senhor!
Evarista
No testamento nomeia Electra herdeira de metade da sua grande fortuna...
Dorothêa
Ah!
Evarista
Mas coma expressa condição de que ella abandone a vida religiosa. Sabe se D. Salvador já terá conhecimento d’isto?
Dorothêa
Supponho que sim, porque elle tem conhecimento de tudo, e adivinha o que não conhece.
Evarista
E é verdade!
Dorothêa
(vendo chegar Urbano) O snr. D. Urbano.
AS MESMAS E URBANO
Evarista
Falaste-lhe?
Urbano
Sim. Deixei-o a trabalhar no escritorio, com um tino, com uma fixidez d’attenção, que me assombram. Que homem!
Evarista
Já teve noticia das ultimas disposições do pobre Cuesta?
Urbano
Já.
Evarista
Está contrariado?
Urbano
Se está não o mostra. Bem sabes que nem nos casos mais difficeis elle deixa transparecer as suas commoções...
Evarista
(interrompendo-o com enthusiasmo) É um espirito d’aguia, que paira acima de todas as tempestades da terra.
Urbano
Interrogando-o a respeito das esperanças que tinha de conservar Electra no convento, respondeu-me singelamente com uma serenidade pasmosa: «Confio em Deus».
Evarista
Que grandeza d’alma! E sabe que Maximo e o Marquez são os testamenteiros?
Urbano
Sabe mais. Recebeu ao meio dia uma carta d’elles annunciando-lhe que virão esta tarde, acompanhados d’um tabellião, inquirir a menina, para que declare se acceita ou se renuncia a herança.
Evarista
E á vista d’essa communicação...?
Urbano
Nada: imperturbavel, como sempre, repetindo a sua conhecida formula, que o pinta n’um traço: «Confio em Deus».
OS MESMOS, MAXIMO E O MARQUEZ (pela esquerda)
Marquez
Esperaremos aqui.
Maximo
(vendo Evarista) Adeus, tia. (Sauda-a com affecto)
Evarista
(respondendo ao cumprimento do marquez) Então, Marquez... Ha finalmente esperanças de ganhar a batalha?
Marquez
Não sei... Luctamos com féra de muito ardil.
Evarista
E a ti, Maximo, que te parece?...
Maximo
Que estamos em frente d’um terrivel mestre consummado no embuste. Mas eu confio em Deus.
Evarista
Tambem tu...?
Maximo
Naturalmente: em Deus confia todo aquelle que crê na verdade. Combatemos pela verdade. Como poderiamos suppôr que Deus nos abandone? Não poderia ser, querida tia.
Urbano
Não viste Electra quando atravessaste os claustros?
Maximo
Não vi.
Dorothêa
(approximando-se da janela) Vae passar agora. Vem do cemiterio.
Maximo
(correndo para a janela com Urbano) Que triste! e que bella! A brancura do habito dá-lhe o aspecto aereo de uma apparição. (chamando-a) Electra!
Urbano
Cala-te.
Maximo
Não posso. (Volta a olhar) É então certo que vive... É ella que vae ali na sua realidade primorosa, ou é uma imagem mystica que se despegou d’um retabulo d’altar para andar pela terra?... Lá volta para traz... levanta os olhos para o ceu... Se a visse diluir-se no ar, dissipando-se como uma sombra, não me admiraria... Põe os olhos no chão... Pára... Em que estará pensando? (Continua a contemplar Electra)
Marquez
(que ficou no proscenio com Evarista) ...Sim, minha senhora: falso, falsissimo!
Evarista
Olhe o que affirma, marquez...
Marquez
Affirmo que ou o veneravel D. Salvador se equivoca, ou que disse, sabendo-o, o contrario da verdade, movido de razões e fins, que não penetram as nossas limitadas intelligencias.
Evarista
É impossivel, marquez... Faltar á verdade um homem tão justo, de tão pura consciencia, de ideias tão altas!
Marquez
E quem nos diz, minha cara amiga, que nos arcanos d’essas consciencias exaltadas não ha uma lei moral, cujas subtilezas estão longe do nosso mesquinho alcance? Ha absurdos na vida do espirito como os ha na natureza, onde vemos inumeros phenomenos cujas causas não são as que se figuram.
Evarista
Não: não posso crer! Ha talvez casos em que a mentira aplana o caminho do bem. Mas não estamos n’um caso d’esses... Eu por mim, não acredito.
Marquez
Para que possa formar o seu juizo, ouça o que lhe vou dizer. A marqueza, Virginia, assegura-me que de Josephina Perret—sem que n’isto possa haver mistificação nem equivoco—nasceu este homem que ahi está... E Evarista, amiga[259] intima de Josephina Perret, prova e demonstra esse facto da maneira mais simples, mais clara e mais positiva. Além d’isso, eu mesmo pude comprovar que Lazaro Yuste viveu longe de Madrid desde 1863 até 1866.
Evarista
Com tudo isso, marquez, não posso convencer-me de que...
Marquez
(vendo entrar Pantoja pela direita) Ahi vem elle.
Maximo
(descendo ao proscenio) Chega o abutre.
Dorothêa
Se me dão licença retiro-me. (Sae pela esquerda. Pantoja permanece um instante junto da porta)
EVARISTA, MAXIMO, URBANO, MARQUEZ E PANTOJA
Pantoja
(adeantando-se vagarosamente) Meus senhores, desculpem-me tel-os feito esperar.
Maximo
Prevenido do objecto da nossa visita, creio que será inutil expol-o...
Marquez
(benignamente) Não o repetiremos para não mortificar o snr. de Pantoja, que deve a estas horas considerar perdida a sua inutil campanha.
Pantoja
(sereno, sem jactancia) Eu não perco nunca.
Maximo
Será adeantar muito.
Pantoja
E asseguro que Electra, tendo aprendido já a desprezar os bens da terra, não acceitará o legado.
Evarista
Já vês que este homem não se rende.
Pantoja
Não me rendo... nunca, nunca.
Maximo
Estou vendo. (Sem poder dominar-se) É então preciso matal-o?
Pantoja
Venha a morte.
Marquez
Não chegaremos a tanto.
Pantoja
Cheguem onde queiram. Hão de encontrar-me sempre impassivel e estavel, no meu posto.
Marquez
Confiamos na lei.
Pantoja
Eu em Deus. E digo aos representantes da lei que Electra, adaptando-se facilmente a esta vida de pureza, libando já as doçuras ineffaveis da oração e da paz em Deus, não abandonará esta santa casa.
Maximo
(impaciente) Podemos falar-lhe?
Pantoja
N’este momento, precisamente, não.
Maximo
(querendo protestar) Oh!
Pantoja
Socegue.
Maximo
Não posso.
Evarista
É a hora do côro. Quer D. Salvador dizer, por certo, que depois da hora...
Pantoja
Está claro que sim. E para que se convençam de que nada temo, podem trazer[263] além do tabellião, o snr. delegado do governo. Mandarei abrir a portaria... Permittirei que falem emquanto queiram com Electra. E se depois d’isso ella quizer sahir, que sáia...
Marquez
Cumprirá o que diz?
Pantoja
Como não? se é em Deus unicamente que confio.
Marquez
Voltaremos logo. (Toma o braço de Maximo)
Pantoja
E nós para a egreja. (Saem Urbano, Evarista e Pantoja)
MARQUEZ E MAXIMO, que percorre a scena muito agitado, impaciente, receioso
Marquez
Que diz a isto, Maximo?
Maximo
Que este homem, de tão superior talento para fascinar os debeis e para zombar dos fortes, nos enlouquecerá a todos. Eu não sou para isto. Em luctas de tal ordem, vontade contra vontade, sinto-me arrastado á violencia.
Marquez
E que faz tenção de fazer?
Maximo
Leval-a embora. A bem ou a mal. Por vontade ou á força. Se não tiver bastante poder para isto, adquiril-o, compral-o; trazer amigos, cumplices, um esquadrão, um exercito... (Com crescente fervor) Renascem em mim os rancores dos antigos bandos, com toda a ferocidade romantica do feudalismo.
Marquez
Assim pensa, e assim o diz, um homem de sciencia!
Maximo
Os extremos tocam-se. (Exaltando-se mais) Para esse homem, para esse monstro não ha argumentos, não ha raciocinios... É preciso matal-o.
Marquez
Nem tanto, nem tanto, meu querido! Imitemol-o, sejamos como elle astutos, insidiosos, perseverantes.
Maximo
(com brio e eloquencia) Não: sejamos como eu... sinceros, claros, valorosos. Marchemos de cabeça alta e de cara descoberta para o inimigo. Destruamol-o, ou deixemo-nos destruir por elle... Mas d’uma vez, de uma só investida, de um só golpe... Ou elle ou nós.
Marquez
Não, Maximo. Temos de ir com tento. Temos de respeitar a ordem social em que vivemos.
Maximo
A ordem social em que vivemos envolve-nos em uma rede de mentiras e de argucias, e n’essa rede morreremos estrangulados, sem defeza alguma... presos de garganta, e de pés e mãos, nas malhas de milhares e milhares de leis capciosas, de vontades fraudulentas, aleivosas, subornadas, corrompidas.
Marquez
Socega. Preparemo-nos para o que esta tarde nos espera. Temos de prever os obstaculos para pensar com tempo no modo de os vencer... Que succederá quando dissermos a Electra que a mãe do seu noivo é com effeito e fóra de toda a dúvida Josephina Perret e não Eleuteria Dias?
Maximo
Que ha de succeder? Que não o acreditará, porque na sua mente se petrificou o erro e será já tarde para o desarraigar. Pois não se sabe o que pode a suggestão contínua? O que póde o insinuante e invasivo ambiente de uma casa como esta sobre as ideias dos que a habitam?
Marquez
Empregaremos meios efficases.
Maximo
(com violencia) Quaes? Deitar fogo ao convento, deitar fogo a Madrid...
Marquez
Não divagues. Se Electra não quizer sahir, leval-a-hemos á força.
Maximo
(muito vivamente até o fim) Ou uma força triumphante, ou uma desesperação de vencido... morrer eu, morrer ella, morrermos todos.
Marquez
Morrer não. Vivamos todos, e preparemo-nos para a peor solução. Tenho uma chave para entrar no claustro pela Rua Nova, e a irmã Dorothêa pertence-me... Caluda!
Maximo
Violencia!
Marquez
Subtilesa e astucia!
Maximo
Adeante, de pronto, e pelo caminho direito!
Marquez
Não, homem, de vagar, com geito, e pelo atalho enesgado! (Tomando-lhe o braço) E vamo-nos d’aqui, que estamos a tornar-nos suspeitos... (Levando-o)
Maximo
Sim, vamo-nos.
Marquez
Confia em mim.
Maximo
Confio em Deus.
Claustro de S. José da Penitencia. Á direita uma asa da egreja, com frestões envidraçados, pelos quaes transluz a claridade interior. Á esquerda grande portada por onde se passa a outro claustro, que se suppõe communicar com a rua. Ao fundo, entre a egreja e as construcções da esquerda, grande arco abatido, para lá do qual se vê em ultimo plano o cemiterio da congregação. É noite escura.
ELECTRA E SOROR DOROTHÊA
Dorothêa
Tão certo como ser noite, vieram dois sujeitos ao convento com proposito de te arrancar d’aqui e de te levar para o mundo. Não o crês?
Electra
Sem que me digas quem são, o meu coração o adivinha: Maximo e o marquez de Ronda... Se é certo que projectam levar-me é enorme a perturbação que me causam. Desde que entrei n’esta santa casa emprehendi, como sabes, a[270] grande batalha do meu espirito. Procuro, humildemente e com a ajuda de Deus, transformar em amor fraternal o amor de uma natureza bem diversa que arrebatou a minha alma... Converter o ardente fogo do sol numa fria claridade da lua... O constante meditar, lento mas progressivo, o desmaio do coração, e as ideias submissas e dôces que Deus me envia vão-me dando forças para vencer.
Dorothêa
Querida irmã, se em ti sentes a fortaleza d’esse novo amor, porque tens mêdo de te encontrar com D. Maximo de Yuste?
Electra
Porque, vendo-o, sinto que todo o terreno ganho o perderia n’um só instante.
Dorothêa
(incredula) E achas, em tua verdade, que tenhas algum terreno ganho?...
Electra
Oh! sim, algum... não muito por emquanto.
Dorothêa
Talvez, irmã Electra, que o vêr essa pessoa te demonstre se effectivamente podes...
Electra
(vivamente) Oh! não m’o digas, que não posso!... No estado em que me sinto, n’este principio de lucta, se o visse, se o ouvisse, eu perderia toda a esperança de paz... Não vês que em minha consciencia eu me estou debatendo contra dois impossiveis: não poder amal-o como esposo; não poder amal-o como irmão? (Aterrada) Que supplicio, meu Jesus!... Para o mundo não, não... Prefiro estar aqui, n’esta solidão de morte, n’este laboratorio da minha alma, junto do cadinho divino, em que estou fundindo um viver novo.
Dorothêa
Não esperes que as tuas ideias te deem a paz. Confia em Deus e n’aquelles que Deus te envia... (Resolvendo-se a falar mais claramente) Não te amedrontes assim perante o que suppões teu irmão. Alguem talvez negará que o seja.
Electra
(em grande excitação) Cala-te! Cala-te! Em assumpto de tão grande melindre toda a palavra que não contenha a certeza é inutil e cruel... Póde levar-me á loucura. O que eu peço a Deus é a morte, ou a verdade inteiramente indubitavel e definitiva.
Dorothêa
Socega, pobre Electra...
Electra
(exaltando-se cada vez mais) Todas as confusões que me atormentaram ao vir para aqui estão renascendo no meu espirito... Atropelam-se-me no pensamento anjos e demonios... Deixa-me... Eu quero fugir de mim mesma... (Corre a scena em grande agitação. Soror Dorothêa segue-a procurando acalmal-a)
Dorothêa
Tranquillisa-te, por Deus!... Esse tormento vae ter fim. (Olha com anciedade para a porta da esquerda)
Electra
(parecendo-lhe ouvir uma voz longinqua) Ouve... Minha mãe que me chama.
Dorothêa
Não delires... Outras vozes, vozes de pessoas vivas, te chamarão.
Electra
É minha mãe... Silencio!... (Escutando. Entra Pantoja pela direita)
ELECTRA, PANTOJA E DOROTHÊA
Pantoja
Minha filha, como sahiste da egreja sem que eu te visse?
Dorothêa
Sahimos para respirar ao ar livre. Electra asfixiava. (Áparte) Approxima-se a hora... Deus nos ajude!
Pantoja
Sentes-te mal, minha filha?
Electra
(com voz assustada e sumida) A minha mãe chama por mim.
Pantoja
(pegando-lhe carinhosamente na mão) A dôce voz da tua mãe, falando-te em espirito te dará conforto, prendendo-te com piedade e amôr a este sagrado refugio. (Ouve-se passando na egreja o côro das noviças) Ouve, Electra... É a voz dos anjos que te chamam do ceu.
Electra
(delirante) É o côro dos meninos a brincar. E entre essas vozes ternas, distingo a de minha mãe chamando-me da sepultura.
Pantoja
Estás allucinada. É o divino côro dos anjos.
Electra
Não, não ha anjos... Ouço o meu nome, ouço o bulicio dos meninos, que revolve toda a minha alma. São os filhos dos homens que fazem a alegria da vida. (Continua a ouvir-se mais apagado o côro das noviças)
Pantoja
(inquieto) Irmã Dorothêa, diga á irmã porteira que vigie a porta da Rua Nova e a da Ronda. (Á esquerda e á direita)
Dorothêa
Sim, meu senhor...
Pantoja
Mas não; irei eu mesmo... Não me fio de ninguem... Vou eu mesmo vigiar todo o claustro, todas as passagens, todos os recantos da casa. (Assustado, julgando ouvir ruido) Escute... Não ouvio?
Dorothêa
Quê?... Não ouvi nada... É illusão.
Pantoja
Pareceu-me ouvir um rumor de vozes... e bater n’uma porta ao longe. (Escuta)
Dorothêa
De que lado? (Olhando para o fundo á direita)
Pantoja
Na direcção da enfermaria... Não estou socegado... Quero vêr eu mesmo... Electra, volta para a egreja... Leve-a, irmã Dorothêa... Esperem-me lá... (Dando-lhes pressa) Andem... (Acompanha-as até á porta da egreja. Sae pressuroso, inquieto, pelo fundo, á direita. Dorothêa vê-o afastar-se, pega na mão de Electra, e vivamente volta com ella ao centro da scena. Electra, sem vontade, deixa-se levar)
ELECTRA E SOROR DOROTHÊA
Dorothêa
Vem commigo... Para a egreja não.
Electra
Aqui... Deixa-me respirar, deixa-me viver.
Dorothêa
(aparte, inquieta) É a hora dada pelo marquez de Ronda... Aproveitemos os minutos, os segundos, ou tudo está perdido.[277] (Olhando para a esquerda) Vou dar-lhes entrada para este claustro... (Alto) Irmã Electra, espera-me aqui.
Electra
(assustada) Onde vaes? (Pega-lhe no braço)
Dorothêa
(com decisão, defendendo-se) Tratar de ti, dar-te a saude e dar-te a vida... Prepara-te para sahir d’este sepulcro, e leva-me comtigo.
Electra
(tremula) Irmã Dorothêa... não me deixes.
Dorothêa
Este momento decide da tua sorte... Volverás ao mundo... verás Maximo.
Electra
Quando?
Dorothêa
Já... Vaes vêl-o entrar por ali... (Esquerda) Animo!... Não me estorves... Não te movas d’aqui. (Sae correndo pela esquerda)
Electra
Meu Deus! Virgem Santissima!... Será certo?... Por aqui... por aqui virá... (Julga vêr Maximo na escuridão) Ah! é elle... Maximo! (Falando como em sonhos, desviando-se como d’um ser real) Pára... Deixa-me... Não posso amar-te como irmão, não posso... Está no fogo o cadinho em que quero fundir um coração novo... Não vês que não posso levantar os olhos para ti?... Para que me fitas d’esse modo, se me não pódes levar comtigo?... É aqui que eu procuro a verdade. Minha mãe chama por mim... (Com accento desesperado) Mãe! mãe! (Volta-se de frente para o fundo. Ao soarem as ultimas palavras de Electra, apparece a sombra de Eleuteria, formosa figura em habito de monja. Electra de costas para o publico, contempla-a com os braços cruzados no peito) Oh! (Grande pausa)
ELECTRA E A SOMBRA DE ELEUTERIA, que vagamente se destaca na obscuridade do fundo. Electra adeanta-se para ella. Ficam as duas figuras frente a frente, á menor distancia possivel uma da outra.
A Sombra
Sou a tua mãe, e venho a aplacar a angustia do teu coração amante. A minha[279] voz dará á tua consciencia a paz. Nenhum vinculo da natureza te prende ao homem que te escolheu por mulher. O que te disseram foi uma ficção carinhosa destinada a trazer-te á nossa companhia e á doçura d’esta santa casa.
Electra
Oh! mãe adorada, que consolação me dás!
A Sombra
Dou-te a verdade, e com ella a fortaleza e a esperança. Acceita, minha filha, como provação em que se retemperou a força da tua alma, esta reclusão transitoria, e não maldigas quem a promoveu... Se o amor conjugal e as alegrias da familia solicitam a tua alma deixa-te de boamente levar da suavidade d’essa atracção, e não procures aqui uma santidade que não é para ti. Deus está em toda a parte... Eu não pude encontral-o fóra d’este abençoado refugio... Procura-o tu no mundo por vereda differente d’aquella em que eu me perdi... (A sombra cala-se e desapparece no momento em que se ouve a voz de Maximo)
ELECTRA, MAXIMO, MARQUEZ, PANTOJA E SOROR DOROTHÊA
Maximo
(á porta da esquerda) Electra!
Electra
(correndo para elle) Ah!
Pantoja
(pela direita) Minha filha, onde estás?
Marquez
Comnôsco.
Maximo
Commigo.
Pantoja
Foges-me, Electra?
Maximo
Não foge... Resuscita.
FIM