The Project Gutenberg eBook of A Pata da Gazella:, by José Martiniano de Alencar

This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook.

Title: A Pata da Gazella:

romance brasileiro.

Author: José Martiniano de Alencar

Release Date: April 14, 2022 [eBook #67831]

Language: Portuguese

Produced by: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by the Biblioteca Brasiliana USP Digital)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PATA DA GAZELLA: ***

SENIO


A PATA DA GAZELLA


ROMANCE BRASILEIRO


RIO DE JANEIRO

EDITOR PROPRIETARIO
B. L. Garnier.—Rua do Ouvidor n. 6
1870




INDICE

CAPITULO I
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
CAPITULO XIV
CAPITULO XV
CAPITULO XVI
CAPITULO XVII
CAPITULO XVIII
CAPITULO XIX




I

Estava parada na rua da Quitanda, proximo a da Assembléa, uma linda victoria, puxada por soberbos cavallos do cabo.

Dentro do carro havia duas moças; uma dellas, alta e esbelta, tinha uma presença encantadora; a outra, de pequena estatura, muito delicada de talhe, era talvez mais linda que sua companheira.

Estavam ambas elegantemente vestidas, e conversavam a respeito das compras que já tinham realizado ou das que ainda pretendiam fazer.

—Daqui aonde vamos? perguntou a mais baixa, vestida de roixo claro.

—Ao escriptorio de papai: talvez elle queira vir comnosco. Na volta passaremos pela rua do Ouvidor: respondeu a mais esbelta, cujo talhe era desenhado por um roupão cinzento.

O vestido roixo debruçou-se de modo a olhar para fóra, no sentido contrario aquelle em que seguia o carro, emquanto o roupão, recostando-se nas almofadas, consultava uma carteirinha de lembranças, onde naturalmente escrevêra a nota de suas encommendas.

—O lacaio ficou-se de uma vez! disse o vestido roixo com um movimento de impaciencia.

—É verdade! respondeu distrahidamente a companheira.

Estas palavras confirmavam o que aliás indicava o simples aspecto da carruagem: as senhoras estavam á espera do lacaio, mandado a algum ponto proximo. A impaciencia da moça de vestido roixo era partilhada pelos fogosos cavallos, que difficilmente conseguia soffrear um cocheiro agalloado.

Depois de alguns momentos de espera, sobresaltou-se o roupão cinzento, e conchegando-se mais ás almofadas, como para occultar-se no fundo da carruagem, murmurou:

—Laura!... Laura!...

E como sua amiga não a ouvisse, puxou-lhe pela manga.

—O que é, Amelia?

—Não vês? Aquelle moço que está ali defronte nos olhando.

—Que tem isto? disse Laura sorrindo.

—Não gósto! replicou Amelia com um movimento de contrariedade. A quanto tempo está ali e sem tirar os olhos de mim?

—Volta-lhe as costas!

—Vamos para diante.

—Como quizeres.

Avisado o cocheiro, avançou alguns passos, de modo á tirar ao curioso a vista do interior do carro; mas o mancebo não desanimou por isso, e passando de uma a outra porta, tomou posição conveniente para contemplar a moça com uma admiração franca e apaixonada.

Simples no trajo, e pouco favorecido a respeito de belleza; os dotes naturaes que excitavam nesse moço alguma attenção eram uma vasta fronte meditativa, e os grandes olhos, pardos, cheios do brilho profundo e phosphorescente que naquelle momento derramavam pelo semblante de Amelia.

Havia minutos que percorrendo a rua da Quitanda em sentido opposto á direcção do carro, avistára a moça recostada nas almofadas, e sentira a seu aspecto viva impressão. Sem disfarce ou acanhamento, recostando-se a ombreira de uma porta de escriptorio, esqueceu-se naquella ardente contemplação.

O coração é um solo. Valle onde brotam as paixões, como os outros valles da natureza inanimada, elle tem suas estações, suas quadras de aridez ou de seiva, de estirilidade ou de abundancia.

Depois das grandes borrascas e chuvas, os calores do sol, produzem na terra uma fermentação, que fórma o humus; a semente, cahindo ahi, brota com rapidez. Depois das grandes dôres e das lagrimas torrenciaes, fórma-se tambem no coração do homem um humus poderoso, uma exhuberancia de sentimento que precisa de expandir-se. Então um olhar, um sorriso, que ahi penetre, é semente de paixão, e pulula com vigôr extremo.

O moço parecia estar nessas condições: elle trajava lucto pesado, não sómente nas roupas negras, como na côr macilenta das faces nuas, e na magoa que lhe escurecia a fronte.

Notando Amelia a insistencia do mancebo, ficou vivamente contrariada. Aquelle olhar profundo, que parecia despedir os fogos surdos de uma labareda occulta, incutia nella um desassocego intimo. Agitava-se impaciente, como uma creatura no meio de um somno inquieto ou mesmo de um ligeiro pesadello.

Até que abriu o chapeosinho de sol, para interceptar a contemplação apaixonada de que era objecto. Nesta occasião, Laura, que frequentemente se debruçava para vêr quando vinha o lacaio, retrahiu o corpo com vivacidade:

—Emfim; ahi vem!

—Felizmente! disse Amelia.

O lacaio aproximava-se á passos medidos; trazia na mão um embrulho de papel azul, que o atrito dos dedos e a oscillação dos objectos envoltos desfizera, obrigando o portador a apertal-o de vez em quando.

Julgando ao cabo de alguns instantes que o lacaio já tocava o estribo da carruagem, Amelia, tomando um tom imperativo, disse para o cocheiro:

—Vamos! vamos!

Ao aceno que lhe fez o cocheiro, o lacaio correu, chegando a tempo de apanhar o carro, que partia ao trote largo da fogosa parelha. Deitar o embrulho na caixa da victoria, rodear em dois saltos e galgar o estribo da almofada, foi para o creado, habituado a essa manobra, negocio de um instante. Não percebera elle, porém, que abrindo-se o papel com a corrida, um dos objectos nelle contidos escorregára e justamente na occasião de deitar o embrulho na caixa do carro, cahira na calçada.

Laura, que se inclinara com vivo interesse para tomar o embrulho das mãos do lacaio, tivera um presentimento do accidente, ao ver o papel desenrolado. Fechando-o rapidamente e escondendo por baixo do assento da victoria, ella debruçou-se ainda uma vez para verificar si com effeito alguma cousa havia cahido. Ao mesmo tempo acompanhava o movimento com estas palavras de contrariedade:

—Como elle manda isto? Por mais que se lhe recommende!

Laura nada viu, porque já a victoria rodava ligeiramente sobre os parallelepipedos.

Nesse momento, porém, dobrando a rua da Assembléa, se aproximára um moço elegante não só no trajo do melhor gosto, como na graça de sua pessoa: era sem duvida um dos principes da moda, um dos leões da rua do Ouvidor; mas desse podemos assegurar pelo seu parecer distincto, que não tinha usurpado o titulo.

O mancebo viu casualmente o lacaio quando passára por elle correndo, e percebeu que um objecto cahira do embrulho. Naturalmente não se dignaria abaixar para apanhal-o, nem mesmo deitar-lhe um olhar; si não visse apparecer ao lado da victoria o rosto de uma senhora, que o aspecto da carruagem indicava pertencer á melhor sociedade.

Então, apressou-se, para ter occasião de fazer uma fineza, e pretexto de conhecer a senhora, que lhe parecêra bonita. Os leões são apaixonadissimos de taes encontros; acham-lhes um sainete que destroe a monotonia das relações habituaes.

Quando o moço ergueu-se com o objecto na mão, já o carro dobrava a rua Sete de Setembro. Ficou elle um momento indeciso, olhando em tôrno, como si esperasse alguma informação á respeito da pessoa á quem pertencia o carro. Sem duvida a senhora era conhecida em alguma loja de fazendas; talvez tivesse ahi feito compras.

Não obtendo, porém, informações, nem colhendo resultado da pergunta que fizera a um caixeiro proximo, resolveu-se á metter o objecto no bolso e seguir seu caminho.




II

Horacio de Almeida, o nosso leão, voltou á casa á hora do costume, quatro da tarde.

Os successivos encontros da rua do Ouvidor; a conversa no Bernardo; a visita indispensavel ao alfaiate; as anecdotas do Alcasar na noite antecedente; a chronica anacreontica do Rio de Janeiro, chistosamente commentada; algumas rajadas de maledicencia, que é a pimenta social; todas essas occupações importantes, que absorvem a vida do leão, distrahiram Horacio, a ponto de se esquecer elle do objecto guardado no bolso do paletot.

Como admittir que um principe da moda não aproveitasse a aventura do carro, para sobre ella bordar um romance de rua, com que excitasse a curiosidade dos amigos? Realmente é admiravel; e seria incomprehensivel si não fosse a circumstancia de ter poucos passos adiante encontrado uma das mais ricas herdeiras do Brasil, a quem o nosso leão arrastava.... Ia dizer a aza, mas isso seria anachronismo; dizia-se no tempo em que os leões se chamavam gallos: hoje deve dizer-se arrastar a juba; é mais bonito e indica mais submissão. Arrastar a aza é enfunar-se; arrastar a juba é prostrar-se.

Foi só quando recostado em sua ottomana, descansava para o jantar, que Horacio, procurando a carteira de charutos no bolso do fraque, lembrou-se do objecto. Teve então curiosidade de examinal-o; sabia o que era; na occasião de apanhal-o reconhecêra o pé de uma botina de senhora; mas não fizera grande reparo.

Agora, porém, que de novo o tinha diante dos olhos, á sós em seu aposento, e despreoccupado da idéa de o restituir, Horacio achou o objecto digno de séria attenção; e aproximando-se da janella começou um exame consciencioso.

Era uma botina, já o sabemos; mas que botina! Um primor de pellica e sêda, a concha mimosa de uma perola, a faceira irmã do lindo chapim de ouro da borralheira; em uma palavra a botina desabrochada em flôr, sob a inspiração de algum artista ignoto, de algum poeta de ceiró e torquez.

Não era, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da fôrma, o que seduzia o nosso leão; eram sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na pellica os contornos do pesinho desconhecido. A botina fora servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem conservada, o desmaio de sua primitiva côr bronzeada e o esfrolamento da sola indicavam bastante uso.

Si fosse um calçado em folha, sahido da loja, não teria grande valor aos olhos do nosso leão, habituado não só a vêr, como a calçar, as obras primas de Milliès e Campàs. Talvez reparando muito naquella peça que tinha nas mãos, notasse maior elegancia no córte, e um apuro escrupuloso na execução; porém mais natural seria escapar-lhe essa minima circumstancia.

Mas a botina achada já não era um artigo de loja, e sim o traste mimoso de alguma belleza; o gentil companheiro de uma moça formosa, de quem ainda guardava a impressão e o perfume. O rosto estufava mostrando o firme relevo do pesinho arqueado. Na solla se desenhava a curva graciosa da planta subtil, que só nas extremidades beijava o chão, como o silpho que frisa a superficie do lago com a ponta das azas.

Ha um aroma, que só tem uma flôr na terra, o aroma da mulher bonita; fragancia voluptuosa que se exhala ao mesmo tempo do corpo e da alma; perfume inebriante que penetra no coração como o amor valatilisado. A botina estava impregnada desse aroma delicioso; o delicado tubo de seda, que se elevava como a corolla de um lirio, derramava, como a flôr, ondas suaves.

O mancebo collocára longe de si o charuto para não desvanecer com o fumo os bafejos daquelle odôr suave. Não havia ahi o menor laivo de essencia artificial preparada pela arte do perfumista; era a pura exhalação de uma cutis assetinada, esse halito de saude que perspira através da fina e macia tez, como através das petalas de uma rosa.

De repente uma idéa perpassou no espirito do moço, que o fez estremecer. Essa botina gracil, em que mal caberia sua mão aristocratica, essa botina mais mimosa do que sua luva de pellica, não podia ter um numero maior do que o de seus annos, vinte nove!

—Será de uma menina! murmurou elle um tanto desconsolado.

Examinou novamente a obra prima, voltou-a de todos os lados, apalpou docemente o salto e o bico, dobrou a orla da haste, sondou o interior da concha, que servira de regaço ao feiticeiro pesinho. Depois de alguns instantes deste exame profundo e minucioso, um sorriso expandiu o semblante de Horacio.

—É de moça, é de mulher! murmurou elle. Aqui estão os signaes evidentes; não podem falhar. A fabula de Edipo é uma verdade eterna: no enigma da esphinge está realmente o mytho da vida. O homem é o animal que de manhã anda sobre quatro pés; ao meio dia sobre dois; a tarde sobre tres. Na infancia, a creatura, como a planta, conserva-se rasteira, brota, pulula, mas conchega-se mais ao solo de que recebe toda nutricção; as mãos servem-lhe de pés. Depois da juventude, na época da expansão, a creatura se lança para o espaço, exalta-se; é a arvore que hastea e procura as nuvens; a planta pede ao céo os orvalhos e a luz do sol; a alma pede a crença, a fé, a esperança, de que se geram as flôres, que nós chamamos paixões. Na velhice, o homem se inclina de novo para a terra, como o tronco carcomido; é o pó, que, depois de revoar no espaço, deposita-se outra vez no chão. Então o velho precisa do bordão; uma das mãos torna-se pé, e calça esse cothurno da mais triste das tragedias humanas, a decrepitude.

Horacio observou de novo attentamente o objecto que tinha entre as mãos.

—A menina de quinze annos já não é a corsa de quatro patas; não está mais na alvorada da vida, na puericia; tambem ainda não chegou ao meio dia do qual aproxima-se. Comtudo, seu andar conserva ainda aquella attracção para a terra; é pesado; calca o chão com força; tem o quer que seja de sacudido, que revella os impulsos da alma para desprender-se do pó e elevar-se; assemelha a singradura do batel, que ora se levanta, ora submerge-se. Si esta botina fosse de uma menina, aqui estariam impressos esses caracteres de sua idade. A sola, em vez de levemente triturada nas extremidades, estaria estragada; o salto cambado. É uma observação que todo o sapateiro confirmaria; o menino gasta o calçado pela sola, o homem pelo couro; a razão, o sapateiro a ignora, mas o philosopho a conhece: o menino é o insecto que rasteja, a larva; o homem é o insecto que vôa, o besouro; aquelle anda com o ventre, este com a aza.

Horacio sorriu.

—Esta botina é de moça, e moça em todo o viço da juventude: a sola apenas rosçada junto á ponta, o salto quasi intacto, não estão descrevendo com a maior eloquencia a subtileza do passo ligeiro? Eu sinto, posso dizer eu vejo, esse andar gentil, que manifesta a deusa, como disse o poeta; a deusa, a Venus deste olympo em que vivemos, a mulher. Só quando toda a seiva se precipita para o coração, quando germinam os botões que mais tarde abrirão em flôr, só nesse momento de assumpção é que a mulher tem este andar sublime e augusto. É o andar do passarinho, que, rosçando a relva, sente o impulso das asas; é o andar do astro nascente, caminhando para a ascensão; é o andar do anjo, que, mesmo tocando a terra, parece prestes a fugir ao céo; é, finalmente, a elação d'alma que aspira de Deus os effluvios do amor, do amor unico ambiente do coração!

Nisto o moço descobriu na fivella do laço da botina alguma cousa que lhe excitou vivo reparo; chegando-se á luz, viu as voltas de um fio, que prendeu entre as brancas unhas afiladas, verdadeiras garras de leão da moda. Com alguma paciencia retirou um longo cabello castanho, e muito crespo.

—Outra prova de que aliás não carecia! Este cabello é de mulher; não ha menina que o possa ter. Quatro palmos, além do que se partiu naturalmente! Bem se vê que é uma palmeira frondosa, e não um arbusto! Tem o cabello castanho e crespo, duas cousas lindas sem duvida, embora minha paixão seja a trança basta e lisa, negra como uma asa de côrvo. Esse negrume dá á mulher, o quer que seja de satanico; lembra que ella tambem gerou-se da terra; não é anjo sómente; não é sómente filha do céo. Eu não posso supportar a mulher-seraphim, que parece desdenhar do mundo onde vive, e do pó de que é feita.

Horacio voltou a botina.

—Mas seja embora castanha, ou mesmo loura, que é uma côr insipida de cabello! Que me importa isto? Tenho alguma cousa com seu cabello? O que amo nella é o pé; este pé sylpho, este pé anjo, que me fascina, que me arrebata, que me enlouquece?...

Horacio, que até então se contentava com olhar e apalpar a botina, inclinou-se e beijou-a no rosto; mas timida e respeitosamente. Não era essa a imagem do pé seductor, que elle adorava como um idolo?

—Mas onde encontral-o? como reconhecêl-o? exclamou dolorosamente Horacio, sentindo a realidade da situação.

Nenhum indicio que lhe revellasse o nome da mulher a quem pertencia essa gentil botina, ou lhe indicasse ao menos os traços de sua passagem. A lembrança vaga da libré de um lacaio era o unico vestigio que restava; mas com este dificilmente poderia descobrir o objecto de sua adoração. Ha tantos lacaios no Rio de Janeiro; e tantas librés que se confundem! Talvez nunca mais encontrasse aquelle que procurava; e encontrando, nem o reconhecesse.

—Desgraçado! dizia o leão. Quasi nem o olhaste; mas, podias tu adivinhar, Horacio, que thesouro deixára cahir aquelle bruto?

O mancebo inclinára ao peito a bella cabeça esmorecida; a ventura lhe tinha sorrido de longe, para escarnecer delle, o leão mais querido das bellezas fluminenses, o Atyla do Cassino, o Genserico da rua do Ouvidor.

De repente ergueu-se d'um impeto:

—Heide possuil-o!... exclamou elle com o tom com que Alexandre se prometteu o imperio da Asia.




III

Ninguem imagina que bellos talentos sorve essa voragem do mundo, que chamam a vida elegante.

São como as arvores luxuriantes que se vestem de linda folhagem, e consomem toda a seiva nessa gala esteril e ephemera. Nunca ellas dão fructo, nem siquer flôr.

Horacio de Almeida era uma de tantas intelligencias, desperdiçadas no incessante bulicio da moda.

Muitos poetas, dos que têm seu nome estampado em rosto de livro, não empregaram na fabrica de seus versos o atticismo, a inspiração e a graça com que o nosso leão torneava no baile um galanteio, ou aguçava um epigramma.

Pintores são festejados, que não sabem o segredo dos toques delicados, e do supremo gôsto, que Horacio imprimia no laço de sua gravata, em suas maneiras distinctas, nos minimos accidentes de seu trajo apurado.

E a phisiologia?

Poucos homens conheciam como Horacio o coração da mulher; porque bem raros o teriam estudado com tanta assiduidade. O mais sabio professor ficaria estupefacto da lucidez admiravel, com que o leão costumava lêr nesse cahos da paixão, que a anatomia chamou coração de mulher.

A razão é simples. O professor estudou no gabinete; consultou as obras dos mestres, colligiu observações alheias, e arranjou um systhema sobre o que não soffre regras; sobre a paixão cuja essencia é o imprevisto, o anomalo, o indefinivel.

Ao contrario, Horacio tinha estudado na realidade da vida; devassára os refolhos do polypo; lhe sentira as pulsações; e fizera experiencias in anima vilis. Não fatigou sua memoria com a inutil bagagem dos termos technicos e das noções scientificas: lia os hierogliphos do amor com a linguagem garrida do homem a moda.

A perspicacia do olhar, a profundeza da investigação e a certeza de observação, com que o nosso leão sondava o abysmo do coração, e rastreava no semblante da mulher os vagos symptomas de uma inclinação nascente, ou de uma affeição expirante; só os grandes medicos possuem tão altos dotes.

Assim gastava Almeida a mocidade, desfolhando seu bello talento pelas sallas e pontos de reunião. As riquezas de sua elevada intelligencia, as ia elle esparzindo nas elegantes futilidades de um ocio tão laborioso, como é o far niente de um leão.

Consumir o tempo não se apercebendo de sua passagem; livrar-se do fardo pesado das horas sem occupação; ha nada mais difficil para o homem que ignora o trabalho?

Si o Almeida poupasse desse tempo tão esperdiçado alguns momentos no dia para dedical-os a um fim sério e util, á sciencia, á litteratura, á arte, que bellos triumphos não obteria sua rica imaginação servida por um espirito scintillante?

Mas o nosso leão tinha á este respeito idéas excentricas.

—A politica, dizia elle, quando não dá em especulação, passa a mistificação. A sciencia, si escapa de mania, torna-se uma gleba em que o sabio trabalha para o nescio. Litteratura e arte são plagios; quem póde fazer poesia e romance ao vivo, não se dá ao trabalho de reproduzil-os; nem contempla estatuas, quem lhes admira os modelos animados e palpitantes.

Com taes paradoxos, Horacio não achava emprego mais digno para a intelligencia, do que a difficil sciencia de consumir gradualmente a vida, e atravessar sem fadiga e sem reflexão por este valle de lagrimas, em que todos peregrinamos.

A mulher era para elle a obra suprema, o verbo da creação. Toda religião, como toda felicidade; toda sciencia, como toda poesia, Deus a tinha encarnado nesse mixto incomprehensivel do sublime e do torpe, do celeste e do satanico; amalgama de luz e cinzas; de lodo e nectar.

—Amar, é adorar a Deus na sua ara mais santa, a mulher. Amar é estudar a lei da creação em seu mais profundo mysterio, a mulher. Amar é admirar o bello em sua mais esplendida revelação; é fazer poemas e estatuas como nunca as realisou o genio humano.

Mas o que sentia Horacio era apenas o culto da fórma, o fanatismo do prazer. O amor, o verdadeiro amor consiste na possessão mutua de duas almas; e essa, póde o homem illudir-se alguma vez, mas quando se realisa é indissoluvel.

Nada separa duas almas gemeas que prende o vinculo de sua origem divina.

O mancebo admirava na mulher a formosura unicamente: apenas artista, elle procurava um typo. Durante dez annos atravessára os sallões, como uma galeria de estatuas animadas e vivos paineis, parando um instante em face dessas obras primas da natureza.

Vieram uns após outros todos os typos; a belleza ardente das regiões tepidas, ou suave gentileza da rosa dos Alpes: o moreno voluptuoso ou a alvura do jaspe; a fronte soberana e altiva ou o gesto gracioso e meigo; o talhe opulento e garboso ou as fórmas esbeltas e flexiveis.

Seu gôsto foi-se apurando; e ao cabo de algum tempo tornou-se difficil. A belleza commum já não o satisfazia; era preciso a obra prima para excitar-lhe a attenção e commovel-o.

Mas os sentidos se gastam; os mesmos primores da formosura cahiram na monotonia. Já o leão não sentia pela mais bella mulher aquelles enthusiasmos ardentes da primeira mocidade. Seu olhar era frio e severo como o de um critico.

Então, começou o moço a amar, ou antes a admirar a mulher em detalhe. Sua alma embotada carecia de um sainete. Foi a principio uma boca bonita, cofre de perolas, de sorrisos, de beijos e harmonias. Veiu depois uma trança densa e negra, como a asa da procella que se inflamma. Uma cintura de sylphide, um collo de cisne, um requebro seductor, um signal da face, uma graça especial, um não sei que; tudo recebeu culto do nosso leão.

Como um conviva, a quem as iguarias do banquete já não excitam, sua alma babujava na salla essas golosinas. Mas afinal embotou-se; e o prazer não foi para ella mais do que a vulgar satisfação de um habito.

O moço cortejava as senhoras como uma occupação indispensavel á sua vida, como o desempenho da tarefa diaria; mas sem a menor commoção.

Amar era um entretenimento do espirito, como passeiar á cavallo, frequentar o theatro, jogar uma partida de bilhar.

O amor já não tinha novidades nem segredos para elle, que o gozára em todas as fórmas; na comedia e no drama; no idilio e na ode. Como Richelieu, diziam até que elle já o havia calcado com o tacão da bota.

Nestas circumstancias bem se comprehende a impressão profunda que nelle produzia a mimosa botina, achada naquella manhã.

Almeida tinha admirado a mulher em todos os typos e em todos os seus encantos; mas nunca a tinha amado sob a fórma seductora de um pésinho faceiro. Era realmente para sorprender. Como lhe passára desapercebido esse condão magico da mulher, á elle que julgava ter esgotado todas as emoções do amor?

Succedeu, como era natural, que uma vez percutidas as energias dessa alma ennervada por longa apathia, a reacção foi violenta. Inflammou-se a imaginação e especialmente com o toque do mysterio que trazia a aventura. Si o dono da botina, o sonhado pésinho, se mostrasse desde logo, não produziria o mesmo effeito; não teria o sabor do desconhecido, que é irmão do prohibido.

Imagine, quem conhecer o coração humano, a vehemencia dessa paixão, excitada pelo tédio do passado, e alimentada por uma imaginação ociosa. De que loucuras não é capaz o homem que se torna ludibrio de sua fantazia?

As extravagancias de Horacio, contemplando a botina, verdadeiras infantilidades de homem feito, bem revelavam a agitação dessa existencia, embotada para o verdadeiro amor, e gasta pelo prazer.

Não se riam, homens serios e graves, não zombem de semelhantes extravagancias; são ellas o delirio da febre do materialismo que ataca o seculo.

Essa paixão de Horacio, o que é sinão uma aberração da alma, consagrada ao culto da materia? A voracidade insaciavel do desejo vai criando dessas monstruosidades incomprehensiveis.

Succede á esta embriaguez do amor o mesmo que á embriaguez do alcool. A principio basta-lhe o vinho fino e aristocratico; depois carece da aguardente; e por fim já não a satisfaz a infusão de gengibre em rhum; isto é, a lava de um volcão preparada á guisa de grogue.




IV

Ao mesmo tempo que o nosso leão, entrava Leopoldo de Castro na modesta habitação que então occupava na Gloria.

Quando lhe fugira a celeste visão, o mancebo foi seguindo com o passo e com os olhos o carro que levava sua alma presa áquelle rosto encantador. O passo era rapido e o olhar ardente; um anciava por chegar; o outro quizera attrahir pela força da paixão, pelo iman das centelhas magneticas, que desferia a alma.

Fosse illusão dos sentidos perturbados pela commoção interior, ou breve e confusa percepção da realidade, julgou o moço vêr, no momento de dobrar o carro pela rua Sete de Setembro, um talhe esbelto inclinar-se para a frente, e apparecer de relance um rosto alvo, donde escapou-se vivo e rapido olhar.

Leopoldo não tinha o intento de alcançar, nem mesmo seguir, o carro que fugia com velocidade; mas embalava-o a esperança de que um obstaculo qualquer, impedindo por instantes o livre transito, lhe permittisse outra vez contemplar a moça. Quando, porém, isso não succedesse, consolava-o a idéa de conhecer a direcção que tomaria a linda victoria:

—Si eu soubesse ao menos para que lado mora ella!... Esse ponto seria o meu horizonte, o meu céo. Me voltaria para ali quando adorasse á Deus, e quando conversasse com ella. Amaria as estrellas, as nuvens e até as borrascas dessa banda do firmamento; amaria as ruas, as calçadas e até a poeira desse arrabalde da cidade.

O mancebo vagou assim durante duas horas, percorrendo as ruas sem destino. Não era tanto a esperança de vêr a moça ou sómente o carro, como a necessidade de occupar seu espirito, o que o impellia nessa perseguição de uma sombra.

—Eu tornarei a vel-a, pensava elle comsigo; e ella me ha de amar, tenho convicção. O amor é um magnetismo; eu acredito que o magnetismo se resume nelle; que a lei da attracção não é sinão a lei da sympathia; os polos são a cabeça e o coração, na terra, como no homem. Si ella fôr a mesma que eu vi com os olhos de minha alma, a mesma que se revellou á minha paixão, aquella a que devo unir-me eternamente para formar um ser mais perfeito, eu caminharei para ella, como ella para mim, impellidos por uma força mysteriosa, por mutua aspiração.

Com o animo repousado por essa convicção que nelle se derramára, entrou Leopoldo em casa. Ahi o esperava o isolamento em que se ia escôando sua vida, depois da perda de uma irmã á quem adorava.

Nessa irmã tinha elle resumido todas as affeições da familia, prematuramente arrebatadas á sua ternura; o amor filial, que não tivera tempo de expandir-se, a amisade de um irmão, seu companheiro de infancia, todos esses sentimentos cortados em flôr, elle os transportára para aquelle ente querido, que era a imagem de sua mãi.

Essa perda deixára um vacuo immenso no coração de Leopoldo; a principio enchera-o a dôr; depois a saudade; agora essa mesma terna saudade sentia-se desamparada na profunda solidão daquelle coração ermo. O mancebo carecia de uma affeição para povoar esse deserto de sua alma; de uma voz que repercutisse nesse lugubre silencio. É tão doce partilhar sua melancholia, ou seu prazer, com um outro eu, com um amigo ou uma esposa. São dous hombros para a cruz, e dous peitos para a alegria; alliviar-se o peso, mas duplica-se o gozo.

Ao cahir da tarde, quando o crepusculo já desdobrava sobre a cidade o véo de gaza pardacenta, Leopoldo, sentado á janella de peitoril de sua casa, fumava um charuto, com os olhos engolphados no azul diaphano do céo, onde scintillava a primeira estrella. A seus pés desdobrava-se a bahia placida e serena como um lago, com a sua graciosa cintura de montanhas, caprichosamente recortadas.

O espirito do moço não se embebia de certo na perspectiva dessa encantadora natureza, sempre admirada, e sempre nova. Ao contrario abandonava-se todo ás recordações de seu encontro pela manhã e aos enlevos que lhe deixara a contemplação da linda moça. Passava e repassava em sua memoria como em um cadinho, todas as circumstancias minimas deste grande e importante acontecimento, desde o momento em que assomou a visão até que desappareceu por ultimo ao dobrar o canto da rua.

Achava nisso o mesmo praser que um menino guloso experimenta em chupar novamente os favos já saboreados; lá ficou um raio de mel, que o labio avido colhe. Para Leopoldo esses raios de mel eram os olhares, os movimentos, os sorrisos da moça, avivados pela maior contensão do espirito.

Houve uma occasião em que o mancebo quiz representar em sua lembrança a imagem da moça: naturalmente começou interrogando sua memoria á respeito dos traços principaes. Como era ella? Alta ou baixa, torneada ou esbelta, loura ou morena? Que côr tinhão seus olhos?

A nenhuma dessas interrogações satisfez a memoria; porque não recebêra a impressão particular de cada um dos traços da moça. Não obstante, a apparição encantadora resurgia dentro de sua alma; elle a revia tal como se desenhára a seus olhos algumas horas antes. Era a imagem diaphana de um sonho que tomara vulto gracioso de mulher.

—Não me lembro de seus traços, não posso lembrar-me!... murmurava no intimo. Eu a contemplei, como se contempla uma luz brilhante: ve-se a chamma, o esplendor; e nem se repara no espectro que a flamma envolve como uma roupagem. Ella é minha luz; não sei a côr e a fórma que tem, mas sei que scintilla, que me deslumbra; que innunda meu ser de uma aurora celeste. Não poderia descreve-la, como um poeta... Mas que importa? Pois que eu a sinto em mim; pois que eu a possuo em meu coração?

As palpebras do mancebo cerrarão-se coando apenas uma restea de olhar, que se embebia nas alvas espiras da fumaça do charuto. Percebia-se que naquella nevoa se debuxava á sua imaginação a seductora imagem, deante da qual elle cahia em extases de uma doçura ineffavel.

—Quem sabe? Talvez não seja ella o que nos bailes se chama uma moça bonita; talvez não tenha as feições lindas e o talhe elegante. Mas eu a amo!... O amor é sol do coração; imprime-lhe o brilho e o matiz! Venus, a deosa da formosura, surgindo da espuma das ondas, não é outra cousa senão o mytho da mulher amada, surgindo d'entre as puras illusões do coração! O que eu admiro nella, o que me enleva, é sua belleza celeste; é o anjo que transparece atravez do envolucro terrestre; é a alma pura e immaculada que se derrama de seus labios em sorrisos, e a envolve como a scintillação de uma estrella.

Leopoldo já não estava só na existencia; tinha para acompanha-lo na esperança essa doce apparição; como para partilhar a saudade tinha a memoria querida de sua irmã. O coração aproximou as duas imagens; ligou-as por algum vinculo misterioso; e creou assim uma familia ideal, em cujo seio viveu para o futuro, como para o passado.

Nas horas do trabalho, o moço absorvia-se completamente nas occupações habituaes e cerrava sua alma para não deixar que as miserias do mundo ahi penetrando profanassem o templo de sua adoração; o templo da esperança e da saudade. Fora dessas longas horas, encerrava-se naquelle asylo e ahi vivia.

Alguns dias depois do encontro da rua da Quitanda, o Castro percorrendo distrahidamente os jornaes da manhã, deu com os olhos sobre os annuncios de espectaculo, cousa que desde muito tempo não existia para elle. Representava-se no theatro lyrico a Lucia de Lamermoor, o mais sublime poema de melancolia, que já se escreveu na lingua dos anjos.

O mancebo teve um desejo irresistivel de ir aquella noite ao espectaculo, apezar de conservar ainda o luto pesado. Não comprehendia esse capricho de seu coração; attribuiu ao encanto das reminiscencias daquella musica tão triste, e tambem daquelle amor tão estremecido, que os homens quizeram romper, mas a fatalidade uniu para sempre no tumulo. Elle ia saturar-se de tristeza; não havia, portanto, profanação de uma dôr santa.

Eram perto de dez horas: cantava-se o final do segundo acto da opera, e Leopoldo, sentado em uma cadeira, do lado direito, estava completamente absorvido no canto magistral de Lagrange e Mirate. Um momento, porém, ergueu os olhos, e volvendo-os lentamente, fitou-os em um camarote da segunda ordem. Estremeceu; o olhar morno e baço que se escapava de sua pupilla illuminou-se de fogos sombrios e ardentes.

Vira a mulher amada.

Amelia estava nessa noite em uma de suas horas de inspiração; a mulher bella tem, como o homem de intelligencia, em certos momentos, influições energicas de poesia; nessas occasiões ambos irradiam; a mulher fica esplendida, o homem sublime.

O talhe esbelto da moça desenhava-se através da nivea transparencia de um lindo vestido de tarlatana com laivos escarlates. Coroava-lhe a fronte o diadema de suas bellas tranças, donde resvalavam dois cachos soberbos, que brincavam sobre o collo. Os cabelleireiros chamam esses cachos de arrependimentos, repentirs. Por que motivo? A alma que se arrepende convolve-se daquella fórma; o pezar a confrange. Já se vê que os cabelleireiros tambem são poetas.

Não foi, porém, o suave perfil da moça, nem os contornos macios de suas fórmas gentis, o que arrebatou o espirito do mancebo. Elle só viu a luz, o brilho d'alma, rarejando do sorriso. Contemplava a rosa, embebia-se nella, sem contar-lhe as petalas.

Amelia, que apoiava o lindo braço sobre a almofada de velludo da ballaustrada, prestava attenção á scena, recolhendo ás vezes a vista para discorrel-a vagamente pelos camarotes fronteiros. Depois que o panno cahiu, conservou-se na mesma posição, conversando com sua mãi e Laura que ali estava de visita. Então voltou rapidamente o rosto, e deixou cahir sobre a platéa um olhar subito e vivo. Foi uma centelha electrica, listrando no espaço, para logo apagar-se.

Revelou-se no semblante da moça alguma inquietação e visivel incommodo. Quiz disfarçar, mas afinal ergueu-se, para occultar-se no interior do camarote, por detrás de Laura, a qual occupava o outro logar da frente.

O olhar que deitára á platéa encontrou o olhar profundo e ardente de Leopoldo; e batendo de encontro a esse raio brilhante, reagiu como estylete para feril-a no coração.

Leopoldo notou vagamente esse movimento; mas como entre a columna e o busto de Laura elle via a sombra da mulher a quem amava, não se interrompeu seu enlevo. De vez emquando passava-lhe pelo rosto um lampejo subtil, no qual presentia o olhar furtivo da moça.




V

Estava a subir o panno.

Amelia resolvêra ficar onde estava, e não tomar o logar da frente, apezar de Laura ter voltado a seu camarote. Mas essa resolução, tão solidamente calcada em seu coração, cahiu de repente: bastou um olhar. Vira na platéa, encostado á balaustrada da orchestra, um elegante cavalheiro.

Era Horacio.

O sorriso brando que manava dos labios da moça, como a onda pura e christalina de um ribeiro, desappareceu então sob outro sorriso mais brilhante, que borbulhava como a frol da cascata. Era o sorriso da vaidade, como o outro era da innocencia.

A moça collocou-se na frente, fazendo realçar com a graça de seus movimentos a suprema elegancia do talhe. Demorou-se mais do que era preciso nesse acto; e sentando-se, houve em seu corpo um impulso quasi imperceptivel de mysteriosa expansão. Dir-se-hia que ella se queria debuxar no quadro illuminado do camarote.

A causa desse elance não o adivinham? O leão tinha assestado seu binoculo de marfim; e a moça com um irresistivel assomo de faceirice abandonava-se ao olhar do mancebo.

Durante o acto, Amelia distrahiu mais a attenção do semblante pallido de Leopoldo. Enleiava os olhos na figura elegante de Horacio; prendia-se ao fino buço negro que sombreava o labio desdenhoso do leão; embebia-se toda na graça de sua attitude: tentando assim resistir a curiosidade incommoda que attrahia sua attenção para o importuno desconhecido.

Não sei porque, Leopoldo, cuja adoração era infatigavel como a emanação de uma chamma perenne, sentia naquella occasião a necessidade de dar um repouso a sua contemplação. Então como si a luz que o deslumbrava se fosse tornando mais doce, elle pôde vêr destacar-se o perfil gracioso da moça.

—Tem o cabello castanho! É pena! Acreditava que a mulher a quem amasse algum dia, havia de ser loura. É a côr do reflexo da luz, deve ser a côr desse véo casto que Deus fez para o pudôr. A madeixa foi dada á mulher para recatar a face que enrubece e o seio que palpita; essa gaza preciosa deve ser de ouro, ou antes de graça e esplendor.

O moço já não olhava para Amelia; com as palpebras cerradas estava agora vendo-a na penumbra d'alma.

—Mas para mim é indifferente que tenha o cabello castanho; podia têl-o negro como a treva. Eu a amo, amo sua alma, sua essencia pura e immaculada! Si Deus me enviou um anjo para consolar-me em minha afflicção; para amparar-me em meu isolamento; para encher de ineffaveis jubilos meu ser saturado de amarguras; posso eu queixar-me porque o Senhor o vestiu de uma simples tunica de lã, e não de um sumptuoso manto de ouro? Eu gostava dos cabellos louros: pois agora só gosto, só quero, só vejo uns cabellos castanhos, porque pertencem a ella, s'impregnam de seu perfume, e respiram seu halito!

Terminára o acto. Leopoldo, contemplando a moça, pela primeira vez lembrou-se de saber quem era, na sociedade, aquella mulher que lhe pertencia pelo pensamento. Tinha-se habituado a consideral-a como uma cousa sua; parecia-lhe que ninguem mais existia sinão elles dois.

Volveu os olhos em busca de algum conhecido, a quem dirigisse a pergunta. Não encontrou: mas ao cabo de alguns instantes descobriu o leão em seu posto.

—Ah! lá está Horacio, que póde me informar. Elle conhece todo o mundo! Justamente agora pôz o binoculo para o camarote.

Como desejava sahir, dirigiu-se para aquelle lado; mas o leão, inquieto e preoccupado, sahira açodadamente, e subia de um pulo as escadas que o separavam da segunda ordem.

—Aquella mão é irmã do meu adorado pesinho! Não tem a graça delle, sem duvida, nem se compara com aquelle mimo de amor; mas ha um certo ar de familia, um quer que seja!...

Assim cogitando, Horacio chegára á porta de um camarote, e pela fresta fitára com disfarce o olhar em Laura, cuja mão, excessivamente pequena, e calçada por uma luva muito justa, custava a segurar o binoculo de madreperola.

O moço, apenas reconheceu o vestido de seda violeta, e a mãosinha que lhe servira de phanal, abaixou o olhar para a fimbria do vestido a vêr si descobria alguma cousa, o peito, a ponta, a sombra, ao menos, do pesinho mimoso, do idolo de sua alma. Mas não foi possivel: o vestido arrastava no chão; nenhum movimento fazia ondular a seda; e comtudo o mancebo ali ficou immovel, palpitante de emoção, como si esperasse dos labios da mulher amada o monosyllabo que devia dicidir de seu destino.

A paixão que o mancebo concebêra pela dona incognita da botina achada, longe de se desvanecer, adquirira uma vehemencia extrema. Horacio, o feliz conquistador, o coração fogoso e inflammavel, nunca ardêra por mulher alguma, como agora ardia por aquelle pesinho idolatrado. Era um verdadeiro amor de leão, terrivel e indomito; era um delirio; uma raiva.

Seus amigos já não o reconheciam; elle apparecia nos bailes, nos theatros, nos pontos de reunião, de relance, como um meteoro, seguindo após uma idéa fixa, ou uma sombra que fugia diante de seus passos. Conversou-se muito na rua do Ouvidor á este respeito. Uns attribuiam o facto inaudito á primeira derrota.

—Horacio, dizia um de seus amigos, como Napoleão, só devia ser derrotado uma vez. Mas essa vez foi Waterloo!

—Que pensa então?

—Que o pobre rapaz caminha para o seu rochedo de Santa Helena. Ou casa ahi com alguma mulher feia e rica, ou engorda como um cevado.

Outros lembravam-se de algum desarranjo de fortuna, ou de alguma velleidade politica, para explicar o mysterio. Mas sabia-se que o moço tinha bom e seguro rendimento; e quanto á politica, elle a comparava a uma embriaguez causada pela mais ordinaria zurrapa de taberna.

Muitas vezes disse, gracejando, a seus amigos:

—Quando me quizer embriagar, em vez de zurrapa, beberei champanhe. É mais fino, e tambem mais barato, porque não deixa uma irritação de estomago, cujo preço é muito superior ao de uma caixa de melhor cliquot.

A causa real da mudança do leão ninguem, pois, a sabia, nem a suspeitava.

Depois da achada da botina, sua vida tomara um aspecto muito differente. Naquella mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar, mandou apromptar o tilbure e voltou á cidade. Seu apparecimento áquella hora na rua do Ouvidor causou extranheza; um leão de raça, como elle, não passeia ao escurecer, sobretudo no centro do commercio, onde só ficam os que trabalham. Seria misturar-se com os leopardos que aproveitam a ausencia dos reis da moda, para restolhar alguma caça retardada.

Correu Horacio todas as lojas de calçado á procura de informações. Para disfarçar sua paixão, inventou uma aposta, como pretexto á sua curiosidade. A um freguez como elle não se recusava tão pequeno favor, sobretudo quando levava o sainete de uma anecdota de bom tom. A todos elles o leão se dirigia mais ou menos nestes termos:

—Fiz uma aposta com uma senhora. Que em todo o Rio de Janeiro não se encontram tres moças de 18 annos que calcem n. 29. Tenho todo o empenho em ganhar a aposta, não tanto pelos botões de punho, como porque, si ella perder, ha de ser obrigada a mostrar-me seu pé, para eu verificar si é realmente desse tamanho. Peço-lhe, pois, que me dê uma nota das freguezas a quem costuma vender calçado deste numero.

Nesta pesquiza gastou Horacio muitos dias, sem colher o menor resultado. Os poucos pares de calçado n. 29, vendidos pelas differentes lojas, eram destinados á meninas de doze annos ou a pessoas desconhecidas, cuja idade se ignorava. Apezar de tudo o leão não desanimava; todas as manhãs, ao acordar, levantava um plano de campanha, que punha em pratica durante o dia.

Horacio sentira-se de repente tomado de indefinivel ternura por uma classe; de que antes só lembrava-se para amaldiçoal-a: a classe dos sapateiros. Quando via um sujeito de avental de couro e sovella, o leão sentia-se attrahido para aquelle individuo, que talvez encerrasse o segredo de sua felicidade, seu futuro, sua existencia. Outras vezes, porém, tinha de repente uns accessos de ciume selvagem. Lembrando-se que esse operario talvez já houvesse tomado medida ao adorado pésinho; que essas mãos calosas teriam tocado a cutis assetinada do anjo de seus pensamentos; o mancebo sentia em si o furor de Othello e procurava um punhal no seio; felizmente só achava a carteira, a adaga de ouro com que neste seculo se assassina mais cruelmente.

Depois de consumir as horas em suas indagações, ia contemplar a botina, prenda querida de seu amor e proseguia á noite sua porfia incansavel. Corria os espectaculos e bailes, com o olhar rastejando para descobrir por baixo da orla do vestido, o ignoto deus de suas adorações. Não dansava para observar melhor o arregaçado dos vestidos; de ordinario andava pelas escadas e portas, afim de aproveitar o ensejo da subida e descida; muitas vezes ia fumar junto ao logar onde se collocavam os lacaios, na esperança de conhecer o portador da botina.

Quando as rainhas da moda, as deusas do salão, sorprezas e attonitas o viam passar sem distinguil-as com uma palavra ou uma fineza, elle, atirando-lhes um olhar de compaixão, dizia comsigo:

—Coitadas! não sabem que o leão viu a pata da gazella e fareja-lhe o rastro. Que lhe importam as garras da panthera?...

Recolhendo, Horacio accendia duas velas transparentes e collocava-as a um e outro lado da almofada de velludo escarlate, sobre uma mesinha de charão, embutido de madreperolas. Tirava de um elegante cofre de platina a mimosa botina, e com respeitosa delicadeza deitava-a sobre a almofada, de modo que se visse perfeitamente a graciosa fórma do pé que habitara aquelle ninho de amor.

Então accendia o charuto, sentava-se n'uma cadeira de espreguiçar, defronte, porém, distante, para que o fumo não se empregnasse na botina, e ficava em muda e arrebatada contemplação até alta noite.

Sobre aquella botina via elevar-se como sobre um pedestal, um vulto de estatua, mas vago, indistincto; e comtudo esse esboço sem fórmas seductoras, aquella sombra sem alma e sem calôr lhe parecia de uma belleza deslumbrante. Não era ella a mulher a que pertencia o mais formoso pé do mundo, o mimo, a obra prima da natureza?

Recordava-se das mulheres mais bonitas que tinha visto, das mais lindas senhoras a quem amára com paixão, e sua memoria as trazia todas, uma após outra, para as collocar ao lado daquella figura vaga e desvanecida, que plainava sobre a almofada, como sobre uma nuvem de ouro. Como ellas fugiam abatidas e humilhadas diante de seu impetuoso desdêm!

—Não são dignas, murmurava elle, nem de beijarem o chão pisado pela fada desta botina!

Eis qual tinha sido a vida de Horacio até o momento em que o vamos encontrar no mesmo logar defronte da porta entreaberta do camarote. Laura percebeu-o afinal, e sorriu-lhe com ternura. A attenção do rei da moda era uma fineza, um ar de seu real agrado; cumpria-lhe agradecer.

Fitando com mais força o olhar na pupilla da moça como para travar-lhe da vontade, Horacio abaixou lentamente esse olhar até a fimbria do vestido de chamalote com uma insistencia significativa. Laura fez-se escarlate; e a porta do camarote, rapidamente fechada, a subtrahiu ás vistas ardentes do leão.

—É ella! exclamou o coração do mancebo afogado em jubilo. Não ha duvida. Para sentir esse pudor exagerado e incomprehensivel é preciso ter ali occulto um pé como aquelle que eu sonhei. Um pé?... Não; um mimo, uma maravilha, um thesouro, um céo!... É o pudor da violeta, que se esconde na sombra; é o pudor da perola, occulta na concha; é o pudor do diamante, sumido no seio da terra; é o pudor da estrella, immergindo-se no azul.

O leão desceu as escadas murmurando:

—Vêl-o e morrer.

Pouco depois terminou o espectaculo. Amelia com um resaibo de melancholia na fronte, embuçou-se na pellissa e desceu. Ella perdêra de vista Horacio, e só o tornára a vêr parado em frente á porta do camarote de Laura. Desamparada pelo encanto do gentil mancebo, soffrêra todo o resto do espectaculo o desassocêgo que lhe incutia o olhar de Leopoldo. Por mais que voltasse o rosto sentia a phosphorecencia estranha desse olhar repulsivo, que entretanto a prendia, máo grado seu.

Leopoldo esperava no corredor da entrada a passagem da moça, quando avistou a seu lado Horacio. O leão soffrego e impaciente, volvia o olhar em varias direcções; naturalmente procurava alguem, e receiava que lhe escapasse.

—Adeus, Horacio.

—Boa noite, Leopoldo.

Amelia appareceu nesse momento.

—Conheces aquella moça, Horacio?

Horacio tinha avistado Laura, que descia o lanço da escada opposta, e corrêra pressuroso, com os olhos fitos na fimbria de sêda. Seu olhar tinha tal força que parecia um croque a levantar a orla do vestido. Debalde; nem a sombra do pé: o encorpado estôfo arrastava pesadamente pelo chão.

Chegou a moça á porta, onde o carro a esperava. Horacio teve um vislumbre de esperança; porém nova decepção o esperava. Não viu mais do que uma nuvem de sêdas ondular e sumir-se.

O leão fez um movimento de desespero.

—Senhor! porque em vez de homem, não me fizeste estribo de um carro! Teria a felicidade de ser pisado por aquelle pesinho.




VI

Seriam duas horas da tarde.

Durante a manhã tinha cahido sobre a cidade uma forte neblina, que molhára as calçadas.

Leopoldo dirigia-se á casa, pela rua dos Ourives. Naturalmente vinha pensando na desconhecida, que não vira desde a noite do theatro. Sua paixão era intensa e ardente; mas vivia de si mesma, nutria-se da propria seiva. Esperava com plena confiança na pureza de seu amor.

Á pequena distancia do canto da rua do Ouvidor, viu elle de repente a moça que passava na companhia de outras pessoas. Amelia voltára o rosto. Seu olhar cruzou rapidamente com o olhar do mancebo. Ela estremeceu com o costumado calafrio, e acelerou o passo.

Vendo-a sumir-se, encoberta pela esquina, o mancebo tambem se apressou para acompanhal-a; mas chegou tarde. A moça e as pessoas, que iam em sua companhia, acabavam de entrar em um carro: na elegante victoria que já conhecemos. Leopoldo apenas vira um pé, que na precipitação de subir, levantára demais a saia.

Sem consciencia do que fazia, precipitou-se para a portinhola do carro. O lacaio que a fechava nesse momento, embargou-lhe o passo. Quando o carro partiu na direção de São Francisco de Paula, Amelia inclinou-se e lançou de esguelha um olhar vivo para a esquina.

Leopoldo ficára na calçada immovel e extatico de sorpreza.

O pé que seus olhos descobriram, era uma enormidade, um monstro, um aleijão. Ao tamanho descommunal para uma senhora, juntava a disformidade. Pesado, chato, sem arqueação e perfil, parecia mais uma base, uma prancha, um tronco, do que um pé humano e sobretudo o pé de uma moça.

Os traços especiaes da beleza de Amelia não tinham deixado na memoria de Leopoldo a minima impressão, da primeira vez que a vira, apesar de contemplal-a demoradamente. Entretanto o defeito não lhe escapou, embora passasse de relance diante de seus olhos.

Parece uma singularidade; mas não é. Ninguem conta as petalas da flôr que admira; ninguem repara na fórma especial de cada uma das partes de que se compõe um todo gracioso; porém a menor mácula se destaca immediatamente.

É por isso que certos homens, não podendo distinguir-se entre a gente sisuda e honesta, fazem-se nodoas da sociedade; tornam-se vicios e torpezas. Assim adquirem a celebridade, que não obteriam com sua virtude ambigua e seu mesquinho talento.

O Castro, que não admirara o matiz da rosa, notou a mácula e desgostou-se della. Elle sentia-se com forças para amar o feio e o desgracioso, mas não o disforme, o horrivel. Essa aberração da figura humana, embora em um ponto só, lhe parecia o symptoma, senão o effeito, de uma monstruosidade moral.

Triste, acabrunhado por pensamentos acerbos, o moço continuou seu caminho pela rua dos Ourives em direcção á casa. Mal havia andado alguns passos, arrependeu-se; não queria levar á sua habitação esse primeiro transbordamento de um dissabor tão profundo; era melhor deixal-o escoar-se, antes de recolher á solidão habitual. Si tivesse alguma cousa a fazer! Qualquer occupação bem aborrecida e massante, que lhe servisse de antidoto ao desgosto intimo!

Excogitou. Havia ali perto, na rua Sete de Setembro, uma pequena loja de sapateiro, ou antes uma tenda; porque além do balcão via-se apenas uma tosca vidraça, contendo a obra de tres officiaes que ahi trabalhavam.

A loja pertencia a um mestre fluminense, que trabalhára por algum tempo na casa do Guilherme e do Campàs, e se iniciára portanto em todos os segredos da arte. Ninguem a exercia com mais habilidade, esmero e enthusiasmo do que elle; sua obra, quando queria, não tinha que invejar ao producto das melhores fabricas de Pariz, si não o excedia na elegancia e delicadeza.

A razão cardeal de toda a superioridade humana é sem duvida a vontade. O poder nasce do querer. Sempre que o homem applique a vehemencia e perseverante energia de sua alma á um fim, elle vencerá os obstaculos, e si não attingir o alvo, fará pelo menos cousas admiraveis. Mas para que o homem se entregue assim á uma idéa e se captive á um pensamento, é necessario ser attrahido irresistivelmente, ser impellido pelo enthusiasmo.

É o enthusiasmo que faz o poeta e o artista, o sabio e o guerreiro; é o enthusiasmo que faz o homem-idéa differente do homem-machina. A fabula de Prometheo não exprime sinão a allegoria desse fogo celeste d'alma, que anima as estatuas de Galathea, embora depois dilacere o coração como a aguia do rochedo. Uma faisca dessa electricidade moral, opera maravilhas iguaes á centelha do raio. O que é o telegrapho a par com a eloquencia?

O Mattos tinha o enthusiasmo de sua arte; descobrira nella segredos e encantos desconhecidos aos mercenarios. Para elle o calçado era uma esculptura; copiava em seda e couro, assim como o cinzel copia em gesso e marmore. Os outros artistas da fórma reproduzem todo o vulto humano ou pelo menos o busto; elle só tinha um assumpto, o pé. Mas que importancia não tomava á seus olhos esta parte do corpo! Era preciso ouvil-o, em algum momento de arroubo, para fazer idéa de sua admiração por esse membro nobre da creatura racional.

Depois de trabalhar muitos annos em casas francezas, o mestre fluminense resolveu estabelecer-se por sua conta. Alugou uma pequena loja de duas portas, onde trabalhava com dois officiaes. A necessidade de ganhar o pão o obrigava á tornar-se mercenario, fazendo obra de carregação para vender barato. Mas no meio dessa tarefa ingrata tinha elle suas delicias de artista. Meia duzia de freguezes, conhecedores da habilidade do sapateiro, preferiam seu calçado ao melhor de Pariz, e o pagavam generosamente. Essas raras encommendas, o Mattos as executava com enlevo; revia-se em sua obra, verdadeiro primor.

Leopoldo não era um freguez da ultima classe; elle não conhecia a voluptuosidade de um calçado macio, antes luva do que sapato; seu pé não era um enfant gaté, um benjamim acostumado á essas delicias; desde a infancia o habituára á uma vida rude e austera entre a sola rija e o bezerro. Além de que seus haveres não chegavam para taes prodigalidades.

O moço pertencia á classe dos freguezes da obra de carregação, e preferia a loja do Mattos, pela modicidade do preço, e boa qualidade do cabedal, como do trabalho.

Que mysteriosa associação de idéas trouxera á lembrança de Leopoldo naquelle momento a tenda do sapateiro; e por que motivo se dirigiu elle para ali onde estivera na vespera, e não para qualquer outro logar, em que poderia melhor espancar seu dissabor?

O motivo nem elle mesmo o sabia naquelle instante.

—Bom dia! As botinas estão promptas? disse entrando.

O Mattos, que attendia á alguns freguezes perto da vidraça, olhou-o sorpreso:

—Não disse hontem a V. S. que só para o fim da semana?

—É verdade!

—Tinha entre mãos esta encommenda. Mas já acabei; agora posso ajudar os companheiros.

O Mattos indicára alguns pares de calçado que estavam no mostrador sobre folhas de papel, e promptos a serem embrulhados.

Leopoldo, chegando-se para o balcão, principiou a examinar a obra acabada, com a distrahida curiosidade de quem deseja esperdiçar alguns momentos, para escapar a um aborrecimento ou para apressar um prazer. Era trabalho fino do mestre, e comtudo não excitaria grande attenção da parte do moço, si não fosse um par de botinas de senhora já usadas e meio encobertas pelo papel com outra obra. A medida era enorme no comprimento e na altura; por isso, como pelo feitio, devia excitar-lhe reparo.

Na vespera quando viera á loja, casualmente observára a obra que o Mattos estava acabando. Vendo ha pouco na rua do Ouvidor o pé monstruoso da moça, tivera uma confusa e tenue reminiscencia das botinas da loja. Fora esse o fio mysterioso que o conduzira insensivelmente áquella casa. Agora comprehendia a encadeação: a botina monstro pertencia sem duvida ao pé aleijão.

Leopoldo depois que entrevira sob a orla do vestido o pé da moça, ainda alimentava uma duvida, que pretendia cevar com todas as subtilezas e argucias de seu espirito. Talvez elle visse mal; talvez a sombra, o estribo do carro, qualquer outro objecto o tivesse illudido. O aleijão só existia em sua imaginação; fôra um desvario dos sentidos. Com effeito, como suppôr que uma senhora podesse andar graciosamente com semelhante pata de elephante?

Mas as botinas ahi estavam sobre o balcão que não lhe deixavam a menor duvida. O pé disforme existia; era aquelle o seu molde, o seu corpo de delicto, e por elle se podia vêr quanto devia ser horrivel a realidade. Agora Leopoldo podia apreciar os traços parciaes que lhe tinham escapado pela manhã; esse pé era cheio de bossas como um tuberculo; não arremedava nem de longe o contorno dessa parte do corpo humano: era uma posta de carne, um cepo!

Junto dessa deformidade morta, inventada para cobrir a deformidade viva, havia outra obra que chamára a attenção do mancebo por sua singularidade. Á primeira vista, era um volume semelhante ao das botinas monstruosas, embora de linhas regulares: parecia uma ligeira almofada preta sobre a qual se elevasse uma botina de senhora, muito elegante apezar de comprida. O tubo cinzento ficava occulto sob frocos de setim escarlate. Do rosto ao bico descia um galho de rosas, cujas hastes cingiam graciosamente, como uma grinalda, toda a volta do pé até o calcanhar.

Uma das botinas ainda tinha dentro a fôrma; emquanto a outra já estava sem ella. Naturalmente o Mattos procedia áquella operação quando foi distrahido pelos freguezes e compradores: deixára-a pois em meio, deitando em cima da obra, para encobril-a, uma folha de papel.

A fôrma não podia passar desappercebida ao observador. Vendo pouco antes a botina disforme, Leopoldo a tinha considerado o modelo exacto do pé monstruoso, que elle avistára. Enganara-se; a botina era já o disfarce, a mascara do aleijão. Sua cópia ali estava em horrivel nudez, no grosseiro tôco de páo, cheio de buracos e protuberancias.

Mas si essa observação acabou de esmagar o coração do mancebo, levou insensivelmente seu espirito á apreciar pela primeira vez a superioridade do Mattos em sua arte. Ali estava a imagem do aleijão, e o calçado que outros sapateiros lhe fariam para cobrir a monstruosidade, sem a dissimular. Entretanto o mestre fluminense conseguira, por um esforço feliz, desvanecer a deformidade sob a apparencia de uma botina elegante.

A almofada sobre que parecia descansar a botina era um solado alto, porém occo, onde as carnes molles do pé monstruoso, comprimidas pela botina superior, podiam abrigar-se.

Os frocos de setim e as grinaldas de rosas enchiam as covas e desvaneciam as protuberancias osseas, com muita delicadeza, sem avolumar o tamanho do cothurno. Na sola negra se debuchava, em proporção á botina superior, a alva palmilha, com seus contornos harmoniosos; de modo que olhando-se andar a pessoa, não se perceberia facilmente o tamanho do calçado.

Acabára o Mattos de aviar os freguezes, e chegando-se para o balcão, incommodou-se com vêr o moço a observar a obra; ia talvez interrompel-o rispidamente, quando percebeu em seu rosto uma expressão viva de ardente admiração. O artista ficou lisonjeado com esse elogio tão eloquente em sua mudez; e á contrariedade succedeu a satisfação do amor proprio.

Foi Leopoldo, que, percebendo junto de si o sapateiro parado, afastou-se do balcão, receiando ter sido indiscreto. Ia sahir, quando entrou na loja um lacaio de libré azul com vivos de escarlate e branco. O mancebo o reconheceu pelas feições; era o mesmo que o impedira de chegar á portinhola do carro, na rua do Ouvidor.

—Ah! exclamou o Mattos, avistando o criado. Está quasi prompto.

—Não posso esperar! replicou o lacaio com a insolencia do rafeiro de casa rica.

—É só embrulhar.

Leopoldo disfarçava; fingindo olhar o calçado exposto na vidraça, viu de esguelha o sapateiro tirar a fôrma da outra botina, bater o ponto e dar o ultimo polimento á sua obra; feito o que arranjou o embrulho.

—Está bem amarrado? perguntou o lacaio. Olhe que da outra vez já se perdeu uma botina por sua causa, e eu é que levei a culpa.

—Não tenha susto; desta vez está bem seguro; respondeu o Mattos.

Foi-se o lacaio; e Leopoldo com o semblante carregado de tristeza, despediu-se, arrependido de ter ido á loja. Que saudades tinha da sua duvida!

—A duvida, pensava elle, é ainda um raio de esperança!




VII

A esse tempo Horacio, sentado em uma poltrona na casa do Bernardo, fumava o seu conchita, com o olhar, ora na calçada, ora no espelho fronteiro, á espreita do menor vulto de mulher.

O leão pensava:

—Choveu; as ruas ainda estão molhadas. Qual é a senhora que tendo um pé mimoso e uma perna bonita não aproveita um destes dias para atravessar a rua do Ouvidor? Si deixarem escapar estes pretextos de mostrar semelhantes maravilhas, morrerão ellas desconhecidas, apenas vistas por um dono avaro, mas nunca admiradas, porque a admiração é sentimento que precisa da luz plena, da grande expansão. Si a Venus de Praxisteles existisse, mas só para mim, palavra de honra que sua belleza não excitaria em minha alma o menor enthusiasmo.

Nessa occasião Amelia passava diante da loja, e voltando-se recebeu a cortezia do leão, a quem respondeu com um sorriso amavel. Parando na vidraça, achou ella pretexto para entrar; e comprou uma galanteria. Durante esse tempo Horacio recebeu por diversas vezes o olhar e o sorriso da moça.

Acompanhando com a vista o passo airoso e subtil de Amelia, Horacio exclamou, dirigindo-se ao caixeiro do Bernardo:

—Que passo gracioso! É o andar da garça!

Estas palavras foram ditas em voz bastante alta, para que a moça ouvisse; um ligeiro estrecimento que se notou na suave ondulação do talhe revelou que o leão lográra seu desejo. A moça ouvira com effeito a fineza.

Recostado de novo na poltrona o leão continou a pensar:

—Realmente, que elegancia no andar! Eu seria capaz de apostar que esse andar era do pésinho, do meu adorado pésinho, si já não tivesse descoberto a dona do primor. Mas Laura não vem!... O criado me disse que ao meio-dia, e é quasi uma hora! Terá mudado de resolução?... Não duvido; com aquelle zêlo feroz que tem por sua joia, talvez não quizesse vir para não ser obrigada a mostral-o. Um avaro não fecha com mais cuidado a burra, do que ella esconde seu thesouro. Que peccado! Subtrahir ao mundo essa maravilha que Deus fez para ser admirada! Ah! eu desejava ser uma nação; assim como ha demonios-legiões, por que não podem haver homens-povos? Si o fosse, daria um throno á essa mulher, sómente para que ella instituisse o beija-pé. Como eu seria cortezão! Como eu a beijaria por minhas cem bocas de subdito!

O mancebo sobresaltou-se; vira uma sombra que assomava no espelho fronteiro. Era Laura.

Que devia fazer? Correr á porta para ser visto pela moça ou deixar-se ficar na poltrona para melhor descobrir o pé adorado?

A attitude do leão revelava a hesitação de seu espirito; com o corpo lançado á frente parecia fazer um esforço para se conservar sentado. Laura, que de seu lado já o tinha avistado no espelho, ficára em um estado de perturbação indizivel.

—Que tem prima? perguntou-lhe um senhor que a acompanhava.

—Nada! balbuciou a moça.

A principio Laura fizera um movimento para recuar, mas arrependendo-se avançou com affouteza, e passou rapidamente pela frente da loja, sem volver um olhar para dentro. Por mais que o leão se derreasse na poltrona, não logrou vêr cousa alguma; a senhora arrastava a fimbria do vestido pela calçada coberta de lama, com o mesmo descuido que teria si caminhasse sobre rico tapete.

—Está zangada commigo; está furiosa! Desde a noite do theatro que não me póde vêr; e parece que preparou-se para o assalto, porque achei as avenidas da praça já tomadas e vigorosamente defendidas. A mucama é uma Gorgona, o porteiro um Cerbero; apenas consegui abrandar o moleque, porque é um idiota!... Nunca vi uma ferocidade igual; creio que a leôa da floresta não defende seu cachorrinho com sanha igual á desta leôa de sala. Parece incrivel; mas eu conheço de quanto é capaz a vaidade da mulher. Todo este furor não é mais do que um assomo de faceirice; percebeu que estou apaixonado pelo pésinho mimoso, e quer-me trazer atado como um captivo á seu carro de triumpho. Realmente uma moça bonita não póde ter maior satisfação; vêr-me a mim, Horacio de Almeida, o primeiro conquistador do Rio de Janeiro, curvar-se humilde, não á seu olhar, á seu sorriso, á belleza de seu rosto, ou á graça de seu talhe, mas á planta de seus pés divinos! Fazer-me tapete de seus passos!... Que póde mais desejar a rainha dos salões fluminenses?

O moço mordeu a ponta do bigode negro, e ficou alguns instantes muito pensativo.

—É preciso mudar o plano de ataque! Comecei á maneira do Cesar, atacando com impetuosidade. Vou contemporisar conforme a escola de Fabio; simúlo uma retirada; o inimigo avança, eu o envolvo; corto-lhe a retirada, e elle rende-se. Arraso o Humaitá daquelle vestido que defende o meu pésinho adorado como uma casamata. A indifferença é a serpente tentadora da mulher.

Em consequencia destas reflexões, Horacio deixou-se ficar onde estava, e não seguiu a moça. Quando suppôz que ella já ia distante, foi procurar algures, em um bilhar o preservativo contra a tentação de cortejal-a, ou antes a seu pésinho.

—Ella hade reparar no meu eclipse! murmurou com certa confiança.

Entretanto, Laura, descendo a rua do Ouvidor, encontrára pouco adiante, na casa do Masset, Amelia em companhia da mãi. As duas amigas não podendo vir juntas tinham ajustado seu encontro para aquelle ponto. O primo despediu-se, e as senhoras continuaram seu itinerario pelas differentes lojas e casas de modas.

Ao cabo de duas ou tres horas, tomaram o carro que estava parado proximo á rua dos Ourives e partiram na direcção do Cattete. A poucos passos d'ali, Amelia perguntou ao lacaio sentado na almofada:

—Trouxe?

—Sim, senhora; está ahi dentro.

—Bem!

O carro aproximava-se do largo da Lapa, quando Amelia disse:

—Podiamos ir agora ao Passeio Publico?

—Tão tarde! replicou Laura.

—Deixa-te disso! observou a mãi da moça.

—Porque, mamãi? Ha tanto tempo que lá não vamos.

—Não ha nada de novo.

—Ora eu queria vêr a garça. Ainda não a vi.

—Viste sim!

—Mas não reparei n'uma cousa!...

—Em que!

—Uma cousa. Depois direi.

Tanto insistiu que a mãi cedeu a seu capricho, e deu ordem ao cocheiro que chegasse até o portão do Passeio Publico. As senhoras desappareceram na curva de uma das alamedas do parque, em direcção ao lago. Amelia queria vêr o andar da garça, que Horacio tinha comparado ao seu.

Nessa occasião passava o tilbure do nosso leão, que vinha do lado da Ajuda. Um atropêllo, produzido por uma gondola mal conduzida, ia atirando o tilbure sobre o carro parado no portão do Passeio Publico. Este incidente chamou a attenção do moço para o cocheiro, que derreado sobre a almofada não se movêra.

A memoria apresenta ás vezes um phenomeno curioso; conserva por muito tempo occulta e sopitada uma impressão de que não temos a menor consciencia. De repente, porém, uma circumstancia qualquer evoca essa reminiscencia apagada; e ella resurge com vigor e fidelidade.

Foi o que succedeu a Horacio. Minutos antes por maiores esforços que fizesse para recordar-se da libré do lacaio, portador da botina perdida, não o conseguiria de certo. Entretanto bastou-lhe vêr a roupa do cocheiro, para acodir-lhe immediatamente ao espirito a imagem desvanecida. Era esse o carro, que vira quinze dias antes na rua da Quitanda; não havia duvida.

O leão mandou parar o tilbure e entrou no Passeio Publico; depois de percorrer inutilmente varias alamedas, afinal descobriu entre as arvores, alem do lago, as ondulações dos vestidos de algumas senhoras acompanhadas por um lacaio, e tomou apressadamente aquella direcção.

O terreno estava humido da chuva da manhã; e por isso o pé dos passeiadores deixava o rasto impresso na branca e fina areia das alamedas. Notando esta circumstancia, Horacio procurou o vestigio de alguma botina irmã da que achara, e guardava como uma reliquia; ficou ebrio de contentamento reconhecendo entre muitas pegadas o leve debuxo que deixara no chão o mimoso pésinho.

Si não fosse o anhelo de alcançar as senhoras e reconhecer a dona incognita do thesouro, Horacio se houvera ajoelhado e beijára o rasto da fada de seus amores. Mas as senhoras caminhavam rapidamente para o portão.

Por mais que se apressasse o leão, chegando á sahida, apenas viu o carro que partia. Felizmente adiantando-se pôde reconhecer Amelia, que lhe sorriu e inclinou-se para acompanhal-o com os olhos.

—É ella! Que pateta sou eu! Devia ter adivinhado. A pouco, vendo-a passar pela rua do Ouvidor, tive um presentimento! Aquelle andar cheio de graça não podia enganar.

No dia seguinte o leão fez-se apresentar ao pai de Amelia, abastado consignatario de café, estabelecido á rua Direita. O encontro deu-se na praça do commercio. Horacio ahi foi á pretexto de comprar apolices; e um amigo, corretor de fundos, prestou-lhe aquelle serviço. O negociante offereceu a casa ao moço que acceitou a fineza com effusão de contentamento.

O Sr. Salles Pereira habitava nas Larangeiras uma bella chacara. Amelia era filha unica, e seu dote, convertido em cem apolices, só esperava o noivo. Quanto á mulher, tinha uma boa pensão instituida no montepio geral. Seguro assim o futuro, vivia o negociante com certa largueza, economisando pouco ou nada de seus lucros annuaes.

Quando Horacio teve conhecimento destas particularidades domesticas, sorriu.

—Bem! O meu pésinho tem um dote para seu calçado. Pode andar com luxo!

A primeira vez que Horacio visitou a familia de Pereira Salles, encontrou Laura na sala; a moça fôra passar a noite com a amiga, e conversava jovialmente. Apenas viu o leão, demudou-se; e instantes depois, inventou um pretexto para retirar-se, apezar das instancias de Amelia.

Horacio pouca ou nenhuma attenção deu á mudança que se tinha operado em Laura, e sua retirada repentina. Desde que a moça não era a dona feliz do mais lindo pé do mundo, tornava-se para elle uma creatura indifferente; tanto mais quanto sua alma estava ali de rojo beijando a fimbria de seda, que lhe occultava o tão anciado thesouro.

Em Amelia, varias impressões produziu a apresentação do moço. No primeiro momento acreditou que o leão viera attrahido por ella; mais tarde, lembrando-se do theatro, suspeitou que fosse apenas um meio de aproximar-se de Laura; finalmente occorreu-lhe que podia não passar de um encontro casual de seu pai, e de uma delicadeza da parte de Horacio.

Suas duvidas porém se dissiparam poucos dias depois.

Uma noite a moça, impellida por um movimento de faceirice, soltou estas palavras, no meio de uma conversa com o leão.

—Laura está uma ingrata! Ha tanto tempo que não vem passar uma noite commigo.

Ao mesmo tempo fitava os olhos no moço, para vêr a expressão de sua physionomia.

—É uma fineza de sua amiga, que eu agradeço de coração, respondeu Horacio.

—Uma fineza?... perguntou Amelia presentindo laivos de ironia.

—Quando sua amiga está aqui, a senhora sem duvida não a deixa?

—É muito natural.

—Já vê pois que eu tenho razão. Si ella viesse...

—Diga.

—Eu teria ciumes, D. Amelia.

A moça corou.

—Pois amanhã Laura ha de passar a noite commigo.

Estas palavras foram ditas com o estouvamento da menina, que procura disfarçar um prazer, sob a mascara da contrariedade. Mas a mascara é tão risonha, que não illude.

—Quer-me tanto mal assim? perguntou Horacio. Não admira; uma paixão ardente e impetuosa como eu sinto pela senhora, não devia ter outra sorte. O verdadeiro amor foi e será sempre infeliz; não ha mulher que o comprehenda.

Amelia com as faces á arder não sabia que fizesse; sua mão tremula brincava com as flôres de um vaso, que vacillou sobre o consolo e cahiu no chão. O fracasso da porcelana, despedaçando-se, chamou a attenção das pessoas que estavam na salla; assim rompeu-se o enleio de Amelia.

A moça retirou-se confusa para o interior da casa. Momentos depois entrou de novo na sala, já serena e prazenteira. Seus olhos procuráram Horacio, para offerecer-lhe o meigo sorriso que trazia nos labios.

Esse sorriso dizia em sua eloquencia muda o seguinte:

—Si nunca a mulher soube comprehender o verdadeira paixão, serei eu a primeira.

Foi esta pelo menos a traducção de Horacio, perfeito philologo do amor, e habituado a decifrar esses hyeroglyphos dos labios da mulher.




VIII

Não abandonemos o pobre Leopoldo á sua amarga decepção.

O moço chegára á casa mergulhado na tristeza profunda, que sobre elle derramaram os acontecimentos da manhã. Talvez a morte de Amelia não lhe causasse tamanho pezar, como o daquella cruel decepção que estava presentemente curtindo.

O aleijão excita geralmente uma invencivel repugnancia, repassada de terror. A aberração da fórma humana abate o orgulho do bipede implume, fazendo-o descer á baixo do ourangotango. Ao mesmo tempo, é ameaça viva á uma das mais caras aspirações do homem; a esperança de renascer em outra creatura, gerada de seu ser. Si a fatalidade pezar sobre a prole querida?

Imagine-se que dôr era a do mancebo, quando via a deformidade surgir de repente para esmagar em seu coração a imagem da mulher amada, da virgem de seus castos sonhos?

O contraste sobretudo era terrivel. Si Amelia fosse feia, o senão do pé não passára de um defeito; não quebraria a harmonia do todo. Mas Amelia era linda, e não sómente linda; tinha a belleza regular, suave e pura que se póde chamar a melodia da fórma. A desproporção grosseira de um membro tornava-se, pois, nessa estatua perfeita, uma verdadeira monstruosidade. Era um bérro no meio de uma symphonia; era um disparate da natureza; uma superfetação do horrivel no bello. Fazia lembrar os idolos e fetiches do Oriente, onde a imaginação doentia do povo reune em uma só imagem o symbolo dos maiores contrastres.

Nessa angustia passou Leopoldo o resto daquelle dia e os que se lhe seguiram.

—Não amo a sua belleza material, oh, não! pensava o mancebo. O que eu adoro nella é a belleza moral, a alma nobre e pura, a creatura celeste, a luz, o anjo. Qualquer que fosse o envolucro de seu espirito immaculado, creio que havia de adora-la tanto, como a adorei desde o momento em que primeiro a vi.

«Fosse ella feia para os outros, que chamam formosura o que lhes encanta os sentidos; para mim seria sempre bella, porque meus olhos haviam de vê-la através de seu esplendido sorriso. O que é o corpo humano no fim de contas? O que é o contorno suave de um talhe elegante, e a cutis assetinada de um rosto ou de um collo mimoso? Um pouco de materia á que a luz transmitte a côr, o espirito, e a vida. Tirem-lhe esses dois alentos; e verão que lôdo impuro e nauseante ficam sendo aquellas fórmas seductoras.

«Pois luz e espirito não eram a essencia da alma de Amelia? Quando essa alma a vestia com uma tunica resplandecente, que mulher se lhe podia comparar em lindeza? Então não era sómente formosa, fluctuava em um ether de belleza deslumbrante.

«Mas ella não é feia, é aleijada!...»

Um soluço afogou as tristes locubrações do mancebo. Elle repassou outra vez na mente as circumstancias de sua triste descoberta; quiz duvidar, combateu pertinazmente sua propria razão que lhe apresentava a realidade, e afinal succumbiu, curvando-se á implacavel certeza. Tinha visto uma vez, e como essa não bastasse, o acaso lhe offerecera occasião de apalpar a verdade, e saciar-se della.

—Não se admira a Venus de Milo, uma estatua mutilada? dizia o mancebo reluctando contra sua viva repugnancia. Não se admira o primor da arte grega, apezar de não restar della mais do que uma cabeça e um torso de mulher? Essa bellesa truncada não vale a belleza aleijada? A mutilação não repugna tanto ou mais do que a deformidade?

A razão de Leopoldo não o deixava embalar-se muito tempo nesse pensamento consolador. Replicava logo, refutando vigorosamente as argucias do coração:

—A estatua mutilada, que excita a admiração do mundo, não é a copia integral da belleza que lhe servia de typo; mas um fragmento apenas dessa copia. A alma, que se extasia na contemplação desse fragmento, recompõe o ideal do artista. Admira-se a Venus de Milo, como se admira um esboço não acabado de Raphael; como se admira a petala de uma rosa, arrancada da corolla. Mas, fosse embora aquelle primor da estatuaria a reproducção exacta de uma mulher. A mutilação respeita a bellesa; o aleijão a deturpa. Si a mulher que se ama perdesse um pé seria desgraçada; com um pé monstruoso, é mais do que desgraçada, é repulsiva.

Leopoldo deixava-se convencer por estas sugestões:

—Infelizmente assim é. Mas por que ha de ser assim? A mutilação é um facto humano; o aleijão é um facto natural. Essa aberração do principio creador, esse desvio da fórma primitiva, indicam sem duvida um vicio na essencia do organismo. Não se tem verificado que nos corpos mal conformados de nascença habita sempre uma alma enferma? Nos corcundas sobretudo, porque a espinha dorsal é o tronco da intelligencia. A deformidade de um membro, de um ramo apenas, não denota eiva tão profunda do espirito, é certo, mas revela que a alma não é nobre e superior. Não se concebe o anjo dentro de um aleijão.

O resultado destas cogitações era a gotta de fel esprimido, que ia filtrando á pouco e pouco no coração e acabaria por saturar todas as doces reminiscências dos ultimos dias. Leopoldo convenceu-se que não devia amar a desconhecida; mas, ao contrario, arrancar de sua alma os germens da paixão nascente.

Tomando esta resolução, o moço, que vivia muito retirado depois de suas desgraças de familia, esteve a lembrar-se de algumas antigas relações. Veio-lhe o desejo de cultival-as de novo. Um instincto lhe dizia que para gastar as primicias de um coração virgem, não ha como o attrito do mundo.

Entre as casas que outr'ora frequentava escolheu para a primeira noite a de D. Clementina, amiga intima de sua irmã. Era uma senhora já no declinio da idade e da formosura; gostava muito de dansar, e por isso reunia constantemente em sua sala as moças de sua amizade. Logo que se achavam presentes quatro pares, a dona da casa dava o signal, o marido arredava a mesa do centro, o filho, menino de quinze annos, sentava-se ao piano; e...

Chassé-croisé! gritava D. Clementina.

Nesta casa Leopoldo tinha certeza, não só de ser bem recebido, como de encontrar bastante arruido para aturdir-se, e abafar uns gemidos que sentia ás vezes repercutirem no coração. Tinham decorrido cinco dias depois da decepção: ás oito horas da noite entrou o moço na sala de D. Clementina, que o recebeu com sorpreza cheia de amabilidades.

Além de estimado, acontecia que elle era justamente o quarto par. Tirado o dono da casa, o Sr. Campos, o filho Alfredo, e tres velhas, invalidas da dansa, havia na sala cinco senhoras para dois cavalheiros: servindo uma senhora de cavalheiro, ainda faltava metade de um par.

Quando a campainha annunciou mais uma visita, D. Clementina de olhos fitos na porta da sala, dispoz-se a receber o recem-chegado com o seu mais affavel sorriso. Vendo Leopoldo, correu a elle, e desfolhando-lhe um ramalhete de amabilidades, trançou-lhe o braço; antes que o moço tomasse pé na sala, era arrebatado pela quadrilha, a compasso de galope.

Realmente elle não podia escolher melhor. A agitação daquella dansa rapida, sem pausa; a confusão que os pares creavam de proposito para augmentar a animação; os risos e gracejos que provocavam os menores incidentes da quadrilha; todo esse rumor e atropello tinham por tal fórma sacudido o espirito de Leopoldo, que as idéas e recordações tristes lhe cahiram, como as folhas seccas de uma arvore, abalada pelo vento rijo do outono.

Sentiu o coração vazio, porém tranquillo; o prazer vivo e scintillante daquella reunião, apenas roçava-lhe pela superficie; não penetrava, mas tambem ja não transudavam-lhe do intimo as amarguras de que nos ultimos dias se tinha saturado.

De repente operou-se na perspectiva da sala, uma transformação inesperada. Amelia entrára; e sua graça diffundiu-se como um influxo celeste, no meneio de seu talhe elegante, na suavidade de sua voz, na irradiação de seus olhares.

Leopoldo embebeu-se naquella suave apparição, como da primeira vez que a vira; mas para percorrer em um apice, as phases de seu amor, e cahir de novo na esmagadora decepção.

De repente aquella estatua luminosa escureceu á seus olhos deixando apenas um residuo negro; esqueleto calcinado que arrastava uma deformidade. Debalde Amelia se ostentava no fulgor de sua belleza, toucada pelos primeiros arrebóes do amor; debalde as ondulações de seu corpo debuxavam fórmas encantadoras, e o sorriso de seus labios destillava uma fragancia mystica de beijos puros; os olhos de Leopoldo não viam nenhum desses encantos. Através dos folhos do vestido roçagante, sua vista fitava-se implacavel no pé monstruoso que lhe esmagava o coração como a pata grosseira de um animal.

Todos os encantos dessa creatura, elle os despia de seu manto seductor, e dissecava-os com fria rancor. A inflexão voluptuosa do talhe provinha da resistencia que oppunha ao andar o enorme pé; o passo ligeiro era um esforço supremo para disfarçar o aleijão; o sorriso gracioso um enleio para prender os olhos estranhos, não permittindo que elles se abaixassem até á fimbria do vestido.

E por isso mesmo o olhar de Leopoldo, olhar frio, cruel, inexorável, se tinha cravado na orla da saia elegante, d'onde não havia forças para arrancal-o.

Amelia sentiu esse olhar cruciante, e estremeceu, tomada de um vago terror. Immediatamente sentou-se, e arranjando as dobras do vestido, procurou disfarçar. Mas em vão; o olhar do moço continuava fito no mesmo ponto, e produzia nella uma sensação incommoda.

—É D. Amelia, filha de um negociante chamado Salles. Não conhece?

Estas palavras foram dirigidas a Leopoldo por D. Clementina, que sentando-se a seu lado, acompanhou-lhe o olhar fito.

—Não, minha senhora.

—Então vou apresental-o.

—Obrigado, D. Clementina; depois.

—Não acha muito galante?

Leopoldo hesitou:

—Oh! muito!...

Viera-lhe nessa occasião o mesmo impeto que sentem de ordinario os amantes em igual situação: o de criticar e desmerecer nas prendas da mulher que os faz soffrer. É uma reacção natural do coração. Leopoldo, porém, julgou indigno de si tal procedimento; tinha o direito de afastar-se, de fugir com horror dessa mulher, mas não o de offendel-a. A culpa de amal-a era sua; e não della.

Aproveitou um momento de distracção da dona da casa, para tomar o chapéo, e esquivar-se, sem que o percebessem.

Amelia, porém, o viu; seus olhos ficaram por algum tempo presos na porta por onde acabava o moço de sahir. Quando, passado um instante, cahiu em si, ficou sorprendida. Que tinha ella com aquelle desconhecido?

Ao chegar, vendo o rosto pallido e os olhos profundos, que tão desagradavel impressão haviam deixado em seu espirito, a moça havia sentido um máo estar intimo. Vinha com a alma cheia das primeiras delicias de um amor nascente; com as doces emoções da declaração de Horacio. A presença de Leopoldo foi um travo.

Mas tambem para que viera? Por que não ficara em sua casa esperando Horacio?

Vão lá sondar o coração feminino. Agora que sabia-se amada, a moça queria gozar de seu triumpho, e vêr humilde e abatido a seus pés o rei da moda, o soberbo leão. O meio era fazer-se ardentemente desejada, tornar-se difficil e esquiva, embora lhe custasse o sacrificio dos momentos agradaveis que podia passar junto de Horacio.

A presença de Leopoldo em casa de D. Clementina a incommodára, e entretanto seu olhar parecia agora sentir a ausencia do mancebo.

A principio havia ali uma pessoa de mais; agora faltava alguma cousa. Si não era um homem; era uma curiosidade, uma emoção.

—Amelia!

A moça voltou-se para ouvir D. Clementina que a chamava.

—Quero apresentar-lhe um moço, que a acha muito bonita.

Dizendo estas palavras, a dona da casa corria os olhos pela salla á busca de alguem.

—Não o vejo agora.

—Quem é?

—O Castro... Conhece?...

—Não, senhora.

—Querem vêr que já se retirou.

Amelia pôde reter o monosyllabo que ia cahir-lhe do labio, confirmando a supposição da dona da casa. Tinha adivinhado que se tratava do seu desconhecido.

—Então elle me acha bonita?

—O Castro?... Muito. Creio que ficou apaixonado! Se visse os olhos que lhe deitava quando a senhora chegou!

—Então foi de paixão que elle fugiu?

—Quem sabe? A paixão é como o vinho que em uns dá para rir, e em outros para chorar. Ha namorados que perseguem, e outros que fogem!

Amelia julgou prudente desviar a conversa daquelle assumpto escabroso, no qual D. Clementina se comprazia, porque lhe recordava sua mocidade já desvanecida.




IX

Depois d'aquella noite Leopoldo viu Amelia duas ou tres vezes: e de todas sentiu a mesma impressão que lhe causara a presença da moça em casa de D. Clementina.

Era o mesmo desencanto; a mesma insistencia de seu espirito para enxergar a formosura da donzella através de um prisma deforme e caricato. N'essas occasiões elle soffria diante da moça a fascinação do horrivel, como o poeta soffre muitas vezes a fascinação do bello em face de um objecto desgracioso. Era então um poeta pelo avesso; um vate do monstruoso. Tinha na imaginação um gnomo de Victor Hugo: creava Quasimodos e Gwynplaines do sexo feminino com uma fecundidade espantosa.

Quando porém a moça desapparecia de seus olhos, operava-se em seu espirito completa mutação. Esquecia completamente o aleijão, para só lembrar a linda e graciosa figura, que poucos momentos antes sua vista repellia. Amelia ausente vingava Amelia presente. O coração do mancebo detestava tanto esta, quanto adorava ainda a outra.

—Este amor é um inferno; pensava elle; tem um vicio organico. Ha de viver de dôres e lagrimas; ha de alimentar-se de minhas tristezas. E assim irá definhando até morrer de consumpção, depois que me tiver devorado todo o coração. Que importa? Servirei de pasto á este abutre. O que somos nós afinal de contas? Uma presa; emquanto vivos, a presa das molestias e das paixões proprias ou alheias; depois de mortos, a presa dos vermes ou das chammas.

Com tal disposição de espirito voltou elle dias depois á casa de D. Clementina. Nesta noite havia uma pequena partida; Leopoldo contava, pois, encontrar Amelia.

Ali estava com effeito, vestida de escarlate e branco; e adornada com a sua graça arrebatadora. Quando o moço entrou, ella dansava com as costas voltadas para a porta e não o viu; porém, momentos depois virou o rosto como si obedecesse a um impulso extranho, e encontrou o olhar ardente de Leopoldo.

A moça fez insensivelmente um movimento para afastar-se, que entretanto a aproximou da porta. Aquelle olhar que a attrahia ao mesmo tempo que a repellia, causou-lhe um desvanecimento misturado de terror. Felizmente a terceira figura da marca da contradansa começava, e a distrahiu de sua emoção.

Estava ella outra vez parada conversando com o par, quando sentiu um calafrio; sem vêr, conheceu que o mancebo se aproximava, que seus labios se abriam para dirigir-lhe a palavra:

—Minha senhora, terei a honra de dansar com V. Ex. a seguinte quadrilha...

Continham uma pergunta ou uma asseveração estas palavras? Fôra impossivel dizel-o. O tom parecia mais affirmativo do que interrogativo, porem o olhar do mancebo esperava, sinão exigia resposta.

A confusão da dansa permittiu á Amelia esquivar-se, sem responder. Quando, terminada a quadrilha, voltou a seu logar, ficou perplexa. Tinha ella se compromettido ou não a dansar a seguinte quadrilha com Leopoldo? Não respondera, é certo; mas recordava-se vagamente de ter feito uma leve inclinação com a cabeça. Sem duvida o moço vira esse movimento e o tomára por um signal de assentimento.

Quando um de seus innumeros admiradores vinha pedir-lhe a proxima quadrilha, ella respondia hesitando que já tinha par; apenas o cavalheiro se afastava arrependia-se de não o ter acceitado, rompendo assim o compromisso tacito; e ficava anciosa por outro convite. Entretanto novo par se apresentava, que recebia a mesma recusa.

N'esse jôgo, muitas vezes repetido, passou o intervallo. O piano deu o signal da quadrilha; Leopoldo aproximou-se de Amelia, e se inclinando sentiu no seu estremecer o braço tepido de Amelia. A moça não teve consciencia do que se passou até o momento em que o moço a conduziu a seu logar. Recordava-se apenas de que seu par lhe fallara por muito tempo, com a voz baixa, porem palpitante de emoção.

Assim fôra. Passada a primeira confusão da quadrilha, Leopoldo, fitando o olhar no semblante da moça, deu expansão aos sentimentos que lhe tumultuavam dentro d'alma. Com a fronte baixa e as faces cheias de rubôres, Amelia parecia absorvida e reconcentrada emquanto o moço fallava. Dir-se-hia que ella não o ouvia.

—A senhora acredita, D. Amelia, na attracção irresistivel, que impelle duas almas entre si, e as chama fatalmente á se unirem e absorverem uma na outra?... Eu acreditava nessa força mysteriosa, mas ainda não tinha chegado o momento de experimental-a em mim; de sentir em meu ser este elo divino que prende as almas, através do tempo e da materia. Senti-o ha vinte dias, quando a vi pela primeira vez, quando a senhora se revelou ao meu coração.

Leopoldo referiu as emoções que sentira, na occasião de seu primeiro encontro com Amelia; a impressão que ella deixára em seu espirito; e os sonhos em que se embalára sua imaginação nos dias seguintes.

—Tive então, continuou o mancebo com accento profundo e commovido, tive então, e depois, a prova de que esse enlevo de meu ser, essa abstracção de minha existencia para absorver-se n'outra, era a attracção moral e nada mais. Via, admirava, adorava na senhora uma cousa sómente; sua alma. Não sabia, ainda hoje não sei, si a mulher que eu amo é bonita para os outros; sei que para mim é de uma belleza divina. Perdesse ella a graça e a formosura que aos outros seduz; para mim seria a mesma; eu havia de adoral-a com o mesmo ardor. Sua alma é filha de Deus, e como elle de uma magnificencia immortal. É uma estrella que não tem eclipse.

Leopoldo inclinou a fronte para fallar quasi ao ouvido da moça:

—Outr'ora julgava impossivel que se amasse o horrivel. Agora reconheço que tudo é possivel ao amor verdadeiro, ao amor puro e immaterial. Não só reconheço, mas sinto-me capaz de nutrir uma dessas paixões martyres! Oh! sinto-me capaz de amar o anjo ainda mesmo encarnado em um aleijão!...

Leopoldo fallou ainda por muito tempo de seu amor a Amelia, sem que ella se animasse a interrompel-o. Aquella palavra ardente, impetuosa, embora vendada por certo pudor d'alma, a subjugava: ella não tinha coragem, nem mesmo vontade de subtrahir-se á sua influencia.

Quando Amelia, conduzida por Leopoldo, se dirigia á uma cadeira, D. Clementina aproximou-se:

—Ah! Eu queria apresental-o, disse a Leopoldo; mas não teve paciencia para esperar.

Depois reclinando ao ouvido de Amelia, perguntou-lhe:

—Então? Não lhe disse que a achava muito bonita?

—Ao contrario, D. Clementina; deu-me a entender que me acha horrivel.

—Ande lá.

—Deveras!

—É impossivel.

Amelia, sentando-se, evocou a lembrança de Horacio, para fazer no seu espirito o parallelo entre o elegante leão e o estranho mancebo com quem acabava de dansar. Um tinha todas as prendas que seduzem a imaginação; era formoso, trajava com esmero, conversava com muita graça. O outro não possuia nenhum desses attractivos; seu exterior alheiava as sympathias; quando fallava diffundia a tristesa no espirito dos que o escutavam.

A moça não concebia que se preferisse Leopoldo á Horacio; e comtudo não podia esquivar-se completamente á influencia daquella imagem pallida, que lhe apparecia no meio dos sonhos mais brilhantes.

Muitas vezes, depois de algumas horas agradaveis passadas junto do leão, quando a moça, recolhida á sua alcova, repassava na memoria os doces protestos de amor que ainda lhe resoavam ao ouvido, de repente surgia a lembrança de Leopoldo. Parecia-lhe então que da fronte do mancebo se desprendia uma sombra para annuviar seus pensamentos risonhos.

Horacio, sabendo onde Amelia passava as noites em que elle não a via, mostrara desejos de frequentar a casa de D. Clementina; a moça porém oppôz-se. Duas razões actuaram era seu espirito.

Aquella casa servia-lhe de abrigo contra a seducção que exercia em seu espirito a elegancia de Horacio. Quando sentia-se vencida, fugia para ali, onde recobrava forças para resistir, e domar completamente o leão, soberbo de suas conquistas passadas.

Era essa uma das razões; a outra era o receio de achar-se em face dos dois moços, repartida entre a seducção de um e a fascinação do outro. Presentia que desse conflicto, resultaria alguma cousa, que ella não podia definir, mas que a enchia de sustos e inquietações.

Por isso exigiu de Horacio que não fosse á casa de D. Clementina:

—Costumam lá ir algumas dessas pessoas que se occupam em inventar novidades. Sua apresentação, Sr. Horacio, daria pretexto á algum romance.

—Mas, por que ainda frequenta semelhante casa?

—Pedidos... bem sabe; nem sempre uma pessoa se póde recusar. Mas si o senhor apparecer lá, eu deixarei de ir.

—Esteja tranquilla.

Amelia continuou a passar de vez em quando uma noite em casa de D. Clementina. A principio não tinha dia certo, e succedeu por isso que Leopoldo desencontrou-se della duas vezes. Uma noite porém o moço perguntou-lhe:

—Vem sabbado?

—Talvez.

Desde então o dia escolhido era o sabbado, a menos que não precedesse aviso especial da dona da casa, para alguma partida. Nunca mais houve desencontro; Amelia achava sempre o mancebo no seu posto, defronte da porta para vêl-a entrar.

Em uma dessas noites deu-se um incidente, que é preciso referir.

Fallava-se á respeito de uma senhora casada, a quem o marido causava serios desgostos. Pessoa que sabia das particularidades dessa familia, explicava o facto á sua maneira.

—Ella era muito linda, o marido a adorava; casou-se por paixão. Poucos dias depois de casada, teve ella uma grave molestia que a reduziu aquelle estado. Não ha paixão que resista.

—Com effeito sabe ser feia!

—Ninguem acreditará que foi bonita.

—Pois foi uma belleza.

Leopoldo, que ouvia calado, interveio:

—O marido nunca a amou!

—Asseguro-lhe que teve uma paixão louca.

—E eu affirmo-lhe que não; que elle nunca teve paixão pela mulher. O que elle adorava era unicamente a sua belleza, a fórma; isto é, um accidente. O homem que ama a mulher destinada a ser a companheira de sua existencia, o complemento de seu ser imperfeito, não despreza essa mulher, porque a desgraça a feriu no envolucro material de sua alma. Elle póde soffrer com aquella desgraça; mas deve redobrar de amor e adoração, para que nem seus olhos vejam o defeito, nem ella, a mulher amada, se lembre nunca de que o tem para elle, embora o tenha bem claro para os indifferentes.

—É bonito de dizer! acodiu um apreciador das mulheres formosas.

—Todos dizem o mesmo, mas fogem das feias, observou uma senhora idosa, talvez por experiencia propria.

—O que eu digo, minha senhora, já o experimentei em mim mesmo; replicou Leopoldo.

—Ah!

O mancebo cravou em Amelia um olhar eloquente, e disse com a palavra lenta e calma:

—É verdade; já o experimentei em mim. Por que hei de occultal-o? Minha alma já passou por esta dura prova, e sahiu triumphante. Hoje sei que tenho forças para amar até os defeitos da mulher que Deus me destinou.

Amelia perturbou-se com aquellas palavras, e o olhar ardente que parecia graval-as em sua alma. Nessa noite retirou-se pensativa; e por muito tempo a figura pallida de Leopoldo, esvoaçou na penumbra de seu leito de virgem.




X

Pela manhã se dissiparam essas nevoas que no espirito de Amelia deixara a noite antecedente.

Era domingo. A moça, envolta em seu roupão alvo, com os cabellos soltos pelas espaduas, encostou o rosto á vidraça da janella. Afastando a cortina de cassa branca, podia enxergar perfeitamente a rua, sem que de fóra vissem o seu gracioso desalinho.

Não tardou que se ouvisse um tropel de cavallo. Era o leão que ia dar seu passeio matutino. Vendo agitar-se a cortina, e desenhar-se no vidro a ponta de uns dedos côr de rosa, Horacio cortejou, enviando um sorriso á janella.

Á noite o moço dirigiu-se á casa do Salles. Amelia o esperava. A sala estava cheia de visitas. Entrando, o olhar de Horacio encontrou um olhar terno que o saudava de longe.

Mas o sorriso se desfez com a perturbação que de repente sentiu a moça. A vista do leão tinha descido até o tapete, e se fixara com uma insistencia visivel na fimbria do vestido, ligeiramente arregaçada. Horacio julgou que pudesse lobrigar a ponta do pesinho que idolatrava.

A moça concertou as dobras da saia de modo a interceptar o olhar curioso; e disfarçou conversando com uma amiga.

Desde principio notara Amelia aquelle sestro de Horacio. Quando ella o suppunha mais embebido em seus encantos, mais rendido á sua belleza, sorprendia o olhar do moço a rastejar pelo chão, procurando insinuar-se por baixo da orla de seu vestido.

Muitas vezes ella perdia os seus mais ternos sorrisos, porque o moço, em vez de procurar lhe no rosto a esperança de ser amado, esquecia-se, a catar sobre o tapete alguma idéa que não se animava a revelar. Já tinha succedido, durante que ella tocava, distrahir-se o leão, e com a attenção presa no pedal, nem ouvir a peça de musica.

Horacio a amava sem duvida; já lhe tinha dado provas de que sentia por ella uma paixão vehemente. Elle, o rei da moda, o festejado conquistador, para quem todas as portas e todos os corações abriam-se como a gruta encantada de Aladino, a uma só palavra; elle ali estava captivo da vontade della, e atado a seu carro triumphal. Que prova mais eloquente de profundo amor, do que essa submissão espontanea do altivo leão?

A força nunca se revela tanto como na posse de si mesma, no vigor com que se domina. Hercules, fiando aos pés de Omphale, é o ultimo canto, o epilogo sublime da epopéa da força humana. Exterminando a féra, a natureza e até os deuses, Hercules foi grande; abatendo a si mesmo, foi maior, porque venceu o vencedor.

Amelia comprehendia que homenagem eloquente á sua belleza havia naquella adoração do elegante cavalheiro; sentia-se orgulhosa com esse amor, que tantas mulheres lhe invejavam; considerava-se rainha, desde que via a seus pés subjugado e humilde o rei da moda.

Mas lá no intimo alguma cousa lhe remordia, quando notava a pertinacia com que o olhar de Horacio, procurava a fimbria de seu vestido. Nesses momentos sentia n'alma um alvoroço; chegava a suspeitar que Horacio não lhe tinha amor, e estava escarnecendo della com uma paixão fingida.

A verdade, porém, é a que sabemos. Horacio tinha paixão louca pelo pésinho de que só conhecia a botina e o rasto; fazendo a côrte a Amelia, elle prestava culto ao deus ignoto, que adorava sob aquella fórma encantadora. Pelo cuidado que tinha a moça em não desconcertar os babados de seu vestido comprido de mais, conheceu elle o zelo com que a dona recatava o thesouro. Comtudo não desesperou; o cuidado da moça havia de adormecer um momento; podia mesmo sobrevir um accidente inesperado que realizasse a sua mais cara esperança.

Até aquella noite todos os esforços se tinham frustrado: á sua insistencia a moça tinha opposto a pertinacia do capricho feminino. Quanto mais attento elle estava para aproveitar qualquer descuido, mais alerta ella ficava para não commetter a minima falta.

Horacio porem resolveu dar o golpe; e com essa intenção, fora á casa de Salles, no domingo em que estamos.

Quando se offereceu occasião, travou com Amelia, recostada á janella, o seguinte dialogo:

—Como é bonita! disse elle contemplando a moça com enlevo.

—Ainda não tinha percebido? perguntou ella com ironica faceirice.

—Não, D. Amelia, não; porque de cada vez a acho mais bonita: todos os dias a senhora muda a meus olhos; torna-se outra, mais linda, mais formosa, do que era aquella que eu conhecia anteriormente. Como hoje, acredite, nunca a vi.

—Que tenho eu de mais?

—Não sei; tem uma aureola da belleza! Seus olhos desferem raios de luz tão pura; sua boca sorri como a flôr em botão, que abriu com a frescura da noite. Os anneis de seus cabellos castanhos parecem impregnados de um fluido mysterioso, que se derrama em torno. Mas, de toda a sua formosura ha uma cousa sobretudo que eu admiro, que eu adoro. Não é, nem seus olhos brilhantes, nem seus labios mimosos, nem seu talhe elegante, nem suas tranças tão opulentas; não é nada disto!

—O que é então?

—Para que dizel-o? Para que revelar a minha paixão, a quem della escarnece? Si eu o confessasse, cessariam o supplicio que tenho soffrido, as ancias que estou curtindo? Não; haviam de augmentar si isso fosse possivel. A senhora teria prazer em torturar-me ainda mais.

—Explique-se: confesso que não o entendo. Que supplicio tem o senhor soffrido?

—A mulher é caprichosa, muitas vezes faz padecer aquelle que a ama sinceramente, e só por espirito de contradicção. Uma cousa innocente, um favor pequenino... permitte aos estranhos e indifferentes, e entretanto recusa ao homem que morre de paixão por ella. Não é uma crueldade? A senhora pergunta, D. Amelia, que supplicio tenho eu soffrido. Este, de ser consumido á fogo lento por um desejo, que um gesto seu podia tornar em gozo infinito!

A moça com as faces incendidas em rubôr, luctava no alvoroço e confusão, que iam-se apoderando de toda sua pessoa.

—Entende agora, D. Amelia?

—Não! murmurou tremula.

—Pois não percebeu ainda, que ha uma cousa que eu sobretudo amo na senhora? Tanto percebeu, que fez o proposito de escondel-a a meus olhos, cançados de a procurarem a cada instante. Não está contente ainda de vêr-me arrastando assim a alma pelo pó, no vão intento de entrevêr de longe o objecto de minhas adorações?

O leão fitou um olhar fascinador no semblante da moça.

—Para que negar, D. Amelia? A senhora o sabe, e finge ignorar para mais torturar-me.

—Eu não!

—A senhora sabe por quem deliro de paixão, por quem darei a minha vida sem hesitar. Si não soubesse, já eu teria visto e admirado esse pésinho mimoso, que me mata com seu rigor.

Uma visita que entrava na sala, deu a Amelia um pretesto para fugir, disfarçando seu rubôr e perturbação, no afan da recepção das senhoras que chegavam.

Ao retirar-se, Horacio achou ensejo de trocar uma palavra coma moça, emquanto lhe apertava a mão.

—Não seja cruel!

—Oh, cruel não sou eu; replicou a moça com expressão de ressentimento.

Mais tarde em sua alcova, emquanto desfazia o penteado, soltando os lindos anneis do cabello castanho, Amelia recordou-se das palavras apaixonadas que ouvira de Leopoldo na vespera, e comparou-as com as queixas de Horacio. A linguagem do primeiro tinha a eloquencia da paixão; parecia vir do intimo, do mais profundo do coração. A linguagem do segundo, tinha a graça da seducção; era a vibração passageira das cordas d'alma.

Mas a palavra do leão, vinha envolta em um sorriso gracioso, sombreado por um bigode fino e elegante!

Durante uma semana, Amelia não viu Horacio; por uma razão muito simples. O moço de arrufado, não appareceu durante dois dias; quando se resolveu a apparecer, a moça despeitada inventou um incommodo, e não desceu á sala de visita, pelo dobro do tempo. Si Horacio sustentasse a lucta, podia haver serio rompimento.

O leão, porém, estava domado; tinha achado a sua Diana. No quinto dia foi humildemente render preito e homenagem á suzerana de seu coração. Amelia o recebeu, como rainha magnanima; e tratou-o nesse dia com amabilidade extrema. Pela primeira vez, Horacio pôde beijar-lhe a ponta dos dedos.

Animado com esse acolhimento, o leão arriscou de novo a grande questão. Fitando o olhar no rosto da moça, e abaixando-o á orla do vestido, disse em tom supplicante:

—Me deixa vêr?

—Não; respondeu a moça com vivacidade, e demudando-se.

—Quando cessará este capricho?

—Nunca.

Horacio teve um assomo de impaciencia.

—Bem. Não me quer mostrar a mim, Horacio de Almeida, pois ha de mostral-o a uma pessoa.

—A quem? perguntou a moça irritada.

—A seu marido.

Amelia tornou-se pallida, e sentiu passar-lhe nos olhos uma vertigem; mas recobrou-se logo á idéa, de que as palavras de Horacio não passavam de um galanteio.

—Si algum dia me casar, replicou ella sorrindo, ha de ser com a condição de não mostrar.

—Havemos de discutir essa condição.

—Vamos mudar de conversa?

—Como quizer; temos muito tempo para continual-a.

Emquanto Amelia o olhava sorpresa, Horacio voltando-se para o grupo das senhoras, tomou parte na conversação geral.

—Já sabem a novidade, minhas senhoras?

—Qual dellas? Ha tantas.

—A novidade nova, a ultimamente inventada, que eu acabo de receber em primeira mão, de caminho para aqui.

—Algum casamento, aposto.

—E eu sei de quem.

—Não adivinhou. Talvez que a novidade de amanhã seja algum casamento; quem sabe? respondeu Horacio, relanceando um olhar para Amelia. Mas a novidade de hoje, é apenas um baile, um baile de estrondo.

—Aonde?

—No Cassino?

—No Club?

—Em casa do Azevedo.

—É verdade! Eu já tinha ouvido dizer!

—Quer a senhora fazer de velha a minha novidade. O que se dizia era que o Azevedo tinha tenção de dar um baile, mas disso á realisação vai uma grande distancia. Eu desejo muita cousa que não alcanço, e nem ao menos posso vêr. Foi hoje e ao jantar que resolveu-se a grande questão, por occasião de uma saude. Um amigo que vinha de lá, encontrando-me a dois passos daqui, me deu a noticia do grande acontecimento. Portanto, minhas senhoras, preparem-se!

—Quando é o dia?

—No primeiro do mez proximo. Ponham desde já em contribuição as lojas e modistas; eu o que posso é offerecer-me com muito gosto para admiral-as a todas, e achar a cada uma de per si, mais elegante do que as outras juntas. Si Páris me tivesse ouvido, não haveria guerra de Troia.

—Nem Homero por conseguinte: replicou um litterato.

—Homeros sempre os ha. Quando não encontram os heroes já feitos, inventam-n'os, e com tal habilidade, que esses grandes homens postiços, parecem verdadeiros, como os dentes de osana, e os coques das moças. O mesmo succede com os Anacreontes, cuja raça é muito maior; quando não acham nymphas para cantar, qualquer bruxa lhes serve de pretexto ou de cabide para pendurarem a lyra.

Amelia ficara triste e preocupada; escutava a palavra voluvel do moço, com um sentimento indefinivel de angustia; parecia-lhe que era seu amor por ella, que Horacio rasgava aos pedacinhos, como uma pagina querida, abandonando-os ao sopro do vento, ao capricho daquella conversa.

Uma amiga reparando na tristeza da filha de Salles, e no olhar que em certa occasião lhe deitara Horacio; disse ao ouvido da moça sentada á seu lado:

—Amelia ficou lograda!

—Como?

—Creio que Horacio está justo com outra.

—Quem lhe disse?

—A tristeza de Amelia, e o olhar que o sujeito lhe deitou, quando fallava de um casamento que se ha de saber-amanhã.

—É verdade. Com quem será?

—Naturalmente com alguma fazendeira de mil contos. Depois que sahirem da igreja, o marido leva-a para o collegio do Hitchings; e deixa-a lá como pensionista, emquanto elle vai a Pariz aperfeiçoar-se na escola dos maridos.

Esta senhora é uma satira viva; sua conversa parece um fogo de artificio; dir-se-hia que o seu gracioso trajo é todo composto de alfinetes, que ella vai deixando em sua passagem envoltos em sorrisos assucarados, como confeitos do carnaval.

Occulto seu nome porque é muito conhecida na boa sociedade do Rio de Janeiro, e não quero compromettel-a com os noivos presentes e futuros das fazendeiras ricas.

Depois de ter durante alguns instantes ainda polvilhado a conversa com sua palavra elegante e chistosa, Horacio tomou o chapéo e retirou-se. Não eram nove horas; esta circumstancia mais entristeceu Amelia, e mais excitou a attenção da moça maliciosa.

Á porta da casa de Salles, encontrou Horacio seu tilbure. Mandou o cocheiro esperal-o no largo do Machado, e elle, tendo acendido o charuto e vestido o sobretudo, seguiu a pé. Queria pensar.

Horacio pertencia á escola daquelles que entendem, que nunca é tarde para arrepender-se o homem de um compromisso. Elle comprehendia o jacta est alea por esta fórma prudente e rasoavel. Cezar, tendo lançado a ponte sobre a Rubicon, via de longe em Roma a dictadura, e mais tarde a purpura imperial; portanto fez elle muito bem em passar, sobretudo desde que o rio já não oppunha obstaculo. Mas se em vez do poder, Cesar encontrasse no caminho a derrota; a ponte lançada lhe serviria para voltar ás Gallias, e elle teria o cuidado de queimal-a depois que tornasse a passar.

Como Cesar, elle tinha lançado a ponte com aquella palavra dita a Amelia, em um momento de despeito. Devia porém passar o Rubicon do casamento?

Era sobre tão importante questão que o leão queria reflectir, fazendo a pé o trajecto entre Larangeiras e largo do Machado.

—O casamento é o supplicio de Prometheu, pensava elle; um homem atado ao rochedo da familia, com o coração devorado pelo tedio; uma creatura dividida em duas metades, que se contrariam á cada instante, porque estão ligadas. Em vez do romance, do idilio, do drama, a prosa monotona de uma historia que se lê todos os dias. Esse prazer incomparavel de sentir-se todo dentro de si, de resumir-se no seu unico eu, de dispôr livremente de sua pessoa e vida, não o tem o marido a menos que seja um biltre. O casamento dilata a superficie da alma; em vez de soffrer-se no seu coração apenas, soffre-se na mulher, no filho, e em cada um dos fios dessa grande teia humana que se chama familia.

Horacio recordou-se de alguns de seus amigos que haviam casado, e achou nessas reminiscencias a prova de sua opinião.

—O casamento é tudo isso, mas que importa, desde que não ha outro meio de realisar o meu desejo e satisfazer esta paixão ardente e impetuosa? Daria a vida inteira, e sem hesitar pela felicidade que eu sonho. Pois si eu a daria de uma vez, por que não a emprestarei sob hypotheca?

Tendo chegado ao largo do Machado, o moço, entrou no tilbure, que o conduziu á casa.

Ahi, contemplando a mimosa botina, guardada como uma reliquia, encheu-se cada vez mais da resolução que havia tomado.




XI

Eram onze horas da manhã.

Amelia estudava ao piano os exercicios de Hertz. As janellas cerradas deixavam entrar frouxa claridade, coada pela cassa transparente das cortinas.

Nesse crepusculo artificial, a belleza da moça tomava uns tons suaves e meigos, que mais seduziam.

Os lindos cabellos ainda humidos do banho, cobriam-lhe as espaduas de uma tunica de veludo castanho. O bajó de cassa que trazia no seu desalinho matutino, conchegado á cutis, coloria-se com os reflexos rosados do collo mimoso.

Tanta graça e formosura, realçadas pela singelleza do trajo e pela naturalidade da posição, ficavam ali occultas na doce penumbra da sala, recatadas á admiração. As duas horas Amelia costumava subir á sua alcova para se pentear; e o gracioso desalinho despparecia, substituido por um trajo mais apurado e elegante. Era a flôr singella que o vento desfolha na mata, e passa ephemera e desconhecida.

Tantas moças despendem um avultado cabedal de sorrisos, de olhares e gestos, e põem em contribuição a sêda, a renda e a moda para realçarem sua formosura! Mal sabem, entretanto, que nunca são ellas tão bonitas e feiticeiras como em certo momento de seductora negligencia, quando parece que a belleza desabrocha de seu gracioso botão.

A porta da sala abriu-se, e deu entrada ao Sr. Salles Pereira.

O aspecto do negociante era grave; mas da gravidade serena que annuncia uma preocupação agradavel. Trazia na mão uma carta aberta.

Amelia assustou-se vendo entrar na sala o pai, que ella suppunha na cidade. Como todos os negociantes, o Sr. Salles Pereira passava a manhã em seu escriptorio; partia logo depois do almoço e só voltava á hora do jantar. A sorpreza da moça era pois natural.

—Ah! papai! exclamara ella, voltando-se ao rumor da porta. Já veiu do escriptorio?

—Ainda não fui; respondeu Salles Pereira sorrindo. Recebi uma carta, que me obrigou a demorar-me até agora para conversar com tua mãi e... comtigo, a quem o objecto mais interessa.

—A mim? O que será, papai? Algum convite de baile?

—Lê; disse o negociante apresentando-lhe a carta.

Amelia correu os olhos pelo papel, e seu rosto cobriu-se de vivos rubôres. O coração palpitava-lhe com tanta força que debuchava no linho o contorno dos lindos seios.

A carta era de Horacio, que pedia ao negociante a mão da filha.

Acabando de a lêr, a moça de olhos baixos e corpo tremulo, parecia vendar-se com sua innocencia para subtrahir-se ao olhar terno e curioso de seu pai. Nesse momento ella desejava, si possivel fosse, esconder-se dentro de si mesma.

—Que devo eu responder, Amelia? perguntou o negociante.

—O que papai quizer! balbuciou a menina.

—Estás bem certa de que meu desejo é o teu? Si eu não acceitar a honra que nos quer fazer o Sr. Horacio de Almeida?

As palpebras da moça ergueram-se, desvendando seus olhos limpidos.

—Papai não acha bom?

—Si elle te for indifferente, eu por mim não tenho grande empenho. É um excellente moço; tem alguma cousa de seu; mas anda em certa roda que não me agrada.

—Que roda papai?

—De moços da moda.

—Porque é solteiro.

—Então o que decides?

—Desde que papai e mamãi desejam, eu....

—Nós não desejamos cousa alguma; queremos saber tua vontade.

Amelia emmudeceu.

—Bem, já vejo que não é de teu gôsto. Vou responder ao homem com um não.

Salles Pereira encaminhou-se para a porta:

—Mas, papai!.... murmurou a moça.

—Que temos?... Falla, que já me demorei muito. Quasi meio dia!

—Vai responder já?

—Já.

—Deixe para amanhã.

—Nada; são cousas que se decidem logo.

—O que vai responder então?

—Que não.

—Mas eu não disse isto!

—Tu nada disseste.

—Pois si eu não gostasse diria logo.

—Ah! neste caso gostou?

Amelia sorrindo acenou com a cabeça.

—Não entendo esta linguagem. Vamos a saber. Amas á Horacio?

A moça fez um supremo esforço:

—Amo! disse ella escondendo o rosto no seio do pai.

O negociante beijou-a na fronte com ternura e carinho.

—Ah! minha sonsa, não queria confessar o que tinha aqui dentro deste coraçãozinho! E eu que pensava que elle só queria bem a mim?

—Oh! papai!

—Bem, bem, não tenho ciumes! Vai consolar tua mãi, que eu vou responder ao homem mais feliz deste Rio de Janeiro.

O negociante voltou ao gabinete; e Amelia dirigiu-se ao interior. Sua mãi estava no quarto, com os olhos ainda humidos de lagrimas. Quem não conhece essas lagrimas abençoadas, que a mãi derrama pelos filhos; e que são balsamos para as afflicções, e orvalhos para as flôres da ventura?

D. Leonor beijou a filha e estreitou-a ao seio como receiosa de que lh'a arrancassem dos braços. Seu coração ora alegrava-se com a felicidade proxima da moça, ora se entristecia com a lembrança da separação.

De repente Amelia sobresaltou-se com uma idéa que lhe acudiu; e deixando a mãi, correu ao gabinete do negociante. Achou-o sentado á escrevaninha, passando por cima da carta que terminara um rolete de mata-borrão.

O pai sorriu vendo entrar a filha.

—Curiosa!

—Já acabou? disse a moça recostando-se com gentileza á poltrona.

—Vê si está de teu gosto; disse o Salles cingindo-lhe a cintura com o braço.

Amelia leu a carta rapidamente; ella já sabia de antemão que faltava alguma cousa.

—Então, que tal? perguntou o negociante com certo desvanecimento.

—Está muito boa papai. Só acho uma cousa?

—O que?

O negociante soffreu uma decepção. Pensava ter feito uma obra prima com aquella carta, escripta em seu mais bello estylo commercial, mas recheada de alguns rasgos sentimentaes.

—Não acha, papai, que elle ficará todo cheio de si, obtendo logo, assim com tanta facilidade, o que deseja? A carta é de hoje; responder no mesmo dia.... mostra muita vontade de mais.

—Que mal ha nisso? Para que deixal-o na duvida, quando pódes tornal-o feliz desde já.

—Papai pensa que elle duvida?

—Ah! Já sabe então! Muito bem!

—Eu não lhe disse nada, papai.

—Então como sabe elle? Adivinhou?

—Não adivinhou nada. Papai bem sabe como são esses senhores da moda; cuidam que todas as moças andam morrendo por elles, e que a dificuldade está sómente em escolher. Como eu não quero que o Sr. Horacio me julgue uma de suas conquistas, estou resolvida, papai, á pensar bem durante quinze dias, antes de dar a resposta.

—Portanto esta carta não serve; disse o Salles com um suspiro.

—Ha de servir, mas daqui a quinze dias. Agora papai deve dizer unicamente, que, tendo me consultado, eu pedi algum tempo para dar a resposta.

O negociante escreveu, e Amelia esperou até que partiu a carta, confiada a um creado.

Momentos depois, Salles sahia para a cidade; e Amelia entrava em sua alcova, descantando trechos de arias e romances. Não se podia dizer que estivesse alegre, apezar do tom garrido com que modulava, e do fresco riso que trinava em seus labios.

O que ella sentia era um alvoroço intimo, uma soffrega agitação, estado indefinivel d'alma prurida por mil desejos, e contida por mil receios.

Vejamos si é possivel descobrir o que passava ali, dentro daquelle seio mimoso.

Desvanecida a primeira commoção, produzida pela carta de Horacio, Amelia recordara-se do que tinha occorrido na vespera, e sobretudo das palavras proferidas pelo moço. Sua vaidade revoltou-se como era natural.

—Hei de mostrar-lhe que não basta querer, para ser meu marido; e que não basta ser meu marido para vêr...

Foi então que se dirigiu ao gabinete do pai, e adiou a resposta definitiva. Voltando, sentiu lá n'um cantinho do coração uns receios que estavam nascendo. Não fosse Horacio zangar-se com a demora, e retirar o pedido? Quinze dias talvez fossem de mais.

Eis qual era o estado do animo de Amelia. Orgulho de vêr subjugado á seus pés o rei da moda; prazer de o ter captivo de uma palavra sua durante muitos dias; arrependimento do que fizera; susto do que podia acontecer; goso da ventura que sorria; taes foram os sentimentos desencontrados que vibraram na alma da moça.

Nessa tarde Amelia preparou-se com maior esmero do que si fosse a um baile. Seu adorno simples, um modesto vestido branco com fitas azues, tomou-lhe mais tempo, do que não levaria a compôr um trajo sumptuoso.

Ella esperava Horacio.

Toda a noite passou indo do sofá á janella, e da janella ao consólo, onde estava a pendula de alabastro.

As horas se escoaram, sem que o tilbure do moço parasse á porta do negociante.

No dia seguinte, Amelia perguntou ao criado, si a carta fôra entregue a Horacio:

—Entreguei em mão, quando entrava no tilbure.

—E que disse elle?

—Nada; leu e riu-se.

—Ah! elle riu-se; murmurou Amelia comsigo. Pois eu lhe mostrarei.

Desde então, empenhada sua vaidade, os sustos se desvanecêram. Estava decidida a não ceder. Horacio depois de vencido tentava ainda resistir-lhe? Pois havia de subjugal-o completamente.

Á noite foi á casa de D. Clementina, onde estava reunida a roda do costume. Leopoldo ali se achava tambem, e comprimentou-a com um modo triste e resignado.

Deve existir uma corrente magnetica entre os homens, um fluido que serve de vehiculo ao pensamento recondito e ainda não divulgado. Não se explicam de outro modo certas revelações de um facto sómente conhecido de poucas pessoas e por estas recatado. A emoção, que desperta esse facto n'alma de alguns, repercute n'alma de outros, e produz uma especie de intuição.

Na casa de D. Clementina, sabia-se já que Amelia fôra pedida em casamento; embora se ignorasse o nome do pretendente, talvez por não ser conhecido das pessoas presentes. Salles Pereira, a mulher e a filha não tinham dito a menor palavra sobre o objecto da carta de Horacio; mas a impressão produzida por essa carta, a precocupação que deixára nas pessoas da familia, as conversas intimas e recatadas, não escapáram aos escravos.

D'ahi gerou-se o boato, que já tinha passado á casa de D. Clementina.

—Ah! chegou a Amelia Salles. Sabia que vai casar-se? Já foi pedida; disse uma senhora a Leopoldo.

—Não, senhora, não sabia; respondeu o moço com magoa, mas sem perturbar-se.

—Com quem? perguntou outra moça.

—Com um moço bonito e rico. Disseram-me o nome, mas já não me lembro.

Nisso Amelia entrou na sala, onde foi muito festejada pelas amigas e conhecidas.

As allusões e gracejos a respeito do segredo incommodaram a moça, embora por outro lado lhe causassem certo desvanecimento.

Pelo meio da noite, Leopoldo aproximou-se de Amelia para lhe pedir uma contradança. Tinham dansado a primeira marca sem trocar palavra: afinal o mancebo rompeu o silencio:

—É verdade que foi pedida em casamento?

Amelia empallideceu; quiz disfarçar illudindo a pergunta, mas encontrou o olhar de Leopoldo, olhar tão doce e sincero, que não se animou a enganal-o.

—É verdade; murmurou em voz quasi imperceptivel. Mas ainda não respondi.

—Estimo que seja muito feliz.

—Obrigada.

Amelia ficou sorpresa; ella suppunha que Leopoldo tinha-lhe ardente paixão; e que portanto sentiria profundo pezar, sinão desespero, com a noticia de seu casamento. Em vez disso, o mancebo mostrava uma resignação serena.

—Quando comecei a amal-a, D. Amelia, disse Leopoldo depois de alguns instantes, acreditei na felicidade, e esperei alcançal-a neste mundo. Minha alma pressentiu a aproximação da irmã que Deus lhe destinara, e cuidou attrahil-a e embebel-a em seu seio. Mas essa illusão se desvaneceu logo. Soube qual era sua posição, e comprehendi que a senhora não me podia pertencer. Resignei-me, pois, a amar unicamente sua alma; essa ninguem me póde roubar, nem mesmo a senhora, porque Deus a fez para mim. Eu estava desde muito preparado para a noticia de seu casamento; ella não me sorprendeu, embora me entristecesse. Até agora adorei sua alma, como se adora a imagem da Virgem no templo; de agora em diante terei de adorar essa alma querida, como se adora uma santa no sepulchro.

Leopoldo fallou por algum tempo ainda, e a moça, que a principio se acanhara com a expansão viva desse amor tão puro, bebia as palavras ardentes do mancebo, como fluido que derramava em sua alma suave calor.

Nessa noite, ao recolher-se, ia absorvida neste pensamento:

—Por que julgou elle impossivel que eu o amasse? sem duvida não o amo; mas talvez... Si eu não conhecesse Horacio... Quem sabe?

Nisto lembrou-se que já se tinham passado dois dias depois do pedido, e portanto faltavam treze para a decisão.

—Si elle não vier antes disso?... Si não vier... respondo que não. Está decidido.




XII

Corrêram os dias sem que Horacio apparecesse em casa do Salles Pereira. Amelia, apezar de seu esforço, não podia conter a impaciencia. Ella adivinhava que o leão estava despeitado com a resposta, e queria obriga-la á conceder-lhe immediatamente o que pedira; a sua mão, e com a mão o pesinho que elle adorava.

Por vezes a moça foi até á porta do gabinete do pai, na intenção de diser-lhe que escrevesse á Horacio enviando-lhe o consentimento. Mas voltava envergonhada de sua fraqueza: enxugava algumas lagrimas que lhe saltavam dos olhos; e fazia novos protestos de não ceder.

Nestas occaziões ella contemplava a imagem de Horacio com alguma severidade. Lembrava-se da volubilidade com que elle fallava-lhe de seu amor; do sorriso sempre faceiro que tinha nos labios e servia para vestir a palavra alegre ou triste, zombeteira ou commovida; e finalmente da insistencia que mostrava em vêr-lhe o pé.

Então acodia a Amelia uma circumstancia que á principio lhe escapára; fôra sua recusa á impertinencia do leão, que o obrigára á pedi-la em casamento no dia seguinte.

—Será apenas um capricho? Não me terá elle verdadeiro amor?... Si não me engano, o que elle ama em mim, não sou eu, mas uma mulher que imaginou; sirvo-lhe apenas de pretexto, como tantas outras antes de mim.

O resultado destas observações era protestar a moça que daria um não ao pedido de Horacio. Mas quando seu pai lhe perguntava sorrindo:

—Ainda não?

Ella corava, abanava a cabeça, e fugia, disendo comsigo que ainda faltavam alguns dias para o prazo marcado.

Para occupar as noites e distrahir o espirito dessa constante preoccupação amiudou as visitas á casa de D. Clementina. Ali com a influição do olhar profundo e da palavra eloquente de Leopoldo, esquecia as contrariedades e inquietações. Na volta trazia algumas dôces reminiscencias, e sobretudo um certo arroubo do coração, que durava algum tempo, e a preservava de suas anteriores preoccupações.

Ja haviam passado doze dias depois da carta, e Amelia estava mais que nunca resolvida á romper com Horacio, quando se deu entre ambos um encontro.

Foi no theatro.

Amelia que á principio evitou as occasiões de encontrar-se com Horacio, lembrou-se que sua presença podia provocal-o; e obteve do pai que a levasse ao espectaculo. Subindo a escada do Theatro Lyrico, avistou Horacio que vinha do lado opposto.

Apezar de estar prevenida a moça teve um sobresalto; mas pôde recobrar-se antes que o leão se apercebesse de sua presença. Foi com fria altivez e indifferença que ella correspondeu ao comprimento de Horacio, sem demorar o passo em quanto elle trocava um aperto de mão com o Salles Pereira.

Esta indifferença porém, e sobre tudo o gesto que Amelia fez para arregaçar o vestido, quando subia o segundo lanço de escadas, ataram de novo o leão ao jugo.

—Desta vez, pensou elle, si eu estivesse adiante via ao menos a ponta do meu pésinho!

Teria Amelia simulado aquelle gesto de proposito? É natural; ella queria subjugar outra vez o captivo que lhe escapara; usava de todos os seus recursos.

Vencido, o moço acompanhou a familia até á porta do camarote, e demorou-se ahi á conversar com o negociante. Entretanto Amelia, sem dar-lhe a minima attenção, percorria com o binoculo os camarotes trocando com a mãi observações a respeito das moças e seus lindos adereços.

Durante o resto da noite, a moça mostrou a mesma calculada indifferença, á ponto de irritar o mancebo. Apezar de se ter rendido, sentiu elle um impeto de revolta, e deixou sua cadeira junto á orchestra com intenção de visitar um camarote fronteiro ao do Salles Pereira. Lá estava uma linda moça de seu conhecimento; uma das estrellas de sua coroa de rei da moda.

Sentar-se-hia junto della, e estabeleceria um dialogo entretecido de sorrisos, de olhares e meias confidencias como por ahi se dão tantos nos bailes e espectaculos: verdadeira scena mimica de amor representada perante o publico. Com esse entretenimento, Horacio comprometteria seriamente a reputação de uma senhora; mas vingar-se-hia de Amelia, excitando-lhe ciumes.

Chegava já o leão á porta do camarote quando occorreu-lhe este pensamento.

Faltava apenas um acto para terminar o espectaculo; si elle mostrasse afastamento, Amelia irritada persistiria em seu desdem durante o resto da noite; e quem sabe que resolução tomaria sob a influencia desse despeito?

Horacio teve medo e recuou. Já se tinha submettido no começo da noite, o melhor expediente era perseverar. Naturalmente Amelia, no fim do espectaculo, abrandaria o seu rigor.

Começára o acto. Horacio deixou passar algum tempo, e dirigiu-se ao camarote de Amelia. A moça que já tinha reparado na ausencia do leão, cuja cadeira estava desoccupada, adivinhou-lhe a presença, ouvindo abrir-se a porta. Seu primeiro movimento foi voltar o rosto; mas reprimiu-se a tempo, e disfarçou dirigindo o binoculo para o fundo da sala.

Apegar do imperio que tinha sobre si, Amelia estava ao cabo das forças. Si naquelle momento Horacio fingisse uma retirada, ella não resistiria. Felizmente o leão não se lembrava disso; tinha resolvido esperar a sahida para trocar algumas palavras com a moça.

Terminou o espectaculo afinal. Horacio offereceu o braço a Amelia:

—Muito lhe offendi com meu pedido, D. Amelia?

A moça calou-se.

—Não lhe mereço nem uma palavra!

—Parece que o senhor lhe dá bem pouco apreço.

—Que injustiça!

—Quem passou tantos dias sem ella, póde bem esperar ainda os dous que faltam.

—Então sou eu o culpado dessa demora! Quem me condemnou a ella?

—E o senhor nem ao menos procurou abrevial-a: achou mais commodo esperar tranquillamente? Pois continue á esperar.

—Mas, D. Amelia! Depois da resposta de seu pai, si eu me apresentasse em sua casa, tornar-me-hia importuno. Cuida que não soffri, passando tantos dias sem vêl-a? Ingrata! Quantas vezes não podendo resistir fui até á porta de sua casa, e passei, impellido pelo receio de indispol-a contra mim? Si ella me amasse, pensava eu, teria acceitado logo: não o fez; quer refflectir; devo deixal-a tranquilla, e respeitar a sua resolução. Que vou eu lá fazer? Obrigal-a á me aborrecer.

Horacio mentia; elle se ausentara da casa do Salles Pereira, sómente para vencer a resistencia da moça por uma simulada indifferença.

O carro do negociante aproximou-se:

—Vai sem me deixar uma esperança?

—Não é aqui o logar de pedil-a.

—Então amanhã?

—Si quizer!

No dia seguinte á noite o leão estava em casa do negociante. Amelia o recebera com um resto de resentimento, que se desfez com os primeiros galanteios. Succedeu o que era natural; depois de uma abstinencia de tantos dias, esses corações tinham sede de ternura, e beberam um no outro á largos sorvos.

Quando o leão se retirou, elle sabia que dois dias depois receberia officialmente, por uma carta do negociante, o sim que ouvira naquella noite entre um sorriso e um rubor.

Quanto á Amelia, depois que a auzencia do moço rompeu o encanto, e deixou-lhe unicamente a consciencia do compromisso tomado, lembrou-se involuntariamente de Leopoldo, cuja imagem pallida e triste, desenhou-se em sua imaginação.

—Elle ha de soffrer muito! pensou a moça suspirando.

No dia seguinte havia reunião em casa de D. Clementina. Amelia recordou-se disso, e fez tenção de ir. Naquelle momento julgou-se obrigada á communicar sua ultima resolução á Leopoldo. Pareceu-lhe que seria uma deslealdade deixal-o na ignorancia de seu casamento, até que viesse á sabel-o por algum estranho.

Mais tarde surgiram os escrupulos. Tendo acceitado a mão de Horacio, não era bonito animar uma affeição, que deixava de ser innocente. Embora nunca retribuisse a paixão de Leopoldo, podiam suppôr que não a repellia. Demais sendo natural que Horacio fosse passar a noite em sua casa, ella procederia muito mal, trocando sua companhia pela de um rival.

Emquanto as horas do dia se escoavam, estas e outras razões disputavam no espirito da moça a decisão que ella devia tomar. Afinal interveiu o coração!

—Tenho pena delle!

E ás oito horas estava em casa de D. Clementina. Nessa noite a moça, cujo espirito jovial sympathisava com as côres frescas e risonhas, escolheu um vestuario sombrio. Era uma faceirice melancolica. Aquella menina de 18 annos, que na vespera, muito espontaneamente se promettera á um homem elegante de seu gosto e escolha, afigurava-se agora uma victimado dever, sacrificando-se heroicamente ao compromisso contrahido.

Essa convicção dominava Amelia ao entrar na sala, e ressumbrava não só nas fitas pretas de seu trajo, como na languida flexão da fronte, e no olhar cheio de magoas. Ella se julgava sinceramente coagida por uma força irresistivel, que a arrancava á um amor profundo e santo, como a flôr que o vento arrebata ao tronco onde se enlaçara.

Leopoldo comprehendeu a melancolia de Amelia, e adivinhou que essa mulher estava perdida para elle no mundo; mas que sua essencia divina lhe pertencia, para todo o sempre. Sentiu pois a magoa da saudade, que precede a longa ausencia. Quando se tornariam a encontrar as duas metades dessa alma, separadas por uma contingencia da materia?

Pela noite adiante Leopoldo aproximou-se de Amelia, porem só lhe fallou de cousas indifferentes, ao contrario do que ella esperava. Si o moço a interrogasse á respeito do casamento, aproveitaria o momento para confessar-lhe; mas elle nem de leve tocou nesse ponto.

Na occasião de se despedirem a moça fez um esforço.

—Já sabe? perguntou com voz tremula e quasi imperceptivel.

—Adivinhei! disse o mancebo fitando nella os olhos tristes.

Amelia ficou um instante indecisa, em face delle, como si esperasse mais alguma palavra; Leopoldo dissera tudo naquelle olhar, em que diffundira sua alma.

—Adeus! murmurou a moça afinal.




XIII

A casa nobre de Azevedo resplandecia. A melhor sociedade da côrte concorrêra ao sumptuoso baile.

Toda aristocracia, a belleza, o talento, a riqueza, a posição e até a decrepita fidalguia, estavam dignamente representadas nas ricas e vastas salas, adereçadas com luxo e elegancia; duas cousas que nem sempre se encontram reunidas.

Eram nove horas. Ainda o baile não começara; e notava-se na reunião a gravidade solemne, o grande ar de ceremonia, que serve de prologo ás festas esplendidas. Os cavalheiros percorriam lentamente as salas, observando o iris deslumbrante que formavam os lindos vestidos das senhoras; mas admirando especialmente as estrellas que brilhavam nessa via lactea.

Amelia acabava de sentar-se.

Horacio foi logo saudal-a, e comprimentou-a pelo bom gôsto e delicadeza de seu trajo.

Realmente não se podia imaginar um adorno mais gracioso. O vestido era de escomilha rubescente, formando regaços onde brilhavam aljofares de crystal: nos cabellos castanhos trazia uma grinalda de pequenos botões de rosa, borrifados de gôttas de orvalho.

Um poeta diria que a moça tinha cortado seu trajo das finas gazas da manhã; ou que a aurora vestindo as nevoas rosadas, descera do céo para disputar as admirações da noite.

—Dançaremos a primeira: disse Horacio.

A moça corou.

—Sim.

Laura passava. Amelia chamou-a, mostrando-lhe um logar á seu lado. Horacio afastou-se para deixar as duas amigas em liberdade; mas principalmente para poupar a Laura a contrariedade de sua presença. Desde a noite do theatro o leão comprehendêra que a moça lhe votava antipathia.

Conversando com a amiga, Amelia descobriu defronte, no vão de uma janella, o vulto de Leopoldo, absorvido em contemplal-a, com um olhar profundo e intenso, que servia de valvula ás exbuberancias de sua alma. Sentindo-se sob a influencia desse olhar, a moça inclinou a fronte, como um signal de submissão, e abandonou-se á contemplação do mancebo.

De vez em quando procurava ler de relance no rosto de Leopoldo, as impressões de seu espirito, os movimentos de sua alma. Presentiu que o moço desejava aproximar-se della para lhe fallar, mas não se animava; a solemnidade da festa, a grande concurrencia, a proximidade de Laura, tolhiam o mancebo, cujo caracter fóra da intimidade se confrangia, por uma especie de pudor, proprio das almas virgens.

Amelia sentiu um desvanecimento, descobrindo aquella fraqueza no homem cujo olhar a dominava, e lembrando-se que ella podia nesse instante protegel-o. Não ha para a fragilidade da mulher maior orgulho e prazer, do que observar a fragilidade no homem. Vinga-se da tyrannia do sexo forte.

—Vamos sentar-nos do outro lado, Laura?

—Para que? Estamos tão bem aqui.

—D'ali vê-se melhor a sala; e deve estar mais fresco.

—Como quizeres.

As duas moças atravessaram a sala, e foram tomar logar justamente no vão da janella onde Leopoldo se achava. Amelia conservou-se algum tempo de pé, com o pretexto de arranjar a cadeira, mas para dar occasião á Leopoldo de fallar-lhe. O mancebo adiantou-se com effeito e comprimentou.

Amelia estendeu-lhe a mão com interesse, para animal-o.

—Terei a felicidade de dansar uma quadrilha....

—Qual?

—A ultima!

—A ultima? repetiu Amelia rindo-se.

—Sim; depois que tiver dansado com todos; replicou o moço completando seu pensamento com o olhar.

—Então a sexta.

A orchestra abriu o baile com uma brilhante symphonia, depois da qual deram o signal da primeira quadrilha. Rompeu-se então a symetria, e formou-se o turbilhão.

Durante a contradansa, Horacio não se esqueceu do pésinho adorado; e procurou todos os meios de o descobrir n'algum momento de confusão ou descuido. Chegou até á fingir estouvamento em algumas das marcas com o fim de embaraçar o vestido da moça.

—Eu me sento! disse-lhe Amelia irritada.

Barbara, non hai cor! replicou-lhe Horacio com as palavras do romance.

—O seu coração está no botim? perguntou-lhe a moça com despeito.

—O meu a senhora bem o sabe, já não me pertence, pois lh'o dei a muito tempo; e ando-o agora procurando no chão, onde creio que o deixou esmagado um tyranno que eu adoro e me repelle. Mas conto com a senhora para movel-o em meu favor. Sim?

—Não: respondeu a moça agastada.

—Realmente eu não comprehendo. Será possivel que a senhora tenha ciumes delle? perguntou Horacio gracejando.

A moça olhou-o com expressão.

—Tenho sim, tenho ciumes!

Terminada a quadrilha, Horacio, depois de algumas voltas de passeio pela sala, deixou a moca no seu logar, e desceu a escada de marmore que levava ao jardim, illuminado com lampeões de diversas côres. Havia ao lado da casa, e ao longo de uma latada, mesas de ferro para tomar sorvetes e refrescos. Horacio, dirigindo-se para esse logar, avistou Leopoldo sentado á uma das mesas.

—Oh! por cá tambem, Leopoldo?

—É verdade; contra meus habitos.

—Está esplendido! Não achas?

—Sem duvida. Mas parece que não tem grande interesse para ti.

—Porque pensas assim?

—Vens te esconder aqui, quando se dansa. Devias deixar isso para mim, que sou uma especie de misantropo, uma alma errante neste mundo das fadas.

—Para ser franco, devo-te confessar, que neste baile, onde se acham reunidas as mais bonitas mulheres do Rio de Janeiro, onde nada do que póde tornar brilhante uma festa, nem o luxo, nem a riqueza, nem a concurrencia, nem as notabilidades de toda a especie, neste baile só ha uma cousa que me interessa; uma cousa bem pequenina, e por isso mesmo de um encanto inexprimivel.

—Que condão será esse tão poderoso?

—Disseste a palavra. É um condão, um verdadeiro condão de fada, que me transformou de repente, e fez do senhor um escravo humilde e submisso.

—Mas no fim de contas o que é?

—Um pésinho!

Tendo proferido esta palavra, Horacio julgou ter dito tudo quanto era possivel exprimir na linguagem humana. Um pésinho, era aquelle ente adorado que elle entrevia nos sonhos dourados de sua imaginação; era o primor, que deixara impressa a sua fórma delicada na mimosa botina. O moço desenhava na fantasia aquelle idolo de suas adorações; e acreditava que Leopoldo devia, como elle, extasiar-se ante a maravilha da natureza.

Longe disso, Leopoldo depreendera das palavras do amigo, que elle estava sob a influencia de uma paixão materialista; que elle amava a fórma, e levava sua idolatria á ponto de adorar não a fórma completa, a imagem viva e palpitante da mulher; mas um fragmento, um trecho apenas dessa fórma.

—Pois para mim tambem, disse Leopoldo, só ha neste baile como neste mundo uma cousa que me illumina a existencia.

—A gloria?... aposto.

—Um sorriso, apenas.

Horacio não pôde reprimir um gesto desdenhoso. O sorriso era para elle uma das cousas mais triviaes: tinha-os colhido tantas vezes, e em labios tão puros e mimosos, que já não lhe excitavam a attenção. Eram como as flôres de um vaso que todos os dias se substituem.

—Vais dansar? perguntou o leão.

—Agora não.

—Pois façamos uma cousa. Conta-me a historia de teu sorriso, que eu te contarei a historia de meu pésinho.

—Começa então. Cabe-te a preferencia; disse Leopoldo.

—Eu a acceito; porque o objecto de meu culto não tem igual no mundo.

Horacio accendeu o charuto. Elle não tinha o menor interesse em saber a historia de Leopoldo; o que desejava era um pretexto para fallar do objecto de sua adoração, e vasar o que tinha n'alma.

—Ha cerca de dous mezes, passando pela rua da Quitanda, achei por acaso sobre a calçada um objecto que tinha cahido de um carro. Era uma botina, mas que botina!... um mimo, um primor, uma cousa divina!

«Não pódes fazer idéa, não, Leopoldo. Sabes si tenho amado mulheres lindas de todos os typos, alvas ou morenas; formozuras de todas as raças, desde a loura escosseza até a brazileira de tranças negras; adorei-as, umas depois de outras, e ás vezes ao mesmo tempo, essas differentes irradiações da belleza. Pois confesso-te que nunca o sorriso ou o beijo da mais seductora d'entre ellas me fez palpitar o coração, como aquella botina.

«Pensem os phisiologistas como quizerem, o pé é a parte mais distincta do corpo humano; sem elle a estatura não teria a nobreza, que Deus só concedeu á creatura racional.

«O pé revela o caracter, a raça e a educação. Cada uma das feições e dos gestos desse orgão de nossa vontade tem uma expressão eloquente. Ha quem não adivinhe em um pé delicado e nervoso a alma de fina tempera? Ao contrario um pé chato e pesado é a prova infallivel de um genio tardo e paxorrento.

«Virgilio, o poeta mais elegante que tem existido, comprehendeu que Venus occultasse aos olhos do filho, na selva lybica, a belleza immortal de seus olhos, de seu sorriso, de suas fórmas seductoras; mas não aquillo que era sua essencia divina, sua graça olympica. Foi pelo andar que ella revelou-se deusa; et vera incessu patuit dea.

«Nunca sentiste o doce contacto do pé da mulher amada? É uma sensação deliciosa que penetra nos seios d'alma. Podes apertar-lhe a mão, cingil-a ao seio, beijal-a. Nada vale aquelle toque subtil que abala até a ultima fibra.

«Faze pois idéa do que eu sentia. E a botina não era senão a estatua ou a effigie do pé encantador que a havia calçado. Ali estavam impressos seus graciosos contornos, sua fórma suave.

«Apaixonei-me por esse pésinho, que eu nunca vira, que não conhecia. Sagrei-lhe minha alma como ao ignoto deo de minhas adorações.»

Horacio exagerou então os esforços por elle empregados para descobrir o mysterioso idolo de suas adorações, e referiu os factos que já conhecemos. Teve porém a discrição, rara em um leão, de não revelar os nomes; receiava ainda que lhe arrebatassem a conquista.

—Finalmente, concluiu elle, o acaso me fez descobrir a dona do pésinho que em vão buscava. Has de crer, Leopoldo? Conhecia essa moça, que é realmente encantadora; diversas vezes achei-me com ella em sociedade, e nunca sentira á sua vista a menor commoção. Mas quando soube que á ella pertencia o thesouro, adorei-a. Para vêr o pésinho que sonhei, estou disposto a fazer a maior das loucuras, casar-me!...

—É esta a tua historia?

—Dize antes meu poema. Sinto não ser poeta para escrevel-o.

—Pois si me permittes franqueza, dir-te-hei que realmente o desenlace que lhe pretendes dar será uma loucura. O casamento, quando não une duas almas irmãs creadas uma para a outra, é uma especie de grilheta que prende dois galés; o supplicio de duas existencias condemnadas a se arrastarem mutuamente. Tu não amas essa moça, Horacio...

—Não a amo?

—Não!

—Quando lhe vou fazer o sacrificio que nenhuma outra mulher obteve de mim?

—Não passa de um capricho. Essa moça é para ti um pé e nada mais.

—A mulher que amamos tem sempre um encanto, uma graça especial. As vezes são os cabellos; outras os olhos; tu amas o sorriso; eu o pé.

Leopoldo levantou os hombros.

—Sem duvida. A alma da mulher, como a do homem, se revella em cada pessoa por uma feição mais distincta por uma expresão mais eloquente. Mas não é isto o que succede comtigo. Tu sentes a idolatria da belleza material; procuraste sempre na mulher a fórma, o amor plastico; á força de admirar os mais lindos rostos e os talhes mais seductores, ficaste com o sentido embotado; precisavas de algum sainete que estimulasse teu gosto. Viste ou imaginaste um pésinho mimoso e gentil: tornou-se logo para ti o typo, o ideal da belleza material, que te habituaste á adorar.

Horacio soltou uma risada:

—Olha, Leopoldo, cá para mim o platonismo em amor, seria um absurdo incomprehensivel, si não fosse uma refinada hypocrisia. Esses mesmos que adoram a mulher como um anjo, de que se nutrem sinão da contemplação da belleza material que tratas com tamanho desprezo? É possivel que uma mulher feia seja amada por aberração do gôsto; mas fazer disso uma regra geral!...

—Ninguem pretende semelhante cousa. A belleza é um encanto, uma graça, um envolucro da mulher; mas não deve ser exclusivamente a mulher, como a petala é a flôr, e a scentelha é a luz.

—Sophisma! Tira a belleza á mulher amada e verás o que fica; o mesmo que fica da flôr que murcha e da chamma que se apaga; pó ou cinza.

—Queres que te prove o contrario? Ouve a minha historia.

—Ah! é verdade. A historia de teu sorriso?

—Sim.




XIV

O Almeida accendeu outro charuto:

—«Meu romance, disse Castro, começou como o teu na rua da Quitanda. Passando ali uma manhã, vi uma moça, que produziu em mim profunda impressão. Parei para contemplal-a; mas o que eu admirava nella, não era seu talhe elegante e seu rosto gracioso; era unicamente a emanação de sua alma pura, o seu casto e ingenuo sorriso.

«Quando o carro partiu, arrebatando-a á meus olhos, conservei sua imagem gravada em minha alma. Não penses, porém, que eu revia a sua figura, os seus traços. Não; era uma fórma immaterial, uma visão vaga e indistincta. Não me lembrava como eram suas feições; qual era a côr de seus olhos ou de seus cabellos; mas parecia-me que eu via sua alma reflectida na minha.

«Senti que amava essa moça, e affaguei este sentimento, que enchia meu ser de alegrias ineffaveis. Bastava-me vêr de tempos á tempos a minha desconhecida, e trocar com ella um olhar ou beber-lhe de longe nos labios o sorriso, que era emanação de seu ser.

«Estava-me reservada uma dura provança. Um dia vendo a minha desconhecida entrar no carro, descobri que ella tinha um defeito... um aleijão, é preciso dizer a palavra. A fimbria do vestido roçagando mostrou-me um pé deforme.

—Ah! exclamou Horacio, não podendo reprimir um sorriso.

—O acaso tornou-se nesse dia de uma previdencia cruel. O que eu tinha visto de relance era um vulto confuso, um volume exagerado talvez pela imaginação. Podia acariciar essa illusão, e desvanecer a impressão desagradavel que soffrêra. Mas o desengano não se demorou. Passando nessa mesma hora pela loja onde compro calçado, vi sobre o mostrador uma botina, verdadeiro contraste da que tu achaste, Horacio!

—É curioso!

—Não havia que duvidar; era o molde do pé deforme que eu acabava de vêr, mas o molde fiel!... Todos os traços phisionomicos do aleijão ali estavam bem debuxados, sobretudo na fôrma que servira para o calçado, e que ali se achava ao lado delle. Poupa-me a descripção do que vi. Era repulsivo; isto basta.

«Imagina o que devia soffrer! Não era o feio, não; era o horrivel, o estupendo, que de repente cahira como um peso enorme sobre meu coração, para espremer delle, com o ultimo sôro, um amor profundo e vehemente.

«A luta foi terrivel, mas breve. O amor triumphou, porque era o affecto d'alma, e não o culto plastico da belleza. Hoje si alguma vez me lembro do que vi, entristeço-me pelo desgôsto que ella ha de ter de sua deformidade; mas sinto que por isso mesmo a amo, e a devo amar ainda mais.

«Compara agora o teu com o meu amor, e dize em consciencia si tenho ou não razão. Para anniquilar o teu, não era preciso um aleijão; bastava substituir por uma fôrma commum esse primor que tu sonhaste, esse pésinho de silpho ou de deosa, que talvez não passe de uma illusão.»

—Illusão!... Si eu tive a mesma prova que tu! Mas demos a questão por finda. Nem tu conseguirás me convencer, nem eu quero reviver lembranças que te pezam. Desculpa-me ter fallado nisto. Como podia eu imaginar uma tal coincidencia!

—É verdade!

Os dois amigos deram algumas voltas no jardim, fallando de cousas indifferentes, e entrando nas salas, separaram-se.

Horacio procurou Amelia, durante algum tempo; afinal, passando pela porta do toucador, viu a mão da moça que entreabria a cortina de velludo verde.

—Está triste; disse-lhe o mancebo conduzindo-a ao salão.

—Estou fatigada; respondeu a moça com frio desdem.

Horacio conhecia profundamente a physiologia da mulher que ama: tantas vezes tinha lido e relido o livro mysterioso do coração feminino, que não podia escapar-lhe a menor alteração do texto. O tom de Amelia o sorprendeu; alguma cousa havia. O que era? O que podia ser?

Poucos momentos antes elle a deixára amavel e terna; uma hora depois vinha encontral-a desdenhosa e fria.

—Ciumes, naturalmente! pensou o leão com certo desvanecimento. Contaram-lhe alguma ou ella imaginou!

O moço resolveu sondar o coração da noiva:

—A senhora tem mais alguma cousa além da fadiga, confesse.

—Illude-se!

—Talvez! Concordo, para não contrarial-a ainda mais.

Deram alguns passos silenciosos:

—Vá amanhã jantar comnosco, sim? disse Amelia voltando-se para o cavalheiro com um sorriso ineffavel.

A transicção não podia ser mais brusca: uma aurora no seio da noite, tal era aquelle sorriso orvalhado de meiguices e graças encantadoras.

Outro, que não fosse Horacio, teria respondido sem a menor hesitação o sim, que supplicavam labios tão mimosos. Mas esse astuto Cesar dos salões, perito na tactica da guerra á mulher, não era homem que perdesse tão bom ensejo de alcançar o triumpho completo. O adversario lhe dera a vantagem da posição, cumpria aproveital-a.

—Amanhã?...

A moça fez com a cabeça um gentil aceno.

—Não irei.

—Obrigada.

—Não devo ir.

—Porque?

—Si eu fosse, pediria ainda uma vez aquillo que lhe tenho pedido tantas, e que a senhora me tem recusado tão cruelmente.

—Ah!

—Bem vê!... Iria contrarial-a, aborrecel-a...

—Cuida?...

Esta palavra tinha uma reticencia, e essa reticencia era um sorriso que entreabria o céo de uma alma candida.

—Então amanhã?... disse Horacio.

—Vai?

—E si eu pedir?

—Experimente!

Amelia sentou-se, e Horacio, ebrio de ventura, desceu outra vez ao jardim para desafogar as exhuberancias de sua alma. Nunca a primeira entrevista da mulher que mais amára produzira nelle tão profunda emoção.

Para achar alguma cousa comparavel com o que então sentia fôra necessario remontar aos dias da juventude, aos tempos das primeiras pulsações de um coração virgem.

Sua paixão por Amelia tinha realmente uma virgindade. O conquistador havia amado na mulher todas as graças e encantos, mas nunca até então havia adorado um pé. Devia pois experimentar realmente as sensações inebriantes de um primeiro amor.

Na sala dansava-se a sexta quadrilha.

—Acho-a pensativa, disse Leopoldo reparando que o lindo rosto de seu par, ordinariamente animado por uma gentileza vivaz, estava agora amortecido pela reflexão.

Amelia fitou nelle seus grandes olhos ingenuos.

—E não tenho razão?...

Leopoldo calou-se. Tinha comprehendido o pensamento de Amelia. Na vespera de decidir de seu destino, de ligar eternamente sua existencia, a mulher deve ter desses instantes de recolhimento intimo. A duvida agita-se no seio da fé mais profunda, o receio no amago da esperança mais risonha. As flôres do coração, como as da natureza, têm um verme, que as babuja.

Que podia Leopoldo dizer á essa alma perplexa? Augmentar-lhe a duvida, dar força ás vacillações, não seria digno; parecia-lhe uma seducção. Confortal-a em sua fé, animar-lhe a esperança, apontar-lhe para um futuro cheio de venturas, fôra nobre e generoso; mas faltava-lhe abnegação para tanto.

Terminada a contradansa, Amelia pelo braço do par deu uma volta pela sala. A um aceno de seu leque, Horacio, que estava conversando em um grupo, chegou-se.

—Chame, papai. São horas!

Emquanto o leão procurava o Salles para prevenil-o do desejo de sua filha, Amelia dirigiu-se ao toucador.

Leopoldo ficara sorprezo de vêr a moça fallar á Horacio, e com um tom bem expressivo de intimidade.

—Não pensava que se conhecessem... tanto? disse elle com a voz commovida.

—Pois é com elle...

O rubor que tingiu as faces da donzella rematou a phrase com a sublime eloquencia do pudor.

—Não sabia? perguntou a moça para disfarçar.

—Não!

—Como o Sr. diz este não!

Com effeito a voz de Leopoldo tivera uma vibração profunda, quando pronunciára aquelle simples monosyllabo.

—Desejava que não fosse elle? perguntou a moça com certa ansiedade.

—Porque?

Aproximava-se Horacio dando o braço a D. Leonor, e seguido pelo negociante. Amelia separou-se de seu cavalheiro, e levantando a cortina de velludo do toucador, voltou-se:

—Ha de me dizer! insistiu.

—É preciso? perguntou Leopoldo, e seu olhar desceu lentamente do rosto da moça á fimbria do vestido.

Amelia empallideceu; a cortina, escapando de sua mão tremula, occultou-a.

—Conhecias, Amelia? perguntou Horacio, em quanto esperava que as senhoras sahissem do toucador.

—Estás admirado, sem duvida! retorquiu Leopoldo seccamente.

O leão fitou no companheiro um olhar interrogador; mas occorreu-lhe de repente uma idéa, que lhe trouxe aos labios um sorriso de ironia. Lembrara-se do aleijão.

A mulher amada por Leopoldo, não podia ser Amelia. Mas quem sabe si o idealista capaz de adorar uma monstruosidade, o espirito severo que desdenhava a belleza material, não soffria a seducção irresistivel do mimoso pésinho?

—Admirado de que? De te vêr convertido á idolatria da belleza material?...

Amelia que sahia do toucador, embuçada em sua capa de cachemira escarlate, tomou o braço do noivo e desceu as escadas.

Quando partia o carro do Salles, Leopoldo que tambem se retirava, encontrou Horacio na porta.

—A illusão é a unica realidade desta vida! disse elle sorrindo.

—O que?

—Adeus!




XV

Seriam quatro horas da tarde.

Amelia já vestida para o jantar, esperava o noivo, trabalhando em um bordado de tapessaria. A seu lado em uma linda banca de costura forrada de páo setim, havia, além dos utensilios necessarios, uma profusão de seda frouxa de varias côres.

No setim branco, estendido pelo elegante bastidor de mogno, via-se o risco de um par de sandalias, que pareciam destinadas á alguma fada, tão pequena, mimosa e delicada era a fórma do pé.

Um dos esboços estava ainda intacto; no outro porém via-se já um florão de rosas bordadas á seda frouxa, e no centro a lettra L., feita com torçal de ouro. Era naturalmente a inicial do nome, em cuja tenção a moça trabalhava.

Amelia estava nesse dia talvez menos formosa, porém em compensação mais seductora. Certa expressão languida, ou de cansaço ou de melancolia, embotava a flôr de sua habitual lindeza, desmaiando o matiz dos labios e das faces, velando o brilho dos olhos pardos. Seu trajo branco ainda mais ameigava a sua phisionomia.

Não ha para arrebatar os sentidos, como essa languidez da mulher amada. Parece que ella verga com a exhuberancia do amor, como a planta muito viçosa, quando concentra a seiva que não brota em flôr. O homem querido se regosija, pensando que suas palavras e suas caricias pódem, como os orvalhos celestes, reanimar e expandir o coração da mulher amada.

Talvez em Amelia não fosse esse desmaio senão o effeito da fadiga do baile, e das scismas da noite mal dormida.

Emquanto bordava, o ouvido da moça attento esperava algum rumor que lhe annunciasse a chegada do noivo. Um carro parou á porta; e momentos depois soaram na sala de visitas os passos de alguem.

Era Horacio.

Vendo a moça na saleta proxima, o leão dirigiu-se a ella, com a familiaridade á que lhe dava direito seu titulo de noivo. Trocados os comprimentos usuaes, sentou-se junto ao bastidor.

—O que está bordando?

Amelia fez um gesto para cobrir o bordado:

—Deixe vêr! insistiu o moço.

—Não vale a pena!

—Ah!

Esta exclamação desfez-se nos labios do mancebo em um sorriso de jubilo.

—É um presente de annos para uma amiga! disse Amelia.

—Não são para a senhora?

—Não; respondeu a moça admirada.

—Está zombando commigo!

—Veja!

A unha de nacar da moça, mostrou o L. bordado a ouro.

—Pois ha quem tenha este pésinho mimoso, a não ser minha noiva? disse Horacio rindo-se.

—Eu? exclamou Amelia enrubecendo. Pobre de mim!

—Lembra-se do que me prometteu hontem á noite?

Uma nuvem de tristeza cobriu o lindo semblante da moça; com a fronte pendida e os olhos baixos, parecia contrahida por uma dôr intima.

—Amelia!

—Hontem... não tive animo de contrarial-o. Fiz mal; desculpe-me.

—Então sua promessa? disse o moço com ironia.

Amelia voltou o rosto como para esconder uma lagrima.

—Acredite. O que me pede... não posso... não tenho forças para fazer. Si o senhor soubesse!... E entretanto deve saber, porque... Eu lhe supplico, não fallemos disso agora; depois eu lhe direi. Prometto-lhe!

—Não se dê a este trabalho. Já sei quanto basta: zombou de mim.

Horacio levantou-se visivelmente despeitado, e volveu os passos pela sala. Amelia continuou a bordar, talvez para disfarçar o seu vexame.

Decorridos alguns instantes, Horacio, lançando um olhar para a moça, occupada com seu bordado, viu alguma cousa que o sobresaltou. A fimbria do vestido, suspensa na travessa do bastidor, devia descobrir o pé da moça para quem estivesse sentado á sua esquerda.

O leão aproximou-se na esperança de sorprender o avaro thesouro que se roubava á seus olhos.

—Não sabia que bordava tão bem!

—Ora! Não tenho paciencia para estes trabalhos. Si não fosse uma divida...

—Como? Não é mais presente de annos?

—Uma e outra cousa.

—Ou talvez nem uma nem outra; disse Horacio adoçando o tom de ironia.

—Que necessidade tinha eu de enganal-o? disse Amelia com um doce resentimento. Uma amiga minha...

—Cujo nome não consta.

—É segredo! atalhou a moça com faceirice.

—Ah! É segredo?

—Inviolavel. Ella não quer por cousa alguma que saibam nem mesmo suspeitem....

—Que é sua amiga?

—Ora!... Que tem um pé deste tamanho: disse a moça mostrando o bordado.

—Devéras? acodio Horacio.

—Ella pensa que é um aleijão e sente uma tristesa...

—Na verdade, possuir um thesouro, um primôr! Admira como sua amiga já não morreu de desgôsto.

—Mas fallando sério; não é natural que uma moça tenha o pé de uma menina de sete annos.

—Não sei si é natural; mas sublime, asseguro-lhe que é. Ha certas graças na mulher que devem ficar sempre meninas; as huris, as fadas, as deusas, são assim.

—Com effeito! Si eu fosse ciumenta!

—De sua amiga?... De uma amiga tão intima?... Era quasi ter ciumes de si mesma! disse Horacio gracejando.

—O que o senhor quer sei eu. É vêr se adivinha.

Horacio tinha sustentado esta conversa com interesse extremo; menos pelas palavras da moça, do que pelos movimentos da fimbra do vestido. A saia, arregaçando gradualmente com a inflexão do talhe gentil da moça reclinada sobre o bastidor, promettia brevemente descobrir o thesouro, tão estremecido pelo mancebo.

Amelia, occupada com seu trabalho, e distrahida com a conversa, se esquecêra daquelle constante cuidado que ella tinha em compôr a orla do vestido. Durante a conversa apenas uma vez tirara os olhos do bordado, para lançar uma vista furtiva ao leão.

—Mas então essa amiga mysteriosa.... A senhora ia contar uma historia, si não me engano.

—Historia, não senhor. Queria explicar-lhe por que este bordado é o pagamento de uma divida.

—Justamente.

—Pois essa minha amiga, incommodava-se muito quando tinha de comprar botinas; custava achar um par que lhe servisse. As de senhora eram muito grandes; as de menina eram muito baixas. Afinal encontrou um sapateiro, que trabalha tão bem como os melhores de Pariz.

—É exacto.

—Como exacto? O senhor sabe?

—A senhora não falla do Campas? disse Horacio um tanto perturbado.

—Não, senhor.

—Pensei.

—Haverá dois mezes; indo eu a cidade, minha amiga, que tinha feito uma encommenda de botinas, pediu-me para vêr si estava prompta. Quando o criado a trouxe para o carro onde o esperava, cahiu um pé de botina já usado, que fôra para modelo. Minha amiga ficou muito afflicta; e eu fiz tenção de dar-lhe no dia de seus annos umas chinellas bordadas por mim. Bem vê que não o enganei.

Proferindo as ultimas palavras, Amelia sempre occupada com seu bordado, debruçou-se completamente sobre o bastidor para desembaraçar o fio de sêda frouxa. Este movimento produziu o que Horacio esperava. A saia, retrahida pela travessa do bastidor, descobriu até o artelho o pé da moça.

O moço estremeceu com a forte emoção; e fechou os olhos, atordoado.

O que vira era uma cousa indefinivel, estupenda. Era o aleijão, a monstruosidade de que lhe fallára Leopoldo. Aquella massa informe; aquella enormidade cheia de cavernas e protuberancias, elle a tinha ali em face, diante dos olhos, escarnecendo do seu amor, como um desses caturras hediondos das lendas da idade media.

—Diga-me uma cousa: hontem depois que sahimos o senhor conversou com aquelle moço que dansou commigo? O Leopoldo, não é?

Não recebendo resposta, Amelia ergueu a cabeça para interrogar o noivo com o olhar. O aspecto demudado de Horacio, o sorriso pungente que amarrotava seu bigode artistico, a vista anciada que elle tinha fixa no monstro, lhe reveláram subitamente o que succedêra.

Um grito de afflicção escapou-se do peito da moça, que afastou violentamente de si o bastidor, causa do accidente, e colheu os largos volantes da saia, occultando o que ella por tanto tempo defendêra contra a curiosidade soffrega do moço. Por alguns instantes os noivos permaneceram mudos e confusos, sentindo-se repellidos um pelo outro, e comtudo não ousando affastar-se. É um supplicio cruel esse que inflinge a presença de um ente que faz corar de vergonha.

Afinal Horacio levantou-se e deu alguns passos á esmo. Amelia aproveitou-se desse movimento para fugir da sala. Ficando só, o leão dardejou para o interior um olhar terrivel; e tomando o chapéo, desceu rapidamente as escadas.

Agora elle comprehendia tudo: e as palavras que Leopoldo lhe dissera na vespera, ao sahir do baile, lhe repercutiam ao ouvido, como uma gargalhada satanica:—«A illusão é a unica realidade deste mundo.»

—Como pude eu tanto tempo illudir-me com o excessivo recato de Amelia? Como não desconfiei do pudor selvagem que vellava semelhante á um dragão sobre o terrivel segredo?

«Não ha moça, seja ella o anjo da pudicicia, que não mostre ao menos a pontinha do pé, quando o tem mimoso e gentil. Eu devia saber disso, mas estava cégo. Todos cochilamos, sem ser Homeros: eu que me prezo de conhecer a mulher, portei-me como um calouro.

«Consumir dois mezes á correr após uma sombra, e quando esperava que a sombra tomasse corpo, ella se desvanece... Qual! Antes se desvanecesse; mas ao contrario toma um vulto medonho, enorme, esqualido. Faz-me quasi lembrar o verso de Camões.»

Horacio soltou uma gargalhada:

—Realmente eu não sei qual de nós dois ficou mais corrido. Si ella de mostrar a toeza; si eu de a vêr.

«Sonhar uma perola, e encontrar um seixo; imaginar um mimo, e achar uma brutalidade; desejar um botão de rosa, e colher uma tubara!

«Si os rapazes souberem disto, estou deshonrado. Como posso eu mais apresentar-me na rua do Ouvidor, quando a cousa divulgar-se? Todo o asno terá direito de atirar-me o couce, como ao leão moribundo da fabula.»

Horacio começou á reflectir, si fizera bem sahindo tão precipitadamente da casa de Salles. Moderou o passo, e olhou o relogio. Eram perto de cinco horas. Si voltasse, chegaria tarde; demais, como explicar a retirada e a volta?

—Em todo o caso, pensou o leão, a fortuna não me desamparou de todo. Assim como a illusão durou até hoje, podia prolongar-se mais algumas semanas, e... Tremo de horror, quando me lembro que eu podia ser atado aquelle mourão, aquelle poste! Ser condemnado a arrastar uma trave por toda a vida? Que supplicio!

«Si eu podesse imaginar que o Omnipotente, creador de tantas maravilhas, se occupa com a minha ridicula individualidade, e se interessa pelos pecados que eu tenho commettido, me ajoelhava aqui mesmo na rua, e lhe renderia graças pela minha salvação.»

«Quem se livrasse de ser esmagado por uma rocha, não escaparia de tão grande perigo como eu. Casar-se um homem com aquelle pé, seria predestinar-se para o homicidio.»

Passava um carro, que parou de repente.

—Ainda por aqui, Almeida? disse o Salles deitando a cabeça fóra do carro.

—É verdade... sahi, mas....

—Entre, que hão de estar á nossa espera; São cinco horas, demorei-me hoje além do costume; por causa mesmo do senhor, maganão! Certos arranjos.

Horacio procurou rir, mas fez uma careta que desculpou com um callo. Elle, o leão, sempre elegante, correcto e irreprehensivel no trajo, como nas maneiras, tinha perdido completamente a serenidade de espirito.

As senhoras estavam reunidas na saleta. Amelia ficou sorprendida, vendo Horacio de volta com seu pai; e reprimiu o contentamento que sentia. Mas este durou pouco. Ella conheceu logo que o leão obedecêra mais ás conveniencias, do que ao affecto que lhe tinha.

Comtudo essa volta significava alguma cousa. Ella, Amelia, não causava horror á seu noivo.

O jantar foi animado pela conversa viva e espirituosa de Horacio, que havia recuperado seu sangue frio. Uma circumstancia porém não escapou a Amelia, que passou desapercebida ás outras pessoas; o leão, apezar de sentado á sua esquerda, não achou um momento para trocar com ella uma palavra. Ao contrario, manteve sempre a conversação geral, para impedir o dialogo intimo, que elle receiava.

Terminado o jantar, Horacio achou um pretexto para retirar-se logo.

—O que se passou D. Amelia, é mais do que um segredo para mim; eu nada sei, esqueci; disse elle despedindo-se.

Tocando apenas na mão que a moça lhe estendêra, sahiu.

Amelia deu um passo para chamal-o, mas apoiando-se ao recosto do sofá, permaneceu immovel, escutando os passos do noivo até que se perderam ao longe.




XVI

Fazia uma semana que Horacio não apparecia em casa de Salles.

Amelia tinha por duas vezes mandado saber do noivo. Da primeira contentou-se com um recado; da segunda enviou-lhe uma saudade.

O negociante de sua parte havia passado por casa do moço, que pretextou um defluxo para justificar sua ausencia; e prometteu apparecer no dia seguinte.

Horacio comprehendia a necessidade de sahir da posição difficil em que se achava, mas debalde procurava um meio. Cansado de cogitar, entendeu que o melhor era confiar-se á inspiração do momento.

No dia seguinte á noite, dirigiu-se á casa do negociante.

As duas senhoras estavam sentadas junto a mesa; a mãi lia, a filha pensava. Amelia estava triste, sua mãi suppunha que eram saudades.

Quando Horacio entrou, D. Leonor o festejou com verdadeiro prazer. Amelia sentiu um vislumbre de esperança, que illuminou o sorriso de seus labios.

—Felizmente! exclamou D. Leonor. Esta casa era uma fonte dos suspiros!

A conversação começou friamente, e foi se arrastando por algum tempo.

—Não tem sahido? perguntou Horacio depois de uma pausa.

—Não; Amelia não tem querido.

—Por que? perguntou o moço voltando-se para a noiva.

—Então não sabe? acodiu D. Leonor.

—Porque não se offereceu occasião; disse Amelia.

—Mas tem recebido visitas?

—Algumas.

—O Leopoldo não appareceu!

—Não frequenta nossa casa; respondeu a moça.

—Ah! cuidei?

—Si elle nos visitasse, o senhor o teria encontrado aqui muitas vezes.

—Podiamos nos desencontrar, disse Horacio com um sorriso motejador.

Amelia percebeu que o moço estava procurando um pretexto para despeitar-se. D. Leonor tendo continuado a leitura interrompida estava alheia a conversação.

—Foi em casa do Azevedo que o apresentaram á senhora.

—Não; conheço-o de muito tempo; ha perto de dois mezes.

—De onde, si não é segredo?

—Segredo por que? Elle frequenta a casa de D. Clementina que recebe ás quintas-feiras. Constantemente nos encontramos ahi. É uma reunião muito agradavel, estamos quasi em familia, sem a menor ceremonia.

—Ah! nunca me convidou para essas reuniões; eu teria muito prazer em acompanhal-a, mas talvez fosse importuno, como já vou sendo aqui.

—O senhor está habituado a viver na alta sociedade; havia de aborrecer-se.

—Mas a senhora não se aborrecia; ao contrario divertia-se bastante.

—Alguma cousa.

—E Leopoldo era seu par?

—Era.

—Par constante?

—Não sei si era constante ou não; quasi sempre elle dansava commigo, porque lá não ha muito onde escolher; os pares são poucos.

—Optimo systema! Assim não se repara?

—Em que?

—Em certa assiduidade! Ainda mesmo que uma moça já tenha noivo arranjado, ha gente que exige da parte dessa moça certa reserva, porque emfim o outro póde não querer acceitar a responsabilidade de tudo! É uma impertinencia, concordo, mos o mundo tem destes caprichos.

—Isso se entende naturalmente com as moças que têm noivo arranjado, retorquiu Amelia frisando a palavra, e não com aquellas, cuja mão se pediu talvez para satisfazer uma simples fantazia.

A moça levantou-se da mesa, lançando ao leão um olhar desdenhoso, e foi sentar-se ao piano. Emquanto ella tocava uma variação de Thalberg, Horacio para fazer alguma cousa, se entreteve em arranjar as figuras chinezas de um jogo de paciencia. Nunca elle precisára tanto de provêr-se dessa virtude evangelica.

Decorridos alguns instantes o leão ergueu-se da meza; deu algumas voltas pela salla, e aproximou-se do piano, como para vêr a elegancia com que a moça dedilhava.

—A senhora acha muito natural, D. Amelia, que uma noiva frequente assiduamente uma casa onde não tem entrada o homem com quem vai casar-se; acha natural que essa moça tenha em taes reuniões um par effectivo, que provavelmente cultiva uma dessas amisades candidas dos romances de Balsac, verdadeiros lirios do valle, que vivem de orvalhos e de sombras. Eu, porém, sou um espirito prosaico e material: tenho a infelicidade de não acreditar na attracção mysteriosa dos espiritos, no consorcio ideal das almas irmãs, nos sonhos ethereos, nos effluvios celestes, em toda essa giria sentimental. Para mim, intelligencia grosseira, tudo isso não passa de uma hypocrisia do primeiro tartufo deste mundo, o amor. É um tyrannete que toma todas as figuras e posições; faz-se menino ou velho, anjo ou demonio, poeta ou banqueiro... Estou incommodando-a talvez?

—Não; acabe.

A moça fazia com uma ligeira surdina o acompanhamento das palavras do leão; mas á ultima phrase, ella retirou as mãos do teclado. Foi esse o motivo da pergunta de Horacio.

—A senhora deve sentir muito, e Leopoldo com maior razão, de serem privados de uma distracção que tanto lhes agrada!

—Comprehendo, replicou Amelia. O Sr. me prohibe que eu vá á casa de D. Clementina?

—Que idéa! Não tenho direito de prohibir; ainda não sou seu marido; a senhora é completamente livre de suas acções, póde ir á casa de D. Clementina, ou onde lhe approuver; assim como eu posso, querendo, passar as noites no Club ou no Alcazar.

Amelia soltou uma risada.

—Pensava, que os leões estavam isentos dessa fragilidade do ciume.

—Perdão; não se trata de ciume, nem sei o que isso é. A questão reduz-se á uma antipathia de caracteres, á uma contradicção de genios, que deve ter para o futuro graves consequencias. A senhora é idealista, eu sou materialista. Um quizera viver no mundo dos sonhos, outro neste valle das lagrimas e das realidades. A senhora procurando-me no céo entre as estrellas e os anjos, e não me achando ahi, soffreria uma cruel decepção; entretanto que eu na terra, ficarei reduzido á sombra da mulher que amei.

—Não é tão pouco, para quem se contentava com um pé de criança; disse Amelia com ironia.

—Mas esse pé era a realidade, a expressão a mais sublime della!

—Custa-lhe pouco á possuir essa realidade Mande fabrical-a em cêra: sahirá ainda mais perfeita.

—Ainda não perdi a esperança de encontral-a.

O chá interrompeu o dialogo. Os dous noivos aproximaram-se da meza oval, onde o criado acabava de collocar a bandeja.

A phisionomia de Amelia perdêra a expressão de tristeza e desanimo que tinha a principio; a conversa lhe deixara no semblante alguns tons vivos.

Occupada em dispôr as chicaras para enchel-as; os gestos sempre macios da moça revellavam certa crispação nervosa.

Horacio ficára contrariado, porque não tivera tempo de precipitar o casus belli. Receiava que se demorasse ainda o rompimento que elle tanto desejava.

—Mamãi, disse Amelia com intenção, amanhã é quinta-feira. Vamos passar a noite em casa de D. Clementina?

—Si quizeres.

—Não devemos faltar; deixámos de ir a semana passada.

—Foi logo depois do baile do Azevedo.

—Não o convido, disse Amelia voltando-se para Horacio, porque o senhor não frequenta essas reuniões de gente pobre.

—Sem duvida; tenho medo de evaporar-me em devaneios e suspiros; respondeu Horacio, cruzando com a moça um olhar de desafio.

Elle sentiu que Amelia o provocava, e exultou. A moça estava disposta a resistir; o rompimento era infallivel e prompto.

—Eu gosto bem dessas partidas; a noite passa tão agradavel.

Aproveitando-se de um momento em que D. Leonor se afastou, Horacio atirou á moça rapidamente estas palavras:

—Pois si a senhora voltar á casa de D. Clementina, eu não voltarei mais aqui.

Amelia estremeceu.

Um quarto de hora depois, Horacio retirou-se. Quando se despedia das senhoras, disse o leão á moça apertando-lhe a mão:

—Desejo que se divirta muito amanhã.

—Aonde? perguntou D. Leonor.

—Em casa de D. Clementina. Não vai, D. Amelia?

A moça hesitou um instante. O offêgo de seu collo trahiu uma luta violenta, mas rapida.

Sua resolução, antes que ella a exprimisse, manifestou-se na altivez do porte, que uma vibração intima erigira.

—Vou sem falta!

Horacio, soltando a mão da moça, que foi bater inerte nos folhos do vestido, cortejou profundamente.

—Seja muito feliz.

Apenas o leão desappareceu na porta, Amelia abraçando e beijando a mãi, subiu precipitadamente á sua alcova; atirou-se á uma conversadeira, e desafogou em pranto e soluços a dôr que tinha recalcado desde muitos dias.

A maior parte da noite foi para ella de vigilia. Viu correrem as horas; cada momento que se escoava era uma esperança, uma illusão que se desfolhava da flôr viçosa de sua alma.

Aquelles que se separam das pessoas ou dos sitios queridos, conhecem bem esse travo do coração que chamamos saudade e sabem quanto é cruel o momento de separação.

Mas não ha despedida cruciante como seja a da alma pelo amor que nutrio durante muito tempo. Ha ahi mais do que uma separação; é quasi a mutilação moral.

Amelia comprehendêra que tudo acabara entre Horacio e ella. Desde o dia do jantar receiara esse resultado; mas ainda alimentava uma esperança. Naquella noite a esperança murchara, si não foi ella propria Amelia, quem a desfolhara.

Agora na calada da noite, era sua alcova que lhe parecia um ermo, ella tinha medo do isolamento em que se achava. Algumas vezes sua alma sentia-se como que asphixiada pelo silencio e pela treva que a submergiam.




XVII

Como dissera á Amelia, na sua ultima visita, Horacio não tinha perdido a esperança de encontrar o que elle chamava a realidade de seu amor; o pésinho gentil e mimoso do qual elle possuia a botina.

Illudira-se nas suas investigações; era preciso recomeçar.

Tal era o pensamento que preoccupava o leão, recostado naquella mesma poltrona, onde o vimos no primeiro dia. Seu olhar embebido nos frocos da fumaça do puro havana, rastreava nas espiraes diaphanas a imagem confusa de seus pensamentos.

Tinham decorrido tres dias depois do seu rompimento com Amelia. Logo na seguinte manhã, o leão para não dar tempo ao arrependimento da moça, escreveu uma carta ao Salles, manifestando seu receio de que a antipathia de genios tornasse infeliz uma união que todos ardentemente desejavam.

O negociante mostrou a carta á filha, que lhe disse com um sorriso forçado:

—Elle tem razão!

A carta de Horacio teve resposta no mesmo dia. O Salles encontrando-o na rua do Ouvidor recusou-lhe o comprimento.

O leão satisfeito com esse prompto desenlace que evitava longas explicações, achou-se á poucos passos de distancia em frente de Leopoldo.

—Oh! Tu me trazes felicidade! exclamou o leão, apertando-lhe a mão. Sempre que nos encontramos ou está para acontecer ou já tem acontecido alguma cousa de bom para mim.

—Não sabes quanto estimo!... Assim eu sou uma especie de astro propicio, sob cuja influencia nasceste.

—Queres vêr? Havia muito tempo que não te via, quando nos encontramos no baile do Azevedo. Pois nessa noite decidiu-se meu destino.

—Ah! e sob o meu influxo benefico?

—Está visto. Lembras-te que eu te disse que estava disposto a todos os sacrificios até o do casamento para possuir aquelle pézinho!...

—Lembro-me.

—O unico obstaculo era uma especie de promessa ou arranjo de familia. Felizmente a menina, a tal Amelia comprehendeu que perdia seu tempo, e arrufou-se na noite do baile por uma ninharia. Eu aproveitei o pretexto; escrevi ao pai retirando minha palavra, e agora mesmo elle me acaba de responder. Estou livre como o ar, e contente como um rapaz que sahe do collegio.

—Neste caso dou-te meus parabéns.

—E tu como vais com o sorriso?

—Sem novidade.

—Diz-me uma cousa, no dia em que a viste pela primeira vez, ella estava só ou com outra moça. Faço te esta pergunta porque foi na rua da Quitanda e quasi pelo mesmo tempo que eu achei a botina.

—Eram duas; respondeu Leopoldo sorrindo.

—Em uma victoria?

—Sim.

—A outra era mais baixa?

—Não affirmo.

—Adeus.

O leão separou-se do amigo, e repassando as particularidades de sua conversa com Amelia perto do bastedor e no dia do jantar, começou a combinal-as com as informações de Leopoldo, e com as circumstancias do encontro no Passeio Publico, onde vira o signal impresso na arêa pelo mimoso pézinho.

Agora, fumando seu charuto depois do jantar, o leão resumia todas as suas reflexões, e chegava á este resultado.

—Decididamente o pézinho é de uma moça que ia com Amelia, no dia em que se perdeu a botina e no dia em que eu a vi de longe no Passeio Publico. Essa moça, cuja inicial é um L, não é outra senão Laura. Aquelle pudor feroz era um indicio infallivel. Amelia procurava imital-o por motivo bem diverso; mas não o conseguiu.

O moço chegou-se a banquinha onde estava o cofre de pau rosa e contemplou a botina.

A noite o leão foi a uma partida. Sua estrella o favorecia. Laura lá estava. Dirigiu-lhe algumas banalidades graciosas, que ella a principio recebeu com manifesta esquivança, mas depois com timidez.

Horacio comprehendia a razão do procedimento da moça. Para tranquillisal-a, teve o cuidado de nunca abaixar a vista á fimbria do vestido, e mostrar-se enlevado pelo collo gracioso da gentil senhora. A lição que recebêra anteriormente, o tornou de uma prudencia consummada.

No fim da noite o leão conseguira restabellecer a confiança no espirito de Laura, desvanecendo-lhe a suspeita deixada pela scena do theatro. Era o essencial; com os meios de seducção de que dispunha, e a inclinação que a moça revelava por elle, contava certa a conquista. A questão era de tempo.

Antes de quinze dias frequentava a casa da moça, e estava na intimidade da familia.

Laura perdêra o marido aos 17 annos, pouco tempo depois de casada. Era rica; não lhe faltavam pretendentes atrahidos pelo dote e pela belleza; mas ella não parecia disposta a tentar segunda vez a felicidade conjugal, embora não tivesse passado da lua de mel. É natural que o desejo lhe chegasse com o primeiro fio de neve; quando fossem rareando os apaixonados que a cercavam.

Uma manhã, Horacio passando á pé, como costumava, pela casa da moça, viu-a, por entre as grades, sentada no jardim e occupada em fazer um ramo de flôres. Entrou e foi ter com ella, á sombra de uma latada de madre-silvas.

Laura deu-lhe logar perto de si; e começaram a conversar sobre flores, modas, e mil futilidades.

Eram dez horas do dia. O sol brilhava em céo limpido; uma aragem fresca sussurrava entre as folhas; os colleiros trinavam nas ramas das larangeiras. Esse concerto de perfumes e harmonias convidava o coração á abrir-se e cantar o seu hymno de amor.

Laura reclinou a fronte e emmudeceu, com os olhos embebidos no seio de uma rosa, que tinha no regaço. Horacio tomou-lhe a mão, que ella cedeu com tenue resistencia.

—Sabe desde quando eu a amo, Laura? Desde o dia em que a vi pela primeira vez passar em um carro. Foi si não me engano na rua da Quitanda; ia com a filha do Salles. Lembra-se?

A moça fez um gesto afirmativo.

—Depois encontrei-a no theatro. A principio seus olhos me deixaram conceber alguma esperança; mas o desengano foi cruel. Nem imagina como soffri! Cuidei que não houvesse mulher capaz de obrigar-me a voltar ás ingenuidades dos 18 annos. Um dia ainda me lembro, vi-a de longe entrar no Passeio Publico; apressei-me para ter o prazer de cortejal-a e receber um olhar. Debalde corri todas as ruas; quando voltei á porta fiquei desesperado. A senhora tinha sahido, sempre com a filha do Salles. Recorda-se?

—Recordo-me; respondeu a moça. Mas era por mim que fazia tudo isso?

—Duvida, Laura?

—Nega que esteve apaixonado por Amelia Até diziam que já a tinha pedido.

—Que ingratidão! Não sabe então porque me fiz apresentar em casa do Salles? Para vel-a, era preciso procurar um meio; a senhora já não se lembra da dureza com que me tratava.

—E por isso consolava-se com Amelia?

—Si amasse, Laura, havia de saber o que é o ciume, e as loucuras que elle nos obriga a fazer! Mas a senhora não ama!

—Quem lhe disse!

—Essa frieza.

—E o que eu soffri?... balbuciou a moça pondo os olhos languidos no semblante do mancebo.

—Perdão, Laura; exclamou Horacio ajoelhando. Eu era um louco, indigno de teu amor; e não mereço tanta felicidade. Mas deixa-me implorar o meu perdão; deixa-me beijar teus pés, que...

—Ah!...

Horacio proferiu aquellas palavras apaixonadas, de joelhos diante da moça que sorria inclinada para elle; de repente abaixou-se para beijar-lhe os pés, esse objecto de sua adoração. Foi então que ella soltando um grito de espanto, o repelliu para longe de si com horror.

Comtudo, o moço, que preparara toda aquella scena para chegar a realisação do desejo por tanto tempo afagado, conseguira vêr... Mas não o que esperava; um pésinho mimoso e gentil; e sim dois pés inglezes de soffrivel tamanho, que lhe pareciam descansar sobre uma almofada preta.

O semblante de Laura se tinha demudado de uma maneira espantosa; em suas faces entumecidas respirava uma expressão feroz de odio e vingança.

Horacio comprehendeu que naquelle momento qualquer explicação era impossivel. O que tinha de melhor a fazer era eclipsar-se. No fim de contas esse desenlace lhe convinha, pois cortava todas as dificuldades da retirada.

Cortejou e sahiu.

A alguns passos da casa, o leão não poude conter uma gargalhada, que lhe estava a soffocar, e desabafou-a. Realmente havia de que rir; duas vezes mistificado em sua paixão, elle o rei da moda, o conquistador sempre feliz.

Insensivelmente começou á reflectir sobre o occorrido. Por mais que se désse tratos, a imaginação não podia decifrar o enigma. A botina que achara fôra perdida por uma das duas moças; mas não pertencia á nenhuma. Seria encommenda de outra amiga, e talvez para alguma menina de dez annos?

De repente surgiu no espirito de Horacio uma idéa tão original, como a situação em que se achava.

—Eu vi os dois pés de Laura; mas de Amelia, só vi um; é verdade que esse valia por tres. Mas... Não resta duvida. A naturesa tem destes caprichos. A maravilha a par do monstro, o mimo em face da deformidade! É o principio do contraste, que rege o mundo. Eu vi o direito, o aleijão. O esquerdo ficou occulto, como a perola e o diamante.

Compenetrado dessa idéa, de que o pésinho adorado pertencia a Amelia, a quem a naturesa em compensação aleijara o outro; Horacio admittiu a possibilidade de que sua paixão pela moça revivesse, embora menos ardente, ou mais positiva.

Ter aquelle pésinho em suas mãos, sentil-o estremecer e palpitar de emoção, cobril-o de beijos, acariciar a rosea cutis diaphana, tecida de veias azues; brincar-lhe com as unhas crespas, como conchinhas de nacar; cingir ao seio esse gnomo gentil, titilante de amor e volupia!...

Não podia haver para o leão maior delicia neste mundo. Elle daria por ella todo o quinhão de prazer que por ventura lhe estava reservado para o resto da existencia.

Foi engolphado nestes devaneios que Horacio apeou-se á rua Direita de um tilbure, que tomara no largo do Machado.

Seguindo para a rua do Ouvidor, á passo lento e descuidado, o leão aspirava o ar da cidade, como o ocioso que não sabe em que ha de consumir o dia, e fareja uma aventura qualquer.

De repente avistou cousa que o pôz alerta. Um carro que subia a rua do Ouvidor passou por elle; era o coupé do Salles. O rosto encantador de Amelia appareceu-lhe á principio de relance na penumbra que azulava o acolxoado de damasco, depois em plena luz moldurado pelo quadro do postigo.

Acompanhando com o olhar a carruagem, Horacio a viu rodar por algum tempo vagarosamente por causa de embaraço no transito e parar proximo á esquina da rua dos Ourives. O lacaio, com a mão na aldraba, esperava naturalmente ordem para abrir.

Horacio apressou o passo. Por duas vezes avistara a fronte de Amelia coroada com um chapeosinho de palha de Italia, assomando no postigo, afim de percorrer a rua com o olhar. A idéa de que a moça lhe desejava fallar passou pela mente do leão, que a repelliu, sem comtudo consideral-a impossivel.

Em todo o caso elle acreditou que mais ou menos tinha parte naquella parada do carro, e não se enganava.

—Para que mandaste parar? perguntou D. Leonor.

—Quero comprar luvas no Masset; respondeu a filha.

—Ficou atraz.

—Podemos ir a pé.

Quando o leão chegou a dez braças do carro, a portinhola abriu-se e Amelia, em companhia de sua mãi, saltou na calçada. A moça tinha um roupão côr de café, de extrema simplicidade, porém muito elegante; as luvas eram da mesma côr de cinza das fitas do chapéo de palha.

As duas senhoras dirigiram-se para a casa do Masset. Horacio procurou cortejal-as na passagem, mas ellas não lhe deram occasião. Comtudo o leão reparou que a moça desfarçadamente voltou o rosto para olhal-o.

Emquanto as senhoras compravam luvas, Horacio as esperava em frente da casa do Valais, á alguns passos do carro. Pouco tardaram. Amelia vinha só na frente. Felizmente o transito pela calçada diminuiu naquelle instante, de modo que o conquistador poude vêr a gôsto a moça aproximar-se delle. Levados por um impulso irresistivel os olhares do mancebo abaixavam-se para os volantes do vestido, e rastejaram no chão que a moça pisava.

Amelia percebeu a insistencia do olhar, e um ligeiro sorriso fugiu-lhe dos labios. Imaginando que na calçada havia lama, colheu com ambas as mãos a frente da saia, e com tanto estouvamento que descobriu os pés até o colo da perna.

Horacio ficou fulminado.

Vira pousados na calçada dois pésinhos mimosos que palpitavam dentro de botinas de merinó côr de cinza. Pareciam um par de rolinhas, arrulhando na praia, e beijando-se com o biquinho rosado. Durante o rapido instante, que seus olhos poderam admirar esses primores de graça e gentileza, não escaparam a Horacio as ondulações voluptuosas e os contornos suaves dos dois silphos. Nunca elle observara no talhe elegante da mais formosa mulher, requebros tão avelludados como tinha aquelle dorso arqueado, e aquella palmilha subtil.

Tamanho foi o pasmo de Horacio, que só deu por si quando a moça, passando por elle, entrou na carruagem. Voltou-se então precipitadamente, sem consciencia do que ia fazer; mas a parelha já tinha partido a trote largo.

Momentos depois o leão descia a rua do Ouvidor completamente absorto. Seu labio distrahido ia debulhando, sem o sentir, alguns trechos dos lindos versos do conselheiro José Bonifácio:

«Padres, não me negueis, se estáes em calma, Um coração no pé, na perna um'alma!»




XVIII

Laura e Amelia eram primas e amigas de infancia; havia entre ellas apenas a differença de dezoito mezes.

Desde a idade de tres ou quatro annos, isto é, desde que deixou as faxas, Laura usou sempre de roupas compridas. Isso causava reparo a todos que viam a menina trajada como uma senhora. Muitos achavam extravagante e ridiculo o capricho e censuravam a mãi.

Esta ouvia as censuras de suas amigas, assim como os motejos estranhos, e calava-se; mas não alterava o vestuario da menina. A ternura e piedade materna lhe davam a paciencia necessaria para arrostar com as zombarias do mundo.

Laura tinha um aleijão; nascêra com os pés disformes. Para mais aggravar o desgôsto dos pais, essa monstruosidade vinha ligada á uma belleza angelica. A senhora avaliou do infortunio de sua filha; e preparou-se para todos os sacrificios. Consultas foram dirigidas aos melhores medicos da Europa; chegou a emprehender uma viagem para tentar os recursos da sciencia; foram todos ineficazes.

Desenganada afinal, dedicou-se a esconder a desgraça de sua filha, afim de que ella não fosse obrigada á envergonhar-se na sociedade. Durante muito tempo Laura não teve outra criada, alem de sua mãi. A custa de esforços constantes, de uma vigilancia incessante de cada dia e cada hora, conseguiu a senhora manter esse segredo de familia, do qual dependia a felicidade da filha.

Attingindo a idade de oito annos, a menina com o instincto da mulher, comprehendêra seu infortunio; e desde então descansou a mãi daquelle cuidado incessante. Ficando moça casou-se, e seu marido que a amava extremecidamente, morreu ignorando o segredo.

Com bastante magoa sua, Amelia sorprendeu o segredo da prima e amiga.

A filha de Salles tinha dois pésinhos de fada, breves, arqueados, com uns dedos que pareciam botões de rosa. O desgosto e vexame que isso causava á moça, ninguem o imagina. Ella suppunha-se aleijada; apezar de seus 18 annos, seus pés eram de menina.

Assim o mesmo cuidado com que Laura escondia a sua monstruosidade, punha ella em occultar essa graça e prenda da natureza. Naquelle tempo não se tinha introduzido ainda a moda dos vestidos curtos; bem ao contrario o tom era arrastar desdenhosamente pelo chão a longa fimbria do vestido.

Um dia que Laura passou em sua casa, Amelia teve curiosidade de comparar seu pésinho com o da prima, para saber si a differença era excessiva. Em quanto a outra endireitava o penteado no toucador, realisou ella seu intento.

Avalie-se da vergonha e afflição de Laura; o desespero de Amelia foi maior ainda. Não perdoava a si mesma o ter causado tão grande pezar á prima, á quem ella queria muito bem. Para mitigar essa dôr profunda, Laura esqueceu a sua.

Desde então as duas amigas se consolavam mutuamente. Laura admirava o pésinho de Amelia; esta, ou sinceramente, ou para attenuar a magoa da prima, chegava a invejar o seu infortunio.

Aborrecida de não encontrar nas lojas calçado que lhe servisse, Amelia tinha descoberto por acaso o sapateiro da rua Sete de Setembro. Conhecendo a habilidade do Mattos, pensou que elle podesse disfarçar o defeito da prima. Não se enganou; o artista realisara a obra-prima de paciencia, que Leopoldo tivera occasião de apreciar por um acaso.

Amelia fez á Laura o sacrificio de expôr-se para não comprometter o segredo da amiga. O sapateiro não a conhecia, nunca a tinha visto, recebia as encommendas por intermedio de um criado que pagava á vista. Facil foi portanto illudil-o.

Na occasião em que as duas primas esperavam de carro na rua da Quitanda, o lacaio vinha da casa do sapateiro, o qual vexado com a pressa, esquecêra as recommendações de fechar bem o embrulho.

As pretenções de Horacio vieram pouco depois arrefecer a amizade das duas primas; já não se viam tão a miude; mas não obstante Amelia continuou a prestar a Laura o mesmo serviço, e essa, coagida pela necessidade, foi obrigada a acceital-o.

Iam as cousas por esse theor, quando teve logar o baile do Azevedo.

Depois da primeira quadrilha, Amelia foi ao toucador. Era este em uma sala que dava para o jardim. Aproximando-se de uma janella entreaberta, obscurecida pela sombra do cortinado da cama, viu a moça os dois amigos no momento em que elles vieram sentar-se no banco, justamente collocado por baixo da janella.

A casa era abarracada. Amelia encostada no portal da janella, descobria os dois cavalheiros por entre a folhagem, e ouvia distinctamente suas palavras.

Ahi, immovel, mas agitada por commoções diversas, escutou ella a historia do pé, e a historia do sorriso. Já os dois amigos se tinham afastado, e a moça permanecia no mesmo logar, como extatica.

A narração de Horacio, e as observações que fizera Leopoldo a esse respeito, revelaram á moça uma cousa que já anteriormente se havia apresentado, embora indistincta, vaga e confusa á seu espirito.

O que Horacio amava nella, não era mais do que uma fórma, um capricho, um sonho de sua imaginação enferma. Ella comprehendeu essa aberração dos sentidos em um homem gasto para o amor e saciado de prazeres. A mulher era para o leão uma cousa commum e vulgar, incapaz de produzir-lhe emoções fortes. Tinha-as admirado, de todos os typos e de todos os caracteres. Seu coração exhausto precisava de alguma cousa nova, original e extravagante.

Amelia comprehendeu isto, não por uma analyse, que seu espirito casto não poderia fazer; mas por uma intuição d'alma.

Quando de novo encontrou Horacio no baile, suas maneiras não podiam que se não resentissem do estado de seu coração. Tratou o leão seccamente; mas logo tornou-se amavel; occorreu-lhe uma idéa; quiz pôr á prova o amor do noivo, antes de confiar-lhe seu destino.

Foi na sua alcova, durante a insomnia, que ella recordou-se da historia de Leopoldo, e comparou seu amor ao de Horacio. Repassando na mente as palavras commovidas do primeiro, pensando naquelle affecto tão desprendido das miserias humanas, tão d'alma, Amelia sentia-se como purificada dos desejos do seductor.

Esse amor puro e immaterial era um baptismo para seu coração virgem.

A moça conheceu que o engano de Leopoldo, provinha de uma illusão da vista, no momento de entrar no carro com Laura; illusão confirmada pela presença do lacaio na loja do sapateiro. Chegou á estimar esse incidente que pôz em relevo a alma nobre e generosa do mancebo.

Acodiu-lhe á lembrança, sua primeira conversa em casa de D. Clementina. As palavras que então lhe pareceram inintelligiveis, tinham agora um sentido. Comprehendia toda a sublimidade do coração que dizia com uma profunda convicção:—«Sinto-me capaz de amar o horrivel, sinto-me capaz de nutrir uma dessas paixões martyres, de amar o anjo ainda mesmo encarnado no aleijão.»

—Esse me ama realmente, a mim, e não a sua fantazia! murmurou a moça com tristeza.

No dia seguinte, depois de uma noite de insomnia, preparou-se para receber Horacio, e submettel-o á prova. O Mattos conservava um par das antigas botinas de Laura, o qual lhe fôra para modelo. Mandou Amelia buscal-o; e encheu-o de algodão para acommodar nessa enormidade o seu mimoso pésinho.

O bordado do bastidor, foi expressamente inventado. Procurando uma lettra para indicar a pessoa a quem destinava o pretendido presente, insensivelmente traçou um L. Era a inicial de Laura, que lhe acudira a mente, ou era a lembrança de Leopoldo, que lhe esvoaçava ainda na imaginação? Foi uma e outra cousa. Serviu-se do pretexto da amiga, para evocar o nome do homem, que tão profundamente a amava.

Depois da scena que teve logar na tarde do jantar, Amelia arrependeu-se. Receiava ter-se excedido; bastava-lhe matar a illusão do mancebo, não devia ter excitado o horror. Mas o affecto de Leopoldo a tornara exigente, ella queria ser amada por Horacio da mesma fórma, com aquella sublime abnegação.

Durante alguns dias, alimentou a esperança de conservar a affeição do noivo, e regosijava-se com a idéa da sorpresa que lhe guardava.

A ausencia do leão a foi desenganando de dia em dia. Travou-se então uma luta em seu espirito. Devia esquecer o homem que não amava nella sinão uma fantazia?

O tom de Horacio na ultima noite a irritou. Seu amor proprio indignou-se com o menoscabo do moço e subita revelação de sua alma lhe advertiu,

No dia seguinte ao do rompimento, Amelia foi como havia dito na vespera á casa de D. Clementina. Era a primeira vez que tornava a vêr Leopoldo depois do baile.

Estiveram juntos alguns momentos. Como de costume Leopoldo fallou, e a moça embebeu-se daquellas palavras apaixonadas como de um effluvio suave.

Em um momento de pausa, disse Amelia.

—O senhor, passou por nossa casa na terça-feira?

—É verdade. Porque pergunta?

—Eu estava no jardim. Vi-o quando passava; cuidei que ia entrar.

—Não me animava.

—Porque?... Mamãi já lhe offereceu nossa casa.

—Tenho receio de ser importuno.

—Pouco sahimos agora; á excepção das noites que passamos aqui, estamos sempre sós; mamãi lendo, e eu tocando ou fazendo algum trabalho de lã.

—E ninguem mais? perguntou Leopoldo, fitando na moça um olhar interrogador.

—Ninguem! respondeu Amelia em tom grave.

Leopoldo ficou suspenso, buscando comprehender o pensamento da moça. Era magoa do bem perdido, ou temor do mal frustrado, que assim lhe annuviara a phisionomia?

Mas o sorriso prasenteiro illuminou o semblante da moça:

—Sabe? Naquella noite do baile, me contaram uma historia muito interessante? disse ella.

—Não se póde saber?

—O senhor, póde. Foi a historia de um sorriso, disse Amelia sublinhando a palavra com um gesto faceiro.

—Quem lhe contou? Foi elle...

—Foi o senhor.

—Eu?

—O senhor mesmo. Já não se lembra?

—Quer gracejar?

—O senhor estava no jardim conversando com seu amigo, e eu na janella do toucador.

Leopoldo adivinhou.

—Então ouviu tudo?

—Tudo!...

—E... perdoou-me?

—Não; não tinha de que, mas...

E seus bellos olhos limpidos repousaram no semblante do moço.

—Mas comprehendi!

Nesse momento D. Leonor chamou Amelia.




XIX

Quando recobrou-se da sorpreza era que tinha ficado, Horacio não achou em si mais do que o desejo vehemente e irresistivel de possuir o idolo por tanto tempo sonhado.

—Serão meus! murmurou comsigo. Serão meus á todo preço. Si fôr necessario um escandalo, não hesitarei. Mas Amelia não deve ter-se esquecido de mim já tão depressa; ella me tinha affeição. Vou pedir-lhe perdão de meu engano. Sujeitar-me-hei á todas as condições. Que sacrificios são bastantes para pagar a felicidade de beijar aquelles dous mimos da natureza!

Instinctivamente Horacio seguiu na direcção da casa do Salles, com intenção de restabelecer as relações interrompidas. Não sabia elle de que modo se houvesse em tal empenho; fiava da inspiração do momento.

Já não estava o negociante no escriptorio, nesse dia se retirára mais cedo.

Mallograda sua esperança, o leão foi caminhando pela rua Direita sem direcção, como quem não sabe o que fazer. O instincto que no deserto guia o rei dos animaes á cebe odorifera onde retoução as gazellas, o conduzia naturalmente para a rua do Ouvidor.

Tinha chegado á esquina, quando passou defronte um moço, que seguiu pela calçada Carceller. Horacio acompanhou-o com a vista, querendo nelle reconhecer seu amigo Leopoldo que havia cerca de um mez não vira.

Si com effeito o moço era Leopoldo, tinha elle soffrido grande transformação. Em vez do rapaz descuidado no seu trajo, brusco em suas maneiras, sempre de cabellos arripiados e barba revolta; apparecia um cavalheiro de bôa presença, com a sobria elegancia que tão bem assenta nos homens sisudos. Essa especie de elegancia é apenas um ligeiro perfume, e não uma incrustação como a que usam os moços á moda.

Com seu fino tacto e longa experiencia, Horacio, reconhecendo o amigo, adivinhou o segredo daquella subita methamorphose. Elle sabia que só ha um condão capaz de produzir taes encantos; é o olhar da mulher amada e amante.

Ame alguém e não saiba si é retribuido. Toda sua existencia se projecta nesse impulso d'alma, que se arroja para outro ser, e ancêa por nelle infundir-se. Vive-se fóra de si mesmo, alheio á seu proprio eu; como o peregrino perdido longe da patria, o homem exilado de sua pessoa erra no espaço, em demanda de um abrigo.

Desde, porém, que o homem tem certeza de ser amado, em vez de espandir-se recolhe e concentra para saturar-se de felicidade. Já não se alheia e esquece de si; ao contrario sente-se elevado acima do que era; respeita em sua pessoa o homem amado.

Nessa occasião é natural á cada um observar-se constantemente, e julgar de si com extrema severidade. Surgem aspirações extranhas; o fraco lembra-se de ser um heróe; o philosopho inveja a belleza do casquilho; o espirito positivo habituado a voar terra a terra bate o coto das azas para remontar-se ao ideal da poesia.

Não é só no homem que se opera essa methamorphose: mas em toda a natureza. Quando se arreiam os passaros de sua mais bella plumagem, quando gorgeiam as melodias mais brilhantes, si não é na quadra dos amores?

Vendo Leopoldo parado na calçada Carceller, Horacio dirigiu-se com disfarce para aquella parte, com intenção de travar conversa e esclarecer de todo em todo o mysterio. Foi trabalho perdido; o moço acabava de saltar em um tilbure, que rodava já pela praça de Pedro II.

Desapontado, voltou Horacio sobre os passos.

—Amelia o ama!... Ou pelo menos elle o acredita!...

Sorriu-se o leão.

—Que phenomeno curioso produz o despeito na mulher! É uma semelhança da luz reflexa. Irritado pela decepção, humilhado em sua vaidade, o amor da mulher desdenhada refrange como o raio do sol repellido por corpo brilhante e vai impregnar-se em outro homem. Ella cuida sentir por esse plastão uma paixão ardente, que nada mais é do que o impeto de seu despeito. Seria capaz de conceder á esse comparsa, o que recusaria á affeição mais terna e extremosa. O assomo do ciume, suppõe ella ser vehemencia da affeicção; e confunde com os extremos de amor o delirio da vingança. Amelia está passando por esta crise naturalmente. Leopoldo foi o plastão; ella o ama com todo o furor do odio que me tem.

Outro sorriso frisou o labio do leão.

—Ella me odeia! Ora!... O odio o que é senão a effervescencia do amor? O affecto suave e terno é como o muscatel de Setubal ou o vinho de Constança. O amor fero e irado é como o champanhe que ferve e espuma.

Chegando a casa, Horacio escreveu a Amelia uma carta, que apenas continha estas palavras:

«Deve estar satisfeita, pois me tem de novo á seus pés, e desta vez humilde e supplicante. A melhor corôa do triumpho é o perdão.»

Sahindo o leão á espairecer, dirigiu os passos para a casa do Salles; esperava encontrar algum criado que se incumbisse de entregar a carta. Quem sabe? Talvez nessa mesma occasião se decidisse de sua sorte. A moça lhe permittiria fallar-lhe.

Era noite fechada; o céu, carregado de nuvens, annunciava proxima borrasca. A frente da casa do negociante estava ás escuras; comtudo quem observasse bem, perceberia a coar-se pelos intersticios das janellas um tenue reflexo de luz interior. No portão da chacara á meio cerrado, ninguem apparecia.

O leão penetrou no jardim. Nesse momento um carro parou á porta da casa: tres pessoas sahiram delle. Em um Horacio viu estremecendo roupas de sacerdote. Só então reflectiu o moço no aspecto soturno do edificio. Inquieto, sobresaltado, adiantou-se pelo jardim na esperança de encontrar pessoa a quem interrogasse.

As janellas lateraes estavam esclarecidas; e pelo jogo das sombras no quadro illuminado, conheceu o moço que reinava no interior alguma agitação.

Que fazer? Apresentar-se na casa, depois do que passára, e antes de qualquer explicação não era rasoavel.

A dois passos ficava uma frondosa mangueira, em cujos galhos tinham fabricado uma especie de belveder ou caramanchão. Conduzia ao alto, uma escadinha de caracol cingindo o tronco da arvore.

Por acaso avistou o leão a mangueira, e subindo sem hesitar achou-se justamente fronteiro ás janellas illuminadas. Em principio a claridade subita offuscou-lhe a vista, e não pôde elle distinguir o que passava no interior.

Mas afinal o deslumbramento dos olhos cedeu ao deslumbramento d'alma.

Elle via, e duvidava.

Um altar erguido, cirios acesos, o sacerdote officiando, Amelia e Leopoldo de joelhos, ao lado Salles, D. Leonor, e dois amigos que serviam de testemunhas: eis o quadro que se offereceu aos olhos de Horacio. Tinha visto na comedia da vida muitos lances dramaticos, mas nenhum tão imprevisto e curioso.

A sorpresa do leão provinha de um engano seu. Elle acreditava que Amelia o tinha amado, quando a moça não sentira por elle mais do que o desvanecimento de vêr captivo de seus encantos o rei da moda, o feliz conquistador dos salões.

Quem Amelia amou desde o principio, foi Leopoldo. A vaidade, o galanteio que se nutre de brilhantes futilidades, a seduziam por momentos, e rendiam ao capricho de Horacio. Mas passado esse enlevo, sua alma sentia a attracção irresistivel que a impellia para o seu pólo.

Disso que durante dois mezes passava na vida intima da moça, ella propria não se apercebia; foi depois da scena do baile, que ella entrou em si, e comprehendeu as sublevações reconditas de sua alma, e o drama que ahi se agitava desde muito.

Leopoldo começara a frequentar a casa de Salles, poucos dias depois da partida de D. Clementina. As duas almas por tanto tempo separadas, só esperavam o momento de se unirem ou antes de se entranharem uma na outra. As tardes, no jardim, entre cortinas de flôres, ellas celebravam esse mystico hymeneu do amor, unico eterno e indissoluvel, porque se faz no seio do Creador.

Pelo voto de todos se apressou o dia do casamento, que os noivos exigiram se fizesse inteiramente á capucha, e sem prévia participação. A razão desse empenho, só Amelia a sabia e nunca a disse. Era um escrupulo de seu pudor: depois de que tinha acontecido, não queria que lhe dessem outra vez o titulo de noiva.

Terminada a ceremonia, e feitas as felicitações do costume, correram os minutos em agradavel conversação.

Eram 11 horas, quando Leopoldo entrou no toucador em que sua noiva o esperava. Sentado em uma conversadeira, Amelia sorriu para seu marido; porém através das largas dobras do roupão de cambraia, percebia-se o tremor involuntario que agitava seu lindo talhe.

—É meu presente! disse ella com timidez.

E apresentou ao noivo um objecto envolto em papel de seda, atado com fita azul.

Abrindo, achou Leopoldo dois mimosos pantufos de setim branco, os mesmos que Amelia começara a bordar no dia seguinte ao baile.

O moço enleiado, não comprehendia. Insensivelmente seu olhar desceu á fimbria do roupão. Sobre a almofada de velludo e entre os folhos da cambraia, appareciam as unhas rosadas de dois pésinhos divinos.

Uma onda de rubor derramou-se pelo semblante da moça, cujos labios balbuciaram uma palavra.

—Calce!

Leopoldo ajoelhou aos pés da noiva.

O temporal, desabando nesse momento, bateu com violencia nos vidros da janella, que fechou-se.

Horacio desceu do seu observatorio, e escalando a grade de ferro do jardim, ganhou a casa, onde chegou todo alagado. Emquanto philosophicamente esperava que seu criado lhe preparasse uma chicara de café, abriu um livro, que acertou ser La Fontaine.

Leu ao acaso; era a fabula do leão amoroso.

—É verdade! murmurou soltando uma fumaça de charuto. O leão deixou que lhe cerceassem as garras; foi esmagado pela pata da gazella.




FIM.




N. B.—Escrevo tilbure, champanhe, etc., porque entendo que devemos imprimir certo cunho portuguez nas palavras estrangeiras adoptadas pelo uso. Assim fizeram nossos antepassados, escrevendo trumo, trenó, bufete e tantas outras palavras de origem franceza.




*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PATA DA GAZELLA: ***
Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed.
Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution.
START: FULL LICENSE
THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK
To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license.
Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works
1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.
1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below.
1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg™ License when you share it without charge with others.
1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country other than the United States.
1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed:
This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook.
1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase “Project Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9.
1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work.
1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™.
1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License.
1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1.
1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works provided that:
• You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation.”
• You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ works.
• You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work.
• You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg™ works.
1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below.
1.F.
1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment.
1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE.
1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem.
1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any Defect you cause.
Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™
Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life.
Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org.
Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws.
The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact
Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS.
The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate.
While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate.
International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate
Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works
Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support.
Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org.
This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.