Capitulo I
Capitulo II
Capitulo III
Capitulo IV
Capitulo V
Capitulo VI
Capitulo VII
Capitulo VIII
... assim eramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era êle-proprio, se o incerto outro viveria...
FERNANDO PESSOA
Na floresta do alheamento
Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, emtanto, nunca me defendi; morto para a vida e para os sonhos; nada podendo já esperar e coisa alguma desejando—eu venho fazer emfim a minha confissão: isto é: demonstrar a minha inocência.
Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas pouco importa. O meu interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo de Loureiro, é nulo. Não tenho familia; não preciso que me reabilitem. Mesmo, quem esteve dez ânos preso, nunca se reabilita. A verdade simples, é esta.
E àqueles que, lendo o que fica exposto, me perguntarem: «—Mas porque não fez a sua confissão quando era tempo? porque não demonstrou a sua inocencia ao tribunal?»—a esses responderei:—A minha defesa era impossivel. Ninguem me acreditaria. E fôra inutil fazer-me passar por um embusteiro ou por um doido... Demais, devo confessar, após os acontecimentos em que me vira envolvido nessa época, ficara tão despedaçado que a prisão se me afigurava uma coisa sorridente. Era o esquecimento, a tranquilidade, o sono. Era um fim como qualquer outro—um termo para a minha vida devastada. Toda a minha ansia foi pois de ver o processo terminado e começar cumprindo a minha sentença.
De resto, o meu processo foi rapido. Oh! o caso parecia bem claro... Eu nem negava nem confessava. Mas quem cala consente... E todas as simpatias estavam do meu lado.
O crime era, como devem ter dito os jornais do tempo, um «crime passional». Cherchez la femme. Depois, a vitima um poeta—um artista. A mulher romantisara-se desaparecendo. Eu era um heroi, no fim de contas. E um heroi com seus laivos de misterio, o que mais me aureolava. Por tudo isso, independentemente do belo discurso de defesa, o juri concedeu-me circunstancias atenuantes. E a minha pena foi curta.
Ah! foi bem curta—sobretudo para mim... Esses dez ânos esvoaram-se-me como dez meses. E que, em realidade, as horas não podem mais ter acção sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento maximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações maximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou—apenas—os desencantados que, muita vez, acabam no suicidio.
Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem, têem a paz—pode ser. Entretanto não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido.
Mas punhamos termo aos devaneios. Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de factos. E para a clareza, vou-me lançando em mau caminho—parece-me. Aliás, por muito lucido que queira ser, a minha confissão resultará—estou certo—a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lucida.
Uma coisa garanto porem: Durante ela não deixarei escapar um pormenor, por minimo que seja, ou aparentemente incaracteristico. Em casos como o que tento explanar, a luz só pode nascer duma grande soma de factos. E são apenas factos que eu relatarei. Desses factos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim, declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.
Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade. Não me importa que me acreditem, mas só digo a verdade—mesmo quando ela é inverosimil.
A minha confissão é um mero documento.
Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando direito na Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado varios fins para a minha vida e de todos igualmente desistido—sedento de Europa, resolvera transportar-me á grande capital. Logo me embrenhei por meios mais ou menos artisticos, e Gervasio Vila-Nova, que eu mal conhecia de Lisboa, volveu-se-me o companheiro de todas as horas. Curiosa personalidade essa de grande artista falido, ou antes, predestinado para a falencia.
Perturbava o seu aspecto fisico, macerado e esguio, e o seu corpo de linhas quebradas tinha estilisações inquietantes de feminilismo histerico e opiado, umas vezes—outras, contrariamente, de ascetismo amarelo. Os cabelos compridos, se lhe descobriam a testa ampla e dura, terrivel, evocavam cilicios, abstenções rôxas; se lhe escondiam a fronte, ondeadamente, eram só ternura, perturbadora ternura de espasmos dourados e beijos subtis. Trajava sempre de preto, fatos largos, onde havia o seu quê de sacerdotal—nota mais frisantemente dada pelo colarinho direito, baixo, fechado. Não era enigmatico o seu rosto—muito pelo contrario, se lhe cobriam a testa os cabelos ou o chapeu. Emtanto, coisa bizarra, no seu corpo havia misterio—corpo de esfinge, talvez, em noites de luar. Aquela criatura não se nos gravava na memoria pelos seus traços fisionomicos, mas sim pelo seu estranho perfil. Em todas as multidões êle se destacava, era olhado, comentado—embora, em realidade, a sua silhueta á primeira vista parecesse não se dever salientar notavelmente: pois o fato era negro—apenas dum talhe um pouco exagerado—os cabelos não escandalosos, ainda que longos; e o chapeu, um bonet de fazenda—exquisito, era certo—mas que em todo o caso muitos artistas usavam, quasi identico.
Porêm, a verdade é que em redor da sua figura havia uma aureola. Gervasio Vila-Nova era aquele que nós olhamos na rua dizendo: ali, deve ir alguem.
Todo êle encantava as mulheres. Tanta rapariguinha que o seguia de olhos fascinados quando o artista, sobranceiro e esguio, investigava os cafés... Mas esse olhar, no fundo, era mais o que as mulheres lançam a uma criatura do seu sexo, formosissima e luxuosa, cheia de pedrarias...
—Sabe, meu caro Lucio—dissera-me o escultor muita vez—não sou eu nunca que possuo as minhas amantes; elas é que me possuem...
Ao falar-nos, brilhava ainda mais a sua chama. Era um conversador admiravel, adoravel nos seus erros, nas suas ignorancias, que sabia defender intensamente, sempre vitorioso; nas suas opiniões revoltantes e belissimas, nos seus paradoxos, nas suas blagues. Uma criatura superior—ah! sem duvida. Uma destas criaturas que se nos enclavinham na memoria—e nos perturbam, nos obcecam. Todo fôgo! todo fôgo!
Entretanto, se o examinavamos com a nossa inteligencia, e não apenas com a nossa vibratilidade, logo viamos que, infelizmente, tudo se cifrava nessa aureola, que o seu genio—talvez por demasiado luminoso—se consumiria a si proprio, incapaz de se condensar numa obra—disperso, quebrado, ardido. E assim aconteceu, com efeito. Não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar.
A uma criatura como aquela não se podia ter afecto, embora no fundo êle fosse um excelente rapaz; mas ainda hoje evoco com saudade as nossas palestras, as nossas noites de café—e chego a convencer-me que, sim, realmente, o destino de Gervasio Vila-Nova foi o mais belo; e êle um grande, um genial artista.
Tinha muitas relações no meio artistico o meu amigo. Literatos, pintores, musicos, de todos os países. Uma manhã, entrando no meu quarto, desfechou-me:
—Sabe, meu caro Lucio, apresentaram-me ontem uma americana muito interessante. Calcule, é uma mulher riquissima que vive num palacio que propositadamente fez construir no local onde existiam dois grandes predios que ela mandou deitar abaixo—isto, imagine você, em plena Avenida do Bosque de Bolonha! Uma mulher linda. Nem calcula. Quem ma apresentou foi aquele pintor americano dos oculos asuis. Recorda-se? Eu não sei como êle se chama... Podemo-la encontrar todas as tardes no Pavilhão de Armenonville. Costuma ir lá tomar chá. Quero que você a conheça. Vai ver. Interessantissima!
No dia seguinte—uma esplendida tarde de inverno, tépida, cheia de sol e céu asul—tomando um fiacre, lá nos dirigimos ao grande restaurante. Sentámo-nos; mandou-se vir chá... Dez minutos não tinham decorrido, quando Gervasio me tocava no braço. Um grupo de oito pessoas entrava no salão—três mulheres, cinco homens. Das mulheres, duas eram loiras, pequeninas, de péle de rosas e leite; de corpos harmoniosos, sensuais—identicas a tantas inglesas adoraveis. Mas a outra, em verdade, era qualquer coisa de sonhadamente, de misteriosamente belo. Uma criatura alta, magra, dum rosto esguio de pele dourada—e uns cabelos fantasticos, dum ruivo incendiado, alucinante. A sua formosura era uma destas belezas que inspiram receio. Com efeito, mal a vi, a minha impressão foi de medo—dum medo semelhante ao que experimentamos em face do rosto dalguem que praticou uma acção enorme e monstruosa.
Ela sentou-se em ruido; mas logo, vendo-nos, correu estendendo as mãos para o escultor:
—Meu caro, muito prazer em o encontrar... Falaram-me ontem muito bem de si... Um seu compatriota ... um poeta ... M. de Loureiro, julgo...
Foi dificil adivinhar o apelido português entre a pronuncia mesclada.
—Ah... Não o sabia em Paris—murmurou Gervasio.
E para mim, depois de me haver apresentado á estrangeira:
—Você conhece? Ricardo de Loureiro, o poeta das Brasas...
Que nunca lhe falara, que apenas o conhecia de vista e, sobretudo, que admirava intensamente a sua obra.
—Sim ... não discuto isso ... você bem vê, para mim já essa arte passou. Não me pode interessar... Leia-me os selvagens, homem, que diacho!...
Era uma das scies de Gervasio Vila-Nova: Elogiar uma pseudo-escola literaria da ultima-hora—o Selvagismo, cuja novidade residia em os seus livros serem impressos sobre diversos papeis e com tintas de varias côres, numa estrambotica disposição tipografica. Tambem—e eis o que mais entusiasmava o meu amigo—os poetas e prosadores selvagens, abolindo a ideia, «esse escarro», traduziam as suas emoções unicamente em jogo silabico, por onomatopeias raspadas, bizarras: criando mesmo novas palavras que coisa alguma significavam e cuja beleza, segundo êles, residia justamente em não significarem coisa alguma... De resto, até aí, parece que apenas se publicara um livro dessa escola. Certo poeta russo de nome arrevesado. Livro que Gervasio seguramente não lera, mas que todavia se não cansava de exalçar, gritando-o assombroso, genial...
A mulher estranha chamou-nos para a sua mesa, e apresentou-nos os seus companheiros que ainda não conheciamos: o jornalista Jean Lamy, do Figaro, o pintor holandês van Derk e o escultor inglês Tomás Westwood. Os dois outros eram o pintor americano dos oculos asuis e o inquietante viscondezinho de Naudières, louro, diafano, maquilado.
Quanto ás duas raparigas, limitou-se apontando-nos:
—Jenny e Dora.
A conversa logo se entabolou ultra-civilisada e banal. Falou-se de modas, discutiu-se teatro e music-hall, com muita arte á mistura. E quem mais se distinguiu, quem em verdade até exclusivamente falou, foi Gervasio. Nós limitavamo-nos—como acontecia com todos, perante êle, perante a sua intensidade—a ouvir, ou, quando muito, a protestar. Isto é: a dar ensejo para que êle brilhasse...
—Sabe, meu querido Lucio—uma vez contara-me o escultor—o Fonseca diz que é um oficio acompanhar-me. E uma arte dificil, fatigante. É que eu falo sempre; não deixo o meu interculotor repousar. Obrigo-o a ser intenso, a responder-me... Sim, concordo que a minha companhia seja fatigante. Vocês têem razão.
Vocês—note-se em parentese—era todo o mundo, menos Gervasio... E o Fonseca, de resto, um pobre pintorzinho da Madeira, «pensionista do Estado», de barbichas, lavallière, cachimbo—sempre calado e ôco, olhando nostalgicamente o espaço, á procura talvez da sua ilha perdida... Um santo rapaz!
Depois de muito se conversar sobre teatro e de Gervasio ter proclamado que os actores—ainda os maiores, como a Sara, o Novelli—não passavam de meros cabotinos, de meros intelectuais que aprendiam os seus papeis, e de garantir—«creiam os meus amigos que é assim»—que a verdadeira arte apenas existia entre os saltimbancos; esses saltimbancos que eram um dos seus estribilhos e sobre os quais, na noite em que nos encontraramos em Paris, logo me narrara, em confidencia, uma historia tetrica: o seu rapto por uma companhia de pelotiqueiros, quando tinha dois ânos e os pais o haviam mandado, barbaramente, para uma ama da Serra da Estrela, mulher dum oleiro, do qual, sem duvida, êle herdara a sua tendencia para a escultura e de quem, na verdade, devido a uma troca de berços, era até muito possivel que fosse filho—a conversa deslisou, não sei como, para a voluptuosidade na arte.
E então a americana bizarra logo protestou:
—Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus amigos, a voluptuosidade é uma arte—e, talvez a mais bela de todas. Porêm, até hoje, raros a cultivaram nesse espirito. Venham cá, digam-me: Fremir em espasmos de aurora, em extases de chama, ruivos de ansia—não será um prazer bem mais arripiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem duvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessario é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los. E eis o que ninguem sabe; eis no que ninguem pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxuria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos humidos, em caricias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para materia-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irriais de admiraveis não altearia!... Tinha o fogo, a luz, o ar, a agua, e os sons, as côres, os aromas, os narcoticos e as sedas—tantos sensualismos novos ainda não explorados... Como eu me orgulharia de ser esse artista!... E sonho uma grande festa no meu palacio encantado, em que os maravilhasse de volupia... em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores—e que a vossa carne, então, sentisse emfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a dimana-los, a esvaí-los, a matá-los!... Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade esguia da agua, nos requintes viciosos da luz?... Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual—mas de desejos espiritualizados em beleza—ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na agua dum regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes electricas, luminosas... Meus amigos, creiam-me, não passam duns barbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam aparentar!
Gervasio insurgiu-se: «Não; a voluptuosidade não era uma arte. Falassem-lhe do ascetismo, da renuncia. Isso sim!... A voluptuosidade ser uma arte? Banalidade... Toda a gente o dizia ou, no fundo, mais ou menos o pensava».
E por aqui fóra, adoravelmente dando a entender que só por se lhe afigurar essa a opinião mais geral, êle a combatia.
Durante toda a conversa, apenas quem nunca arriscara uma palavra tinham sido as duas inglesinhas, Jenny e Dora—sem tambem despregarem ainda de Gervasio, um só instante, os olhos asuis e louros.
Entretanto as cadeiras haviam-se deslocado e, agora, o escultor sentava-se junto da americana. Que belo grupo! Como os seus dois perfis se casavam bem na mesma sombra esbatidos—duas feras de amor, singulares, perturbadoras, evocando mordoradamente perfumes esfingicos, luas amarelas, crepusculos de roxidão. Beleza, perversidade, vicio e doença...
Mas a noite descera. Um par de amorosos do grande mundo entrava a refugiar-se no celebre estabelecimento, quasi deserto pelo inverno.
A americana excentrica deu o sinal de partida; e quando ela se ergueu eu notei, duvidosamente notei, que calçava umas estranhas sandalias, nos pés nus ... nos pés nus de unhas douradas...
Na Porte Maillot, tomámos o tramway para Montparnasse, começando Gervasio:
—Então, Lucio, que lhe pareceu a minha americana?
—Muito interessante.
—Sim? Mas você não deve gostar daquela gente. Eu compreendo bem. Você é uma natureza simples, e por isso...
—Ao contrario—protestava eu em idiotice—admiro muito essa gente. Acho-os interessantíssimos. E quanto á minha simplicidade...
—Ah! pelo meu lado, confesso que os adoro... Sou todo ternura por êles. Sinto tantas afinidades com essas criaturas ... como tambem as sinto com os pederastas ... com as prostitutas... Oh! é terrivel, meu amigo, terrivel...
Eu sorria apenas. Estava já acostumado. Sabia bem o que significava tudo aquilo. Isto só: Arte.
Pois Gervasio partia do principio que o artista não se revelava pelas suas obras, mas sim, unicamente, pela sua personalidade. Queria dizer: ao escultor, no fundo, pouco importava a obra dum artista. Exigia-lhe porêm que fosse interessante, genial, no seu aspecto físico, na sua maneira de ser—no seu modo exterior, numa palavra:
—Porque isto, meu amigo, de se chamar artista, de se chamar homem de genio, a um patusco obeso como o Balzac, corcovado, aborrecido, e que é vulgar na sua conversa, nas suas opiniões—não está certo; não é justo nem admissivel.
—Ora...—protestava eu, citando verdadeiros grandes artistas, bem inferiores no seu aspecto físico.
E então Gervasio Vila-Nova tinha respostas impagaveis.
Se por exemplo—o que raro acontecia—o nome citado era o dum artista que êle já alguma vez me elogiara pelas suas obras, volvia-me:
—O meu amigo desculpe-me, mas é muito pouco lucido. Esse de quem me fala, embora aparentemente mediocre, era todo chama. Pois não sabe quando êle...
E inventava qualquer anedota interessante, bela, intensa, que atribuia ao seu homem...
E eu calava-me...
De resto, era outro traço caracteristico em Gervasio: construir as individualidades como lhe agradava que fossem, e não as ver como realmente eram. Se lhe apresentavam uma criatura com a qual, por qualquer motivo, simpatisava—logo lhe atribuia opiniões, modos de ser do seu agrado: embora, em verdade, a personagem fosse a antítese disso tudo. É claro que um dia chegava a desilusão. Entretanto, longo tempo êle tinha a força de sustentar o encanto...
Pelo caminho, não pude deixar de lhe observar:
—Você reparou que ela trazia os pés descalços, em sandalias, e as unhas douradas?
—Você crê?... Não...
A desconhecida estranha impressionara-me vivamente e, antes de adormecer, largo tempo a relembrei e á roda que a acompanhava.
Ah! como Gervasio tinha razão, como eu no fundo abominava essa gente—os artistas. Isto é, os falsos artistas cuja obra se encerra nas suas atitudes; que falam petulantemente, que se mostram complicados de sentidos e apetites; artificiais, irritantes, intoleraveis. Emfim, que são os exploradores da arte apenas no que ela tem de falso e de exterior.
Mas, na minha incoerencia de espirito, logo me vinha outra ideia:—Ora, se os odiava, era só afinal por os invejar e não poder nem saber ser como êles...
Em todo o caso, mesmo abominando-os realmente, o certo é que me atraiam como um vicio pernicioso.
Durante uma semana—o que raro acontecia—estive sem ver Gervasio.
Ao fim dela, apareceu-me e contou-me:
—Sabe, tenho estreitado relações com a nossa americana. É na verdade uma criatura interessantissima. E muito artista... Aquelas duas pequenas são amantes dela. É uma grande safica.
—Não...
—Asseguro-lhe.
E não falámos mais da estrangeira.
Passou-se um mês. Eu já me esquecera da mulher fulva, quando uma noite o escultor me participou de subito:
—É verdade: aquela americana que eu lhe apresentei outro dia, dá amanhã uma grande soirée. Você está convidado.
—Eu!?...
—Sim. Ela disse-me que levasse alguns amigos. E falou-me de si. Aprecia-o muito... Aquilo deve ser curioso. Ha uma representação no fim—umas apoteoses, uns bailados ou o quer que é. Emtanto, se é maçador para você, não venha. Eu creio que estas coisas o aborrecem...
Protestei, idiotamente ainda, como era meu habito; afirmei que, pelo contrario, tinha até um grande empenho em o acompanhar, e marcámos rendez-vous para a noite seguinte, na Closerie, ás dez horas.
No dia da festa, arrependi-me de haver aceitado. Eu era tão avesso á vida mundana... E depois, ter que envergar um smoking, perder uma noite...
Emfim ... emfim...
Quando cheguei ao café—caso estranho!—já o meu amigo chegara. E disse-me:
—Ah ... sabe? Temos que esperar ainda pelo Ricardo de Loureiro. Tambem está convidado. E ficou de se encontrar aqui comigo. Olhe, aí vem êle...
E apresentou-nos:
—O escritor Lucio Vaz.
—O poeta Ricardo de Loureiro.
E nós, um ao outro:
—Muito gosto em o conhecer pessoalmente.
Pelo caminho a conversa foi-se entabolando e, ao primeiro contacto, logo experimentei uma viva simpatia por Ricardo de Loureiro. Adivinhava-se naquele rosto arabe de traços decisivos, bem vincados, uma natureza franca, aberta—luminosa por uns olhos geniais, intensamente negros.
Falei-lhe da sua obra, que admirava, e êle contou-me que lera o meu volume de novelas e que, sobretudo, lhe interessara o conto chamado João Tortura. Esta opinião não só me lisongeou, como mais me fez simpatisar com o poeta, adivinhando nêle uma natureza que compreenderia um pouco a minha alma. Efectivamente, essa novela era a que eu preferia, que de muito longe eu preferia, e entretanto a unica que nenhum critico destacara—que os meus amigos mesmo, sem mo dizerem, reputavam a mais inferior.
Brilhantissima aliás a conversa do artista, alem de insinuante, e pela vez primeira eu vi Gervasio calar-se—ouvir, êle que em todos os grupos era o dominador.
Por fim o nosso coupé estacou em face dum magnifico palacio da Avenida do Bosque, todo iluminado através de cortinas vermelhas, de seda, fantasticamente. Carruagens, muitas, á porta—contudo uma mescla de fiacres mais ou menos avariados, e algumas soberbas equipagens particulares.
Descemos.
Á entrada, como no teatro, um lacaio recebeu os nossos cartões de convite, e outro imediatamente nos empurrou para um ascensor que, rapido, nos ascendeu ao primeiro andar. Então, deparou-se-nos um espectaculo assombroso:
Uma grande sala eliptica, cujo tecto era uma elevadissima cupula rutilante, sustentada por colunas multicolores em magicas volutas. Ao fundo, um estranho palco erguido sobre esfinges bronzeadas, do qual—por degraus de marmore rosa—se descia a uma larga piscina semi-circular, cheia de agua translucida. Três ordens de galerias—de forma que todo o aspecto da grande sala era o dum opulento, fantastico teatro.
Em qualquer parte, ocultamente, uma orquestra moía valsas.
Á nossa entrada—foi sabido—todos os olhares se fixaram em Gervasio Vila-Nova, hieratico, belissimo, na sua casaca negra, bem cintada. E logo a estrangeira se nos precipitou a perguntar a nossa opinião sobre a sala. Com efeito, os arquitectos apenas ha duas semanas a tinham dada por concluida. Aquela festa sumptuosa era a sua inauguração.
Gritámos o nosso pasmo em face á maravilha, e ela, a encantadora, teve um sorriso de misterio:
—Logo, é que eu desejo conhecer o vosso juizo... E, sobretudo, o que pensam das luzes...
Um deslumbramento, o trajo da americana. Envolvia-a uma tunica dum tecido muito singular, impossivel de descrever. Era como que uma estreita malha de fios metalicos—mas dos metais mais diversos—a fundirem-se numa scintilação esbraseada, onde todas as côres ora se enclavinhavam ululantes, ora se dimanavam, silvando tumultos astrais de reflexos. Todas as côres enlouqueciam na sua tunica.
Por entre as malhas do tecido, olhando bem, divisava-se a pele nua; e o bico dum seio despontava numa agudeza aurea.
Os cabelos fulvos tinha-os enrolado desordenadamente e entretecido de pedrarias que constelavam aquelas labaredas em raios de luz ultrapassada. Mordiam-se-lhe nos braços serpentes de esmeraldas. Nem uma joia sobre o decote profundo... A estatua inquietadora do desejo contorcido, do vicio platinado... E de toda a sua carne, em penumbra azul, emanava um aroma denso a crime.
Rapida, após momentos, ela se afastou de nós a receber outros convidados.
A sala enchera-se entretanto duma multidão bigarrada e exquisita. Eram extranhas mulheres quasi nuas nos seus trajes audaciosos de baile, e rostos suspeitos sobre as unisonas e negras vestes masculinas de cerimonia. Havia russos hirsutos e fulvos, escandinavos suavemente louros, meridionais densos, crespos—e um chinês, um indio. Emfim, condensava-se ali bem o Paris cosmopolita—rastaquouère e genial.
Até á meia noite, dançou-se e conversou-se. Nas galerias jogava-se infernalmente. Mas a essa hora foi anunciada a ceia; e todos passámos ao salão de jantar—outra maravilha.
Pouco antes chegara-se a nós a americana e, confidencialmente, nos dissera:
—Depois da ceia, é o espectaculo—o meu Triunfo! Quis condensar nêle as minhas ideias sobre a voluptuosidade-arte. Luzes, corpos, aromas, o fogo e a agua—tudo se reunirá numa orgia de carne espiritualisada em ouro!
Ao entrarmos novamente na grande sala—por mim, confesso, tive medo ... recuei...
Todo o scenario mudara—era como se fosse outro o salão. Inundava-o um perfume denso, arripiante de extases; silvava-o uma brisa misteriosa, uma brisa cinzenta com laivos amarelos—não sei porquê, pareceu-me assim, bizarramente—aragem que nos fustigava a carne em novos arrepios. Emtanto, o mais grandioso, o mais alucinador, era a iluminação. Declaro-me impotente para a descrever. Apenas, num esforço, poderei esboçar aonde residia a sua singularidade, o seu quebranto:
Essa luz—evidentemente electrica—provinha duma infinidade de globos, de estranhos globos de varias côres, varios desenhos, de transparencias varias—mas, sobretudo, de ondas que projectores ocultos nas galerias, golfavam em esplendor. Ora essas torrentes luminosas, todas orientadas para o mesmo ponto quimerico do espaço, convergiam nele em um turbilhão—e, desse turbilhão meteorico, é que elas realmente, em ricochete enclavinhado, se projectavam sobre paredes e colunas, se espalhavam no ambiente da sala, apoteotisando-a.
De forma que a luz total era uma projecção da propria luz—em outra luz, seguramente, mas a verdade é que a maravilha que nos iluminava nos não parecia luz. Afigurava-se-nos qualquer outra coisa—um fluido novo. Não divago; descrevo apenas uma sensação real: essa luz, nós sentiamo-la mais do que a viamos. E não receio avançar muito afirmando que ela não impressionava a nossa vista, mas sim o nosso tacto. Se de subito nos arrancassem os olhos, nem por isso nós a deixariamos de ver. E depois—eis o mais bizarro, o mais esplendido—nós respiravamos o estranho fluido. Era certo, juntamente com o ar, com o perfume roxo do ar, sorviamos essa luz que, num extase iriado, numa vertigem de ascensão—se nos engolfava pelos pulmões, nos invadia o sangue, nos volvia todo o corpo sonoro. Sim, essa luz magica ressoava em nós, ampliando-nos os sentidos, alastrando-nos em vibratilidade, dimanando-nos, aturdindo-nos... Debaixo dela, toda a nossa carne era sensivel aos espasmos, aos aromas, ás melodias!...
E não foi só a nós, requintados d'ultra-civilisação e arte, que o misterio rutilante fustigou. Pois em breve todos os espectadores evidenceavam, em rostos confundidos e gestos ansiosos, que um ruivo sortilegio os varara sob essa luz d'alem-Inferno, sob essa luz sexualisada.
Mas de subito toda a iluminação se transformou divergindo num resvalamento arqueado; e outro fremito mais brando nos diluiu então, como beijos de esmeraldas sucedendo a mordeduras.
Uma musica penetrante tilintava nessa nova aurora, em ritmos desconhecidos—esguia melopeia em que sossobravam gomos de cristal entrechocando-se, onde palmas de espadas refrescavam o ar esbatidamente, onde listas humidas de sons se vaporisavam subtis...
Emfim: prestes a esvairmo-nos num espasmo derradeiro d'alma—tinham-nos sustido para nos alastrarem o prazer.
E, ao fundo, o pâno do teatro descerrou-se sobre um scenario aureoral... Extinguiu-se a luz perturbadora, e jorros de electricidade branca nos iluminaram apenas.
No palco surgiram três dançarinas. Vinham de tranças soltas—blusas vermelhas lhes encerravam os troncos, deixando-lhes os seios livres, oscilantes. Ténues gases rasgadas lhes pendiam das cinturas. Nos ventres, entre as blusas e as gases, havia um intervalo—um cinto de carne nua onde se desenhavam flores simbolicas.
As bailadeiras começaram as suas danças. Tinham as pernas nuas. Volteavam, saltavam, reuniam-se num grupo, embaralhavam os seus membros, mordiam-se nas bôcas...
Os cabelos da primeira eram pretos, e a sua carne esplendida de sol. As pernas, talhadas em aurora loira, esgueiravam-se-lhe em luz radiosa a nimbar-se, junto do sexo, numa carne mordorada que apetecia trincar. Mas o que as fazia mais excitantes era a saudade limpida que lembravam dum grande lago azul de agua cristalina aonde, uma noite de luar, elas se mergulhassem descalças e amorosas.
A segunda bailadeira tinha o tipo caracteristico da adolescente pervertida. Magra—porêm de seios bem visiveis—cabelos dum louro sujo, cara provocante, nariz arrebitado. As suas pernas despertavam desejos brutais de as morder, escalavradas de musculos, de durezas—masculinamente.
Emfim, a terceira, a mais perturbadora, era uma rapariga frigida, muito branca e macerada, esguia, evocando misticismos, doença, nas suas pernas de morte—devastadas.
Emtanto o baile prosseguia. Pouco a pouco os seus movimentos se tornavam mais rapidos até que por ultimo, num espasmo, as suas bocas se uniram e, rasgados todos os veus—seios, ventres e sexos descobertos—os corpos se lhes emmaranharam, agonisando num arqueamento de vicio.
E o pâno cerrou-se na mesma placidez luminosa...
Houve depois outros quadros admiraveis: Dançarinas nuas perseguindo-se na piscina, a mimarem a atracção sexual da agua, estranhas bailadeiras que esparziam aromas que mais entenebreciam, em quebranto, a atmosfera fantastica da sala, apoteoses de corpos nus, amontoados—visões luxuriosas de cores intensas, rodopiantes de espasmos, sinfonias de sedas e veludos que sobre corpos nus volteavam...
Mas todas estas maravilhas—incriveis de perversidade, era certo—nos não excitavam fisicamente em desejos lubricos e bestiais; antes numa ansia d'alma, esbraseada e, ao mesmo tempo, suave: extraordinaria, deliciosa.
Escoava-se por nós uma impressão de excesso.
Emtanto os delirios que as almas nos fremiam, não os provocavam unicamente as visões lascivas. De maneira alguma. O que oscilavamos, provinha-nos duma sensação-total identica á que experimentâmos ouvindo uma partitura sublime executada por uma orquestra de mestres. E os quadros sensuais valiam apenas como um instrumento dessa orquestra. Os outros: as luzes, os perfumes, as cores... Sim, todos esses elementos se fundiam num conjunto admiravel que, ampliando-a, nos penetrava a alma, e que só a nossa alma sentia em febre de longe, em vibração de abismos. Eramos todos alma. Desciam-nos só da alma os nossos desejos carnais.
Porêm nada valeu em face da ultima visão:
Raiaram mais densas as luzes, mais agudas e penetrantes, caindo agora, em jorros, do alto da cupula—e o pâno rasgou-se sobre um vago templo asiatico... Ao som duma musica pesada, rouca, longinqua—ela surgiu, a mulher fulva...
E começou dançando...
Envolvia-a uma tunica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente. Joias fantasticas nas mãos; e os pés descalços, constelados...
Ai, como exprimir os seus passos silenciosos, humidos, frios de cristal; o marulhar da sua carne ondeando; o alcool dos seus labios que, num requinte, ela dourara—toda a harmonia esvaecida nos seus gestos; todo o horizonte difuso que o seu rodopiar suscitava, nevoadamente...
Entretanto, ao fundo, numa ara misteriosa, o fogo ateara-se...
Vicio a vicio a tunica lhe ia resvalando, até que, num extase abafado, sossobrou a seus pés... Ah! nesse momento, em face á maravilha que nos varou, ninguém pôde conter um grito de assombro...
Quimerico e nu, o seu corpo subtilisado, erguia-se liturgico entre mil scintilações irreais. Como os labios, os bicos dos seios e o sexo estavam dourados—num ouro palido, doentio. E toda ela serpenteava em misticismos escarlates a querer-se dar ao fogo...
Mas o fogo repelia-a...
Então, numa ultima perversidade, de novo tomou os veus e se ocultou, deixando apenas nu o sexo aureo—terrivel flôr de carne a estrebuchar agonias magentas...
Vencedora, tudo foi lume sobre ela...
E, outra vez desvendada—esbraseada e feroz, saltava agora por entre labaredas, rasgando-as: emmaranhando, possuindo, todo o fogo bebado que a cingia.
Mas finalmente, saciada após estranhas epilepsias, num salto prodigioso, como um meteoro—ruivo meteoro—ela veio tombar no lago que mil lampadas ocultas esbatiam de asul cendrado.
Então foi a apoteose:
Toda a agua asul, ao recebe-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada, ardida pela sua carne que o fogo penetrara... E numa ansia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou... Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redór...
... Até que por fim, num misterio, o fogo se apagou em oiro e, morto, o seu corpo flutuou heraldico sobre as aguas douradas—tranquilas, mortas tambem...
A luz normal regressara. Era tempo. Mulheres debatiam-se em ataques de histerismo; homens, de rostos congestionados, tinham gestos incoerentes...
As portas abriram-se e nós mesmos, perdidos, sem chapeus—encontrámo-nos na rua, afogueados, perplexos... O ar fresco da noite, vergastando-nos, fez-nos despertar; e como se chegassemos dum sonho que os três houvessemos sonhado—olhamo-nos inquietos, num espanto mudo.
Sim, a impressão fôra tão forte, a maravilha tão alucinadora, que não tivemos animo para dizer uma palavra.
Esmagados, aturdidos, cada um de nós voltou para sua casa...
Na tarde seguinte—ao acordar dum sono de onze horas—eu não acreditava já na estranha orgia: A Orgia do Fogo, como Ricardo lhe chamou depois.
Saí. Jantei.
Quando entrava no Café Riche, alguem me bateu no ombro:
—Então como passa o meu amigo? Vamos, as suas impressões?...
Era Ricardo de Loureiro.
Falámos largamente àcerca das extraordinarias coisas que presencearamos. E o poeta concluiu que tudo aquilo, mais lhe parecia hoje uma visão de onanista genial do que a simples realidade.
Quanto á americana fulva, não a tornei a ver. O proprio Gervasio deixou de falar nela. E, como se se tratasse dum misterio d'Alem a que valesse melhor não aludir—nunca mais nos referimos á noite admiravel.
Se a sua lembrança me ficou para sempre gravada, não foi por a ter vivido—mas sim porque, dessa noite, se originava a minha amizade com Ricardo de Loureiro.
Assim sucede com efeito. Referimos certos acontecimentos da nossa vida a outros mais fundamentais—e muitas vezes, em torno dum beijo, circula todo um mundo, toda uma humanidade.
De resto, no caso presente, que podia valer a noite fantastica em face do nosso encontro—desse encontro que marcou o principio da minha vida?
Ah! sem duvida amizade predestinada aquela que começava num scenario tão estranho, tão perturbador, tão dourado...
Decorrido um mês, eu e Ricardo eramos não só dois companheiros inseparaveis, como tambem dois amigos intimos, sinceros, entre os quais não havia mal-entendidos, nem quasi já segredos.
O meu convivio com Gervasio Vila-Nova cessara por completo. Mesmo, passado pouco, êle regressou a Portugal.
Ah! como era bem diferente, bem mais expontanea, mais cariciosa, a intimidade com o meu novo amigo! E como estavamos longe do Gervasio Vila-Nova que, a propoposito de coisa alguma, fazia declarações como esta:
—Sabe você, Lucio, não imagina a pena que eu tenho de que não gostem das minhas obras. (As suas obras eram esculturas sem pés nem cabeça—pois êle só esculpia torsos contorcidos, enclavinhados, monstruosos, onde porêm, de quando em quando, por alguns detalhes, se adivinhava um cinzel admiravel). Mas não pense que é por mim. Eu estou certo do que elas valem. É por êles, coitados, que não podem sentir a sua beleza.
Ou então:
—Creia, meu querido amigo, você faz muito mal em colaborar nessas revistecas lá de baixo ... em se apressar tanto a imprimir os seus volumes. O verdadeiro artista deve guardar quanto mais possivel o seu inédito. Vêja se eu já expús alguma vez... Só compreendo que se publique um livro numa tiragem reduzida; e a 100 francos o exemplar, como fez o ... (e citava o nome do russo chefe dos selvagens). Ah! eu abomino a publicidade!...
As minhas conversas com Ricardo—pormenor interessante—foram logo desde o inicio, bem mais conversas de alma, do que simples conversas de intelectuais.
Pela primeira vez eu encontrara efectivamente alguem que sabia descer um pouco aos recantos ignorados do meu espirito—os mais sensiveis, os mais dolorosos para mim. E com êle o mesmo acontecera—havia de mo contar mais tarde.
Não eramos felizes—oh! não... As nossas vidas passavam torturadas de ansias, de incompreensões, de agonias de sombra...
Subiramos mais alto; pairavamos sobre a vida. Podiamo-nos embriagar de orgulho, se quiséssemos—mas sofriamos tanto ... tanto... O nosso unico refugio era nas nossas obras.
Pintando-me a sua angustia, Ricardo de Loureiro fazia perturbadoras confidencias, tinha imagens estranhas:
—Ah! meu caro Lucio, acredite-me! Nada me encanta já; tudo me aborrece, me nausêa. Os meus proprios raros entusiasmos, se me lembro dêles, logo se me esvaem—pois, ao medi-los, encontro-os tão mesquinhos, tão de pacotilha... Quer saber? Outróra, á noite, no meu leito, antes de dormir, eu punha-me a divagar. E era feliz por momentos, entre-sonhando a gloria, o amor, os extases... Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer. Acastelei os maiores ... êles proprios me fartaram: são sempre os mesmos—e é impossivel achar outros... Depois, não me saciam apenas as coisas que possuo—aborrecem-me tambem as que não tenho, porque, na vida como nos sonhos, são sempre as mesmas. De resto, se ás vezes posso sofrer por não possuir certas coisas que ainda não conheço inteiramente, a verdade é que, descendo-me melhor, logo averiguo isto: Meu Deus, se as tivera, ainda maior seria a minha dôr, o meu tedio... De forma que gastar tempo é hoje o unico fim da minha existencia deserta. Se viajo, se escrevo—se vivo, numa palavra, creia-me: é só para consumir instantes. Mas dentro em pouco—já o pressinto—isto mesmo me saciará. E que fazer então? Não sei ... não sei... Ah! que amargura infinita...
Eu punha-me a anima-lo; a dizer-lhe inferiormente que urgia pôr de parte essas ideias abatidas. Um belo futuro se alastrava em sua face. Era preciso ter coragem!
—Um belo futuro?... Olhe, meu amigo, até hoje ainda me não vi no meu futuro. E as coisas em que me não vejo, nunca me sucederam.
Perante tal resposta, esbocei uma interrogação muda, a que o poeta volveu:
—Ah! sim, talvez não compreendesse... Ainda lhe não expliquei. Oiça: Desde criança que, pensando em certas situações possiveis numa existencia, eu, antecipadamente, me vejo ou não vejo nelas. Por exemplo: uma coisa onde nunca me vi, foi na vida—e diga-me se na realidade nos encontramos nela? Mas descendo a pequenos detalhes:
«A minha imaginação infantil sonhava, romanescamente construia, mil aventuras amorosas, que aliás todos vivem. Pois bem: nunca me vi ao fantasia-las, como existindo-as mais tarde. E até hoje eu sou aquele que em nenhum desses episodios gentis se encontrou. Não porque lhes fugisse... Nunca fugi de coisa alguma.
«Entretanto, na minha vida, houve certa situação exquisita, mesmo um pouco torpe. Ora eu lembrava-me muita vez de que essa triste aventura havia de ter um fim. E sabia dum muito natural. Nesse, contudo, nunca eu me figurava. Mas noutro qualquer. Outro qualquer, porêm, só podia dar-se por meu intermedio. E por meu intermedio—era bem claro—não se podia, não se devia dar. Passou-se tempo... Escuso de lhe dizer que foi justamente a «impossibilidade» que se realisou...
«Era um estudante distinto, e nunca me antevisionava com o meu curso concluido. Efectivamente um belo dia, de subito, sem razão, deixei a universidade... Fugi para Paris...
«Dentro da vida pratica tambem nunca me figurei. Até hoje, aos vinte e sete ânos, não consegui ainda ganhar dinheiro pelo meu trabalho. Felizmente não preciso... E nem mesmo cheguei a entrar nunca na vida, na simples Vida com V grande—na vida social, se prefere. É curioso: sou um isolado que conhece meio mundo, um desclassificado que não tem uma divida, uma nodoa—que todos consideram, e que entretanto em parte alguma é admitido... Está certo. Com efeito, nunca me vi «admitido» em parte alguma. Nos proprios meios onde me tenho embrenhado, não sei porquê senti-me sempre um estranho...
«E é terrivel; martirisa-me por vezes este meu condão. Assim se eu não vejo erguida certa obra cujo plano me entusiasma, é seguro que a não consigo lançar, e que depressa me desencanto da sua ideia—embora, no fundo, a considere admiravel.
«Emfim, para me entender melhor: esta sensação é semelhante, ainda que de sentido contrario, a uma outra em que provavelmente ouviu falar—que talvez mesmo conheça—a do já-visto. Nunca lhe sucedeu ter visitado pela primeira vez uma terra, um scenario, e—numa reminiscencia longingua, vaga, perturbadora—chegar-lhe a lembrança de que, não sabe quando nem aonde, já esteve naquela terra, já contemplou aquele scenario?...
«É possivel que o meu amigo não atinja o que ha de comum entre estas duas ideias. Não lhe sei explicar—contudo pressinto, tenho a certeza, que essa relação existe».
Respondi divagando, e o poeta acrescentou:
—Mas ainda lhe não disse o mais estranho. Sabe? É que de maneira alguma me concebo na minha velhice, bem como de nenhuma forma me vejo doente, agonisante. Nem sequer suicidado—segundo ás vezes me procuro iludir. E creia, é tão grande a minha confiança nesta superstição que—juro-lhe—se não fosse haver a certeza absoluta de que todos morremos, eu, não me «vendo» morto, não acreditaria na minha morte...
Sorri da boutade.
Vagos conhecidos entravam no Café onde tinhamos abancado. Sentaram-se junto de nós e, banal e facil, a conversa deslisou noutro plano.
Outras vezes tambem, Ricardo surgia-me com revelações estramboticas que lembravam um pouco os snobismos de Vila-Nova. Porêm nele, eu sabia que tudo isso era verdadeiro, sentido. Quando muito, sentido já como literatura. Efectivamente o poeta explicara-me, uma noite:
—Garanto-lhe, meu amigo, todas as ideias que lhe surjam nas minhas obras, por mais bizarras, mais impossiveis—são, pelo menos em parte, sinceras. Isto é: traduzem emoções que na realidade senti; pensamentos que na realidade me ocorreram sobre quaisquer detalhes da minha psicologia. Apenas o que pode suceder é que, quando elas nascem, já venham literatisadas...
Mas voltando ás suas revelações estramboticas:
Como gostassemos, em muitas horas, de nos embrenhar pela vida normal e de nos esquecer a nós proprios—frequentavamos bastante os teatros e os music-halls, numa ansia tambem de sermos agitados por esses meios intensamente contemporaneos, europeus e luxuosos.
Assim uma vez, no Olympia, assistiamos a umas danças de girls inglesas misturadas numa revista, quando Ricardo me perguntou:
—Diga-me, Lucio, você não é sujeito a certos medos inexplicaveis, destrambelhados?
Que não, só se muito vagamente—volvi.
—Pois comigo—tornou o artista—não acontece o mesmo. Emfim, quer saber? Tenho medo destas dançarinas.
Soltei uma gargalhada.
Ricardo prosseguiu:
—É que, não sei se reparou, em todos os music-halls tornaram-se agora moda estes bailados por ranchos de raparigas inglesas. Ora essas criaturinhas são todas iguais, sempre—vestidas dos mesmos fatos, com as mesmas pernas nuas, as mesmas feições tenues, o mesmo ar gentil. De maneira que eu em vão me esforço por considerar cada uma delas como uma individualidade. Não lhes sei atribuir uma vida—um amante, um passado; certos habitos, certas maneiras de ser. Não as posso destrinçar do seu conjunto: daí, o meu pavor. Não estou pôsando, meu amigo, asseguro-lhe.
«Mas não são estes só os meus medos. Tenho muitos outros. Por exemplo: o horror dos arcos—de alguns arcos triunfais e, sobretudo, de alguns velhos arcos de ruas. Não propriamente dos arcos—antes do espaço aereo que eles enquadram. E lembro-me de haver experimentado uma sensação misteriosa de pavor, ao descobrir no fim duma rua solitaria de não sei que capital, um pequeno arco ou, melhor, uma porta aberta sobre o infinito. Digo bem—sobre o infinito. Com efeito a rua subia e para lá do monumento começava, sem duvida, a descer. De modo que, de longe, só se via horizonte através desse arco. Confesso-lhe que me detive alguns minutos olhando-o fascinado. Assaltou-me um forte desejo de subir a rua até ao fim e averiguar para aonde ele deitava. Mas a coragem faltou-me... Fugi apavorado. E veja, a sensação foi tão violenta, que nem sei já em que triste cidade a oscilei...
«Quando era pequeno—ora, ainda hoje!—apavoravam-me as ogivas das catedrais, as abobadas, as sombras de altas colunas, os obeliscos, as grandes escadarias de marmore... De resto, toda a minha vida psicologica tem sido até agora a projecção dos meus pensamentos infantis—ampliados, modificados, mas sempre no mesmo sentido, na mesma ordem: apenas em outros planos.
«E por ultimo, ainda a respeito de medos: Assim como me assustam alguns espaços vazios emmoldurados por arcos—tambem me inquieta o ceu das ruas, estreitas e de predios altos, que de subito se partem em curvas apertadas.»
O seu espirito estava seguramente predisposto para a bizarria, essa noite, pois ainda me fez estas exquisitas declarações á saída do teatro:
—Meu caro Lucio, vai ficar muito admirado, mas garanto-lhe que não foi tempo perdido o que passei ouvindo essa revista chocha. Achei a razão fundamental do meu sofrimento. Você recorda-se duma capoeira de galinhas que apareceu em scena? As pobres aves queriam dormir. Metiam os bicos debaixo das asas, mas logo acordavam assustadas pelos jorros dos projectores que iluminavam as «estrelas», pelos saltos do compadre... Pois como esses pobres bichos, tambem a minha alma anda estremunhada—descobri em frente dêles. Sim, a minha alma quer dormir e, minuto a minuto, a veem despertar jorros de luz, estrepitosas vozearias: grandes ansias, ideias abrasadas, tumultos de aspirações—aureos sonhos, cinzentas realidades... Sofreria menos se ela nunca pudesse adormecer. Com efeito, o que mais me exacerba esta tortura infernal é que, em verdade, a minha alma chega muitas vezes a pegar no sono, a fechar os olhos—perdôe a frase estrambotica. Mal os cerra, porêm, logo a zurzem—e de novo acorda perdida numa agonia estonteada...
Mais tarde, relembrando-me esta constatação, ajuntara:
—O meu sofrimento moral, ainda que sem razões, tem aumentado tanto, tanto, estes ultimos dias, que eu hoje sinto a minha alma fisicamente. Ah! é horrivel! A minha alma não se angustía apenas, a minha alma sangra. As dôres morais transformam-se-me em verdadeiras dôres fisicas, em dôres horriveis, que eu sinto materialmente—não no meu corpo, mas no meu espirito. É muito dificil, concordo, fazer compreender isto a alguem. Entretanto, acredite-me; juro-lhe que é assim. Eis pelo que eu lhe dizia a outra noite que tinha a minha alma estremunhada. Sim, a minha pobre alma anda morta de sono, e não a deixam dormir—tem frio, e não a sei aquecer! Endureceu-me toda, toda! secou, anquilosou-se-me; de forma que move-la—isto é: pensar—me faz hoje sofrer terriveis dôres. E quanto mais a alma me endurece, mais eu tenho ansia de pensar! Um turbilhão de ideias—loucas ideias!—me silva a desconjunta-la, a arrepanha-la, a rasga-la, num martirio alucinante! Até que um dia—oh! é fatal—ela se me partirá, voará em estilhaços... A minha pobre alma! a minha pobre alma!...
Em tais ocasiões os olhos de Ricardo cobriam-se dum veu de luz. Não brilhavam: cobriam-se dum veu de luz. Era muito estranho, mas era assim.
Divagando ainda sobre as dores fisicas do seu espirito; num tom de blague que raramente tomava, o poeta desfechou-me uma tarde, de subito:
—Tenho ás vezes tanta inveja das minhas pernas... Porque uma perna não sofre. Não tem alma, meu amigo, não tem alma!...
Largas horas, solitario, eu meditava nas singularidades do artista, a querer concluir alguma coisa. Mas o certo é que nunca soube descer uma psicologia, de maneira que chegava só a esta conclusão: êle era uma criatura superior—genial, perturbante. Hoje mesmo, volvidos longos ânos, é essa a minha unica certeza, e eis pelo que eu me limito a contar sem ordem—á medida que me vão recordando—os detalhes mais caracteristicos da sua psicologia, como meros documentos na minha justificação.
Factos, apenas factos—avisei logo de principio.
Compreendiam-se perfeitamente as nossas almas—tanto quanto duas almas se podem compreender, E, todavia, eramos duas criaturas muito diversas. Raros traços comuns entre os nossos caracteres. Mesmo, a bem dizer, só numa coisa iguais: no nosso amor por Paris.
—Paris! Paris!—exclamava o poeta—Porque o amo eu tanto? Não sei... Basta lembrar-me que existo na capital latina, para uma onda de orgulho, de jubilo e ascensão, se encapelar dentro de mim. É o unico ópio loiro para a minha dôr—Paris!
«Como eu amo as suas ruas, as suas praças, as suas avenidas! Ao recorda-las longe delas—em miragem nimbada, todas me surgem num resvalamento arqueado que me trespassa em luz. E o meu proprio corpo, que elas vararam, as acompanha no seu rodopio.
«De Paris, amo tudo com igual amor: os seus monumentos, os seus teatros, os seus boulevards, os seus jardins, as suas arvores... Tudo nele me é heraldico, me é liturgico.
«Ah, o que eu sofri um âno que passei longe da minha Cidade, sem esperanças de me tornar a envolver nela tão cedo... E a minha saudade foi então a mesma que se tem pelo corpo duma amante perdida...
«As ruas tristonhas da Lisboa do sul, descia-as ás tardes maguadas rezando o seu nome: O meu Paris... o meu Paris... E á noite, num grande leito deserto, antes de adormecer, eu recordava-o—sim, recordava-o—como se recorda a carne nua duma amante doirada!
«Quando depois regressei á capital assombrosa, a minha ansia foi logo de a percorrer em todas as avenidas, em todos os bairros, para melhor a entrelaçar comigo, para melhor a delirar... O meu Paris! o meu Paris!...
«Entretanto, Lucio, não creia que eu ame esta grande terra pelos seus boulevards, pelos seus cafés, pelas suas actrizes, pelos seus monumentos. Não! Não! Seria mesquinho. Amo-a por qualquer outra coisa: por uma aureola, talvez, que a envolve e a constitue em alma—mas que eu não vejo; que eu sinto, que eu realmente sinto, e lhe não sei explicar!...
«Só posso viver nos grandes meios. Quero tanto ao progresso, á civilisação, ao movimento citadino, á actividade febril contemporanea!... Porque, no fundo, eu amo muito a vida. Sou todo de incoerencias. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida emtanto como nunca ninguem a admirou!
«Europa! Europa! Encapela-te dentro de mim, alastra-me da tua vibração, unge-me da minha época!...
«Lançar pontes! lançar pontes! silvar estradas ferreas! erguer torres de aço!...»
E o seu delirio prosseguia através imagens bizarras, destrambelhadas ideias:
—Sim! Sim! Todo eu sou uma incoerencia! O meu proprio corpo é uma incoerencia. Julga-me magro, corcovado? Sou-o; porêm muito menos do que pareço. Admirar-se-hia se me visse nu...
«Mas ha mais. Toda a gente me crê um homem misterioso. Pois eu não vivo, não tenho amantes ... desapareço ... ninguem sabe de mim... Engano! Engano! A minha vida é pelo contrario uma vida sem segredo. Ou melhor: o seu segredo consiste justamente em não o ter.
«E a minha vida, livre de estranhezas, é no emtanto uma vida bizarra—mas duma bizarria ás avessas. Com efeito a sua singularidade encerra-se, não em conter elementos que se não encontram nas vidas normais—mas sim em não conter nenhum dos elementos comuns a todas as vidas. Eis pelo que nunca me sucedeu coisa alguma. Nem mesmo o que sucede a toda a gente. Compreende-me?»
Eu compreendia sempre. E êle fazia-me essa justiça. Por isso as nossas conversas d'alma se prolongavam em geral até de manhã; passeando nas ruas desertas, sem sentirmos frio nem cansaço, numa intoxicação mutua e arruivada.
Em horas mais tranquilas, Ricardo punha-se-me a falar da suavidade da vida normal. E confessava-me:
—Ah, quantas vezes isolado em grupos de conhecidos banais, eu não invejei os meus camaradas... Lembro-me tanto de certo jantar no Leão d'Ouro ... numa noite chuvosa de dezembro... Acompanhavam-me dois actores e um dramaturgo. Sabe? O Roberto Dávila, o Carlos Mota, o Alvares Cezimbra... Eu diligenciara, num esforço, descer até êles. Por ultimo, consegui iludir-me. Fui feliz, instantes, creia... E o Carlos Mota, pedia a minha colaboração para uma das suas operetas... Carlos Mota, o autor da Videirinha, o grande sucesso da Trindade... Bons rapazes! bons rapazes... Ai, não ser como êles...
«Porque afinal essa sua vida—«a vida de todos os dias»—é a unica que eu amo. Simplesmente não a posso existir... E orgulho-me tanto de não a poder viver ... orgulho-me tanto de não ser feliz... Cá estamos: a maldita literatura...»
E, depois duma breve pausa:
—Noutros tempos, em Lisboa, um meu companheiro intimo, hoje já morto, alma ampla e intensa de artista requintado—admirava-se de me ver acamaradar com certas creaturas inferiores. É que essas andavam na vida, e eu aprazia-me com elas numa ilusão. As minhas eternas incoerencias! Vocês, os verdadeiros artistas, as verdadeiras grandes almas—eu sei—nunca saem, nem pretendem sair, do vosso circulo de ouro—nunca lhes veem desejos de baixar á vida. É essa a vossa dignidade. E fazem bem. São muito mais felizes... Pois eu sofro duplamente, porque vivo no mesmo circulo dourado e, entretanto, sei-me agitar cá em baixo...
—Ao contrario, eis pelo que você é maior—comentava eu—Esses a quem se refere, se não ousam descer, é por adivinharem que, se se misturassem á existencia quotidiana, ela os absorveria, sossobrando o seu genio de envolta com a banalidade. São fracos. E esse pressentimento, instintivamente os salva. Emquanto que o meu amigo pode arriscar o seu genio por entre mediocres. É tão grande que nada o sujará.
—Quimera! Quimera—volvia o poeta—Sei lá o que sou... Em todo o caso, olhe que é lamentavel a banalidade dos outros... Como a «maioria» se contenta com poucas ansias, poucos desejos espirituais, pouca alma... Oh! é desolador!... Um drama de Jorge Ohnet, um romance de Bourget, uma opera de Verdi, uns versos de João de Deus ou um poema de Tomás Ribeiro—chegam bem para encher o seu ideal. Que digo? Isto mesmo são já requintes de almas superiores. As outras—as verdadeiramente normais—ora ... ora ... deixemo-nos de devaneios, contentam-se com as obscenidades lantejouladas de qualquer baixo-revisteiro sem gramatica...
«A maioria, meu caro, a maioria ... os felizes... E daí, quem sabe se êles é que têm razão ... se tudo o mais será frioleira...
«Em suma ... em suma...»
Correram meses, seguindo sempre entre nós o mesmo afecto, a mesma camaradagem.
Uma tarde de Domingo—recordo-me tão bem—iamos em banalidade Avenida dos Campos Eliseos acima, misturados na multidão, quando a sua conversa resvalou para um campo, que até aí o poeta nunca atacara, positivamente:
—Ah! como se respira vida, vida intensa e sadia, nestes domingos de Paris, nestes maravilhosos Domingos!... É a vida simples, a vida util, que se escoa em nossa face. Horas que nos não pertencem—etereos sonhadores de beleza, roçados de Alem, ungidos de Vago... Orgulho! Orgulho! E emtanto como valera mais se fossemos da gente-media que nos rodeia. Teriamos, pelos menos no espirito, a suavidade e a paz. Assim temos só a luz. Mas a luz cega os olhos... Somos todos alcool, todos alcool!—alcool que nos esvai em lume que nos arde!
«E é pela agitação desta cidade imensa, por esta vida atual, quotidiana, que eu amo o meu Paris numa ternura loira. Sim! Sim! Digo bem, numa ternura—uma ternura ilimitada. Eu não sei ter afectos. Os meus amores foram sempre ternuras... Nunca poderia amar uma mulher pela alma—isto é: por ela propria. Só a adoraria pelos enternecimentos que a sua gentileza me despertasse: pelos seus dedos trigueiros a apertarem os meus numa tarde de sol, pelo timbre subtil da sua voz, pelos seus rubores—e as suas gargalhadas ... as suas correrias...
«Para mim, o que pode haver de sensivel no amor, é uma saia branca a sacudir o ar, um laço de setim que mãos esguias ennastram, uma cintura que se verga, uma madeixa perdida que o vento desfez, uma canção ciciada em labios de ouro e de vinte anos, a flôr que a boca duma mulher trincou...
«Não, nem é sequer a formosura que me impressiona. É outra coisa mais vaga—imponderavel, translucida: A gentileza. Ai, e como eu a vou descobrir em tudo, em tudo—a gentileza... Daí, uma ansia estonteada, uma ansia sexual, de possuir vozes, gestos, sorrisos, aromas e côres!...
«... Lume doido! Lume doido!... Devastação! Devastação!...»
Mas logo, serenando:
—A boa gente que aí vai, meu querido amigo, nunca teve destas complicações. Vive. Nem pensa... Só eu não deixo de pensar... O meu mundo interior ampliou-se—volveu-se infinito, e hora a hora se excede! É horrivel. Ah! Lucio, Lucio! tenho medo—medo de sossobrar, de me extinguir no meu mundo interior, de desaparecer da vida, perdido nele...
«... E aí tem o assunto para uma das suas novelas: um homem que, á força de se concentrar, desaparecesse da vida—imigrado no seu mundo-interior...
«Não lhe digo eu? A maldita literatura...»
Sem motivos nenhuns, livre de todas as preocupações, sentia-me emtanto exquisitamente disposto, essa tarde. Um calafrio me arripiava toda a carne—o calafrio que sempre me varara nas horas culminantes da minha vida.
E Ricardo, de novo, apontando-me uma soberba vitória que dois esplendidos cavalos negros tiravam:
—Ah! como eu me trocaria pela mulher linda que ali vai... Ser belo! ser belo! ... ir na vida fulvamente ... ser pagem na vida... Haverá triunfo mais alto?...
«A maior gloria da minha existencia não foi—ah! não julgue que foi—qualquer elogio sobre os meus poemas, sobre o meu genio. Não. Foi isto só; eu lhe conto:
«Uma tarde de abril, ha três anos, caminhava nos grandes boulevards, solitario como sempre. De subito, uma gargalhada soou perto de mim... Tocaram-me no ombro... Não dei atenção... Mas logo a seguir me puxaram por um braço, garotamente, com o cabo duma sombrinha... Voltei-me... Eram duas raparigas... duas raparigas gentis, risonhas... Áquela hora, duas costureiras—decerto—saídas dos ateliers da rua da Paz. Tinham embrulhos nas mãos...
«E uma delas, a mais audaciosa:
«—Sabe que é um lindo rapaz?
«Protestei... E fomos andando juntos, trocando palavras banais... (Acredite que meço muito bem todo o ridiculo desta confidencia).
«Á esquina do faubourg Poissonnière, despedi-me: devia-me encontrar com um amigo—garanti. Efectivamente, num desejo de perversidade, eu resolvera pôr termo á aventura. Talvez receoso de que, se ela se prolongasse, me desiludisse. Não sei...
«Separámo-nos...
«Essa tarde foi a mais bela recordação da minha vida!...
«Meu Deus! Meu Deus! Como em vez deste corpo dobrado, este rosto contorcido—eu quisera ser belo, esplendidamente belo! E nessa tarde, fui-o por instantes, acredito... É que vinha de escrever alguns dos meus melhores versos. Sentia-me orgulhoso, admiravel... E a tarde era asul, o boulevard ia lindissimo... Depois, tinha um chapeu petulante ... ondeava-se-me na testa uma madeixa juvenil...
«Ah! como vivi semanas, semanas, da pobre saudade ... que ternura infinita me desceu para essa rapariguinha que nunca mais encontrei—que nunca mais poderia encontrar porque, na minha alegria envaidecida, nem sequer me lembrara de ver o seu rosto... Como lhe quero... Como lhe quero... Como a abençoo... Meu amor! meu amor!...»
E, numa transfiguração—todo aureolado pelo brilho intenso, melodioso, dos seus olhos portugueses—Ricardo de Loureiro erguia-se realmente belo, esse instante...
Aliás, ainda hoje ignoro se o meu amigo era ou não era formoso. Todo de incoerencias, tambem a sua fisionomia era uma incoerencia: Por vezes o seu rosto esguio, macerado—se o viamos de frente, parecia-nos radioso. Mas de perfil já não sucedia o mesmo... Contudo, nem sempre: o seu perfil, por vezes, tambem era agradavel ... sob certas luzes ... em certos espelhos...
Entretanto, o que mais o prejudicava, era sem duvida o seu corpo que êle despresava, deixando-o «cair de si», segundo a frase extravagante, mas muito propria, de Gervasio Vila-Nova.
Os retratos que existem hoje do poeta, mostram-no belissimo, numa aureola de genio. Simplesmente, não era essa a expressão do seu rosto. Sabendo tratar-se dum grande artista, os fotografos e os pintores ungiram-lhe a fronte duma expressão nimbada que lhe não pertencia. Convem desconfiar sempre dos retratos dos grandes homens...
—Ah! meu querido Lucio—tornou ainda o poeta—como eu sinto a Victoria duma mulher admiravel, estiraçada sobre um leito de rendas, olhando a sua carne toda nua ... esplendida ... loira d'alcool! A carne feminina—que apoteose! Se eu fosse mulher, nunca me deixaria possuir pela carne dos homens—tristonha, sêca, amarela: sem brilho e sem luz... Sim! num entusiasmo espasmodico, sou todo admiração, todo ternura, pelas grandes debochadas que só emmaranham os corpos de marmore com outros iguais aos seus—femininos tambem; arruivados, sumptuosos... E lembra-me então um desejo perdido de ser mulher—ao menos, para isto: para que, num encantamento, podesse olhar as minhas pernas nuas, muito brancas, a escoarem-se, frias, sob um lençol de linho...
Emtanto, eu admirava-me do rumo que a conversa tomara. Com efeito, se a obra de Ricardo de Loureiro era cheia de sensualismo, de loucas perversidades—nas suas conversas nada disso surgia. Pelo contrario. Ás suas palavras nunca se misturava uma nota sensual—ou simplesmente amorosa—e detinham-no logo subitos pudores se, por acaso, de longe se referia a qualquer detalhe dessa natureza.
Quanto á vida sexual do meu amigo, ignorava-a por completo. Sob esse ponto de vista, Ricardo afigurava-se-me porêm uma criatura tranquila. Talvez me enganasse... Enganava-me com certeza. E a prova—ai, a prova!—tive-a essa noite pela mais estranha confissão—a mais perturbadora, a mais densa...
Eram sete e meia. Haviamos subido todos os Campos Eliseos e a Avenida do Bosque até á Porta Maillot. O artista decidiu que jantassemos no Pavilhão de Armenonville—ideia que eu aplaudi do melhor grado.
Tive sempre muito afecto ao celebre restaurante. Não sei... O seu scenario literario (porque o lemos em novelas), a grande sala de tapete vermelho e, ao fundo, a escadaria; as arvores romanticas que exteriormente o ensombram, o pequeno lago—tudo isso, naquela atmosfera de grande vida, me evocava por uma saudade longinqua, subtil, bruxoleante, a recordação astral de certa aventura amorosa que eu nunca vivera. Luar de outono, folhas sêcas, beijos e champanhe...
Correu simples a nossa conversa durante a refeição. Foi só ao café que Ricardo principiou:
—Não pode imaginar, Lucio, como a sua intimidade me encanta, como eu bemdigo a hora em que nos encontrámos. Antes de o conhecer, não lidara senão com indiferentes—criaturas vulgares que nunca me compreenderam, muito pouco que fosse. Meus pais adoravam-me. Mas, por isso exactamente, ainda menos me compreendiam. Emquanto que o meu amigo é uma alma rasgada, ampla, que tem a lucidez necessaria para entrever a minha. É já muito. Desejaria que fosse mais; mas é já muito. Por isso hoje eu vou ter a coragem de confessar, pela primeira vez a alguem, a maior estranheza do meu espirito, a maior dôr da minha vida...
Deteve-se um instante e, de subito, em outro tom:
—É isto só:—disse—não posso ser amigo de ninguem... Não proteste... Eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afectos—já lhe contei—apenas ternuras. A amizade maxima, para mim, traduzir-se-hia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar ... de estreitar... Emfim: de possuir! Ora eu, só depois de satisfazer os meus desejos, posso realmente sentir aquilo que os provocou. A verdade, por consequencia, é que as minhas proprias ternuras, nunca as senti, apenas as adivinhei. Para as sentir, isto é, para ser amigo dalguem (visto que em mim a ternura equivale á amizade) forçoso me seria antes possuir, quem eu estimasse, ou mulher ou homem. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo eu só poderia ser amigo duma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.
«Ah! a minha dôr é enorme: Todos podem ter amizades, que são o amparo duma vida, a «razão» duma existencia inteira—amizades que nos dedicam; amizades que, sinceramente, nós retribuimos. Emquanto que eu, por mais que me esforce, nunca poderei retribuir nenhum afecto: os afectos não se materialisam dentro de mim! É como se me faltasse um sentido—se fosse cego, se fosse surdo. Para mim, cerrou-se um mundo d'alma. Ha qualquer coisa que eu vejo, e não posso abranger; qualquer coisa que eu palpo, e não posso sentir... Sou um desgraçado ... um grande desgraçado, acredite!
«Em certos momentos chego a ter nojo de mim. Escute. Isto é horrivel! Em face de todas as pessoas que eu sei que deveria estimar—em face de todas as pessoas por quem adivinho ternuras—assalta-me sempre um desejo violento de as morder na boca! Quantas vezes não retraí uma ansia de beijar os labios de minha mãi...
«Entretanto estes desejos materiais—ainda lhe não disse tudo—não julgue que os sinto na minha carne; sinto-os na minha alma. Só com a minha alma poderia matar as minhas ansias enternecidas. Só com a minha alma eu lograria possuir as criaturas que adivinho estimar—e assim satisfazer, isto é, retribuir-sentindo as minhas amizades.
«Eis tudo...
«Não me diga nada ... não me diga nada!... Tenha dó de mim ... muita dó...»
Calei-me. Pelo meu cerebro ia um vendaval desfeito. Eu era alguem a cujos pés, sobre uma estrada lisa, cheia de sol e arvores, se cavasse de subito um abismo de fogo.
Mas, após instantes, muito naturalmente, o poeta exclamou:
—Bem... Já vai sendo tempo de nos irmos embora
E pediu a conta.
Tomámos um fiacre.
Pelo caminho, ao atravessarmos não sei que praça, chegaram-nos ao ouvido os sons dum violino de cego, estropiando uma linda ária. E Ricardo comentou:
—Ouve esta musica? É a expressão da minha vida: Uma partitura admiravel, estragada por um horrivel, por um infame executante...
No dia seguinte, de novo nos encontrámos, como sempre, mas não aludimos á estranha conversa da vespera. Nem no dia seguinte, nem nunca mais ... até ao desenlace da minha vida...
Entretanto, a perturbadora confidencia do artista não se me varrera da memoria. Pelo contrario—dia algum eu deixava de a relembrar, inquieto, quasi numa obsessão.
Sem incidentes notaveis—na mesma harmonia, no mesmo convivio d'alma—a nossa amizade foi prosseguindo, foi-se estreitando. Após dez meses, nos fins de 1896, embora o seu grande amor por Paris, Ricardo resolveu regressar a Portugal—a Lisboa, onde em realidade coisa alguma o devia chamar.
Estivemos um âno separados.
Durante ele, a nossa correspondencia foi nula: três cartas minhas; duas do poeta—quando muito.
Circunstancias materiais e as saudades do meu amigo, levaram-me a sair de Paris, definitivamente, por meu turno. E em dezembro de noventa e sete chegava a Lisboa.
Ricardo esperava-me na estação.
Mas como o seu aspecto fisico mudara nesse âno que estivéramos sem nos ver!
As suas feições bruscas haviam-se amenisado, assetinado—feminilisado, eis a verdade—e, detalhe que mais me impressionou, a côr dos seus cabelos esbatera-se tambem. Era mesmo talvez desta ultima alteração que provinha, fundamentalmente, a diferença que eu notava na fisionomia do meu amigo—fisionomia que se tinha difundido. Sim, porque fora esta a minha impressão total: os seus traços fisionomicos haviam-se dispersado—eram hoje menores.
E o tom da sua voz alterara-se identicamente, e os seus gestos: todo êle, emfim, se esbatera.
Eu sabia já, é claro, que o poeta se casara ha pouco, durante a minha ausencia. Ele escrevera-mo na sua primeira carta; mas sem juntar pormenores, muito brumosamente—como se se tratasse duma irrealidade. Pelo meu lado, respondera com vagos cumprimentos, sem pedir detalhes, sem estranhar muito o facto—tambem como se se tratasse duma irrealidade; de qualquer coisa que eu já soubesse, que fosse um desenlace.
Abraçámo-nos com efusão. O artista acompanhou-me ao hotel, ficando assente que nessa mesma tarde eu jantaria em sua casa.
De sua mulher, nem uma palavra... Lembro-me bem da minha perturbação quando, ao chegarmos ao meu hotel, reparei que ainda lhe não perguntara por ela. E essa perturbação foi tão forte, que ainda menos ousei balbuciar uma palavra a seu respeito, num enleio em verdade inexplicavel...
Mas, quando á noite me dirigia para o palacete que o meu amigo habitava numa das avenidas novas, recentemente abertas, eu—coisa exquisita—esquecera-me até já de que ele casara, de que ia conhecer agora a sua mulher...
Cheguei. Um criado estilisado conduziu-me a uma grande sala escura, pesada, ainda que jorros de luz a iluminassem: Ao entrar com efeito nessa sala resplandecente, eu tive a mesma sensação que sofremos se, vindos do sol, penetramos numa casa imersa em penumbra.
Fui pouco a pouco distinguindo os objectos... E, de subito, sem saber como, num rodopio nevoento, encontrei-me sentado em um sofá, conversando com o poeta e a sua companheira...
Sim. Ainda hoje me é impossivel dizer se, quando entrei no salão, já lá estava alguem, ou se foi só após instantes que os dois apareceram. Da mesma forma, nunca pude lembrar-me das primeiras palavras que troquei com Marta—era este o nome da esposa de Ricardo.
Emfim, eu entrara naquela sala tal como se, ao transpôr o seu limiar, tivesse regressado a um mundo de sonhos.
Eis pelo que as minhas reminiscencias de toda essa noite são as mais tenues. Entretanto, durante ela, creio que nada de singular aconteceu. Jantou-se; conversou-se largamente, por certo...
Á meia-noite despedi-me.
Mal cheguei ao meu quarto, deitei-me, adormeci... E foi só então que me tornaram os sentidos. Efectivamente, ao adormecer, tive a sensação estonteada de acordar dum longo desmaio, regressando agora á vida... Não posso descrever melhor esta incoerencia, mas foi assim.
(E, entre parenteses, convem-me acentuar que meço muito bem a estranheza de quanto deixo escrito. Logo no principio referi que a minha coragem seria a de dizer toda a verdade, ainda quando ela não fosse verosimil.)
A partir daí, comecei frequentando amiudadas noites a casa de Ricardo. As sensações bizarras tinham-me desaparecido por completo, e eu via agora nitidamente a sua esposa.
Era uma linda mulher loira, muito loira, alta, escultural—e a carne mordorada, dura, fugitiva. O seu olhar asul perdia-se de infinito, nostalgicamente. Tinha gestos nimbados e caminhava nuns passos leves, silenciosos—indecisos, mas rapidos. Um rosto formosissimo, duma beleza vigorosa, talhado em oiro. Mãos inquietantes de esguias e palidas.
Sempre triste—numa tristeza maceradamente vaga—mas tão gentil, tão suave e amoravel, que era sem duvida a companheira propicia, ideal, dum poeta.
Cheguei a invejar o meu amigo...
Durante seis meses a nossa existencia foi a mais simples, a mais serena. Ah! esses seis meses constituiram em verdade a unica epoca feliz, sem nevoas, da minha vida...
Raros dias se passavam em que não estivesse com Ricardo e Marta. Quasi todas as noites nos reuniamos em sua casa, um pequeno grupo de artistas: Eu, Luís de Monforte, o dramaturgo da Gloria; Aniceto Sarzedas, o verrinoso critico; dois poetas de vinte ânos cujos nomes olvidei e—sobretudo—o conde Sergio Warginsky, adido da legação da Russia, que nós conheceramos vagamente em Paris e que eu me admirava de encontrar agora assiduo frequentador da casa do poeta. Ás vezes, com menor frequencia, apareciam tambem Raul Vilar e um seu amigo—triste personagem tarado que hoje escreve novelas torpes desvendando as vidas intimas dos seus companheiros, no intuito (justifica-se) de apresentar casos de psicologias estranhas e assim fazer uma arte perturbadora, intensa e original; no fundo apenas falsa e obscena.
Os serões corriam lisongeiros entre conversas intelectuais—vincadamente literarias—onde a nota humoristica era dada em abundancia por Aniceto Sarzedas, nos seus terriveis ereintements contra todos os contemporaneos.
Marta misturava-se por vezes nas nossas discussões, e evidenceava-se duma larga cultura, duma finissima inteligencia. Curioso que a sua maneira de pensar nunca divergia da do poeta. Ao contrario: integrava-se sempre com a dêle reforçando, aumentando em pequenos detalhes as suas teorias, as suas opiniões.
O russo, esse exprimia a sensualidade naquele grupo de artistas—não sei porquê, eu tinha esta impressão.
Era um belo rapaz de vinte e cinco ânos, Sergio Warginsky. Alto e elançado, o seu corpo evocava o de Gervasio Vila-Nova que, ha pouco, brutalmente se suicidara, arremessando-se para debaixo dum comboio. Os seus labios vermelhos, petulantes, amorosos, guardavam uns dentes que as mulheres deveriam querer beijar—os cabelos dum loiro arruivado, caíam-lhe sobre a testa em duas madeixas longas, arqueadas. Os seus olhos de penumbra aurea, nunca os despregava de Marta—devia-me lembrar mais tarde. Emfim, se alguma mulher havia entre nós, parecia-me mais ser êle do que Marta. (Esta sensação bizarra, aliás, só depois é que eu reconheci que a tivera. Durante este periodo, pensamentos alguns destrambelhados me vararam o espirito).
Sergio tinha uma voz formosíssima—sonora, vibrante, esbraseada. Com a predisposição dos russos para as linguas estrangeiras, fazendo um pequeno esforço, pronunciava o português sem o mais ligeiro acento. Por isso Ricardo se aprazia muito em lhe mandar ler os seus poemas que, vibrados por aquela garganta adamantina, se sonorisavam em aureola.
De resto era evidente que o poeta dedicava uma grande simpatia ao russo. A mim, pelo contrario, Warginsky só me irritava—sobretudo talvez pela sua beleza excessiva—chegando eu a não poder retrair certas impaciencias quando êle se me dirigia.
Entretanto bem mais agradaveis me eram ainda as noites que passava apenas na companhia de Ricardo e de Marta—mesmo quasi só na companhia de Marta pois, nessas noites, muitas vezes o poeta se ausentava para o seu gabinete de trabalho.
Longas horas me esquecia então conversando com a esposa do meu amigo. Esperimentavamos um pelo outro uma viva simpatia—era indubitavel. E nessas ocasiões é que eu melhor podia avaliar toda a intensidade do seu espirito.
Emfim, a minha vida desensombrara-se. Certas circunstancias materiais muito enervantes tinham-se-me modificado lisongeiramente. Ao meu ultimo volume, recem-saído do prelo, estava-o acolhendo um magnifico sucesso. O proprio Sarzedas lhe dedicara um grande artigo elogioso e lucido!...
Por sua parte, Ricardo só me parecia feliz no seu lar.
Em suma, tinhamos aportado. Agora sim: viviamos.
Decorreram meses. Chegara o verão. Haviam cessado as reuniões noturnas em casa do artista. Luís de Monforte retirara-se para a sua quinta; Warginsky partira com três meses de licença para S. Petersburgo. Os dois poetazinhos tinham-se perdido em Trás-os-Montes. Só, de vez em quando—com o seu monóculo e o seu eterno sobretudo—surgia Aniceto Sarzedas, queixando-se do reumatico e do ultimo volume que aparecera.
Depois de projectar uma viagem á Noruega, Ricardo decidiu ficar por Lisboa. Queria trabalhar muito esse verão, concluir o seu volume Diadema, que devia ser a sua obra-prima. E francamente, o melhor para isso era permanecer na capital. Marta estando de acordo, assim sucedeu.
Foi neste tempo que a intimidade com a mulher do meu amigo mais se estreitou—intimidade onde nunca a sombra dum desejo se viera misturar, embora passassemos largo tempo juntos. Com efeito, numa ansia de trabalho, Ricardo, após o jantar, logo nos deixava, encerrando-se no seu gabinete até ás onze horas, meia noite...
As nossas palavras, de resto, apesar da nossa intimidade, somavam-se apenas numa conversa longinqua em que não apareciam as nossas almas. Eu expunha-lhe os enredos de futuras novelas, sobre as quais Marta dava a sua opinião—lia-lhe as minhas paginas recem-escritas, sempre numa camaradagem puramente intelectual.
Até aí nunca me ocorrera qualquer ideia misteriosa sobre a companheira do poeta. Ao contrario: ela parecia-me bem real, bem simples, bem certa.
Mas ai, de subito, uma estranha obsessão começou no meu espirito...
Como que acordado bruscamente dum sonho, uma noite achei-me perguntando a mim proprio:
—Mas no fim de contas quem é esta mulher?...
Pois eu ignorava tudo a seu respeito. Donde surgira? Quando a encontrara o poeta? Misterio... Em face de mim nunca ela fizera a minima alusão ao seu passado. Nunca me falara dum parente, duma sua amiga. E, por parte de Ricardo, o mesmo silencio, o mesmo inexplicavel silencio...
Sim, em verdade, tudo aquilo era muito singular. Como a conhecera o artista—ele, que não tinha relações algumas, que nem mesmo frequentava as casas dos seus raros amigos—e como aceitara a ideia do matrimonio, que tanto lhe repugnava?... O matrimonio? Mas seriam êles casados?... Nem sequer disso eu podia estar seguro. Lembrava-me numa reminiscencia vaga: na sua carta o meu amigo não me escrevera propriamente que se tinha casado. Isto é: dizia-mo talvez, mas sem empregar nunca uma palavra decisiva... Aludindo a sua mulher, dizia sempre Marta—reparava agora tambem.
E foi então que me ocorreu outra circunstancia ainda mais estranha, a qual me acabou de perturbar: essa mulher não tinha recordações; essa mulher nunca se referira a uma saudade da sua vida. Sim; nunca me falara dum sitio onde estivera, dalguem que conhecera, duma sensação que sentira—em suma, da mais pequena coisa: um laço, uma flor, um véu...
De maneira que a realidade inquietante era esta: aquela mulher erguia-se aos meus olhos como se não tivesse passado—como se tivesse apenas um presente!
Em vão tentei expulsar do espirito as ideias afogueadas. Mais e mais cada noite elas se me enclavinhavam, focando-se hoje toda a minha agonia em desvendar o misterio.
Nas minhas conversas com Marta esforçava-me por obriga-la a descer no seu passado. Assim lhe perguntava naturalmente se conhecia tal cidade, se conservava muitas reminiscencias da sua infancia, se tinha saudades desta ou doutras epocas da sua vida... Mas ela—naturalmente tambem, suponho—respondia iludindo as minhas perguntas; mais: como se não me percebesse... E, pela minha parte, num enleio injustificado, faltava-me sempre a coragem para insistir—perturbava-me como se viesse de cometer uma indelicadeza.
Para a minha ignorancia ser total, eu nem mesmo sabia que sentimentos ligavam os dois esposos. Amava-a realmente o artista? Sem duvida. Emtanto nunca mo dissera, nunca se me referira a esse amor, que devia existir com certeza. E, pelo lado de Marta, igual procedimento—como se tivessem pejo de aludir ao seu amor.
Um dia, não me podendo conter—vendo que da sua companheira detalhe algum obtinha—decidi-me a interrogar o proprio Ricardo.
E, num esforço, de subito:
—É verdade—ousei—você nunca me contou o seu romance...
No mesmo momento me arrependi. Ricardo empalideceu; murmurou quaisquer palavras e, logo, mudando de assunto, se pôs a esboçar-me o plano dum drama em verso que queria compôr.
Entretanto a minha ideia fixa volvera-se-me num perfeito martirio, e assim—quer junto de Marta, quer junto do poeta—eu tentei por mais duma vez ainda suscitar alguma luz. Mas sempre embalde.
Contudo o mais singular da minha obsessão, ia-me esquecendo de o dizer:
Não era com efeito o misterio que encerrava a mulher do meu amigo que, no fundo, mais me torturava. Era antes esta incerteza: a minha obsessão seria uma realidade, existiria realmente no meu espirito; ou seria apenas um sonho que eu tivera e não lograra esquecer, confundindo-o com a realidade?
Todo eu agora era duvidas. Em coisa alguma acreditava. Nem sequer na minha obsessão. Caminhava na vida entre vestigios, chegando mesmo a recear enlouquecer nos meus momentos mais lucidos...
Voltara o inverno, e com êle, os serões artisticos em casa do poeta, sucedendo aos dois vates perdidos definitivamente em Trás-os-Montes, um vago jornalista com pretensões a dramaturgo e Narciso do Amaral, o grande compositor. Sergio Warginsky, loiro como nunca, sempre o mais assiduo e o mais irritante.
A prova de que o meu espirito andava doente, muito doente, tive-a uma noite dessas—uma noite chuvosa de dezembro...
Narciso do Amaral decidira-se emfim a executar-nos o seu concertante Alem, que terminara ha muitas semanas e que até hoje só êle conhecia.
Sentou-se ao piano. Os seus dedos feriram as teclas...
Automaticamente os meus olhos se tinham fixado na esposa de Ricardo, que se assentara num fauteuil ao fundo da casa, em um recanto, de maneira que só eu a podia ver olhando ao mesmo tempo para o pianista.
Longe dela, em pé, na outra extremidade da sala, permanecia o poeta.
E então, pouco a pouco, á medida que a musica aumentava de maravilha, eu vi—sim, na realidade vi!—a figura de Marta dissipar-se, esbater-se; som a som, lentamente, até que desapareceu por completo. Em face dos meus olhos abismados eu só tinha agora o fauteuil vasio...
Fui de subito acordado da miragem pelos aplausos dos auditores que a musica genial transportara, fizera fremir, quasi delirar...
E, velada, a voz de Ricardo alteou-se:
—Nunca vibrei sensações mais intensas do que perante esta musica admiravel. Não se pode exceder a emoção angustiante, perturbadora, que ela suscita. São véus rasgados sobre o alem—o que a sua harmonia sossobra... Tive a impressão de que tudo quanto me constitue em alma, se precisou condensar para a estremecer—se reuniu dentro de mim, ansiosamente, em um globo de luz...
Calou-se. Olhei...
Marta regressara. Erguia-se do fauteuil nesse instante...
Ao dirigir-me para minha casa debaixo duma chuva miudinha, impertinente—sentia-me silvado por um turbilhão de garras d'ouro e chama.
Tudo resvalava ao meu redór numa bebedeira de misterio, até que—num esforço de lucidez—consegui atribuir a visão fantastica á partitura imortal.
De resto eu apenas sabia que se tratara duma alucinação, porque era impossivel explicar o estranho desaparecimento por qualquer outra forma. Ainda que na realidade o seu corpo se dissolvesse—devido aos lugares que ocupávamos na sala—presumivelmente só eu o teria notado. Com efeito, bem pouco natural seria que, em face de musica tão sugestionadora, alguem podesse desviar os olhos do seu admiravel executante...
A partir dessa noite, a minha obsessão ainda mais se acentuou.
Parecia-me, em verdade, enlouquecer.
Quem era, mas quem era afinal essa mulher enigmatica, essa mulher de sombra? Donde provinha, onde existia?... Falava-lhe ha um âno, e era como se nunca lhe houvesse falado... Coisa alguma sabia dela—a ponto que ás vezes chegava a duvidar da sua existencia. E então, numa ansia, corria a casa do artista, a vê-la, a certificar-me da sua realidade—a certificar-me de que nem tudo era loucura: pelo menos ela existia.
Em mais duma ocasião já Ricardo pressentira em mim decerto alguma coisa extraordinaria. A prova foi que uma tarde, solicito se informou da minha saude. Eu respondi-lhe brutalmente—lembro-me—afirmando com impaciencia que nada tinha; perguntando-lhe que ideia estrambotica era essa.
E êle, admirado perante o meu furor inexplicavel:
—Meu querido Lucio—apenas comentara—é preciso tomarmos conta com esses nervos...
Não podendo mais resistir á ideia fixa; adivinhando que o meu espirito sossobraria se não vencesse lançar emfim alguma luz sobre o misterio—sabendo que, nesse sentido, nada me esperava junto de Ricardo ou de Marta—decidi valer-me de qualquer outro meio, fosse êle qual fosse.
E eis como principiou uma serie de baixezas, de interrogações mal dissimuladas, junto de todos os conhecidos do poeta—dos que deviam ter estado em Lisboa quando do seu casamento.
Para as minhas primeiras diligencias escolhi Luís de Monforte.
Dirigi-me a sua casa, no pretexto de o consultar sobre se deveria conceder a minha auctorização a certo dramaturgo que pensava em extrair um drama duma das minhas mais celebres novelas. Mas logo de começo não tive mãos em mim, e, interrompendo-me, me pús a fazer-lhe perguntas directas, ainda que um tanto vagas, sobre a mulher do meu amigo. Luís de Monforte ouviu-as como se as estranhasse—mas não por elas proprias, só por virem da minha parte; e respondeu-me chocado, iludindo-as, como se as minhas perguntas fossem indiscrições a que seria pouco correcto responder.
O mesmo—coisa curiosa—me sucedeu junto de todos quantos interroguei. Apenas Aniceto Sarzedas foi um pouco mais explicito, volvendo-me com uma infamia e uma obscenidade—segundo o seu costume, de resto.
Ah! como me senti humilhado, sujo, nesse instante—que dificil me foi suster a minha raiva e não o esbofetear, estender-lhe afavelmente a mão, na noite seguinte, ao encontra-lo em casa do poeta...
Estas diligencias torpes, porêm, foram vantajosas para mim. Com efeito se, durante elas, não averiguara coisa alguma—concluira pelo menos isto: que ninguem se admirava do que eu me admirava; que ninguem notara o que eu tinha notado. Pois todos me ouviram como se nada de propriamente estranho, de misterioso, houvesse no assunto sobre o qual as minhas perguntas recaíam—apenas como se fosse indelicado, como se fosse estranho da minha parte tocar nesse assunto. Isto é: ninguem me compreendera... E assim me cheguei a convencer de que eu proprio não teria razão...
De novo, por algum tempo, as ideias se me desanuviaram; de novo, serenamente, me pude sentar junto de Marta.
Mas ai, foi bem curto este periodo tranquilo.
De todos os conhecidos do artista, só um eu não ousara abordar, tamanha antipatia êle me inspirava—Sergio Warginsky.
Ora uma noite, por acaso, encontrámo-nos no Tavares. Não houve pretexto para que não jantassemos á mesma mesa...
... E de subito, no meio da conversa, muito naturalmente, o russo exclamou, aludindo a Ricardo e á sua companheira:
—Encantadores aqueles nossos amigos, não é verdade? E que amaveis... Já conhecia o poeta em Paris. Mas, a bem dizer, as nossas relações datam de ha dois ânos, quando fomos companheiros de jornada... Eu tomara em Biarritz o sud-express para Lisboa. Eles faziam viagem no mesmo trem, e desde então...
Atordoaram-me, positivamente me atordoaram, as palavras do russo.
Pois seria possivel? Ricardo trouxera-a de Paris?... Mas como não a conhecera eu, sendo assim? Acaso não o teria acompanhado á gare do Quai d'Orsay? Fôra verdade, fôra, não o acompanhara—lembrei-me de subito. Estava doente, com um fortissimo ataque de gripe... E êle... Não; era impossivel ... não podia ser...
Mas logo, procurando melhor nas minhas reminiscencias, me ocorreram pela primeira vez, nitidamente me ocorreram, certos detalhes obscuros que se prendiam com o regresso do artista a Portugal.
Ele amava tanto Paris ... e decidira regressar a Portugal... Declarara-mo, e eu não me tinha admirado—não me tinha admirado como se houvesse uma razão que justificasse, que exigisse esse regresso.
Ai, como me arrependia hoje de, com efeito, o não ter acompanhado á estação, embora o meu incomodo, e talvez ainda outro motivo, que eu depois esquecera. Entretanto recordava-me de que apesar da minha febre, das minhas violentas dôres de garganta, estivera prestes a erguer-me e a ir despedir-me do meu amigo... Porêm, em face dum torpor fisico que me invadira todo, deixara-me ficar estendido no leito, imerso numa profunda modorra, numa estranha modorra de penumbra...
Aquela mulher, ah! aquela mulher...
Quem seria... quem seria?... Como sucedera tudo aquilo?...
E só então me lembrei distintamente da carta do poeta pela qual se me afigurava ter sabido do seu enlace: a verdade era que, de forma alguma, êle me participava um casamento nessa carta; nem sequer de longe aludia a esse acto—falava-me apenas das «transformações da sua vida», do seu lar, e tinha frases como esta que me bailava em letras de fôgo diante dos olhos: «agora, que vive alguem a meu lado; que emfim de tudo quanto derroquei sempre se ergueu alguma coisa...»
E, facto extraordinario, notava eu hoje: êle referia-se a tudo isso como se se tratasse de episodios que eu já conhecesse, sendo por conseguinte inutil narrá-los, só comentando-os...
Mas havia outra circunstancia, ainda mais bizarra: é que, pela minha parte, eu não me admirara, como se efectivamente já tivesse conhecido tudo isso, que porêm olvidara por completo, e que a sua carta agora, vagamente, me vinha recordar...
Sim, sim: nem me admirara, nem lhe falara do meu esquecimento, nem lhe fizera perguntas—não pensara sequer em lhas fazer, não pensara em coisa alguma.
Mais do que nunca o misterio subsistia pois; entretanto divergido para outra direcção. Isto é: a ideia fixa que êle me enclavinhava no espirito, alterara-se essencialmente:
Outróra o misterio apenas me obcecava como misterio: evidenciando-se, tambem a minha alma se desensombraria. Era êle só a minha angustia E hoje—meu Deus!—a tortura volvera-se-me em quebranto; o segredo que velava a minha desconhecida, só me atraía hoje, só me embriagava de champanhe—era a beleza unica da minha existencia.
Daí por diante seria eu proprio a esforçar-me por que ele permanecesse, impedindo que luz alguma o viesse iluminar. E quando desabasse, a minha dôr seria infinita. Mais: se êle sossobrasse, apesar de tudo, numa ilusão, talvez eu ainda o fizesse prosseguir!
O meu espirito adaptara-se ao misterio—e esse misterio ia ser a armadura, a chama e o rastro d'ouro da minha vida...
Isto, entretanto, não o avistei imediatamente; levou-me muitas semanas o aprendê-lo—e, ao descobri-lo, recuei horrorisado. Tive medo; um grande medo... O misterio era essa mulher. Eu só amava o misterio...
... Eu amava essa mulher! Eu queria-a! eu queria-a!...
Meu Deus, como sangrei...
O espirito fendera-se-me numa oscilação temivel; um arrepio contínuo me varava a carne zig-zagueantemente. Não dormia, nem sequer sonhava. Tudo eram linhas quebradas em meu redór, manchas de luz pôdre, ruidos dissonantes...
Foi então que num impeto de vontade, bem decidido, comecei a procurar com toda a lucidez a força de salvar o precipicio que estava já bem perto, na minha carreira... Logo a encontrei. O que me impelia para essa mulher fazendo-ma ansear esbraseadamente, não era a sua alma, não era a sua beleza—era só isto: o seu misterio. Derrubado o segredo, esvair-se-hia o encantamento: eu poderia caminhar bem seguro.
Assim determinei abrir-me inteiramente com Ricardo, dizer-lhe as minhas angustias, e suplicar-lhe que me contasse tudo, tudo, que posesse termo ao misterio, que preenchesse os espaços vasios da minha memoria.
Mas foi-me impossivel levar a cabo tal resolução. Desfaleci adivinhando que sofreria muito mais, muito mais fanadamente, extinto o sortilegio, de que emquanto êle me diluísse.
Quis ter porêm outra coragem: a de fugir.
Desapareci durante uma semana fechado em minha casa, sem fazer coisa alguma, passeando todo o dia á roda do meu quarto. Os bilhetes do meu amigo principiaram chovendo, e como nunca lhe respondesse, uma tarde êle proprio me veiu procurar. Disseram-lhe que eu não estava, mas Ricardo sem ouvir, precipitou-se no meu quarto a gritar-me:
—Homem! que diabo significa isto? Pósas ao neurasténico á ultima hora? Vamos, faze-me o favor de te vestir, e de me acompanhares imediatamente a minha casa.
Não soube articular uma razão, uma escusa. Apenas sorri volvendo:
—Não faças caso. São as minhas exquisitices...
E, no mesmo instante, eu decidi não fugir mais do precipicio; entregar-me á corrente—deixar-me ir até onde ela me levasse. Com esta resolução voltou-me toda a lucidez.
Acompanhei Ricardo. Ao jantar falou-se só da minha «madureza», e o primeiro a blaguea-la fui eu proprio.
Marta estava linda essa noite. Vestia uma blusa negra de crépe da China, amplamente decotada. A saia muito cingida deixava pressentir a linha escultural das pernas que uns sapatos muito abertos mostravam quasi nuas, revestidas por meias de fios metalicos, entrecruzados em largos losangos por onde a carne surgia...
E pela primeira vez, ao jantar, me sentei a seu lado, pois o artista recusou o seu lugar do costume pretextando uma corrente de ar...
O que foram as duas semanas que sucederam a esta noite, não sei. Emtanto a minha lucidez continuava. Nenhuma ideia estranha feria o meu espirito, nenhuma hesitação, nenhum remorso... E contudo sabia-me arrastado, deliciosamente arrastado, em uma nuvem de luz que me encerrava todo e me aturdia os sentidos—mas não deixava ver, embora eu tivesse a certeza de que êles me existiam bem lucidos. Era como se houvesse guardado o meu espirito numa gaveta...
Foi duas noites após o meu regresso que as suas mãos, naturalmente, pela primeira vez encontraram as minhas...
Ah! como as horas que passavamos solitarios eram hoje magentas... As nossas palavras tinham-se volvido—pelo menos julgo que se tinham volvido—frases sem nexo, sob as quais ocultavamos aquilo que sentiamos e não queriamos ainda desvendar, não por qualquer receio, mas sim, unicamente, num desejo perverso de sensualidade.
Tanto que uma noite, sem me dizer coisa alguma, ela pegou nos meus dedos e com eles acariciou as pontas dos seios—a acera-las, para que enfolassem agrestemente o tecido ruivo do kimono de seda.
E cada noite era uma nova voluptuosidade silenciosa.
Assim, ora nos beijavamos os dentes, ora ela me estendia os pés descalços para que lhos roesse—me soltava os cabelos; me dava a trincar o seu sexo maquilado, o seu ventre obsceno de tatuagens rôxas...
E só depois de tantos requintes de brasa, de tantos extases perdidos—sem forças para prolongarmos mais as nossas perversões—nos possuimos realmente.
Foi uma tarde triste, chuvosa e negra de fevereiro. Eram quatro horas. Eu sonhava dela quando, de subito, a encantadora surgiu na minha frente...
Tive um grito de surpresa. Marta porêm logo me fez calar com um beijo mordido...
Era a primeira vez que vinha a minha casa, e eu admirava-me, receoso da sua audacia. Mas não lho podia dizer: ela mordia-me sempre...
Por fim os nossos corpos embaralharam-se, oscilaram perdidos numa ansia ruiva...
... E em verdade não fui eu que a possuí—ela, toda nua, ela sim, é que me possuiu...
Á noite, como de costume, jantei em casa de Ricardo.
Muito curiosa a disposição do meu espirito: nem o minimo remorso, o minimo constrangimento—nuvem alguma. Pelo contrario, ha muito que me não via tão bem disposto. O proprio meu amigo o observou.
Falámos os dois largamente essa noite, coisa que ha bastante não acontecia. Ricardo terminara emfim nessa tarde o seu volume. Por isso nos não deixou...
... E no meio da sua conversa intima, eu esquecera até o episodio dourado. Olhando em redór de mim nem mesmo me ocorria que Marta estava seguramente perto de nós...
Na manhã seguinte, ao acordar, lembrei-me de que o poeta me dissera esta estranha coisa:
—Sabe você, Lucio, que tive hoje uma bizarra alucinação? Foi á tarde. Deviam ser quatro horas... Escrevera o meu ultimo verso. Saí do escritorio. Dirigi-me para o meu quarto... Por acaso olhei para o espelho do guarda-vestidos e não me vi reflectido nêle! Era verdade! Via tudo em redór de mim, via tudo quanto me cercava projectado no espelho. Só não via a minha imagem... Ah! não calcula o meu espanto ... a sensação misteriosa que me varou... Mas quer saber? Não foi uma sensação de pavor, foi uma sensação de orgulho.
Porêm, reflectindo melhor, descobri que em realidade o meu amigo me não dissera nada disto. Apenas eu—numa reminiscencia muito complicada e muito estranha—me lembrava, não de que verdadeiramente ele mo tivesse dito, mas de que, entretanto, mo devera ter dito.
A nossa ligação, sem uma sombra, foi prosseguindo.
Ah! como eu, ascendido, me orgulhava do meu amor... Vivia em sortilegio, no contínuo deslumbramento duma apoteose branca de carne...
Que delirios estrebuchavam os nossos corpos doidos ... como eu me sentia pouca coisa quando ela se atravessava sobre mim, iriada e sombria, toda nua e liturgica...
Caminhava sempre aturdido do seu encanto—do meu triunfo. Eu tinha-a! Eu tinha-a!... E erguia-se tão longe o meu entusiasmo, era tamanha a minha ansia que ás vezes—como os amorosos baratos escrevem nas suas cartas romanescas e patetas—eu não podia crer na minha gloria, chegava a recear que tudo aquilo fosse apenas um sonho.
A minha convivencia com Ricardo seguia sempre a mesma, e o meu afecto. Nem me arrependia, nem me condenava. De resto, antevendo-me em todas as situações, já anteriormente me suposera nas minhas circunstancias actuais, adquirindo a certeza de que seria assim.
Com efeito, segundo o meu sentir, eu não prejudicava o meu amigo em coisa alguma, não lhe fazia doer—êle não descera coisa alguma na minha estima.
Nunca tive a noção convencional de certas ofensas, de certos escrupulos. De nenhum modo procedia pois contra êle; transpondo-me, não me sabia indignar com o que lhe tinha feito.
Aliás, ainda que o meu procedimento fosse na verdade um crime, eu não praticava esse crime por mal, criminosamente. Eis pelo que me era impossivel ter remorsos.
Se lhe mentia—estimava-o entretanto com o mesmo afecto. Mentir não é menos querer.
Porêm—coisa estranha—este amor pleno, este amor sem remorsos; eu vibrava-o insatisfeito, dolorosamente. Fazia-me sofrer muito, muito. Mas porquê, meu Deus? Cruel enigma...
Amava-a, e ela queria-me tambem decerto ... dava-se-me toda em luz... Que me faltava?...
Não tinha subitos caprichos, recusas subitas, como as outras amantes. Nem me fugia, nem me torturava... Que me doía então?
Misterio...
O certo é que ao possui-la eu era todo medo—medo inquieto e agonia: agonia de ascensão, medo raiado de asul; emtanto morte e pavor.
Longe dela, recordando os nossos espasmos, vinham-me de subito incompreensiveis nauseas. Longe dela?... Mesmo até no momento dourado da posse essas repugnancias me nasciam a alastrarem-me, não a resumirem-me, a enclavinharem-me os extases arfados; e—cumulo da singularidade—essas repugnancias eu não sabia, mas adivinhava, serem apenas repugnancias fisicas.
Sim, ao esvaí-la, ao lembrar-me de a ter esvaído, subia-me sempre um alem-gosto a doença, a monstruosidade, como se possuira uma criança, um ser doutra especie ou um cadaver...
Ah! e o seu corpo era um triunfo; o seu corpo glorioso ... o seu corpo bebedo de carne—aromatico e lustral, evidente ... salutar...
As lutas em que eu hoje tinha de me debater para que ela não suspeitasse as minhas repugnancias, repugnancias que—já disse e acentuo—apenas vinham contorcer os meus desejos, aumentá-los...
Elançava-me agora sobre o seu corpo nu, como quem se arremessasse a um abismo encapelado de sombras, tilintante de fogo e gumes de punhais—ou como quem bebesse um veneno subtil de maldição eterna, por uma taça d'ouro, heraldica, ancestral...
Cheguei a recear-me, não a fosse um dia estrangular—e o meu cerebro, por vezes de misticismos incoerentes, logo pensou, num rodopio, se essa mulher fantastica não seria antes um demonio: o demonio da minha expiação, noutra vida a que eu já houvesse baixado.
E as tardes iam passando...
Por mais que diligenciasse referir toda a minha tortura á nossa mentira, ao nosso crime—não me lograva enganar. Coisa alguma eu lastimava; não podia ter remorsos... Tudo aquilo era quimera!
Volvido tempo, porêm, á força de as querer descer, de tanto meditar nestas estranhezas, como que emfim me adaptei a elas. E a tranquilidade regressou-me.
Mas este novo periodo de calma bem pouco durou. Em face do misterio não se pode ser calmo—e eu depressa me lembrei de que ainda não sabia coisa alguma dessa mulher que todas as tardes emmaranhava.
Nas suas conversas mais intimas, nos seus amplexos mais doidos, ela era sempre a mesma esfinge. Nem uma vez se abrira comigo numa confidencia—e continuava a ser a que não tinha uma recordação.
Depois, olhando melhor, nem era só do seu passado que eu ignorava tudo—tambem duvidava do seu presente. Que faria Marta durante as horas que não viviamos juntos? Era extraordinario! Nunca me falara delas; nem para me contar o mais pequenino episodio—qualquer desses episodios futeis que todas as mulheres, que todos nós nos apressamos a narrar, narramos maquinalmente, ainda os mais reservados... Sim, em verdade, era como se não vivesse quando estava longe de mim.
Passou-me esta ideia pelo espirito, e logo encontrei outro facto muito estranho:
Marta parecia não viver quando estava longe de mim. Pois bem, pela minha parte, quando a não tinha ao meu lado, coisa alguma me restava que, materialmente, me podesse provar a sua existencia: nem uma carta, um veu, uma flôr sêca—nem retratos, nem madeixas. Apenas o seu perfume, que ela deixava penetrante no meu leito, que sempre bailava subtil em minha volta. Mas um perfume é uma irrealidade. Por isso, como outróra, descia-me a mesma ansia de a ver, de a ter junto de mim para estar bem certo de que, pelo menos, ela existia.
Evocando-a, nunca a lograra entrever. As suas feições escapavam-me como nos fogem as das personagens dos sonhos. E, ás vezes, querendo-as recordar por força, as unicas que conseguia suscitar em imagem, eram as de Ricardo. Decerto por ser o artista quem vivia mais perto dela.
Ah! bem forte, sem duvida, o meu espirito, para resistir ao turbilhão que o silvava...
(Entre parenteses observe-se, porêm, que estas obsessões reais que descrevo nunca foram continuas no meu espirito. Durante semanas desapareciam por completo e, mesmo nos periodos em que me varavam, tinham fluxos e refluxos).
Juntamente com o que deixo exposto, e era o mais frisante das minhas torturas, outras pequeninas coisas, traiçoeiras ninharias, me vinham fustigar. Coloca-se até aqui um episodio curioso que, embora sem grande importancia, é conveniente referir:
Apesar de grandes amigos e de intimos amigos, eu e Ricardo não nos tratavamos por tu, devido com certeza á nossa intimidade ter principiado relativamente tarde—não sermos companheiros de infancia. De resto, nunca sequer atentaramos no facto.
Ora, por esta epoca, eu encontrei-me por vezes de subito a tratar o meu amigo por tu. E quando o fazia, logo me emendava, corando como se viesse de praticar uma imprudencia. E isto repetia-se tão amiudadamente que o poeta uma noite me observou com a maior naturalidade:
—Homem, escusas de ficar todo atrapalhado, titubiante, vermelho como uma malagueta, quando te enganas e me tratas por tu. Isso é ridiculo entre nós. E olha, fica combinado: de hoje em diante acabou-se o «você». Viva o «tu»! É muito mais natural...
E assim se fez. Contudo, nos primeiros dias, eu não soube retrair um certo embaraço ao empregar o novo tratamento—tratamento que me fôra permitido.
Ricardo, virando-se para Marta, mais de uma vez me troçou, dizendo-lhe:
—Este Lucio sempre tem cada exquisitice... Não vês? Parece uma noiva liria!... uma pombinha sem fél... Que marócas!...
Entretanto este meu embaraço tinha um motivo—complicado motivo esse, por sinal:
Nas nossas entrevistas intimas, nos nossos amplexos, eu e Marta tratavamo-nos por tu.
Ora, sabendo-me muito distraído, eu receava que alguma vez, em frente de Ricardo, me enganasse e a fosse tratar assim.
Este receio converteu-se por ultimo numa ideia fixa, e por isso mesmo, por esse excesso de atenção, comecei um dia a ter subitos descuidos. Porêm, dessas vezes, eu encontrava-me sempre a tratar por tu, não Marta, Ricardo.
E embora depois tivessemos assentado usar esse tratamento, o meu embaraço continuou durante alguns dias como se ingenuamente, confiadamente, Ricardo houvesse exigido que eu e a sua companheira nos tratassemos por tu.
As minhas entrevistas amorosas com Marta, realisavam-se sempre em minha casa, á tarde.
Com efeito ela nunca se me quisera entregar em sua casa. Em sua casa apenas me dava os labios a morder e consentia vicios prateados.
Eu admirava-me até muito da facilidade evidente que ela tinha em se encontrar comigo todas as tardes á mesma hora, em se demorar largo tempo.
Uma vez recomendei-lhe prudencia. Ela riu. Pedi-lhe explicações: como não eram estranhadas as suas longas ausencias, como me chegava sempre tranquila, caminhando pelas ruas desensombradamente, nunca se preocupando com as horas... E ela então soltou uma gargalhada, mordeu-me a bôca ... fugiu...
Nunca mais a interroguei sobre tal assunto. Seria mau gosto insistir.
Entretanto fôra mais um segredo que se viera juntar á minha obsessão, a excitá-la...
De resto, as imprudencias de Marta não conheciam limites.
Em sua casa beijava-me com as portas todas abertas, sem se lembrar de que qualquer criado nos poderia descobrir—ou mesmo o proprio Ricardo, que muitas vezes, de subito, saía do seu gabinete de trabalho. Sim, ela nunca tinha desses receios. Era como se tal nos não podesse acontecer—tal como se nós nos não beijássemos...
Aliás, se havia alguem bem confiante, era o poeta. Bastava olhá-lo para logo se ver que nenhuma preocupação o torturava. Nunca o vira tão satisfeito, tão bem disposto.
Um vago ar de tristeza, de amargura, que após o seu casamento ainda de vez em quando o anuviava, esse mesmo desaparecera hoje por completo—como se, com o decorrer dos dias, ele já tivesse esquecido o acontecimento cuja lembrança lhe suscitava aquela ligeira nuvem.
As suas antigas complicações d'alma, essas, mal eu chegara a Lisboa logo ele me dissera que já não o desolavam—pois que, nesse sentido, a sua vida se limpara.
E—facto curioso—justamente depois de Marta ser minha amante é que tinham cessado todas as nuvens, é que eu via melhor a sua boa disposição—o seu orgulho, o seu jubilo, o seu triunfo...
As imprudencias de Marta aumentavam agora dia a dia.
Numa audacia louca, nem retinha já certos gestos de ternura a mim dirigidos, na presença do proprio Ricardo!
Todo eu tremia, mas o poeta nunca os estranhava—nunca os via; ou, se os via, era só para se rir, para os acompanhar.
Assim, uma tarde de verão, lanchavamos no terraço, quando Marta de subito—num gesto que, em verdade, se poderia tomar por uma simples brincadeira agarotada—me mandou beijá-la na fronte, em castigo de qualquer coisa que eu lhe dissera.
Hesitei, fiz-me muito vermelho; mas como Ricardo insistisse, curvei-me trémulo de medo, estendi os labios mal os pousando na péle...
E Marta:
—Que beijo tão desengraçado! Parece impossivel que ainda não saiba dar um beijo... Não tem vergonha? Anda, Ricardo, ensina-o tu...
Rindo, o meu amigo ergueu se, avançou para mim ... tomou-me o rosto ... beijou-me...
O beijo de Ricardo fôra igual, exactamente igual, tivera a mesma côr, a mesma perturbação que os beijos da minha amante. Eu sentira-o da mesma maneira.
Mais e mais a minha tortura se exacerbava cada noite. E embora visse claramente que todo o meu sofrimento, todos os meus receios, provinham só de obsessões destrambelhadas e que, portanto, motivo algum havia para eu os ter—o certo é que, pelo menos, uma certeza lucida me restava pressentida: fosse como fosse, havia em todo o caso um motivo real no arrepio de medo que me varava a todo o instante. Seriam destrambelhadas as minhas obsessões—ah! mas eram justos, bem justos no fundo, os meus receios.
Os nossos encontros prosseguiam sempre todas as tardes em minha casa, e eu hoje esperava, tremendo, a hora dos nossos amplexos. Tremendo e, ao mesmo tempo, a ansear numa agonia aquilo que me fazia tremer.
Esquecera as minhas repugnancias; o que me oscilava agora era outra duvida: apesar de os nossos corpos se emmaranharem, se incrustarem, de ela ter sido minha, toda minha—começou a parecer-me, não sei porquê, que nunca a possuira inteiramente; mesmo que não era possivel possuir aquele corpo inteiramente por uma impossibilidade fisica qualquer: assim como se «ela» fosse do meu sexo!
E ao penetrar-me esta ideia alucinadora, eu lembrava-me sempre de que o beijo de Ricardo, esse beijo masculino, me soubera ás mordeduras de Marta; tivera a mesma côr, a mesma perturbação...
Passaram-se alguns mêses.
Entre periodos mais ou menos tranquilos, o tempo ia agora seguindo. Eu olvidava a minha inquietação, o meu misterio, elaborando um novo volume de novelas—o ultimo que devia escrever...
Meus tristes sonhos, meus grandes cadernos de projectos—acumulei-vos... acumulei-vos numa ascensão, e por fim tudo ruiu em destroços... Etereo construtor de torres que nunca se ergueram, de catedrais que nunca se sagraram... Pobres torres de luar ... pobres catedrais de neblina...
Por este tempo, houve tambem uma epoca muito interessante na minha crise que não quero deixar de mencionar: durante ela eu pensava muito no meu caso, mas sem de forma alguma me atribular—friamente, desinteressadamente, como se esse caso se não desse comigo.
E punha-me sobretudo a percorrer o começo da nossa ligação. De que modo se iniciara ela? Misterio... Sim, por muito estranho que pareça, a verdade é que eu me esquecera de todos os pequenos episodios que a deviam forçosamente ter antecedido. Pois decerto não começaramos logo por beijos, por caricias viciosas—houvera sem duvida qualquer coisa antes, que hoje não me podia recordar.
E o meu esquecimento era tão grande que, a bem dizer, eu não tinha a sensação de haver esquecido esses episodios: parecia-me impossivel recordá-los, como impossivel é recordarmo-nos de coisas que nunca sucederam...
Mas estas bizarrias não me dilaceravam, repito: durante esta epoca eu examinei-me sempre de fóra, num deslumbramento—num deslumbramento lucido, donde provinha o meu alivio actual.
E só me lembrava—conforme narrei—do primeiro encontro das nossas mãos, do nosso primeiro beijo... Nem de tanto, sequer. A verdade simples era esta: eu sabia apenas que devera ter havido seguramente um primeiro encontro de mãos, uma primeira mordedura nas bôcas ... como em todos os romances...
Quando a saudade dêsse primeiro beijo me acudia mais nitida—ele surgia-me sempre como se fôra a coisa mais natural, a menos criminosa, ainda que dado na bôca... Na bôca? Mas é que eu nem mesmo disso estava seguro. Pelo contrario: era até muito possivel que esse beijo, mo tivessem dado na face—como o beijo de Ricardo, o beijo semelhante aos de Marta...
Meu Deus, meu Deus, quem me diria entretanto que estava ainda a meio do meu calvario, que tudo o que eu já sofrera nada valeria em face duma nova tortura—ai, desta vez, tortura bem real, não simples obsessão...
Com efeito um dia comecei observando uma certa mudança na atitude de Marta—nos seus gestos, no seu rosto: um vago constrangimento, um alheamento singular, devidos sem duvida a qualquer preocupação. Ao mesmo tempo reparei que já não se me entregava com a mesma intensidade.
Demorava-se agora menos em minha casa, e uma tarde, pela primeira vez, faltou.
No dia seguinte não aludiu á sua ausencia, nem eu tão pouco me atrevi a perguntar-lhe coisa alguma. Entretanto notei que a expressão do seu rosto mudara ainda: voltara a serenidade, a serenidade melancolica do seu rosto—mas essa serenidade era hoje diferente: mais loira, mais sensual, mais esbatida...
E desde aí, principiou a não me aparecer amiudadas vezes—ou chegando fóra das horas habituais, entrando e logo saindo, sem se me entregar.
De maneira que eu vivia agora num martirio incessante. Cada dia que se levantava, era cheio do medo de que ela me faltasse. E desde a manhã a esperava, fechado em casa, numa excitação indomavel que me quebrava, que me ardia.
Por seu lado, Marta nunca tinha pensado em justificar-me as suas ausencias, as suas recusas. E eu, embora o quisesse, ardentemente o quisesse, não lhe ousava fazer a mais ligeira pergunta.
De resto, devo explicar que, desde o inicio da nossa ligação, terminara a nossa intimidade. Com efeito, desde que Marta fôra minha—eu olhava-a como se olha alguem que nos é muito superior e a quem tudo devemos. Recebera o seu amor como uma esmola de rainha—como aquilo que menos poderia esperar, como uma impossibilidade.
Eis pelo que não arriscava uma palavra.
Eu era apenas o seu escravo—um escravo a quem se prostituira a patrícia debochada... Mas, por ser assim, tanto mais contorcida se enclavinhava a minha angustia...
Uma tarde decidi-me.
Passara ha muito a hora depois da qual Marta nunca vinha.
—Ah! que faria nesse instante? Porque não viera!?...
Fosse como fosse, era preciso saber alguma coisa!
Já mais duma vez, quando ela me faltava, eu estivera prestes a ir procura-la. Mas nunca ousara sair do meu quarto, no receio pueril de que—embora muito tarde—ainda aparecesse.
Nesse dia, porêm, pude-me vencer. Decidi-me...
Corri a casa do meu amigo numa ansia esbraseada...
Fui encontra-lo no seu gabinete de trabalho, entre uma avalanche de papeis, fazendo uma escolha dos seus versos inéditos para uma distribuição em dois volumes—distribuição que ha mais dum âno o torturava.
—Ainda bem que apareceste!—gritou-me.—Vais-me ajudar nesta horrivel tarefa!...
Volvi-lhe balbuciando, sem me atrever a perguntar pela sua companheira, motivo unico da minha inesperada visita... Estaria em casa? Era pouco provavel. Emtanto podia ser...
Só a vi ao jantar. Tinha um vestido-tailleur, de passeio...
Agora todas as minhas obsessões se haviam dissipado, convertidas em ciume—ciume que eu ocultava á minha amante como uma vergonha, que fazia por ocultar a mim proprio, tentando substitui-lo pelos meus antigos desvairos. Mas sempre embalde.
Contudo nunca passavam três dias seguidos sem que Marta me pertencesse.
O horror fisico que o seu corpo já me suscitara tinha voltado de novo. Esse horror, porêm, e o ciume, mais me faziam deseja-la, mais alastravam em côres fulvas os meus espasmos.
Muitas vezes repeti a experiencia de correr a sua casa nas tardes em que ela não vinha. Mas sempre encontrava Ricardo. Marta não aparecia senão ao jantar... E eu, na minha incrivel timidez, nunca perguntava por ela—esquecia-me mesmo de o fazer, como se não fosse para isso só que viera procurar o meu amigo àquela hora...
Porêm, um dia o poeta admirou-se das minhas visitas intempestivas, do ar febril com que eu chegava e, desde então, nunca mais ousei repetir essas experiencias, aliás inuteis.
Decidi espiona-la.
Uma tarde tomei um coupé e, descidas as cortinas, mandei-o parar perto de sua casa... Esperei algum tempo. Por fim ela saiu. Ordenei ao cocheiro que a seguisse a distancia...
Marta tomou por uma rua transversal, dobrou á esquerda, enveredou por uma avenida paralela àquela em que habitava e onde as construções eram ainda raras. Dirigiu-se a um pequeno predio de asulejo verde. Entrou sem bater...
Ah! como eu sofria! como eu sofria!... Fôra buscar a prova evidente de que ela tinha outro amante... Louco que eu era em a ter ido procurar... Hoje, nem mesmo que quisesse, me poderia já iludir...
E como eu me enganara outróra pensando que não seria sensivel á traição carnal duma minha amante, que pouco me faria que ela pertencesse a outros...
Começou então a ultima tortura...
Num grande esforço baldado, procurei ainda olvidar-me do que descobrira—esconder a cabeça debaixo dos lençois como as crianças, com medo dos ladrões, nas noites de inverno.
Ao entrelaça-la, hoje, debatia-me em extases tão profundos, mordia-a tão sofregamente, que ela uma vez se me queixou.
Com efeito, sabe-la possuida por outro amante—se me fazia sofrer na alma, só me excitava, só me contorcia nos desejos...
Sim! sim!—laivos de roxidão!—aquele corpo esplendido, triunfal, dava-se a três homens—três machos se estiraçavam sobre êle, a polui-lo, a sugá-lo!... Três? Quem sabia se uma multidão?... E ao mesmo tempo que esta ideia me despedaçava, vinha-me um desejo perverso de que assim fosse...
Ao estrebucha-la agora, em verdade, era como se, em beijos monstruosos, eu possuisse tambem todos os corpos masculinos que resvalavam pelo seu. A minha ansia convertera-se em achar na sua carne uma mordedura, uma escoriação de amor, qualquer rastro doutro amante...
E um dia de triunfo, finalmente, descobri-lhe no seio esquerdo uma grande nodoa negra... Num impeto, numa furia, colei a minha boca a essa mancha—chupando-a, trincando-a, dilacerando-a...
Marta, porêm, não gritou. Era muito natural que gritasse com a minha violencia, pois a boca ficara-me até sabendo a sangue. Mas o certo é que não teve um queixume. Nem mesmo parecera notar essa caricia brutal...
De modo que, depois de ela sair, eu não pude recordar-me do meu beijo de fogo—foi-me impossivel relembra-lo numa estranha duvida...
Ai, quanto eu não daria por conhecer o seu outro amante ... os seus outros amantes...
Se ela me contasse os seus amores livremente, sinceramente, se eu não ignorasse as suas horas—todo o meu ciume desapareceria, não teria razão de existir.
Com efeito, se ela não se ocultasse de mim, se apenas se ocultasse dos outros, eu seria o primeiro. Logo, só me poderia envaidecer; de forma alguma me poderia revoltar em orgulho. Porque a verdade era essa, atingira: todo o meu sofrimento provinha apenas do meu orgulho ferido.
Não, não me enganara outróra, ao pensar que nada me angustiaria por a minha amante se entregar a outros. Unicamente era necessario que ela me contasse os seus amores, os seus espasmos até.
O meu orgulho só não admitia segredos. E em Marta era tudo misterio. Daí a minha angustia—daí o meu ciume.
Muita vez—julgo—deligenciei fazer-lhe compreender isto mesmo, evidencear-lhe a minha forma de sentir, a ver se provocava uma confissão inteira da sua parte, cessando assim o meu martirio. Ela porêm, ou nunca me percebeu, ou era resumido o seu afecto para tamanha prova de amor.
Se em face do meu ciume todas as outras obsessões haviam sossobrado, restavam-me ainda—como já disse—as minhas repugnancias incompreensiveis. E procurando de novo aclara-las a mim proprio, assaltou-me de subito este receio: seriam elas originadas pelo outro amante?
Eu me explico:
Tive sempre grandes antipatias fisicas, meramente exteriores. Lembro-me por exemplo de que, em Paris, a um restaurante onde todas as noites jantava com Gervasio Vila-Nova, ia algumas vezes uma rapariga italiana, deveras graciosa—modelo sem duvida—que muito me enternecia, que eu cheguei quasi a desejar.
Mas em breve tudo isso passou.
É que a vira um Domingo caminhando de mãos dadas com certo individuo que eu abominava com o maior dos tedios, e que já conhecia de o encontrar todas as tardes jogando as cartas num café burguês da praça S. Michel. Era escarradamente o que as damas de quarenta ânos e as criadas de servir chamam um lindo rapaz. Muito branco, rosadinho e loiro, bigodito bem frisado, o cabelo encaracolado; uns olhos pestanudos, uma bôca pequenina—meiguinho, todo esculpido em manteiga; oleoso nos seus modos, nos seus gestos. Caixeiro de loja de modas—ah! não podia deixar de ser!...
Embirrava de tal forma com semelhante criatura açucarada, que nunca mais tinha voltado ao café provinciano da praça de S. Miguel. Com efeito era-me impossivel sofrer a sua presença. Dava-me sempre vontade de vomitar em face dêle, na mesma nausea que me provocaria uma mistura de toucinho rançoso, enxundia de galinha, mel, leite e herva-dôce...
Ao encontra-lo—o que não era raro—eu não sabia nunca evitar um gesto de impaciencia. Uma manhã por sinal nem almocei, pois abancando num restaurante que não frequentava habitualmente, o alambicado personagem tivera a desfaçatez de se vir assentar diante de mim, na mesma mesa... Ah! que desejo enorme me afogueou de o esbofetear, de lhe esmurrar o narizinho num chuveiro de murros... Mas contive-me. Paguei e fugi.
Ora encontrar essa pequena galante de mãos dadas com tamanho imbecil—fôra o mesmo do que a ver tombar morta a meus pés. Ela não deixara de ser um amor—é claro—mas eu é que nunca mais a poderia sequer aproximar. Sujara-a para sempre o homemzinho loiro, engordurara-a. E se eu a beijasse, logo me ocorreria a sua lembrança amanteigada, vir-me-hia um gosto humido a saliva, a coisas peganhentas e viscosas. Possui-la então, seria o mesmo que banhar-me num mar sujo, de espumas amarelas, onde boiassem palhas, pedaços de cortiça e cascas de melões...
Pois bem: e se as minhas repugnancias em face do corpo admiravel de Marta, tivessem a mesma origem? Se esse amante que eu ignorava, fosse alguem que me inspirasse um grande nojo?... Podia muito bem ser assim, num pressentimento, tanto mais que—já o confessei—ao possui-la, eu tinha a sensação monstruosa de possuir tambem o corpo masculino desse amante.
Mas a verdade é que, no fundo, eu estava quasi certo de que me enganava ainda; de que era bem diferente, bem mais complicada a razão das minhas repugnancias misteriosas. Ou melhor: que mesmo que eu, se o conhecesse, antipatisasse com o seu amante, não seria esse o motivo das minhas nauseas.
Com efeito a sua carne de forma alguma me repugnava numa sensação de enjoo—a sua carne só me repugnava numa sensação de monstruosidade, de desconhecido: eu tinha nojo do seu corpo como sempre tive nojo dos epilepticos, dos loucos, dos feiticeiros, dos iluminados, dos reis, dos pápas—da gente que o misterio grifou...
Numa derradeira vontade tentei ainda provocar uma explicação com Marta—descrever-lhe sinceramente todo o meu martirio, ou, pelo menos, insultá-la. Emfim, pôr um termo qualquer á minha situação infernal.
Mas não o consegui nunca. Quando ia a dizer-lhe a primeira palavra, via os seus olhos de infinito ... o seu olhar fascinava-me. E como um medium no estado hipnotico eram outras as frases que eu proferia—talvez só as que ela me obrigava a pronunciar.
Então resolvi, pelo menos, saber de qualquer forma quem era o habitante do prediozinho verde. Repugnavam-me muito as deligencias suspeitas, mas não descera eu já a seguir Marta?
Assim, enchi-me de arrojo e determinei ir perguntar pelas cercanias informações sobre o que eu desejava averiguar, recorrendo mesmo em ultimo caso ao porteiro—se é que o predio tinha guarda-portão.
Escolhi a manhã dum domingo para as minhas investigações, dia em que eu e Marta só nos encontravamos em casa do poeta, que todas as tardes de domingo nos levava a passear no seu automovel, o qual então—estavamos em 1899—fazia grande sucesso em Lisboa.
Porêm, ao dobrar a rua transversal que levava á avenida onde era o predio misterioso, tive um gesto de despeito: Ricardo caminhava na minha frente. Não me pude esconder. Ele vira-me já, não sei como:
—Hein? Tu por aqui a estas horas?...—gritou admirado.
Reuni todas as minhas forças para balbuciar:
—É verdade... Ia a tua casa... Mas lembrei-me de ver estas ruas novas... Ando tão aborrecido...
—Do calor?
—Não... E tu proprio ... dize-me... Nunca costumas sair de manhã ... sobretudo aos domingos...
—Ah! uma madureza como outra qualquer. Concluí agora mesmo uns versos. E na ansia de os ler a alguem, ia a casa do Sergio Warginsky para lhos mostrar... É aqui perto... Anda comigo... Fazemos horas para o almoço...
A estas palavras todo eu tremi num arrepio. Silencioso, pus-me a acompanhá-lo, maquinalmente.
O artista quebrou o silencio:
—Então, e a tua peça?
—Terminei-a a semana passada.
—O quê!? Mas ainda não me tinhas dito coisa alguma!...
Desculpei-me murmurando:
—É que me esqueci, talvez...
—Homem! tens cada resposta que não lembra ao diabo!...—recordo-me perfeitamente de que êle exclamara rindo. E prosseguiu:
—Mas conta-me depressa... Estás satisfeito com a tua obra?... Como resolveste afinal aquela dificuldade do segundo acto? O escultor sempre morre?...
E eu:
—Resolveu-se tudo muito bem. O escultor...
Chegaramos defronte do prediozinho verde. Interrompi-me de subito...
Não! não era ilusão: em face de nós, no outro passeio, Marta sempre nos seus passos leves, indecisos mas rapidos, silenciosos—sem nos ver, sem reparar em redór de si, dirigia-se ao predio misterioso, batia á porta desta vez, entrava...
E, ao mesmo tempo, apertando-me o braço bruscamente, dizia-me o poeta:
—No fim de contas é um disparate irmos incomodar o russo. O que eu estou é ansioso por conhecer o teu drama. Vamos buscá-lo os dois a tua casa. Quero ouvi-lo esta tarde. Tanto mais que o automovel precisa concerto. Aquilo, dia sim, dia não, é uma peça que se parte...
Vivi todo o resto desse dia como que envolto num denso véu de bruma. Emtanto pude ler o meu drama a Ricardo e a Marta. Sim, quando voltámos ao palacete, após termos passado por minha casa, já Marta regressara, e notei mesmo que já tinha mudado de vestido—embora contra o seu costume, não vestisse um traje de interior, mas sim uma toilette de passeio.
Lembro-me tambem de que durante toda a leitura da minha peça, só tive esta sensação lucida: que era bizarro como eu, no meu estado de espirito podia entretanto trabalhar.
De resto, conforme observei, as minhas dôres, as minhas angustias, as minhas obsessões eram intermitentes, tinham fluxos e refluxos: como nos dias de revolta social, entre os tiros de canhão e o tiroteio nas praças, a vida diaria prossegue—tambem, no meio da minha tortura, seguia a minha vida intelectual. Por isso mesmo lograra esconder de todos, até hoje, a atribulação do meu espirito.
Mas, juntamente com a ideia lucida que descrevi, sugerira-se-me durante a leitura outra ideia muito estrambotica. Fôra isto: pareceu-me vagamente que eu era o meu drama—a coisa artificial—e o meu drama a realidade.
Um parentese:
Quem me tiver seguido deve, pelo menos, reconhecer a minha imparcialidade, a minha inteira franqueza. Com efeito, nesta simples exposição da minha inocencia, não me poupo nunca a descrever as minhas ideias fixas, os meus aparentes desvairos que, interpretados com estreiteza, poderiam levar a concluir, não pela minha culpabilidade, mas pela minha embustice ou—criterio mais estreito—pela minha loucura. Sim, pela minha loucura; não receio escreve-lo. Que isto fique bem frisado, porquanto eu necessito de todo o credito para o final da minha exposição, tão misterioso e alucinador êle é.
Ricardo e Marta felicitaram-me muito pela minha obra—creio. Mas não o posso afirmar, em virtude do denso véu de bruma cinzenta que me envolvera, e que só me deixou nitidas as lembranças que já referi.
Jantei com os meus amigos. Despedi-me cedo pretextando um ligeiro incomodo.
Corri para minha casa. Deitei-me logo... Mas antes de adormecer, revendo a scena culminante do dia, observei esta estranha coisa:
Ao pararmos em face do predio verde, de subito eu vira Marta avançar distraída até bater á porta... Ora, segundo a direcção em que ela me aparecera, era fatal que tinha vindo sempre atrás de nós. Logo, ela devia-me ter visto; logo eu devia-a ter visto quando—lembrava-me muito bem—olhara para trás, por sinal em frente dum grande predio em construção...
E ao mesmo tempo—ignoro porque motivo—lembrei-me de que o meu amigo, quando decidira de repente não ir a casa de Warginsky, terminara a sua frase com estas palavras:
—... o automovel precisa concerto. Aquilo, dia sim, dia não, é uma peça que se parte...
E eram as unicas palavras de que me lembrava frisantemente—mesmo as unicas que eu estava certo de lhe ter ouvido. Entretanto as unicas que eu não podia admitir que êle tivesse pronunciado...
Demorei-me ainda largas horas a rever o meu estranho dia. Mas por fim adormeci, levando num sono até alta manhã...
Dois dias depois, sem prevenir ninguem, sem escrever uma palavra a Ricardo, eu tive finalmente a coragem de partir...
Ah! a sensação de alivio que experimentei ao descer emfim na gare do Quai d'Orsay: respirava, desennastrara-se-me a alma!...
Com efeito eu sofri sempre as dôres morais na minha alma, fisicamente. E a impressão horrivel que ha muito me debelava, era esta: que a minha alma se havia dobrado, contorcido, confundido...
Mas agora, ao ver-me longe de tudo quanto me misturara, essa dor estranha diluira-se: o meu espirito, sentia-o destrinçado como outróra.
Durante a viagem, pelo contrario, numa ansia de chegar a Paris, as minhas torturas tinham-se enrubescido. Eu pensava que nunca chegaria a Paris, que era impossivel haver triunfado, que sonhava com certeza—ou então que me prenderiam no caminho por engano; que me obrigariam a tornar a Lisboa, que vinham no meu encalço Marta, Ricardo, todos os meus amigos, todos os meus conhecidos...
E um calafrio de horror me zig-zagueara ao ver entrar em Biarritz um homem alto e loiro, no qual, de subito, eu julguei reconhecer Sergio Warginsky. Mas olhando-o melhor—olhando-o pela primeira vez realmente—sorri para mim proprio: o desconhecido apenas tinha do conde russo o ser alto e loiro...
Emtanto agora já não podia duvidar; vencera. Atravessava a Praça da Concordia, monumental e aristocratica, tilintante de luzes...
De novo, ungindo-me de Europa, alastrando-me da sua vibração, se encapelava dentro de mim Paris—o meu Paris, o Paris dos meus vinte e tres ânos...
E foram então os ultimos seis meses da minha vida...
Vivi-os de existencia diaria, em banalidade, frequentando os cafés, os teatros, os grandes restaurantes...
Nas primeiras semanas—e mesmo depois, numa ou noutra hora—ainda pensei no meu caso, mas nunca embrenhadamente.
Afinal—pressentia—tudo aquilo, no fundo, era talvez bem mais simples do que se me afigurava. O misterio de Marta? Ora ... ora... Fazem-se tantas loucuras ... ha tantas aventureiras...
E parecia-me até que, se eu quisesse, num grande esforço, numa grande concentração, poderia explicar a mim proprio tudo quanto me obcecara. Mas conclui que valia bem melhor não explicar coisa alguma, esquecer tudo. Esquecer é não ter sido. Se eu lograsse abolir o triste episodio da minha recordação, era exactamente como se nunca o existira. E foi pelo que me esforcei.
Entretanto nunca podia deixar de pensar numa circunstancia: a complacencia inaudita de Ricardo—a sua infamia. Então as coisas haviam chegado a ponto da sua mulher ir atrás dêle, quasi com êle, a casa dum amante? Pois se nós a não viramos, ela, por mais distraída que caminhasse, tinha-nos visto com certeza. Mas nem por isso retrocedera!
E um turbilhão de pequeninas coisas me ocorria juntamente, mil factos sem importancia ao primeiro exame, mil pormenores insignificantes em que eu só agora atentava.
Ha muito que o meu amigo descobrira tudo decerto; por força que ha muito soubera das nossas relações... Nem podia deixar de ser assim. Só se fosse cego... Era pasmoso!...
E êle que me queria sempre ao lado da sua companheira? Mudara de lugar á mesa, pretextando uma corrente de ar que nunca existira, só para que eu me sentasse junto de Marta e as nossas pernas se podessem entrelaçar...
Se saíamos os três, eu ia ao lado dela... E nos nossos passeios de automovel, Ricardo tomando sempre o volante, sentavamo-nos os dois sozinhos no interior da carruagem ... bem chegados um ao outro ... de mãos dadas. Sim; pois logo os nossos dedos se nos ennastravam—maquinalmente, instintivamente... Ah! e era impossivel que êle o não observasse quando, muita vez, se voltava para nos dizer qualquer coisa...
Mas—facto estranho—a verdade é que, nesses momentos, eu nunca receara que êle visse as nossas mãos; nunca me perturbara, nem sequer esboçara nunca um gesto de as desenlear... Era como se as nossas mãos fossem soltas, e nós sentados muito longe um do outro...
E dar-se-hia o mesmo com Sergio? Oh, sem duvida... Ricardo estimava-o tanto...
O mais infame, o mais inacreditavel porêm, era que sabendo êle, a sua amizade, as suas atenções, por mim e pelo russo aumentassem cada dia...
Que êle soubesse e emtanto se calasse, por muito amar a sua companheira e, acima de tudo, não a querer perder—ainda se admitia. Mas então, ao menos, que mostrasse uma atitude nobre—que nos não adulasse, que não nos acariciasse...
Ah! como tudo isto me revoltava! Não propriamente pela sua atitude; antes pela sua falta de orgulho. Eu não soube nunca desculpar uma falta de orgulho. E sentia que toda a minha amizade, a minha sincera amizade por Ricardo de Loureiro, sossobrara hoje em face da sua baixeza. A sua baixeza! Êle que tanto me gritara ser o orgulho a unica qualidade cuja ausencia não perdoava em um caracter...
Mas devo esclarecer: ao pensar no extraordinario procedimento do meu amigo, nunca me confrangiam as reminiscencias das minhas antigas obsessões. Esquecera-as por completo. Mesmo que as recordasse, importancia alguma já daria ao misterio—seguramente misterio de pacotilha—ao meu ciume, a tudo mais...
Apenas ás vezes, quando muito, me assaltava uma saudade vaga, esvaída em melancolia, por tudo o que outróra me torturara.
Somos sempre assim: o tempo vai passando, e tudo se nos volve saudoso—sofrimentos, dores até, desilusões...
Com efeito, ainda hoje, ás tardes maceradas, eu não sei evitar numa reminiscencia longinqua, a saudade violeta de certa criaturinha indecisa que nunca tive, e mal roçou pela minha vida. Por isto só: porque ela me beijou os dedos; e um dia, a sorrir, defronte dos nossos amigos, me colocou em segredo o braço nu, mordorado, sobre a mão...
E depois logo fugiu da minha vida, esguiamente, embora eu, por piedade—doido que fui!—ainda a quisesse dourar de mim, num enternecimento asul pelas suas caricias...
E sofri ... ela era tão pouca coisa, mas a verdade é que sofri ... sofri de ternura. Nunca lhe tive amor. Apenas ternura ... uma ternura muito suave ... penetrante ... aquatica...
Os meus afectos, mesmo, foram sempre ternuras...
Porêm quando me acordava essa saudade branda do meu antigo sofrimento—isto é: do corpo nu de Marta—no mesmo instante ela se me diluía, ao lembrar-me da atitude infame de Ricardo.
E a minha revolta era cada vez maior.
Por felicidade, até aí, ainda não recebera uma carta do artista. Que nem a teria aberto, se a recebera...
Pessoa alguma conhecia o meu endereço. Saber-se-hia talvez que eu estava em Paris, devido a encontros fortuitos com vagos conhecidos.
Não comprava jornais portugueses. Se vinha no Matin qualquer telegrama de Lisboa, não o lia; e assim, em verdade quasi triunfara esquecer-me de quem era... Entre a multidão cosmopolita, criava-me alguem sem patria, sem amarras, sem raizes em todo o mundo.
—Ah! que venturoso eu fora se não tivesse nascido em parte nenhuma e entretanto existisse...—lembrei-me muita vez estranhamente, nos meus passeios solitarios pelos boulevards, pelas avenidas, pelas grandes praças...
Uma tarde, como de costume, folheava as ultimas novidades literarias nas galerias do Odéon, quando deparei com um volume de capa amarela, recem-aparecido, segundo a classica tira vermelha... E diante dos meus olhos, em letras de brasa, o nome de Ricardo de Loureiro fulgurou...
Era com efeito a tradução francesa do Diadema que um editor arrojado acabara de lançar, revelando ao mundo uma literatura nova...
Nessa tarde, pela primeira vez desde que cheguei a Paris, tive algumas horas realmente alucinadas.
Durante elas embrenhei-me a pensar em Ricardo, no seu procedimento inqualificavel, na sua inadmissivel falta de orgulho.
Meditei em todos os pequenos episodios que atrás referi, descortinei outros ainda mais significativos, perdendo-me a querer descobrir todos os amantes possiveis de Marta... E numa alucinação, não podia conceber que nenhum dos homens que eu vira um dia junto dela, não tivesse passado pelo seu corpo—e sabendo-o o marido: Luís de Monforte, Narciso do Amaral, Raul Vilar ... todos, emfim, todos...
Entretanto, no meio disto, ainda havia qualquer coisa mais bizarra: era que nesta revolta, neste asco, neste odio—sim; neste odio!—por Ricardo, misturava-se como que um vago despeito, um ciume, um verdadeiro ciume dêle proprio. Invejava-o! Invejava-o por ela me haver pertencido ... a mim, ao conde russo, a todos mais!...
E esta sensação descera-me tão forte, essa tarde, que num relampago me voou pelo cerebro a ideia rubra de o assassinar—para satisfazer a minha inveja, o meu ciume: para me vingar dêle!...
Mas voltei por fim á minha calma, e, perante o meu antigo amigo, só me restou o meu nojo, o meu tedio, e um desejo ardente de lhe escarrar na cara toda a sua indignidade, toda a sua baixeza, clamando-lhe:
—Olha que fomos amantes dela ... eu e todos nós, ouves? E todos sabemos que tu já o sabes!...
Á noite, antes de adormecer, veiu-me ainda esta ideia perturbadora, num atordoamento luminoso:
—A sua baixeza ... a sua falta de orgulho... Ah! mas se eu me engano ... se eu me engano ... se é Marta quem lhe conta tudo ... se êle conhece tudo só porque ela lho diz ... se ela tem segredos para todos, menos para êle ... como eu queria... como eu a queria para mim... Nesse caso ... nesse caso...
E ao mesmo tempo—arripiadamente, desarazoadamente—acudiu-me á lembrança a estranha confissão que Ricardo me fizera uma noite, ha tantos ânos ... no fim dum jantar ... para o Bosque de Bolonha ... no Pavilhão ... no Pavilhão d'Armenonville...
Outubro de novecentos principiara.
Uma tarde, no boulevard des Capucines, alguem de subito me gritou, batendo-me no ombro:
—Ora até que emfim! Andava exactamente á sua procura...
Era Santa-Cruz de Vilalva, o grande empresario.
Tomou-me por um braço, fez-me á viva força sentar junto dêle na terrasse do La Paix, e pôs-se a barafustar-me o espanto que a minha falta de noticias lhe causara, tanto mais que, poucos dias antes de desaparecer, eu lhe falara da minha nova peça. Disse-me que em Lisboa muita gente perguntava por mim, que apenas vagamente se sabia que eu estava em Paris por alguns portugueses que tinham vindo á Exposição. Em suma: «Que demonio era isso, homem? neurastenico pelo ultimo correio?...»
Como sucedia sempre quando alguem me fazia perguntas sobre a minha forma de viver, fiquei todo perturbado—corei e titubiei quaisquer razões.
O grande empresario atalhou, exclamando-me:
—Bom. Mas antes de mais nada, vamos ao importante: Dê-me a sua peça.
Que não a concluíra ainda, que não me satisfazia...
E êle:
—Espero-o esta noite no meu hotel ... ali, no Scribe... Traga-me a obra. Quero ouvi-la hoje... Que titulo?
—A Chama.
—Optimo. Até logo... Primeira em abril. Ultima recita de assinatura. Preciso fechar a minha estação com chave de ouro...
Fôra-me muito desagradavel o encontro que viera pôr termo ao meu isolamento de ha seis mêses. Porem ao mesmo tempo, no fundo, a verdade é que eu não o lastimava. Sempre a literatura...
Desde que chegara a Paris, não escrevera uma linha—nem sequer já me lembrava de que era um escritor... E agora, de subito, vinham-me recorda-lo—evidenceando o apreço em que se tinha o meu nome; e precisamente alguem que eu sabia tão pouco lisonjeiro, tão brusco, tão homem-de-negocios...
Á noite, como se combinara, li o meu drama. Santa-Cruz de Vilalva exultou: «Trinta seguras!» punha as mãos no fôgo; «a minha melhor obra»—garantiu.
Entreguei-lhe o manuscrito, mas com estas condições:
Que não iria assistir aos ensaios nem me ocuparia da distribuição, de pormenores alguns da mise-en-scène. Da mais ligeira coisa, emfim. Deixava tudo ao seu cuidado. Ah! e principalmente que não me escrevesse nem uma palavra sobre o assunto...
O grande empresario anuiu a tudo. Falámos ainda alguns instantes.
E ao despedirmo-nos:
—É verdade—disse—sabe quem me perguntou varias vezes por si? se eu sabia de você ... o seu endereço?... O Ricardo de Loureiro... Que o meu amigo nunca mais lhe tinha escrito... Tambem represento um acto dêle ... em verso... Boa noite...
Esquecera já o meu encontro com o empresario, a minha peça, tudo—emfim tornara a mergulhar no meu antigo alheamento, quando de subito me ocorreu uma ideia nova, inteiramente diversa da primeira, para o ultimo acto da Chama: uma ideia belissima, grande, que me entusiasmou.
Não descansei emquanto não escrevi a novo acto. E um dia não pude resistir; parti com êle para Lisboa.
Quando cheguei, tinham começado os ensaios pouco antes.
Todos os meus interpretes me abraçaram efusivamente. E Santa-Cruz de Vilalva:
—Ora ... se eu não sabia já que êle havia de aparecer!... Quem não os conhecesse... São todos a mesma...
Os ensaios marchavam óptimamente. Roberto Dávila, no papel do escultor, ia ter decerto uma das suas mais belas criações.
Passaram-se dois dias.
Coisa espantosa: ainda não falara do novo acto da minha peça, razão unica porque decidira regressar a Lisboa contra todos os meus projectos, contra toda a minha vontade.
Emtanto ao terceiro dia, enchendo-me de coragem (foi certo: precisei encher-me de coragem) disse ao empresario o motivo que me trouxera de Paris.
Santa-Cruz de Vilalva pediu-me o manuscrito, sem consentir porêm que eu lho lesse.
E na manhã seguinte:
—Homem!—gritou-me—Você está maluco! O antigo acto é uma obra-prima. Este, perdôe-me... Posso dizer-lhe a minha opinião franca?...
—Sem duvida...—volvi, já perturbado.
—Um disparate!...
Uma raiva excessiva me afogueou perante a boçalidade do empresario, a sua pouca clarividencia. Pois se algumas vezes eu adivinhara nas minhas obras lampejos de genio, era nessas páginas. Mas tive a força de me conter.
Não sei bem o que depois se seguiu. O certo é que tudo acabou por o drama ser retirado de ensaios, visto eu não consentir que o representassem com o primitivo ultimo acto, e a empresa se negar terminantemente a monta-lo, conforme o parecer do director e dos principais interpretes.
Quebrei as relações com um e com outros, e exigi que me entregassem todas as copias do manuscrito e os papeis. A minha exigencia foi estranhada—lembro-me bem—sobretudo pelo modo violento como a fiz.
Ao chegar a minha casa—juntamente com o manuscrito original, lancei tudo ao fogo.
Tal foi o destino da minha ultima obra...
Decorreram algumas semanas.
As dôres físicas do meu espirito tinham regressado; mas agora dôres injustificadas—dôres pelo menos cuja razão eu desconhecia.
Desde que chegara a Lisboa—era claro—não procurara ainda nenhum dos meus companheiros. Ás vezes parecia-me até que gente que em tempos eu conhecera, me evitava. Eram literatos, dramaturgos, jornalistas, que decerto pretendiam lisongear assim o grande empresario de quem todos mais ou menos dependiam, hoje ou amanhã.
Só uma coisa me admirava: Ricardo, pela sua parte, não me tinha procurado nunca. O que, de resto, ao mesmo tempo se me afigurava bem explicavel; o mais natural até: êle percebera sem duvida os motivos do meu afastamento, e por isso se retraíra, sensatamente.
Estimava bastante que tivesse procedido assim. Caso contrario ter-se-hia dado entre nós uma scena muito desagradavel. Em face dele, eu não saberia reprimir os meus insultos.
O caso da Chama aborrecera-me deveras. Uma grande nausea me subira por tudo quanto tocava á arte no seu aspecto mercantil. Pois só o comercio condenara a versão nova da minha peça: com efeito, em vez de ser um acto meramente teatral, de acção intensa mas lisa, como o primitivo—o acto novo era profundo e inquietador; rasgava véus sobre o álem.
Num ultimo tédio comecei vagabundeando dias inteiros pelas ruas da cidade, á toa, por bairros afastados de preferencia...
Lembro-me de que seguia por avenidas, dobrava por travessas, anseoso, quasi a correr: como alguem, emfim, que debalde procurasse uma pessoa que muito desejasse encontrar—não sei porquê, fiz esta comparação ás vezes.
Em geral á noite, febril, cheio de cansaço, aturdido, recolhia cedo a casa, dormindo dum sono estagnado até de manhã ... para recomeçar o meu devaneio...
Facto curioso: nunca me lembrei durante este periodo de regressar a Paris, e volver-me ao meu tranquilo isolamento d'alma. Não porque me desagradasse hoje essa maneira de viver. Apenas tal recurso nunca me passou pela ideia...
Uma manhã vi de subito alguém atravessar a rua, dirigindo-se ao meu encontro...
Quis fugir. Mas os pés enclavinharam-se-me no sólo. Ricardo, êle-proprio, estava em minha frente...
Não me podem lembrar—de banais que foram, por certo—as primeiras palavras que trocámos. Seguramente o poeta me disse o espanto que a minha desaparição lhe causara, que lhe causava o meu procedimento actual.
Fosse como fosse, falara-me num tom de grande tristeza, e em toda a sua figura havia a expressão dum sincero desgosto. É possivel que ao expôr-me tudo isso, os seus olhos estivessem humidos de lagrimas.
Pelo meu lado, desde que o tinha em face de mim, ainda não pudera reflectir; aturdia-me um denso véu de bruma—tal como na ultima tarde que passara com o meu amigo.
Escutei em silencio os seus queixumes, até que, de repente—desenvencilhado, desperto—me não soube conter, como receara, e lhe comecei gritando todo o meu odio: a minha revolta, o meu nojo...
A sua expressão dolorosa não se transformou com as minhas palavras—o artista pareceu mesmo não as estranhar, como se eu lhe desse a resposta mais natural ao que me contara. Apenas só agora, indubitavelmente, as lagrimas lhe desciam pelo rosto; mas não era diversa da primeira a dôr que as provocava.
E eu acabei:
—... Tinha-me atascado na lama... Por isso fugi ... por essa ignominia... Ouves? ouves!?...
Todo êle tremeu então. Velou-lhe o rosto uma sombra...
Deteve-se um instante e, por fim, numa voz muito estranha, sumida, húmida—tão singular que nem parecia vir da sua garganta, começou:
—Ah! como te enganas... Meu pobre amigo! Meu pobre amigo!... Doido que eu era no meu triunfo... Nunca me lembrei de que os mais o não entenderiam... Escuta-me! Escuta-me!... Oh! tu has de me escutar!...
Sem vontade propria, esvaído, em silencio, eu acompanhava-o como que arrastado por fios d'ouro e lume, emquanto êle se me justificava:
—Sim! Marta foi tua amante, e não foi só tua amante... Mas eu não soube nunca quem eram os seus amantes. Ela é que mo dizia sempre... Eu é que lhos mostrava sempre!...
«Sim! Sim! Triunfei encontrando-a!... Pois não te lembras já, Lucio, do martirio da minha vida? Esqueceste-o?... Eu não podia ser amigo de ninguem ... não podia experimentar afectos... Tudo em mim ecoava em ternura ... eu só adivinhava ternuras... E, em face de quem as pressentia, só me vinham desejos de caricias, desejos de posse—para satisfazer os meus enternecimentos, sintetizar as minhas amizades...»
Um relampago de luz ruiva me cegou a alma.
O artista prosseguiu:
—Ai, como eu sofri ... como eu sofri!... Dedicavas-me um grande afecto; eu queria vibrar esse teu afecto—isto é: retribuir-to; e era-me impossível!... Só se te beijasse, se te enlaçasse, se te possuisse... Ah! mas como possuir uma criatura do nosso sexo?...
«Devastação! Devastação! Eu via a tua amizade, nitidamente a via, e não a lograva sentir!... Era todo de oiro falso...
«Uma noite porêm finalmente, uma noite fantastica de branca, triunfei! Achei-A ... sim, criei-A! criei-A!... Ela é só minha—entendes?—é só minha!... Compreendemo-nos tanto, que Marta é como se fôra a minha propria alma. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos. Somos nós-dois... Ah! e desde essa noite eu soube, em gloria soube, vibrar dentro de mim o teu afecto—retribuir-to: mandei-A ser tua! Mas, estreitando-te ela, era eu proprio quem te estreitava... Satisfiz a minha ternura: Venci! E ao possui-la, eu sentia, tinha nela, a amizade que te devera dedicar—como os outros sentem na alma as suas afeições. Na hora em que a achei—tu ouves?—foi como se a minha alma, sendo sexualisada, se tivesse materialisado. E só com o espirito te possuí, materialmente! Eis o meu triunfo... Triunfo inegualavel! Grandioso segredo!...
«Oh! mas como eu hoje sofro ... como sofro outra vez despedaçadoramente...
«Julgaste-me tão mal... Enojaste-te ... gritaste á infamia, á baixeza... e o meu orgulho ascendia cada aurora mais alto!... Fugiste... E, em verdade fugiste de ciume... Tu não eras o meu unico amigo—eras o primeiro, o maior—mas tambem por um outro eu oscilava ternuras... Assim a mandei beijar esse outro... Warginsky, tens razão, Warginsky... Julgava-o tão meu amigo ... parecia-me tão expontaneo ... tão lial ... tão digno dum afecto... E enganou-me ... enganou-me...».
Atónito, eu ouvia o poeta como que hipnotisado—mudo de espanto, sem poder articular uma palavra...
A sua dôr era bem real, bem sincero o seu arrependimento; e observei que o tom da sua voz se modificara, aclarando-se ao referir-se ao conde russo—para logo de novo se velar, dizendo:
—Que valem os outros, emtanto, em face da tua amizade? Coisa alguma! Coisa alguma!... Não me acreditas?... Ah! mas é preciso que me acredites ... que me compreendas... Vem!... Ela é só minha! Pelo teu afecto eu trocaria tudo—mesmo o meu segredo. Vem!...
Depois, foi uma vertigem...
Agarrou-me violentamente por um braço ... obrigou-me a correr com êle...
Chegámos por fim diante da sua casa. Entrámos ... galgámos a escada dum salto...
Ao atravessarmos o vestibulo do primeiro andar, houve um pormenor insignificante, o qual, não sei porquê, nunca olvidei: em cima dum movel onde os criados, habitualmente, punham a correspondencia, estava uma carta... Era um grande sobrescrito timbrado com um brazão a ouro...
É estranho que num minuto culminante como este, eu podesse reparar em tais ninharias. Mas o certo foi que o brazão dourado me bailou alucinador em frente dos olhos. Entretanto não pude ver o seu desenho—vi só que era um brazão dourado e, ao mesmo tempo—coisa mais estranha—pareceu-me que eu proprio já recebera um sobrescrito igual àquele.
O meu amigo—ainda que preso duma grande excitação—abriu a carta, leu-a rapidamente, e logo a amarfanhou arremessando-a para o sobrado...
Depois, torceu-me o braço com maior violencia.
Em redór de mim tudo oscilou... Sentia-me disperso d'alma e corpo entre o rodopio que me silvava ... tinha receio de haver caído nas mãos dum louco...
E numa voz ainda mais velada, mais singular, mais falsa—isto é: melhor do que nunca parecendo vir doutra garganta—Ricardo gritava-me num delirio:
—Vamos ver! Vamos ver!... Chegou a hora de dissipar os fantasmas... Ela é só tua! é só tua... has de me acreditar!... Repito-te: Foi como se a minha alma, sendo sexualisada, se materialisasse para te possuir... Ela é só minha! É só minha! Só para ti a procurei... Mas não consinto que nos separe... Verás... Verás!...
E no meio destas frases incoerentes, impossiveis, arrastava-me correndo numa furia para os aposentos da sua esposa, que ficavam no segundo andar.
(Pormenor curioso: nessse momento eu não tinha a sensação de que eram impossiveis as palavras que êle me dizia; apenas as julgava cheias da maior angustia...)
Tinhamos chegado. Ricardo empurrou a porta brutalmente...
Em pé, ao fundo da casa, diante duma janela, Marta folheava um livro...
A desventurada mal teve tempo para se voltar... Ricardo puxou dum revólver que trazia escondido no bolso do casaco e, antes que eu podesse esboçar um gesto, fazer um movimento, desfechou-lho á queima-roupa...
Marta tombou inanimada no solo... Eu não arredara pé do limiar...
E então foi o Misterio ... o fantastico Misterio da minha vida...
Ó assombro! Ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela, não era Marta—não!—era o meu amigo, era Ricardo... E aos meus pés—sim, aos meus pés!—caira o seu revólver ainda fumegante!...
Marta, essa desaparecera, evolara-se em silencio, como se extingue uma chama...
Aterrado, soltei um grande grito—um grito estridente, despedaçador—e, possesso de medo, de olhos fóra das orbitas e cabelos erguidos, precipitei-me numa carreira louca ... por entre corredores e salões ... por escadarias...
Mas os criados acudiram...
... Quando pude raciocinar, juntar duas ideias, em suma: quando despertei deste pesadelo alucinante, infernal, que fora só a realidade, a realidade inverosimil—achei-me preso num calabouço do Governo Civil, guardado á vista por uma sentinela...
Pouco mais me resta a dizer. Pudera mesmo deter-se aqui a minha confissão. Entretanto ainda algumas palavras juntarei.
Convem passar rapidamente sobre o processo. Ele nada apresentou que valha a pena referir. Pela minha parte, nem por sombras tentei desculpar-me do crime de que era acusado. Com o inverosimil, ninguem se justifica. Por isso me calei.
O apelo do meu advogado, brilhantissimo. Deve ter dito que, no fundo, a verdadeira culpada do meu crime fora Marta, a qual desaparecera e que a policia, segundo creio, procurou em vão.
No meu crime subentenderam-se causas passionais, seguramente. A minha atitude era romanesca de esfingica. Assim pairou sobre tudo um vago ar de misterio. Daí, a benevolencia do júri.
Emtanto devo acentuar que sobre o meu julgamento conservo reminiscencias muito indecisas. A minha vida ruira toda no instante em que o revólver de Ricardo tombara aos meus pés. Em face a tão fantastico segredo, eu abismara-me. Que me fazia pois o que volteava á superficie?... Hoje, a prisão surgia-me como um descanso, um termo...
Por isso, as longas horas fastidiosas passadas no tribunal, eu só as vi em bruma—como sobrepostas, a desenrolarem-se num scenario que não fosse precisamente aquêle em que tais horas se deveriam consumar...
Os meus «amigos», como sempre acontece, abstiveram-se: nem Luís de Monforte—que tanta vez me protestara a sua amizade—nem Narciso do Amaral, em cujo afecto eu tambem crêra. Nenhum dêles, numa palavra, me veiu visitar durante o decorrer do meu processo, animar-me. Que a mim, de resto, coisa alguma me animaria.
Porêm, no meu advogado de defeza fui achar um verdadeiro amigo. Esqueceu-me o seu nome; apenas me recordo de que era ainda novo e de que a sua fisionomia apresentava uma semelhança notavel com a de Luís de Monforte.
Mais tarde, nas audiencias, havia de observar igualmente que o juiz que me interrogava se parecia um pouco com o medico que me tinha tratado, havia oito ânos, duma febre cerebral que me levara ás portas da morte.
Curioso que o nosso espirito, sabendo abstrair de tudo numa ocasião decisiva, não deixe emtanto de frizar pequenos detalhes como estes...
Passaram velozes os meus dez ânos de carcere, já o disse.
De resto, a vida na prisão onde cumpri a minha sentença não era das mais duras. Os meses corriam serenamente iguais.
Tinhamos uma larga cêrca onde, a certas horas, podiamos passear, sempre sob a vigilancia dos guardas, que nos vigiavam misturados comnosco e que ás vezes até nos dirigiam a palavra.
A cêrca terminava num grande muro, um grande paredão sobre uma rua larga—melhor: sobre uma especie de largo onde se cruzavam varias ruas. Em frente—pormenor que se me gravou na memoria—havia um quartel amarelo (ou talvez outra prisão).
O prazer maior de certos detidos, era de se debruçarem do alto do grande muro, e olharem para a rua; isto é: para a vida. Mas os carcereiros, mal os descobriam, logo brutalmente os mandavam retirar.
Eu poucas vezes me acercava do muro; apenas quando algum dos outros prisioneiros me chamava com insistencia, por grandes gestos misteriosos, pois nada me podia interessar do que havia para lá dêle.
Mesmo, nunca soubera evitar um arrepio árido de pavor ao debruçar-me a esse paredão e ao vê-lo esgueirar-se, duma grande altura—ennegrecido, lezardento, escalavrado—sobre raros indicios duma velha pintura amarela.
Nunca tive que me queixar dos guardas, como alguns dos meus companheiros que, em voz baixa, me contavam os maus tratos de que eram vítimas.
E o certo é que, ás vezes, se ouviam de subito, ao longe, uns gritos estranhos—ora roucos, ora estridentes. E um dia um prisioneiro mulato—decerto um mistificador—disse-me que o tinham vergastado sem dó nem piedade com umas vergastas horriveis—frias como agua gelada, acrescentara na sua lingua de trapos...
Aliás, eu com raros dos outros prisioneiros me misturava. Eram—via-se bem—criaturas pouco recomendaveis, sem ilustração nem cultura, vindas por certo dos bas-fonds do vicio e do crime.
Apenas me aprazia durante as horas de passeio na grande cêrca, falando com um rapaz louro, muito distinto, alto e elançado. Confessou-me que expiava igualmente um crime de assassinio. Matara a sua amante: uma cantora francesa, celebre, que trouxera para Lisboa.
Para êle como para mim, tambem a vida parara—êle vivera tambem o momento culminante a que aludi na minha advertencia. Falavamos por sinal muita vez desses instantes grandiosos, e êle então referia-se á possibilidade de fixar, de guardar, as horas mais belas da nossa vida—fulvas de amor ou de angústia—e assim poder vê-las, ressentí-las. Contara-me que fôra essa a sua maior preocupação na vida—a arte da sua vida...
Escutando-o, o novelista acordava dentro de mim. Que belas paginas se escreveriam sobre tão perturbador assunto!
Emfim, mas não quero insistir mais sobre a minha vida no carcere, que nada tem de interessante para os outros, nem mesmo para mim.
Os ânos voaram. Devido á minha serenidade, á minha resignação, todos me tratavam com a maior simpatia e me olhavam carinhosamente. Os proprios directores, que muitas vezes nos chamavam aos seus gabinetes ou eles proprios nos visitavam, a conversar comnosco, a fazerem-nos perguntas—tinham por mim as maiores atenções.
... Até que um dia chegou o termo da minha pêna e as portas do carcere se me abriram...
Morto, sem olhar um instante em redór de mim, logo me afastei para esta vivenda rural, isolada e perdida, donde nunca mais arredarei pé.
Acho-me tranquilo—sem desejos, sem esperanças. Não me preocupa o futuro. O meu passado, ao revê-lo, surge-me como o passado dum outro. Permaneci, mas já não me sou. E até á morte real, só me resta contemplar as horas a esgueirar-se em minha face... A morte-real—apenas um sôno mais denso...
Antes, não quis porêm deixar de escrever sinceramente, com a maior simplicidade, a minha estranha aventura. Ela prova como factos que se nos afiguram bem claros, são muitas vezes os mais emmaranhados; ela prova como um inocente, muita vez, se não pode justificar, porque a sua justificação é inverosimil—embora verdadeira.
Assim eu para que lograsse ser acreditado, tive primeiro que expiar, em silencio, durante dez ânos, um crime que não cometi...
A vida...
1-27 setembro 1913—Lisboa.
Mario de SÁ-CARNEIRO.