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COLLECÇÃO DE AUTORES PORTUGUEZES.

Tomo I.

cover
frontispiece

CANTOS.

COLLECÇÃO DE POESIAS

DE

A. GONÇALVES DIAS.


TERCEIRA EDICÇÃO.
COM O RETRATO DO AUTOR.

LEIPZIG:
F. A. BROCKHAUS.


1860.


AO SEO AMIGO
o
DR. G. S. DE CAPANEMA

OFFERECE ESTA EDICÇÃO
DOS SEOS CANTOS

O AUTOR.


[Pg vii]

A collecção de poesias, que agora reimprimo, vae illustrada com algumas linhas de A. Herculano, a que devo a maior satisfação que tenho até hoje experimentado na minha vida litteraria.

Merecer a critica de A. Herculano, já eu consideraria como bastante honroso para mim; uma simples menção do meo primeiro volume, rubricada com o seo nome, desejava-o de certo; mas esperal-o, seria da minha parte demasiada vaidade.

Ora, em vez da critica inflexivel, que eu devera, mas não ousava receiar; em vez da simples noticia do apparecimento de um volume, que não seria de todo ruim, pois que teria merecido occupar a sua attenção; o illustre escriptor poz por alguns momentos de parte a severidade que tem direito de usar para com todos, quando é tão severo para comsigo mesmo,—e, benevolamente indulgente, dirigio me algumas linhas, que me fizerão comprehender quão alto eu reputava a sua gloria, na plenitude de contentamento, de que as suas palavras me deixarão possuido.

O escriptor conhecia-o eu ha muito, mas de nome e pelas suas obras: essas obras que todos nós temos lido, e esse nome que eu sempre ouvira pronunciar com admiração e respeito.

[Pg viii]

Se pois, n’aquella occasião, me fosse dado escolher auctor para esse artigo, não podia recahir em outro a minha escolha. Hoje, com mais razão. Tive ensejo de o conhecer pessoalmente, e a fortuna de encontrar nelle um d’aquelles poucos, d’alta intelligencia, que não perdem em serem admirados de perto, e cuja amizade se pode ambicionar como um thesouro: fortuna, digo, por que o é de certo, quando se admira o escripto, que se possa ao mesmo tempo estimar o escriptor; e ainda maior fortuna, quando queremos manifestar o nosso reconhecimento, que nos não remorda a consciencia, previnindo-nos, de que ainda quando digamos mais do que a verdade, ficaremos sempre aquem do que devemos.

Ahi vae o artigo tal qual o transcreveo e remetteo-me de Lisboa o meo bom amigo Gomes de Amorim.

Dresde 30 de Março de 1857.


[Pg ix]

FUTURO LITTERARIO DE PORTUGAL E DO BRAZIL.[1]

POR OCCASIÃO DA LEITURA DOS

PRIMEIROS CANTOS: POESIAS DO Sr A. GONÇALVES DIAS.


Bem como a infancia do homem a infancia das nações é vivida e esperançosa; bem como a velhice humana a velhice dellas é tediosa e melancholica. Separado da mãe patria, menos pela serie de acontecimentos inopinados, a que uma observação superficial lhe atribue a emancipação, do que pela ordem natural do progresso das sociedades, o Brazil, imperio vasto, rico, destinado pela sua situação, pelo favor da natureza, que lhe fadou a opulencia, a representar um grande papel na historia do novo mundo, é a nação infante que sorri: Portugal é o velho aborrido e triste, que se volve dolorosamente no seu leito de decrepidez; que se lamenta de que os raios do sol se tornassem frouxos, de que se encurtassem os horisontes da esperança, de que um crepe funebre vele a face da terra. Perguntae, porêm, ao povo infante, que cresce e se fortifica alem dos mares, que se atira ridente pelo [Pg x] caminho da vida, se é verdade isso que diz o ancião na tristeza do seu vegetar inerte, e que, encostado na borda do tumulto, deplora, pobre tonto, o mundo que vae morrer!

Em Portugal, os espiritos que o antigo poeta designou pelo epitheto de bem nascidos; aquelles que ainda tentam esquivar-se no sanctuario da sciencia ou da poesia ao pego da podridão dissolvente que os cerca, no meio dos seus generosos esforços chegam a illudir a Europa com essas aspirações do futuro, que tambem nelles não são mais do que uma illusão. As suas tentativas quasi fazem acreditar que para esta nação moribunda ainda resta uma esperança de regeneração; que nas veias varicosas deste corpo semi cadaver de novo se vae injectar sangue puro; que temos ainda algum destino a cumprir antes de nos amortalhar-mos no estandarte de D. João I. ou na bandeira de Vasco da Gama, e de irmos emfim repousar no cemiterio da historia. O desengano chega, porêm, em breve. O talento que forcejava por fugir do lethargo febril que nos consome, retrocede ao entrar no templo, e volve ao lodaçal onde agonisamos. É que a turba que ahi se debate, ou o apupa, ou lhe arroja adiante tropeços, ou o corrompe com dadivas e promessas; e fallando-lhe ás paixões más, ás ambições insensatas, lhe clama: vem refocilar-te no lodo. E, desanimado ou tentado, o talento despenha-se, e attufando-se no charco, acceita as lisonjas ou o oiro immundo, que lhe atiram, embriaga-se com os outros perdidos, e renega da missão sacrosanta, que se lhe destinára no ceu.

Que é feito de tantos engenhos que despontaram nesta nossa terra desde que a imprensa libertada chamou os que sentiam chamejar em si um espirito não vulgar ao convivio das intelligencias? Que é feito dessas tres ou quatro épochas em que, nos ultimos quinze annos, a mocidade parecia querer deixar inteiramente aos pequeninos homens grandes do paiz o agitarem-se, o morderem-se, o devorarem-se acerca dos graves interesses, das profundas questões das bolhas de sabão politicas? Que é feito dessa phalange ardente, ambiciosa de uma gloria pura, que principiava a exercitar-se nas lides do entendimento? De tudo isso; [Pg xi] de toda essa mocidade brilhante e esperançosa que resta? Algum crente solitario, que deplora em silencio a queda de tantos archanjos. Os outros sacerdotes, apostatando da religião das lettras, attiraram-se á arena das facções, e manchados pela baba dos odios civis, cobertos da lama das praças, arroxeados e sangrentos pelas punhadas do pugilato politico, desbaratando em esforços estereis a seiva interior, la vão disputando no meio de homens, gastos como a effigie de velha moeda, sobre qual ha de ser a forma do ataúde, e como se talhará a mortalha, em que o cadaver de Portugal deve descer á sepultura. Que outra coisa, de feito, ha ahi sobre que se dispute ainda?

Por isso, quando vejo começar a surgir entre nós um novo poeta; quando oiço a primeira harmonia que sussurra nas cordas de lyra noviça, quizera poder chegar-me escondidamente ao descuidado e inexperiente cantor, e dizer-lhe ao ouvido: Cala-te, alma virgem e bella; cala-te, que estás n’um prostibulo! Olha que elles não te ouçam! Se o teu hymno reboar por essas torpes alcovas, sabe que pouco tardará a hora de te prostituires.

O poeta portuguez d’hoje é a avezinha que enlevada nos seus gorgeios se balança depois do pôr do sol no ramo do ulmeiro pendente sobre o rio. As outras voaram para os seus ninhos, e ella deixou vir a noite, e ficou alli, triste, só, desconsolada, soltando a espaços um doloroso pio.

Poeta, n’esta terra é noite! Por que não te acolheste ao teu ninho? Agora o que te resta é morrer. Vae abrigar-te entre os orbes; vae derramar em canções a tua alma no seio immenso de Deos. Ahi é que sempre é dia.

Nós somos hoje o hilota embriagado, que se punha defronte da meza nas philitias de Sparta, para servir de licção de sobriedade aos mancebos. O Brazil é a moderna Sparta, de que Portugal é a moderna Helos.

Estas amarguradas cogitações surgiram-me na alma, com a leitura de um livro impresso o anno passado no Rio de Janeiro, e intitulado: Primeiros Cantos: Poesias por A. Gonçalves Dias. N’aquelle paiz de esperanças, cheio de viço e de vida, ha um ruido de lavor intimo, [Pg xii] que sôa tristemente cá, n’esta terra onde tudo acaba. A mocidade, despregando o estandarte da civilisação, prepara-se para os seus graves destinos pela cultura das lettras; arroteia os campos da intelligencia; aspira as harmonias dessa natureza possante que a cerca; concentra n’um foco todos os raios vivificantes do formoso ceu, que a allumina; prova forças emfim para algum dia renovar pelas ideias a sociedade, quando passar a geração dos homens praticos e positivos, raça que lá deve predominar ainda; por que a sociedade brazileira, vergontea separada ha tão pouco da carcomida arvore portugueza, ainda necessariamente conserva uma parte do velho cepo. Possa o renovo dessa vergontea, transplantada da Europa para entre os tropicos, prosperar e viver uma bem longa vida, e não decahir tão cedo como nós decahimos!

É geralmente sabido que o jovem imperador do Brazil dedica todos os momentos que pode salvar das occupações materiaes de chefe do Estado ao culto das lettras. Mancebo, prende-se á mocidade, aos homens do futuro, por laços que de certo as revoluções não hão de quebrar; porque o progresso social não virá accomettel-o inopinadamente nas suas crenças e habitos. Quando a ideia se encarnar na realidade, o seu espirito como as outras intelligencias que o rodeiam, ter-se-ha alimentado della, e saudará como os seus mais alumiados subditos o pensamento progressivo. Não notaes n’estas tendencias do moço principe um symbolo do presente, e uma prophecia consoladora acerca do porvir do Brazil?

A imprensa na antiga America portugueza, balbuciante ha dois dias, já ultrapassa a imprensa da terra que foi metropole. Ás publicações periodicas, primeira expressão de uma cultura intellectual que se desinvolve, começam a associar-se as composições de mais alento—os livros. Ajuncte-se a este facto outro, o ser o Brazil o mercado principal do pouco que entre nós se imprime, e será facil conjecturar que no dominio das lettras, como em importancia e prosperidade, as nossas emancipadas colonias nos vão levando rapidamente de vencida.

[Pg xiii]

Por si sós esses factos provariam antes a nossa decadencia, que o progresso litterario do Brazil. É um mancebo vigoroso que derriba um velho cachetico, demente e paralitico. O que completa, porêm, a prova é o exame não comparativo, mas absoluto, de algumas das modernas publicações brazileiras.

Os Primeiros Cantos são um bello livro; são inspirações de um grande poeta. A terra de Sancta Cruz que já conta outros no seu seio, pode abençoar mais um illustre filho.

O auctor, não o conhecemos; mas deve ser muito jovem. Tem os defeitos do escriptor ainda pouco amestrado pela experiencia: imperfeições de lingua, de metrificação, de estylo. Que importa? O tempo apagará essas maculas, e ficarão as nobres inspirações estampadas nas paginas deste formoso livro.

Quizeramos que as Poesias Americanas que são como o portico do edificio occupassem nelle maior espaço. Nos poetas transatlanticos ha por via de regra demasiadas reminiscencias da Europa. Esse Novo Mundo que deu tanta poesia a Saint-Pierre e a Chateaubriand é assaz rico para inspirar e nutrir os poetas que crescerem á sombra das suas selvas primitivas.

Como argumento disso, como exemplo da verdadeira poesia nacional do Brazil citarei aqui dous trechos das Poesias Americanas: o Canto do Guerreiro e um fragmento Morro do Alecrim.

(Aqui vem transcripta por inteiro a poesia intitulada «O canto do Guerreiro» (pag. 4) e as ultimas strophes do «Morro do Alecrim».)

Abstendo-me de outras citações, que occupariam demasiado espaço, não posso resistir a tentação de transcrever das Poesias Diversas uma das mais mimosas composições lyricas, que tenho lido na minha vida.

(Aqui vem transcripta a poesia intitulada «Seos olhos». Veja-se pag. 19.)

Se estas poucas linhas, escriptas de abundancia de coração, passarem os mares, receba o auctor dos Primeiros Cantos o testemunho [Pg xiv] sincero de sympathia, que a leitura do seu livro arrancou a um homem, que o não conhece, que provavelmente não o conhecerá nunca, e que não costuma nem dirigir aos outros elegios encommendados, nem pedil-os para si.

Lisboa (Ajuda) 30 de Novembro de 1847.

A. HERCULANO.


[Pg xv]

PRIMEIROS CANTOS.

PROLOGO DA PRIMEIRA EDICÇÃO.

Dei o nome de “Primeiros Cantos” ás poesias que agora publíco, porque espero que não serão as ultimas.

Muitas dellas não tem uniformidade nas strophes, porque menospreço regras de mera convenção; adoptei todos os rhythmos da metrificação portugueza, e usei delles como me parecérão quadrar melhor com o que eu pretendia exprimir.

Não tem unidade de pensamento entre si, porque forão compostas em epochas diversas—debaixo de céo diverso—e sob a influencia de impressões momentaneas. Forão compostas nas margens viçosas do Mondego e nos pincaros ennegrecidos do Gerez—no Doiro e no Tejo—sobre as vagas do Atlantico, e nas florestas virgens da America. Escrevi-as para mim, e não para os outros; contentar-me-hei, se agradarem; e se não ... é sempre certo que tive o prazer de as ter composto.

Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena politica para lêr em minha alma, reduzindo á lingoagem harmoniosa e cadente o pensamento que me vem de improviso, e as idéas que em mim desperta a vista de uma paisagem ou do oceano—o aspecto emfim da natureza. Casar assim o pensamento com o sentimento—o coração com o entendimento—a idéa com a paixão—colorir tudo isto com a imaginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, purificar tudo com o sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia—a Poesia grande e [Pg xvi] sancta—a Poesia como eu a comprehendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder traduzir.

O esforço—ainda vão—para chegar a tal resultado é sempre digno de louvor; talvez seja este o só merecimento deste volume. O Publico o julgará; tanto melhor se elle o despreza, porque o Auctor interessa em acabar com essa vida desgraçada, que se diz de Poeta.

Rio de Janeiro—Julho de 1846.


[Pg xvii]

INDICE.

   Pag.
Sirva de Prologo vii
Futuro litterario de Portugal e do Brazil, artigo do Sr. A. Herculano ix
Prologo da primeira edicção dos Primeiros Cantos xv
PRIMEIROS CANTOS.
POESIAS AMERICANAS.
Canção do Exilio 3
O Canto do Guerreiro 4
O Canto do Piaga 7
O Canto do Indio 9
Cachias 11
Deprecação 12
POESIAS DIVERSAS.
A Leviana 14
A minha Musa 15
Desejo 19
Seos olhos 19
Innocencia 21
Pedido 22
O Desengano 23
Minha vida e meos amores 24
Recordação 27
Tristeza 28
O Trovador 30
Amor! delirio—engano 34
Delirio 37
Epicedio 39
Soffrimento 41
VISÕES.
  I. Prodigio 43
 II. A Cruz 44
III. Passamento 46[Pg xviii]
IV. —— 50
V. A Morte 53
O Vate 55
A morte prematura da Illma Sra D..... 57
A Mendiga 59
A Escrava 63
Ao Dr. J. D. Lisboa Serra 66
O Desterro de um pobre velho 68
O Orgulhoso 71
O Cometa 72
O Oiro 73
A um Menino 74
O Pirata 77
A Villa Maldicta 81
Quadras da minha vida. Recordação e desejo 87
HYMNOS.
O Mar 95
Ideia de Deos 97
O romper d’alva 100
A tarde 103
O Templo 107
Te Deum 109
Adeos aos meos Amigos do Maranhão 110
SEGUNDOS CANTOS.
Consolação nas lagrimas 115
Canção 116
Lyra 117
Agora e sempre 118
A Virgem 119
Rosa no mar! 121
O Amor 123
Sempre ella 124
Mimosa e bella 126
As duas amigas 128
Sonho 130
Solidão 131
A um Poeta exilado 134
Palinodia 135
Os suspiros 139
Queixumes 141
Ao Anniversario de um casamento 145
Canto inaugural.—A memoria do Conego J. de C. Barbosa 146
Tabyra. Aos Pernambucanos 149
Tabyra (Poesia Americana) 150[Pg xix]
A Lua 157
A Noite 160
A Tempestade 162
NOVOS CANTOS.
O homem forte 169
Dies irae 170
Espera! 172
A Saudade 174
Não me deixes! 176
Zulmira 177
A uma Poetiza 178
Angelina 178
Rola 180
Ainda uma vez—adeos! 181
O Somno 186
Se eu fosse querido! 186
A flôr do amor 187
A sua voz 190
Se se morre de amor! 191
A morte é vária 193
SEXTILHAS DE FREI ANTÃO.
Loa da Princeza Sancta 196
Gulnare e Mustaphá 211
Soláo do Senhor Rey Dom João 240
Soláo de Gonçalo Hermiguez 251
ULTIMOS CANTOS.
Dedicatoria ao meo amigo A. T. de Carvalho Leal 271
POESIAS AMERICANAS.
   I. O Gigante de pedra 275
  II. Leito de folhas verdes 280
 III. Y-juca-pyrama 281
 IV. Marabá 296
  V. Canção do Tamoyo 298
 VI. A Mangueira 301
VII. A Mãe d’agua 302
POESIAS DIVERSAS.
Nenia á morte sentidissima do Serenissimo Principe Imperial, o Senhor D. Pedro 310
Olhos verdes 314
Cumprimento de um voto 316[Pg xx]
Lyra quebrada 318
A Pastora 319
A Infancia 322
Urge o tempo 325
Sobre o tumulo de um menino 326
Menina e moça 326
Como eu te amo 327
As duas corôas 330
Harpejos 333
Triste do Trovador 335
Velhice e mocidade 336
As flores 341
O que mais dóe na vida 344
Flôr de belleza 346
O Anjo da harmonia 348
A Historia 349
A concha e a virgem 350
Sei amar 351
Amanhã 352
Por um ai 353
Protesto—(Imitação de uma poesia javaneza) 355
Fadario 357
O assassino 359
A uns annos 361
Quando nas horas 362
Retractação 366
Anhelo 369
Que me pedes 370
O Ciume 370
A Nuvem doirada 373
Sonho de virgem 374
Meo anjo, escuta 378
Os beijos 379
Desesperança 381
Se queres que eu sonhe 383
O Baile 385
Desalento 387
A queda de Satanaz 390
Canção da Bug-Jargal 392
Agar no deserto 394
HYMNO.
O meo Sepulchro 404
Saudades á minha Irmã 410
Notas 417

PRIMEIROS CANTOS.


[Pg 3]

POESIAS AMERICANAS.

Les infortunes d’un obscur habitant des bois auraient-elles moins de droits à nos pleurs que celles des autres hommes?

CHATEAUBRIAND.


CANÇÃO DO EXILIO.

Kennst du das Land, wo die Citronen blühn,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühn?
Kennst Du es wohl?—Dahin, dahin!
Möcht’ ich ... ziehn.
GOETHE.
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorgeião,
Não gorgeião como lá.
Nosso céo tem mais estrellas,
Nossas varzeas tem mais flores,
Nossos bosques tem mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em scismar, sósinho, á noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
[Pg 4]
Minha terra tem primores,
Que taes não encontro eu cá;
Em scismar—sósinho, á noite—
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permitta Deos que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfructe os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
COIMBRA—Julho 1843.

O CANTO DO GUERREIRO.

I.

Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não gerão escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
—Ouvi-me, Guerreiros,
—Ouvi meo cantar.

II.

Valente na guerra
Quem ha, como eu sou?
Quem vibra o tacápe
Com mais valentia?
Quem golpes daria
Fataes, como eu dou?
—Guerreiros, ouvi-me;
—Quem ha, como eu sou?
[Pg 5]

III.

Quem guia nos ares
A frexa implumada,
Ferindo uma preza,
Com tanta certeza,
Na altura arrojada
Onde eu a mandar?
—Guerreiros, ouvi-me,
—Ouvi meo cantar.

IV.

Quem tantos imigos
Em guerras preou?
Quem canta seos feitos
Com mais energia?
Quem golpes daria
Fataes, como eu dou?
—Guerreiros, ouvi-me:
—Quem ha, como eu sou?

V.

Na caça ou na lide,
Quem ha que me affronte?!
A onça raivosa
Meos passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céo.
—Quem ha mais valente,
—Mais dextro do que eu?

VI.

Se as matas estrujo
Co’os sons do Boré,
Mil arcos se encurvão,
Mil setas lá vôão,
Mil gritos rebôão,
Mil homens de pé
[Pg 6]
Eis surgem, respondem
Aos sons do Boré!
—Quem é mais valente,
—Mais forte quem é?

VII.

Lá vão pelas matas;
Não fazem ruido:
O vento gemendo
E as matas tremendo
E o triste carpido
D’uma ave a cantar,
São elles—guerreiros,
Que faço avançar.

VIII.

E o Piaga se ruge
No seo Maracá,
A morte lá paira
Nos ares frexados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viverão,
Mil homens são lá.

IX.

E então se de novo
Eu tóco o Boré;
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal elles se escôão
Aos sons do Boré.
—Guerreiros, dizei-me,
—Tão forte quem é?

[Pg 7]

O CANTO DO PIAGA.

I.

Ó Guerreiros da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da tribu Tupi,
Fallão Deoses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meos cantos ouvi.
Esta noite—era a lua já morta—
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrivel caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.
Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! que prodigios que vi!
Arde o páo de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o accendi!
Eis rebenta a meos pés um phantasma,
Um phantasma d’immensa extensão;
Liso craneo repousa a meo lado,
Feia cóbra se enrosca no chão.
O meo sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro—ossos, carnes—tremi,
Frio horror me côou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.
Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Fallão Deoses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meos cantos ouvi!

II.

Porque dormes, ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a fallar,
Porque dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.
[Pg 8]
Tu não viste nos céos um negrume
Toda a face do sol offuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estridulos torva soltar?
Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem—vergar-se e gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?
E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te prohibe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não pódes augurios cantar?!
Ouve o annuncio do horrendo phantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugirão da Taba!
Ó desgraça! ó ruina! ó Tupá!

III.

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, hi vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas taes monstros contêm.
Trás embira dos cimos pendente
—Brenha espessa de vario cipó—
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Taes e quaes, mas com folhas; é só!
Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas azas abrindo ao tufão,
Como um bando de candidas garças,
Que nos ares pairando—lá vão.
Oh! quem foi das entranhas das aguas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro...—o que vem cá buscar?
[Pg 9]
Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!
Vem trazer-vos crueza, impiedade—
Dons crueis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.
Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribu Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos,
Mesmo o Piaga inda escravo ha de ser!
Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por invio sertão;
Anhangá de prazer ha de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.
Vossos Deoses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugirão da Taba,
Ó desgraça! ó ruina! ó Tupá!

O CANTO DO INDIO.

Quando o sol vae dentro d’agoa
Seos ardores sepultar,
Quando os passaros nos bosques
Principião a trinar;
Eu a vi, que se banhava....
Era bella, ó Deoses, bella,
Como a fonte cristallina,
Como luz de meiga estrella.
Ó Virgem, Virgem dos Christãos formosa,
Porque eu te visse assim, como te via,
[Pg 10]
Calcára agros espinhos sem queixar-me,
Que antes me dera por feliz de ver-te.
O tacápe fatal em terra estranha
Sobre mim sem temor veria erguido;
Dessem-me a mim sómente vêr teo rosto
Nas agoas, como a lua, retratado.
Eis que os seos loiros cabellos
Pelas agoas se espalhavão,
Pelas agoas, que de vel-os
Tão loiros se enamoravão.
Ella erguia o collo eburneo,
Porque melhor os colhesse;
Niveo collo, quem te visse,
Que de amores não morresse!
Passára a vida inteira a contemplar-te,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa,
Sem que dos meos irmãos ouvisse o canto,
Sem que o som do Boré que incita á guerra
Me infiltrasse o valor que m’has roubado,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa.
As vezes, quando um sorriso
Os labios seos entreabria,
Era bella, oh! mais que a aurora
Quando a raiar principia.
Outra vez—d’entre os seos labios
Uma voz se desprendia;
Terna voz, cheia de encantos,
Que eu entender não podia.
Que importa? Esse fallar deixou-me n’alma
Sentir d’amores tão sereno e fundo,
Que a vida me prendeo, vontade e força.
Ah! que não queiras tu viver commigo,
Ó Virgem dos Christãos, Virgem formosa!
[Pg 11]
Sobre a areia, já mais tarde,
Ella surgio toda núa;
Onde ha, ó Virgem, na terra
Formosura como a tua?
Bem como gotas de orvalho
Nas folhas de flôr mimosa,
Do seo corpo a onda em fios
Se deslizava amorosa.
Ah! que não queiras tu vir ser rainha
Aqui dos meos irmãos, qual sou rei delles!
Escuta, ó Virgem dos Christãos formosa.
Odeio tanto aos teos, como te adóro;
Mas queiras tu ser minha, que eu prometto
Vencer por teo amor meo odio antigo,
Trocar a maça do poder por ferros
E ser, por te gozar, escravo delles.

CACHIAS.

Quanto es bella, ó Cachias!—no deserto,
Entre montanhas, derramada em valle
De flores perennaes,
Es qual tenue vapor que a brisa espalha
No frescor da manhã meiga soprando
Á flor de manso lago.
Tu es a flor que despontaste livre
Por entre os troncos de robustos cédros,
Forte—em gleba inculta;
Es qual gazella, que o deserto educa,
No ardor da sésta debruçada exangue
Á margem da corrente.
Em molle seda as graças não escondes,
Não cinges d’oiro a fronte que descanças
Na base da montanha;
[Pg 12]
Es bella como a virgem das florestas,
Que no espelho das aguas se contempla,
Firmada em tronco annoso.
Mas dia inda virá, em que te pejes
Dos, que ora trajas, simplices ornatos
E amavel desalinho:
Da pompa e luxo amiga, hão de cahir-te
Aos pés então—da poesia a c’roa
E da innocencia o cinto.

DEPRECAÇÃO.

Tupan, ó Deos grande! cobriste o teo rosto
Com denso velamen de pennas gentis;
E jazem teos filhos clamando vingança
Dos bens que lhes déste da perda infeliz!
Tupan, ó Deos grande! teo rosto descobre:
Bastante soffremos com tua vingança!
Já lagrimas tristes chorárão teos filhos,
Teos filhos que chórão tão grande mudança.
Anhangá impiedoso nos trouxe de longe
Os homens que o raio manejão cruentos,
Que vivem sem patria, que vagão sem tino
Tras do ouro correndo, voraces, sedentos.
E a terra em que pisão, e os campos e os rios
Que assaltão, são nossos; tu es nosso Deos:
Por que lhes concedes tão alta pujança,
Se os raios de morte, que vibrão, são teos?
Tupan, ó Deos grande! cobriste o teo rosto
Com denso velamen de pennas gentis;
E jazem teos filhos clamando vingança
Dos bens que lhes déste da perda infeliz.
[Pg 13]
Teos filhos valentes, temidos na guerra,
No albor da manhã quão fortes que os vi!
A morte pousava nas plumas da frexa,
No gume da maça, no arco Tupi!
E hoje em que apenas a enchente do rio
Cem vezes hei visto crescer e baixar...
Já restão bem poucos dos teos, qu’inda possão
Dos seos, que já dormem, os ossos levar.
Teos filhos valentes causavão terror,
Teos filhos enchião as bordas do mar,
As ondas coalhavão de estreitas igáras,
De frexas cobrindo os espaços do ar.
Já hoje não cáção nas matas frondosas
A corça ligeira, o trombudo coati...
A morte pousava nas plumas da frexa,
No gume da maça, no arco Tupi!
O Piaga nos disse que breve seria,
A que nos infliges cruel punição;
E os teos inda vagão por serras, por valles,
Buscando um asilo por invio sertão!
Tupan, ó Deos grande! descobre o teo rosto:
Bastante soffremos com tua vingança!
Já lagrimas tristes chorárão teos filhos,
Teos filhos que chórão tão grande tardança.
Descobre o teo rosto, resurjão os bravos,
Que eu vi combatendo no albor da manhã;
Conheção-te os feros, confessem vencidos
Que es grande e te vingas, qu’es Deos, ó Tupan!


[Pg 14]

POESIAS DIVERSAS.


A LEVIANA.

Souvent femme varie,
Bien fol est qui s’y fie.
FRANCISCO I.
Es engraçada e formosa
Como a rosa,
Como a rosa em mez d’Abril;
Es como a nuvem doirada
Deslisada,
Deslisada em céos d’anil.
Tu es vária e melindrosa,
Qual formosa
Borboleta n’um jardim,
Que as flores todas afaga,
E divaga
Em devaneio sem fim.
Es pura, como uma estrella
Doce e bella,
Que treme incerta no mar;
Mostras nos olhos tua alma
Terna e calma,
Como a luz d’almo luar.
[Pg 15]
Tuas formas tão donosas,
Tão airosas,
Formas da terra não são;
Pareces anjo formoso,
Vaporoso,
Vindo da etherea mansão.
Assim, beijar-te receio,
Contra o seio
Eu tremo de te apertar;
Pois me parece que um beijo
É sobejo
Para o teo corpo quebrar.
Mas não digas que es so minha!
Passa azinha
A vida, como a ventura,
Que te não vejão brincando,
E folgando
Sobre a minha sepultura.
Tal os sepulcros colora
Bella aurora
De fulgores radiante;
Tal a vaga maripôsa
Brinca e pousa
D’um cadaver no semblante.

A MINHA MUSA.

Gratia, Musa, tibi; nam tu solatia praebes.
OVIDIO.
Minha Musa não é como nympha
Que se eleva das agoas—gentil—
Co’um sorriso nos labios mimosos,
Com requebros, com ar senhoril.
[Pg 16]
Nem lhe pouza nas faces redondas
Dos fagueiros anhelos a cor;
N’esta terra não tem uma esp’rança,
N’esta terra não tem um amor.
Como fada de meigos encantos,
Não habita um palacio encantado,
Quer em meio de matas sombrias,
Quer á beira do mar levantado.
Não tem ella uma senda florida,
De perfumes, de flores bem cheia,
Onde vague com passos incertos,
Quando o céo de luzeiros se arreia.

Não é como a de Horacio a minha Musa;
Nos soberbos alpendres dos Senhores
Não é que ella reside;
Ao banquete do grande em lauta mesa,
Onde gira o falerno em taças d’oiro,
Não é que ella preside.
Ella ama a solidão, ama o silencio,
Ama o prado florido, a selva umbrosa
E da rola o carpir.
Ella ama a viração da tarde amena,
O susurro das agoas, os accentos
De profundo sentir.
D’Anacreonte o genio prazenteiro,
Que de flores cingia a fronte calva
Em brilhante festim,
Tomando inspirações á doce amada,
Que leda lh’enflorava a eburnea lyra;
De que me serve, a mim?
[Pg 17]
Canções que a turba nutre, inspira, exalta
Nas cordas magoadas me não pousão
Da lyra de marfim.
Correm meos dias, lacrimosos, tristes,
Como a noite que estende as negras azas
Por céo negro e sem fim.
É triste a minha Musa, como é triste
O sincero verter d’amargo pranto
D’orfã singela;
É triste como o som que a brisa espalha,
Que cicia nas folhas do arvoredo
Por noite bella.
É triste como o som que o sino ao longe
Vai perder na extensão d’ameno prado
Da tarde no cahir,
Quando nasce o silencio involto em trevas,
Quando os astros derramão sobre a terra
Merencorio luzir.
Ella então, sem destino, erra por valles,
Erra por altos montes, onde a enchada
Fundo e fundo cavou;
E pára; perto, jovial pastora
Cantando passa—e ella scisma ainda
Depois que esta passou.
Alem—da chóça humilde s’ergue o fumo
Que em risonha spiral se eleva ás nuvens
Da noite entre os vapores;
Muge solto o rebanho; e lento o passo,
Cantando em voz sonora, porém baixa,
Vêm andando os pastores.
Outras vezes tambem, no cemiterio,
Incerta volve o passo, soletrando
Recordações da vida;
Roça o negro cipreste, calca o musgo,
Que o tempo fez brotar por entre as fendas
Da pedra carcomida.
[Pg 18]
Então corre o meo pranto muito e muito
Sobre as humidas cordas da minha Harpa,
Que não resôão;
Não chóro os mortos, não; chóro os meos dias,
Tão sentidos, tão longos, tão amargos,
Que em vão se escôão.
Nesse pobre cemiterio
Quem já me dera um logar!
Esta vida mal vivida
Quem já m’a dera acabar!
Tenho inveja ao pegureiro,
Da pastora invejo a vida,
Invejo o somno dos mortos
Sob a lage carcomida.
Se qual pegão tormentoso,
O sopro da desventura
Vae bater potente á porta
De sumida sepultura;
Uma voz não lhe responde,
Não lhe responde um gemido,
Não lhe responde uma prece,
Um ai—do peito sentido.
Já não têm voz com que fallem,
Já não têm que padecer;
No passar da vida á morte
Foi seo extremo soffrer.
Que lh’importa a desventura?
Ella passou, qual gemido
Da brisa em meio da mata
De verde alecrim florido.
Quem me dera ser como elles!
Quem me dera descansar!
[Pg 19]
Nesse pobre cemiterio
Quem me dera o meo logar,
E co’os sons das Harpas d’anjos
Da minha Harpa os sons casar!

DESEJO.

E poi morir.
METASTASIO.
Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Siquer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meo!
Dá, Senhor Deos, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meo sentir;
Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meo silencio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céos remontem
N’um extasis de amor!

SEOS OLHOS.

Oh! rouvre tes grande yeux dont la paupière tremble,
Tes yeux pleins de langueur;
Leur regard est si beau quand nous sommes ensemble!
Rouvre-les; ce regard manque à ma vie, il semble
Que tu fermes ton coeur.
TURQUETY.
Seos olhos tão negros, tão bellos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrellas incertas, que as agoas dormentes
Do mar vão ferir;
Seos olhos tão negros, tão bellos, tão puros,
Tem meiga expressão,
Mais doce que a briza,—mais doce que o nauta
De noite cantando,—mais doce que a frauta
Quebrando a soidão,
[Pg 20]
Seos olhos tão negros, tão bellos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.
São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travêssos;—causando tormento,
Com beijos nos págão a dôr de um momento,
Com modo gentil.
Seos olhos tão negros, tão bellos, tão puros,
Assim é que são;
A vezes luzindo, serenos, tranquillos,
As vezes vulcão!
As vezes, oh! sim, derramão tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes fallece,
E os olhos tão meigos, que o pranto humedece,
Me fazem chorar.
Assim lindo infante, que dorme tranquillo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, scismando mil coisas,
Não pensa—a pensar.
Nas almas tão puras da virgem, do infante,
As vezes do céo
Cae doce harmonia d’uma Harpa celeste,
Um vago desejo; e a mente se véste
De pranto co’um véo.
Quer sejão saudades, quer sejão desejos
Da patria melhor;
Eu amo seos olhos que chórão sem causa
Um pranto sem dôr.
[Pg 21]
Eu amo seos olhos tão negros, tão puros,
De vivo fulgor;
Seos olhos que exprimem tão doce harmonia,
Que fallão de amores com tanta poesia,
Com tanto pudor.
Seos olhos tão negros, tão bellos, tão puros,
Assim é que são;
Eu amo essos olhos que fallão de amores
Com tanta paixão.

INNOCENCIA.

Sans nommer le nom qu’il faut bénir et taire.

S. BEUVE.

Ó meo anjo, vem correndo,
Vem tremendo
Lançar-te nos braços meos;
Vem depressa, que a lembrança
Da tardança
Me aviva os rigores teos.
Do teo rosto, qual marfim,
De carmim
Tinge um nada a côr mimosa;
É bello o pudor, mas chóro,
E deploro
Que assim sejas tão medrosa.
Por innocente tens medo
De tão cedo,
De tão cedo ter amor;
Mas sabe que a formosura
Pouco dura,
Pouco dura, como a flôr.
Corre a vida pressurosa,
Como a rosa,
[Pg 22]
Como a rosa na corrente.
Amanhã terás amor?
Como a flôr,
Como a flôr fenece a gente.
Hoje ainda es tu donzella
Pura e bella,
Cheia de meigo pudor;
Amanhã menos ardente
De repente
Talvez sintas meo amor.

PEDIDO.

Hontem no baile
Não me attendias!
Não me attendias,
Quando eu fallava.
De mim bem longe
Teo pensamento!
Teo pensamento,
Bem longe errava.
Eu vi teos olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.
Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.
Tu lhe fallaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.
[Pg 23]
Oh! não lhe falles,
Não lhe sorrias,
Se então só qu’rias
Exp’rimentar-me.
Oh! não lhe falles,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.

O DESENGANO.

Já vigilias passei namorado,
Doces horas d’insomnia passei,
Já meos olhos, d’amor fascinado,
Em vêr só meo amor empreguei.
Meo amor era puro, extremoso,
Era amor que meo peito sentia,
Erão lavas de um fogo teimoso,
Erão notas de meiga harmonia.
Harmonia era ouvir sua voz,
Era ver seo sorriso harmonia;
E os seos modos e gestos e ditos
Erão graças, perfume e magia.

E o que era o teo amor, que me embalava
Mais do que meigos sons de meiga lyra?
Um dia o decifrou—não mais que um dia—
Fingimento e mentira!
Tão bello o nosso amor!—foi só de um dia,
Como uma flôr!
Porque tão cedo o talisman quebraste
Do nosso amor?
[Pg 24]
Porque n’um só instante assim partiste
Essa annosa cadeia?
De bom grado a soffreste! essa lembrança
Inda hoje me recreia.
Quão insensato fui!—busquei firmeza,
Qual em ondas de areia movediça,
Na mulher,—não achei!
E da esp’rança, que eu via tão donosa
Sorrir dentro em minha alma, as longas azas
Doido e nescio cortei!
E tu vás caprixosa proseguindo
Essa esteira de amor, que julgas cheia
De flôres bem gentis;
Pódes ir, que os meos olhos te não vejão;
Longe, longe de mim, mas que em minha alma
Eu sinta qu’es feliz.
Pódes ir, que é desfeito o nosso laço,
Pódes ir, que o teo nome nos meos labios
Nunca mais soará!
Sim, vai;—mas este amor que me atormenta,
Que tão grato me foi, que me é tão duro,
Commigo morrerá!
Tão bello o nosso amor!—foi só de um dia
Como uma flôr!
Oh! que bem cedo o talisman quebraste
Do nosso amor!

MINHA VIDA E MEOS AMORES.

Mon Dieu, fais que je puisse aimer!

S. BEUVE.

Quando, no albor da vida, fascinado
Com tanta luz e brilho e pompa e gallas,
Vi o mundo sorrir-me esperançoso:
[Pg 25]
—Meo Deos, disse entre mim, oh! quanto é doce,
Quanto é bella esta vida assim vivida!—
Agora, logo, aqui, além, notando
Uma pedra, uma flôr, uma lindeza,
Um seixo da corrente, uma conxinha
A beiramar colhida!
Foi esta a infancia minha; a juventude
Fallou-me ao coração:—amemos, disse,
Porque amar é viver.
E esta era linda, como é linda a aurora
No fresco da manhã tingindo as nuvens
De rosea côr fagueira;
Aquella tinha um quê de anhelos meigos
Artifice sublime;
Feiticeiro sorrir dos labios della
Prendeo-me o coração;—julguei-o ao menos.
Aquella outra sorria tristemente,
Como um anjo no exilio, ou como o calix
De flôr pendida e murcha e já sem brilho.
Humilde flôr tão bella e tão cheirosa,
No seo deserto perfumando os ventos.
—Eu morrêra feliz, dizia eu d’alma,
Se podesse enxertar uma esperança
N’aquella alma tão pura e tão formosa,
E um alegre sorrir nos labios della.
A fugaz borboleta as flôres todas
Elege, e liba e uma e outra, e foge
Sempre em novos amores enlevada;
N’este meo paraiso fui como ella,
Inconstante vagando em mar de amores.
O amor sincero e fundo e firme e eterno,
Como o mar em bonança meigo e doce,
Do templo como a luz perenne e sancto,
Não, nunca o senti;—somente o viço
Tão forte dos meos annos, por amores
Tão faceis quanto indi’nos fui trocando.
[Pg 26]
Quanto fui louco, ó Deos!—Em vez do fructo
Sasonado e maduro, que eu podia
Como em jardim colher, mordi no fructo
Putrido e amargo e rebuçado em cinzas,
Como infante glotão, que se não senta
Á mesa de seos paes.
Dá, meo Deos, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão,
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meo coração.
Um dia, em qu’eu sentei-me junto della,
Sua voz murmurou nos meos ouvidos,
—Eu te amo!—Ó anjo, que não possa eu crer-te!
Ella, certo, não é mulher que vive
Nas fezes da deshonra, em cujos labios
Só mentira e traição eterno habitão.
Tem uma alma innocente, um rosto bello,
E amor nos olhos...—mas não posso crê-la.
Dá, meo Deos, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão;
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meo coração.
Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei:—Sonhei comtigo!
Ineffavel prazer banhou meo peito,
Senti delicias; mas a sós commigo
Pensei—talvez!—e já não pude crê-la.
Ella tão meiga e tão cheia de encantos,
Ella tão nova, tão pura e tão bella...
Amar-me!—Eu que sou?
Meos olhos enxérgão, em quanto duvída
Minha alma sem crença, de força exhaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.
[Pg 27]
Máo grado meo, crer não posso,
Máo grado meo que assim é;
Queres ligar-te commigo
Sem no amor ter crença e fé?
Antes vai collar teo rosto,
Collar teo seio nevado
Contra o rosto mudo e frio,
Contra o seio d’um finado.
Ou supplíca a Deos commigo
Que me dê uma paixão;
Que me dê crença á minha alma,
E vida ao meo coração.

RECORDAÇÃO.

Nessun maggior dolore....

DANTE.

Quando em meo peito as afflicções rebentão
Eivadas de soffrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em circulos de ferro, com tal força,
Que delle o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de soffrer cançada,
Bem que affeita a soffrer, siquer não pode
Clamar: Senhor piedade;—e que os meos olhos
Rebeldes, uma lagrima não vertem
Do mar d’angustias que meo peito opprime:
Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós comtigo, em pratica serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sofregos, attentos
Sorvendo meos ouvidos,—nos teos olhos
Lendo os meos olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastára ainda
[Pg 28]
Porque de os ver me saciasse!... O pranto
Então dos olhos meos corre espontaneo,
Que não mais te verei.—Em tal pensando
De martyrios calar sinto em meo peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto soffre.

TRISTEZA.

Que leda noite!—Este ar embalsamado,
Este silencio harmonico da terra
Que sereno prazer n’alma cançada
Não expreme, não filtra, não diffunde?
A brisa lá susurra na folhagem
D’espessas matas, d’arvores robustas,
Que velão sempre e sós, que a Deos elevão
Mysterioso côro, que do Bardo
A crença quasi morta inda alimenta.
É esta a hora magica de encantos,
Hora d’inspirações dos céos descidas,
Que em delirio de amor aos céos remontão.
Aqui da vida as lastimas infindas,
Do myrrado egoismo a voz ruidosa
Não chegão; nem soluços, risos, festas,
—Hilaridade vã de turba incauta,
Nescia de ruim futuro; ou queixa amarga
Do decrepito velho, enfermo, exangue,
Nem do mancebo os ais doídos, preso
Ao leito do soffrer na flôr da vida.
Aqui reina o silencio, o religioso,
Morno socego, que povôa as ruinas,
E o mausoléo soberbo, carcomido,
E o templo magestoso, em cuja nave
Suspira ainda a nota maviosa,
O derradeiro arfar d’orgão solemne.
[Pg 29]
Em puro céo a lua resplandece,
Melancolica e pura, simelhando
Gentil viuva que pranteia o extincto,
O bello esposo amado, e vem de noite,
Vivendo pelo amor, máo grado a morte,
Ferventes orações chorar sobre elle.
Eu amo o céo assim, sem uma estrella,
Azul sem mancha,—a lua equilibrada
N’um céo de nuvens, e o frescor da tarde,
E o silencio da noite adormecida,
Que imagens vagas de prazer desenha.
Amo tudo o que dá no peito e n’alma
Tregoas ao recordar, tregoas ao pranto,
Á v’hemencia da dôr, á pertinacia
Tenaz e acerba de crueis lembranças;
Amo estar só com Deos, porque nos homens
Achar não pude amor, nem pude ao menos
Signal de compaixão achar entre elles.
Menti!—um inda achei; mas este em ocio
Feliz descança agora, em quanto aos ventos
E ao cru furor das verde-negras ondas
Da minha vida a barca aventureira
Insano confiei; em céo diverso
Luzem com luz diversa estrellas d’ambos.
Ai! triste, que houve tempo em que eu julgava
As duas uma só,—co’o mesmo brilho
Uma e outra nos céos meigas brilhavão!
Hoje scintilla a delle, em quanto a minha
Entre nuvens, sem luz, se perde agora.
Meo Deos, foi bom assim! No immenso pégo
Mais uma gota d’amargor que importa?
Que importa o fel na taça do absyntho,
Ou uma dôr de mais onde outras reinão?

O TROVADOR.

[Pg 30]

Elle cantava tudo o que merece de ser cantado; o que ha na terra de grande e de sancto—o amor e a virtude.—

N’uma terra antigamente
Existia um Trovador;
Na Lyra sua innocente
Só cantava o seo amor.
Nenhum saráo se acabava
Sem a Lyra de marfim,
Pois cantar tão alto e doce
Nunca alguem ouvira assim.
E quer donzella, quer dona,
Que sentira commoção
Pular-lhe n’alma, escutando
Do Trovador a canção;
De jasmins e de açucenas
A fronte sua adornou;
Mas só a rosa da amada
Na Lyra amante poisou.
E o Trovador conheceo
Que era trahido—por fim;
Poz-se a andar, e só se ouvia
Nos seus labios: ai de mim!
Enlutou de negro fumo
A rosa de seo amor,
Que meia occulta se via
Na gorra do Trovador;
Como virgem bella, morta
Da idade na linda flôr,
Que parece, o dó trajando,
Inda sorrir-se de amor.
[Pg 31]
No meio do seo caminho
Gentil donzella encontrou:
Canta—disse; e as cordas d’oiro
Vibrando, a triste cantou.
«Teo rosto engraçado e bello
«Tem a lindeza da flôr;
«Mas é risonho o teo rosto:
«Não tens de sentir amor!
«Mas tão bem por esse dia
«Que viverás, como a flôr,
«Mimosa, engraçada e bella,
«Não tens de sentir amor!
«Oh! não queiras, por Deos, homem que tenha
«Tingida a larga testa de pallor;
«Sente fundo a paixão,—e tu no mundo
«Não tens de sentir amor!
«Sorriso jovial te enfeita os labios,
«Nas faces de jasmim tens rosea côr;
«Fundo amor não se ri, não é corado...
«Não tens de sentir amor;
«Mas se queres amar, eu te aconselho,
«Que não guerreiro, escolhe um trovador,
«Que não tem um punhal, quando é trahido,
«Que vingue o seu amor.»
Do Trovador pelo rosto
Torva raiva se espalhou,
E a Lyra sua, tremendo,
Sem cordas d’oiro ficou.
Mais além no seo caminho
Donzel garboso encontrou:
Canta—disse; e argenteas cordas
Pulsando, o triste cantou.
[Pg 32]
«Aos homens da mulher enganão sempre
«O sorriso, o amor;
«É este breve, como é breve aquelle
«Sorriso enganador.
«Teo peito por amor, Donzel, suspira,
«Que é de jovens amar a formosura;
«Mas sabe que a mulher, que amor te jura,
«Dos lindos labios seos cospe a mentira!
«Já frenetico amor cantei na lyra,
«Delicias já sorvi n’um seo sorriso,
«Já venturas fruí do paraiso,
«Em terna voz de amor, que era mentira!
«O amor é como a aragem que murmura
«Da tarde no cahir—pela folhagem;
«Não volta o mesmo amor á formosura,
«Bem como nunca volta a mesma aragem.
«Não queiras amar, não; pois que a ’sperança
«Se arroja além do amor por largo espaço.
«Tens, brillando ao sol, a forte lança,
«Tens longa espada scintillante d’aço.
«Tens a fina armadura de Milão,
«Tens luzente e brillante capacete,
«Tens adága e punhal e bracelete
«E, qual lúcido espelho, o morrião.
«Tens fogoso corsel todo arreiado,
«Que mais veloz que os ventos sorve a terra;
«Tens duellos, tens justas, tens torneios,
«Que os fracos corações de medo cerra;
«Tens pagens, tens varletes e escudeiros
«E a marcha afoita, apercebida em guerra
«Do luzido esquadrão de mil guerreiros.
«Oh! não queiras amar!—Como entre a neve
«O gigante volcão borbulha e ferve
[Pg 33]
«E sulfurea chamma pelos ares lança,
«Que após o seo cahir torna-se fria;
«Assim tu acharás petrificada,
«Bem como a lava ardente do volcão,
«A lava que teo peito consumia
«No peito da mulher—ou cinza ou nada—
«Não frio mas gelado o coração!»
E o Trovador despeitoso
De prata as cordas quebrou,
E nas de chumbo seo fado
A lastimar começou.
«Que triste que é n’este mundo
«O fado d’um Trovador!
«Que triste que é!—bem que tenha
«Sua Lyra e seu amor.
«Quando em festejos descanta,
«Rasgado o peito com dôr,
«Mimoso tem de cantar
«Na sua Lyra—o amor!
«Como a um servo vil ordena
«Um orgulhoso Senhor,
«Canta, diz-lhe; quero ouvir-te:
«Quero descantes de amor!
«Diz-lhe o guerreiro, que apenas
«Lidou em justas de amor:
«—Minha dama quer ouvir-te,
«Canta, truão trovador!—
«Manda a mulher que nos deixa
«De beijos murchada flôr:
«—Canta, truão, quero ouvir-te,
«Um terno canto de amor!
[Pg 34]
«Mas se a mulher, que elle adora
«Atraiçôa o seo amor;
«Embalde busca a seo lado
«Um punhal—o Trovador!
«Se escuta palavras della,
«Que a outros jurão amor;
«Embalde busca a seo lado
«Um punhal—o Trovador!
«Se vê luzir de alguns labios
«Um sorriso mofador;
«Embalde busca a seo lado
«Um punhal—o Trovador!
«Que triste que é n’este mundo
«O fado d’um Trovador!
«Pezar lhe dá sua Lyra,
«Dá-lhe pezar seo amor!»
E o Trovador n’este ponto
A corda extrema arrancou;
E n’um marco do caminho
A Lyra sua quebrou:
Ninguem mais a voz sentida
Do Trovador escutou!

AMOR! DELIRIO—ENGANO.

Y el llanto que en su cólera derrama,
La hoguera apaga del antiguo amor!
ZORRILLA.
Amor! delirio—engano.... Sobre a terra
Amor tão bem fruí; a vida inteira
Concentrei n’um só ponto—ama-la, e sempre.
Amei!—dedicação, ternura, extremos
Scismou meo coração, scismou minha alma,
—Minha alma que na taça da ventura
Vida breve d’amor sorveo gostosa.
[Pg 35]
Eu e ella, ambos nós, na terra ingrata
Oásis, paraiso, eden ou templo
Habitámos uma hora; e logo o tempo
Com a foice roaz quebrou-lhe o encanto,
Doce encanto que o amor nos fabricára.
E eu sempre a via!... quer nas nuvens d’oiro,
Quando ia o sol nas vagas sepultar-se,
Ou quer na branca nuvem que velava
O circulo da lua,—quer no manto
D’alvacenta neblina que baixava
Sobre as folhas do bosque, muda e grave,
Da tarde no cahir; nos céos, na terra,
A ella, a ella só, vião meos olhos.
Seo nome, sua voz—ouvia eu sempre;
Ouvia-os no gemer da parda rola,
No trepido correr da veia argentea,
No respirar da brisa, no susurro
Do arvoredo frondoso, na harmonia
Dos astros ineffavel;—o seo nome!
Nos fugitivos sons de alguma frauta,
Que da noite o silencio realçavão,
Os ares e a amplidão divinisando,
Ouvião meos ouvidos; e de ouvil-o
Arfava de prazer meo peito ardente.
Ah! quantas vezes, quantas! junto d’ella
Não senti sua mão tremer na minha;
Não lhe escutei um languido suspiro,
Que vinha lá do peito á flor dos labios
Deslisar-se e morrer?! Dos seos cabellos
A magica fragrancia respirando,
Escutando-lhe a voz doce e pausada,
Mil venturas colhi dos labios d’ella,
Que instantes de prazer me futuravão.
Cada sorriso seo era uma esp’rança,
E cada esp’rança enlouquecer de amores.
[Pg 36]
E eu amei tanto!—Oh! não! não hão de os homens
Saber que amor, á ingrata, havia eu dado;
Que affectos melindrosos, que em meo peito
Tinha eu guardado para ornar-lhe a fronte!
Oh! não,—morra commigo o meo segredo;
Rebelde o coração murmure embora.
Que de vezes, pensando a sós commigo,
Não disse eu entre mim:—Anjo formoso,
Da minha vida que farei, se acaso
Faltar-me o teo amor um só instante;
—Eu que só vivo por te amar, que apenas
O que sinto por ti a custo exprimo?
No mundo que farei, como estrangeiro
Pelas vagas crueis á praia inhóspita
Exanime arrojado?—Eu, que isto disse,
Existo e penso—e não morri,—não morro
Do que outr’ora senti, do que ora sinto,
De pensar nella, de a revêr em sonhos,
Do que fui, do que sou e ser podia!
Existo; e ella de mim jaz esquecida!
Esquecida talvez de amor tamanho,
Derramando talvez n’outros ouvidos
Frases doces de amor, que dos seos labios
Tantas vezes ouvi,—que tantas vezes
Em extasis divino aos céos me alçárão,
—Que dando á terra ingrata o que era terra
Minha alma além das nuvens transportárão.
Existo! como outr’ora, no meo peito
Férvido o coração pular sentindo,
Todo o fogo da vida derramando
Em queixas mulherís, em molles versos.
E ella!... ella talvez nos braços d’outrem
Com sua vida alimenta uma outra vida,
Com o seo coração o de outro amante,
Que mais feliz do que eu, inferno! a goza.
Ella, que eu respeitei, que eu venerava
[Pg 37]
Como a reliquia sancta!—a quem meus olhos,
Receiando offendel-a, tantas vezes
De castos e de humildes se abaixárão!
Ella, perante quem sentia eu presa
A voz nos labios e a paixão no peito!
Ella, idolo meo, a quem o orgulho,
A força d’homem, o sentir, vontade
Propria e minha dediquei,—sugeita
Á voz de alguem que não sou eu,—desperta,
Talvez no instante em que de mim se lembra,
Por um osculo frio, por caricias
Devidas dum esposo!...
Oh! não poder-te,
Abutre roedor, cruel ciume,
Tua funda raiz e a imagem d’ella
No peito em sangue espedaçar raivoso!
Mas tu, cruel, que es meo rival, n’uma hora,
Em que ella só julgar-se, has de escutar-lhe
Um quebrado suspiro do imo peito,
Que d’éras ja passadas se recorda.
Has de escutal-o, e ver-lhe a côr do rosto
Enrubecer-se ao deparar comtigo!
Preza serás tambem d’átros cuidados,
Terás ciume, e soffrerás qual soffro:
Nem menor que o meo mal quero a vingança.

DELIRIO.

Quando dormimos nosso espirito véla.

ESCHYLO.

A noite quando durmo, esclarecendo
As trevas do meu somno,
Uma etherea visão vem assentar-se
Junto ao meu leito afflicto!
Anjo ou mulher? não sei.—Ah! se não fosse
Um qual véo transparente,
[Pg 38]
Como que a alma pura alli se pinta
Ao travez do semblante,
Eu a crêra mulher...—E tentas, louco,
Recordar o passado,
Transformando o prazer, que desfructaste,
Em lentas agonias?!
Visão, fatal visão, porque derramas
Sobre o meo rosto pallido
A luz de um longo olhar, que amor exprime
E pede compaixão?
Porque teo coração exhala uns fundos,
Magoados suspiros.
Que eu não escuto; mas que vejo e sinto
Nos teos labios morrer?
Porque esse gesto e morbida postura
De macerado espirito,
Que vive entre afflicções, que já nem sabe
Desfructar um prazer?
Tu fallas! tu que dizes? este accento,
Esta voz melindrosa,
N’outros tempos ouvi, porém mais leda;
Era um hymno d’amor.
A voz, que escuto, é magoada e triste,
—Harmonia celeste,
Que á noite vem nas azas do silencio
Humedecer as faces
Do que enxerga outra vida além das nuvens.
Esta voz não é sua;
É accorde talvez d’harpa celeste,
Cahido sobre a terra!
Balbucias uns sons, que eu mal percebo,
Doridos, compassados,
Fracos, mais fracos;—lagrimas despontão
Nos teos olhos brilhantes...
Choras! tu choras!... Para mim teos braços
Por força irresistivel
[Pg 39]
Estendem-se, procurão-me; procuro-te
Em delirio afanoso.
Fatídico poder entre nós ambos
Ergueo alta barreira;
Elle te enlaça e prende ... mal resistes...
Cédes emfim ... acórdo!
Acórdo do meo sonho tormentoso,
E chóro o meo sonhar!
E fecho os olhos, e de novo intento
O sonho reatar.
Embalde! porque a vida me tem preso;
E eu sou escravo seo!
Acordado ou dormindo, é triste a vida
Desque o amor se perdeo.
Ha comtudo prazer em nos lembrarmos
Da passada ventura,
Como o que educa flôres vicejantes
Em triste sepultura.

EPICEDIO.

Passa la bella donna e par che dorma.

TASSO.

Seo rosto pallido e bello
Já não tem vida nem côr!
Sobre elle a morte descança,
Involta em baço pallor.
Cerrárão-se olhos tão puros,
Que tinhão tanto fulgor;
Coração que tanto amava
Já hoje não sente amor;
Que o anjo bello da morte
A par desse anjo baixou!
Trocárão brandas palavras,
Que Deos sómente escutou.
[Pg 40]
Ventura, prazer, ledice
D’uma outra vida cantou;
E o anjo puro da terra
Prazer da terra engeitou.
Depois co’as azas candentes
O formoso anjo do céo
Roçou-lhe a face mimosa,
Cubrio-lhe o rosto co’um véo.
Depois o corpo engraçado
Deixou a terra sem vida,
De tenue pallor coberto,
—Verniz de estatua esquecida.
E bella assim, como um lirio
Murcho da sésta ao ardor,
Teve a innocencia dos anjos,
Tendo o viver d’uma flôr.
Foi breve!—mas a desgraça
A testa não lhe enrugou,
E aos pés do Deos que a creára
Alma inda virgem levou.
Sáe da larva a borboleta,
Sáe da rocha o diamante,
De um cadaver mudo e frio
Sáe uma alma radiante.
Não choremos essa morte,
Não choremos casos taes;
Quando a terra perde um justo,
Conta um anjo o céo de mais.

SOFFRIMENTO.

[Pg 41]

Meo Deos, Senhor meo Deos, o que ha no mundo
Que não seja soffrer?
O homem nasce, e vive um só instante,
E soffre até morrer!
A flôr ao menos, nesse breve espaço
Do seo doce viver,
Encanta os ares com celeste aroma,
Querida até morrer.
É breve o romper d’alva, mas ao menos
Traz comsigo prazer;
E o homem nasce e vive um só instante:
E soffre até morrer!
Meo peito de gemer já está cançado,
Meos olhos de chorar;
E eu soffro ainda, e já não posso alivio
Sequer no pranto achar!
Já farto de viver, em meia vida,
Quebrado pela dôr,
Meos annos hei passado, uns após outros,
Sem paz e sem amor.
O amor que eu tanto amava do imo peito,
Que nunca pude achar,
Que em balde procurei, na flôr, na planta,
No prado, e terra, e mar!
E agora o que sou eu?—Pallido espectro,
Que da campa fugiu;
Flôr ceifada em botão; imagem triste
De um ente que existio...
Não escutes, meo Deos, esta blasfemia;
Perdão, Senhor, perdão!
Minha alma sinto ainda,—sinto, escuto
Bater-me o coração.
[Pg 42]
Quando roja meo corpo sobre a terra,
Quando me afflige a dôr,
Minha alma aos céos se eleva, como o incenso,
Como o aroma da flôr.
E eu bemdigo o teo nome eterno e sancto,
Bemdigo a minha dôr,
Que vai além da terra aos céos infindos
Prender-me ao creador.
Bemdigo o nome teo, que uma outra vida
Me fez descortinar,
Uma outra vida, onde não ha só trevas,
E nem ha só penar.


[Pg 43]

VISÕES.


I.
PRODIGIO.

N’aquelle instante em que vacilla a mente
Do somno ao despertar, quando pejada
Vem doutros mundos de visões ethereas:
Quando sobre a manhã surge brilhante
A luz da madrugada,—eu vi!... nem sonhos
Era a minha visão, real não era;
Mas tinha d’ambos o talvez.—Quem sabe?
Foi caprixo fallaz da phantasia,
Ou foi certo aventar d’eras venturas?
A ira do Senhor baixou tremenda
Sobre uma vasta capital!—em pedra
Tomou-se a gente impura. Muitos homens
As portas ferreas, largas, vi sentados.
Melhor do que um pintor ou statuario
A morte, que de subito os colhera
No ardor, no afan da vida, conservou-lhes
A acção—partida em meio, com tal força,
Que a mente seo máo grado a completava.
Um tinha os labios entre-abertos; outro
Parecia sorrir; mais longe aquelle
Derramava um segredo, baixo, á medo,
Nos ouvidos do amigo; austero o guarda
Com rosto carregado e barba hirsuta
Nas mãos callosas sopesava a lança.
[Pg 44]
Dos mercadores na comprida rua
Passavão muitos compradores;—este
Contava montes d’oiro;—á luz aquelle
Expunha a seda do Indostão, de Tyro
A purpura brilhante, a damasquina
Custosa tela entretecida d’oiro.
Cortez sorrindo, o mercador gabava
As cores vivas, o tecido, o corpo
Do estofo que vendia. Nos serralhos
Era o Eunucho imperfeito; das Mesquitas
Bradava á prece o Muezzin...
—N’um largo,
Fofo e vasto divan sentado, um velho
Os versos lia do Alcorão;—só elle
D’entre tanto punir ficára illeso.

II.
A CRUZ.

Era um templo d’arabica structura,
Magestoso, elegante;—alem das nuvens
Se entranhava nos céos subtil a agulha;
Sobre o zimborio retumbante e vasto
Ondas e ondas de vapor crescião.
Dentro corrião tres compridas naves
Sobre dois renques de columnas, onde
Baixos relevos da sagrada historia
Da base ao capitel se emmaranhavão.
Ardia a luz na alampada sagrada;
No sagrado instrumento o som dormia.
Junto á cruz—da fachada egregia pompa—
Muitos homens eu vi de torvo aspecto;
Muitos outros, servís, com mão armada
Profundos golpes entalhavão nella.
Um daquelles no emtanto assim fallava:
[Pg 45]
«Quando esta humilde cruz rojar por terra;
«Levando a crença de Jesus comsigo
«Nós outros, da verdade Sacerdotes,
«Nós Doutores do mundo, nós Luzeiros
«Que desvendamos a impostura, o erro,
«A mentira sagaz, a crença louca,
«Entrada facil da razão no templo
«Teremos todos; e de então no throno,
«Do nescio vulgo imparciaes sob’ranos,
«Sanctos juises da verdade sancta,
«Pregaremos o justo, a paz, concordia
«E os seus deveres que dimanão faceis
«Do amor do lucro e do interesse; todos
«—Vasallos da razão, nossos vassallos—
«Um eden terreal farão do mundo.»
No emtanto aos crebros golpes do machado
A cruz pendia obliqua sobre a terra.
Creando novas forças com tal vista,
Os operarios mais frequentes golpes
Repetem, vibrão, continuão;—sôa
Por toda a parte o echo,—o som, mais longe,
Retumba, morre—e novamente echôa.
Nisto a cruz—geme—estrala; um grito sóbe
Unisono e geral!...
Como sois grande,
Senhor, Senhor meo Deos!—Eu vi, morrendo
Os obreiros cahir; e a cruz erguer-se,
Como aos raios do sol a flor mimosa
Que a raiva do tufão vergára insana.

III.
PASSAMENTO.

[Pg 46]

Era um quarto espaçoso;—alli se vião
Rojar no pavimento, ha pouco, as sedas,
Ricos tapetes multicor bordados,
E franjas complicadas d’um céo d’oiro
Pendentes,—vastos rases narradores
De lenda pia ou de briosos feitos.
Mas de tanto luzir, de tanto ornato
Ora por mãos aváras depredado
O vasto d’área revelava aos olhos,
Tendo n’um canto escuro um leito apenas.
Do leito alguem rasgára o cortinado.
E da curva amação polida e bella
Aqui, alli, pendia a seda em fios,
Bem como tranças de mulher formosa
Por sobre o seio nú.—Alli no leito
Jazia um moribundo; em torno os olhos
Cheios de pasmo e de terror volvia,
Bebendo pelos sofregos ouvidos
Mal sentido rumor d’outro aposento.
Confusas vozes, altercar ruidoso,
E o tinir de metal ouvia apenas!
Então por vezes tres no leito afflicto
Erguer-se maquinou de raiva insano!
Por tres vezes cahio, gemendo, sobre
O leito que da queda se sentia.
Da morte o cru torpor nos membros frios
Pouco e pouco s’espalha; mas teimoso
Da vida o amor debate-se nas ancias
Desse passo fatal...
—Eis nisto á porta.
Um Padre assoma,—d’entre as mãos erguidas
Da hostia sancta resplendor luzia;
E palavras de paz, de amor, divinas,
Que nos labios do justo Deos entorna,
[Pg 47]
Abundantes soltava. Longos annos
De piedoso soffrer o corpo enfermo
Alquebrárão por fim; as cãs nevadas
Raras tremião sobre a testa, como
Tremia na garganta a voz cançada.
Dizia o bom do velho:—«Irmão, nas ancias,
«No extremo agonisar da morte amiga
«Ergue os olhos ao céo;—do céo te venha
«Esse divino amor, que só lá mora,
«Que filtra por nossa alma, que nos deixa
«Mais celeste prazer, mais doce arroubo,
«Do que a terra sóe dar...
«Infames, trédos,
«Bufarinheiros de palavras, corvos
«De negro, feio agoiro, que esvoação
«Com grito grasnador por sobre o campo,
«Onde a peleja de reinar começa;
«Dizes-me tu—a mim! a mim que ao fóro
«Caminho inda hoje entre alas de clientes,
«Que so me visto de velludo e d’oiro,
«Em quanto vives de burel coberto,
«Co’os labios sobre o pó mordendo a terra!
«Dizes-me tu—a mim!...»
Ergueo-se,... e o corpo
Cahio de fraco sobre o leito; o velho
No emtanto humilde orava, que alma sancta
Do mal cabido insulto não se offende.
Jehovah, que entre myriadas
Vives de estrellas formosas,
Que das flôres melindrosas
Da terra—os anjos formaste;
Jehovah, que pela agoa
Lustrar quizeste o Messias,
Que ao beato, ao sancto Elias
Nas chammas purificaste;
[Pg 48]
Jehovah, que a mente apuras
No fogo do soffrimento,
Que divino, alto portento
Déste fazer á Moisés,
Quando a negra rocha dura
Tocando co’a tenue vara,
Rebentou a lympha clara,
Lambendo-lhe mansa os pés;
Jehovah, que eterno existes,
Cujo ser em si se encerra,
Que formaste o céo e a terra,
Que te chamas—o que é,[2]
—Faz, Senhor d’altos prodigios,
Com que a mente empedernida
Não se aparte desta vida
Sem sentir a sancta fé.
E tu, Christo, que soffreste
Martyrios por nosso amor,
Tu que foste o Salvador,
Salva-o, Senhor, por quem es.
Dá que em palavras piedosas
Se derrame contristado,
Como o rochedo tocado
Pela vara de Moisés.
E o confuso rumor do outro aposento
Crescia mais e mais.—Do moribundo
Os cúpidos herdeiros dividião
Por si a vasta herança; os torvos olhos
Ião de rosto a rosto, fusilando
Ameaças de morte.
No entanto o velho exanime e sem forças
Curtia amargos transes, que avarento,
E tendo a vida inutil presa a terra
Com toda a força d’alma,—agora em ancias
Sentia o halito vital fugir-lhe,
E a terra abandonal-o.
[Pg 49]
Estuava-lhe a dôr no peito afflicto!...
Só não chorava, que do pranto a fonte
Jazia extincta; mas pensava triste:
—Não tinha alguem que lhe cerrasse os olhos
Nem quem chorando lhe abrandasse o amargo
Do extremo agonisar.
E a mente, já medrosa, em feio quadro
Lhe pintava os seos feitos;—a vingança,
Que tão grande prazer lhe tinha sido,
Ora em martyrios se tomava; a chusma
Dos homicidios seus crescia torva,
E no leito o cercava.
Crença infantil! dizia; loucos, cegos
Prejuizos do vulgo;—e assim dizendo
Os vãos phantasmas repellir buscava.
Mas a crença infantil, os prejuizos
Do nescio vulgo, rispidos tornavão,
Como insecto importuno.
Debalde por não ver cerrava os olhos,
Sobre os olhos debalde as mãos crusava,
Que as sombras nos ouvidos lhe fallavão,
E mais distinctas se pintavão n’alma
—Tão bem molesta, qual se pinta o corpo
Do espelho no polido.
E do seo passamento o caso infando
Narrava uma após outra, sobre o peito
Mostrando o golpe funebre e cruento;
Sorvendo o fel da taça amarga o enfermo
Parecia sorrir!... era qual louco
Que soffre e um riso finge.
E das visões indo a fugir se arroja
De sobre o leito delirante; as sombras
Vôão sobre elle, e em circulo se ordenão.
O moribundo a esta, a aquella, a todas
Volvo o pavido rosto, no mover-se
Progressivo, incessante.
[Pg 50]
E preso ao duro embate da vertigem.
As mestas sombras ao redor com elle
Fugir sentia; o pavimento, a casa
Rapido rodava; a terra e tudo,
Como aos soluços d’um vulcão tremendo,
As forças lhe tolhião.
E o orgulhoso que feliz vivera,
Movendo a seo bom grado mil escravos,
Querendo a terra dominar co’um gesto;
Ora mesquinho, solitario e louco,
Face a face lutando com seos crimes,
Morria impenitente.

IV.
——

Era o vulto de um homem morto que afastando o sudario se hia erguer do tumulo para revelar alguns dos temerosos mysterios, que encerra a apparente quietação dos sepulchros.

O PRESBYTERO.

O negrume da noite avulta; e cresce
Mais feia a escuridão
Á luz da sacra pyra que derrama
Frouxo e tibio clarão.
Calou-se o canto, a prece,—é mudo o templo;
Apenas fraco sôa
Da torre o bronze, que a nocturna brisa
De rumores povôa.
Mas eis que de um sepulchro a pedra fria
S’ergue e sobre outras cáe.
Não se escuta rumor!—da campa livre
Medroso espectro sáe.
O rosto ossificado em torno volve,
Volve a suja caveira;
Do liso craneo os longos dedos varrem
A funebre poeira.
[Pg 51]
Mas inda inteiro o coração se via
Do peito nas cavernas,
Inda sangrento lagrimas chorava
De negro sangue eternas.
E caminhando, qual se move a sombra,
Ao orgão e assentou!
Já não dormem os sons, não dormem echos...
—O triste assim cantou:
«Onde estás, meo amor, meos encantos
Por quem só me pezava morrer,
Doce encanto que a vida me prendes,
Que inda em morto me fazes soffrer?
«Doce amor, minha vida no mundo,
Desse mundo em que parte serás;
Em que scismas, que pensas, que fazes,
Onde estás, meo amor, onde estás?
«Ah! debalde na campa gelada
Fria morte me poude deitar!
Foi debalde,—que eu sinto, que eu ardo;
Foi debalde, que eu amo a penar.
«Ah! si eu triste no mundo podesse
Como outr’ora viver, respirar....
Não soubera dizer-te os ardores
Que o sepulchro não poude apagar.
«Onde estás?—Já da morte o bafejo
Por teo rosto divino roçou;
Já na campa descanças finada,
Que o teo corpo sem vida tragou?
«Mas a morte não poude impiedosa
Crua foice vibrar contra ti!
Ah! tu vives, que eu sinto, que eu soffro
Crús ardores quaes sempre soffri.
[Pg 52]
«E eu não posso o teo nome á noitinha
Entre as folhas saudoso cantar,
Nem seguir-te nas azas da brisa,
Nem teo somno de sonhos doirar.
«Nem lembrar-te os queridos instantes
Que a teo lado arroubado passei,
Sem cuidados de incerto futuro,
Só cuidoso da vida que amei.
«Não te lembras da noite homicida
Em que um ferro meo peito varou,
Quando a facil conversa de amores
Teo marido cioso quebrou?!
«Desde então hei penado sósinho,
Verte sangue meo peito—de então;
Poude a morte acabar-me a existencia,
Mas delir-me não poude a paixão!
«Nosso adultero affecto no mundo
Não se acaba;—assim quiz o Senhor!
Não se acaba...—qu’importa?—hei gozado
Teos encantos gentis, teo amor.
«Por te amar outras fragoas soffrera,
Outros transes e dôr e penar;
Oh! poder que eu podesse outra vida
E outro inferno soffrer por te amar!»
Mas da aurora ja raiava
Macio e brando clarão;
Macia e branda a canção
Do negro espectro soava.
E medroso se collava
Ao orgão seo negro véo,
Que imiga não se ajuntava
Ao seo vulto a luz do céo.
[Pg 53]
Pouco a pouco se perdia
O negro espectro; a canção
Pouco a pouco enfraquecia:
Do dia ao tenue clarão,
Era o cantar um soído
Fraco, incerto e duvidoso;
Era o vulto pavoroso
D’uma sombra vão tremido.

V.
A MORTE.

Dans sa douleur elle se trouvait malheureuse d’être immortelle.

FÉNÉLON.

Da aurora vinha nascendo
O grato e bello clarão;
Eu sonhava! já mais brandos
Erão meos sonhos então.
Condensou-se o ar n’um ponto,
Cresceo o subtil vapor;
Vi formada uma belleza,
Cheia de encantos, de amor.
Mas na candura do rosto
Não se pintava o carmim;
Tinha um quê de cera juncto
Á nitidez do marfim.
—Quem es tu, visão celeste,
Bello Archanjo do Senhor?
Respondeo-me:—Sou a Morte,
Cru phantasma de terror!
[Pg 54]
—Ah! lhe tornei: Es a morte,
Tão formosa e tão cruel!
—Correndo o mundo sósinha
No meo pallido corsel,[3]
Assim dizia—«Tu julgas
Que não tenho coração,
Que executo os meos deveres
Sem pesar, sem afflicção?
—Que inda em flôr da vida arranco
Ao joven, sem compaixão,
Á donzella pudibunda
Ou ao longévo ancião?
—Oh! não, que eu soffro martyrios
Do que faço aos mais soffrer,
Soffro dôr de que outros morrem,
De que eu não posso morrer;
—Mas em parte a dôr me cura
Um pensamento, que é meo,—
Lembro aos humanos que a terra
É só passagem pr’a o céo.
—Faço ao triste erguer os olhos
Para a celeste mansão;
Em labios que nunca orárão
Derramo pia oração.
—É meo poder quem apura
Os vicios que a mente encerra,
Ao fogo da minha dôr;
Sou quem prendo aos céos a terra,
Sou quem prendo aos céos a terra,
Ao ser do seo Creador.
[Pg 55]
—Mas qu’importa? Sem descanço
É-me forçoso marchar,
Abater impías frontes,
Regias frontes decepar.
—Passar ao travez dos homens
Como um vento abrasador;
Como entre o feno maduro
A foice do segador.
—E prostrar uma após outra
Geração e geração,
Como peste que só reina
Em meio da solidão.»—
Desponta o sol radioso
Entre nuvens de carmim;
Cessa o canto pesaroso,
Como corda aurea de Lyra;
Que se parte, que suspira
Dando um gemido sem fim.

O VATE.

NO ALBUM DE UM POETA.

Moi ... j’aimerai ta victoire;
Pour mon coeur, ami de toute gloire,
Les triomphes d’autrui ne sont pas un affront.
Poète, j’eus toujours un chant pour les poètes,
Et jamais le laurier qui pare d’autres têtes
Ne jeta d’ombre sur mon front.
V. HUGO.
Vate! vate! que es tu?—Nos seos extremos
Fadou-te Deos um coração de amores,
Fadou-te uma alma accesa borbulhando
Hardidos pensamentos, como a lava
Que o gigante Vesuvio arroja ás nuvens.
[Pg 56]
Vate! vate! que es tu?—Foste no principio
Sacerdote e propheta;
Erão nos céos teos cantos uma prece,
Na terra um vaticinio.
E elle cantava então:—Jehovah me disse,
Magestoso e terrivel.
«Vês tu Jerusalém como orgulhosa
«Campêa entre as nações, como no Libano
«Um cedro a cuja sombra a hyssope cresce?
«Breve a minha ira transformada em raios
«Sobre ella cahirá;
«Um fero vencedor dentro em seos muros
«Tributaria a fará;
«E quando escravos seos filhos, sobre pedra
«Pedra não ficará.»
E os reprobos de sacco se vestião;
Em pó, em cinza involtos;
E collando co’a terra os torpes labios,
E açoitando co’as mãos o peito imbelle,
Senhor! Senhor!—clamavão.
E o vate emtanto o pallido semblante
Meditabundo sobre as mãos firmava,
Supplicando ao Senhor do interno d’alma.
Forão sanctos então.—Homero o mundo
Creou segunda vez,—o inferno o Dante,—
Milton o paraiso,—forão grandes!
E hoje!... em nosso exilio erramos tristes,
Mimosa esp’rança ao infeliz legando,
Maldizendo a soberba, o crime, os vicios;
E o infeliz se consola, e o grande treme.
Damos ao infante aqui do pão que temos,
E o manto além ao misero rachitico;
Somos hoje Christãos.

Á MORTE PREMATURA DA ILLma Sra D.....

[Pg 57]

(No album de seo Irmão Dr. J. D. Lisboa Serra.)

Il semble que le ciel aux coeurs les plus magnanimes
Mesure plus de maux.
LAMARTINE.
Perfeita formosura em tenra idade
Qual flôr, que anticipada foi colhida,
Murchada está da mão da sorte dura.
CAMÕES, Soneto.
Lá, bem longe d’aqui, em tarde amena,
Gozando a viração das frescas auras,
Que do Brazil os bosques brandamente
Fazião balançar,—e que espalhavão
No ether encantado odor, pureza—
Do que a rosa mais bella,—meiga e casta,
Como as virgens do sol,
Que de vezes não foi ella pendente
Dos braços fraternaes em meigo abraço;
Como mimosa flôr presa, enlaçada
A tenro arbusto que a vergontea debil
Lhe ampara docemente!...
E o Irmão que só n’ella se revia,
O Irmão que a adorava, qual se adora
Um mimo do Senhor;
Que a tinha por pharol, conforto e guia,
Os seos dias contava por encantos;
E as virtudes co’os dias pleiteavão.
E ella morreo no viço de seos annos!...
E a lagem fria e muda dos sepulchros
Se fechou sobre o ente esmorecido
Ao despontar de vida
Tão rica de esperanças e tão cheia
De formosura e graças!...
[Pg 58]
Campa! campa! que de terror incutes!
Quanto esse teo silencio me horrorisa!
E quanto se assemelha a tua calma
A do cruel malvado que impassivel
Contempla a sua victima torcer-se
Em convulsões horriveis, desesp’radas;
Crúas vascas da morte!...
Quem tão má te creou?
Tu que tragas o ente que esmorece
Ao despontar de vida
Tão rica de esperanças e tão cheia
De formosura e graças?!
O pharol se apagou! a luz sumio-se!
Como o fugaz clarão do meteóro,
Extinguio-se a esperança;—e o mal-fadado
Sobre a terra deserta em vão procura
Traços d’essa que amou, que tanto o amára;
Da joven companheira de seos brincos,
Pezares e alegrias.
Elle a procura!... o viajor pasmado
Nos campos de Pompéia, alonga a vista
Pela amplidão do praino,
Destroços e ruinas encontrando,
Onde esperava movimento e vida.
Não poder eu a troco de meu sangue
Poupar-te dessas lagrimas metade!
Oh! poder que eu podesse!—e almo sorriso,
Que tanto me compraz ver-te nos labios,
Inda uma vez brilhasse!
E essa existencia,
Que tão cara me é, t’a visse eu leda,
E feliz como a vida dos Archanjos!
Infeliz é quem chora: ella finou-se,
Porque os anjos á terra não pertencem;
Mas lá dos immortaes sobre os teos dias
A suspirada irmã vela incessante.
[Pg 59]
Vinde, candidas rosas, açucenas,
Vinde, roxas saudades;
Orvalhai, tristes lagrimas, as c’roas,
Que hão de a campa adornar por mim depostas
Em holocausto á victima da morte.
Innocencia, pudor, belleza e graça
Com ella n’essa campa adormecêrão.
Anjo no coração, anjo no rosto,
Devera o amor chorar sobre o teo seio,
Que não grinaldas funebres tecer-te;
Devera voz d’esposo acalentar-te
O somno da innocencia,—não grosseira
Canção de trovador não conhecido.
COIMBRA, Junho de 1841.

A MENDIGA.

Donnez:—
Et quand vous paraîtrez devant le juge austère,
Vous direz: J’ai connu la pitié sur la terre,
Je puis la demander aux cieux!
TURQUETY.

I.

Eu sonhei durante a noite...
Que triste foi meo sonhar!
Era uma noite medonha,
Sem estrellas, sem luar.
E ao travez do manto escuro
Das trevas, meos olhos vião
Triste mendiga formosa,
Qu’infortunios consumião.
Era uma pobre mendiga,
Porém candida donzella;
Pudibunda, affavel, doce,
Amorosa, e casta, e bella.
[Pg 60]
Vestia rotos andrajos,
Que o seo corpo mal cubrião;
Por vergonha os olhos d’ella
Sobre ella se não volvião.
Pelas costas descobertas
Cortador o frio entrava;
Tinha fome e sede,—e o pranto
Nos seus olhos borbulhava.
E qual vemos dos céos descendo rapido
Um fugaz meteóro, vi descendo
Um anjo do Senhor;—parou sobre ella,
E mudo a contemplava.—Uma tristeza
Sympathica, indizivel pouco e pouco
Do anjo nas feições se foi pintando:
Qual tristeza de irmão que a irmã mais nova
Conhece enferma e chóra.—Ella no peito
Menor sentiu a dôr, e humilde orava.

II.

De um vasto edificio nas frias escadas
Eu vi-a sentada;—era um templo, dizião
Secreto concilio de socios piedosos,
Que o bem tinha juntos, que bem só fazião.
Defronte um palacio soberbo se erguia,
E d’elle partia confuso rumor:
—A dança girava, e a orchestra sonora
Cantava alegria, prazeres e amor.
E quando ao palacio um conviva chegava,
Rugindo-se abria o ruidoso portão;
Effluvios de incenso nos ares corrião
Da rua esteirada com vivo clarão.
E a triste mendiga alli ’stava ao relento,
Com fome, com frio, com sede e com dôr;
E eu vi o seo anjo, mais triste no aspecto,
Mais baço, mais turvo da gloria o fulgor.
[Pg 61]
E á porta do vasto sombrio edificio
Um vulto chegou.
—Senhor, uma esmola!—bradou-lhe a mendiga:
E o vulto parou.
E rude no accento, no aspecto severo,
Lhe disse:—O teo nome?—
Tornou-lhe a mendiga:—Senhor, uma esmola,
Que eu morro de fome.
—Não dizes teo nome?—lhe torna o soberbo.
—Sou orphã, sosinha;
Meo nome qu’importa, se eu soffro, se eu gemo,
Se eu chóro mesquinha!
Em vís meretrises não cabe esse orgulho,
Tornou-lhe o Senhor,
Que á noite, nas trevas, contractão no crime,
Vendendo o pudor.
E a porta do templo—erguido á piedade
Com força batia;
Co’o peso do insulto accrescido a crueza
A triste gemia.

III.

Ouvi depois um rodar que a todo o instante
Mais distincto se ouvia; e logo um forte,
Fascinador clarão por toda a rua
Se derramou soberbo.—Infindos pagens
Ricas librés trajando, mil archotes
Nos ares revolvião;—fortes, rapidos,
Fumegantes corseis, sorvendo a terra,
Tiravão rica sege melindrosa.
Sobre a terra saltou airosa e bella
A dona, em frente do festivo paço;
E a mendiga bradou:—Senhora minha,
Dai uma esmola, dai!—Á voz dorida
Volveo-se o rosto d’anjo, porém d’anjo
[Pg 62]
Não era o coração;—foi-lhe importuno,
Mais que importuno ... da mesquinha o grito!
E da mendiga o protector celeste
Parecia fallar em favor d’ella;
E a rica dona o escutava, como
Se ouvisse a interna voz que dentro mora.
E eu dizia tambem:—Ó bella Dona,
Dai-lhe uma esmola, dai;—de que vos serve
Um óbolo mesquinho, que não póde
Siquer um diche sem valor comprar-vos?
Ah! bella como sois, que vos importão
Custosas flôres, com que ornais a fronte?
Para a salvar do vortice do crime,
O preço d’ellas, de uma só, da coisa,
Que sem valor julgardes, é bastante.
Sabeis?—Além da vida, além da morte,
Quando deixardes o oiropel na campa,
Quando subirdes do Senhor ao throno,
Sem andrajos siquer, tambem mendiga,
Alli tereis as lagrimas do pobre,
A benção do affligido, a prece ardente
Do que soffrendo vos bemdice,—ó Dona...
........................................
Fechou-se a porta festival sobre ella!
E a donzella se ergueo, córou de pejo,
Lançando os olhos pela rua escusa,
E segura no andar, e firma, á porta
Do palacio bateo—entrou—sumio-se.
E o anjo, como afflicto sob um peso,
Um gemido soltou; era uma nota
Melancolica e triste,—era um suspiro
Mavioso de virgem,—um soído
Subtil, mimoso, como d’Harpa Eolia,
Que a brisa da manhã roçou medrosa.

IV.

Dos muros ao travez meos olhos virão
Soberba roda de convivas,—todos
[Pg 63]
Velludos, sedas, e custosas galas
Trajavão senhoris.—Reinava o jogo
Aváro e grave, leda e viva a dança
Em vortices girava, a orchestra doce
Cantava occulta; condensados, bastos,
Em redor do banquete estavão muitos.
A mendiga alli estava,—não trajando
Sujos farrapos, mas delgadas telas.
Chovião brindes e canções e vivas
Á Deosa airosa do banquete; todos
Um volver dos seos olhos, um sorriso,
Uma voz de ternura, um mimo, um gesto
Cubiçavão rivaes;—e alli com ella,
Como um raio do sol por entre as nuvens
Lá na quadra hibernal penetra a custo
Quasi sem vida, sem calor, sem força,
Menos brilhante vi seo anjo bello.
Nos curtos labios da feliz mendiga
Passava rapido um sorriso ás vezes;
Outras chorava, no volver do rosto,
Na taça do prazer sorvendo o pranto.
Encontradas paixões sentia o anjo:
Parecia chorar co’o seo sorriso,
Parecia sorrir co’o choro della.

A ESCRAVA.

O bien qu’aucun bien ne peut rendre,
Patrie, doux nom que l’exil fait comprendre!
MARINO FALIERO.
Oh doze paiz de Congo,
Doces terras d’além mar!
Oh! dias de sol formoso!
Oh! noites d’almo luar!
Desertos de branca areia
De vasta, immensa extensão,
Onde livre corre a mente,
Livre bate o coração!
[Pg 64]
Onde a leda caravana
Rasga o caminho passando,
Onde bem longe se escuta
As vozes que vão cantando!
Onde longe inda se avista
O turbante musulmano,
O Yatagan recurvado,
Preso a cinta do Africano!
Onde o sol na areia ardente
Se espelha, como mar;
Oh! doces terras de Congo,
Doces terras d’além mar!

Quando a noite sobre a terra
Desenrolava o seo véo,
Quando siquer uma estrella
Não se pintava no céo;
Quando só se ouvia o sopro
De mansa brisa fagueira,
Eu o aguardava—sentada
Debaixo da bananeira.
Um rochedo ao pé se erguia,
D’elle á base uma corrente
Despenhada sobre pedras,
Murmurava docemente.
E elle ás vezes me dizia:
—Minha Alsgá, não tenhas medo;
Vem commigo, vem sentar-te
Sobre o cimo do rochedo.
E eu respondia animosa:
—Irei comtigo, onde fores!—
E tremendo e palpitando
Me cingia aos meos amores.
[Pg 65]
Elle depois me tornava
Sobre o rochedo—sorrindo:
—As agoas d’esta corrente
Não vês como vão fugindo?
Tão depressa corre a vida,
Minha Alsgá; depois morrer
Só nos resta!...—Pois a vida
Seja instantes de prazer.
Os olhos em tomo volves
Espantados—Ah! tão bem
Arfa o teo peito anciado!...
Acaso temes alguem?
Não receis de ser vista,
Tudo agora jaz dormente;
Minha voz mesmo se perde
No fragor d’esta corrente.
Minha Alsgá, porque estremeces
Porque me foges assim?
Não te partas, não me fujas,
Que a vida me foge a mim!
Outro beijo acaso temes,
Expressão de amor ardente?
Quem o ouvio?—o som perdeo-se
No fragor d’esta corrente.
Assim praticando amigos
A aurora nos vinha achar!
Oh! doces terras de Congo,
Doces terras d’além mar!

Do rispido Senhor a voz irada,
Rabida sôa,
Sem o pranto enchugar a triste escrava
Pavida vôa.
[Pg 66]
Mas era em mora por scismar na terra,
Onde nascera,
Onde vivera tão ditosa, e onde
Morrer devera!
Soffreo tormentos, porque tinha um peito,
Qu’inda sentia;
Misera escrava! no soffrer cruento,
Congo! dizia.

AO DR. JOÃO DUARTE LISBOA SERRA.

23 de Agosto.

Mais um pungir de acerrima saudade,
Mais um canto de lagrimas ardentes,
Oh! minha Harpa,—oh! minha Harpa desditosa.
Escuta, ó meu amigo: da minha alma
Foi uma lyra outr’ora o instrumento;
Cantava n’ella amor, prazer, venturas,
Até que um dia a morte inexoravel
Triste pranto de irmão veio arrancar-te!
As lagrimas dos olhos me cahirão,
E a minha lyra emmudeceo de magoa!
Então aventei eu que a vida inteira
Do bardo, era um perenne sacerdocio
De lagrimas e dôr;—tomei uma Harpa:
Na corda da afflicção gemeo minha alma,
Foi meo primeiro canto um epicedio;
Minha alma baptizou-se em pranto amargo,
Na fragoa do soffrer purificou-se!
Lancei depois meos olhos sobre o mundo,
Cantor do soffrimento e da amargura;
E vi que a dôr aos homens circumdava,
Como em roda da terra o mar se estreita;
[Pg 67]
Que apenas desfructamos,—miserandos!
Desbotado prazer entre mil dôres,
—Uma rosa entre espinhos aguçados,
Um ramo entre mil vagas combatido.
Voltou-se então p’ra Deos o meo esp’rito,
E a minha voz queixosa perguntou-lhe:
—Senhor, porque do nada me tiraste,
Ou porque a tua voz omnipotente
Não fez seccar da minha vida a seve,
Quando eu era principio e feto apenas?
Outra voz respondeo-me dentro d’alma:
—Ardão teos dias como o feno,—ou durem
Como o fogo de tocha resinosa,
—Como rosa em jardim sejão brilhantes,
Ou baços como o cardo montesinho,
Não deixes de cantar, ó triste bardo.—
E as cordas da minha harpa—da primeira
Á extrema—da maior á mais pequena,
Nas azas do tufão—entre perfumes,
Um cantico de amores exaltárão
Ao throno do Senhor;—e eu disse ás turbas:
—Elle nos faz gemer porque nos ama;
Vem o perdão nas lagrimas contritas,
Nas azas do soffrer desce a clemencia;
Sobre quem chora mais elle mais vela!
Seo amor divinal é como a lampada,
Na abobada d’um templo pendurada,
Mais luz filtrando em mais opácas trevas.
Eu o conheço:—o cantico do bardo
É balsamo ao que morre,—é lenitivo,
Mas doloroso, mas funereo e triste
A quem lhe carpe infausto a morte crúa.
Mas quando a alma do justo, espedaçando
O envolucre de lodo, aos céos remonta,
Como estrada de luz correndo os astros,
Seguindo o som dos canticos dos anjos
[Pg 68]
Que na presença do Senhor se elevão;
Choro ... tão bem Jesus chorou a Lazaro!
Mas na excelsa visão que se me antolha
Bebo consolações,—minha alma anceia
A hora em que tão bem ha de asilar-se
No seio immenso do perdão do Eterno.
Chora amigo; porém quando sentires
O pranto nos teos olhos condensar-se,
Que já não póde mais banhar-te as faces,
Ergue os olhos ao céo, onde a luz móra,
Onde o orvalho se cria, onde parece
Que a timida esperança nasce e habita.
E se eu—feliz!—poder inda algum dia
Ferir por teo respeito na minha harpa
A leda corda onde o prazer palpita,
A corda do prazer que ainda inteira,
Que virgem de emoção inda conservo,
Suspenderei minha harpa d’algum tronco
Em off’renda á fortuna;—alli sosinha,
Tangida pelo sopro só do vento,
Ha de mysterios conversar co’a noite,
De acorde extreme perfumando as brisas;
Qual Harpa de Sião presa aos salgueiros
Que não ha de cantar a desventura,
Tendo cantos gentis vibrado n’ella.

O DESTERRO DE UM POBRE VELHO.

Et dulces moriens reminiscitur Argos.

VIRG.

O! schwer ist’s, in der Fremde sterben unbeweint!

SCHILLER.

A aurora vem despontando,
Não tarda o sol a raiar;
Cantão aves,—a natura
Já começa a respirar.
[Pg 69]
Bem mansa na branca areia
Onda queixosa murmura,
Bem mansa aragem fagueira
Entre a folhagem susurra.
É hora cheia de encantos,
É hora cheia de amor;
A relva brilha enfeitada,
Mais fresca se mostra a flôr.
Esbelta joga a fragata,
Como um corsel a nitrir;
Suspensa a amarra tem presa,
Suspensa, que vai partir.
Em demanda da fragata,
Leve barco vem vogando;
Nelle um velho cujas faces
Mudo choro está cortando.
Quem era o velho tão nobre,
Que chorava,
Por assim deixar seos lares,
Que deixava?
«Ancião, porque te ausentas?
Corres tu traz de ventura?
Louco! a morte já vem perto,
Tens aberta a sepultura.
«Louco velho, já não sentes
Bater frouxo o coração?
Oh! que o sente!—É lei d’exilio
A que o leva em tal sazão!
«Não ver mais a cara patria,
Não ver mais o que deixava,
Não ver nem filhos, nem filhas,
Nem o casal, que habitava!...
[Pg 70]
«Oh! que é má pena de morte,
A pena de proscripção;
Traz dôres que martyrisão,
Negra dôr de coração!
«Pobre velho!—longe, longe
Vás sustento mendigar;
Tens de soffrer novas dôres,
Novos males que penar.
«Não t’ha de valer a idade,
Nem a dôr tamanha e nobre;
Tens de tragar vis affrontas,
—Insultos que soffre o pobre!
«Nada acharás no degredo,
Que falle dos filhos teos;
Ninguem sente a dôr do pobre...
Só te fica a mão de Deos.
«O sol, que além vês raiando
Entre nuvens de carmim,
N’outros climas, n’outras terras
Não verás raiar assim.
«Não verás a rocha erguida,
Onde t’ias assentar,
Nem o som bem conhecido
Do teo sino has de escutar.
«Ha de cahir sobre as ondas
O pranto do teo soffrer,
E n’esse abysmo salgado,
Salgado, se ha de perder.»
Já chegou junto á fragata,
Já na escada se apoiou,
Já com voz intercortada
Ultimo adeos soluçou.
[Pg 71]
Canta o nauta, e sólta as velas
Ao vento que o vai guiar;
E a fragata mui veleira
Vai fugindo sobre o mar.
E o velho sempre em silencio
A calva testa dobrou,
E pranto mais abundante
O rosto senil cortou.
Inda se vê branca a vela
Do navio, que partio;
Mais além—inda se avista!
Mais além—já se sumio!

O ORGULHOSO.

Eu o vi!—tremendo era no gesto,
Terrivel seo olhar;
E o senho carregado pretendia
O globo dominar.
Tremendo era na voz, quando no peito
Fervia-lhe o rancor!
E aos demais homens, como um cedro á relva,
Se cria sup’rior.
E o pobre agricultor, junto a seus filhos,
Dentro do humilde lar,
Quizera, antes que os d’elle, ver de um Tigre
Os olhos fusilar:
Que a um filho seo talvez quizera o nobre
Para um Executor;
Ou para o leito infesto alguma filha
Do triste agricultor.
[Pg 72]
Quem ousaria resistir-lhe?—Apenas
Algum pobre ancião
Já sobre o seo sepulchro, desejando
A morte e a salvação.

Alguns dias apenas decorrêrão;
E eis que elle se sumio!
E a lagem dos sepulchros fria e muda
Sobre elle já cahio.
E o barbaro tropel dos que o servião
Exulta com seo fim!
E a turba applaude; e ninguem chora a morte
De homem tão ruim.

O COMETA.

AO SR. FRANCISCO SUTERO DOS REIS.

Non est potestas, quae comparetur ei
qui factus est ut nullum timeret.

JOB.

Eis nos céos rutilando igneo cometa!
A immensa cabelleira o espaço alastra,
E o nucleo, como um sol tingido em sangue,
Alvacento luzir vérte agoireiro
Sobre a pavida terra.
Poderosos do mundo, grandes, povo,
Dos labios removei a taça ingente,
Que em vossas festas gyra; eis que rutila
O sanguineo cometa em céos infindos!...
Pobres mortaes,—sois vermes!
O Senhor o formou terrivel, grande;
Como indocil corsel que morde o freio,
Retinha-o só a mão do Omnipotente.
Alfim lhe disse:—Vai, Senhor dos Mundos,
Senhor do espaço infindo.
[Pg 73]
E qual louco temido, ardendo em furia,
Que ao vento solta a coma desgrenhada,
E vai, nescio de si, livre de ferros,
De encontro ás duras rochas,—tal progrede
O cometa incansavel.
Se na marcha veloz encontra um mundo,
O mundo em mil pedaços se converte;
Mil centelhas de luz brilhão no espaço
A esmo, como um tronco pelas vagas
Infrenes combatido.
Se junto d’outro mundo acaso passa,
Comsigo o arrastra e leva transformado;
A cauda portentosa o enlaça e prende,
E a astro vai com elle, como argueiro
Em turbilhão levado.
Como Leviathan perturba os mares,
Elle perturba o espaço;—como a lava,
Elle marcha incessante e sempre;—eterno,
Marcou-lhe largo gyro a lei que o rege,
—As vezes o infinito.
Elle carece então da eternidade!
E aos homens diz—e magestoso e grande
Que jamais o verão; e passa, e longe
Se entranha em céos sem fim, como se perde
Um barco no horisonte!

O OIRO.

Oiro,—poder, encanto ou maravilha
Da nossa idade,—regedor da terra,
Que dás honra e valor, virtude e força,
Que tens offertas, oblações e altares,—
Embora teo louvor cante na lyra
Vendido Menestrel que pôde insano
Do grande á porta renegar seo genio!
[Pg 74]
Outro, sim, que não eu.—Bardo sem nome,
Com pouco vivo;—sobre a terra, á noite,
Meo corpo lanço, descançando a fronte
N’um tronco ou pedra ou mal nascido arbusto.
Sou mais que um rei co’o meo docel de nuvens
Que tem gravados scintillantes mundos!
Com a vista no céo percorro os astros,
Vagueia a minha mente além das nuvens,
Vagueia o meo pensar—alto, arrojado
Além de quanto o olhar nos céos alcança.
Então do meo Senhor me calão n’alma
D’amor ardente enlevos indiziveis;
Se tento ás gentes redizer seo nome,
Queimadoras palavras se atropellão
Nos meos labios;—prophetica harmonia
Meo peito anceia, e em borbotões se expande.
Grandes, Senhor, são tuas obras, grandes
Tens prodigios, teo poder immenso:
O pae ao filho o diz, um sec’lo a outro,
A terra ao céo, o tempo á eternidade!
Do mundo as illusões, vaidade, engano,
Da vida a mesquinhez—prazer ou pranto—
Tudo esse nome arrastra, prostra e some;
Como aos raios do sol desfeito o gelo,
Que em ondas corre no pendor do monte,
Precipite e ruidoso,—arbustos, troncos
Comsigo no passar rompidos leva.

A UM MENINO.

OFFERECIDA Á EXma Sra D. M. L. L. V.

I.

Gentil, engraçado infante
Nos teos jogos inconstante,
Que tens tão bello semblante,
[Pg 75]
Que vives sempre a brincar,
—Dos teos brinquedos te esqueces
Á noitinha,—e te entristeces
Como a bonina,—e adormeces,
Adormeces a sonhar!

II.

Infante, serão as côres
De varias, viçosas flôres,
Ou são da aurora os fulgores
Que vem teos sonhos doirar?
Foi de algum ente celeste,
Que de luzeiros se veste,
Ou da brisa é que aprendeste,
Que aprendeste a suspirar?

III.

Tens no rosto afogueado
Um qual retrato acabado
De um sentir aventurado,
Que te ri no coração;
É talvez a voz mimosa
De uma fada caprichosa,
Que te promette amorosa
Algum brilhante condão!

IV.

Ou por ventura es contente,
Porque no sonho, que mente,
Phantasiaste innocente
Algum dos brinquedos teos!...
Senhor, tens bondade infinda!
Fizeste a aurora bem linda,
Creaste na vida ainda
Um’outra aurora dos céos.

V.

O som da corrente pura,
A folhagem que susurra,
Um accento de ternura,
[Pg 76]
De ternura divinal;
A indizivel harmonia
Dos astros no fim do dia,
A voz que Memnon dizia,
Que dizia matinal;

VI.

Nada d’isto tem o encanto,
Nada d’isto póde tanto
Como o risonho quebranto,
Divino—do seo dormir;
Que nada ha como a Donzella
Pensativa, doce e bella,
E a comparar-se com ella...
Só de um infante o sorrir.

VII.

Mas de repente chorando
Despertas do somno brando
Assustado e soluçando...
Foi uma revelação!
Esta vida acerba e dura
Por um dia de ventura
Dá-nos annos de amargura
E fragoas do coração.

VIII.

Só aquelle que da morte
Soffreo o terrivel córte,
Não tem dôres que supporte,
Nem sonhos o acordarão:
Gentil infante, engraçado,
Que vives tão sem cuidado,
Serás homem—mal peccado!
Findará teo sonho então.

O PIRATA.

[Pg 77]

(EPISODIO.)

Nas azas breves do tempo
Um anno e outro passou,
E Lia sempre formosa
Novos amores tomou.
Novo amante mão de esposo,
De mimos cheia, lh’off’rece;
E bella, apesar de ingrata,
Do que a amou Lia se esquece.
Do que a amou que longe pára,
Do que a amou, que pensa n’ella,
Pensando encontrar firmeza
Em Lia, que era tão bella!
N’esse palacio deserto
Já luzes se vêm luzir,
Que vem nas sedas, nos vidros
Cambiantes reflectir.
Os echos alegres sôão,
Sôa ruidosa harmonia,
Sôão vozes de ternura,
Sons de festa e d’alegria.
E qual ave que em silencio
A face do mar desflora,
Á noite bella fragata
Chega ao porto, amaina, ancóra.
Cáe da popa e fere as ondas
Inquieta, esguia falua,
Que resvala sobre as agoas
Na esteira que traça a lua.
Já na vacua praia toca;
Um vulto em terra saltou,
Que na longa escadaria
Preságo e torvo enfiou.
[Pg 78]
Malfadado! por que aportas
A este sitio fatal!
Queres o brilho augmentar
Das bodas do teo rival?
Não, que a vingança lhe range
Nos duros dentes cerrados,
Não, que a cabeça referve
Em mãos projectos damnados!
Não, que os seos olhos bem dizem
O que diz seo coração;
Terriveis, como um espelho,
Que retratasse um vulcão.
Não, que os labios descorados
Vociferão seo rival;
Não, que a mão no peito aperta
Seo pontagudo punhal.
Não, por Deos, que taes affrontas
Não as sóe deixar impunes,
Quem tem ao lado um punhal,
Quem tem no peito ciumes!
Subio!—e vio com seus olhos
Ella a rir-se que dançava,
Folgando, infame! nos braços
Porque assim o assassinava.
E elle avançou mais avante,
E vio ... o leito fatal!
E vio ... e cheio de raiva
Gravou no meio o punhal.
E avançou ... e á janella
Sosinha a vio suspirar,
—Saudosa e bella encarando
A immensidade do mar.
[Pg 79]
Como se vira um espectro,
De repente ella fugio!
Tal foge a corça nos bosques
Se leve rumor sentio.
Que foi?—Quem sabe dizel-o?
Forão vislumbres de dôr;
Coração, que tem remorsos,
Sente continuo terror!
Elle á janella chegou-se,
Horrivel nada encontrou...
Sómente, ao longe, nas sombras,
Sua fragata avistou.
Então pensou que no mundo
Nada mais de seo contava!
Nada mais que essa fragata!
Nada mais de quanto amava!
Nada mais!...—que lh’importava
De no mundo só se achar?
Inda muito lhe ficava—
Agoa e céos e vento e mar.
Assim pensava, mas n’isto
Descortina o seo rival,
Não visto;—a mão na cintura
Cingio raivosa o punhal!
Mas pensou...—não, seja d’ella,
E tenha zelos como eu!—
Larga o punhal, e um retrato
Na dextra mão estendeo.
Porém sentio que inda tinha
Mais que branda compaixão;
Miserando! inda guardava
Seo amor no coração.
[Pg 80]
Infeliz! não foi culpada;
Foi culpa do fado meo!
Nada mais de pensar n’ella;
Finjamos que ella morreo.
Por entre a turba que alegre
No baile—a sorrir-se estava,
Mudo, triste, e pensativo
Surdamente se afastava.
De manhã—quando o saráu
Apagava o seo rumor,
Chegava Lia a janella,
Mais formosa de pallor.
Chegou-se;—e além—no horisonte
Uma vela inda avistou;
E co’a mão tremula e fria
O telescopio buscou!
Um pavilhão vio na pôpa,
Que tinha um globo pintado;
E no mastro da mesena
Um negro vulto encostado.
Erão chorosos seos olhos,
Os olhos seos enxugou;
E o telescopio de novo
Para essa vela apontou.
Quem em o vulto tão triste
Parece reconheceo;
Mas a vela no horisonte
Para sempre se perdeo.

A VILLA MALDICTA, CIDADE DE DEOS.

[Pg 81]

AO SEO QUERIDO E AFFECTUOSO AMIGO

A. T. DE CARVALHO LEAL.

Peccata peccavit Jerusalem, et propter
ea instabilis facta est; omnes qui glorificabant
eam, spreverunt illam, quia viderunt ignominiam
ejus; ipsa autem gemens conversa est retrorsum.

LAMENT.

I.

O immenso aposento a luz alaga
Com soberbo clarão,
E as mezas do banquete se devolvem
Pelo vasto salão;
E os instrumentos palpitantes sôão
Frenetica harmonia;
E o côro dos convivas se levanta
Pleno d’ebria alegria!
Alli se ostenta o nobre vicioso
Rebuçado em orgulho,—o rico infame,
Cheio de mesquinhez,—o envilecido,
Immundo pobre no seo manto involto
De miserias, torpeza e villanias;
—A prostituta que alardêa os vicios,
Menospresando a castidade e a honra,
Sem pejo, sem pudor, d’infamia eivada.
E o livre dithyrambo, a atroz blasphemia,
Os cantos immoraes, canções impudicas,
Gritos e orgia involta em negro manto
De fumo e vinho,—os ares aturdião;
E muito além, no meio d’alta noite,
Nos echos, ruas, praças rebatião.

[Pg 82]

II.

Depois, ainda suja a bocca, as faces,
D’immundo vomitar,
Com vacillante pé calcando a terra
Os viras levantar.
A larga porta despedia em turmas
A nocturna cohorte;
Ouviu-se depois por toda a parte
Gritos, horror de morte!
E ninguem vinha ao retinir de ferro,
Que assassinava;
Porque era d’um valente o punhal nobre,
Que as leis dictava.
Outra vez a cahir se emmaranhavão
Da porta pelo umbral:
Tinhão tinctas de sangue a face, as vestes,
Em sangue tincto o punhal.
E vinha o sol manifestar horrores
Da noite derradeira;
E a morte vária revelava a furia
Da turba carniceira.
E o sacrilego padre só vendia
O tum’lo por dinheiro;
Vendia a terra aos mortos insepultos,
O vil interesseiro!
Ou lá ficavão, como pasto aos corvos,
Por sobre a terra núa;
E ninguem de tal sorte se pesava,
Que ser podia a sua!
«E Deos maldisse a terra criminosa,
«Maldisse aos homens della,
«Maldisse a cobardia dos escravos
«D’essa terra tão bella.»

[Pg 83]

III.

E a mortifera peste luctuosa
Do inferno rebentou,
E nas azas dos ventos pavorosa
Sobre todos passou.
E o mancebo que via esperançoso
Longa vida futura,
Doido sentio quebrar-lhe as esperanças
Pedra de sepultura.
E a donzella tão linda que vivia
Confiada no amor,
Entre os braços da mãi provou bem cedo
Da morte o dissabor.
E o tremulo ancião qu’inda esperava
Morrer assim
Como um fructo maduro destacado
D’arvore emfim,
Sentio a morte esvoaçar-lhe em torno,
Como um bulcão,
Que affronta o nauta quando avista a terra
Da salvação.
Era deserta a villa, a casa, o templo—
Ar de morte soprou!
Mas a casa dos vis nos seos delirios
Ebria continuou!
«E Deos maldisse a terra criminosa,
«Maldisse os homens d’ella,
«Maldisse a cobardia dos escravos
«Dessa terra tão bella.»

IV.

Eis o aço da guerra lampeja,
Do fogoso corsel o nitrido,
Eis o bronzeo canhão que rouqueja,
Eis da morte represso o gemido.
[Pg 84]
Já se aprestão guerreiros luzentes,
Já se enfreião corseis bellicosos,
Já mancebos se partem contentes,
Augurando a victoria briosos.
Brilha a raiva nos olhos;—nas faces
O interno rancor pódes ler;
Eia, avante!—clamarão os bravos,
Eia, avante!—ou vencer ou morrer!
Eia, avante!—briosos corramos
Na peleja o imigo bater;
Crua morte na espada levamos!
Eia, avante!—ou vencer ou morrer!
Eis o aço da guerra lampeja,
Do corsel bellicoso o nitrido,
Eis o bronzeo canhão que rouqueja
E da morte represso o gemido.

V.

E a selva vomitou homens sem conto
A voz do omnipotente,
Como a neve hibernal que o sol derrete,
Engrossando a corrente.
E em redor d’essa villa se estreitarão,
Cingidos d’armadura;
E a villa se doeo no intimo seio
De tão acre amargura.
Mas os fortes bradarão:—Eia, avante!—
Promptos a batalhar;
Mas o braço e valor ante os imigos
Se vierão quebrar.
E um anno inteiro sem cessar lutarão,
Cheios de bizarria,
Como dois crocodilos que brigassem
D’um rio a primazia!
[Pg 85]
E renderão-se emfim, mas de famintos,
De sequiosos;
Valentes lidadores forão elles,
Se não briosos.

VI.

E o exercito contrario entra rugindo
Na villa, que as suas portas lhe franqueia:
Rasteiro corre o incendio e surdamente
O custoso edificio ataca e mina.
Eis que a chamma roaz amostra as fendas
Das portas que se abrasão; descortina
O torvo olhar do vencedor—apenas—
Lá dentro o incendio só, fóra só trevas!
Urros de frenesi, de dôr, de raiva
Escutão dos que, ás subitas colhidos,
Contra os muros em brasa se arremeção;
Dos que, perdido o tino, intentão loucos
Achar a salvação, e a morte encontrão.
Lá dentro confusão, silencio fóra!
São carrascos aqui, victimas dentro.
Geme o travejamento, estrala a pedra,
Cresce horror sobre horror, desaba o tecto,
E o fumo ennegrecido se ennovella
Co’o vertice sublime os céos roçando.
Como o vulcão que a lava arroja ás nuvens,
Como ignea columna que da terra
Hiante rebentasse,—tal se eleva,
Tal sobe aos ares, tal se empina e cresce
A labareda portentosa; e baixa,
E desce á terra, e o edificio enrola,
E o sorve inteiro, qual se forão vagas
Que a dura rocha do alicerce abalão,
Que a enlação, como a prêa,—e ao fundo pégo
Levão, deixando o mar branco d’espuma.
No horror da noite, sibilando os ventos,
Lingoas pyramidaes do atroz incendio,
Fumosas pelas ruas estalando,
[Pg 86]
Tingem da côr do inferno a côr da noite,
Tingem da côr do sangue a côr do inferno!
—O ar são gritos, fumo o céo, e a terra fogo.

VII.

E aquelles que inda sãos e immunes erão,
Os que a peste engeitou,
Que fome e sede e privações soffrerão...
A espada decepou.
E a donzella tremeo, da mãi nos braços
Não salva ainda,
Que incitava os prazeres do soldado
A face linda.
E o fido amante, que de a ver tão bella
Sentio prazer,
Sente martyrios por que a vê formosa
No seo morrer.
Coisa alguma escapou!—Já tudo é cinzas,
Tudo destruição:
A columna, o palacio, a casa, o templo,
O templo da oração!
Meninos, homens e mulheres,—todos
Já rojão sobre o pó;
Mas o Deos, o Deos bom já está vingado,
Por ella já sente dó.
E a villa d’outr’ora mais ruidosa,
Lá resurgio cidade;
Por que o Deos da justiça, o das armadas,
O Deos é de bondade.

QUADRAS DA MINHA VIDA.
RECORDAÇÃO E DESEJO.

[Pg 87]

AO MEO BOM AMIGO O DR. A. REGO.

Sol chi non lascia eredità d’affetti
Poca gioia ha dell’urna.
FOSCOLO.

I.

Houve tempo em que os meos olhos
Gostavão do sol brilhante,
E do negro véo da noite,
E da aurora scintillante.
Gostavão da branca nuvem
Em céo de azul espraiada,
Do terno gemer da fonte
Sobre pedras despenhada.
Gostavão das vivas côres
De bella flôr vicejante,
E da voz immensa e forte
Do verde bosque ondeante.
Inteira a natureza me sorria!
A luz brilhante, o susurrar da brisa,
O verde bosque, o rosicler d’aurora,
Estrellas, céos, e mar, e sol, e terra,
D’esperança e d’amor minha alma ardente,
De luz e de calor meu peito enchião.
Inteira a natureza parecia
Meos mais fundos, mais intimos desejos
Perscrutar e cumprir;—almo sorriso
Parecia enfeitar co’os seos encantos,
Com todo o seo amor compor, doiral-o,
Porque os meos olhos deslumbrados vissem-no,
Porque minha alma de o sentir folgasse.
[Pg 88]
Oh! quadra tão feliz!—Se ouvia a brisa
Nas folhas susurrando, o som das agoas,
Dos bosques o rugir;—se os desejava,
—O bosque, a brisa, a folha, o trepidante
Das agoas murmurar prestes ouvia.
Se o sol doirava os céos, se a lua casta,
Se as timidas estrellas scintillavão,
Se a flôr desabrochava involta em musgo,
—Era a flôr que eu amava,—erão estrellas
Meos amores sómente, o sol brilhante,
A lua merencoria—os meos amores!
Oh! quadra tão feliz!—doce harmonia,
Acordo extreme de vontade e força,
Que atava minha vida á natureza!
Ella era para mim bem como a esposa
Recem-casada, pudica sorrindo;
Alma de noiva—coração de virgem,
Que a minha vida inteira abrilhantava!
Quando um desejo me brotava n’alma.
Ella o desejo meo satisfazia;
E o quer que ella fizesse ou me dissesse,
Esse era o meo desejo, essa a voz minha,
Esse era o meo sentir do fundo d’alma,
Expresso pela voz que eu mais amava.

II.

Agora a flôr que m’importa,
Ou a brisa perfumada,
Ou o som d’amiga fonte
Sobre pedras despenhada?
Que me importa a voz confusa
Do bosque verde-frondoso.
Que m’importa a branca lua,
Que m’importa o sol formoso?
Que m’importa a nova aurora,
Quando se pinta no céo;
Que m’importa a feia noite,
Quando desdobra o seo véo?
[Pg 89]
Estas scenas, que amei, já me não causão
Nem dôr e nem prazer!—Indifferente,
Minha alma um só desejo não concebe,
Nem vontade já tem!... Oh! Deos! quem pôde
Do meo imaginar as puras azas
Cercear, desprender-lhe as niveas plumas,
Roja-las sobre o pó, calca-las tristes?
Perante a creação tão vasta e bella
Minha alma é como a flôr que pende murcha;
E qual profundo abysmo:—embalde estrellas
Brilhão no azul dos céos, embalde a noite
Estende sobre a terra o negro manto:
Não póde a luz chegar ao fundo abysmo,
Nem póde a noite ennegrecer-lhe a face;
Não póde a luz á flôr prestar mais brilho,
Nem viço e nem frescor prestar-lhe a noite!

III.

Houve tempo em que os meos olhos
Se extasiavão de ver
Agil donzella formosa
Por entre flôres correr.
Gostavão de um gesto brando,
Que revelasse pudor;
Gostavão de uns olhos negros,
Que rutilassem de amor.
E gostavão meus ouvidos
De uma voz—toda harmonia,—
Quer pesares exprimisse,
Quer exprimisse alegria.
Era um prazer, que eu tinha, ver a virgem
Indolente ou fugaz—alegre ou triste,
Da vida a estreita senda desflorando
Com pé ligeiro e animo tranquillo;
Improvida e brilhante parecendo
Seos dias desfolhar, uns após outros,
[Pg 90]
Como folhas de rosa;—e no futuro—
Ver luzir-lhe sómente a luz d’aurora.
Era deleite e dôr vê-la tão leda
Do mundo as afflicções, angustias, prantos
Affrontar co’um sorriso; era um descanso
Interno e fundo, que sentia a mente,
Um quadro em que os meos olhos repousavão,
Ver tanta formosura e tal pureza
Em rosto de mulher com alma d’anjo!

IV.

Houve tempo em que os meos olhos
Gostavão de lindo infante,
Com a candura e sorriso
Que adorna infantil semblante.
Gostavão do grave aspecto
De magestoso ancião,
Tendo nos labios conselhos,
Tendo amor no coração.
Um representa a innocencia,
Outro a verdade sem véo;
Ambos tão puros, tão graves,
Ambos tão perto do céo!
Infante e velho!—principio e fim da vida!—
Um entra neste mundo, outro sae delle,
Gozando ambos da aurora;—um sobre a terra,
E o outro lá nos céos.—O Deos, que é grande,
Do pobre velho compensando as dôres,
O chama para si; o Deos clemente
Sobre a innocencia de continuo vela.
Amei do velho o magestoso aspecto,
Amei o infante que não tem segredos,
Nem cobre o coração co’os folhos d’alma.
Amei as doces vozes da innocencia,
A rispida franqueza amei do velho,
E as rigidas verdades mal sabidas.
Só por labios senis pronunciadas.

V.

[Pg 91]

Houve tempo, em que possivel
Eu julguei no mundo achar
Dois amigos extremosos,
Dois irmãos do meu pensar;
Amigos que compr’hendessem
Meo prazer e minha dôr,
Dos meos labios o sorriso,
Da minha alma o dissabor;
Amigos, cuja existencia
Vivesse eu co’o meo viver:
Unidos sempre na vida,
Unidos—té no morrer.
Amizade!—união, virtude, encanto—
Consorcio do querer, de força e d’alma—
Dos grandes sentimentos cá da terra
Talvez o mais reciproco, o mais fundo!
Quem ha que diga: Eu sou feliz!—se acaso
Um amigo lhe falta?—um doce amigo,
Que sinta o seo prazer como elle o sente,
Que soffra a sua dôr como elle a soffre?
Quando a ventura lhes sorri na vida,
Um a par d’outro—ei-los lá vão felizes;
Quando um sente afflicção, nos braços do outro
A afflicção, que é só d’um, carpindo juntos,
Encontra doce alivio o desditoso
No thesouro que encerra um peito amigo.
Candido par de cysnes, vão roçando
A face azul do mar co’as niveas azas
Em deleite amoroso;—acalentados
Pelo sereno espreguiçar das ondas,
Aspirando perfumes mal sentidos,
Por vesperina arajem bafejados,
É jogo o seo viver;—porém se o vento
No frondoso arvoredo ruge ao longe,
Se o mar, batendo irado as ermas praias,
[Pg 92]
Crusadas vagas em novello enrola,
Com grito de terror o par candente
Sacode as niveas azas, bate-as,—fogem.

VI.

Houve tempo em que eu pedia
Uma mulher ao meo Deos,
Uma mulher que eu amasse,
Um dos bellos anjos seos.
Em que eu a Deos só pedia
Com fervorosa oração
Um amor sincero e fundo,
Um amor do coração.
Qu’eu sentisse um peito amante
Contra o meu peito bater,
Sómente um dia ... sómente!
E depois delle morrer.
Amei! e o meo amor foi vida insana!
Um ardente anhelar, cauterio vivo,
Posto no coração, a remorde-lo.
Não tinha uma harmonia a natureza
Comparada a sua voz; não tinha côres
Formosas como as della,—nem perfumes
Como esse puro odor qu’ella esparzia
D’angelica dureza.—Meos ouvidos
O feiticeiro som dos meigos labios
Ouvião com prazer; meos olhos vagos
De a ver não se cansavão; labios d’homens
Não poderão dizer como eu a amava!
E achei que o amor mentia, e que o meo anjo
Era apenas mulher! chorei! deixei-a!
E aquelles, que eu amei co’o amor d’amigo,
A sorte, boa ou má, levou-m’os longe,
Bem longe quando eu perto os carecia.
[Pg 93]
Conclui que a amizade era um phantasma,
Na velhice prudente—habito apenas,
No joven—doudejar; em mim lembrança;
Lembrança!—porém tal que a não trocára
Pelos gozos da terra,—meos prazeres
Forão só meos amigos,—meos amores
Hão de ser neste mundo elles sómente.

VII.

Houve tempo em que eu sentia
Grave e solemne afflicção,
Quando ouvia junto ao morto
Cantar-se a triste oração.
Quando ouvia o sino escuro
Em sons pesados dobrar,
E os cantos do sacerdote
Erguidos junto do altar.
Quando via sobre um corpo
A fria lousa cahir;
Silencio debaixo della,
Sonhos talvez—e dormir.
Feliz quem dorme sob a lousa amiga,
Tepida talvez com o pranto amargo
Dos olhos da afflicção;—se os mortos sentem,
Ou se almas tem amor aos seos despojos,
Certo dos pés do Eterno, entre a alleluia,
E o gozo lá dos céos, e os córos d’anjos,
Hão de lembrar-se com prazer dos vivos,
Que chorão sobre a campa, onde já brota
O denso musgo, e já desponta a relva.
Lagem fria dos mortos! quem me dera
Gozar do teo descanço, ir asilar-me
[Pg 94]
Sob o teo sancto horror, e nessas trevas
Do bulicio do mundo ir esconder-me!
Oh! lagem dos sepulchros! quem me désse
No teo silencio fundo asilo eterno!
Ahi não pulsa o coração, nem sente
Martyrios de viver quem já não vive.


[Pg 95]

HYMNOS.

Singe dem Herrn mein Lied, und du, begeisterte Seele,
Werde ganz Jubel dem Gott, den alle Wesen bekennen!
WIELAND.

MESQUINHO TRIBUTO DE PROFUNDA AMIZADE
AO DR. J. D. LISBOA SERRA.


O MAR.

Frappé de ta grandeur farouche
Je tremble ... est-ce bien toi, vieux lion que je touche,
Océan, terrible océan!
TURQUETY.
Oceano terrivel, mar immenso
De vagas procellosas que se enrolão
Floridas rebentando em branca espuma
N’um pólo e n’outro pólo,
Emfim ... emfim te vejo; emfim meos olhos
Na indomita cerviz tremulos cravo,
E esse rugido teo sanhudo e forte
Emfim medroso escuto!
D’onde houveste, ó pelago revolto,
Esse rugido teo? Em vão dos ventos
Corre o insano pegão lascando os troncos,
E do profundo abysmo
Chamando á superficie infindas vagas,
Que avaro encerras no teo seio undoso;
Ao insano rugir dos ventos bravos
Sobresáe teo rugido.
[Pg 96]
Em vão troveja horrisona tormenta;
Essa voz do trovão, que os céos abala,
Não cobre a tua voz.—Ah! d’onde a houveste,
Magestoso oceano?
Ó mar, o teo rugido é um echo incerto
Da creadora voz, de que surgiste:
Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas
As vagas compelliste.
E á noite, quando o céo é puro e limpo,
Teo chão tinges de azul,—tuas ondas correm
Por sobre estrellas mil; turvão-se os olhos
Entre dois céos brilhantes.
Da voz de Jehovah um echo incerto
Julgo ser teo rugir; mas só, perenne,
Imagem do infinito, retratando
As feituras de Deos.
Por isto, a sós comtigo, a mente livre
Se eleva, aos céos remonta ardente, altiva,
E d’este lodo terreal se apura,
Bem como o bronze ao fogo.
Férvida a Musa, co’os teos sons casada,
Glorifica o Senhor de sobre os astros
Co’a fronte além dos céos, além das nuvens,
E co’os pés sobre ti.
O que ha mais forte do que tu? Se erriças
A coma perigosa, a náo possante,
Extremo de artificio, em breve tempo
Se afunda e se anniquila.
Es poderoso sem rival na terra;
Mas lá te vás quebrar n’um grão d’areia,
Tão forte contra os homens, tão sem força
Contra coisa tão fraca!
Mas n’esse instante que me está marcado,
Em que hei de esta prisão fugir p’ra sempre,
Irei tão alto, ó mar, que lá não chegue
Teo sonoro rugido.
[Pg 97]
Então mais forte do que tu, minha alma,
Desconhecendo o temor, o espaço, o tempo,
Quebrará n’um relance o circl’o estreito
Do finito e dos céos!
Então, entre myriadas de estrellas,
Cantando hymnos d’amor nas harpas d’anjos,
Mais forte soará que as tuas vagas,
Mordendo a fulva areia;
Inda mais doce que o singelo canto
De merencoria virgem, quando a noite
Occupa a terra,—e do que a mansa brisa,
Que entre flôres suspira.

IDEIA DE DEOS.

Gross ist der Herr! Die Himmel ohne Zahl
Sind seine Wohnungen!
Seine Wagen die donnernden Gewölke,
Und Blitze sein Gespann.
KLEIST.

I.

Á voz de Jehovah infindos mundos
Se formárão do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi creada.
Luzio no espaço a lua! sobre a terra
Rouqueja o mar raivoso,
E as espheras nos céos erguerão hymnos
Ao Deos prodigioso.
Hymno de amor a creação, que sôa
Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruido
Do dia scintillante!
[Pg 98]
A morte, as afflicções, o espaço, o tempo,
O que é para o Senhor?
Eterno, immenso, que lh’importa a sanha
Do tempo roedor?
Como um raio de luz, percorre o espaço,
E tudo nota e vê—
O argueiro, os mundos, o universo, o justo;
E o homem que não crê.
E elle que póde anniquilar os mundos,
Tão forte como elle é,
E vê e passa, e não castiga o crime,
Nem o impio sem fé!
Porém quando corrupto um povo inteiro
O Nome seo maldiz,
Quando só vive de vingança e roubos,
Julgando-se feliz;
Quando o impio commanda, quando o justo
Soffre as penas do mal,
E as virgens sem pudor, e as mães sem honra,
E a justiça venal;
Ai da perversa, da nação maldicta,
Cheia de ingratidão,
Que ha de ella mesma sugeitar seo collo
Á justa punição.
Ou já terrivel peste expande as azas,
Bem lenta a esvoaçar;
Vai de uns a outros, dos festins conviva,
Hospede em todo o lar!
Ou já torvo rugir da guerra accesa
Espalha a confusão;
E a esposa, e a filha, de terror oppressa,
Não sente o coração.
[Pg 99]
E o pae, e o esposo, no morrer cruento,
Vomita o fel raivoso;
—Milhões de insectos vis que um pé gigante
Enterra em chão lodoso.
E do povo corrupto um povo nasce
Esperançoso e crente,
Como do podre e carunchoso tronco
Hastea forte e virente.

II.

Oh! como é grande o Senhor Deos, que os mundos
Equilibra nos ares;
Que vai do abysmo aos céos, que susta as iras
Do pelago fremente,
A cujo sopro a maquina estrellada
Vacilla nos seos eixos,
A cujo aceno os cherubins se movem
Humildes, respeitosos,
Cujo poder, que é sem igual, excede
A hyperbole arrojada!
Oh! como é grande o Senhor Deos dos mundos,
O Senhor dos prodigios.

III.

Elle mandou que o sol fosse principio,
E razão de existencia,
Que fosse a luz dos homens—olho eterno
Da sua providencia.
Mandou que a chuva refrescasse os membros,
Refizesse o vigor
Da terra hiante, do animal cançado
Em praino abrasador.
Mandou que a brisa susurrasse amiga,
Roubando aroma á flôr;
Que os rochedos tivessem longa vida,
E os homens grato amor!
[Pg 100]
Oh! como é grande e bom o Deos que manda
Um sonho ao desgraçado,
Que vive agro viver entre miserias,
De ferros rodeado;
O Deos que manda ao infeliz que espere
Na sua providencia;
Que o justo durma, descançado e forte
Na sua consciencia!
Que o assassino de continuo vele,
Que trema de morrer;
Em quanto lá nos céos, o que foi morto,
Desfructa outro viver!
Oh! como é grande o Senhor Deos, que rege
A maquina estrellada,
Que ao triste dá prazer; descanço e vida
Á mente atribulada!

O ROMPER D’ALVA.

Quand ta corde n’aurait qu’un son,
Harpa fidèle, chante encore
Le Dieu que ma jeunesse adore,
Car c’est un hymne que son nom.
LAMARTINE.
Do vento o rijo sopro as mansas ondas
Varreo do immenso pego,—e o mar rugindo
Ás nuvens se elevou com furia insana;
Ennovelladas vagas se arrojárão
Ao céo co’a branca espuma!
Raivando em vão se encontrão soluçando
Na base d’erma rocha descalvada;
Em vão de furias crescem, que se quebra
A força enorme do impotente orgulho
Na rocha altiva ou na arenosa praia.
[Pg 101]
Da tormenta o furor lhe accende os brios,
Da tormenta o furor lh’enfreia as iras,
Que em teimosos gemidos se descerrão;
Da quieta noite despertando os echos
Além, no valle humilde, onde não chega
Seo sanhudo gemer, que o dia abafa.
Mas a brisa susurrando
A face do céo varreo,
Tristes nuvens espalhando,
Que a noite em ondas verteo.
Além, atraz da montanha,
Branda luz se patenteia,
Que d’alma a dôr afugenta,
Se dentro sentida anceia.
Branda luz, que afaga a vista,
De que se ama o céo tingir,
Quando entre o azul transparente
Parece alegre sorrir;
Como es linda!—Como dobras
Da vida a força e do amor!
—Que tão bem luz dentro d’alma
Teo luzir encantador!
No teo ameno silencio
A tormenta se perdeo,
E do mar a forte vida
Nos abysmos se escondeo!
Porque assim de novo agora
Que o vento o não vem toldar,
Parece que vai queixoso
Mansamente a soluçar?
Porque as ramas do arvoredo,
Bem como as ondas do mar,
Sem correr sopro de vento,
Começão de murmurar?
[Pg 102]
Sobre o tapiz d’alta relva,
—Rocio da madrugada—
Destilla gotas de orvalho
A verde folha inclinada.
Renascida a natureza
Parece sentir amor;
Mais brilhante, mais viçosa
O calix levanta a flôr.
Por entre as ramas occultas,
Docemente a gorgear,
Acordão trinando as aves,
Alegres, no seo trinar.
O arvoredo n’essa lingoa
Que diz, porque assim susurra?
Que diz o cantar das aves?
Que diz o mar que murmura?
—Dizem um nome sublime,
O nome do que é Senhor,
Um nome que os anjos dizem,
O nome do Creador.
Tão bem eu, Senhor, direi
Teo nome—do coração,
E ajuntarei o meo hymno
Ao hymno da creação.
Quando a dôr meo peito acanha,
Quando me rala a afflicção,
Quando nem tenho na terra
Mesquinha consolação;
Tu, Senhor, do peso insano
Livras meo peito arquejante,
Seccas-me o pranto que os olhos
Vertendo estão abundante.
[Pg 103]
Tu pacificas minha alma,
Quando se rasga com pena,
Como a noite que se esconde
Na luz da manhã serena.
Tu es a luz do universo,
Tu es o ser creador,
Tu es o amor, es a vida,
Tu es meo Deos, meo Senhor.
Direi nas sombras da noite,
Direi ao romper da aurora:
—Tu es o Deos do universo,
O Deos que minha alma adora.
Tão bem eu, Senhor, direi
Teo nome—do coração,
E ajuntarei o meo hymno
Ao hymno da creação.

A TARDE.

Ave Maria! blessed be the hour!
The time, the clime, the spot where I so oft
Have felt that moment in its fullest power
Sink o’er the earth so beautiful and soft....
BYRON.
Oh tarde, oh bella tarde, oh meos amores,
Mãe da meditação, meo doce encanto!
Os rogos da minha alma emfim ouviste,
E grato refrigerio vens trazer-lhe
No teo remansear prenhe de enlevos!
Em quanto de te ver gostão meos olhos,
Em quanto sinto a minha voz nos labios,
Em quanto a morte me não rouba á vida,
Um hymno em teo louvor minha alma exhale,
Oh tarde, oh bella tarde, oh meos amores!

I.

[Pg 104]

É bella a noite, quando grave estende
Sobre a terra dormente o negro manto
De brilhantes estrellas recamado;
Mas nessa escuridão, nesse silencio
Que ella comsigo traz, ha um quê de horrivel
Que espanta e desespera e geme n’alma;
Um quê de triste que nos lembra a morte!
No romper d’alva ha tanto amor, tal vida,
Ha tantas côres, brilhantismo e pompa,
Que fascina, que attrahe, que a amar convida;
Não pode supportal-a homem que soffre,
Orfãos de coração não podem vel-a.
Só tu, feliz, só tu, a todos prendes!
A mente, o coração, sentidos, olhos,
A ledice e a dôr, o pranto e o riso,
Folgão de te avistar;—são teos,—es d’elles.
Homem que sente dôr folga comtigo,
Homem que tem prazer folga de ver-te!
Comtigo sympathisão, porque es bella,
Qu’es mãe de merencorios pensamentos,
Entre os céos e a terra extasis doce,
Entre dôr e prazer celeste arroubo.

II.

A brisa que murmura na folhagem,
As aves que pipitão docemente,
A estrella que desponta, que rutila,
Com duvidosa luz ferindo os mares,
O sol que vai nas agoas sepultar-se
Tingindo o azul dos céos de branco e d’oiro;
Perfumes, murmurar, vapores, brisa,
Estrellas, céos e mar, e sol e terra,
Tudo existe comtigo, e tu es tudo.

III.

Homem que vive agro viver de côrte,
Indifferente olhar derrama a custo
[Pg 105]
Sobre os fulgores teos;—homem do mundo
Mal pode o desbotado pensamento
Revolver sobre o pó; mas nunca, oh nunca!
Ha de elevar-se a Deos, e nunca ha de elle
Na abobada celeste ir pendurar-se,
Como de rosea flôr pendente abelha.
Homem da natureza, esse contemple
De purpura tingir a luz que morre
As nuvens lá no occaso vacillantes!
Ha de vida melhor sentir no peito,
Sentir doce prazer sorrir-lhe n’alma,
E fonte de ternura inexgotavel
Do fundo coração brotar-lhe em ondas.
Hora do pôr do sol!—hora fagueira,
Qu’encerras tanto amor, tristeza tanta!
Quem ha que de te ver não sinta enlevos,
Quem ha na terra que não sinta as fibras
Todas do coração pulsar-lhe amigas,
Quando d’esse teo manto as pardas franjas
Sóltas, roçando a habitação dos homens?
Ha hi prazer tamanho que embriaga,
Ha hi prazer tão puro, que parece
Haver anjos dos céos com seos acordes
A misera existencia acalentado!

IV.

Socia do forasteiro, tu, saudade,
N’esta hora os teos espinhos mais pungentes
Cravas no coração do que anda errante.
Só elle, o peregrino, onde acolher-se,
Não tem tugurio seo, nem pae, nem ’sposa,
Ninguem que o espere com sorrir nos labios
E paz no coração,—ninguem que extranhe,
Que anceie afflicto de o não ver comsigo!
Cravas então, saudade, os teos espinhos;
E elles, tão pungentes, tão agudos,
Varando o coração de um lado a outro,
Nem trazem dôr, nem desespero incitão;
[Pg 106]
Mas remanso de dôr, mas um suave
Recordar do passado,—um quê de triste
Que ri ao coração, chamando aos olhos,
Tão espontaneo, tio fagueiro pranto,
Que não fora prazer não derramal-o.
E quem—ah tão feliz!—quem peregrino
Sobre a terra não foi? Quem sempre ha visto
Sereno e brando deslisar-se o fumo
Sobre o tecto dos seos; e sobre os cumes
Que os seos olhos hão visto á luz primeira
Crescer branca neblina que se enrola,
Como incenso que aos céos a terra envia?
Tão feliz! quando a morte involta em pranto
Com gelado suor lh’enerva os membros,
Procura inda outra mão co’a mão sem vida,
E o extremo scintillar dos olhos baços,
De um ente amado procurando os olhos,
Sem prazer, mas sem dôr, alli se apaga.
O exilado! esse não; tão só na vida,
Como no passamento ermo e sosinho,
Sente dôres crueis, torvos pezares
Do leito afflicto esvoaçar-lhe em torno,
Roçar-lhe o frio, o pallido semblante,
E o instante derradeiro amargurar-lhe.
Porém, no meo passar da vida á morte,
Possa co’a extrema luz d’estes meos olhos
Trocar ultimo adeos com os teos fulgores!
Ah! possa o teo alento perfumado,
Do que na terra estimo, docemente
Minha alma separar, e derramal-a
Como um vago perfume aos pés do Eterno.

O TEMPLO.

[Pg 107]

....Jéhovah déploie autour de nos demeures
Le linceul de la nuit, et la chaîne des heures
Tombe anneau par anneau.
TURQUETY.

I.

Estou só n’este mudo sanctuario,
Eu só, com minha dôr, com minhas penas!
E o pranto nos meos olhos represado,
Que nunca vio correr humana vista,
Livremente o derramo aos pés de Christo,
Que tão bem suspirou, gemeo sosinho,
Que tão bem padeceo sem ter conforto,
Como eu padeço, e soffro, e gemo, e choro.
Remorso não me punge a consciencia,
Vergonha não me tinge a côr do rosto,
Nem crimes perpetrei;—porque assim choro?
E direi eu por que?—Antes meu berço,
Que vagidos de infante vividouro,
Os sons finaes de um moribundo ouvisse!
Que esperanças que eu tinha tão formosas,
Que mimosos enlevos de ternura,
Não continha minha alma toda amores!
Esperanças e amor, que é feito d’elles?
Um dia me roubava uma esperança,
E sosinho, uma e uma, me deixárão.
Morrerão todas, como folhas verdes
Que em principios do inverno o vento arranca.
E o amor!—podia eu sentil-o ao menos;
Quando eu via a desdita de bem perto
Co’ um sorriso infernal no rosto squalido,
Com fome e frio a tiritar demente,
Acenando-me infausta?—quando vinda
Minha hora já sentia, em que os meus labios,
Tremendo de vergonha, soluçassem
[Pg 108]
Ao f’liz com que eu na rua deparasse,
De mãos erguidas: Meo Senhor, piedade!
Eis porque soffro assim, porque assim gemo,
Porque meo rosto pallido se encova,
Porque sómente a dôr me ri nos labios,
Porque meo coração já todo é cinzas.
Menti, Senhor, menti!—porque te adoro.
No altar profano de belleza esquiva
Não queimo incenso vão;—tu só me occupas
O coração, que eu fiz hostia sagrada,
Apuro de elevados sentimentos,
Que o teo amor somente asilão, nutrem.
Quando ao sopé da cruz me chego afflicto,
Sinto que o meo soffrer se vae mingoando,
Sinto minha alma que de novo existe,
Sinto meo coração arder em chammas,
Arder meos labios ao dizer teo nome.
Assim a cada aurora, a cada noite,
Virei consolações beber sedento
Aos pés do meo Senhor;—virei meo peito
Encher de religião, de amor, de fogo,
Que além de infindos céos minha alma exalte.

II.

Quem me dera nas azas d’este vento,
Que agora tão saudoso aqui murmura,
Agitando as cortinas, que me encobrem
Do teo rosto o fulgor, que me não cegue,
Subir além dos sóes, além das nuvens
Ao teo throno, ó meo Deos; ou quem me désse
Ser este incenso que se arroja em ondas
A subir, a crescer, em rolo, em fumo,
Até perder-se na amplidão dos ares!
Não qu’ria aqui viver!—Quando eu padeço,
Surdez fingida a minha voz responde;
Não tenho voz de amor, que me console,
[Pg 109]
Corre o meo pranto sobre terra ingrata,
E dôr mortal meo coração fragoa.
Só tu, Senhor, só tu, no meo deserto
Escutas minha voz que te supplica;
Só tu nutres minha alma de esperança;
Só tu, ó meu Senhor, em mim derramas
Torrentes de harmonia, que me abrasão.
Qual orgão, que resôa mavioso,
Quando segura mão lhe opprime as teclas,
Assim minha alma, quando a ti se achega
Hymnos de ardente amor disfere grata:
E, quando mais serena, inda conserva
Effluvios d’esse canto, que me guia
No caminho da vida aspero e duro.
Assim por muito tempo reboando
Vão no recinto do sagrado templo
Sons, que o orgão soltou, que o ouvido escuta.

TE DEUM.

Nós, Senhor, nós te louvamos,
Nós, Senhor, te confessamos.
Senhor Deos Sabbaoth, tres vezes sancto,
Immenso é o teo poder, tua força immensa,
Teos prodigios sem conta;—e os céos e a terra
Teo ser e nome e gloria preconisão.
E o archanjo forte, e o serafim sem mancha,
E o côro dos prophetas, e dos martyres
A turba eleita—a ti, Senhor, proclamão
Senhor Deos Sabbaoth, tres vezes sancto.
Na innocencia do infante es tu quem fallas;
A belleza, o pudor—es tu que as gravas
Nas faces da mulher,—es tu que ao velho
Prudencia dás,—e o que verdade e força
Nos puros labios, do que é justo, imprimes.
[Pg 110]
Es tu quem dás rumor á quieta noite,
Es tu quem dás frescor á mansa brisa,
Quem dás fulgor ao raio, azas ao vento,
Quem na voz do trovão longe rouquejas.
Es tu que do oceano á furia insana
Pões limites e cobro,—es tu que a terra
No seo vôo equilibras,—quem dos astros
Governas a harmonia, como notas
Acordes, simultaneas, palpitando
Nas cordas d’Harpa do teo Rei Propheta,
Quando elle em teo louvor hymnos soltava,
Qu’ ião, cheios de amor, beijar teo solio.
Sancto! Sancto! Sancto!—teos prodigios
São grandes, como os astros,—são immensos
Como arêa delgada em quadra estiva.
E o archanjo forte, e o serafim sem mancha,
E o côro dos prophetas, e dos martyres
A turba eleita—a ti, Senhor, proclamão,
Senhor Deos Sabbaoth, tres vezes grande.

ADEOS
AOS MEOS AMIGOS DO MARANHÃO.

Meos Amigos, Adeos! Já no horizonte
O fulgor da manhã se empurpurece:
É puro e branco o céo,—as ondas mansas,
—Favoravel a brisa;—irei de novo
Sorver o ar purissimo das ondas,
E na vasta amplidão dos céos e mares
De vago imaginar embriagar-me!
Meos Amigos, Adeos!—Verei fulgindo
A lua em campo azul, e o sol no occaso
Tingir de fogo a implacidez das agoas;
[Pg 111]
Verei horridas trevas lento e lento
Descerem, como um crepe funerario
Em negro esquife, onde repoisa a morte;
Verei a tempestade quando alarga
As negras azas de bulcões, e as vagas
Soberbas encastella, esporeando
O curto bojo de ligeiro barco,
Que geme, e ruge, e empina-se insoffrido
Galgando os escarceos,—bem larga esteira
De phosphoro e de luz traz si deixando:
Generoso corsel, que sente as cruzes
Agudas de teimosos acicates
Lacerarem-lhe rabidas o ventre.
Inda uma vez, Adeos! Curtos instantes
De ineffavel prazer—horas bem curtas
De ventura e de paz frui comvosco:
Oasis que encontrei no meo deserto,
Tepido valle entre fragosas serras
Virente derramado, foi a quadra
Da minha vida, que passei comvosco.
Aqui de quanto amei, do que hei soffrido,
De tudo quanto almejo, espero, ou temo
Deslembrado vivi!—Oh! quem me dera
Que entre vós outros me alvejasse a fronte,
E que eu morresse entre vós! Mas força occulta,
Irresistivel, me persegue e impelle.
Qual folha instavel em ventoso estio
Do vento ao sopro a esvoaçar sem custo;
Assim vou eu sem tino,—aqui pegadas
Mal firmes assentando—além pedaços
De mim mesmo deixando. Na floresta
O lasso viandante extraviado
Por todo o verde bosque estende os olhos,
E cançado esmorece,—cáe, medita,
Respira mais de espaço, cobra alento,
E nas solidões de novo eil-o se entranha.
Vestigios mal seguros sopra o vento,
[Pg 112]
Ou nivella-os a chuva, ou relva os cobre:
Talvez que folhas asperas de arbusto
Mordão vellos da tunica, e denotem
(Duvída o viajor, que os vê com pasmo)
Que errante caminheiro alli passasse.
E eu parti!—Não chorei, que do meo pranto
A larga fonte jaz de ha muito exhausta;
Ha muito que os meos olhos não gotejão
O repassado fel d’acre amargura;
E o pranto no meo peito represado
Em cinza o coração me ha convertido.
É assim que um vulcão se torna fonte
De lympha amarga e quente; e a fonte em ermo,
Onde não crescem perfumadas flôres,
Nem tenras aves seos gorgeios soltão,
Nem triste viajor encontra abrigo.
Rasgado o coração de pena acerba,
Transido de afflicções, cheio de magoa,
Miserando parti! tal quando reprobo,
Adão, cobrindo os olhos coas mãos ambas,
Em meio a sua dôr só descobria
Do Archanjo os candidissimos vestidos,
E os lampejos da espada fulminante,
Que o Eden tão mimoso lhe vedava.
Porém quando algum dia o colorido
Das vivas illusões, que inda conservo,
Sem força esmorecer,—e as tão viçosas
Esp’ranças, que eu educo, se afundarem
Em mar de desenganos;—a desgraça
Do naufragio da vida ha de arrojar-me
Á praia tão querida, que ora deixo.
Tal parte o desterrado: um dia as vagas
Hão de os seos restos regeitar na praia,
D’onde tão novo se partira, e onde
Procura a cinza fria achar jazigo.

[Pg 113]

SEGUNDOS CANTOS.


CONSOLAÇÃO NAS LAGRIMAS.

[Pg 115]

Las lágrimas puras que entónces se vierten,
Acaso divierten
En vez de doler.
ZORRILLA.
Como é bello á meia noite
O azul do céo transparente,
Quando a esphera d’alva lua
Vagueia mui docemente,
Quando a terra não ruidosa
Toda se cala dormente,
Quando o mar tranquillo e brando
Na areia chora fremente!
Como é bello este silencio
Da terra todo harmonia,
Que aos céos a mente arrebata
Cheia de meiga poesia!
Como é bella a luz que brilha
Do mar na viva ardentia!
Este pranto como é doce
Que entorna a melancolia!
Esta aragem como é branda
Que enruga a face do mar,
Que na terra passa e morre
Sem nas folhas susurrar!
Os sons d’aereo instrumento
Quizera agora escutar,
Quizera magoas pungentes
Neste silencio olvidar!
[Pg 116]
O azul do céo, nem da lua
A doce luz reflectida,
Nem o mar beijando a praia,
Nem a terra adormecida,
Nem meigos sons, nem perfumes,
Nem a brisa mal sentida,
Nem quanto agrada e deleita,
Nem quanto embelleza a vida;
Nada é melhor que este pranto
Em silencio gotejado,
Meigo e doce, e pouco e pouco
Do coração despegado;
Não soro de fel, mas sancto
Frescor em peito chagado;
Não espremido entre dores,
Mas quasi em prazer coado!

CANÇÃO.

Yo no soy mas que un poeta,
Sin otro bien que mi lira.
ZORRILLA.
Tenho uma harpa religiosa,
Toda inteira fabricada
De madeira preciosa
Sobre o Libano cortada.
Foi o Senhor quem m’a deo,
De sanctas palmas coberta,
Que as notas suas concerta
Aos sons do salterio hebreo!
Tenho alaúde polido
Em que antigos Trovadores,
Em tom de guerra atrevido,
Cantavão trovas de amores.
[Pg 117]
Mas chegando a Sancta Cruz,
De volta do meo desterro,
Cortei-lhe as cordas de ferro,
Cordas de prata lhe puz.
Tenho tão bem uma lyra
De festões engrinaldada,
Onde minha alma afinada
Melindres d’amor suspira.
Nas grinaldas, nos festões,
Nas rosas com que s’inflora,
Goteja o orvalho da aurora
Dictámo dos corações.
Eis o que tenho, ó Donzella,
Só harpa, alaúde e lyra;
Nem vejo sorte mais bella,
Nem coisa que lhe eu prefira.
Votei assim ao meo Deos
A minha harpa religiosa,
A ti a lyra mimosa,
O grave alaúde aos meos!

LYRA.

Coeur sans amour est un jardin sans fleur.

L. HALLEVY.

Se me queres a teos pés ajoelhado,
Ufano de me ver por ti rendido,
Ou já em mudas lagrimas banhado;
Volve, impiedosa,
Volve-me os olhos;
Basta uma vez!
Se me queres de rojo sobre a terra,
Beijando a fimbria dos vestidos teos,
Calando as queixas que meo peito encerra,
[Pg 118]
Dize-me, ingrata,
Dize-me: eu quero!
Basta uma vez!
Mas se antes folgas de me ouvir na lyra
Louvor singelo dos amores meos,
Por que minha alma ha tanto em vão suspira;
Dize-me, ó bella,
Dize-me: eu te amo!
Basta uma vez!

AGORA E SEMPRE.

Pone me pigris ubi nulla campis
Arbor aestiva recreatur aura,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Dulce ridentem Lalagen amabo,
Dulce loquentem.
HORACIO. OD.
Ponhão-me embora na crestada Libya,
Ou lá nas zonas em que o gelo mora,
Alli tua alma viverá commigo,
Alli teo nome!
Ponhão-me em terras que leões só crião,
Nas altas serras que o condor habita;
Alli ainda viverá comtigo
Minha alma ardente.
Faminto e triste na região deserta,
Co’os pés em sangue de esfarpada estilha,
Cortado o rosto de gelado vento,
Madida a coma:
Alli aos urros do leão sedento,
Aos crebros gritos do condor alpestre,
Ardendo em chamas deste amor sem termo
Direi: Eu te amo!
[Pg 119]
Duros ferrolhos de prisão medonha
Escute embora sepultar-me em vida;
Embora sinta roxear-me os pulsos
Ferreas algemas;
Embora malhos de tortura infame
Quebrem-me os ossos no medroso equuleo;
Agudos dentes de tenaz raivosa
Mordão-me as carnes:
Nas feias sombras da cruel masmorra,
Nos duros tratos da tortura bruta,
Quer só commigo, quer em meio ás gentes,
Direi: Eu te amo!
Mas nunca o gelo, nem a fragoa ardente,
Nem brutas feras, nem crueza humana
Farão que eu soffra mais agudas dôres,
Nem mais penadas!
Reclina-se outro em teo nevado seio,
Cinge-te o corpo em divinaes caricias,
Beija-te o collo, beija-te o sorriso,
Goza-te e vive!
E eu no entanto extorso com dores!
Praguejo o inferno que nos poz tão longe,
Louco bravejo, misero soluço...
Desejo e morro!

A VIRGEM.

—Tiene mas de vaporosa sombra,
De inefable vision que de mujer.
ZORRILLA.
Linda virgem simelha a linda rosa,
Que se abre ao romper d’alva;
Encapellão-se as petalas mimosas,
[Pg 120]
Lacradas de pudor com rubro sello:
Cego mortal só lhe respira o incenso;
Mas della a abelha extrahe seo mel mais puro.
Seo nobre coração é como um templo,
Onde só Deos habita;
Alli reina o misterio involto em sombras,
E maga placidez involta em cantos:
Só vê isto o profano; mas o antiste
De Deos a sombra vê, e a voz lhe escuta.
É como um lago de marmoreo leito
Sua alma ingenua e bella:
No fundo não se enxerga o verde limo,
E a lisa face nos amostra os astros.
E onde o humilde pastor só vê luzeiros,
Os anjos la dos céos contemplão mundos.
E se eu a vejo nos saráos ruidosos,
C’roada de belleza,
E a sombra da tristeza irresistivel
Tingir-lhe o rosto, e desbotar-lhe o riso;
Na mulher, que outros vêm, descubro o anjo,
Que as azas d’oiro, que perdeo, lamenta!
Então como que sinto arrebatar-me,
Sympathica attracção!
Quizera doces carmes de ternura
Nas mais delgadas cordas da minha Harpa
Cantar-lhe, e assim dizer-lhe: «Um canto ao menos
O acerbo exilio teo torne mais brando!»
Baldado empenho! Começado apenas,
Afrouxa-se-me o canto;
Debaixo dos meos dedos mal palpita
A corda melindrosa da minha Harpa;
E como em espaço, que até d’ar carece,
Tangida, o extremo som morre sem echo!

ROSA NO MAR!

[Pg 121]

Rosa, rosa de amor purpurea e bella,
Quem entre os goivos te esfolhou da campa!
GARRETT.
Por uma praia arenosa,
Vagarosa
Divagava uma Donzella;
Dá largas ao pensamento,
Brinca o vento
Nos soltos cabellos della.
Leve ruga no semblante
Vem n’um instante,
Que n’outro instante se alisa;
Mais veloz que a sua ideia
Não volteia,
Não gira, não foge a brisa.
No virginal devaneio
Arfa o seio,
Pranto ao riso se mistura;
Doce rir dos céos encanto,
Leve pranto,
Que amargo não é, nem dura.
Nesse logar solitario,
—Seo fadario,—
De ver o mar se recreia;
De o ver, á tarde, dormente,
Docemente
Suspirar na branca areia.
Agora, qual sempre usava,
Divagava
Em seo pensar embebida;
Tinha no seio uma rosa
Melindrosa,
De verde musgo vestida.
[Pg 122]
Ia a virgem descuidosa,
Quando a rosa
Do seio no chão lhe cahe:
Vem um’onda bonançosa,
Qu’impiedosa
A flôr comsigo retrahe.
A meiga flôr sobrenada;
De agastada,
A virge’ a não quer deixar!
Bóia a flôr; a virgem bella,
Vai trás ella,
Rente, rente—á beiramar.
Vem a onda bonançosa,
Vem a rosa;
Foge a onda, a flôr tão bem.
Se a onda foge, a donzella
Vai sobre ella!
Mas foge, se a onda vem.
Muitas vezes enganada,
De enfadada
Não quer deixar de insistir;
Das vagas menos se espanta,
Nem com tanta
Presteza lhes quer fugir.
N’isto o mar que se encapella
A virgem bella
Recolhe e leva comsigo;
Tão fallaz em calmaria,
Como a fria
Polidez de um falso amigo.
Nas agoas alguns instantes,
Fluctuantes
Nadárão brancos vestidos:
Logo o mar todo bonança,
A praia cança
Com monotonos latidos.
[Pg 123]
Um doce nome querido
Foi ouvido,
Ia a noite em mais de meia:
Toda a praia perlustrárão,
Nem achárão
Mais que a flôr na branca areia.

O AMOR.

Amare amabam.
S. AGOST.
Amor! enlevo d’alma, arroubo, encanto
Desta existencia misera, onde existes?
Fino sentir ou magico transporte,
(O quer que seja que nos leva a extremos,
Aos quaes não basta a natureza humana;)
Sympathica attracção d’almas sinceras
Que unidas pelo amor, no amor se apurão,
Por quem suspiro, serás nome apenas?
A inutil chamma reseccou meos labios,
Mirrou-me o coração da vida em meio,
E á terra fez baixar a mente errada
Que entre nuvens, amor, por ti bradava!
Não te pude encontrar!—em vão meos annos
No louco intento esperdicei; gelados,
Uns após outros á cahir precipites
Na urna do passado os vi; eu triste,
Amor, por ti clamava;—e o meo deserto
Aos meos accentos reboava embalde.
Em vão meo coração por ti se fina,
Em vão minha alma te compr’hende e busca,
Em vão meos labios sofregos cubição
Libar a taça que aos mortaes off’reces!
Dizem-na funda, inexgotavel, meiga;
Em quanto a vejo rasa, amarga e dura!
[Pg 124]
Dizem-na balsamo, eu veneno a sorvo:
Prazer, doçura,—eu dôr e fel encontro!
Dobrei-me ás duras leis que me impozeste,
Curvei ao jugo teo meo collo humilde,
Feri-me aos teos ardentes passadores,
Prendi-me aos teos grilhões, rojei por terra...
E o lucro?... forão lagrimas perdidas,
Foi roxa cicatriz qu’inda conservo,
Desbotada a illusão e a vida exhausta!
Celeste emanação, gratos effluvios
Das roseiras do céo; bater macio
Das azas auri-brancas d’algum anjo,
Que roça em noite amiga a nossa esphera,
Centelha e luz do sol que nunca morre;
Es tudo, e mais do qu’isto:—es luz e vida,
Perfume, e vôo d’anjo mal sentido,
Peregrinas essencias trescalando!...
Tão bem passas veloz,—breve te apagas,
Como d’uma ave a sombra fugitiva,
Desgarrada voando á flôr de um lago!

SEMPRE ELLA.

Per noctem quaesivi, quam diligit
anima mea, et non inveni illam.
CANT. CANT.
Eu amo a doce virgem pensativa,
Em cujo rosto a pallidez se pinta,
Como nos céos a matutina estrella!
A dôr lhe ha desbotado a côr das faces,
E o sorriso que lhe roça os labios
Murcha ledo sorrir nos labios d’outrem.
Tem um timbre de voz que n’alma echôa,
Tem expressões d’angelica doçura,
[Pg 125]
E a mente do que as ouve, se perfuma
De amor profundo e de piedade sancta,
E exala effluvios d’um odor suave
De aloes, de myrrha ou de mais grato incenso.
E nessas horas, quando a mente afflicta,
De dôr occulta remordida, anceia
Desabrochar-se em confidencia amiga,
«Neste mundo o que sou?—triste clamava;
«Pérsica involta em pó, entre ruinas,
«Erma e sosinha a resolver-me em pranto!
«Flôr desbotada em hastea já roída,
«De cujo tronco as outras amarellas
«Já rójão sobre o pó, já murchas pendem!
«É sentir e soffrer a minha vida!»
Merencoria dizia, erguendo os olhos
Aos céos d’um claro azul, que lhes sorrião.
Náda o mudo alcyon por sobre os mares,
E proximo a seo fim desata o canto;
A rosa do Sarão lá se despenha
Nas agoas do Jordão: e como a rosa,
Como o cysne, do mar entre os perfumes,
Aos sons d’uma Harpa interna ella morria!
E como o pastor que avista a linda rosa
Nas agoas da corrente, e como o nauta
Que vê, que escuta o cysne ir-se embalado
Sobre as agoas do mar, cantando a morte;
Eu tambem a segui—a rosa, o cysne,
Que lá se foi sumir clima estranho.
E depois que os meos olhos a perdérão,
Como se perde a estrella em céos infindos,
Errei por sobre as ondas do oceano,
Sentei-me a sombra das florestas virgens,
Procurando apagar a imagem della,
Que tão inteira me ficára n’alma!
[Pg 126]
Embalde aos céos erguendo os olhos turvos
Meo astro procurei entre os mais astros,
Qu’outr’ora amiga sina me fadára!
Com brilho embaciado e luz incerta
Nos ares se perdeo antes do occaso,
Deixando me sem norte em mar d’angustias.

MIMOSA E BELLA.

N’UM ALBUM.

De anno em anno se torna mais formosa,
E novo brilho, novas graças cria.
CALDAS.

I.

Tão bella es, tão mimosa,
Qual viçosa
Fresca rosa,
Que em serena madrugada,
Despontada,
Rorejada
Foi pelo orvalho do céo;
E a aurora que tudo esmalta,
Brilha reflexos de prata
No orvalho que alli prendeo.

II.

Quando um penar afflictivo,
Sem motivo,
D’improviso
Tua alma occupa e entristece,
Que padece,
Que esmorece
Com aquelle imaginar;
Augmenta a tua belleza
Languido véo de tristeza,
Pallor de quem sabe amar.

III.

[Pg 127]

Assim murcha a sensitiva,
Sempre viva,
Sempre esquiva;
Assim perde o colorido
Por um toque irreflectido,
Mal sentido:
Assim vai o nenuphar,
Como que soffre e tem magoas,
Esconder-se em fundas agoas,
Té que o sol torne a brilhar.

IV.

Mas tão bem a flôr brincada,
Perfumada,
Debruçada
Sobre a tranquilla corrente;
Logo sente
Vir a enchente
Longe, longe a rouquejar,
Que a pobrezinha desfolha,
Sem lhe deixar uma folha,
Sem deixal-a em seo logar.

V.

Não consintas pois que as magoas,
Como as agoas,
Que das fragas
Furiosas vem tombando,
Vão tomando,
Vão levando
A flôr do teu coração!
Ha na vida u’ amor somente,
Um só amor innocente,
Uma só firme paixão.

VI.

[Pg 128]

Sê antes flôr bemfadada,
Suspirada,
Bafejada
Pela brisa que a namora,
Pela frescura da aurora,
Que a colora:
Á luz do sol se recreia,
E de noite se retrata
Da fonte na lisa prata,
Quando o céo de luz se arreia.

AS DUAS AMIGAS.

. . . . . . . Vivamos juntas
N’um só logar!
N’um só logar, ou sejão mansos ares,
Se alli te exaltas;
Ou sejão campos, se é alli que a relva
De pranto esmaltas.
V. HUGO. TRAD.
Já vistes sobre a flôr de manso lago
Duas aves brincando solitarias,
Já pousadas na lisa superficie,
Já levantando o vôo?
Já vistes duas nuvens no horisonte,
Brancas, orladas com listões de fogo,
A deslumbrante alvura cambiando
Ao pôr de sol estivo?
Já vistes duas lindas mariposas,
Abrindo ao romper d’alva as longas azas,
Onde reflecte o sol, como um prisma,
Bellas, garridas côres?
Nem as pombas que vagão solitarias,
Nem as nuvens do occaso, nem as vagas
Borboletas gentis que adejão livres
Em valle ajardinado;
[Pg 129]
Tanto não prazem, como doces virgens,
Airosas, bellas, com sorrir singelo,
Da vida negra e má duros abrólhos
Impróvidas calcando.
Quanto ha no mundo d’illusões fagueiras,
De perfume e de amor, guardão no peito,
Quanto ha de luz no céo mostrão nos olhos,
Quanto ha de bello—n’alma.
Como um jardim seo coração se mostra,
Seos olhos como um lago transparente,
Sua alma como uma harpa harmoniosa,
Seu peito como um templo!
Mas um fraco arruido espanta as aves,
Uma brisa ligeira as nuvens rasga,
E uma gota de orvalho ensopa as azas
Das leves mariposas.
Desgarradas voando as aves fogem,
Dos castellos dos céos perdem-se as nuvens,
Nem mais adejão borboletas vagas
Sobre o esmalte das flôres.
Pois quem resiste ao perpassar do tempo?
Depois que derramou grato perfume
Sobre as azas dos ventos que a bafejão,
A flôr tambem definha.
Mas um nobre sentir que se enraiza
No peito da mulher, que menos ame,
É como essencia preciosa e grata,
Que se lacrou n’um vaso.
Repassa-o: depois embora o esgotem;
Leves emanações, gratos effluvios
Ha de eterno verter da mesma essencia,
Talvez porêm mais doces.

SONHO.

[Pg 130]

Ah! frown not, sweet lady, unbend your soft brow
Nor deem me too happy in this!
If I sin in my dream, I atone for it now,
Thus doom’d but to gaze upon bliss.
BYRON.
Sonhava esta noite, Donzella formosa,
Já quando as estrellas tombavão no mar,
Que eu via a meu lado uma esbelta figura
Divina e mimosa....
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
Divina e mimosa, co’um véo se cobria
D’estrellas fulgentes de brilho sem par;
O rosto era vosso, era vossa a estatura,
E o anjo dizia....
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
E o anjo dizia co’um geito celeste:
«Affectos que em outro não pude encontrar
«Por fim me rendérão,—paixão lisa e pura.»
Que tanto soffreste...
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
«Pois tanto soffreste, não devo impiedosa
«Fineza tão grande por fim mal pagar!»
Eis sinto um abraço estreitar-me a cintura,
E uns labios de rosa...
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
E uns labios de rosa cobrirem-me a fronte
Com tepidos beijos de férvido amar!
Prazer tão subido após tanta amargura.
Não sei como o conte!...
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
[Pg 131]
Não sei como o conte!—nos labios de rosa
Vivi encantado sem ver, nem pensar,
Em quanto apertava a ligeira cintura,
Cintura mimosa....
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
Cintura mimosa!—depois vos tecia
Grinalda que a fronte vos fosse adornar,
E um cinto de amores com bróche esmaltado
De meiga poesia!...
Quem tão bem fadado
Vivera a sonhar!
De meiga poesia, meo bem, minha amada,
Já pago de quanto me fazeis penar,
Então vos tangia descantes na lyra,
Na lyra afinada!
O sonho é mentira;
Não quero sonhar!

SOLIDÃO.

Solo e pensoso i più deserti campi
Vo misurando a passi tardi e lenti
E gli occhi porto per fuggire intenti
Ove vestigio human l’arena stampi.
PETRARCA. Sonetti.
Se queres saber o meio
Por que as vezes me arrebata
Nas azas do pensamento
A poesia tão grata;
Por que vejo nos meos sonhos
Tantos anginhos dos céos;
Vem commigo, ó doce amada,
Que eu te direi os caminhos,
Donde se enxérgão anginhos,
Donde se trata com Deos.
[Pg 132]
Fujamos longe das villas,
Das cidades populosas,
Do vegetar entre as vagas
Destas côrtes enganosas;
Fujamos longe, bem longe,
Deste viver cortesão!
Fujamos desta impureza,
Só vês cordura por fóra;
Mas nunca o vicio que mora
Nas dobras do coração!
Fujamos! que nos importa
Rodar do carro que passa,
Esta orgulhosa vã gloria,
Que se resolve em fumaça?
Estas vozes, estes gritos,
Este viver a mentir?
Fujamos, que em taes logares
Não ha prazer innocente,
Só alegria que mente,
Só labios que sabem rir!
Fujamos para o deserto;
Vivamos alli sosinhos,
Sosinhos, mas descuidados
Destes cuidados mesquinhos;
Tu o azul do espaço olhando
E eu só a rever-me em ti!
Quando depois nos tomarmos
Á terra serena e calma,
Aqui acharei tua alma,
E tu me acharás aqui.
Ou corramos o oceano
Que d’immenso a vista cança;
Dormirei no teu regaço
Quando o tempo for bonança,
Quando o batel for jogando
Em leve ondular sem fim.
[Pg 133]
Mas nos roncos da procella,
Nossos olhos encontrados,
Nossos braços enlaçados,
Hei de cantar-te, inda assim!
Ou se mais te praz, zombemos
Das setas que arroja a sorte;
Vivamos nas minhas selvas,
Nas minhas selvas do norte,
Que gemem nenias sentidas
No seio da escuridão.
Não tem doçura o deserto,
Não têm harmonia os mares,
Como o rugir dos palmares
No correr da viração!
Tu verás como a luz brinca
Nas folhas de côr sombria;
Como o sol, pintor mimoso,
Seos accidentes varia;
Como é doce o romper d’alva,
Como é fagueiro o luar!
Como alli sente-se a vida
Melhor, mais viva, mais pura,
N’aquella eterna verdura,
N’aquelle eterno gozar!
Vem commigo, oh! vem depressa,
Não se esgota a natureza;
Mas desbota-se a innocencia,
Divina e sancta pureza,
Que dá vida aos objectos,
Feituras da mão de Deos!
Vem commigo, ó doce amada,
Que são estes os caminhos,
Donde eu enxergo os anginhos,
Que tu vês nos sonhos meus.

A UM POETA EXILADO.

[Pg 134]

Il accuse et son siècle, et ses chants, et sa lyre,
Et la coupe enivrante où, trompant son délire,
La gloire verse tant de fiel,
Et ses voeux, poursuivant des promesses funestes,
Et son coeur, et la Muse, et tous ces dons célestes,
Hélas! qui ne sont pas le ciel!
V. HUGO.
Tão bem vaguei, Cantor, por clima estranho,
Vi novos valles, novas serranias,
Vi novos astros sobre mim luzindo;
E eu só! e eu triste!
Ao sereno Mondego, ao Doiro, ao Tejo
Pedi inspirações,—e o Doiro e o Tejo
Do misero proscripto repetirão
Sentidos carmes.
Repetio-mos o placido Mondego;
Talvez em mais de um peito se gravárão,
Em mais de uns meigos labios murmurados,
Talvez soárão.
Os filhos de Minerva, novos cysnes,
Que a fonte dos amores meigos cria,
E alguns de Lyzia sonorosos vates,
Sisudos mestres;
Ouvindo aquelle canto agreste e rudo
Do selvagem guerreiro,—e a voz do piaga
Rugindo, como o vento na floresta,
Prenhe d’augurios;
Benignos me olharão, e aos meos ensaios
Talvez sorrirão; porém mais prendeo-me,
Quem soffrendo como eu, chorou commigo;
Quem me deo lagrimas!
[Pg 135]
Eu pois, que nesta vida hei aprendido
Só cantar e soffrer, não vejo embalde
Ao conto a dôr unida,—e os repassados
Versos de pranto.
Do triste poleá choro a desdita,
Choro e digo entre mim: «Pobre Canario
Que fado máo cegou, por que soltasse
Mais doce canto;
Pobre Orpheo, nestes tempos mal nascido,
Atraz d’um bem sonhado pelo mundo
A vagar com lyra—um bem que os homens
Não podem dar-te!
Se quer esta lembrança a dôr te abrande:
A vida é breve, e o teo cantar simelha
Vagido fraco de menino enfermo,
Que Deos escuta.

PALINODIA.

O céo não te dotou de formosura,
De attractivo exterior, e a natureza
Teo peito inficionou co’a vil torpeza
D’ingrata condição fallaz e impura!
BOCAGE.
Se só por vós, Senhora, corpo e alma,
Apezar da aversão que tenho ao crime,
Inteiro me embucei nos seos andrajos,
Em tremedal de vicios;
Se só por vós descri do que era nobre,
Por que involto em torpeza immunda e feia,
As vestes da virtude immaculada
Rebolquei-as no lodo;
[Pg 136]
Se só por vós persegue-me o remorso,
Que os dias da existencia me consome,
E entre angustias crueis minha alma anceia,
—Ludibrio dos meos erros:
Consenti que a moral os seos direitos
Reivendique uma vez, e que a minha alma
Das lições que bebeo na pura infancia
Uma hora se recorde!
Agora, agro censor, hão de os meos labios,
Duras verdades trovejando em verso,
Fazer de vós, o que a razão não pôde,
—Mulher ou estatua!
Mentistes quando amor tinheis nos labios,
Mentistes a compor meigos sorrisos,
Mentistes no olhar, na voz, no gesto...
Fostes bem falsa!...
Falsa, como a mulher que em bruta orgia
Finge extremos de amor que ella não sente,
E o rosto off’rece á osculos vendidos,
Ao sigillo da infamia.
Quantas vezes, Senhora, não cahistes
Humilhada, á meos pés, desfeita em pranto,
Chorando—e que choraveis?—a jurar-me...
—Que juraveis então?
Se pois sentistes compaixão amiga
A cahir gota a gota dos meos labios
No que eu suppunha cicatriz recente,
E que era ulcera funda;
Se me vistes os olhos incendidos,
Sangrar-me o coração no peito afflicto
Ao fel das vossas dôres, que azedaveis
Co’o pranto refalsado.
[Pg 137]
Ouvi!—não ereis bella,—nem minha alma
Vos amou, que um modello de virtudes,
—Um sublime ideal—amou somente;
Vós o não fostes nunca.
Que uma alma como a vossa, já manchada,
Aos negros vicios mais que muito affeita,
Já feia, já corrupta, já sem brilho....
Amal-a eu, Senhora!
Deitar-me sob a cópa traiçoeira,
Que ao longe espalha a sombra, o engano, a morte;
Recostar-me no seio onde outros dormem,
Que por ninguem palpita!
Beijar faces sem vida, onde se enxerga
Visgo nojento d’osculos comprados;
Crêr no que dizem olhos mentirosos,
Em prantos de loureira!
Antes curvar o collo envilecido
Ao jugo vil da escravidão nefanda;
Beijar humilde a mão que nos offende,
Que nos cobre de opprobrio!
Antes, possesso d’imprudencia estupida,
Brincando remecher no açafate,
Onde por baixo de mimosas flores,
O aspide se esconde!
Mas eu, nos meos accessos de delirio,
Voz importuna de continuo ouvia,
Cá dentro em mim, a repr’hender-me sempre
De vos amar ... tão pouco!
Assim o cego idolatra se culpa,
Nos espasmos d’ascetica virtude,
De não amar assaz o vão phantasma,
De suas mãos feitura.
[Pg 138]
Porém se luz melhor de cima o aclara,
Cóspe affronta e desdem, e á chamma entrega
O cepo vil, que não merece altares,
Nem d’offrendas é digno!
Releva-se a imprudencia feminina,
Inda um erro, uma culpa se perdôa,
Se a desvaira a paixão, se amor a cega
No mar de escolhos cheio.
O Deos, que mais perdôa a quem mais ama,
Talvez da vida a negra mancha apaga
A quem as azas de algum anjo orvalha
De lagrimas contritas.
Mas não á aquella, em cujo peito móra
Torpeza só,—onde o amor se cobre
De vicios—a nutrir-se d’impurezas,
Como vermes de lodo.
Se porém te aproveita o meo conselho,
Á quem, mais do que a mim, tens offendido,
Que entre os risos do mundo, vê tua alma
E lê teos pensamentos;
Se não crês n’outra vida alem da morte,
Roga se quer a Deos, que te não rompa
Á luz do sol divino da Justiça
A mascara d’enganos!
Que a rainha da terra inamolgavel,
—A dura opinião—te não entregue,
Sosinha, e núa, e d’irrisão coberta,
Á popular vindicta!

OS SUSPIROS.

[Pg 139]

Mucha pena ¿verdad? mucha amargura
Guardaba allá en sus senos escondida
A despedir-te el alma dolorida,
Hijo de su cariño y su ternura.
ROMEA.
Muitas vezes tenho ouvido,
Como languidos gemidos,
Frouxos suspiros partidos
D’entre uns labios de coral:
A fina tez lhes deslustrão,
Bem como o alento que passa
Sobre o candor d’uma taça
De transparente crystal.
Ouvido os tenho mil vezes
Do coração arrancados,
Sobre labios desmaiados
Susurrando esvoaçar!
Como flôr submarinha
Da funda gleba arrancada,
De vaga em vaga arrastada,
Correndo de mar em mar!
Ouvido os tenho mil vezes,
Em quanto a lúa fulgura,
Quando a virgem d’alma pura
Fita seos olhos no céo:
Notas de mundo longinquo
Repassadas de harmonia,
Diamante que alumia
A tela de um fino véo!
Tu, virgem por que suspiras?
Quando suspiras que scismas?
Em que reflexões te abysmas?
—Do passado ou do porvir;
[Pg 140]
Mas não tens passado ainda,
Tudo é flores no presente,
Brilha o porvir docemente,
Como do infante o sorrir.
Tu, virgem, por que suspiras?
—Murmura trepida a fonte,
De relva se cobre o monte,
As aves sabem cantar;
O ditoso tem sorrisos,
O desgraçado tem pranto,
A virgem tem mais encanto
No seo vago suspirar!
Suspirar, ó doce virgem,
É da alma a voz primeira,
A expressão mais verdadeira
Da sina e do fado teo!
Vago, incerto, indefinido,
Tem um quê de inexplicavel,
Como um desejo insondavel,
Como um reflexo do céo.
Eu amo ouvir teos suspiros,
Ó doce virgem mimosa,
Como nota harmoniosa,
Como um cantico de amor;
Mais do que a flôr entre as vagas
Sem destino fluctuando,
Folgo de os ver expirando
Em labios de rubra côr.
Mais que a longinqua harmonia,
Que o alento fraco, incerto,
Que o diamante coberto,
Scintillando almo fulgor;
Fólgo de ouvir teos suspiros,
Ó doce virgem mimosa,
Como nota harmoniosa,
Como um cantico de amor!

QUEIXUMES.

[Pg 141]

I.

Onde estás, meo senhor, meos amores?
A que terras—tão longes!—fugiste?
Onde agora teos dias se escoão?
Por que foi que de mim te partiste?

II.

Não te lembras! quando eu te rogava
Não te fosses de mim tão azinha,
Prometteste-me breve ser minha
Tua vida, que o mar me roubava.

III.

Tão amigo do mar foste sempre,
Por que amigos talvez não achaste!
Nem carinhos, nem prantos te ameigão?
Nem por mim, que te amava, o deixaste?

IV.

Vejo além o logar onde estava
Tua esbelta fragata ancorada,
Mal soffrida jogando afagada
Do galerno que amigo a chamava.

V.

Da partida era o funebre instante,
Breve instante de afflictos terrores,
Quando o mar traiçoeiro, inconstante,
Me roubava meos puros amores!

VI.

Inda chóro essa noite medonha,
Longa noite de má despedida!
Teo amor me deixaste nos braços,
Nos teos braços levaste-me a vida!

VII.

[Pg 142]

Oh! cruel, que então foste commigo,
Que te hei feito que punes-me assim?
Teo navio que tantos levava,
Não podia levar mais a mim?

VIII.

Mas a mim!—que importava que eu fosse?
Não me ouvira a tormenta chorar,
E morrer me seria mais doce
Junto a ti,—que o meo triste penar!

IX.

Junto a ti me era a vida bem cara,
Oh! bem cara!—se ledo sorrias,
Se pensavas sosinho e profundo,
Se agras dôres comtigo curtias;

X.

Eu te amava, senhor!—Nem podia
Dentro em mim, convencer-me que fosse
Outra vida melhor, nem mais doce,
Nem que o amor se acabasse algum dia!

XI.

Mas o mar tem lindezas que encantão,
Tem lindezas, que o nauta namora,
Tão bem dizem que vozes descantão
No silencio pacato desta hora!

XII.

São de nymphas os mares pejados,
Tão bem dizem, que sabem magia,
Que suscitão cruel calmaria,
Só d’em torno dos seos namorados!

XIII.

Alta noite, bem perto, apparece,
Como leiva juncada de flôres,
Ilha fertil em faceis amores,
Onde o nauta da vida se esquece!

XIV.

[Pg 143]

Não te esqueças de mim!—Por Sevilha
Quando o peito de branco marfim
Perceberes na preta mantilha,
Sombreado por leve carmim;

XV.

Quando vires passar a Andalusa
Pelos montes, com ar magestoso,
Decantando nas modas de que usa
As loucuras do Cid amoroso;

XVI.

Quando vires a molle Odalisca.
De belleza e de extremos fadada,
Respirando perfumes da Arabia,
Em sericos tapises deitada;

XVII.

Quando a vires co’a fronte bem cheia
De riquezas, de graças ornada,
Pelo andar do elefante embalada,
Que alta escolta de eunuchos rodeia;

XVIII.

Quando vires a Grega vagando
Pelas Ilhas de Cós ou Megára,
Em sua lingoa, tão doce, cantando
Seos amores que o Turco roubara;

XIX.

Quando a vires no Carro de Homero,
Bella e grave e sisuda lavrando,
Pelos montes melifluos do Hymeto
A parelha de bois aguilhando;

XX.

Não te esqueção meos duros pesares,
Não te esqueças por ellas de mim,
Não te esqueças de mim pelos mares,
Não me esqueças na terra por fim!

XXI.

[Pg 144]

Se eu fosse homem, tão bem desejára
Percorrer estes campos de prata,
E este mundo, na tua fragata,
Co’uma esteira cingir d’onda amara.

XXII.

Qu’ria ver a andorinha coitada
Nos meos mastros fugida poisar,
E achar no convez abrigada,
Quando o vento começa a reinar!

XXIII.

Ver o mar de toninhas coberto,
Ver milhares de peixes brincar,
Ver a vida nesse amplo deserto
Mais valente, mais forte pular!

Oh! que o homem fosse eu, mulher tu fosses,
Ou fosse tempestade ou calmaria,
Ou fosse mar ou terra, Hespanha ou Grecia,
Só de ti, só de ti me lembraria!
O mar suas ondas inconstante volve,
Sem que o seo curso o mesmo rumo leve,
Assim dos homens a paixão se move,
Fallaz e vária, assim no peito ferve!
Meditados enganos sempre encobre
O mesmo que ao principio ardente amava;
Oxalá não diga eu que me enganava,
Que teo peito julguei constante e nobre!
Oh! que o homem fosse eu, mulher tu fosses,
Ou fosse tempestade ou calmaria,
Ou fosse mar ou terra, Hespanha ou Grecia,
Só de ti, só de ti me lembraria!

AO ANNIVERSARIO DE UM CASAMENTO.

[Pg 145]

A MRS. A. N. V. DA G.

A filha d’Albion bem vinda seja
Ao solo brasileiro!
Bem vinda seja ás margens florescentes
Do Rio hospitaleiro!
Qu’importa que te acene a Patria ao longe,
Que vejas incessante
As memorias, os templos, os palacios
Da Cidade gigante?
A patria é onde quer que a vida temos
Sem penar e sem dôr;
Onde rostos amigos nos rodeião,
Onde temos amor:
Onde vozes amigas nos consolão
Na nossa desventura,
Onde alguns olhos chorarão doridos
Na erma sepultura;
A patria é onde a vida temos presa:
Aqui tão bem ha sol!
Tão bem a brisa corre fresca e leve
Da manhã no arrebol!
Aqui tão bem a terra produz flores,
Tão bem os céos têm côr;
Tão bem murmura o rio, e corre a fonte,
E os astros têm fulgor!
Aqui tão bem se arrelva o prado, o monte,
De mimoso tapiz;
Nas azas do silencio desce a noite
Tão bem sobre o infeliz!
[Pg 146]
A filha d’Albion bem vinda seja
Ao solo brasileiro;
Bem vinda seja ás margens florescentes
Do Rio hospitaleiro!
Compridos annos e folgados viva
Neste ditoso clima,
E veja á par dos filhos seos queridos
Crescer do esposo a estima!
Possa eu tão bem do seo feliz consorcio
De novo em cada anno
Soltar um hymno de amizade extreme,
Um canto mais que humano!

24 de Março.


CANTO INAUGURAL.
Á MEMORIA DO CONEGO JANUARIO DA CUNHA BARBOSA.

Onde essa voz ardente e sonorosa,
Essa voz que escutámos tantas vezes,
Polida como a lamina d’um gladio,
Essa voz onde está?
No rostro popular severa e forte,
No pulpito serena, amiga e branda,
Pelas naves do templo reboava,
Como oração piedosa!
E a mão segura, e a fronte audaciosa,
Onde um vulcão de ideias borbulhava,
E o generoso ardor de uma alma nobre
—Onde párão tão bem?
[Pg 147]
Novo Colombo audaz por novos mares,
A sonda em punho, os olho nas estrellas,
Co’as bronzeas quilhas retalhando as vagas
Do inhospito elemento;
Porfioso e tenaz no duro empenho,
No manto do porvir bordava ufano,
Sob os tropheos da liberdade sacra,
Os destinos da Patria!
Nocturno viajor que andou vagando
A noite inteira, a revolver-se em trevas,
Onde te foste, quando o sol roxeia
Nuvens de um céo mais puro?
Seccou-se a voz nas fauces resequidas,
Parou sem força o coração no peito,
Quando somente um pé firmava a custo
Na terra promettida!
E a mão cançada fraquejou ... pendeo-lhe,
Inda a vejo pendente, sobre os paginas
Da patria historia, onde gravou seo nome
Tarjado em letras d’oiro.
Pendeo-lhe ... quando a mente escandecida
Talvez quadro maior lhe affigurava
Que a luta acerba do Titan brioso,
Ultima prole de Saturno.
Inveja Claudiano pincel valido,
Que nos retrata o cataclysmo horrendo,
Que elle—poeta—não achou nos combros
Da ignivoma Tessalia!
Inveja!... mas ás formas do Gigante
Sorri-se o grande Homero;—e o cego Bardo
Da verde Erin, entre os heróes famosos
Prazenteiro o recebe!

[Pg 148]

Dorme, ó lutador, que assaz lutaste!
Dorme agora no gelido sudario;
Foi duro o afan, asperrima a contenda,
Será fundo o descanço.
Dorme, ó lutador, teo somno eterno;
Mas sobre a lousa do sepulchro humilde,
Como na vida foi, surja o teo busto
Austero e glorioso.
Columna inteira em combros derrocados,
Rolo encerado, que já beija as praias
Do remoto porvir,—seguro e salvo
Dos naufragios d’um seculo;
Dorme!—não serei eu quem te desperte,
Meos versos ... não serão:—palmas sem graça,
Ou pobre ramo d’arvore funerea,
Pyramidal cypreste.
São flôres que desfolha sobre um tumulo
Singelo, entre um rosal, quasi fagueiro,
Piedosa mão de peregrino extranho,
Que alli passou acaso!

TABYRA.

[Pg 149]


DEDICATORIA

AOS PERNAMBUCANOS.

Salve, terra formosa, ó Pernambuco,
Veneza Americana, transportada
Boiante sobre as agoas!
Amigo genio te formou na Europa,
Genio melhor te despertou sorrindo
Á sombra dos coqueiros.
Salve, risonha terra! são teos montes
Arrelvados, innumeros teos valles,
Cujas veias são rios!
Doces teos prados, tuas varzeas ferteis,
Onde reluz o fructo sasonado
Entre o matiz das flores!
Outros, patria d’heroes, teos feitos cantem,
E a bella historia de colonia exaltem,
E os nomes forasteiros;
Não eu, que nada almejo senão ver-vos,
Tu e Olinda, ambas vós, co’os olhos longos,
Expraiados no mar!
[Pg 150]
Ambas vós, sobre tudo americanas,
Doces flores dos mares de Colombo,
Filhas do norte ardente!
Virgens irmãs, que vão de mãos travadas
Sorrirem d’innocencia á propria imagem,
Que luz em claro arroyo.
Andei, por vós somente, em vossas matas,
Colhendo agrestes flores na floresta,
Não respiradas nunca,
Singelas, como vós,—como vós, bellas,
Ennastrei-as em forma de grinalda
Fino, extremoso amante!
Não vivem muito as flores: são meos versos
Ephemeros como ellas; côr sem brilho,
Ou perfume apagado,
Ou trino fraco d’ave matutina,
Ou echo de um baixel que passa ao longe
Com descante saudoso.

TABYRA.
(POESIA AMERICANA.)

Les peaux rouges, plus nobles, mais plus infortunées
que les peaux noires, qui arriveront un jour á la
liberté par l’esclavage, n’ont d’autre recours que la
mort, parce que leur nature se refuse à la servitude.

* * *

I.

É Tabyra guerreiro valente,
Cumpre as partes de chefe e soldado;
É caudilho de tribu potente,
—Tobajaras—o povo senhor;
Ninguem mais observa o tratado,
Ninguem menos de p’rigos se aterra,
Ninguem corre aos acenos da guerra
Mais depressa que o bom lidador!

II.

[Pg 151]

Seo viver é batalha aturada,
Dos contrarios a traça aventando;
É dispor a cilada arriscada,
Onde o imigo se venha metter!
Levão noites com elle sonhando
Potiguares, que o virão de perto;
Potiguares, que assellão por certo
Que Tabyra só sabe vencer!

III.

Mil enganos lhe têm já tecido,
Mil ciladas lhe têm preparado;
Mas Tabyra, fatal, destemido,
Tem feitiço, ou encanto, ou condão!
Sempre o plano da guerra é frustrado,
Sempre bravo fronteiro apparece,
Que os enganos crueis lhes destece,
Face a face, arco e setas na mão.

IV.

Já dos Luzos o troço apoucado,
Paz firmando com elle traidora,
Dorme illeso na fé do tratado,
Que Tabyra é valente e leal.
Sem Tabyra dos Luzos que fôra?
Sem Tabyra que os guarda e defende,
Que das pazes talvez se arrepende
Já feridas outr’ora em seo mal!

V.

Chefe stulto d’um povo de bravos,
Mas que os piagas victorias te fadem,
Hão de os teos, miserandos escravos,
Taes triunfos um dia chorar!
Caraibas taes feitos applaudem,
Mas sorrindo vos forjão cadeias,
E pesadas algemas, e peias,
Que traidores vos hão de lançar!

[Pg 152]

VI.

Chefe stolido, insano, imprudente,
Sangue e vida dos teos malbaratas?!
Mingua as forças da tribu potente,
Vencedora da raça Tupi!
Hão de os teca, acoçados nas matas
Mal feridos, sangrentos, ignavos,
Não podendo viver como escravos,
Dar o resto do sangue por ti!

VII.

Vivem homens de pel’ côr da noite
Neste solo, que a vida embelleza;
Podem, servos, debaixo do açoite,
Nenias tristes da patria cantar!
Mas o indio que a vida só preza
Por amor dos combates, e festas
Dos triunfos sangrentos, e sestas
Resguardadas do sol no palmar;

VIII.

Ocioso, indolente, vadio,
Ou activo, incançavel, fragueiro;
Já nas matas, no bosque erradio,
Já disposto a lutar, a vencer;
Ama as selvas, e o vento palreiro,
Ama a gloria, ama a vida; mas antes
Que viver amargados instantes,
Quer e pode e bem sabe morrer!

IX.

Eis, avante! ó caudilho valente!
Potiguares lá vêm denodados;
Tão cerrado concurso de gente,
Ninguem vio nestas partes assim!
Poucos são, mas briosos soldados;
Não são homens de aspecto jocundo!
Restos são, mas são restos d’um mundo;
Poucos são, mas soldados por fim!

X.

[Pg 153]

Os seos velhos disserão comsigo,
Discutindo os motivos da guerra:
«É Tabyra—cruel, inimigo,
Já nem crê, renegado, em Tupan!»
Pés robustos lá batem na terra,
Pó ligeiro se expande nos ares:
Era noite! milhar de milhares
São armados, mal rompe a manhã.

XI.

Vêm soberbos,—o sol luz apenas!
Confiados, galhardos, lustrosos,
Vêm bizarros nas armas, nas pennas,
Atrevidos no accento e na voz!
Um d’entre elles, dos mais orgulhosos,
Sóbe á pressa nas aspas d’um monte:
Dalli brada, postado defronte
De Tabyra—com geito feroz:

XII.

«Ó Tabyra, Tabyra! aqui somos
A provar nossas forças comtigo;
Dizes tu que vencidos já fomos!
Dil’-o tu, não n’o diz mais ninguem.
Ora eu só a vós todos vos digo:
Sois cobardes, irmãos de Tabyra!
Propagastes solemne mentira,
Que vencer não sabemos tão bem.

XIII.

«Para o vosso terreiro vos chamo,
Contra mim vinde todos,—sou forte:
Occorrei ao meo nobre reclamo!
Aqui sou, nem me parto daqui!
Vinde todos em densa cohorte:
Travaremos combate sangrento,
Mas por fim do triunfo cruento
Direis vós, se fui eu quem menti.»

XIV.

[Pg 154]

Disse o arauto: eis a turba ufanosa
Lhe responde, arco e setas brandindo,
Pés batidos, voz alta e ruidosa:
—Bem fallado, ó guerreiro, mui bem!
Assim é; mas Tabyra rugindo,
Resentido de offensas tamanhas,
O rancor mal encobre das sanhas,
Que não lava no sangue de alguem.

XV.

Raso outeiro alli perto se off’rece:
Vinga-o prestes, hardido, açodado!...
Como leiva de pallida messe,
Já madura, tremendo no pé;
Todo o campo descobre occupado
Por guerreiros,—no extremo horisonte
Não destingue nas faldas do monte,
O que é gente, o que gente não é.

XVI.

Não se abala o preclaro guerreiro,
Do que vê seo valor não fraqueia;
Diz comsigo: «Um só golpe certeiro
Vai de todo esta raça apagar!
Juntos são, mas são meos!»—Já vozeia;
Logo os seos lhe respondem gritando,
Taes rugidos, taes roncos soltando
Que aos seus proprios deverão turbar!

XVII.

Diz a fama que então de assustadas
Muitas aves que o espaço crusavão,
De pavor subitaneo tomadas,
Descahião pasmadas no chão:
Já com silvos e atitos voavão
Muitas outras, que o triste gemido
No conflicto, abafado e sumido,
Talvez darão,—mas fraco, mas vão!

XVIII.

[Pg 155]

Eis que os arcos de longe se encurvão,
Eis que as setas aladas já voão,
Eis que os ares se cobrem, se turvão,
De frexados, de surdos que são.
Novos gritos mais altos reboão,
Entre as hostes se apaga o terreno,
Já tornado apoucado e pequeno,
Já coberto de mortos o chão!

XIX.

Peito a peito encontrados afoutos,
Braço a braço travados briosos,
Fervem todos inquietos, revoltos,
Qu’indicisa a victoria inda está.
Todos movem tacápes pesados;
Qual resvala, qual todo se enterra
No imigo que morde na terra,
Que sepulcro talvez lhe será.

XX.

«Mas Tabyra! Tabyra! que é delle?
«Onde agora se esconde o pujante?»
—Não n’o vedes?!—Tabyra é aquelle
—Que sangrento, impiedoso la vai!
—Vel-o-heis andar sempre adiante,
—Larga esteira de mortos deixando
—Traz de si, como o raio cortando
—Ramos, troncos do bosque, onde cai.—

XXI.

«Foge! foge! leal Tobajara;
«Quantos arcos que em ti fazem mira?!»
—Muitos são; porém medos encara
—Face a face, quem é como eu sou!—
Muitas setas cravejão Tabyra:
Bello quadro!—mas vel-o era horrivel!
Porco-espim que sangrado e terrivel
Duras cerdas raivando espetou!

XXII.

[Pg 156]

Tem um olho d’um tiro frexado!
Quebra as setas que os passos lh’impedem,
E do rosto, em seo sangue lavado,
Frexa e olho arrebata sem do!
E aos imigos que o campo não cedem,
Olho e frexa mostrando extorquidos
Diz, em voz que mais erão rugidos:
—Basta, vis, por vencer-vos um só!

XXIII.

E com furia tão grande arremettem,
Com despego tão nobre da vida;
Tantos golpes, tão fundos repetem,
Que senhores do campo já são!
Potiguares lá vão de fugida,
Inda á fera mais torva e bravia
Disputando guarida d’um dia
No mais fundo do vasto sertão!

XXIV.

Potiguares, que a aurora risonha
Vio nação numerosa e potente,
Não já povo na tarde medonha,
Mas só restos d’um povo infeliz!
Insepultos na terra inclemente
Muitos dormem; mas ha quem lh’inveja
Essa morte do bravo em peleja,
Quem a vida do escravo maldiz!

XXV.

«Este o conto que os Indios contavão,
«A deshoras, na triste senzalla;
«Outros homens alli descançavão,
«Negra pel’; mas escravos tão bem.
«Não choravão; somente na falla
«Era um quê da tristeza que mora
«Dentro d’alma do homem que chora
«O passado e o presente que tem!»


[Pg 157]

HYMNOS.


A LUA.

Figlia del ciel, sei bella!
Ma verrà notte ancor, che tu, tu stessa
Cadrai per sempre, e lascierai nel cielo
Il tuo azzurro sentier!
CESAROTTI.
Salve, ó Lua candida,
Que traz dos altos montes
Erguendo a fronte pallida,
Dos negros horisontes
As sombras melancolicas
Vens ora afugentar!
Salve, ó astro fulgido,
Que brilhas docemente,
Melhor que o lume tremulo
D’estrella inquieta, ardente,
Melhor que o brilho esplendido
Do sol ferindo o mar!
Salve, ó reflexo tenue
Da eterna luz preclara
Nas nossas noites horridas;
Qual sol que em lympha clara
Desponta os raios vividos,
Em tarja multicor;
[Pg 158]
Es como a virgem púdica,
Que amor no peito encerra;
Mas só, mas solitaria,
Vagando aqui na terra,
Treplíca o sello mystico
Do não sabido amor!
Eu te amo, ó Lua candida,
No gyro somnolento,
E o teo cortejo madido
De estrellas, e do vento
O sopro merencorio,
Que á noite dá frescor.
Por teos influxos magicos
Minha alma aos sons do canto
Revive; e os olhos humidos
Gotejão triste pranto,
Que orvalha a chaga tepido,
Que mingua a antiga dôr!
Em gelido sudario
De neve alvi-nitente,
Por terras vi longinquas,
Durante a noite algente,
A tua luz benfica
Luzir meiga do céo.
Nos mares solitarios
Tão bem a vi!—nas vagas
Brincava o lume argenteo,
Cantava o nauta as magas
Canções, no voluntario,
Cançado exilio seo!
Tão bem a vi na limpida
Corrente vagarosa;
Tão bem nas densas arvores
De selva magestosa,
Coando os raios lubricos
No lobrego palmar.
[Pg 159]
E eu só e melancolico
Sentado ao pé da veia,
Que a deslisar-se timida
Beijava a branca areia;
Ou já na sombra tetrica
Da mata secular;
Em devaneio placido
Velava, em quanto via
Ao longe—os altos pincaros
Da negra serrania,
—Disformes atalaias,
Que sempre alli serão!
No rórido silencio
Minha alma se exaltava;
E das visões phantasticas,
Que a lua desenhava,
Seguia os traços aureos,
Tremendo em negro chão!
Pensava ledo, improvido,
Até que de repente
Da minha vida misera
Se me antolhava á mente
A quadra breve e rapida
Do malfadado amor.
Então fugia attonito
O bosque, a selva, a fonte,
E as sombras, e o silencio;
Bem como o cervo insonte,
Que ás setas foge pavido
Do fero caçador!
Salve, ó astro fulgido,
Que brilhas docemente,
Melhor que o lume tremulo
D’estrella inquieta, ardente,
Melhor que o brilho esplendido
Do sol ferindo o mar.
[Pg 160]
Eu te amo, ó Lua pallida,
Vagando em noite bella,
Rompendo as nuvens turbidas
Da rispida procella;
Eu te amo até nas lagrimas
Que faces derramar.

A NOITE.

Noite, melhor que o dia, quem não te ama!
Quem não vive mais brando em teo regaço!
FILINTO.
Eu amo a noite solitaria e muda,
Quando no vasto céo fitando os olhos,
Alem do escuro, que lhe tinge a face,
Alcanço deslumbrado
Milhões de sóes a divagar no espaço,
Como em salas de esplendido banquete
Mil tochas aromaticas ardendo
Entre nuvens d’incenso!
Eu amo a noite taciturna e quêda!
Amo a doce mudez que ella derrama,
E a fresca aragem pelas densas folhas
Do bosque murmurando:
Então, máo grado o véo que involve a terra,
A vista do que vela enxerga mundos,
E apezar do silencio, o ouvido escuta
Notas de ethereas harpas.
Eu amo a noite taciturna e quêda!
Então parece que da vida as fontes
Mais faceis correm, mais sonoras soão,
Mais fundas se abrem;
Então parece que mais pura a brisa
Corre,—que então mais funda e leve a fonte
Mana,—e que os sons então mais doce e triste
Da musica se espargem.
[Pg 161]
O peito aspira sofrego ar de vida,
Que da terra não é; qual flôr nocturna,
Que bebe orvalho, elle se embebe e ensopa
Em extasis de amor:
Mais direitas então, mais puras devem,
Calada a natureza, a terra e os homens,
Subir as orações aos pés do Eterno
Para afagar-lhe o throno!
Assim é que no templo magestoso
Rebôa pela nave o som mais alto,
Quando o sacro instrumento quebra a augusta
Mudez do sanctuario:
Assim é que o incenso mais direito
Se eleva na capella que o resguarda,
E na chave da abobada topando,
Como um docel, se expraia.
Eu amo a noite solitaria e muda;
Como formosa dona em regios paços,
Trajando ao mesmo tempo luto e galas
Magestosa e sentida;
Se no dó attentais, de que se enluta,
Certo sentis pezar de a ver tão triste;
Se o rosto lhe fitais, sentis deleite
De a ver tão bella e grave!
Considerai porêm o nobre aspecto,
E o pórte, e o garbo senhoril e altivo,
E as fallas poucas, e o olhar sob’rano,
E a fronte levantada:
No silencio que a véste, adorna e honra,
Conhecendo por fim quanto ella é grande,
Com voz humilde a saudareis rainha,
Curvado e respeitoso.
Eu amo a noite solitaria e muda,
Quando, bem como em salas de banquete
Mil tochas aromaticas ardendo,
Girão fúlgidos astros!
[Pg 162]
Eu amo o leve odor que ella diffunde,
E o rorante frescor cahindo em per’las,
E a magica mudez que tanto falla,
E as sombras transparentes!
Oh! quando sobre a terra ella se estende,
Como em praia arenosa mansa vaga;
Ou quando, como a flôr d’entre o seo musgo,
A aurora desabrocha;
Mais forte e pura a voz humana sôa,
E mais se accórda ao hymno harmonioso,
Que a natureza sem cessar repete,
E Deos gostoso escuta.

A TEMPESTADE.

Fervescere faciet, quasi ollam,
profundum mare.
JOB 41, 42.

I.

De côr azul brilhante o espaço immenso
Cobre-se inteiro; o sol vivo luzindo
Do bosque a verde coma esmalta e doira,
E na corrente dardejando á prumo
Scintilla e fulge em laminas doiradas.
Tudo é luz, tudo vida, e tudo cores!
Nos céos um ponto só negreja escuro!
Eis que das partes, onde o sol se esconde,
Brilha um clarão fugaz pallido e breve:
Outro vem apoz elle, inda outro, muitos;
Succedem-se frequentes,—mais frequentes,
Assumem côr mais viva,—inda mais viva,
E em breve espaço conquistando os ares
Os horisontes co’o fulgir roxeião.
[Pg 163]
Qual mancha d’oleo em tela assetinada
Que os fios todos lhe repassa e embebe;
Ou qual abutre do palacio aereo
Tombando acinte,—no descer sem azas
Um ponto só,—até que em meia altura
Abrindo-as, paira magestoso e horrendo:
Assim o negro ponto avulta e cresce,
E a cupola dos céos de côr medonha
Tinge, e os céos alastra, e o espaço occupa.
A abobada de trevas fabricada
Descança em capiteis de fogo ardente!
De quando em quando o vento na floresta
Silva, ruge, e morre; e o vento ao longe
Rouqueja, e brama, e cava-se empolado,
E aos pincaros da rocha ennegrecida
De iroso e mal soffrido a espuma arroja!
Raivoso turbilhão comsigo arrastra
O argueiro, a folha em vortice espantoso;
No valle arranca a flôr, sacode os troncos,
Na serra abala a rocha, e move as pedras,
No mar os vagalhões incita e crusa.

II.

Os sons da tempestade ao longe escuto!
Concentra a natureza os seos esforços
Primeiro que entre em luta; não lampeja
Invio fogo nos céos; não sopra o vento:
É tudo escuridão, silencio e trevas!
Somente o mar de soluçar não cessa,
Nem de rugir as ramas buliçosas,
Nem de soar confuso borborinho,
Incompr’ensivel, como que sem causa,
Immenso como o echo de mil vozes
No céo de extensa gruta repulsando.
Silencio! perto vem a tempestade!
Gravidas nuvens de fataes coriscos,
[Pg 164]
Sem rumo, como náo em mar desfeito,
Em muda escuridão negros phantasmas,
Indistinctos, sem forma,—ondulão, jogão.
Logo poder occulto impelle as nuvens,
Attrahem-se os castellos tenebrosos,
Embatem-se nos ares,—brilha o raio,
E o ronco do trovão após rimbomba!

III.

Ruge e brame, sublime tempestade!
Desprende as azas do tufão que enfreias,
Despega os élos do veloz corisco
E as nuvens rasga em rubidas crateras.
Os fuzis da cadeia temerosa
Desfaz e quebra; e o espaço e as nuvens
Do teo açoite aos lategos bramindo,
Occupem de pavor os céos e a terra.
Ruge, e o teo poder mostra rugindo;
Que assim por teos influxos me commoves,
Que todo me electrisas e me arroubas!
Qual foi Mazeppa no veloz ginete
Por desertos, por syrtes arenosas
Jungido e preso e attonito levado;
Assim minha alma sobe e vai comtigo,
E vinga os teos palacios mais subidos,
Contempla os teos horrores, e dos astros
No prazer, que lhe dás, toda embebida,
Máo grado teo horror, folga comtigo!
Parece que alli tem a regia c’roa
Que o feliz condemnado achou na Ukraina.
Ruge, ruge embora, ó tempestade!

IV.

Emfim descendo a chuva copiosa
Nuvens, bulcões desfaz; os rios crescem,
De perolas a relva se matisa,
O céo de puro azul todo se arreia,
Sorri-se a natureza, e o sol rutila!

V.

[Pg 165]

Assim, meo Deos, assim será no dia
Do final julgamento, quando o anjo
Soprar a tromba que desfez os muros
De Jerichó soberba!
O mar sobrepujando os seos limites,
Com roncos temerosos, nunca ouvidos,
Virá para sorver, com furia brava,
Ilhas e continentes.
O sol, perdendo o brilho e a natureza,
Não luz, mas puro fogo, ha de accender-se,
Como o fogo sagrado, que se prende
Nas cortinas do templo.
Os orbes dos seos eixos desmontados,
No abysmo hão de cahir com grande estrondo,
E, redomas de vidro, hão de partir-se
Em pedaços sem conto.
Do abysmo as solidões hão de acordar-se!
Flammivomos vapores condensados,
Té nós, e alem de nós, hão de elevar-se
Em pavoroso incendio.
O ar ha de accender-se, a terra em fogo
Tornar-se, como o ferro ardendo em fragoa.
Coalhar-se o mar e em aspera seccura
Converterem-se as ondas.
E nesta confusão de fumo e chammas,
Neste cháos, que a mente mal alcança,
Quando nada existir de quanto existe,
Será vencida a morte.
Logo, á um só dizer do Omnipotente,
O pó segunda vez ha de animar-se,
E os mortos, mal soffrendo a luz da vida,
Attonitos, pasmados;
[Pg 166]
Hão de erguer-se na campa, inteiros, vivos,
E como Adão, a tatear os membros,
Estranhos a existencia já vivida,
Perguntarão: Quem somos?
Então, Senhor, então,—tu o disseste—
Virás cheio de gloria e magestade,
Em solio de luzeiros resplendente,
E em celeste cortejo!
Virás, sol da justiça, em fins do mundo
Acalmar a procella, e quando aos mortos
Disseres tu, quem es,—lembrar-nos-hemos,
Senhor, do que já fomos.
Feliz então quem só viveo comtigo,
Quem n’ancora da fé prendeu sua alma,
Quem só em ti fundou sua esperança,
Pequeno e humilde!
Feliz então quem tua lei guardando,
Seos passos graduou nos teos caminhos;
Quem dia e noite revolveo comsigo,
Como aplacar-te.


[Pg 167]

NOVOS CANTOS.



[Pg 169]

O HOMEM FORTE.

Impavidum ferient...
HORAT.
O modesto varão constante e justo
Pensa e medita nas licções dos sabios
E nos caminhos da justiça eterna
Gradúa firme os passos.
O brilho da sua alma não mareia
A luz do sol, nem do carvão se tisna;
Morre pelo dever, austero e crente,
Confessando a virtude.
Pode a calumnia denegrir seos feitos,
Negar-lhe a inveja o merito subido;
Pode em seo damno conspirar-se o mundo
E renegal-o a patria!
Tão modesto nos paços de Locullo,
Como encerrado no tonel do Grego,
Nem o transtorna a aragem da ventura,
Nem a desgraça o abate.
A tyrannos preceitos não se humilha,
Ante o ferro do algoz não curva a fronte,
Não faz callar da consciencia o grito,
Não nega os seus principios.
[Pg 170]
Antes, seguro e firme e confiado
No tempo, vingador das injustiças,
Co’os pés no cadafalso e a vista erguida
Se mostra imperturbavel.
Soffre martyr e expira! A patria emtorno
Do seo sepulchro o chora, onde a virtude,
Affeita ao luto e á dor, de novo carpe
Do justo a flebil morte!

DIES IRAE.

Jaz o mundo corrupto!—a terra ingrata
Fructos de maldicção produz somente;
E em quanto os homens ao mercado affluem,
Vazio o templo do Senhor se enluta,
Empoeira-se o altar, e pelas naves,
Gretadas, rotas pela mão do tempo,
De canticos e preces deslembradas,
A voz de Deos já não rebôa immensa!
Tudo porêm conserva o mesmo aspecto:
O sol gyrando, e na apparencia o mesmo,
Do anno as quadras compassado alterna;
E os astros, seos irmãos, gravitão sempre
D’abobada celeste. A terra é a mesma;
As aguas pelos valles se deslisão,
Ou d’alpestres montanhas se despenhão
Co’os mesmos sons, co’a mesma queda: as brisas
Inda conversão nos soturnos bosques;
A mulher, a mais bella creatura,
Nas suas proprias perfeições compraz-se,
Como quando, no Eden, as pulchras formas
Pasmou de ver representadas n’agua,
E de as ver se ufanou. Inda conserva
O mesmo orgulho e intelligencia o homem,
[Pg 171]
O rei da creação, o deos creado,
De quando vinhão, por pedir-lhe os nomes,
Cetaceos, aves e os reptis e aquellas
Creaturas-montanhas, que passárão
Entre Adão e Noé á flor da terra!
Tudo o mesmo se mostra; mas a alma,
Esse mundo interior, esse outro templo,
Onde gravára o proprio Deos seo nome,
Como os templos de pedra, jaz sem lume,
Jaz como o predio a desfazer-se em ruinas,
Onde um guarda solicito não móra,
E entregue as aves más, que em chilros pregão,
Que alli na ausencia do senhor imperão.
Da divina bondade cheio o vaso
Já transborda de cholera e justiça
E o largo rio do perdão saudavel,
Que mais não corra, impece: Sanctas aguas
Por cuja causa os seculos já virão,
Sem justa punição, offensas graves;
Que o Senhor consentisse persistirem
Os máos no mal, á espera d’emmendal-os;
Que triumphasse a malvadeza; e o crime,
Vexando os bons, senhoreasse a terra.
Mas Deos, que fôra outrora pae clemente,
Dando começo ao reino da justiça,
Em austero juiz se ha convertido.
Como um carro, que vae d’encontro ao abysmo,
Perfaz o sol precipite o seo gyro,
Indo a tocar a temerosa méta
Prevista dos prophetas. Um archanjo
Com mão robusta inda retem os élos
Da cadeia do tempo, em quanto a outra
Da vida o livro volumoso sélla
Com sete bronzeos sellos. Deos offeso
Tira os olhos do mundo, e o mundo ha sido!
[Pg 172]
Quem podera pintar as discordancias
Em que labora a natureza! Crescem
Da terra igneos vapores, suffocando
O que respira, o que tem vida: os montes
Em crateras se rásgão, que vomitão
Fumo e lava incessante; o mar s’empola
E em furia ardendo, arroja aos altos cimos
Crusados vagalhões, qual se tentára
Sôvertel-os: os ventos se contrastão!
Novos prodigios, novos monstros surgem!
O mar se torna em sangue, o sol em fogo,
O Universo em mansão d’afflictas dores,
O homem soffre, blasphema e desespera,
E vendo os mundos desabar precipites,
Um grito sólta d’horroroso transe,
Como de náo, que em alto mar s’afunda
E rola os restos n’amplidão das aguas.
Satisfez-se o Senhor. Que resta?—O cháos,
O horror, a confusão, o vulto enorme
Do tempo, que escurece o fundo abysmo,
Onde por todo o sempre jaz captivo;
E da morte o cadaver gigantesco
Quasi occupando a superficie inteira
D’um mar de chumbo, escuro e sem rumores.
Da gloria do Senhor um raio apenas,
Lá dos confins do espaço despedido,
Fere da morte o rosto macilento
De tudo quanto foi, e quanto existe!

ESPERA!

Quem ha no mundo que afflicções não passe,
Que dores não supporte?
Mais ou menos d’angustias cabe a todos,
A todos cabe a morte.
[Pg 173]
A vida é um o negro d’amarguras
E de longo soffrer;
Simelha a noite; mas fagueiros sonhos
Podem de noite haver.
Por que então maldiremos este mundo
E a vida que vivemos,
Se nos tornamos do Senhor mais dignos,
Quanto mais dôr soffremos?
Quantos cabellos temos, elle o sabe;
Elle póde contar
As folhas que ha no bosque, os grãos d’areia
Que sustentão o mar.
Como pois não será elle comnosco
No dia da afflicção?
Como não ha de computar as dores
Do nosso coração?
Como ha de ver-nos, sem piedade, o rosto
Coberto d’amargura;
Elle, senhor e pae, conforto e guia
Da humana creatura?
Se o vento sopra, se se move a terra,
Se iroso o mar fluctúa;
Se o sol rutila, se as estrellas brilhão,
Se gyra a branca lúa;
Deos o quiz, Deos que mede a intensidade
Da dôr e da alegria,
Que cada ser comporta—n’um momento
D’arroubo ou d’agonia!
Embora pois a nossa vida corra
Alheia da ventura!
Alem da terra ha céos, e Deos protege
A toda creatura!
[Pg 174]
Viajor perdido na floresta á noite,
Assim vago na vida;
Mas sinto a voz que me dirige os passos
E a luz que me convida.

A SAUDADE.

Saudade, ó bella flor, quando te faltem
Coração ou jardim, onde tu cresças;
Vem, vem ter commigo;
Deixa os que te não seguem,
Terás em peito amigo
Lagrimas, que te reguem,
Espaço, em que floresças.
Das pegadas da ausencia tu despontas,
Entre as memorias cresces do passado,
Quando um objecto amado
Quando um logar distante,
Noite e dia,
Nos enluta e apouquenta a fantasia.
Vem, ó Saudade, vem
A mim tambem
Consolar de gemidos suspirosos
E de partidos ais!
Oh! seja a punição dos insensiveis
Não te sentir jamais!
Propicia Deosa, e se não fosse a esperança,
Deosa melhor da vida; qu’insensato,
A quem mitigas turbidos pezares
Haverá tão ingrato
Que te não queime incenso em teos altares?
O presente o que é?—Breve momento
D’incommodo ou desgraça
Ou de prazer, que passa
Mais veloz que o ligeiro pensamento.
[Pg 175]
Véo escuro,
Que nem sempre a illusão nos adelgaça,
Nos encobre os caminhos do futuro.
O que nos resta pois?—Resta a saudade,
Que dos passados dias
De magoas e alegrias
Balsamo sancto extrahe consolador!
Resta a saudade, que alimenta a vida
Á luz do facho que adormenta a dôr!
Hera do coração, memoria delle,
Ó Saudade, ó rainha do passado,
Simelhas a romantica donzella
De roupas alvejantes
Nas ruinas de castello levantado:
Grinaldas fluctuantes,
Que das fendas brotarão,
Movem-se do nordeste
Ao sopro agudo e frio;
Em quanto vendo-o ao longe o senhorio,
De posses decahido,
D’invernos alquebrado,
Recorda triste os annos que passarão!
Em que plagas inhospitas e duras
Não me tens sido companheira e amiga?
Em que hora, em que instante
De folga ou de fadiga
Já deixei de sentir o penetrante
Espinho teo, a repassar-me todo
D’um prazer melancholico e suave?
Pois nasces nos desertos da tristeza,
Ó Saudade, ó rainha do passado!
Quando te falte gleba, onde tu cresças,
Vem, vem ter commigo;
Deixa os que te não seguem,
Terás em peito amigo
Lagrimas, que te reguem,
Espaço, em que floresças!
[Pg 176]
Entra em meo coração, occupa-o todo,
Fibra por fibra enlaça-te com elle,
Desce com elle á sepultura; e quando
Jazer eu na eternidade,
Minha flôr, minha saudade,
Tu procura a aura celeste,
Rompe a terra, transforma-te em cypreste,
Qu’enlute o meo jazigo;
E ao meneio das ramas funerarias,
Meo derradeiro amigo,
Descance morto quem viveo comtigo.

NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas aguas d’um regato
A flôr dizia em vão
Á corrente, onde bella se mirava....
«Ai, não me deixes, não!
«Commigo fica ou leva-me comtigo
«Dos mares á amplidão,
«Limpido ou turvo, te amarei constante;
«Mas não me deixes, não!»
E a corrente passava; novas aguas
Após as outras vão;
E a flôr sempre a dizer curva na fonte:
«Ai, não me deixes, não!»
E das aguas que fogem incessantes
Á eterna successão
Dizia sempre a flôr, e sempre embalde:
«Ai, não me deixes, não!»
Por fim desfallecida e a côr murchada,
Quasi a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.
[Pg 177]
A corrente impiedosa a flôr enleia,
Leva-a do seo torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
«Não me deixaste, não!»

ZULMIRA.

Sonhara-te eu na veiga de Granada,
Tapetada de flores e verdura,
Onde o Darro e Xenil no lento gyro
Volvem a lympha pura.
Alli te vejo em leda comitiva
Dos gentis cavalleiros do oriente,
Quando, deposta a malha do combate,
Vestem da paz a seda reluzente.
Alli te vejo n’um balcão sentada,
Grande preço da maura architectura,
Pejando as azas das nocturnas brisas
D’um canto de ternura.
Alli te vejo, sim; mas mais me agrada
O que se m’afigura n’outro instante,
Ver-te em vistosa tenda d’ouro e sedas,
Levantada no dorso do elefante.
E em roda, ao largo, o sequito pomposo
D’eunuchos a teo gesto vacillantes
Em cujas frontes negras se destacão
Alvissimos turbantes.
E pergunto quem es?—Então me dizem
Ciosos de guardar o seo thesouro,
Nome tão doce aos labios, que parece
Escrever-se em setim com letras d’ouro.

A UMA POETIZA.

[Pg 178]

—Donde vens, viajor?—
—De longe venho.
—Que viste?
—Muitas terras.
—E qual dellas
Mais te soube agradar?
—São todas bellas;
Fundas recordações de todas tenho.
E admiraste o que?
—Ah! onde as flores
Cada vez a manhã tornão mais linda,
Onde gemeo Paraguassú de amores
E os echos fallão de Moema ainda;
Alli, Sapho christã, virgem formosa,
A vida aos sons da lyra dulcifica:
D’escutar a sereia harmoniosa
Ou de vel-a, a vontade presa fica!
BAHIA—1852.

ANGELINA.

É gentil e linda e bella,
E eu sei que m’arrouba o vel-a
Tão divina:
A lyra seos cantos cesse;
Mas minha alma não s’esquece
D’Angelina!
[Pg 179]
Outro louve os seos cabellos,
Cante a luz dos olhos bellos
Que fascina;
E o leve sorrir donoso
Que irradia o rosto airoso
D’Angelina!
Os dotes diga que apura,
Quando em languida postura
Se reclina;
Que s’ergue, se acaso passa,
Susurro que applaude a graça
D’Angelina!
Que de amor quando suspira
O bardo quebrara a lyra,
De mofina;
Que jamais poderão cantos
Pintar ao vivo os encantos
D’Angelina.
Que da sua alma a pureza
Equipara-se á belleza
Peregrina;
Que amor seo throno tem posto
N’alma, no talhe e no rosto
D’Angelina.
Eu que não sei descrevel-a,
Só sei que me arroubo ao vel-a
Tão divina;
A lyra seos cantos cesse,
Mas minha alma não s’esquece
D’Angelina!

ROLA.

[Pg 180]

Desque amor me deo que eu lêsse
Nos teos olhos minha sina,
Ando, como a peregrina
Rola, que o esposo perdeo!
Seja noite ou seja dia,
Eu te procuro constante:
Vem, oh! vem, ó meo amante,
Tua sou e tu és meo!
Vem, oh vem, que por ti clamo;
Vem contentar meos desejos,
Vem fartar-me com teos beijos,
Vem saciar-me de amor!
Amo-te, quero-te, adoro-te,
Abraso-me quando em ti penso,
E em fogo voraz, intenso,
Anceio louca de amor!
Vem, que te chamo e te aguardo,
Vem apertar-me em teos braços,
Extreitar-me em doces laços,
Vem pousar no peito meo!
Que, se amor me deo que eu lêsse
Nos teos olhos minha sina,
Ando, como a peregrina
Rola, que o esposo perdeo.

AINDA UMA VEZ—ADEOS!—

[Pg 181]

I.

Enfim te vejo!—enfim posso,
Curvado a teos pés, dizer-te,
Que não cessei de querer-te,
Pezar de quanto soffri.
Muito penei! Crúas ancias,
Dos teos olhos afastado,
Houverão-me acabrunhado,
A não lembrar-me de ti!

II.

D’um mundo a outro impellido,
Derramei os meos lamentos
Nas surdas azas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludibrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males não sente,
Nem se condóe do infeliz!

III.

Louco, afflicto, a saciar-me
D’aggravar minha ferida,
Tomou-me tedio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quasi no passo extremo,
No ultimo arcar da esp’rança,
Tu me vieste á lembrança:
Quiz viver mais e vivi!

IV.

[Pg 182]

Vivi; pois Deos me guardava
Para este logar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e fallar-te outra vez;
Rever-me em teo rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teos pés.

V.

Mas que tens? Não me conheces?
De mim afastas teo rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meo?
Sei a afflicção quanto póde,
Sei quanto ella desfigura,
E eu não vivi na ventura....
Olha-me bem, que sou eu!

VI.

Nenhuma voz me diriges!...
Julgas-te acaso offendida?
Déste-me amor, e a vida
Que m’a darias—bem sei;
Mas lembrem-te aquelles feros
Corações, que se metterão
Entre nós, e se vencerão,
Mal sabes quanto lutei!

VII.

Oh! se lutei!... mas devera
Expôr-te em publica praça,
Como um alvo á populaça,
Um alvo aos dicterios seos!
Devera, podia acaso
Tal sacrificio acceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meos dias unindo aos teos?

VIII.

[Pg 183]

Devera, sim; mas pensava,
Que de mim t’esquecerias,
Que, sem mim, alegres dias
T’esperavão; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deos me acceitaria
O meo quinhão de alegria
Pelo teo quinhão de dôr!

IX.

Que me enganei, ora o vejo;
Nadão-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu t’o juro:
Sacrifiquei meo futuro,
Vida e gloria por te amar!

X.

Tudo, tudo; e na miseria
D’um martyrio prolongado,
Lento, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti confiei;
«Ella é feliz (me dizia)
«Seo descanço é obra minha.»
Negou-m’o a sorte mesquinha...
Perdôa, que me enganei!

XI.

Tantos encantos me tinhão,
Tanta illusão me afagava
De noite, quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde para?
Onde a illusão dos meos sonhos?
Tantos projectos risonhos,
Tudo esse engano desfez!

XII.

[Pg 184]

Enganei-me!...—Horrendo cháos
Nessas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra,
Não póde vóltar atraz!
Amarga irrisão! reflecte:
Quando eu gozar-te pudera,
Martyr quiz ser, cuidei qu’era...
E um louco fui, nada mais!

XIII.

Louco, julguei adornar-me
Com palmas d’alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
Co’o que se chama ideal?
O meo eras tu, não outro;
Estava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, na ausencia do mal.

XIV.

Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meo, outro fôra,
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura
Deos ab eterno a fizera,
No meo caminho a puzera...
E eu! eu fui que a não quiz!

XV.

Es d’outro agora, e p’ra sempre!
Eu a misero desterro
Volto, chorando o meo erro,
Quasi descrendo dos céos!
Dóe-te de mim, pois me encontras
Em tanta miseria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deos!

XVI.

[Pg 185]

Dóe-te de mim, que t’imploro
Perdão, a teos pés curvado;
Perdão!... de não ter ousado
Viver contente e feliz!
Perdão da minha miseria,
Da dôr que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Tambem do mal que me fiz!

XVII.

Adeos qu’eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida comtigo,
Ter sepultura entre os meos;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz commovida
Soluçar um breve Adeos!

XVIII.

Lerás porêm algum dia
Meos versos, d’alma arrancados,
D’amargo pranto banhados,
Com sangue escriptos;—e então
Confio que te commovas,
Que a minha dôr te apiade,
Que chores, não de saudade,
Nem de amor,—de compaixão.

O SOMNO.

[Pg 186]

Nas horas da noite, se junto a meo leito
Houveres acaso, meo bem, de chegar,
Verás de repente que aspecto risonho
Que toma o meo sonho,
Se o vens bafejar!
O anjo, que ao somno preside tranquillo,
Ao anjo da terra não ceda o logar;
Mas deixe-o amoroso chegar-se ao meo leito,
Unir-me a seo peito,
D’amor offegar.
As notas que exhalão as harpas celestes,
Os gozos, que os anjos só podem gozar,
Talvez tambem frúa, se ao meo peito unida
T’encontro, ó querida,
No meo acordar!

SE EU FOSSE QUERIDO!

Se eu fosse querido d’um rosto formoso,
Se um peito extremoso—podesse encontrar,
E uns labios macios, que expirão amores
E abrandão as dores—de alheio penar;
A tantos encantos minha alma rendida,
Votara-lhe a vida—que Deos me quiz dar:
Constante a seo lado, seos sonhos divinos
Aos sons dos meos hymnos—quizera embalar.
Depois, quando a morte viesse impiedosa
Da amante extremosa—meos dias privar,
De funda saudade minha alma rendida
Votara-lhe a vida—que Deos me quiz dar.

A FLÔR DO AMOR.

[Pg 187]

Já lento o passo, no cahir da tarde,
Lá nos desertos d’abrasada areia,
Que o vento agita, porêm não recreia,
Da caravana o conductor parou.
Armão-se ápressa tendas alvejantes,
Rumina placido o frugal camêlo;
Porêm a nuvem d’arabes errantes
Se achega á presa, que de longe olhou.
E já, tomada a refeição nocturna,
Junto a fogueira, que derrama vida,
Descanção todos da penosa lida
Á voz canora, que o cantor alçou!
Confuso o ouvido um borborinho alcança,
As armas toma o arabe prudente;
Mas logo pensa, regeitando a lança:
«Foi o grunhido que o chacal soltou.»
Ouvidos todo e curioso enlevo,
Toma de novo a retomar seo posto;
Pela fogueira alumiado o rosto,
Bebendo as vozes que o cantor soltou;
Simelha a terra, quando aberta em fendas
Da noite o orvalho sequiosa espera;
E o corsel arabe encostado ás tendas
Os sons lhe escuta, e de os ouvir folgou.
«Algures cresce (o trovador cantava)
Sempre fresca e virente e sempre bella,
Por influxo e poder de maga estrella,
Mimosa, pura e delicada flôr!
Jazendo em sitio escuso e solitario,
Esforços é mister p’ra conhecel-a,
Que diz a forte lei do seo fadario
Que a não descubra acaso o viajor.
[Pg 188]
«Alva do albor dos lirios odorosos,
Tem a modestia da violeta esquiva,
E o prompto retrahir da sensitiva,
Que parece vestir-se de pudor!
Assim, á luz da cambiante aurora,
Mudando um pouco a resplendente alvura,
De uns toques de carmim s’esmalta e córa
A graciosa e pudibunda flôr.
«Faz-se mais puro o ar, mais brando o clima,
Onde cresce; amenisão-se os logares,
Tornão se menos agros os pezares
E menos viva, e quasi nulla a dôr;
Fresca e branda alcatifa o chão matisa,
Com doce murmurio as aguas correm,
E o leve sopro do correr da brisa
Volupia embebe em magico frescor!
«Feliz aquelle que a encontrou na vida,
Que onde ella nasce timida e fagueira
Não s’ennovela a mó d’atra poeira,
Tangida pelo súmiu’ abrasador!
Alli sorri-se oasis venturoso,
Qu’entre deleites o viver matisa,
E ao que vai triste, afflicto e sem repouso
Chama a descanço do comprido error!
«Feliz e mais que se, perdido, achára
Conforto e auxilio no kathá, seo guia,
Que o leva a fonte perennal e fria
Onde se apaga o sitibundo ardor.
Tão feliz, qual talvez se o precedesse
Nos desertos a benção do propheta,
Que por fanal nocturno lhe accendesse
Maga estrella de limpido fulgor.
«Ai! porêm do que a vê, e a não conhece,
Do que a suspira em vão, e a em vão procura,
[Pg 189]
Ou que achando-a, desiste da ventura
Por não entrar no oasis seductor.
Essa flôr descoberta por acerto
Nunca mais a verás! colhe, insensato,
Colhe abrolhos da vida no deserto;
Pois despresaste a que produz o amor!»
Assim cantava o trovador; e todos
Ouvem-no com prazer de dôr travado,
Que mais do que um talvez terá deixado
Atraz de si a pudibunda flôr!
No emtanto a nuvem d’arabes errantes
Chega-se á presa, que avistou de longe;
E dos corseis, que alentão offegantes,
Precede a marcha turbido pavor!
E, nado o sol, aquelle que passava
Pelos desertos d’abrasada areia,
Que o rubro sangue de cruor rocheia,
A um lado o rosto, pallido, voltou!
Ninguem as mortes lastimaveis chora,
Ninguem recolhe os restos insepultos,
E o mesmo orvalho, que goteja a aurora,
Sem borrifal-os, no areial ficou!
Quem saberá do seo destino agora?
Ninguem! Somente em climas apartados
Miseranda mulher lastima os fados
De filho ou esposo, que jamais tornou!
Talvez porêm, traz de montões d’areia,
Nobre corsel sem cavalleiro assoma,
E alonga a vista, de pezares cheia,
Té onde a vida seo senhor deixou!

A SUA VOZ.

[Pg 190]

Por que ficasse a vida
Por o mundo em pedaços repartida.
CAMÕES CANÇ. X.
Ouvi-a! A sua voz me despertava
Tudo quanto de bom conservo n’alma.
Retratado o pudor no rosto,
E um suave dizer, um timbre doce
De voz, uma piedade extreme e sancta,
Que as mais profundas chagas animava,
D’ambrozia e de mel lhe ungia os labios.
Ouvi-a! A sua voz era mais branda,
Mais impressiva que o cantar das aves!
A aragem qu’entre flores se deslisa
E mal remeche a timida folhagem,
A veia de chrystal que triste sôa,
O saudoso arrulhar de mansas pombas,
As proprias notas d’um cantar longinquo
Ou de instrumento a conversar co’a noite,
Menos que a sua voz impressionavão!
Menos que a sua voz!—Os dois mais fortes,
Os dois mais puros sentimentos nossos
—A saudade e o amor,—as mais profundas
Das merencorias solidões da terra
—As florestas e o mar,—um scismar vago,
Um devaneio, uns extasis sem termo
D’alma perdida por um céo de amores,
Tanto como a sua voz não arroubavão!
Tanto como a sua voz!—somente o forão
Dulces notas de mysticos salterios
Té nós de um astro em outro repetidas.
Foi isto o que senti, quando a escutava,
[Pg 191]
Fluente, armoniosa, discorrendo
Em pratica singela, sobre assumptos
Diversos, sobre flores, menos bellas
Do que o seo rosto, e céos, como ella, puros.
Mas quem n’a ouvira conversar de amores
Trouxera n’alma como uma harpa eolia,
Dia e noite vibrando,
Como um cantar dos anjos
Do coração a estremecer-lhe as fibras!

SE SE MORRE DE AMOR!

Meere und Berge und Horizonte zwischen den Liebenden—aber die Seelen versetzen sich aus dem staubigen Kerker und treffen sich im Paradiese der Liebe.

SCHILLER. Die Räuber.

Se se morre de amor!—Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surprende
De ruidoso saráu entre os festejos;
Quando luzes, calor, orchestra e flores
Assomos de prazer nos raião n’alma,
Que embellezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!
Sympathicas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabellos,
Um quê mal definido, acaso podem
N’um engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delirio,
Devaneio, illusão, que se esvaece
Ao som final da orchestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamão,
D’amor igual ninguem succumbe á perda.
[Pg 192]
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração—abertos
Ao grande, ao bello; é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr’hender o infinito, a immensidade,
E a natureza e Deos; gostar dos campos,
D’aves, flores, murmurios solitarios;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E á branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o miserrimo dos entes:
Isso é amor, e desse amor se morre!
Amar, e não saber, não ter coragem
Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
O templo, onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses thesouros
Inexgotaveis, d’illusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compr’hender, sem lhe ouvir, seos pensamentos,
Seguil-a, sem poder fitar seos olhos,
Amal-a, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seos vestidos,
Arder por afogal-a em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!
Se tal paixão porêm emfim transborda,
Se tem na terra o galardão devido
Em reciproco affecto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procurão,
Entendem-se, confundem-se e penetrão
Juntas—em puro céo d’extasis puros:
Se logo a mão do fado as torna extranhas,
[Pg 193]
Se os duplíca e separa, quando unidos
A mesma vida circulava em ambos;
Que será do que fica, e do que longe
Serve ás borrascas de ludibrio e escarneo?
Póde o raio n’um pincaro cahindo,
Tornal-o dois, e o mar correr entre ambos;
Póde rachar o tronco levantado
E dois cimos depois verem-se erguidos,
Signaes mostrando da alliança antiga;
Dois corações porêm, que juntos batem,
Que juntos vivem,—se os separão, morrem;
Ou se entre o proprio estrago inda vegetão,
Se apparencia de vida, em mal, conservão;
Ancias crúas resumem do proscripto,
Que busca achar no berço a sepultura!
Esse, que sobrevive a propria ruina,
Ao seo viver do coração,—ás gratas
Illusões, quando em leito solitario,
Entre as sombras da noite, em larga insomnia,
Devaneiando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que á dôr tamanha não succumbe,
Inveja a quem na sepultura encontra
Dos males seos o desejado termo!

A MORTE É VÁRIA.

(TRADUCÇÃO.)

A morte é vária e multiforme, e múda
De trajes e de mascaras mais vezes
Qu’uma cançada actriz;
Nem sempre é, qual se pinta, o negro espectro
D’ironico sorriso e brancos dentes,
E d’horrido cariz.
[Pg 194]
Nem todos seus vasallos são poeira
No resalto de pedra adormecidos
Por sob as arcarias;
A pallida libré nem todos vestem,
Nem sobre todos jaz murada a porta
Nas cryptas sombrias!
Diversa a natureza é d’outros mortos:
Nestes que a sanie e podridão consomem,
Vê-se o nada palpavel;
Vê se o enojo, o horror, a sombra espessa
E o esfaimado esquife, abrindo as fauces,
Qual monstro insaciavel!
Cabe a outros porêm que sem dôr vemos
Passar, gyrar no turbilhão dos vivos,
De carne inda vestidos,
O nada inda encuberto; cabe a interna
Morte, que ninguem sabe, nem chóra,
Nem mesmo os mais queridos!
Pois, se vamos a ver nos cymiterios
As campas, ou illustres ou sem nome,
De marmore ou torrão;
Ou tenhamos alli amiga palpebra,
Ou não,—do teixo á sombra descançada,
Quer choremos, quer não!
«Jazem» dizemos. Os nomes desparecem
Sob a relva; o verme nesses olhos
Enréda a teia crúa!
Por entre as pranchas do caixão despontão
Hirtos cabellos, e em pó funereo envolta
Branqueja a ossada núa.
Os herdeiros não temem que mais vólte;
Esquecerão-n’o já: seos cães se lembrão,
Soltando uivos de dôr!
Acama-se a poeira em seos retractos:
Já não tem mais rivaes, não tem amigos,
Nem odios, nem amor!
[Pg 195]
Da morte o anjo, em lagrimas de pedra
Vemos sosinho e mudo a pranteal-o,
Estatua da afflicção:
A cova toma o corpo, o olvido o nome,
Tem por lençóes seis pés d’humida terra....
Mortos, bem mortos são!
E dos olhos talvez se vos deslise
O pranto sobre a relva, pelo orvalho
E chuva humedecida;
Que na triste mansão os regozije,
E por essa oblação enternecidos
Um resto achem de vida.
Mortos do coração ninguem os chóra,
Ninguem, se a um destes vê, lhe diz piedoso:
«Seja o Senhor comtigo.»
Curão do morto, lavão-lhe as feridas;
Mas a alma estala sem que alguem se dôa,
Nem mesmo o mais amigo!
Ha comtudo pungentes agonias
Nunca sabidas, dores horrorosas
Mais do que se não crê;
Almas ha que tem cruz e passamento,
Sem aureola d’oiro e a mulher pallida
E desgrenhada—ao pé.


[Pg 196]

SEXTILHAS DE FREI ANTÃO.

J’ai fait de ma chambre la cellule d’un cloître, j’ai béni et sanctifié ma vie et ma pensée; j’ai raccourci ma vue et j’ai éteint devant mas yeux les lumières de notre âge: j’ai fait mon coeur plus simple, et l’ai baigné dans le bénitier de la foi catholique; je me suis appris le parler enfantin du vieux temps: et j’ai écrit!...

STELLO.


LOA DA PRINCEZA SANCTA.

Bom tempo foy o d’outr’ora
Quando o reyno era christão,
Quando nas guerras de mouros
Era o rey nosso pendão,
Quando as donas consumião
Seos teres em devação.
Dava o rey huma batalha,
Deos lhe acudia do céo;
Quantas terras que ganhava,
Dava ao Senhor que lhas deo,
E só em fazer mosteyros
Gastava muito do seo.
Se havia muitos Iffantes,
Torneyo não se fazia;
He esse o estilo de Frandres,
Onde anda muita heregia:
Para os armar cavalleiros
A armada se apercebia.
[Pg 197]
Chamava el-rey seos vassallos
E em côrtes logo os reunia:
Vinha o povo attencioso,
Vinha muita cleregia,
Vinha a nobreza do reyno,
Gente de muita valia.
Quando o rey tinha-los juntos
Começava a discursar:
«Os Iffantes já são homens,
Vou-me ás terras d’alem-mar
Armal-os hy cavalleiros;
Deos Senhor m’ha de ajudar.»
Não concluia o pujante
Rey—de assi lhes propor,
Clamavão todos em grita
Com vozes de muito ardor:
«Seremos nessa folgança,
Honra de nosso Senhor!»
E logo todos em sembra,
Todos gente mui de bem,
Na armada se agazalhavão,
Sem se pezar de ninguem;
E os Padres de Sam Domingos
Hião com elles tambem.
Hião, si, os bentos Padres:
E que assi fosse, he rezão,
Que o sancto em guerras d’Igreja
Foy hum bom sancto christão:
Queimou a muitos hereges
No fogo da expiação!
Quando depois se tomava
Toda a frota pera cá,
Primeiro se perguntava,
«Que terras temos por lá?»
Quem em Deos tanto confia,
Sempre Deos por si terá.
[Pg 198]
El-rei tornava benino,
Como coisa natural:
«Temos Ceita, Arzilla ou Tangere,
«Conquistas de Portugal!»
E todos, a voz em grita,
Clamavão: real! real!
Bom tempo foy o d’outr’ora
Quando o reyno era christão;
Os moços davão-se á guerra,
As moças á devação:
Aquella terra de mouros
Vivia em muita afflicção.
Deo-nos Deos tantas victorias,
E tanto pera louvar,
Que os Padres de Sam Domingos
Ja não sabião rezar;
Todo-lo tempo era pouco
Pera louvores cantar!
Sendo tantas as batalhas,
Nem recontro se perdeo!
Aquelles Padres coitados
Não tinhão tempo de seo;
Levavão todo cantando
Louvores ao pay do céo.
Louvores ao pay do céo,
Que eu inda possa trovar,
Quando não vejo nos mares
Nossas quinas tremolar;
Mas somente o templo mudo,
Sem guarnimentos o altar!
Vejo os sinos apeados
Dos campanarios subtiz,
E a prata das sacristias,
Servida em misteres vis,
E ante os leões de Castella
Dobrada a Luza cerviz!
[Pg 199]
Cant’eu, em bem que sou Padre,
Diga que sou Portuguez:
Arço de ver nossas coizas
Hirem todas ao revez,
Arço de ver nossa gente
Andar comnosco ao envez.
Mercê de Deos! minha vida
He vida de muita dura!
Vivo esquecido dos vivos
Na terra da desventura;
Vivo escrevendo e penando
N’um canto de cella escura.
Do meo velho breviario
Só deixarei a leitura
Pera escrever estes carmes,
Remedio á nossa amargura;
O corpo tenho alquebrado,
Vive minha alma em tristura.

Que armada de tantas velas,
Que armada he essa qu’hy vem?
Vem subindo Tejo acima,
Que fermosura que tem!
Nas praias se apinha o povo,
E as cobre todas porêm.
Dão signays as fortalezas,
Respondem signays de lá:
Vem el-rey victorioso!
Quem de gaudio se terá?
O mar he todo bonança,
O céo mui sereno está!
[Pg 200]
Ôco bronze fumo e fogo
Já começa a despejar;
Acordão alegres echos
Os sinos a repicar;
Grita e folgança na terra,
Celeuma e grita no mar!
Vinde embora mui depressa
Senhores da capital!
Vinde ver Affonso quinto,
Rey, senhor de Portugal;
Vem das terras africanas
Dar-vos festança real.
Nossos reys forão outr’ora
Fragueiros de condição;
Dormião quasi vestidos,
Espada nua na mão;
Nem repoisavão de noite
Sem fazer sua oração.
Empresa não commettião
Sem primeiro commungar,
Sem fazer voto á algum sancto
De tenção particular;
Porêm victorias houverão,
Que são muito de espantar!
Os vindouros esquecidos
Da protecção divinal,
Conhecerão os poderes
Da benção celestial,
Se contarem os mosteyros
Das terras de Portugal!
Nossas capellas que temos,
Nossos mosteyros custosos,
São obras sanctas de Sanctos,
Obras de reys mui piedosos;
São brados de pedra viva,
Que prégão feitos briosos.
[Pg 201]
Alguns já agora escarnecem
Dos templos edificados;
Dizem que foram mal gastos
Os bens com elles gastados:
Eu creio (Deos me perdôe)
Que são incréos disfarçados!
E mais prasmão dos feitios
De pedra, que Memphis tem,
Sem ter olhos pera Mafra,
Pera Batalha ou Belem!
Oh! se a estes conheceras,
Meo Frey Gil de Santarem!
N’aquella villa deserta
Ainda se me afigura
Ver elevar-se nas sombras
Tua válida estatura,
E ouvir a voz que intimava
Ao rey a sentença dura!
E mais a tacha que tinha
Era ser fraco, e não mais!
Tu, meo Sancto, que fizeras,
Se ouviras a estes tais,
Que nos assacão motejos
Ás nossas obras reais!
Mas vós, quem quer qu’isto lerdes
Relevai-me esta tardança;
São achaques da velhice:
Vivemos de remembrança
E em longas fallas fazemos
De tudo commemorança.

Já el-rey Affonso quinto[Pg 202]
Nas suas terras pojou:
Alegre o povo o recebe,
Alegre el-rey se mostrou;
Abrio-se em alas vistosas,
El-rey entre ellas passou.
Vem os muzicos troando
Nos atabales guerreiros,
Tangem outros istromentos
Desses climas forasteiros,
E traz elles vêm marchando,
Passo a passo, os prisioneiros.
São elles mouros gigantes
De bigodes retorcidos,
Caminhão a passos lentos,
Com sembrantes de atrevidos.
Causa medo vêl-os tantos,
Tam membrudos, tam crescidos!
São homens de fero aspeito,
Homens de má condição,
Que vivem na lei nojenta
Do seo nojento alkorão,
Que—vinho? nem querem vê-lo,
Só por que o bebe um christão!
Vêm as moiras depois delles,
Rostos cobertos com véos;
Bem que filhas d’Agarenos,
São tambem filhas de Deos;
Se forão christans ou freiras,
Serião anjos dos céos.
Luzião os olhos dellas
Como pedras muito finas;
Devião ser nas bruxas,
Inda qu’erão bem meninas,
Que estas moiras da mourama
Nascem já bruxas cadimas
[Pg 203]
Huma dellas que lá vinha
Olhou-me á travez do véo!...
Foy aquillo obra do demo,
Quasi, quasi me rendeo!
Pensei nella muitas vezes,
Valerão-me anjos do céo!
Via as largas pantalonas,
E o pesinho delicado...
Como póde pensar nisto
Hum pobre frade cançado,
Hum padre da Observancia,
Que sempre come pescado?!
Emfim, dizer quanto vimos
Não cabe neste papel;
Vinhão muitas alimarias,
Como achadas a granel;
Vinha o infante brioso,
Montado no seo corsel.
Vinhão pagens e varletes,
Vinhão muitos escudeiros,
Vinhão do sol abrazados
Nossos robustos guerreiros;
Vinha muita e boa gente,
Muitos e bons cavalleiros!

A Princesa Dona Joanna
Sahio dos Paços reais;
Era moça, e muito airosa,
E dona de partes tais,
Que todos lhe qu’rião muito,
Estranhos e naturais!
[Pg 204]
Foy requerida de muitos
E muito grandes senhores,
Por fama que della tinhão,
E por copia de pintores,
Que muitos vinhão de fóra
Ao cheiro de seos louvores.
E diz-se d’hum rey de França,
Ludovico, creio eu:
Hum pobre frade mesquinho
Só trata em coisas do céo;
Sabe elle que muito sabe,
Se a bem morrer aprendeo.
Pois diz-se do rey de França,
O onzeno do nome seo,
Que vendo hum retrato destes
Pera si logo entendeo,
Qu’era prodigio na terra
Quem tanto tinha do céo.
E logo sem mais tardança
Cahio, giolhos no chão,
No feltro traz arreliquias,
Assi uza hum rey cristão;
O seo feltro poz diante,
E fez hy sua oração!

Sahio a real Princeza,
Sahio dos Paços reais
Nos pulsos ricas pulseiras,
Na fronte finos ramais;
De longe seguem-lhe a trilha
Muitos bons homens segrais.
[Pg 205]
Traçava hum mantéo vistoso
Sobolas suas espaldas,
E as largas roupas na cinta
Prendia em muitas laçadas;
Seos olhos valião tanto
Como duas esmeraldas.
Tinha elevada estatura
E meneyo concertado,
Solto o cabello em madeixas,
Pelas costas debruçado:
Cadeixo de fios d’oiro,
Franjas de templo sagrado.
Vinha assi a regia Dona,
Vinha muito pera ver:
O povo em si não cabia,
Quando a via, de prazer;
Era ella sancta ás occultas
E anjo no parecer!
Debaixo das telas finas
E dos brocados luzidos,
Trazia á raiz das carnes
Duros cilicios cozidos
E humas crinas muito agras,
Tudo extremos mui subidos.
Passava noites inteiras
No oratorio a rezar,
Dormia despois na pedra
Sem ninguem o suspeitar:
Extremos tais em princeza
Quem n’os ha de acreditar?
No dia de lava-pés
Ordenava ao seo Vedor,
Trazer-lhe doze mulheres;
E depois, com muita dôr,
Chorando os pés lhes lavava,
Honra de nosso Senhor!
[Pg 206]
E depois de os ter lavado,
Não perdia a occasião,
Despedia a todas juntas
Com sua esmola na mão:
Dizia que era humildade,
E obra de devação.
E as mendigas prasmadas
Sahião de tal saber,
E perguntavão, quem era
Aquella sancta mulher?!
Máos peccados que ella tinha
Só pera assi proceder!
O mesmo Vedor foy quem
Isto despois revelou,
Quando aquella humanidade
Em o Senhor descançou;
Dona Joanna era já morta,
Elle porêm m’o contou.
Mas sendo tanto o resguardo
Que guardava em coisas tais,
Sabião algo os estranhos
Por muitos certos signais,
Que o ar he todo perfume,
Se a terra he toda rosais.
He coisa de maravilha
Que me faz scismar a mi,
Que as donas d’hoje pareção
Huns camafêos d’alfim,
Não donas de carne e osso;
As donas d’outr’ora—si.
Hoje leigos de nonnada
(He lhes o demo caudel)
Praguejão a meza escaça
E as arestas do burel;
Querem mimos e regalos,
E jejuns a leite e mel.

Lá caminha Dona Joanna,[Pg 207]
Regente de Portugal;
Traz sobre si muitas joias
Do thesouro paternal;
Deos lhe pôz graça divina
Sobre a graça natural.
«Acostou-se a comitiva,
Muito senhora de si:
Perante el-rey se agiolha,
Disse-lhe el-rey: não assi!
E ao peito a cinge dizendo:
Não a meos pés, mas aqui!»
«Sois hum bom pay, Senhor rey,
Tomou-lhe a sancta Princeza:
Eu que sou vassalla vossa
E filha por natureza,
Peço mercê como aquella,
Como esta peço fineza.»
Ficarão logo suspensos
Todolos que erão aly,
Ficarão como enleiados,
Enleio tal nunca vi!
Eis que a Princeza medrosa
Começa a propor assi.
El-rey não lhe respondera;
Que lhe havia responder?
Boa filha Deos lhe dera.
Que lhe havia defender?
Sorrio-se, o bom rey quizera
Muito por ella fazer.
A Princeza disse entonces:
«De alguns capitães antigos
Tenho lido, Senhor rey,
Que, vencidos os imigos,
Tornavão, a Deos fazendo
Sacrificios mui subidos.
[Pg 208]
«Vião as coisas melhores
Que dos seos reynos havião,
E logo lh’as offertavão;
E mercês tambem fazião,
No dia do seo triunfo
A los que justas pedião.
«Deslembrar a usança antiga
Fôra de grande estranheza;
Agora sobre maneira,
Perfeita tamanha empreza,
De tanto lustre aos do reyno,
De tal honra a vossa Alteza.
«Digo pois a vossa Alteza,
E digo com muita fé,
Deve a offerta ser tamanha
Quammanha foy a mercê,
Não do nobre rey pujante,
Mas do sancto rey qual he.
«A offerta que vos fizerdes,
Será mercê paternal:
Se quereis que corresponda
Ao favor celestial,
Deve ser coisa mui alta,
Deve ser coisa real.
«Ao Deos que vence as batalhas
Dai-lhe a filha muito amada;
Dai-lhe a só filha que tendes
Em tantos mimos criada:
Será a offerta bem quista
E do Senhor acceitada.
«E eu a quem mais custou
De medos, esta jornada,
Que muitas noitas orando
Passei em pranto banhada,
Sou eu, Senhor, quem vos peço
Ser a hostia a Deos votada.»
[Pg 209]
Que sancta que era a Princeza,
Que extremos de devação!
Nos sembrantes dos presentes
Vio-se, e não era razão,
Que a nenhum delles prazia
Deferir tal petição.
Sobr’esteve um pouco e mudo,
El-rey, por que muito a amava:
Aquelle dizer da filha
Todo o prazer lhe aguava,
Aquelle pedir sem dó
Todo o ser lhe transtornava.
Encostou-se ao hombro della
O pobre velho cançado,
Chorou o triunfo breve
E o prazer mal rematado,
Não como rey valeroso,
Mas como pay anojado.
El-rey despois mais tranquillo
Rompeo o silencio alfi’;
E entre afflicto e satisfeito
Disse á filha: Seja assi!...
Velhos guerreiros vi eu
Chorarem tambem aly.
Cant’eu perdido entre o vulgo
Não sei que tempo gastei,
Nem sei de mim que fizerão,
Nem tam pouco se chorei;
Foi traça da providencia:
Nisto commigo assentei.
Foy Jephté corajoso,
O forte rey de Judá;
Volta coberto de loiros,
Quem primeiro encontrará?
Sente a filha, torce o rosto...
Nada ao triste valerá.
[Pg 210]
Qual d’estes dois sacrificios
Soube a Deos mais agradar?
Vai a Hebrea constrangida
Depor o collo no altar,
Vai a christã jubilosa!
São ambas pera pasmar.

Depois n’hum dia formoso,
Era no mez de Janeiro,
Houve huma scena vistosa
Dentro de hum pobre mosteyro;
Fundou-o Brites Leytoa,
Dona mui nobre d’Aveiro.
Huma princeza jurada,
Sobrinha d’altos Iffantes,
Filha de reys soberanos,
Senhora das mais pujantes,
Era a primeira figura,
Espantava os circunstantes.
Aly humilde e curvada,
Pezar de todos os seos,
Giolhos sobre o ladrilho
E as mãos erguidas aos céos,
Ouvi—exigua mortalha
Pedir polo amor de Deos.
Cantemos todos louvores,
Louvores ao Senhor Deos:
Os anjos digão seo nome,
Rostos cobertos com véos;
Leião-n’o os homens escripto
No liso campo dos céos.
[Pg 211]
Bom tempo foy o d’outrora
Quando o reyno era christão,
Quando nas guerras mouriscas
Era o rey nosso pendão,
Quando as donas consumião
Seos teres em devação.
«Isto escreveo Frei Antão
De vida mui alongada,
Nossa Senhora da Escada
O teve por Capellão.»

GULNARE E MUSTAPHÁ.

Deos Senhor foy quem nos céos
Pendurou milhões de estrellas,
Foy quem matisou a terra
De froles varias e bellas,
Quem ao mar por ser pujante
Areias deo por cancellas.
Mandou mais qu’arvoles fortes
Das sementes germinassem,
Que déssem froles mimosas,
Que perfumes trescalassem,
E mais fez que em tempo azado
As froles fructificassem.
Pois aquelle anjo das trevas,
Imigo da humanidade,
Nas arvoles poz carcoma,
Poz na frol muita ruindade,
Poz nos céos a nuvem negra,
Poz no mar a tempestade.
[Pg 212]
Nem só nas coisas terrenas
Damna, e faz mal o tredor,
A alma tambem por mil modos
Tenta com geito e sabor,
Que troca o prazer celeste
Em penas d’eterna dôr!
Mas não foy jamais que Deos
Em tal feito consentisse,
Senão porque suas posses
O homem bem claro visse;
Que sem elle fôra o mundo
Maldade só e sandice.
Mas que mal ha hy na terra
Que não venha pera bem?
Os d’aqui desta amargura
Dão coyta, e gloria porêm;
Dos outros que traz o demo
Deos o remedio lá tem.
Do mal que me foy commigo
Acontecido, al não sei,
Senão que por amor delle
Muito má vida levei,
Que me dá coyta mui grave
Do mal que me comportei.
Como já fiz penitencia,
Ora farei confissão;
Tal será, qual foy o escand’lo
De que fui occasião:
Não me tomem por modelo,
Mas tomem de mi licção.
Não he pera honra minha,
Mas pera honra dos céos,
Que eu direi publicamente
Os feios peccados meos;
Toda a vergonha foy minha,
Toda a honra cabe a Deos.
[Pg 213]
He uso assi na milicia
Celeste, e mais na d’aqui:
Dá batalha o cabo experto,
Desses muitos que ha per hy;
Toda a preza aos seos concede,
Só lôa quer pera si.

A Princeza Dona Joanna
Já vive dentro d’Aveiro;
Comsigo trouxe os escravos,
Que lhe trouxe o rey fragueiro;
O que ás terras africanas
Passou, e voltou primeiro.
Vierão aquelles feios
Netos d’Agar, inda mal!
Traçando vastas roupagens
Á maneira oriental;
Larga faxa na cintura,
Na faxa largo punhal.
Era pasmo vel-os juntos
Polas ruas passear,
Passo á passo—graves, mudos,
Com doairos d’espantar,
Profundas rugas na fronte
Rugas de máo meditar.
Levar traz si tanta gente
Nunca a ninguem vi assi;
Nem folias, nem cantares
Vi com tal cauda apoz si,
Bôdo, nem festa d’orago,
Bufão, e nem bolati’.
[Pg 214]
Mas quem vio acaso as turbas
Correrem traz algum bem?
Vão todas apoz engodos,
Apoz maldades tambem;
Mas seguir a Deos por gosto
Nem as vi, nem vio ninguem.
Com estes mouros descridos
Vierão tambem aquellas
Moiras, filhas da Mourama,
Donas, creio, muito bellas;
No trato e no galanteio
Outras que tais Magdanellas.
Vinha tambem a menina,
Aquella moira fatal,
Que nas ruas de Lisboa
Vi no cortejo real:
Cortejo del-rey Affonso
Vi-o eu, só por meo mal!
Quantas coisas que trazia,
Nulla rem lhe estava mal;
Dizião que tudo nella
Tinha graça natural,
Era coisa preciosa,
Como coisa oriental.
Aquella abelha sem dardo,
Aquella pomba sem fel
Passava noites inteiras
Tangendo n’hum arrabel,
Coando vivas saudades
Dos labios, em leite e mel.
E, alta noite, nas trevas
Ouvindo na solidão
Aquelle triste instrumento,
Al não disseras, senão
Que o mesmo demo voltado
Era n’aquella feição.
[Pg 215]
Zagales porêm da serra
Mil vezes, no fim do dia,
Polos montes não buscava
A sua ovelha erradia;
Mas no bordão apoiado,
De si mesmo se esquecia.
Cant’eu vendido e prasmado
De todos e mais de mi,
Mil vezes fugi da cella,
Té das matinas fugi,
Mil vezes, durante a noite,
Aquelle instrumento ouvi.
Mil vezes!... e não sei como
Isto foy, que o não sentia,
Quando mal me precatava,
Dava commigo que ouvia
Dilatar-se polos valles
Aquella doce harmonia.
Assi todo embevecido
Bons sonhos que então sonhei,
Boas venturas que tive,
Bons scismares que scismei!
Esqueci-me de ser frade!
Como isto foy, já não sei.
E se ás vezes me lembrava
Do juramento que dei,
Do encargo que me tomára,
E das vestes que eu tomei,
Chorava; e não sei bem como
Em pranto não me afundei.
Derramei n’aquellas brenhas,
Cheio d’extranha afoiteza,
Palavras dadas ao vento
Com muito feia crimeza,
Contra mi e contra todos,
Contra toda a natureza.
[Pg 216]
Polas serras, polos matos,
Polas voltas dos caminhos
Rojei nas sarças mordentes
E nos cardos montesinhos,
Rasgando os brancos vestidos
N’aquellas matas d’espinhos.
E não sei, oh! não sei como
Todo eu não fiquei aly,
Como eu que por tantas vezes
Rosto nas rochas feri,
Não perdi o ser de todo,
Nem siquer ensandeci.
Então ao Senhor clamava:
«Cegueira, Senhor, me dás!
Cinge-me os rins larga zona
De ferro, e bem me não traz;
Trago cilicios mordentes,
Usando burel mordaz.
«Abro e vejo o livro sancto,
E vejo que não sei ler!
Aquelles sanctos dictames
Já n’os não sei compr’hender;
Enojo occupa minha alma,
Hei pavor de me perder!»
Donde pois me vinha a mi
No proprio bem ver o mal?
Conheci no meo exemplo,
Que m’era do ser fatal:
Senhor, teo sancto remedio
He triaga cordial.
Bem como o ferro na fragoa,
No soffrer a alma se apura,
Assi que disse eu commigo
Que a triaga tambem cura,
Quanto mais amarga e punge,
Poder de sua amargura.

Aquella negra peçonha[Pg 217]
Lavrando foy pouco e pouco;
Rohia coyta d’amores
Miôlo cavado e ôco,
Já era o mal dentro d’alma,
E eu delle rendido e louco.
Dizião meos bentos Padres:
«Que he feito de Frei Antão?
Negra dôr o tem por certo,
Negra dôr de coração:
O demo o fez, porque visse
Turbada tal perfeição.
«Parece já de esquecido
Que nem de si tem lembrança!
A taboa se achega apenas,
Não toma a sua pitança;
Té nos officios divinos
Perdeo a sua trigança.
«Sahe á noite muitas vezes,
Diz o bom do Guardião:
Sahir á noite, á deshoras,
Certo não he devação:
Que faz de noite nas ruas
Hum padre, ou frade ou christão?»
Com tudo alguns dos mais velhos
Dizião: «Que ha hy de mal?»
O quer que he que o pertuba,
Coisa não he natural:
Deve ser condão divino
Ou graça celestial!
«Pois hum sancto como aquelle!
Quem he que o ha de tentar?»
Eis senão quando começa
Voz, não sei donde, a zoar
Que Frei Antão ja não sabe
No seo rosairo rezar!
[Pg 218]
E o caso foy que hum noviço
Tirou-mo só de matreiro,
Tendo-o fechado comsigo
Por novena ou mez inteiro;
E eu d’outro me não provêra,
Sendo que tinha dinheiro!
Todolos meos defensores
Voltarão-se contra mi;
Dizião que era mal feito
Hum sancto mentir assi:
Seja-me Deos testemunha,
Nem sancto sou, nem menti.
Logo em Communidade
Propoz-me o Provincial:
«Dizei peccavi, meo Padre,
Que voz havedes tão mal,
Que não rezades as rosas
Da virgem celestial!»
Ouvido que foy por mi
Tão solemne mandamento,
Ámi, que primara sempre
Adentro do meo convento,
Não sei que pejo maldicto
Acorreo-me ao pensamento.
Não era feio o peccado,
Mas confessal-o; e assi
Fiquei de pavor tranzido,
Mal que tal preceito ouvi:
Homem não era de carne,
Montanha de pedra—si.
Torvado, calado e mudo
Nada não soube dizer;
Nem confessar meo peccado,
Nem ao menos responder:
Ficárão como suspensos
Os que erão aly a ver.
[Pg 219]
O grave Provincial
Rompe o silencio, e «Azinha
Trazei, disse elle, o hyssope,
Mais a benta caldeirinha;
Ver demo em corpo de frade
Coisa não he comezinha!»
Corre afanado o Sacrista
Pera a sua sacristia,
Traz prestes a caldeirinha
Banhada inteira na pia;
Rezava mil rezas suas,
Mil esconjuros dizia.
Do Sacrista amedrontado
Recebe o Provincial
O hyssope todo molhado,
Dizendo sacerdotal:
«Fugide, partes adversas,
Demonio, esprito do mal.
«E mais deixa a criatura
Por amor de quem Jezus
Soffreo marteyro affrontoso,
E morte vil n’huma cruz;
Em nome do Padre e Filho
E Esprito, que sempre luz!»
Ouvido aquelle exorcismo,
Cego de toda a razão,
Larguei-me do refeitorio,
Fugindo como hum ladrão:
Clamárão todos em grita:
«Chantou-se nelle o Legião!»
Enfiei os claustros todos,
Passei pola portaria,
Achei-me em logar, de noite,
Que eu mesmo não conhecia:
Os sons do arrabel mourisco
Somente daly se ouvia.
[Pg 220]
No entanto os Padres prudentes
Discursavão entre si,
Dizião dos esconjuros
Que mal cabião em mi,
Que era grande sacrilegio
Usarem commigo assi.
Ai! sacrilegio era o homem
Que ao inferno se vendia,
Era o christão que adorava
As filhas da idolatria,
Que dentro em si tinha o Demo,
E o Demo em si não sentia;
Era o Padre que trocára
O amor de seo Senhor
Por amor d’huma Donzella,
Filha d’aquelle impostor,
Mafoma, falso propheta,
Mafoma, judêo tredor!

A princeza Dona Joanna
Mandou ao nosso Convento:
Qu’eu prestes vá ter com ella
Manda por seo mandamento;
Não quer demora, nem falta,
Negocio diz de momento.
Qual seja o negocio urgente
Não m’o diz a mensageira;
Não sabe coiza de certo,
Não dirá coisa certeira:
O habito á pressa enfio,
Tomando-lhe a dianteira.
[Pg 221]
E logo, chamada á grade,
Veio a Princeza real:
«Meo Padre, disse-me entonces,
He fóra do natural
Qu’eu tenha escravos, e mouros,
Rainha de Portugal.
«Ide vós porêm chamal-os
Pera o rebanho christão;
Cazade-os vós muito embora,
Que bem dahy haverão:
Eu lhes darei corpo livre,
Deos Senhor a salvação.»
Siquer huma só palavra
Não tive n’aquelle ensejo,
Sustou-m’a já na garganta
Não sei que mesquinho pejo;
Por confessar meo peccado
Em vão trabalho e forcejo.
Vergonha foy o que eu tive,
Vergonha que todos têm;
Ultimo fructo colhido
N’aquelles jardins do Eden;
O Demo o tocou primeiro:
Todo o seo mal dahy vem!
Como está no fundo lago
O verde limo acamado,
Assi deitado e mimoso
Brilha lustre avelludado;
Tal é aquella vergonha,
Que vem apoz o peccado.
Mas remechei nas raizes
Do limo que he tão viçoso,
E vereis como se prendem
No fundo impuro e lodoso:
Aly com ellas se abraça
O feio verme asqueroso!
[Pg 222]
Aly mil serpes occultas
Vivem, cruzando laçadas,
Muitos sapos bufadores,
Muitas rãs esverdinhadas;
Humas coizas de má sina,
Outras coizas mal fadadas.

He força fallar a moira!
Disse commigo, e assi
Andava curtas passadas
Por não chegar; ai de mi!
Tem termo toda a jornada,
Cheguei! porque não morri?
Já d’aquelles outros mouros,
Tão feros, não se me dava;
Mas de suor de maleitas
O corpo se me banhava,
Quando d’aquella menina
Moirisca, me recordava.
Lançado em covil de feras
Foy o sancto Daniel,
Fui eu no covil lançado
D’aquella gente infiel;
Era elle experto em tais lutas,
Eu em tais lutas novel.
Entrei no quarto da moira
Leixando a mais gente vil,
Ardia doce perfume
Em transparente viril;
Sobre um bofete lavrado
Vi hum lavrado gomil.
[Pg 223]
Tinha o quarto huma só porta
Que hum reposteiro cobria,
E hum pano de seda verde
Sobre a estreita gelosia,
E mais hum denso tapete,
Que o som dos passos comia.
Trazia a moira mimosa
Vestes de branco setim
Entreteladas parece
De coiza de bocachim,
E humas largas pantalonas,
Respirando benjoim.
Trazia hum jubão mui justo
De seda azul anilado,
Com longas mangas perdidas,
De carmim todo ferrado,
Como se fôra hum alfange,
Na cintura recurvado.
Coifa branca auri-bordada
A negra coma apertava;
Que doces anneis brincados
A negra coma formava,
Quando por vezes no collo
De neve—se debruçava!
Sob as largas pantalonas
Hum pesinho delicado
Sahia nusinho e bello,
Mimoso e branco e nevado;
Em chapins dos mais pequenos
Parecia andar folgado.
Em cada hum dos seos dedinhos
Trazia a moira hum annel;
Meio deitada, á desleixo,
Tangia no arrabel;
Tangia-o com tanta graça,
Nem que fôra hum menestrel.
[Pg 224]
A lettra que ella cantava
Era de lingoa algemia;
Era qual trinar das aves
As notas em que gemia
Saudades de longes terras
Em peregrina harmonia!
Era menina e formosa,
Nunca lhe vi sua igual!
Coiza assim tam primorosa
E tanto celestial,
Ou era filha dos anjos,
Ou filha do pay do mal.
Deos Senhor, entre luzeiros,
E o demo em sua cegueira,
Fazem quasi as mesmas coizas
Mas por diversa maneira;
O demo como quem he,
Deos como luz verdadeira.
Pois este pôz a virtude
Entre afflicções dolorosas,
Qual frol de rosa entre espinhos;
Em ledices enganosas
Poz o demo o seo peccado,
Qual feia serpe entre rosas.

Quanto o sol mais se abaixava,
Tanto mais alto gemia
Aquella moira mimosa,
Que as suas magoas carpia:
He hora que espalha enlevos
A hora do fim do dia!
[Pg 225]
O passaro então das ramas,
Louvor a nosso Senhor!
Ultimo vôo desprega
E hum doce grito de amor;
Nas pennas esconde o bico,
Nem teme o visgo tredor.
As froles do sol viuvas
Definhão, só de tristura:
O mar soluçando geme,
Mais alto a fonte murmura,
Reina o silencio que falla,
Bafeja a doce frescura.
«Vistes vós meo bem amado,
(Dizia a filha d’Allah)
«Vistes vós meo bem amado,
«O meo senhor Mustaphá!
«Se o vistes, dizei-me onde!
«Por alma vossa, onde está?
«A noite o deixou fechado
«Portas a dentro do harem:
«Sorvia aquelles perfumes,
«Que lá d’Arabia nos vem;
«Trajava os reais vestidos,
«Que lhe cahião tão bem.
«Já era sobre-manhã
«Quando de mi se apartou;
«Seo negro corsel d’Arabia
«D’um pulo só cavalgou,
«E o sol que vinha raiando
«Lá na montanha o topou.
«Vio daly seos bons guerreiros,
«Em alas promptos estão;
«De fronte mal enxergava
«O troço do rey christão;
«Disse o crente musulmano:
«Allah m’os trouxe, meos são!
[Pg 226]
«Allah! lhes grita o guerreiro,
«Respondem-lhe os seos: Allah!
«Gritão Christãos: Sam Tiago!
«E o meo senhor Mustaphá
«Desceo então da montanha,
«Que nunca mais subirá.
«Desceo elle da montanha
«Qual rocha descommunal,
«D’agudo cimo tombando,
«Arrazando o pinheiral;
«Mas a rocha em fundo valle
«Faz-se pedaços, em mal!
“Desceo elle ao fundo valle,
“Como o tufão queimador;
“Polos christãos inimigos
“Cortou sem pena e sem dôr;
“Raio d’esforço na guerra
“Foy Mustaphá, meo Senhor!
“Mas o vento do deserto
“Depois de médas formar
“Das areias que agglomera,
“Onde he que vai acabar?
“Mafoma e Allah que mo digão,
“Que eu não sei senão chorar!
“Allah quebrou teo orgulho,
“Meo bom senhor Mustaphá!
“Allah quebrou teo orgulho,
“Mas quando se acabará
“Vida que Vives de escravo,
“Vida que levas tam má?
“Doces Huris do Propheta,
“Lá do palacio de Allah,
“Olhavão cá pera baixo
“Só pera ver Mustaphá!
“Guerreiro não foi como elle,
“Como elle ninguem será.
[Pg 227]
«De ser elle o meo amado,
«Ai que já fui bem feliz!
«De ser elle o meo amado
«Tinhão-me inveja as huris:
«Ora não ha quem m’inveje!
«Foy Allah que assim o quiz.
«Ora não ha quem m’inveje!
«Tenho no peito afflicção;
«Escrava sou d’hum escravo,
«Escravo d’hum vil christão!
«Mesquinha, que ainda o amo;
«Trago-o aqui no coração!»
Então pera junto della
Cheguei-me sem ser sentido;
Fallei-lhe em som cavernoso,
Medonho e baixo no ouvido:
¿Por que assi amas o escravo?
Disse eu, do meo mal vencido.
Foy certo o esprito malvado
Quem pera ally me arrastou,
Quem nos meos castos ouvidos
Palavras tais derramou,
Quem aos pés da moça moira
O velho padre acurvou.
Era elle quem nos meos hombros
Pezava co’o pezo seo,
Quando a moita espavorida
Do vasto leito se ergueo:
Vendo-me ally de giolhos,
Baixou de medrosa o véo.
O véo baixou de corrida,
Mas antes seos olhos vi;
Aquelles olhos fermosos
Lavar-me o rosto senti,
Tocar-me no fundo d’alma,
Tirar-me todo de mi.
[Pg 228]
Luz que vi d’aquelles olhos!
Ora bem se me afigura
A lua rasgando as trevas
Em meio de noite escura:
Vi Diana, a caçadora,
N’aquella hardida postura.

Mas a moira de repente
Hum grito franzino dá!
De mi se parte voando,
¿Senhor Deos, o que será?
Volto prestes a cabeça...
Vejo o mouro Mustaphá!
Em roda do seo pescoço
A moita os braços prendeo;
Arfa-lhe o peito açodado;
Pera traz roja o seo véo,
Off’rece o rosto mimoso
Aos beijos d’aquelle incréo!
Era assi qual amorosa
Hera que hum robre vingou;
Ligou-se estreita com elle,
Do tope se debruçou,
Folha metteo pelas folhas,
Vida com vida cazou.
«Gulnare, disse-lhe o mouro,
Gulnare, meo doce amor,
Melhor que a rosa da Persia,
Que arabio incenso melhor,
Frol dos jardins do propheta,
Que dás mate a minha dôr!»
[Pg 229]
Responde a moira mimosa:
«Dizes bem, meo Mustaphá;
O fogo chegou-se ao incenso,
O incenso effluvios dará;
O sol scintilla na rosa,
A rosa resurgirá.»
Abelha, tornou-lhe o mouro,
Que susurras de agastada;
Herva, que as folhas constringes,
De estranho corpo tocada;
Quem tocou na minha abelha,
Quem na herva delicada?
Ella entonces de malquista
Deo-lhe d’olhos pera mi;
Sancto Jezus! em que apertos
N’aquelle ensejo me vi,
Prendera-me força occulta,
Foy porêm que não fugi!
Trazia o moiro atrevido
Adaga no boldrié;
Deixar a moiros com armas,
Gente de baixa ralé,
Em que escravos de Princeza,
He certo extranha mercê!
A mão no punho da adaga,
A passo, vem sobre mi;
Trinca as pontas do bigode,
Quais cerdas de javali;
A barba toda se erriça,
Que feio rosto lhe vi!
Os olhos que me lançou,
Jamais não vi seos iguais;
Devião ser puro fogo,
Senão faiscas fatais
D’aquelle sol do deserto,
Que abraza e funde areais.
[Pg 230]
Negros olhos de panthera,
Luzindo em feia spelunca;
Olhos, que o gyro do sangue
Nas veias demora e trunca;
Olhos cheios de carniça
E della não fartos nunca.

A mi chegou-se, inquirindo,
“Que vieste aqui fazer?”
Fiquei deslogo tremendo,
Sem lhe poder responder:
“Senhor,... em nome do céo!...”
Disse eu; que havia dizer?
“Em nome das tres pessoas
“Da trindade, em huma só,
“Eu vos rógo, senhor mouro,
“Que siquer tenhades dó
“Da alma vossa arriscada,
“Já não do corpo, que he pó.”
N’aquelle ensejo apertado
De sancto ardil me vali;
Lembrou-mo o exemplo sagrado
Da forte hebréa Judith!
Ser isso influxo divino
Sabendo fiquei daly.
Tornou-me o mouro descrido:
“E a mi que m’importa mais
“Que viver entre valentes,
“Em gozes celestiais,
“Entre jardins prazenteiros,
“Entre fagueiros rosais?
[Pg 231]
“Tu me fallas dos teos Deoses!
“Ha outros sem ser Allah?
“Allah, que o vôo dirige
“Do bemfazejo Kathá!
“Christão, dos teos falsos Deoses
“Bem pouco a mi se me dá.
“Digo-te eu, que elles não podem,
“Mais que digas que são trinos,
“Suster no ar do propheta
“Os sanctos restos divinos,
“Que a Meca chamão por anno
“Milhares de peregrinos.”
Ouvindo aquellas blasfemias,
Senti arrojo dos céos;
Hia fallar, mas o mouro
Tornou-me: “Só Deos he Deos,
“E Mafoma o seo Propheta,
“Em que pêze isto aos increos!
“O que penso, sem resguardo
“Dirt’o-hei, christão, alfim;
“Não uza como vós outros,
“Mahometano Muezzin,
“Não vai á caza dos crentes,
“Não leva tenção ruim.
“Não rója, não, de giolhos
“Aos pés de christã donzella;
“Mas lá dentro da Mesquita
“Vive sempre e sempre vela,
“Ou do alto minarete
“Á prece os crentes appella.
“Portas á dentro do templo,
“Imagem da crença pura:
“De alto do minarete,
“A imagem d’Allah figura,
“Bradando incessante e sempre
“Aos homens, daquella altura.”
[Pg 232]
“He assi entre vós outros,”
Tornei-lhe, que entre nós não.
“Queremos em cada caza
“Hum templo de devação,
“Em cada peito hum sacrario,
“Hum padre em cada christão.”

Sobresteve mudo e quedo,
E como que reflectia
O moiro, que me parece
A graça já presentia;
A graça que o céo nos manda,
Como orvalho em noite fria.
Mas não era inda chegado
Aquelle ensejo feliz,
Que passado curto prazo,
Severo o moiro me diz:
“O que Deos faz he bem feito:
“Mouro nasci, não me fiz!
“Deixemos pois tal assumpto,
“Delle não quero tratar;
“Ou antes dizei, bom Padre,
“Qu’hides carreira tomar,
“Adoptando novo ensino,
“Novo modo de pregar.
“Andai por essas estradas
“E dizei á vossa gente:
“A vós que mal vos hão feito
“Os homens lá do oriente,
“Que vos livrárão dos godos,
“E do servir inclemente?
[Pg 233]
“As vossas artes que tendes
“Cujo as havedes?—de quem?
“Donde vêm ás vossas terras
“Campos de lavra que têm,
“E as torres acastelladas,
“E as mesquitas, donde vêm?
“Quem nos vossos negros montes
“As alcáçovas plantou,
“Como candido turbante,
“Que na fronte se enrolou
“De hum homem da côr da noite,
“Que a Nubia ardente engendrou?
“Ou s’isto melhor te praz:
“São obras de reys pujantes,
“Tendas ricas e pomposas
“No dorso dos elefantes;
“Cr’oas de pedra lavrada
“Na fronte d’altos gigantes.”
Estes mouros na verdade
Qu’esprito e graça que têm?
Quando vos dizem mentiras,
Sabem dize-las taõbem,
Que havemos de perdoar-lhes,
E em cima querer-lhes bem.
Mas andão tanto enfrascados
No seo maldicto alkorão,
Que era de ser o primeiro
A soffrer condemnação
N’aquelle sancto concilio,
Honra do nome christão.
Se d’algo me peza a mi,
Hé só polos não ver mais;
Fazião prompta justiça
Destes e d’outros que tais:
Ardião com seos authores
Em bons applausos gerais.
[Pg 234]
Se delles houvesse agora,
De que pró nos não seria?
Vive tal livro entre gabos,
Que ally no fogo arderia,
Com pasmo de seos authores,
Que os têm por coiza mui pia.
E d’outros que só por artes
Fruem da voga que têm,
Que não sei onde he seu preço,
Nem donde apreço lhe vem,
Senão por vias occultas,
Que as não descobre ninguem!
Mas deixemos estas coisas,
Que não são de boa avença!
O livro que eu reprovára
Por muito justa sentença
Trouxera-me coyta grave,
Com mais grave malquerença.
Deixemos pois estas coisas;
Bem qu’eu não saiba fallar,
Senão com longos rodeios:
(Vem-me o séstro de pregar)
Quando me julgo no cabo,
Mais longe estou de acabar.

“Mouro, n’aquella batalha,”
Disse eu, “ouvidos me dá,
“Quando o reyno teo perdeste,
“Não chamaste por Allah?
“Não te ouvio!—chama por Christo,
“E Christo, Deos, te ouvirá.
[Pg 235]
“Vás as terras da Moirama,
“Ou fiques em Portugal,
“Senhor serás do teo corpo,
“Vida terás natural:
“Vê, se Gulnare formosa
“O teo propheta não val!
“A moira que não foy feita
“Pera servir a senhor,
“Que de bella e de mimosa,
“Parece que o mesmo amor
“O corpo tem de quebrar-lhe,
“E de apagar-lhe o candor.
“A moira doce nascida,
“Doce creada; perol
“Que só sabe apavonar-se
“Da manhã polo arrebol,
“Não nos jardins destas partes,
“Mas onde mais queima o sol.
“A moira bella e mimosa!
“Avezinha pipitante,
“Qu’ama ar puro, espaço livre,
“E céo de cor deslumbrante,
“Que o vôo fugaz desprega,
“Quando o sol he mais brilhante!
“Ai! não guardes a avezinha
“Dentro de estreita prisão,
“Não mudes a frol mimosa,
“Que bem está no seo torrão:
“Vai ás terras da Moirama;
“Se queres hir, sê christão.”
Huma lagrima brilhante,
Como que a furto luzia
Nos olhos da moça moira,
Que o moço moiro cingia;
Em que nada lhe dicesse,
Muitas coisas lhe pedia.
[Pg 236]
Em que algo não lhe escutasse,
O mouro bem compr’endia
Que mudas fallas fallava
O pranto que ella vertia:
Saudades erão da Patria,
Que o mouro em sonhos só via.
Como havia resistir-lhe,
Se ella pedia chorando;
Se o mal por que ella passava,
Tambem ’stava elle passando;
Se o bem, que lh’ella pedia,
Lhe estava dentro fallando?
Mas quando os vi abraçados
E aquelle amor entendi,
Do effeito das minhas vozes
Eu mesmo me arrependi;
Cravei as unhas no peito,
Pezar de morte senti.
Té cheguei a ter desejos
De ouvir-lhes hum não revel,
E que então a moça moira,
E mais o mouro donzel
Parassem no fundo inferno,
Provassem, como eu, seo fel.
Mas n’hum coração sincero
Que poder que o pranto tem,
Quando no peito o sentimos,
Quando de huns olhos nos vem,
Que fôra morrer por elles
Prazer e mui grande bem!
Pedido tam gracioso
O mouro agreste rendeo;
De leixar o seo Mafoma
Logo desly prometteo,
Deixando a avença do demo,
E os ritos do culto seo!
[Pg 237]
Já me não sinto enleiado
Se o padre Adão manducou
Aquelle fructo do Eden;
Foy Eva quem lh’o offertou,
Eva, mulher e sozinha,
A qu’elle primeiro amou.
Mas quem tem visto mulheres,
E tem a sua mulher,
Ceder-lhe do seo proposto
Por mero condescender!
Se não he coisa do demo,
Não sinto o que possa ser.
Mas fez mais a linda moira!
Que sem me fazer pedido,
Entendi que por amores
Não devia andar perdido;
Quando por outro era amada,
Por outro della querido.
Hum pobre frade coitado
Bem sabe que nada tem
Nesta vida mal passada,
Onde quitou todo o bem;
Ninguem que vele por elle,
Sobre quem vele—ninguem!
Curar da may infermada
Bem pode o homem segral;
Ha sempre casta donzella,
Que se dôa do seo mal:
O frade só, despojado
Vive do fôro humanal.

Viverão aquelles mouros[Pg 238]
Depois desta occasião,
Muitos annos bem logrados,
Em amor e devação;
Louvor ao sancto baptismo!
Louvor ao nome christão!
Mas quando foy que nos veio
Aquella peste primeira,
Seta que o alvo attingia
De bem talhada e certeira,
Chegou ao christão novato
Hora vital derradeira.
E a moira por este evento,
Cheia de muita afflicção,
Recolheo-se irmã noviça
No convento d’Azeitão,
Onde viveo muitos annos
Em aturada oração.
Madres d’aquelle convento
Dizem que a virão rezar,
Em extasis jubilosas,
Suspensa, erguida no ar;
Favor do esposo divino,
Milagres do muito amar!
Ouvindo aquelles extremos,
Commigo logo assentei
Que eu fôra hum pastor perdido,
Que nas sombras divaguei,
Té qu’huma ovelha esgarrada,
Mercê de Deos, encontrei!
E a moira que eu tanto amára,
Desly se me figurou
Candida lã d’ovelhinha,
Que a sarça agreste cardou;
Ficou na sarça prendida,
Ao vento se meneou.
[Pg 239]
E alguem que ally divagava,
Felpas da lã recolheo,
Bateo-as na fonte pura,
E em branca tela as teceo;
Depois no altar consagrado
Ao Senhor Deos off’receo.
A mão de Deos poderoso
Bem claro se vê então,
Quando o torpe ismaelita
Faz-se devoto christão:
Só elle hum bom diamante
Póde fazer do carvão.
Mudar o vicio em virtude,
E a fraqueza em valor,
E o calor em frescura,
E a frescura em calor,
E tudo assi por davante,
Só elle, que é Deos Senhor.
Louvor a Deos nas alturas!
E aos homens de bom talante
Na terra paz e ventura;
Paz e ventura constante,
Senão na vida que passa,
Na vida que sempre dura.

SOLÁO
DO SENHOR REY DOM JOÃO.

[Pg 240]

Ora pois direi hum feito
Do senhor rey Dom João,
Segundo que foy do nome,
Primeiro na devação,
Primeiro mais que o primeiro,
Mais que nenhum rey christão.
Nem sempre rezar no côro,
Nem sempre velar convem;
He mister algum descanço,
Alguma folga tambem,
Entre o labor já passado
E o novo, que perto vem.
Ao duro mal que passamos
Algum remedio he mister:
E se a nenhum conhecemos,
Que mais nos ha de valer
Que recordar o passado
E contos delle fazer?
He assi que no mar alto
O cançado mareante
Luta em vão contra a tormenta
E contra o vento inconstante;
Negras vagas se encapellão,
Negra morte tem diante.
Quando n’aquelle deserto
Languidos olhos estende,
Vê mar que ferve revolto
E chuva que do céo pende:
Como deixou seu alvergue,
O triste não comprehende!
[Pg 241]
Sembrão-lhe então formidaveis
Os p’rigos que elle affrontou;
Figura risonhos quadros
Dos gozos que já gozou,
Do que na terra o convida,
Dos que na terra deixou.
Do que outrora foy passado
E mais do que vai passando,
Medonho e máo parallelo
Vai o mesquinho traçando;
Dôr de espinhos penetrantes
O peito lhe está varando.
Dias lembrar já passados
E já passada ventura,
Quando o viver he tormento,
Tormento que sempre dura,
He certo desdita grande
E muito grande amargura.
Mas vede o que val a vida!
He aquella aventurada,
Se dizemos verdadeiros:
Houve hum dia, huma hora, hum nada,
Não do pezar combatida,
Mas do prazer bafejada.
Simelha quem pola calma
O dia inteiro vagou,
Depois no marco da estrada
Cançado e triste quedou;
Ally thesouro sem dono,
Ventura sua, encontrou.

Era na sancta semana,[Pg 242]
Semana de devação!
Com jejuns e penitencias
Apresta-se o bom christão
Pera os mysterios mais altos
Da mais alta religião.
Quantas coizas que nos fallão
N’aquelle passo sagrado
D’aquelle homem divino,
D’aquelle Deos humanado,
Que por amor de seos filhos,
Ingratos, foy maltratado!
Não foy por odio ou vingança,
Mas por dinheiro trahido!
Por hum homem refalsado,
Por hum discip’lo querido;
Trahido por meio infame!...
Hum falso beijo vendido!
Foy mister por mór tormento,
Que morresse polos seos!
Entregue por hum eleito
Nas garras dos Fariseos,
Homem morreo polos homens,
Morreo judeo por judeos.
C’roou a fronte sagrada
C’roa d’espinhos tecida,
Correrão dados infames
Em taboa vil, denegrida;
Em hastea foy rematada
Tunica em sangue tingida.
Tormentos, baldões e mófa
Quem mais do qu’elle soffreo?
Quem mais comprido marteyro,
Quem mais affronta e labéo?
Tal foy que o homem divino
O rosto ao calix torceo.
[Pg 243]
Tal foy que o Deos humanado
Disse ao Deos, que era seu pay:
«Senhor Deos, s’inda he possivel,
Do vosso intento tornai;
Este calix de amargura
Dos labios meos affastai!»
Carpindo males alheios,
Quantos não vemos per hy,
Que nem siquer se recordão
De quanto soffreo por si,
Hum Deos na cruz affixado,
Mil dores soffrendo ally!
Ante esta victima augusta
Da mais feroz crueldade,
Cala quanto o homem soffre,
Quanto soffre a humanidade:
Tormento não foy como elle,
Não foy como ella impiedade.
E comtudo alguns increos
E refalsados atheos,
Guardão n’as extasis todas
E mais os transportes seos,
Pera Socrates que morre,
Que não pola dôr de hum Deos!
E não vê a cega gente,
Imiga de toda luz,
Que longe que vai do Grego
Ao Nazareno Jezus,
E da masmorra ao calvario,
E da cicuta a huma cruz!
E aos effeitos da morte
Não attenderão tambem:
Se emparelhamos idéas
Ás coizas que corpo tem;
Entre elles vai mór distancia,
Que vai da Grecia á Belem.
[Pg 244]
Morre o Grego, e não dá fruitos;
Morre Jezus por nos dar
A ley do céo pera a terra;
Ley que só pôde lavrar
O sangue do bom cordeiro
Dos falsos Deoses no altar.
Vivem algozes d’aquelle,
E huns homens apenas são;
Em quanto os algozes deste,
Em que povo de eleição,
Sumirão-se, como argueiro
Nas azas d’hum furacão.

Era na sancta semana,
Semana de devação:
Comsigo mesmo propunha
O senhor rey Dom João:
«Confessarei minhas culpas,
Que alem de rey, sou christão.
«Ao Senhor, pay de nós todos,
Meos erros confessarei;
Que me dê força indomavel
Pera guardar minha ley,
Pera punir os culpados;
Que alem de christão, sou rey.»
Azinha chamando hum pagem
Lhe diz, e lhe ordena assi:
«Hide aos Padres Dominicos
(Melhor lhes quero que a mi)
Dir-lhes-heis que sou lá prestes,
Que vou commungar ally.»
[Pg 245]
Veio logo o mensageiro
Com a mensagem real;
Recado qu’el-rey lhe dera,
Dá elle ao Provincial.
«He certo mercê mui grande,
Responde,—tenho-a por tal.»
Ao padre Thomaz da Costa
Chama n’huma Ave-Maria;
Sabia o bom do Prelado
O muito qu’el-rey lhe qu’ria:
De tam lisongeiro acerto
Comsigo mesmo sorria.
Demais que o bom do Prelado
Dizia com bem justeza:
«Prazer aos Reis cá da terra
Não he nenhuma vileza;
Praz a Deos que lhes prazamos,
Pois vem delle a realeza.»
Apresta-se com trigança
Tudo quanto era mister:
Sabia o Padre Thomaz
Encargos do seo dever;
«Vergar colossos, dizia,
Quem tem posses de o poder?
«Sob as mãos do jardineiro
Torto arbusto lá se ageita;
Mas onde existe essa força
Que hum rudo tronco sugeita,
Se a força he balda no tronco,
Se o tronco a força regeita?
«Em bem do pastor sagrado,
Que por mercê divinal
Vive no ermo escondido,
Como hum singelo zagal;
Cúra pastor de pastores,
Não de pessoa real.
[Pg 246]
«He facil o seo encargo,
Pejo, nem dôr lhe não traz;
Não he assi nos palacios,
Onde só vejo disfraz:
Vêm logo as razões de estado,
Inventos de Satanaz.
«Vêm logo as leys cá da terra
Contrapor-se ás leys dos céos:
Sêde christãos, reys senhores,
Ou então de todo incréos!
Leys dos homens não se cazão,
Não seguem ás leys de Deos.
«Não ligueis n’hum só consorcio
Terra feia e céo luzente:
Leys da terra a terra buscão,
Como a raiz da semente;
Leys do céo os céos procurão,
Como flor que o sol presente.»

Era aly na pedra raza
O senhor rey Dom João;
Ante o velho sacerdote
Fazia a sua oração,
As mãos em cruz sobre o peito,
Giolhos postos no chão.
Armas que sempre cingia,
Todalas tinha despido;
Não tinha sedas, nem joias,
Mas peito d’aço batido:
Era qual homem vivente
Em ferrea prizão mettido.
[Pg 247]
Curva-se hum rey poderoso
Perante hum homem de pé;
Perante hum Padre coitado,
Que nada tem, nada he:
Licção profunda e subida,
Preceitos da nossa fé!
Portas á dentro do templo,
Onde Deos eterno habita,
Onde aquelle amor sem zelos
Somente os peitos agita,
Nas differenças do mundo
Fiel christão não cogita.
Foy assi na antiga Roma
Polas festas saturnais,
Folgavão, senhor e servo,
Como se forão iguais;
Mas o que lá foy licença,
Aqui são leys divinais:
Aqui são todos curvados,
Todos—o servo, o senhor;
Aquelles que a vida fruem,
E aquelles que só tem dôr;
Pobres, que almejão a morte,
Ricos, que á morte hão pavor.
Nem he por vil comezaina,
Que ally reunidos estão;
Mas sim, por que a Deos importa
Que não haja distincção
Entre irmãos, no patrio abrigo,
Rezando a mesma oração.
Sóbe assi aquella prece
Da multidão apinhada,
Qual lisongeiro perfume
Das flores d’huma grinalda;
Tem huma odor, outra espinhos,
Outras tem côr, outras nada.

Era aly na pedra raza[Pg 248]
O senhor rey Dom João;
Já disse as culpas que tinha,
Já fez a sua oração:
O Padre vai ministrar-lhe
A hostia da communhão.
Tem no rosto grave e serio
Expressão nobre e subida;
Maneiras cheias de brio
Em postura comedida,
Parece que vão mostrando
Quanto val o pão da vida.
Parece que mostra, quanto
Por vil e baixo se tem,
Merecendo honra tamanha,
Que a não merece ninguem;
Dahy lhe vem ser humilde,
Nobreza dahy lhe vem.
Perfez-se o rito sagrado,
Vai ser dado o sacramento;
Principia el-rey—confiteor,—
Quando n’aquelle momento
Surge ao pé delle um guerreiro
De marcial hardimento.
Tinha feroz catadura,
Só aço e ferro vestia,
Polas grades da vizeira
Raios de luz despedia:
Medonho e fero apparato
Nas sombras da sacristia.
Era o rey brioso e forte,
Homem de muito valor,
Mas olhos lançou á espada
A furto!... seja o que for,
Não creio que homens d’aquelles
Possão jamais ter pavor.
[Pg 249]
Em voz carregada e forte
Assi começa o guerreiro:
«Em nome do Senhor Deos,
Meo Padre, aqui vos requeiro;
O senhor rey não commungue,
Pois que não he justiceiro.»
A hostia das mãos do Padre
Cahio do calix no fundo;
El rey carrega os sobr’olhos...
Certo não era jocundo
Affrontar de rosto a rosto
As sanhas de João segundo.
Era então fresca a memoria
De hum caso máo, miserando:
De noite se ergueo a forca;
Mas quando o sol foy raiando,
Não vio ninguem mais a forca,
Nem mais ao duque Fernando!
Comtudo o bravo guerreiro
Sanhas do rey não quiz ver;
Não ha que lhe ponha embargos,
Nem que lhe possa empecer:
«Senhor, sou Padre Tavares!»
Fita-o el-rey sem querer.
Depois lhe diz (que tal nome
Quebrára a furia real):
«Em bem, meo bravo guerreiro!
Mas esse trem, de que val?
Somos em terras d’Hespanha,
Ou somos em Portugal?»
—«Senhor, não uzo brocados
Vedes-me assi, e he razão,
Que havedes os meos haveres
Sem me deixardes, senão
Armas comidas no peito,
Armas gastadas na mão.
[Pg 250]
—«Fui ter ao vosso palacio,
Ninguem me não conheceo;
Quantos ally são comvosco,
Eu vos direi, senhor meo:
Nunca os eu vi nos combates,
Nunca na guerra os vi eu!
—«Voltei d’ally, protestando
Jamais não voltar ally;
Conheceis as minhas armas,
Se não conheceis a mi;
Vesti-me á modo de guerra,
Vim ter comvosco,—eis-me aqui!
—«As minhas alcaydarias
De Portal’gre e Assumar,
Senhor rey, vós m’as tirastes,
O que se chama tirar;
Ficavão perto da raya,
Máo azo de guerrear.
—«Das minhas alcaydarias
Eu tinha as rendas reais;
As guerras já são passadas,
Porque ora m’as não tornais?
Mal cabe em reys a cubiça,
Senhor, se m’as cubiçais.
—«Nem porque o velho guerreiro
Já nada vos presta e val,
Vos deveis portar com elle,
Qual dono pouco leal,
Que o seo corsel de batalla
Despreza no almargeal.
—«Assi que, Senhor, vos digo
Que vos não peço mercê;
Aquillo que me he devido,
Só peço que se me dê!—»
Prouve ao rey aquelles ditos
E mais o geito que vê.
[Pg 251]
Depois a mão estendendo
Ao seo leal lidador:
«Nós vos faremos justiça,
Assi como justo for;
Tendes a nossa palavra,
Seja-vos ella penhor!»
Alegre o Padre Thomaz
O seo mister rematou;
Hostia tomada do calix
Aos labios do rey chegou,
El-rey d’hum copo doirado
Hum gole d’agoa tomou.
Mimoso tempo d’outrora
Qual nunca mais o verei,
Nem tam inteiros sugeitos,
Hum ao outro dando a ley:
No Paço o rey ao vassallo,
Na Igreja o vassallo ao rey!

SOLÁO
DE GONÇALO HERMIGUEZ.

Não ha mais d’aquelle tempo,
Em que era tudo lhaneza!
Acções e vida e costumes
Desta gente portugueza,
Por tal geito se trocárão,
Que he hoje tudo impureza.
[Pg 252]
Não trato d’este ou d’aquelle,
Pois ha em tudo exeições;
Mas trato da grande lépra
Que vejo hy nos corações:
Desprêso do amor da gloria
E apêgo ás ruins tenções.
Outrora, sabeis vós como
Garboso Donzel se havia
Por captar nobres extremos
Da moça que requeria,
Sempre grave, honesto e brando,
Sempre uzando cortezia?
Não trescalava pivetes,
Fitas, nem laços comprava,
Nem toda a manhã divina
Seos enfeites concertava,
Nem nos chapins se revia,
Nem nos cabellos primava.
Não corria seca e meca
Traz de mimosa donzella,
Que nas ruas lobrigava;
E por ver mais perto a bella
Não hia ao templo sagrado,
Somente por amor della.
Nem as noites janeirinhas
Mais compridas e mais frias,
Levava mono amante,
Por baixo das gelozias,
Desenfiando hum rosairo
De trovas e ninharias.
Jamais não foy esse o estilo
Do moço em armas novel,
Em que experto dedilhasse
Na lyra do menestrel,
No tempo em que, não domada,
Lutava a gente infiel.
[Pg 253]
Por mais que amores amasse,
Por mais que fosse gentil,
Ninguem n’o vira a deshoras,
Como homem de tenção vil,
Como hum ladrão que de medo
Vai passo e manso e subtil.
Não pedia manto ás sombras,
Nem ao silencio mercê,
Nem do sol se arreceiava,
Como homem que pouco vê,
Nem da lua appellidada
A casta, não sei porquê.
Mas antes no amphitheatro,
Coberto de espectadores,
Onde mais povo corria,
Mais bellas e justadores,
Na arena se apresentava
Com letra e tenções d’amores.
No meio d’aquella chusma
D’arautos e passavantes,
Mantenedores do campo
Reys d’armas e circunstantes,
Feixes d’armas resplendentes,
Ondas de plumas brilhantes:
Entrava o novel guerreiro
No cerco dos justadores!
De alguma dona sizuda
Na charpa trazia as cores,
Tinhão amores ás claras,
Por que erão nobres amores.
Silencio! que sôa a trompa,
A justa vai começar!
Entre si ferem mil lutas
Guerreiros a par e par:
Da lança feita pedaços
Voão estilhas ao ar.
[Pg 254]
Levão logo mão da espada;
Que feios golpes se dão!
Abolão-se capacetes,
Talhão-se arnezes; e a mão
Certeira ao travez da malha,
Vai direita ao coração.
La sôa de novo a trompa,
Proclama-se o vencedor,
Que aos pés da bella entre as bellas
O seo trophéo vem depor:
Ao mais valente a mais bella,
Ao mais gentil mais amor.
Era a ley,—e até parece
De acordo co’a natureza,
Que se compraz no consorcio
Da força co’a gentileza;
Mais alma com mais coragem,
Mais brio com mais nobreza.
A abelha construe seos favos
Em troncos alevantados;
E eis a hera graciosa,
Que em abraços apertados
Não cinge mesquinho junco,
Mas carvalhos alentados.
Boa era a ley!—mas eu creio
Que lhe descubro hum senão;
Quem nos diz que o mais valente
Deva de ter mais razão,
Porque seja a sua dona
Como hum vaso d’eleição?
Seria coiza de ver-se,
E coiza de mui folgar,
Ver um dragão de mulher,
Chamada a bella sem par,
Á pura força de espada,
Sem mais pôr, nem mais tirar!
[Pg 255]
He bella: e al não digais,
Sob pena d’hum fendente,
Que vem do céo, como hum raio,
Provar ao villão que mente,
Co’os dentes que tem na bocca,
Como hum perro maldizente!
Fosse o caso como fosse,
He certo que d’ahy vem
Ás nossas donas de agora,
Aquelle sestro que têm
De amarem a militança
Melhor do que a nenhum bem.
Qual não gosta de ser bella,
Ao menos de o parecer?
Em quanto muitas ... Deos meo,
Eu me sei compadecer,
Soffro o mal que os outros passão,
Mais talvez que o meo soffrer.
Muitas ha hy, que eu conheço,
Que aqui na terra não são,
Senão porque as vós mandastes,
Meo Deos, por occasião
De tedio e nojo ao peccado,
E morte da tentação.
Té os moços, que as namorão,
Dirão no confessional,
Jurando por Deos eterno
E pola vida eternal,
Que se fallão delle e della,
He puro aleive e não al.
Vede pois qual não seria
O pasmo dessa donzella,
Proclamada ao meio dia
Fermosa como huma estrella,
Sem que houvesse ahy no mundo
Coiza melhor, nem mais bella!
[Pg 256]
Logo no fraco bestunto
Julgára, sem mais razão,
Que n’este mundo mesquinho
He tudo engano e buzão,
E té que a propria belleza
He coiza de convenção!
Era assi que n’outras eras
Garboso donzel se havia
Por captar nobres extremos
Da moça que requeria,
A ponta de fina espada
E arrojos de valentia.

No tempo de Alphonso Henriques,
Que foy nosso rey primeiro,
Havia na sua côrte,
Côrte de rey mui fragueiro,
Hum tal Gonçalo Hermiguez,
Destemido cavalleiro.
Era moço e mui donoso,
De mui boa nomeada:
Fiava el-rey muito delle,
E a raynha Mafalda
Folgava de ouvir-lhe os cantos
Aos sons da lyra afinada.
Portas a dentro do Paço
Não tinha nenhum rival
Em compor trovas mimosas;
E no campo e no arrayal
Não n’o havia mais valente,
Mais forte, nem mais leal.
[Pg 257]
Quanta sanha que elle tinha,
Votára a gente infiel,
Porque o pay lhe havião morto,
Era elle ainda novel;
Vel-os porêm não podia,
Nem pintados no papel.
Era o mesmo ver a hum destes
E entrar logo em sanha tal,
Que era força ter mão d’elle,
Ou saltava-lhe ao gorjal
Pera torcer-lhe o gasnate,
Como se fôra hum pardal.
Mas se tinhão tento n’elle,
Era outro conto ruim!
Cabia logo em desmaios,
Que era hum desmaio sem fim!
Dó era ver tal sugeito
Prostrado e defuncto assi.
Andava sempre occupado
Em perpetua correria
Polas terras do mourisco,
E muito mal lhes fazia;
Dava porêm mór realce
Ao nome que já trazia.

Como fosse e os companheiros
Em hum saráo folgazão,
Lembrou-se que perto vinha
A noite de Sam João,
Azado ensejo de aos Mouros
Fazer-se affronta e lezão.
[Pg 258]
Cheia de bello hardimento,
Aquella nobre nobreza
Por amor de seos amores
Commette tam grande empreza,
Qual a de hir terras de Mouros
Com feros, ronco e braveza.
Qual apresta o seo ginete,
Qual a fita dependura
No collo nunca domado;
Qual a pesada armadura
Inverga, e ahy se recolhe,
Como em arce mui segura!
Qual a Deos por testemunha
Toma da sua tenção,
Qual aos pés da sua dona
Requer-lhe extremo condão,
Extremo volver dos olhos,
Extremo apertar da mão!
Qual desly toma algum nome
Por grito de accommetter,
Que nas lidas e pelejas
Saberá fazer valer!
Qual sente o nojo futuro,
Em mal, que lá vai morrer!
Mas nunca será que o rosto
Mostre o que n’alma lhe mora:
Quem vio a morte passar-lhe
De perto, já não descora
Por hum presagio funesto,
Sendo ella coiza d’huma hora.

Aquelles bons cavalleiros[Pg 259]
Azinha promptos estão;
Lá se partem de Coimbra,
Montes alem já lá vão!
Ninguem vio mais escolhido,
Nem mais luzido esquadrão.
Entre elles por mais robusto
Gonçalo Hermiguez campeia;
Diz seo porte sublimado,
Que de nada se arreceia,
Mas antes que a todos repta,
De tanto que o collo alteia!
Caminho vão de Lisboa
Com todo apercebimento!
Não convem que se aprecatem
D’aquelle accommettimento
Mouros que vivem na regra
Do seo alkorão nojento!
Sabeis a regra qual seja?
He viver dentro do harem,
Dizendo mal do toicinho
E mais do vinho tambem,
Sem que lhe pêze este mundo,
Sem que lhe pêze ninguem!
He vegetar entre flores,
He viver vida folgada,
Aspirando incenso e odores
Em molleza effeminada,
Nem que fosse huma odalisca,
Ou mulher alambicada.

Pozerão todos a mira[Pg 260]
Em Alcacere do Sal,
Covil de feras humanas,
Não de cordeiros curral;
Nó gordio do vil mourisco,
O ferro o corta, não al!
Os que por terra a demandão
Vão em procura d’Almada,
Alcáçova dura e forte,
Em rija pedra assentada,
Como pedra preciosa
Em ferrea c’roa engastada.
Outros lá vão Tejo arriba!
Ó Tejo, quanto me he grata
Essa placida corrente,
Quando a lua se retrata,
Chovendo chuva de raios,
No teo chão de lisa prata!
Que doce que he teo remanso,
Quando manso o vento gyra,
Que nas folhas rumoreja,
E como que ally suspira
Melindres d’amor suave,
Que nem tangidos na lyra!
Que arroubos que infiltras n’alma,
Quando vai ao som das agoas
Navegando o passageiro;
Já, se as tem, não sente as fragoas,
Que no peito a dôr derrama,
Como huma enchente de magoas!
Mas talvez dos cavos olhos
Polas faces a correr
Sinta o pranto represado
Polo seo muito soffrer:
Corra embora, qu’esse pranto
Dôr não he, senão prazer!
[Pg 261]
Que neste val’ de amarguras,
Onde viemos penar,
Por cada dia hum marteyro
Por cada instante hum pezar,
He bem feliz quem só passa
Dores que fazem chorar!
Não sei ledice o que seja,
Nem o que seja prazer;
Nunca os senti n’esta vida,
Nem n’os posso conhecer;
Que não sou dos bemfadados,
E nunca o não hei de ser!
Mas o pranto extravasado
Não he quem nos dá morrer,
Nem quem o viço dos annos
Faz seccar e emmurchecer;
He antes aquelle pranto
Que não sabemos verter.

Lá vão hindo Tejo acima,
Olhos longos polo mar,
Lá onde enchergão Lisboa
Com fogueiras de espantar;
Fogo accendido na terra
Sóbe em centelhas ao ar!
D’aquelles fogos accesos
Em roda os velhos estão,
E as donzellas feiticeiras
Com sorriso folgazão,
Cantando coytas de amores,
Quites de coytas então.
[Pg 262]
He a noite milagrosa
Do Bautista milagroso,
Té dos mouros da mourama
Havido por glorioso:
Folgão nobres e senhores,
Folga o villão descuidoso.
Horas de noite folgada
Não tardão, não têm vagar:
A noite assi do Bautista
Vai serena a escorregar,
Como areia da ampulheta,
Hum grão e outro a tombar!
Vai assi como o perfume
Respirado d’uma frol,
Que não vemos, mas sentimos;
Que sentimos no arrebol
Da manhã, que pola terra
Se espalha em antes do sol!
Vai assi como o rocio
De serena madrugada,
Rorejado gota a gota
De branca nuvem prenhada
Sobre o calice musgoso
De huma flor avelludada.
Vai assi, qual sóe prender-se,
Em quem de amores não cura,
Doce peçonha de amores:
Donzella de vida pura,
Quando ha temores de havel-o,
He qu’elle já não tem cura.

Do Alcacer as lindas filhas,[Pg 263]
Já era nascida a aurora,
Pera ver uma corrida
Sahirão portas a fóra,
E mais pera colher flores,
Persuadidas da hora.
Logo sahidas no prado
Forão, qual sohem de ser
Mansas agoas d’hum regato
Em chão sem leito a correr,
Cada qual por seo caminho,
Cada qual a seo prazer!
Desly pulando e cantando
Vão nas matas de alecrim,
Colhem a rosa corada
E a branca flor do jasmim;
Brincão brinquedos contentes,
Folgão folguedos sem fim!
Oh! que festas! que alegrias!
Que arruido vai no prado!
Que bem cantado rimance,
Que soláo tãobem cantado!
Não têm as aves atito,
Nem gorgeio mais brincado!
Oh! que vozes melindrosas,
Que accentos encantadores
N’aquelle prazer d’huma hora!
As moças vão colher flores,
E os moços que vão com ellas
Vão lá por colher amores.
Eis nisto ... estranho arruido!
Rouca trompa abala o ar;
Logo assomão cavalleiros
Com figuras de espantar:
Allah nos valha, mofinas!
Dizem moiras a chorar.
[Pg 264]
Allah! repetem n’os Mouros,
Vendo o pendão portuguez;
E do alfange recurvado
Levão mão sem pavidez!
Feios golpes se preparão,
Outra folgança outra vez!
Retine o ferro no ferro,
Talhão-se cotas e arnezes;
O fino alfange mourisco
Abre o elmo aos portuguezes;
E a espada que bem degola,
Bem multiplica os revezes.
Lá chega o alarma á Cidade!
Lá vem mouros descançados
Em descançados ginetes:
Cavalleiros esforçados,
Que por Christo Deos pelejão,
Não têm de que ter cuidados.
Gonçalo Hermiguez, o cabo,
Avante! brada, e não al:
Brilha o valente nas lides,
Que ally não acha rival,
Aquelle cabo entre todos
Sanhudo e forte e fatal.
Maneja tam facilmente
O seo pesado montante,
Que Alcides com sua clava,
E nem o Titan gigante,
Serra a serra sobrepondo
Não tinha aquelle semblante.
Eilo vai per entre os mouros,
Abre entre elles larga estrada;
Quem fica em prisão de guerra,
Quem lá foge em debandada!
Ficão moiras prisioneiras,
Mulheres—gente coitada!
[Pg 265]
Gonçalo Hermiguez em tanto
Vio que longe lhe fugia
Linda moira desmaiada,
Que hum moço mouro cingia,
Dando d’esporas ao bruto,
Que mais que o vento corria!
Vai sobre elles sem tardança:
Com quanto de arremeção
Matal-o tambem podera,
Certo o fizera, senão
Temesse que a moira bella
Morresse de sua mão.
Mais logo que foy com elle,
D’hum golpe que despedio,
Cerce o cortou pelo meio:
Golpe assi nunca se vio!
E a moira tomando em braços,
Azinha daly fugio.
Passou terrivel com ella
Por meio da gente fera;
Quem n’o vira tam sanhudo,
Leão raivoso dissera,
Passando a travez dos homens
Com a preza que fizera.
Eis nasce novo combate,
Nova peleja maior!
Muitos homens contra hum homem,
Contra hum forte lutador;
Mas hum só que a todos vence
Em força, esforço, e valor!
Mal podia a mão sinistra
Vibrar a sangrenta espada,
Co’o pejo d’aquella moira
Disputada e desmaiada,
Cujo corpo em dois pendia,
Como huma frexa quebrada.
[Pg 266]
Mas inda assi despedia
Hum golpe e outro cruel:
E de encontro á este, á aquelle
Mandava o seo bom corsel,
Que a turba multa alastrava
Aos pés do nobre donzel.
Quando a ventura he incerta,
Acerta em aventurar
Quem a empreza disputada
Tem desejos de acabar:
Só elle demora em terra,
Que os seos já são sobre o mar!
Torce as redeas ao ginete,
Larga carreira arrepia,
Larga estrada co’o montante
Por entre os mouros se abria,
Despedia muitos golpes,
Muitos estragos fazia.
Chega a praia, os seos avista
Mas os mouros perto vêm!
Como isto vio, torce o rosto,
Medonho como ninguem;
Temem-se mouros de o verem;
Párão, como elle, tambem!
Vão assi feros monteiros
Traz d’hum urso mal sangrado,
Que de repente a carreira
Revira, e vólta agastado:
Parão monteiros ao vel-o
Raivoso e mal assombrada.
E a fera d’aquelle pasmo,
Sabendo, em seo bem, valer-se,
Vai a passos descançados
Em densa mata esconder-se,
Sem temor da montaria,
Sem dos monteiros temer-se.
[Pg 267]
Tal o forte Traga-mouros
Salta dentro do baixel;
Na praia ficão pasmados
Mouros, do feito novel,
Tamanho, que nem sonhado
Foy jamais por menestrel.
E os companheiros aos ventos
Desfraldão velas e panos,
Deixando as praias tingidas
Em sangue por muitos annos;
Quantos bastem, porque chorem
Seo dezar os musulmanos.
Aos alegres companheiros
Disse o guerreiro feliz:
«Das prezas, que nos fizemos,
Quero tam só a que eu fiz,
A moira que por seo nome
Fatima em Turco se diz!»
Então aquelle seo canto
Principiou a compor:
Cant’eu, por vergonha minha,
Em bem que o saiba de cór,
Digo que sal lhe não acho,
Nem sei de coiza pior.
Mas era o soláo por certo
Aos tempos accommodado,
Que de outro cantar não acho
Que fosse mais decantado,
Nem Figueiral Figueredo,
Nem o Ficade coitado.
E a moira já bautisada
Pertenceo ao lidador,
Duas vezes conquistada
Polo donzel, seo senhor,
Primeiro á força de espada,
Depois á força de amor.

Era assi n’aquelle tempo[Pg 268]
Coiza sabida e seguida,
Remanso depois da gloria,
Descanço depois da lida,
E a fé que espera e milita
Nos actos todos da vida!
Vede vós quamanho he o lucro,
Que lucra a moira pagã,
Desposando o cavalleiro,
Tomada e feita christã;
He vida e sangue de hum homem,
Não de infieis barregã!
He como tropheo ganhado
Em guerras de religião
Por algum peito devoto,
Que por sua devação
Prometteo dependural-o
Dentro de templo christão.
O canto aqui finaliso!
Não devo d’hir por diante,
Narrando casos da vida
Per natureza inconstante,
Trabalhos que sempre durão,
Prazer que dura hum instante!
Foy o cabo dos amores
A moça moira acabar
E sobre hum covão aberto
Hum homem posto a chorar,
Hum homem de dó coberto,
A carpir-se, a prantear!

[Pg 269]

ULTIMOS CANTOS.



[Pg 271]

AO
MEU CARO E SAUDOSO AMIGO
O DR. ALEXANDRE THEOPHILO DE
CARVALHO LEAL
OFFERENDO-LHE ESTE VOLUME DE POESIAS,
quando pela primeira vez forão impressas.[4]


Eis os meus ultimos cantos, o meu ultimo volume de poesias soltas, os ultimos harpejos de uma lyra, cujas cordas forão estalando, muitas aos balanços asperos da desventura, e outras, talvez a maior parte, com as dores de um espirito infermo,—ficticias, mas nem por isso menos agudas,—produzidas pela imaginação, como se a realidade já não fosse por si bastante penosa, ou que o espirito, affeito a certa dose de soffrimento, se sobresaltasse de sentir menos pezada a costumada carga.

No meio de rudes trabalhos, de occupações estereis, de cuidados pungentes,—inquieto do presente, incerto do futuro, derramando um olhar cheio de lagrimas e saudades sobre o meu passado—percorri este primeiro estadio da minha vida litteraria. Desejar e soffrer—eis toda a minha vida neste periodo; e estes desejos immensos, indiziveis, e nunca satisfeitos,—caprichosos como a imaginação,—vagos como o oceano,—e terriveis como a tempestade; e estes soffrimentos de todos os dias, de todos os instantes, obscuros, implacaveis, renascentes,—ligados a minha existencia,[Pg 272] reconcentrados em minha alma, devorados commigo, umas vezes me deixarão sem força e sem coragem, e se reproduzirão em pallidos reflexos do que eu sentia, ou me forçarão a procurar um alivio, uma distracção no estudo, e a esquecer-me da realidade com as ficções do ideal.

Se as minhas pobres composições não forão inteiramente inuteis ao meu paiz; se algumas vezes tive o maior prazer que me foi dado sentir—a mais lisongeira recompensa a que poderia aspirar,—de as saber estimadas pelos homens da arte, daquelles, que segundo o poeta, porque a entendem, a estimão, e repetidas por aquella classe do povo, que só de cór as poderia ter aprendido, isto é, dos outros que a comprehendem, porque a sentem, porque a adivinhão—paguei bem caro esta momentanea celebridade com decepções profundas, com desenganos amargos, e com a lenta agonia de um martyrio ignorado.

Melhor que ninguem o sabes: podes a teu grado sondar os arcanos da minha consciencia, e não te será difficil descobrir o segredo das minhas tristes inspirações. Os meus primeiros, os meus ultimos cantos são teus: o que sou, o que for, a ti o devo,—a ti, ao teu nobre coração, que durante os melhores annos da juventude bateu constantemente ao meu lado,—a aragem bemfazeja da tua amizade sollicita e desvelada,—a tua voz que me animava e consolava,—a tua intelligencia que me vivificava—ao prodigio de duas indoles tão assimiladas, de duas almas tão irmãs, tão gemeas, que uma dellas rematava o pensamento apenas enunciado da outra, e aos sentimentos unisonos de dous corações, que mutuamente se fallavão, se interpretavão, se respondião sem o auxilio de palavras. Duplicada a minha existencia, não era muito que eu me sentisse com forças para abalançar-me a esta empreza; e agora que em parte a tenho concluido, é um dever de gratidão, um dever para que sou attrahido por todas as potencias da minha alma, escrever aqui o teu nome, como talvez seja o derradeiro que escreverei em minhas obras, o ultimo que os meus labios pronunciem, se nos paroxismos da morte se poder destacar inteiramente do meu coração.

[Pg 273]

Ser-me-hia doloroso não cumprir os teus desejos,—não satisfazer as esperanças, que em mim tinhas depositado,—não realisar a expectação da tua desinteressada amizade. Entrei na luta, e procurei disputar ao tempo uma fraca parcella da sua duração, não por amor do orgulho, nem por amor da gloria; mas para que, depois da morte de ambos, uma só que fosse das minhas producções sobrenadasse no olvido, e por mais uma geração estendesse a memoria tua e minha. Assim passa a onda sobre um navio que soçobra, e atira á praias desconhecidas os destroços de um mastro embrulhado nas vestes dos navegantes.

Entrei na luta, e por mais algum tempo continuarei nella, variando apenas o sentido dos meus cantos. A fé e o enthusiasmo, o oleo e o pabulo da lampada que alumia as composições do artista, vão-se-me esfriando dentro do peito; eu o conheço e o sinto; se pois ainda persisto nesta carreira, é por teu respeito: continuarei—até que, satisfeito dos meus esforços, me digas: basta!—Então, já t’o hei dito, voltarei gostoso á obscuridade, donde não devera ter sabido, e—como um soldado desconhecido—contarei os meus triumphos pelas minhas feridas, voltando á habitação singela, onde me correrão, não felizes, mas os primeiros dias da minha infancia.

Minha alma não está commigo, não anda entre os nevoeiros dos Orgãos, involta em neblina, balouçada em castellos de nuvens, nem rouquejando na voz do trovão. Lá está ella!—lá está a espreguiçar-se nas vagas de S. Marcos, a rumorejar nas folhas dos mangues, a susurrar nos leques das palmeiras: lá está ella nos sitios que os meus olhos sempre virão, nas paisagens que eu amo, onde se avista a palmeira esbelta, o cajazeiro coberto de cipós, e o páu d’arco coberto de flores amarellas. Alli sim,—alli está—desfeita em lagrimas nas folhas das bananeiras—desfeita em orvalho sobre as nossas ores, desfeita em harmonia sobre os nossos bosques, sobre os nossos rios, sobre os nossos mares, sobre tudo que eu amo, e que em bem veja eu em breve! Ahi, outra vez remoçado e vivificado de[Pg 274] todos os annos que esperdicei, poderei enchugar os meus vestidos, voltar aos gozos de uma vida ignorada, e do meu lar tranquillo ver outros mais corajosos e mais felizes que eu affrontar as borrascas desencadeadas no oceano, que eu houver para sempre deixado atraz de mim.

Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1850.

A. GONÇALVES DIAS.


[Pg 275]

POESIAS AMERICANAS.


I.
O GIGANTE DE PEDRA.

O guerriers! ne laissez pas ma dépouille au corbeau!
Ensevelissez-moi parmi des monts sublimes,
Afin que l’étranger cherche, en voyant leurs cimes,
Quelle montagne est mon tombeau!
V. HUGO. Le Géant.

I.

Gigante orgulhoso, de fero semblante,
N’um leito de pedra lá jaz a dormir!
Em duro granito repousa o gigante,
Que os raios sómente podérão fundir.
Dormido atalaia no serro empinado
Devera cuidoso, sanhudo velar;
O raio passando o deixou fulminado,
E á aurora, que surge, não ha de acordar!
Co’os braços no peito cruzados nervosos,
Mais alto que as nuvens, os céos a encarar,
Seu corpo se estende por montes fragosos,
Seus pés sobranceiros se elevão do mar!
De lavas ardentes seus membros fundidos
Avultão immensos: só Deos poderá
Rebelde lançal-o dos montes erguidos,
Curvados ao peso, que sobre lhe ’stá.
[Pg 276]
E o céo, e as estrellas e os astros fulgentes
São velas, são tochas, são vivos brandões,
E o branco sudario são nevoas algentes,
E o crepe, que o cobre, são negros bulcões.
Da noite, que surge, no manto fagueiro
Quiz Deos que se erguesse, de junto a seos pés,
A cruz sempre viva do sul no cruzeiro,
Deitada nos braços do eterno Moysés.
Perfumão-no odores que as flores exhalão,
Bafejão-no carmes de um hymno de amor
Dos homens, dos brutos, das nuvens que estalão,
Dos ventos que rugem, do mar em furor.
E lá na montanha, deitado dormido
Campeia o gigante,—nem póde acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, os pés sobre o mar!

II.

Banha o sol os horisontes,
Trepa os castellos dos céos,
Aclara serras e fontes,
Vigia os dominios seus:
Já descahe p’ra o occidente,
E em globo de fogo ardente
Vai-se no mar esconder;
E lá campeia o gigante,
Sem destorcer o semblante,
Immovel, mudo, a jazer!
Vem a noite após o dia,
Vem o silencio, o frescor,
E a brisa leve e macia,
Que lhe suspira ao redor;
E da noite entre os negrores,
Das estrellas os fulgores
[Pg 277]
Brilhão na face do mar:
Brilha a lua scintillante,
E sempre mudo o gigante,
Immovel, sem acordar!
Depois outro sol desponta,
E outra noite tambem,
Outra lua que aos céos monta,
Outro sol que após lhe vem:
Após um dia outro dia,
Noite após noite sombria,
Após a luz o bulcão,
E sempre o duro gigante,
Immovel, mudo, constante
Na calma e na cerração!
Corre o tempo fugidio,
Vem das aguas a estação,
Após ella o quente estio;
E na calma do verão
Crescem folhas, vingão flores,
Entre galas e verdores
Sazonão-se fructos mil;
Cobrem-se os prados de relva,
Murmura o vento na selva,
Azulão-se os céos de anil!
Tornão prados a despir-se,
Tornão flores a murchar,
Tornão de novo a vestir-se,
Tornão depois a seccar;
E como gota filtrada
De uma abobada escavada
Sempre, incessante a cahir,
Tombão as horas e os dias,
Como phantasmas sombrias,
Nos abysmos do porvir!
[Pg 278]
E no feretro de montes
Inconcusso, immovel, fito,
Escurece os horisontes
O gigante de granito:
Com soberba indifferença
Sente extincta a antiga crença
Dos Tamoyos, dos Pagés;
Nem vê que duras desgraças,
Que lutas de novas raças
Se lhe atropellão aos pés!

III.

E lá na montanha deitado dormido
Campeia o gigante!—nem póde acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!....

IV.

Vio primeiro os incolas
Robustos, das florestas,
Batendo os arcos rigidos,
Traçando homereas festas,
Á luz dos fogos rutilos,
Aos sons do murmuré!
E em Guanabara esplendida
As danças dos guerreiros,
E o guáu cadente e vário
Dos moços prazenteiros,
E os cantos da victoria
Tangidos no boré.
E das ygaras concavas
A frota aparelhada,
Vistosa e formosissima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mas que frageis,
Os ventos contrastar:
[Pg 279]
E a caça leda e rapida
Por serras, por devesas,
E os cantos da janubia
Junto ás lenhas accesas,
Quanto o tapuya misero
Seos feitos vai narrar!
E o germen da discordia
Crescendo em duras brigas,
Ceifando os brios rusticos
Das tribus sempre amigas,
—Tamoy a raça antigua,
Feroz Tupinambá.
La vai a gente improvida,
Nação vencida, imbelle,
Buscando as matas invias,
Donde outra tribu a expelle;
Jaz o pagé sem gloria,
Sem gloria a maracá.
Depois em náos flammivomas
Um troço hardido e forte,
Cobrindo os campos humidos
De fumo, e sangue, e morte,
Traz dos reparos horridos
D’altissimo pavez:
E do sangrento pelago
Em miseras ruinas
Surgir galhardas, limpidas
As portuguezas quinas,
Murchos os lises candidos
Do improvido gaulez!

V.

Mudarão-se os tempos e a face da terra,
Cidades alastrão o antigo paúl;
Mas inda o gigante, que dorme na serra,
Se abraça ao immenso cruzeiro do sul.
[Pg 280]
Nas duras montanhas os membros gelados
Talhados a golpes de ignoto buril,
Descança, ó gigante, que encerras os fados,
Que os terminos guardas do vasto Brasil.
Porêm se algum dia fortuna inconstante
Poder-nos a crença e a patria acabar,
Arroja-te ás ondas, ó duro gigante,
Inunda estes montes, desloca este mar!

II.
LEITO DE FOLHAS VERDES.

Porque tardas, Jatyr, que tanto a custo
Á voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.
Eu sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zeloza
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.
Do tamarindo a flôr abriu-se, ha pouco,
Já solta o bogarî mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silencio da noite o bosque exhala.
Brilha a lua no céo, brilhão estrellas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo magico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!
A flôr que desabrocha ao romper d’alva
Um só gyro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquella flôr que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.
[Pg 281]
Sejão valles ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vas, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: es meu, sou tua!
Meus olhos outros olhos nunca virão,
Não sentirão meus labios outros labios,
Nem outras mãos, Jatyr, que não as tuas
A arasoya na cinta me apertarão.
Do tamarindo a flôr jaz entre-aberta,
Já solta o bogarî mais doce aroma;
Tambem meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exhala!
Não me escutas, Jatyr! nem tardo acodes
Á voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupan! lá rompe o sol! do leito inutil
A brisa da manhã sacuda as folhas!

III.
Y-JUCA-PYRAMA.

I.

No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos—cobertos de flores,
Alteião-se os tectos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos animos fortes,
Temiveis na guerra, que em densas cohortes
Assombrão das matas a immensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de gloria,
Já prelios incitão, já cantão victoria,
Já meigos attendem á voz do cantor:
São todos Tymbiras, guerreiros, valentes!
Seu nome lá vôa na bocca das gentes,
Condão de prodigios, de gloria e terror!
[Pg 282]
As tribus visinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspirárão dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes accendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sugeitos na paz.
No centro da taba se extende um terreiro,
Onde ora se aduna o concilio guerreiro
Da tribu senhora, das tribus servis:
Os velhos sentados praticão d’outr’ora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramão-se em torno d’um indio infeliz.
Quem é?—ninguem sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribu não diz:—de um povo remoto
Descende por certo—d’um povo gentil;
Assim lá na Grecia ao escravo insulano
Tornavão distincto do vil musulmano
As linhas correctas do nobre perfil.
Por casos de guerra cahiu prisioneiro
Nas mãos dos Tymbiras:—no extenso terreiro
Assola-se o tecto, que o teve em prisão;
Convidão-se as tribus dos seus arredores,
Cuidosos se incumbem do vaso das cores,
Dos varios aprestos da honrosa funcção.
Acerva-se a lenha da vasta fogueira,
Entesa-se a corda da embira ligeira,
Adorna-se a maça com pennas gentis:
Á custo, entre as vagas do povo da aldeia
Caminha o Tymbira, que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de vario matiz.
Em tanto as mulheres com leda trigança,
Affeitas ao rito da barbara usança,
O indio já querem captivo acabar:
A coma lhe cortão, os membros lhe tingem,
Brilhante enduápe no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil kanitar.

II.

[Pg 283]

Em fundos vasos d’alvacenta argilla
Ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa,
Reina o festim.
O prisioneiro, cuja morte anceião,
Sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no occaso
Jámais verá!
A dura corda, que lhe enlaça o collo,
Mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve
Do que o festim!
Com tudo os olhos d’ignobil pranto
Seccos estão;
Mudos os labios não descerrão queixas
Do coração.
Mas um martyrio, que encobrir não póde,
Em rugas faz
A mentirosa placidez do rosto
Na fronte audaz!
Que tens, guerreiro? Que temor te assalta
No passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te virão,
Folga morrendo.
Folga morrendo; porque além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
Da fria morte.
Rasteira grama, exposta ao sol, á chuva,
Lá murcha e pende:
Sómente ao tronco, que devassa os ares,
O raio offende!
[Pg 284]
Que foi? Tupan mandou que elle cahisse,
Como viveu;
E o caçador que o avistou prostrado
Esmoreceu!
Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
Da fria morte.

III.

Em larga roda de noveis guerreiros
Ledo caminha o festival Tymbira,
A quem do sacrificio cabe as honras.
Na fronte o kanitar sacode em ondas,
O enduápe na cinta se embalança,
Na dextra mão sopesa a iverapeme,
Orgulhoso e pujante.—Ao menor passo
Collar d’alvo marfim, insignia d’honra,
Que lhe orna o collo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas alli as almas grandes
Dos vencidos Tapuyas, inda chorem
Serem gloria e brasão d’imigos feros.
«Eis-me aqui, diz ao indio prisioneiro;
«Pois que fraco, e sem tribu, e sem familia,
«As nossas matas devassaste ousado,
«Morrerás morte vil da mão de um forte.»
Vem a terreiro o misero contrario;
Do collo á cinta a musurana desce:
«Dize-nos quem es, teus feitos canta,
«Ou se mais te apraz, defende-te.» Começa
O indio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os animos commove.

IV.

[Pg 285]

Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribu tupi.
Da tribu pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
Já vi cruas brigas,
De tribus imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.
Andei longes terras,
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aymorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes—escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.
E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
[Pg 286]
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinhão traidores,
Com mostras de paz.
Aos golpes do imigo
Meu ultimo amigo,
Sem lar, sem abrigo
Cahio junto a mi!
Com placido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Commigo soffri.
Meu pae a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por invios caminhos,
Cobertos d’espinhos
Chegamos aqui!
O velho no em tanto
Soffrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu’ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.
Então, forasteiro,
Cahi prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessocego
Do pae fraco e cego,
Em quanto não chego,
Qual seja,—dizei!
[Pg 287]
Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deos lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descançava,
Que filho lhe sou.
Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta?—Morrer.
Em quanto descreve
O gyro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver!
Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não córo
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Tambem sei morrer.

V.

Soltai-o!—diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmurão: mal ouvírão,
Nem poude nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxão-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.
—Tymbira, diz o indio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravão:
Es um guerreiro illustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te commoveste,
[Pg 288]
Nem soffres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não scintilla,
Chore a morte do lho o pae cançado,
Que somente por seu na voz conhece.
—Es livre; parte.
—E voltarei.
—Debalde.
—Sim, voltarei, morto meu pai.
—Não voltes!
E bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: es livre; parte.
—Acaso tu suppões que me acobardo,
Que receio morrer!
—Es livre; parte!
—Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso o vencem,
Da morte o passo glorioso affronta.
—Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
Sobresteve o Tupi:—arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precipite.—Do rosto afogueado
Gelidas bagas de suor corrião:
Talvez que o assaltava um pensamento...
Já não ... que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martyrio ao mesmo tempo,
Do velho pae a moribunda imagem
Quasi bradar-lhe ouvia:—Ingrato! ingrato!
Curvado o collo, taciturno e frio,
Espectro d’homem, penetrou no bosque!

VI.

—Filho meu, onde estás?
—Ao vosso lado;
[Pg 289]
Aqui vos trago provisões: tomai-as,
As vossas forças restaurai perdidas,
E a caminho, e já!
—Tardaste muito!
Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!
—Sim, demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
Convem partir, e já!
—Que novos males
Nos resta de soffrer?—que novas dores,
Que outro fado pior Tupan nos guarda?
—As setas da afflicção já se esgotárão,
Nem para novo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta.
—Mas tu tremes!
—Talvez do afan da caça...
—Oh filho caro!
Um quê mysterioso aqui me falla,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei: é Tupan que nos afflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!...—
E com mão tremula, incerta
Procura o filho, tateando as trevas
Da sua noite lugubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéa fatal correu-lhe á mente....
Do filho os membros gelidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo:—foge, volta,
Encontra sob as mãos o duro craneo,
Despido então do natural ornato!....
[Pg 290]
Recúa afflicto e pavido, cobrindo
Ás mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porêm mais clara,
D’aquelle exicio grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido;
Mas que funesto azar correra o filho,
Elle o via; elle o tinha alli presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dôr passada, a previsão futura
E o presente tão negro, alli os tinha;
Alli no coração se concentrava,
Era n’um ponto só, mas era a morte!
—Tu prisioneiro, tu?
—Vós dissestes.
—Dos indios?
—Sim.
—De que nação?
—Tymbiras.
—E a musurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebraste a maça....
—Nada fiz ... aqui estou.
—Nada!—
Emmudecem;
Curto instante depois prosegue o velho:
—Tu es valente, bem o sei; confessa,
Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo!
—Nada fiz; mas souberão da existencia
De um pobre velho, que em mim só vivia....
—E depois?...
—Eis me aqui.
—Fica esse taba?
—Na direcção do sol, quando transmonta.
[Pg 291]
—Longe?
—Não muito.
—Tens razão: partamos.
—E quereis ir?...
—Na direcção do occaso.

VII.

«Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedestes
A vida a um prisioneiro.
Acção tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jámais praticada
Entre os Tupis,—e mas forão
Senhores em gentileza.
«Eu porêm nunca vencido,
Nem nos combates por armas,
Nem por nobreza nos actos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Mandai vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrificio
E a musurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelão,
Alguem que meus passos guie;
Alguem, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez de meu filho,
De haver-me por pae se ufane!»
Mas o chefe dos Tymbiras,
Os sobrolhos encrespando,
[Pg 292]
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com torvo accento:
—Nada farei do que dizes:
É teu filho imbelle e fraco!
Aviltaria o triumpho
Da mais guerreira das tribus
Derramar seu ignobil sangue:
Elle chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Tymbiras,
Só de heróes fazemos pasto.—
Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha!

VIII.

«Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não es!
Possas tu, descendente maldicto
De uma tribu de nobres guerreiros,
Implorando crueis forasteiros,
Seres presa de vis Aymorés.
«Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem patria vagando,
Regeitado da morte na guerra,
Regeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenhão alma inconstante e falaz!
[Pg 293]
«Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanço gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta as chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.
«Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfalleça,
E o regato que limpido corre,
Mais te accenda o vesano furor;
Suas agoas depressa se tornem,
Ao contacto dos labios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas com asco e terror!
«Sempre o céo, como um tecto incendido,
Creste e punja teus membros maldictos
E o oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miseravel, faminto, sedento,
Manitôs lhe não fallem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.
«Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argilla cuidoso
Arco e frecha e tacápe a teus pés!
Sê maldicto, e sosinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não es.»

IX.

Isto dizendo, o miserando velho
A quem Tupan tamanha dôr, tal fado
[Pg 294]
Já nos confins da vida reservára,
Vae com tremulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando.—Alarma! alarma!—O velho pára!
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouvio já tantas vezes
N’outra quadra melhor.—Alarma! alarma!
—Esse momento só vale apagar-lhe
Os tão compridos trances, as angustias,
Que o frio coração lhe atormentarão
De guerreiro e de pae:—vale, e de sobra.
Elle que em tanta dôr se contivera,
Tomado pelo subito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exhaurido coração remoça.
A taba se alborota, os golpes descem,
Gritos, imprecações profundas soão,
Emmaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, ennovela-se confusa,
E mais revolta em mor furor se accende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem,
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas ermas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas de povo enfurecido
Contra um rochedo vivo se quebravão.
Era elle, o Tupi; nem fôra justo
Que a fama dos Tupis—o nome, a gloria,
Aturado labor de tantos annos,
Derradeiro brasão da raça extincta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.
—Basta! clama o chefe dos Tymbiras,
—Basta, guerreiro illustre! assás lutaste,
—E para o sacrificio é mister forças.—
[Pg 295]
O guerreiro parou, cahio nos braços
Do velho pae, que o cinge contra o peito,
Com lagrimas de jubilo bradando:
«Este, sim, que é meu filho muito amado!
«E pois que o acho em fim, qual sempre o tive,
«Corrão livres as lagrimas que choro,
«Estas lagrimas, sim, que não deshonrão.»

X.

Um velho Tymbira, coberto de gloria,
Guardou a memoria
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E á noite, nas tabas, se alguem duvidava
Do que elle contava,
Dizia prudente:—«Meninos, eu vi!
«Eu vi o brioso no largo terreiro
Cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
Parece que o vejo,
Que o tenho nest’hora diante de mi’.
«Eu disse comigo: Que infamia d’escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como elle, não vi!
E á fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!»
Assim o Tymbira, coberto de gloria,
Guardava a memoria
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E á noite nas tabas, se alguem duvidava
Do que elle contava,
Tornava prudente: «Meninos, eu vi!»

IV.
MARABÁ.

[Pg 296]

Eu vivo sosinha; ninguem me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá!
Se algum d’entre os homens de mim não se esconde,
—Tu es, me responde,
—Tu es Marabá!
—Meus olhos são garços, são côr das saphiras,
—Tem luz das estrellas, tem meigo brilhar;
—Imitão as nuvens de um céo anilado,
—As cores imitão das vagas do mar!
Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:
«Teus olhos são garços,»
Responde anojado; «mas es Marabá:
«Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
«Uns olhos fulgentes,
«Bem pretos, retinctos, não côr d’anajá!»
—É alvo meu rosto da alvura dos lyrios,
—Da côr das areias batidas do mar;
—As aves mais brancas, as conchas mais puras
—Não tem mais alvura, não tem mais brilhar.—
Se ainda me escuta meus agros delirios:
«Es alva de lyrios»
Sorrindo responde; «mas es marabá:
«Quero antes um rosto de jambo corado,
«Um rosto crestado
«Do sol do deserto, não flor de cajá.»
[Pg 297]
—Meu collo de leve se encurva engraçado,
—Como hastea pendente do cactos em flor;
—Mimosa, indolente, resvalo no prado,
—Como um soluçado suspiro de amor!—
«Eu amo a estatura flexivel, ligeira,
«Qual duma palmeira,»
Então me respondem; «tu es Marabá:
«Quero antes o collo da ema orgulhosa,
«Que pisa vaidosa,
«Que as floreas campinas governa, onde está.»
—Meus loiros cabellos em ondas se annelão,
—O oiro mais puro não tem seu fulgor;
—As brisas nos bosques de os ver se enamorão,
—De os ver tão formosos como um beija-flor!—
Mas elles respondem: «Teus longos cabellos,
«São loiros, são bellos,
«Mas são annelados; tu es Marabá:
«Quero antes cabellos, bem lisos, corridos,
«Cabellos compridos,
«Não côr d’oiro fino, nem côr d’anajá.»

E as doces palavras que eu tinha cá dentro
A quem n’as direi?
O ramo d’acacia na fronte de um homem
Jámais cingirei:
Jámais um guerreiro da minha arasoya
Me desprenderá:
Eu vivo sosinha, chorando mesquinha,
Que sou Marabá!

V.
CANÇÃO DO TAMOYO.

[Pg 298]

(Natalicia.)

I.

Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos,
Só pode exaltar.

II.

Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir;
No arco que enteza
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuya,
Condor ou tapyr.

III.

O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os timidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutão-lhe a voz!

IV.

[Pg 299]

Domina, se vive;
Se morre, descança
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte ha de vir!

V.

E pois que es meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoyo nasceste,
Valente serás.
Sê duro guerreiro,
Robuste, fragueiro,
Brasão dos tamoyos
Na guerra e na paz.

VI.

Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
D’imigos transidos
Por vil commoção;
E tremão d’ouvil-o
Peor que o sibilo
Das seta ligeiras,
Peor que o trovão.

VII.

E a mãe nessas tabas,
Querendo calados
Os filhos creados
Na lei do terror;
Teu nome lhes diga,
Que a gente inimiga
Talvez não escute
Sem pranto, sem dôr!

VIII.

[Pg 300]

Porêm se a fortuna,
Trahindo teus passos,
Te arroja nos laços
Do imigo fallaz!
Na ultima hora
Teus feitos memora,
Tranquillo nos gestos,
Impavido, audaz.

IX.

E cae como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extenção;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.

X.

As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.

VI.
A MANGUEIRA.

[Pg 301]

Já viste cousa mais bella
Do que uma bella mangueira,
E a doce fruta amarella,
Sorrindo entre as folhas della,
E a leve copa altaneira?
Já viste cousa mais bella
Do que uma bella mangueira?
Nos seus alegres verdores
Se embalança o passarinho;
Todo é graça, todo amores,
Decantando seus ardores
Á beira do casto ninho:
Nos seos alegres verdores
Se embalança o passarinho!
O cançado viandante
Á sombra della acha abrigo;
Traz-lhe a aragem susurrante,
Que lhe passa no semblante,
Talvez o adeos d’um amigo;
E o cançado viandante
Á sombra della acha abrigo.
A sombra que ella derrama
Todas as dores acalma;
Seja dôr que o peito inflamma,
Ou voraz, nociva chamma
Que nos mora dentro d’alma,
A sombra que ella derrama
Todas as dores acalma.
[Pg 302]
O mancebo namorado
Para ella se encaminha;
Bate-lhe o peito açodado,
Quando chega o praso dado,
Quando ao tronco se avisinha,
E o mancebo namorado
Para o tronco se encaminha.
Sob a copa deleitosa
Mil suspiros se entrelação,
E d’uma hora aventurosa
Guarda a prova a casca annosa
Nas cifras que alli se abração:
Sob a copa venturosa
Mil suspiros se entrelação.
Grata estação dos amores,
Abrigo dos que o não tem,
Deixa-me ouvir teos cantores,
Admirar teos verdores;
Presta-me abrigo tambem,
Grata estação dos amores,
Abrigo dos que o não tem!

VII.
A MÃE D’AGUA.

«Minha mãe, olha aqui dentro,
Olha a bella creatura,
Que dentro d’agoa se vê!
São d’ouro os longos cabellos,
Gentil a doce figura,
Airosa, leve a estatura;
Olha, vê no fundo d’agua
Que bella moça não é!
[Pg 303]
«Minha mãe, no fundo d’agua
Vê essa mulher tão bella!
O sorrir dos labios della,
Inda mais doce que o teu,
É como a nuvem rosada,
Que no romper da alvorada,
Passa risonha no céo.
«Olha, mãe, olha depressa!
Inclina a leve cabeça
E nas mãosinhas resume
A fina trança mimosa,
E com pente de marfim!...
Olha agora que me avista
A bella moça formosa,
Como se fez toda rosa,
Toda candura e jasmim!
Dize, mãe, dize: tu julgas
Que ella se ri para mim!
«São seus labios entre-abertos
Semilhantes a romã;
Tem ares d’uma princesa,
E no emtanto é tão medrosa!...
Inda mais que minha irmã.
Olha, mãe, sabes quem é
A bella moça formosa,
Que dentro d’agua se vê?»
—Tem-te, meu filho; não olhes
Na funda, lisa corrente:
A imagem que te embelleza
É mais do que uma princesa,
É menos do que é a gente.
—Oh! quantas mães desgraçadas
Chorão seus filhos perdidos!
Meu filho, sabes porquê?
Foi porque derão ouvidos
[Pg 304]
Á leve sombra enganosa,
Que dentro d’agua se vê.
—O seu sorriso é mentira,
Não é mais que sombra vã;
Não vale aquillo que eu valho,
Nem o que val tua irmã:
É como a nuvem sem corpo,
De quando rompe a manhã.
—É a mãe d’agua traidora,
Que illude os faceis meninos,
Quando elles são pequeninos
E obedientes não são;
Olha, filho, não a escutes,
Filho do meu coração:
O seu sorriso é mentira,
É terrivel tentação.—

Junto ao rio chrystallino
Brincava o ledo menino,
Molhando o pé;
O fresco humor o convida,
Menos que a imagem querida,
Que n’agua vê.
Cauteloso de repente,
Ouve o concelho prudente,
Que a mãe lhe dá;
Não é anjo, não é fada;
Mas uma bruxa malvada,
E cousa má.
Ella é quem rouba os meninos
Para os tragar pequeninos,
Ou mais talvez!
E para vingar-se n’agua
Da causa tanta magoa,
Remeche os pés.
[Pg 305]
Turba a fonte n’um instante,
Já não vê o bello infante
A sombra vã,
E as brancas mãos delicadas
E as longas tranças douradas
Da sua irmã.
O menino arrependido
Diz comsigo entristecido:
—Que mal fiz eu!
Minha mãe, bem que indulgente,
Só por não me ver contente,
Me repr’hendeu.—
Era figura tão bella!
E que expressão tão singela,
Que riso o seu!
Oh! minha mãe certamente
Só por não me ver contente,
Me repr’hendeu!
Espreita, sim, mas duvída
Que a bella imagem querida
Torne a volver;
E na fonte crystallina
Para ver todo se inclina
Se a póde ver!
Acha-se ainda turbada,
E a bella moça agastada
Não quer voltar;
Sacode leve a cabeça,
Em quanto o pranto começa
A borbulhar.
E de triste e arrependido
Diz comsigo entristecido:
—Que mal fiz eu!...
[Pg 306]
—Leda ao ver-me parecia,
—Era boa, e me sorria....
—Que riso o seu!

As aguas no em tanto de novo se aplacão,
A lisa corrente se espelha outra vez;
E a imagem querida no fundo apparece
Com mil peixes varios brincando a seus pés.
Do collo uma charpa trazia pendente,
Cortando-lhe o seio de brancos jasmins,
Um iris nas cores, e as franjas bordadas
De prata luzente, de vivos rubins.
Uma harpa a seu lado frisava a corrente,
Gemendo queixosa da leve pressão,
Como harpas ethereas, que as brisas conversão,
Achando-as perdidas em mesta soidão.
Sentida, chorosa parece que estava,
E o bello menino, sentado, a chorar
«Perdôa, dizia-lhe, o mal que te hei feito;
Por minha vontade não hei de tornar!»
A harpa dourada de subito vibra,
A charpa se agita do seio ao travez;
Das franjas garbosas as pedras reflectem
Infindos luzeiros nos humidos pés.
Os peixes pasmados de subito parão
No fundo luzente de puro crystal;
Fantasticos seres assomão ás grutas
Do nitido ambar, do vivo coral!
Em tanto o menino se curva e se inclina
Por ver mais de perto a donosa visão;
A mãe, longe delle, dizia:—Meu filho,
Não oiças, não vejas, que é má tentação.—

«Vem meu amigo, dizia[Pg 307]
A bella fada engraçada,
Pulsando a harpa dourada:
—Sou boa, não faço mal,
Vem ver meus bellos palacios,
Meus dominios dilatados,
Meus thesouros encantados
No meu reino de crystal.
«Vem, te chamo: vê a limpha
Como é bella e crystallina;
Vê esta areia tão fina,
Que mais que a neve seduz!
Vem, verás como aqui dentro
Brincão mil leves amores,
Como em listas multicores
Do sol se desfaz a luz.
«Se não achas borboletas
Nem as vagas mariposas,
Que brincão por entre as rosas
Do teu ameno jardim;
Tens mil peixinhos brilhantes,
Mais luzentes e mais bellos
Que o oiro dos meus cabellos,
Que a nitidez do setim.»

Em tanto o menino se curva e se inclina
Por ver de mais perto a donosa visão;
E a mãe longe delle, dizia: meu filho,
Não oiças, não vejas, que é má tentação.

«Vem, meu amigo, tornava
A bella fada engraçada,
Vem ver a minha morada,
O meu reino de crystal:
[Pg 308]
Não se sente a tempestade
Na minha espaçosa gruta,
Nem voz do trovão se escuta,
Nem roncos do vendaval.
«Aqui, ao findar do dia,
Tudo rapido se accende,
E o meu palacio resplende
De vivo, ethereo clarão.
Mil figuras apparecem,
Mil donzellas encantadas
Com angelicas toadas
De ameigar o coração.
«Quando passo, as brandas aguas
Por me ver passar se afastão,
E mil estrellas se engastão
Nas paredes do crystal.
Surgem luzes multicores,
Como desses perilampos,
Que tu vês andar nos campos,
Sem comtudo fazer mal.
«Quando passo, mil sereias,
Deixando as grutas limosas,
Formão ledas, pressurosas
O meu sequito real:
Vem! dar-te-hei meus palacios,
Meus dominios dilatados,
Meus thesouros encantados
E o meu reino de crystal.»

Em tanto o menino se curva e se inclina
Para a visão;
E a mãe lhe dizia: Não vejas, meu filho,
Que é tentação.
[Pg 309]
E o bello menino, dizendo comsigo:—
Que bem fiz eu!
Por ver o thesouro gentil, engraçado,
Que já é seu:
Atira-se ás aguas: n’um grito medonho
A mãe lastimavel—Meu filho!—bradou:
Respondem-lhe os echos; porêm voz humana
Aos gritos da triste não torna:—aqui estou!


[Pg 310]

POESIAS DIVERSAS.


NENIA
Á MORTE SENTIDISSIMA DO SERENISSIMO PRINCIPE IMPERIAL O SENHOR D. PEDRO.


Á SUA MAGESTADE O IMPERADOR.


I.

Morreste, como a folha verde e linda,
Que não vio murcho o esmeraldino encanto;
Bem como um ai que melindroso finda,
Em quanto as faces não roreja o pranto!
Bem como a flôr inda em botão cortada,
Em quanto aromas recendia pura;
Bem como a onda quando mal formada,
Nos brancos frisos do areal murmura!
Bem como a aurora timida que morre,
Em quanto os céos de rosicler matisa;
Bem como o sopro de ligeira brisa,
Que entre os olores da manhã discorre!
Mimosa espr’ança do Brasil, batendo
Ás ferreas portas da existencia, viste
O mundo afflicto e a humanidade triste
Seu negro fado e sua dôr soffrendo!
[Pg 311]
Cheio de compaixão atraz voltaste
Do horrifico espectaculo, tapando
Com as azas do anjo o rosto brando,
E no seio do Eterno te asylaste.
Morreste! como aurora sem poente,
Como flôr, que perfume inda exhalava,
Como o sopro da brisa recendente,
Como a onda, que apenas se formava!
Morreste! como a folha verde e bella
N’um tronco forte a despontar louçã,
Não arrancada á sanha da procella,
Mas leve solta aos beijos da manhã.
Morreste! como lampada brilhante,
Inda virgem, sem dar mystica luz;
Ou turib’lo d’incenso crepitante,
Esquecido nos braços de uma cruz.
Morreste! e os anjos da eternal morada
Levárão entre palmas e capellas
Tua alma, como uma harpa não tocada,
Áquelle, cujo throno é sobre estrellas.
Morreste! como aurora sem poente,
Como flôr que perfume inda exhalava,
Como o sopro da brisa recendente,
Como a onda que apenas se formava.
Nenhum bulcão toldou a aurora maga,
Em quanto no horisonte apavonou-se,
A brisa em vendaval não transtornou-se,
A folha em cinza, nem a onda em vaga.

II.

Não ouviste, ó bello anginho,
Na hora do passamento
Para abrandar teu tormento
Do berço teu ao redor,
[Pg 312]
Dos teus irmãos a phalange
Com opas de luz brilhante,
Nas harpas de diamante
Cantar hosanna ao Senhor?
Teu espirito innocente,
Tocado da luz divina,
Que a fraca mente illumina
Dos resplendores de Deos,
Não antevio outros gozos,
Não correu nos frouxos ares,
Não foi roçar nos palmares,
Nas rosas puras dos céos?
Viste-os, sim; porêm voltando
Outra vez á vida escassa,
Tua alma triste esvoaça
Sobre os teus restos mortaes;
E entre os rostos que divisas,
Que a tua vida pranteião,
Entre quantos te rodeião,
Tu não enchergas teus paes!
Corres então a trazer-lhes
Nas meigas azas brilhantes
Dos teus ultimos instantes
O teu alento final;
E em redor delles choraste
De não ter deixado a vida,
Por extrema despedida,
N’um amplexo paternal!
Vai, ó anjo, sobe, vôa,
Deixa a terra ingrata e rude;
Vai onde móra a virtude,
E premio a innocencia tem;
Mas nos divinos prazeres,
Mas no celeste cortejo,
Terás o materno beijo,
Não serás orphão tambem?

III.

[Pg 313]

Desprega tuas azas de cores suaves,
Adeja no espaço, procura o teu Deos:
O aroma das flores, o canto das aves,
O que ha de mais puro se entranha nos céos.
Oh! foge da terra: bem como a neblina
Que em rolos de neve, que espuma figura,
Mais frouxa, mais leve, na luz matutina,
Qual nuvem d’incenso, do céo se pendura.
Mas quando a balança dos nossos destinos,
Na grávida concha dos nossos peccados
Sumir-se no abysmo—dos raios divinos
Os golpes apára nos contos dourados.
Não caia do Eterno a justa inclemencia
No povo, que soube teu berço guardar;
Ampara-o nas azas da tua innocencia,
Que os prantos de um anjo nos podem salvar.
Desdobra tuas azas de cores suaves,
Adeja no espaço, procura o teu Deos:
O aroma das flores, e o canto das aves
E o que ha de mais puro se perde nos céos.

IV.

SENHOR, se na afflicção que te consome,
Na dôr immensa, que teu peito acanha,
Póde erguer-se do bardo a voz sentida
E aos teus soluços misturar seu pranto;
Se a dôr do pae não absorve inteiro
O peito augusto do Monarcha excelso,
Enxuga as tristes lagrimas que vertes!
Melhor, talvez, que o throno é ver chorando
Um povo inteiro em torno de um sepulchro,
Um vacuo berço de seu pranto enchendo!
Á sorte pois te curva, e á lei d’aquelle
(Involta em seus reconditos designios)
[Pg 314]
A quem aprouve nivelar, cortando
Co’o mesmo golpe as esperanças de ambos,
—A dôr de um pae e as afflicções de um povo!—
JANEIRO 10 de 1850.

OLHOS VERDES.

Elles verdes são:
E tem por usança,
Na côr esperança,
E nas obras não.
CAM., Rim.
São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos côr de esperança,
Uns olhos por que morri;
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como duas esmeraldas,
Iguaes na forma e na côr,
Tem luz mais branda e mais forte,
Diz uma—vida, outra—morte;
Uma—loucura, outra—amor.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
São verdes da côr do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflammão,
Tão meigamente derramão
Fogo e luz do coração;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
[Pg 315]
São uns olhos verdes, verdes,
Que podem tambem brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da côr do prado,
Mas verdes da côr do mar.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como se lê n’um espelho
Pude lêr nos olhos seus!
Os olhos mostrão a alma,
Que as ondas postas em calma
Tambem reflectem os céos;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós, ó meos amigos,
Se vos perguntão por mi,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos côr de esperança,
De uns olhos verdes que vi!
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Vio uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da côr do mar:
Erão verdes sem espr’ança,
Davão amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos,
Que ai de mi!
Não pertenço mais a vida
Depois que os vi!

CUMPRIMENTO DE UM VOTO

[Pg 316]

Feito ás Sras. de Itapacorá, que abrilhantarão a festa do Illm. Sr. ANTONIO JOSÉ RODRIGUES TORRES.

PORTO DAS CAIXAS—25 de agosto 1850.

Se ao misero cantor vos praz mandar-lhe
Cantar voltas de amor, á graça tanta
Será mudo o cantor, nem ha de aos echos
A cythara incivil fallar de amores?
Mandaes, que sois, senhoras, minhas musas;
Quando a senhora manda, o escravo cumpre
E ás supplicas da musa o vate cede!
Afinada por vós a lyra humilde,
Já desafeita aos sons que o peito abrandão,
Á nova esphera se remonta agora.
O frescor juvenil dos vossos annos,
E as, que vos ornão, deleitosas graças,
Hão de ameigar-lhe as cordas, perfumal-as,
Dictar-lhe os faceis, inspirados carmes.

A estrella, que fulge no céo anilado,
Com placido brilho de noite s’inflamma;
Na fonte e no prado
Reflexos luzentes esparge e derrama.
Nos ramos cobertos de ameno rocio
As aves descantão á luz da alvorada,
E a meiga toada
Repetem aos echos do bosque sombrio.
Na gleba virente, do sol bafejada,
Recende perfumes a flôr matutina,
Que á luz da alvorada
Ao sopro da brisa de leve s’inclina.
[Pg 317]
A flôr que trescala perfumes suaves,
A estrella que brilha no céo anilado,
E o canto das aves,
Que sôa no bosque virente e copado;
Se cantão, perfumão, despedem fulgores,
É tal o seu fado:—vós sois qual são ellas,
Sois como as estrellas,
Na graça e no canto, sois aves, sois flôres.
Como ellas, pagai-vos de ver quão fugaces
Encurtão-se as horas de nosso viver,
De ver como as faces,
Que tendes em torno, resumbrão prazer.

Estes versos na mente susurravão
Do vate, cuja lyra merencoria
Foi por vós de festões engrinaldada;
Por vós, cujo sorriso mavioso
Melhor perfume exhala, do que as notas
Concertadas com arte; dai um riso
Dos vossos, um volver dos brandos olhos,
Aos alegres convivas; e um reflexo
Do vosso meigo olhar e brando riso
Venha morrer na lyra do poeta,
Como do astro-rei, quando no occaso
Doura no campo as folhas mais humildes.

LYRA QUEBRADA.

[Pg 318]

Ah! ya agostada
Siento mi juventud, mi faz marchita,
Y la profunda pena que me agita
Ruga mi frente de dolor nublada.
HEREDIA.
Pede cantos aos ledos passarinhos,
Pede clarão ao sol, perfume ás flores,
Ás brisas suspirar, murmurio aos ventos,
Doces querelas ao correr das fontes;
E o sol, a ave, a flôr, a brisa, os ventos
E as fontes que murmurão docemente,
Na festa da tua alma hão de seguir-te,
Como um som pelos echos repetido.
Mas não peças á lyra abandonada
Um alegre cantar,—já murchas pendem
As grinaldas gentis, de que a toucárão
Donzeis louçãos, enamoradas virgens.
Hoje mal partem roucos sons dos nervos,
Que amargo pranto destendeu sem custo;
Quem ha que se não dóe de ouvir cantados
Uns versos de prazer entre soluços?
Não peças pois um hymno ao triste bardo!
Verde ramo d’uma arvore gigante
O raio no passar queimou-lhe o viço,
Deixando-o por escarneo entre verdores.
Uma febre, um ardor nunca apagado,
Um querer sem motivo, um tedio á vida
Sem motivo tambem,—caprichos loucos,
Anhelo d’outro mundo e d’outras coisas;
Desejar coisas vãs, viver de sonhos,
Correr após um bem logo esquecido,
Sentir amor e só topar frieza,
Scismar venturas e encontrar só dores;
[Pg 319]
Fizerão-me o que vês: não canto, soffro!
Lyra quebrada, coração sem forças
De poetico manto os vou cobrindo,
Por disfarçar desta arte o mal que passo.
Mas se inda tens prazer á luz da aurora,
Se te ameiga fitar longos instantes,
Sentada á beira mar, na paz de um ermo,
Uma flôr, uma estrella, os céos e as nuvens;
Pede cantos aos ledos passarinhos,
Á brisa, ao vento, á fonte que murmura;
Mas não peças canções ao triste bardo,
A quem té para um ai já falta o alento.

A PASTORA.

Forão as trevas fugindo,
E luzindo
Nasce o sol sobre o horisonte;
Quando a pastora formosa
E mimosa
Já caminho vai do monte!
A relva tenra e molhada,
Orvalhada,
Que de noite despontou,
Se levanta melindrosa,
Mais viçosa
Depois que o sol a afagou!
Nos ramos cantão, trinando
E saltando,
As aves seu casto amor;
Aqui, alli, scintillante
E brilhante
Desabrocha a linda flôr.
[Pg 320]
E a pastorinha engraçada,
Bem fadada,
Na fresca manhã de abril,
Vai cantando maviosa,
E saudosa
Pensando no seu redil.
Para as serras do Gerez
Toca a rez,
Toca a rez, gentil pastora;
Lá te aguarda o bom pastor,
Teu amor,
Que te chama encantadora.
Vai, pastora, vai depressa,
Já começa
O sol no valle a brilhar;
Vai, que as tuas companheiras,
Galhofeiras,
Lá ’stão com elle a folgar!
Pela aldeia entre os pastores
Vão rumores
De que tens uma rival,
Nessa Alteia, a tua antiga,
Doce amiga,
Que te quer hoje tão mal!
Tu não sabes que os amores
São traidores,
Que o homem não sabe amar;
E que diz: Esta é mais bella;
Mas aquella
É que me sabe agradar!
Tenho d’Alteia receios,
Que tem meios
De prender um coração;
É viva, bella, engraçada,
Festejada
Nos cantares do serão.
[Pg 321]
Como a neve em seus lavores,
Nos amores
Que caprichosa não é!
Zomba delle quando o topa,
E o provoca
De mil maneiras, á fé!
Té dizem—será mentira—
Que lhe atira
Seus motetes muita vez;
Dizem mais, que ha prendas dadas
E trocadas:...
Não sei; mas será talvez!
Triste de ti, se assim fôra,
Ó pastora,
Triste de ti sem amor!
Foras alvo dos festejos,
Dos motejos,
E do canto mofador!
Cheia de pudico medo,
Ao folguedo
Do domingo festival,
Não irias, ó formosa,
Vergonhosa
Dos olhos d’uma rival!
Para as serras do Gerez
Toca a rez,
Toca a rez, gentil pastora;
Lá te aguarda o bom pastor,
Teu amor,
Que te chama encantadora!
GEREZ....

A INFANCIA.

[Pg 322]

A Mlle J. PICOT.

I.

Bello raio do sol da existencia,
Meninice fagueira e gentil,
Doce riso de pura innocencia
Sempre adorne teu rosto infantil.
Sempre tenhas, anginho innocente,
Quem se apresse a teus passos guiar,
E uma voz que o teu somno acalente,
E um sorriso no teu acordar.
Enlevada nos sonhos jucundos,
Voz etherea te venha fallar,
E visão d’outros céos, d’outros mundos,
Venha amiga tua alma encantar.

Leda infancia gentil! e quem não te ama?
Quem tão de pedra o coração não sente
Aos teus encantos meigos mais tranquillo?
Quem não sente memorias d’outras eras
Travarem-lhe da mente, ao recordar-se
Aquelle gozo puro e suavissimo
De vida, que jámais não tem logrado?
Recordações de um mundo adormecido
Lá lhe estão dentro d’alma esvoaçando,
Como harpejos de musica longinqua!
E a mente nos seus quadros embebida,
Por magica illusão enfeitiçada,
Como outr’ora, talvez sómente veja
Na terra—um chão de flôres estrellado,
E nos céos—outro chão de flôres vivas!

II.

[Pg 323]

Afagada e bem vinda e querida,
Travessuras scismando infantis,
Nos caminhos floridos da vida
Vai mimosa, imprudente e feliz!
É-lhe a vida continuo festejo,
Sonhos d’oiro só sabe sonhar,
Toda ella um afan, um desejo
D’outros jogos contente brincar.
Puro riso o semblante lhe adorna,
Logo pranto começa a verter,
E depois outro riso lhe torna,
E depois outro pranto a correr.

Tão perto jaz a fonte da amargura
Da fonte do prazer!—porêm tão doces
Essas lagrimas são!—tão abundantes,
Tão sem causa e sympathicas gotejão
N’uma tez de carmim, n’um rosto bello!
Quem a vê, que sorrindo as não enchuga?
Mas não todo consumas o thesouro
Unico e triste, que ao infeliz sobeja
Nas horas do soffrer; no tempo amargo,
No qual o rosto pallido se enruga,
E os olhos seccos, aridos chammejão,
Será talvez bem grato refrigerio
Uma lagrima só, em que arrancada
A força da afflicção dos seios d’alma.
Mas tu, feliz, sorri, em quanto a vida,
Como um rio entre flores, se deslisa
Macio, puro e recendendo aromas.

III.

Bello raio do sol da existencia,
Flôr da vida, mimosa e gentil,
Fonte pura de meiga innocencia,
Leve gozo da quadra infantil!
[Pg 324]
Quem fruir-te outra vez não deseja,
Quando vê sobre a veiga formosa
A menina travessa e ruidosa,
Borboleta, que alegre doudeja?
A menina é uma flôr de poesia,
Um composto de rosa e jasmim,
Um sorriso que Deos alumia,
Um amor de gentil serafim!

Folga e ri no começo da existencia,
Borboleta gentil! a flôr dos valles,
Da noite á viração abrindo o calix,
O puro orvalho da manhã te guarda;
Inda perfumes dá, que te embriagão,
Inda o sol quando aquece os vivos raios,
Nas azas multicores scintillando,
Com terno amor de pae, em torno esparge
Pó subtil de rubins e de safiras.
Folga e ri no começo da existencia,
Humano serafim, que esse perfume
São das azas do anjo, que s’impregnão
Dos aromas do céo, quando atear-se,
Roaz fogo de vida começando,
Quanto havemos de Deos consome e apaga.

IV.

Porêm tu, afagada e querida,
Com requebros donosos, gentis,
Vai contente caminho da vida,
Bello anginho, mimoso e feliz!
E do bardo a canção magoada,
Quando a possas um dia escutar,
Ha de ser como rota grinalda,
Que perfumes deixou de exhalar!
[Pg 325]
E esta mão talvez seja sem vida,
E este peito talvez sem calor,
E memoria apagada e sumida,
Talvez seja a do triste cantor!

URGE O TEMPO.

Move incessante as azas incansaveis
O tempo fugitivo;
Atraz não volta!
A. DE GUSMÃO.
Urge o tempo, os annos vão correndo,
Mudança eterna os seres afadiga!
O tronco, o arbusto, a folha, a flôr, o espinho,
Quem vive, o que vegeta, vai tomando
Aspectos novos, nova forma, em quanto
Gyra no espaço e se equilibra a terra.
Tudo se muda, tudo se transforma;
O espirito, porêm, como centelha,
Que vai lavrando solapada e occulta,
Até que emfim se torna incendio e chammas,
Quando rompe os andrajos morredouros,
Mais claro brilha, e aos céos comsigo arrasta
Quanto sentio, quanto soffreu na terra.
Tudo se muda aqui! sómente o affecto,
Que se gera e se nutre em almas grandes,
Não acaba, nem muda; vai crescendo,
Co’ o tempo avulta, mais augmenta em forças,
E a propria morte o purifica e alinda.
Simelha estatua erguida entre ruinas,
Firme na base, intacta, inda mais bella
Depois que o tempo a rodeou de estragos.

SOBRE O TUMULO DE UM MENINO.

[Pg 326]

25 de Outubro de 1848.

O involucro de um anjo aqui descança,
Alma do céo nascida entre amargores,
Como flôr entre espinhos!—tu, que passas,
Não perguntes quem foi.—Nuvem risonha,
Que um instante correu no mar da vida;
Romper da aurora que não teve occaso,
Realidade no céo, na terra um sonho!
Fresca rosa nas ondas da existencia,
Levada á plaga eterna do infinito,
Como off’renda de amor ao Deos que o rege;
Não perguntes quem foi, não chores: passa.

MENINA E MOÇA.

Ma bienvenue au jour me rit dans tous les yeux!
CHENIER.
É leda a flôr que desponta
Sobre o talo melindroso,
E o arrebento viçoso
Crescendo em floreo tapiz;
É doce o romper da aurora,
Doce a luz da madrugada,
Doce o luzir da alvorada,
Doce, mimoso e feliz!
É bella a virgem risonha
Com seus musicos accentos,
Com seus virgens pensamentos,
Com seus mimos infantis;
Como quanto enceta a vida,
Que á luz sorri da existencia,
Que tem na sua innocencia
Da mocidade o verniz.[Pg 327]
Vinga a flôr a pouco e pouco,
Cada vez mais bem querida,
Tem mais encantos, mais vida,
Tem mais brilho, mais fulgor:
De cada gota de orvalho
Extrahe celeste perfume,
E do sol no raio assume
Cada vez mais viva côr.
Assim á virgem mimosa,
Pouco e pouco, noite e dia,
Mais viva flôr de poesia
Do rosto lhe tinge a côr;
E um anjo nos meigos sonhos,
Do seu peito na dormencia
Derrama o odor da innocencia,
Um doce raio de amor!
Porque tudo, quando nasce,
Seja a luz da madrugada,
Seja o romper da alvorada,
Seja a virgem, seja a flôr;
Tem mais amor, tem mais vida,
Como celeste feitura,
Que sahe melindrosa e pura
D’entre as mãos do creador.
28 de Julho.

COMO EU TE AMO.

Como se ama o silencio, a luz, o aroma,
O orvalho n’uma flôr, nos céos a estrella,
No largo mar a sombra de uma vela,
Que lá na extrema do horisonte assoma;[Pg 328]
Como se ama o clarão da branca lua,
Da noite na mudez os sons da flauta,
As canções saudosissimas do nauta,
Quando em molle vai-vem a náo fluctua;
Como se ama das aves o gemido,
Da noite as sombras e do dia as cores,
Um céo com luzes, um jardim com flores,
Um canto quasi em lagrimas sumido;
Como se ama o crepusculo da aurora,
A mansa viração que o bosque ondeia,
O susurro da fonte que serpeia,
Uma imagem risonha e seductora;
Como se ama o calor e a luz querida,
A harmonia, o frescor, os sons, os céos,
Silencio, e cores, e perfume, e vida,
Os paes e a patria e a virtude e a Deos.

Assim eu te amo, assim; mais do que podem
Dizer-t’o os labios meus,—mais do que vale
Cantar a voz do trovador cançada:
O que é bello, o que é justo, sancto e grande
Amo em ti.—Por tudo quanto soffro,
Por quanto já soffri, por quanto ainda
Me resta de soffrer, por tudo eu te amo.
O que espero, cobiço, almejo, ou temo
De ti, só de ti pende: oh! nunca saibas
Com quanto amor eu te amo, e de que fonte
Tão terna, quanto amarga o vou nutrindo!
Esta occulta paixão, que mal suspeitas,
Que não vês, não suppões, nem te eu revelo,
Só pode no silencio achar consolo,
Na dôr augmento, interprete nas lagrimas.

De mim não saberás como te adoro;[Pg 329]
Não te direi jámais,
Se te amo, e como, e a quanto extremo chega
Esta paixão voraz!
Se andas, sou o echo dos teus passos;
Da tua voz, se fallas;
O murmurio saudoso que responde
Ao suspiro que exhalas.
No odor dos teus perfumes te procuro,
Tuas pegadas sigo;
Velo teus dias, te acompanho sempre,
E não me vês comtigo!
Occulto e ignorado me desvelo
Por ti, que me não vês;
Aliso o teu caminho, esparjo flôres,
Onde pisão teus pés.
Mesmo lendo estes versos, que m’inspiras,
—Não pensa em mim, dirás:
Imagina-o, si o podes, que os meus labios
Não t’o dirão jámais!

Sim, eu te amo; porêm nunca
Saberás do meu amor;
A minha canção singela
Traiçoeira não revela
O premio sancto que anhela
O soffrer do trovador!
Sim, eu te amo; porêm nunca
Dos labios meus saberás,
Que é fundo como a desgraça,
Que o pranto não adelgaça,
Leve, qual sombra que passa,
Ou como um sonho fugaz!
[Pg 330]
Aos meus labios, aos meus olhos
Do silencio imponho a lei;
Mas lá onde a dôr se esquece,
Onde a luz nunca fallece,
Onde o prazer sempre cresce,
Lá saberás se te amei!
E então dirás: «Objecto
Fui de sancto e puro amor:
A sua canção singela,
Tudo agora me revela;
Já sei o premio que anhela
O soffrer do trovador.
«Amou-me como se ama a luz querida,
Como se ama o silencio, os sons, os céos,
Qual se amão cores e perfume e vida,
Os paes e a patria, e a virtude e a Deos!»

AS DUAS CORÔAS.

Hermosa, en tu linda frente
El laurel sienta mejor,
Que con su regio esplendor
Corona de rei potente.
G. y S.
Ha duas c’rôas na terra,
Uma d’ouro scintillante
Com esmalte de diamante,
Na fronte do que é senhor;
Outra modesta e singela,
C’rôa de meiga poesia,
Que a fronte ao vate alumia
Com a luz d’um resplendor.
[Pg 331]
Ante a primeira se curvão
Os potentados da terra:
No bojo, que a morte encerra,
Sobre a liquida extensão,
Levão náos os seus dictames
Da peleja entre os horrores;
Vis escravos, crús senhores,
Preito e menagem lhe dão.
E quando o vate suspira
Sobre esta terra maldicta,
Ninguem a voz lhe acredita,
Mas riem dos cantos seus:
Os anjos, não; porque sabem
Que essa voz é verdadeira,
Que é dos homens a primeira,
Em quanto a outra é de Deos!
Se eu fora rei, não te dera
Quinhão na regia amargura;
Nem te qu’ria, virgem pura,
Sentada sob o docel,
Onde a dôr tão viva anceia,
Tão cruel, tão funda late,
Como no peito que bate
Sob as dobras do burel.
Não te quizera no throno,
Onde a mascara do rosto,
Cobrindo o interno desgosto,
Ser alegre tem por lei;
Manda Deos, sim, que o rei chore;
Mas que chore occultamente,
Porque, se o soubera a gente,
Ninguem quizera ser rei!
Mas o vate, quando soffre,
Modula em meigos accentos,
[Pg 332]
Seus doridos pensamentos,
A sua interna afflicção;
E das lagrimas choradas
Extrahe um balsamo sancto,
Que vale estancar o pranto
Nos olhos do seu irmão.
Se eu fôra rei, não quizera
Roubar-te á senda florida,
Onde corre doce a vida
No matutino arrebol;
Gozas o sopro das brisas
E o leve aroma das flores,
E as nuvens, que mudão cores
No nascer, no pôr do sol.
Gozão disto as que repousão
Em taboas de vis grabatos;
Não quem vive entre os ornatos
D’um throno d’ouro e marfim!
No solio triste, sentada,
Não viras um rosto amigo,
Nem mais viveras comtigo,
Fôras escrava—por fim!
Vive tu teu viver simples,
Mimosa e gentil donzella,
D’entre todas a mais bella,
Flôr de candura e de amor!
C’rôa melhor eu t’offreço,
D’ouro não, mas de poesia,
C’rôa que a fronte alumia
Com a luz d’um resplendor!

HARPEJOS.

[Pg 333]

Sweetest music!...
SHAKSPEARE.
Da noite no remanso
Minha alma se extasia,
E praz-me a sós commigo
Pensar na solidão;
Deixar arrebatar-me
De vaga phantasia,
Deixar correr o pranto
Do fundo coração.
Tudo é silencio harmonico
E doce amenidade,
E uma expansão suave
Do mais fino sentir;
Existo! e no passado
Só tenho uma saudade,
Desejos no presente,
Receios no porvir!
Como licor que mana
De cava, humida rocha,
Que o sol nunca evapora,
Nem limpa amiga mão;
A dôr que dentro sinto
Minha alma desabrocha;
Que livre o pranto corre
Da noite na solidão!
Attendo! ao longe escuto
D’uma harpa os sons queixosos,
Attendo! e logo sinto
Minha alma se alegrar!
Attendo! são suspiros
De seres vaporosos,
[Pg 334]
Que mil imagens vagas
Me fazem recordar!
Tu que eras minha vida,
Que foste os meus amores,
Imagem grata e bella
D’um tempo mais feliz,
Que tens, que assim chorosa
Suspiras entre as flores?
Teu sou,—do juramento
Me lembro, que te fiz.
Te vejo, te procuro,
Teus mudos passos sigo,
Em quanto, leve sombra,
Fugindo vais de mi’!
Unido ás notas da harpa
Percebo um som amigo,
Que me recorda o timbre
Da voz que já te ouvi!
Na brisa que soluça,
Na fonte que murmura,
Nas folhas que se movem
Da noite á viração,
Ainda escuto os echos
D’uma fugaz ventura,
Que assim me deixou triste
Em mesta solidão.
Prosegue, harpa ditosa,
Nas doces harmonias,
Que da minha alma sabes
A magoa adormecer;
Prosegue! e a doce imagem
Dos meus primeiros dias
Veja eu ante os meus olhos
De novo apparecer![Pg 335]
Ai, forão como a virgem
Que em sitio solitario
Acaso um dia vimos
Sósinha a divagar!
Memoria bemfazeja,
Que o gelido sudario,
Que a morte em nós estende
Só vale desbotar.

TRISTE DO TROVADOR.

E ella era esbelta e bem proporcionada; sua alma era como a sensitiva, e suas palavras erão doces e tinhão um perfume, que se não pode comparar.

(Duas noites de luar.)

E ella era como a rosa matutina
Formosa e bella,
Como a estrella que á noite ao mar se inclina,
Saudosa era ella.
Seus olhos negros, vivos e rasgados,
Eram delicias vel-os;
E co’ a alvura do rosto contrastava
A côr dos seus cabellos.
Quando alguem lhe fallava, então fallava
Com voz macia,
Que triste dentro d’alma nos filtrava
Doce alegria.
E o seu timbre de voz movia as fibras
Do coração,
Como sons que a mudez da noite quebrão
Na solidão.
[Pg 336]
Seu mais leve sentir patenteava
No rosto ameno;
Nuvemzinha da tarde, que se encherga
Em céo sereno.
Topou-a acaso pensativa, errante,
O trovador:
«Feliz, disse elle, quem gozára os mimos
Do seu amor!»
E ella deu-lhe do seio uma saudade
Murcha, e no em tanto bella;
E elle um culto votou, scismando extremos,
Á pallida donzella.
Como fosse, porêm, breve a sua vida
Como uma flôr,
Em breves dias era mudo e triste
O trovador.

Se alguma vez cantava,—então dizia
Ao seu anjo do céo, que lá morava,
Que de ter junto delle só pedia
A vida sua, que tão erma estava.

VELHICE E MOCIDADE.

Eu levo á sepultura, uns após outros,
A donzella gentil, o velho enfermo
E o mancebo que folga descansado
Á sombra da ventura.
...
«Minha filha, mais depressa,
Mais depressa um pouco andemos,
E da aurora que desponta
Saudavel frescor gozemos!
[Pg 337]
«Senta-me em baixo do chorão, que dobra
A verde rama sobre a campa núa
De um ser de peito bom, de rosto bello,
Que foi minha mulher, que foi mãi tua!
«O sol, nascendo apenas, vem primeiro
Seus raios nessa campa dardejar,
E á cançada velhice é bem fagueiro
Esses restos da vida desfructar.»

Um cego e triste velho que tremia
Á força dos invernos que passarão,
Á filha nova e bella, assim dizia,
Á filha que os amores cubiçarão.
E tinha o velho pae nos hombros della
A mão crestada e morta e já rugosa,
E ella ao pae, sollicita, extremosa,
Guiava como um anjo e alva e bella.

«Nem sempre o que ora vês teu pae tem sido,
Oh filha da minha alma, oh meu thesouro,
Tambem um tempo foi que entretecido
Tive o fio vital de seda e d’oiro!
«Tambem meus olhos se expraiarão longe,
Pela vasta extensão destas campinas;
Tambem segui a tortuosa veia
Desta linda corrente que se perde
Além, por entre penhas;
E a esmeraldina côr, de que se arreia
A relva destes prados, destas brenhas,
Meus olhos juvenis encheu de gozo,
Que agora os olhos teus tambem recreia!
[Pg 338]
«E que prazer tão grande! o sol nascia
N’um mar de luz brilhante!
Levantava-se mais, brilhava, ardia,
No prado verdejante,
Na fonte e na devesa;
E o mundo e a natureza
De puro amor enchia!
Destoucavão-se os montes de neblina,
Que meiga e adelgaçada
Pendia, como um véo de gaza fina
Da celeste morada,
Quando n’um mar formoso o sol nascia!
«O mundo era então luz—hoje é só trevas!
O céo de puro azul via tingido,
Via a terra de cores adornada,
E na immensa extensão d’agua salgada
Via a esteira de luz do sol luzido!
«Breve as horas passei de ser ditoso
Aqui, neste lugar, ledo escutando
Tão amavel tua mãi, tão carinhosa,
Qu’instantes curtos me teceu fallando!
«Hoje existo somente porque existes,
Desfructo outro viver que não vivia,
Quando escutão-te a voz os meus ouvidos,
Como sons de celeste melodia.
«Oh falla, falla sempre.—É doce ao velho
Som d’argentina voz, que as fibras todas
Do semivivo coração abalão,
Como d’uma harpa antiga
As deslembradas cordas,
Que á mão experta e amiga
Do trovador, n’um canto alegre estalão.
«É doce ao solitario a voz de um anjo
Na sua solidão;
E ao velho pai a voz da casta filha,
Que falla ao coração.
[Pg 339]
«É doce, qual perfume matutino,
Que a flôr exhala,
Que pelo peito da mulher amante
S’interna e cala;
«É doce, como a luz que se derrama
Pela face do mar,
Quando brando luar, da noite amigo,
Vem nelle se espelhar.
«Falla, bem sei que amarga é tua vida,
Que amargo é teu penar;
No silencio da noite tenho ouvido
Teu peito a soluçar!
«Oh falla, tu bem vês que se a tormenta
Tetrica voa,
Ao ninho de seus paes o passarinho
Rapido voa.»

—Oh meu pai, como eu quizera
Meus pezares te esconder;
Mas tua filha, coitada,
Em breve tem de morrer!
—Sinto que alento me falta,
Que longe foge de mim;
Sinto minha alma rasgar-se
Por te deixar só assim;
Meu bom pai, como está breve
Da tua filha o triste fim!
—Alta noite, ouvi em sonhos,
A chamar-me um serafim;
Tinha alegria no rosto,
Mas chorava sobre mim;
Meu bom pai, como está breve
Da tua filha o triste fim!
[Pg 340]
—E tu cá ficas sosinho,
E tu cá ficas sem mim!
Oh que n’alma só me peza
Por te deixar só assim;
Meu bom pai, que é já chegado
Da tua filha o triste fim!—
E o velho, baixo fallando,
Tristemente assim dizia:
«Já fui feliz, já fui novo,
Já fui cheio de alegria!
«Eu tive paes extremosos,
Irmãos que m’idolatrarão,
Eu tive castos amores,
Que antes de mim se acabarão!
«Eu tive tantos no mundo
Quantos se póde chorar;
Perdi todos, tudo; ai, triste,
Só eu não pude acabar!
«Ao sopro da desventura
Só eu me não abalei,
Que a todos—novos e velhos—
Á campa todos levei!
«Minha filha me restava!
Eu já fantasma impotente,
Sobre os torrões tropeçava
Da cova aberta recente!
«Anjo de amor e bondade,
Porque me deixaste assim!
Tu morta, e na sepultura
Que eu tinha aberto pr’a mim!
«Deos, Senhor, quanto foi longo
O vaso em que fel traguei,
Findo o julguei; restão fezes,
As fezes esgotarei.»

E sobre a rosea face, ora amarella,[Pg 341]
A aurora sempre bella radiava,
E o pai, ancião, que a dôr rasgava,
Cingia ao corpo seu o corpo della.
Nem pranto nos seus olhos borbulhava,
E nem nos labios seus a dôr gemia,
E sua alma, qual vaso em calmaria,
Entre vida e morrer n’um ponto estava.
O beijo paternal, por fim, lhe estampa
Na filha, que prazeres só lhe dera;
E filha e pensamento—alguem dissera
Ter juntos sepultado a mesma campa!
Nos céos não tens, Senhor, bastantes anjos,
Por que os venhas assim buscar á terra?
Brilhe a virtude, quando reina o crime,
O crime impune e vil, que ás tontas erra.

AS FLORES.

Ao Snr. JOSÉ PRAXEDES PEREIRA PACHECO, incançavel Botanico-florista, a quem devemos a introducção no paiz das mais bellas e curiosas especies de flores, que jámais aqui se virão.

Simples tributs du coeur, vos dons sont chaque jour
Offerts par l’amitié, hasardés par l’amour.
Les Jardins.DELILLE.
Tu que com tanto afan, com tanto custo,
Estudando, inquirindo, e meditando,
De estranhos climas transplantaste aos nossos
As flores varias no matiz, nas formas,
Modesto horticultor, dos teos desvelos
Este só galardão recebe ao menos!
Recebe-o: tambem eu gosto das flores,
[Pg 342]
Folgo tambem de as ver n’um campo estreito
De estranhas terras revelando os mimos
E as galas d’outros céos:—aqui perfumão
Nossos jardins de peregrina essencia!
Melhorão-se talvez, que as não contristão
Raios tibios do sol, nem turvos ares,
Nem do inverno o furor lhes cresta o brilho.
Meigas flores gentis, quem vos não ama?
Em vós inspirações o bardo encontra,
Devaneios de amor a ingenua virgem,
A abelha o mel, a humanidade encantos,
Odores, nutrição, balsamo e cores.
Meigas flores gentis, quem vos não ama?
Linda virgem no albor da vida incerta,
No meio das vivaces companheiras,
Em forma de capella as vai tecendo
Para cingir com ella a fronte e a coma,
Que os annos no passar não enrugarão,
Nem as cans da velhice embranquecerão.
Resplendor d’innocencia, onde casados
A açucena, e os jasmins aos brancos lirios
Um só perfume grato aos céos envia;
Meiga c’rôa d’angelica pureza,
Ornamento da vida—que se rompe
Ou quando os membros delicados vestem
O grosseiro burel da penitencia,
Ou do noivado as galas!—lá se acaba,
Por fim aos pés do thalamo ou n’um tumulo!
Meigas flores gentis, quem vos não ama?
Quantas vezes, nas horas da ventura,
A fallaz sensação d’um peito ingrato
Não julgamos eterna, immensa, infinda!....
Alli nossos anhelos se concentrão,
Nossa vida alli jaz:—cifra-se inteira
N’um brando volver d’olhos, n’um accento,
[Pg 343]
Que a ternura repassa, inspira, exhala!
Um gemido, um suspiro, um ai, um gesto,
Valem thronos, e mais,—o mundo e a vida!
Mas esvae-se a paixão!... que fica? Apenas
Um saudoso lembrar d’éras passadas,
De scismadas venturas, não fruidas,
Ás vezes uma flor!...—Flor dos amores,
Quando extincta a paixão, porque inda existes?
Espinhos de uma rosa emmurchecida,
Porque sobreviveis ás folhas d’ella?
Mais firme, mais leal, mais vivedoura
Que a voluvel paixão, a flôr mimosa
Talvez irrita a dôr, talvez a acalma.
Emblemas do prazer, do soffrimento,
Mensageiras do amor ou da saudade,
Meigas flores gentis, quem vos não ama?
Geme a fresca odalisca entre ferrolhos,
Importuna presença a voz lhe tolhe
Do não piedoso eunucho;—e estatua negra
Respeitosa e cruel lhe espreita os gestos:
Chora a guzla mourisca ao som dos ferros,
Lastima-se a cadeia ao som dos passos,
E a humana flôr definha entre as mais flores;
Mil ouvidos a voz lhe escutão sempre,
E cingidos de ferro, crús soldados
D’entorno ao mésto harem velão sanhudos!
Ruge, fero soldão! treplíca os bronzes
Da masmorra cruel:—a planta humilde,
E a escrava que recatas tão cioso,
Zombão dos feros teus! Muda e singela,
Ao través das prisões, dos teus soldados,
Passa a modesta flôr! Vai n’outro peito,
Mysterios não sabidos relatando,
Contar do infausto amor as provas duras,
Os martyrios da ausencia, as tristes lagrimas
Que chora—ao reiterar protestos novos!
Bem-fadadas do sol, do amor bemquistas,
[Pg 344]
O orvalho as cria, as lagrimas as murchão:
Meigas flores gentis, quem vos não ama?
Quem tem o coração a amor propenso,
Quem sente a interna voz que dentro falla,
Delicado sentir d’um brando peito,
Alma virgem que os homens não mancharão;
Quem soffre ou tem prazer, ou ama, ou espera
E vive e sente a vida, esse vos ama:
Encantos da existencia em quanto vivos,
Do revés, do triumpho companheiras,
No berço, no docel, no mudo esquife,
Sempre amigas eis vos encontramos.
Meigas flores gentis, quem vos não ama?
Modesto horticultor, dos teus desvelos
Este só galardão recebe ao menos;
Paga-te sequer de ver mais bella,
Mais vaidosa, melhor, do sol na terra,
A flôr modesta, producção sublime
De estranhos climas transplantada ao nosso.
Rio, 29 de janeiro de 1849.

O QUE MAIS DÓE NA VIDA.

I cannot but remember such things were,
And were most dear to me.
SHAKESPEARE.
O que mais dóe na vida não é ver-se
Mal pago um beneficio,
Nem ouvir dura voz dos que nos devem
Agradecidos votos,
Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,
Que as devera beijar!
Não! o que mais dóe não é do mundo
A sangrenta calumnia,
[Pg 345]
Nem ver como s’infama a acção mais nobre,
Os motivos mais justos,
Nem como se deslustra o melhor feito,
A mais alta façanha!
Não! o que mais dóe não é sentir-se
As mãos dum ente amado
Nos espasmos da morte resfriadas,
E os olhos que se turvão,
E os membros que entorpecem pouco e pouco,
E o rosto que descora!
Não! não é o ouvir d’aquelles labios,
Doces, tristes, compassivas,
Sobre o funereo leito soluçadas
As palavras amigas,
Que tanto custa ouvir, que lembrão tanto,
Que não s’esquecem nunca!
Não! não são as queixas amargadas
No triumphar da morte;
Que, se se apaga a luz da vida escassa,
Mais viva a luz rutila;
Luz da fé que não morre, luz que espanca
As trevas do sepulchro.
O que dóe, mas de dôr que não tem cura,
O que afflige, o que mata,
Mas de afflicção cruel, de morte amara,
É morrermos em vida
No peito da mulher que idolatramos,
No coração do amigo!
Amizade e amor!—laço de flores,
Que prende um breve instante
O ligeiro batel á curva margem
De terra hospitaleira;
Com tanto amor se ennastra, e tão depressa,
E tão facil se rompe!
[Pg 346]
Á mais ligeira ondulação dos mares,
Ao mais ligeiro sopro
Da viração—destranção-se as grinaldas;
O baixel se afasta,
Veleja, foge, até que em plaga estranha
Naufragado soçobre!
Talvez permitte Deos que tão depressa
Estes laços se rompão,
Por que nos peze o mundo, e os seus enganos
Mais sem custo deixemos:
Sem custo assim a brisa arrasta a planta,
Que jaz solta na terra!

FLÔR DE BELLEZA.

Não vejas!... se a vires...—Eu sei porque o digo:
Tu morres de amor.
MACEDO.
Se fosse rainha aquella
Em cuja fronte singela,
Como em tela delicada
Luz da belleza o condão,
Fôras rainha adorada;
Mas rainha seductora,
Que exige preitos n’uma hora
E n’outra hora adoração.
Fôras rainha! e ditosos
Teus vassallos extremosos,
Que a renderem-te seus preitos
Beijárão-te a nivea mão.
Pedes amor e respeitos!
Quem não ama a formosura,
Quem não respeita a candura
D’um sincero coração?
[Pg 347]
Mas antes que nos curvemos
Ante a belleza que vemos,
Tua angelica bondade
Conquista a nossa affeição:
Não es mulher, mas deidade,
Uma fada seductora,
Que nos pede amor agora,
Logo mais—adoração.
Quando pois, cheia de graças,
Entre a turba alegre passas,
Entre a turba sequiosa
De beijar-te a nivea mão;
Dizem uns: quanto é formosa!
Eu porêm, sei que es mais bella
Nos dotes da alma singela,
Nas prendas do coração.
Passa rapida a belleza,
Como flôr que a natureza
Cria em jardim melindroso,
Ou n’um agreste torrão:
Passa como um som queixoso,
Como felizes instantes,
Como as juras dos amantes,
Como extremos da paixão.
Mas d’alma a vida é mais fina,
Exhala essencia divina,
Que avigora e fortifica
O dorido coração;
Morto o corpo, ainda fica,
Como em rosal arrancado,
Leve aroma derramado,
Dos espaços na extensão.

O ANJO DA HARMONIA.

[Pg 348]

Respira tanta doçura
O teu canto, que por certo
Abranda a penha mais dura.
BOCAGE.
Revela tanto amor, tão branda sôa
A tua doce voz canora e pura,
Que o homem de a escutar sente no peito
Infiltrar-se-lhe um raio de ventura.
Solta-se a alma das prisões terrenas,
O mundo, a vida, o soffrimento esquece,
E embalada n’um ether deleitoso,
Como Alcyon nas aguas, adormece!
Da noite a placidez é menos grata
A quem sósinho e taciturno vela,
Quando, perdido n’outros mundos, nota
A meiga luz de fugitiva estrella.
Sensações menos doces, menos vagas,
Desperta o barco leve, que se avista
Ao pôr do sol, na extrema do horisonte,
Quando n’um mar de luz nos foge á vista.
Das aves o cantar é menos fresco,
É menos triste a fonte que serpeia,
Menos queixoso o mar, que enternecido,
Beija na praia a scintillante areia.
Vagas na terra, suspiroso archanjo,
Derramando torrentes de harmonia
Sobre as chagas mortaes,—balsamo sancto
Que as mais profundas magoas alivia.
Vagas na terra, merencoria e bella;
Mas quando deste mundo ao céo tornares,
Juntarás teus ternissimos accentos
Aos puros sons dos mysticos altares.
[Pg 349]
E os anjos na mansão das harmonias,
Encostados ás harpas diamantinas,
Folgarão de te ouvir celestes carmes
Deduzidos em notas peregrinas.
E dirão:—Nunca ás plagas do infinito
Subio mais terna voz, mais fresca e pura!
Se o corpo é de mulher, sua alma é vaso,
Onde o incenso de Deos se afina e apura.

A HISTORIA.

The flow and ebb of each recurring age.
BYRON.
Triste licção de experiencia deixão
Os evos no passar, e os mesmos actos
Renovados sem fim por muitos povos,
Sob nomes diversos se encadeião:
Aqui, além, agora ou no passado,
Amor, dedicação, virtude e gloria,
Baixeza, crime, infamia se repetem,
Quer gravados no socco de uma estatua,
Quer em vil pelourinho memorados.
Eis a historia!—rainha veneranda,
Trajando agora sedas e velludos,
Depois vestindo um sacco despresivel,
D’immunda cinza apolvilhada a fronte.
Se as virtudes do pobre não tem preço,
Tambem dos vicios seus a nodoa exigua
Não conspurca as nações; mas ai dos grandes,
Que trilhão senda errada, a cujo termo
Se levanta a barreira do sepulchro,
Onde se quebra a adulação sem força.
Se virtuoso, as gerações passando
As cinzas lhe beijarão; se malvado,
[Pg 350]
Cospem-lhe affrontas na vaidosa campa,
Jámais de amigas lagrimas molhada.
E qual do Egypto nos festins funereos,
Maldizem bons e máos sua memoria,
Lançando á face da real mumia
Dos crimes seus a lacrymosa historia.
Talvez, porêm, um infortunio grande,
Um exemplo sublime de virtude,
Cobre dourada pagina, que aos olhos
Pranto consolador sem custo arranca.
Eis a historia! um espelho do passado,
Folhas do livro eterno desdobradas
Aos olhos dos mortaes;—aqui sem mancha,
Além golfeja sangue e súa crimes.
Tal foi, tal é: retrato desbotado,
Onde se mira a geração que passa,
Sem côr, sem vida,—e ao mesmo tempo espelho,
Que ha de ser nova copia á gente nova,
Como os annos aos annos se succedão.
Ondas de mar sereno ou tormentoso,
As mesmas na apparencia, que se quebrão
Sobre as d’areia fluctuantes praias.

A CONCHA E A VIRGEM.

Linda concha que passava,
Boiando por sobre o mar,
Junto a uma rocha, onde estava
Triste donzella a pensar;
Perguntou-lhe:—Virgem bella,
Que faces no teu scismar?
—E tu, pergunta a donzella,
Que fazes no teu vagar?
[Pg 351]
Responde a concha:—Formada
Por estas aguas do mar,
Sou pelas aguas levada,
Nem sei onde vou parar!
Responde a virgem sentida,
Que estava triste a pensar:
—Eu tambem vago na vida,
Como tu vagas no mar!
—Vais d’uma a outra das vagas,
Eu d’um a outro scismar;
Tu indolente divagas,
Eu soffro triste a cantar.
—Vais onde te leva a sorte,
Eu, onde me leva Deos:
Buscas a vida,—eu a morte;
Buscas a terra,—eu os céos!

SEI AMAR.

Amor amore.
Proverbio.
Sei amar com paixão ardente e fida,
Como o nauta ama a terra, como o cego
A luz do sol, como o ditoso a vida.
Sim, sei amar; porêm do immenso pégo
D’uma existencia misera e cançada,
Quero uma hora, um instante de socego.
Dera a vida a uma alma apaixonada,
A um peito de mulher que me entendesse,
Onde eu pousasse a fronte acabrunhada.
[Pg 352]
Porêm, que fosse minha, e que eu soubesse
Que os labios que beijei são meus somente,
Nem pensa em outro, nem de mim se esquece.
Nem vai de prompto derramar demente
N’outros ouvidos a palavra, o accento,
Que em extasis de amor criei fervente.
Nem corre o seu volatil pensamento,
Quando fallo, a pensar n’outros amores,
N’outra voz, n’outros sons, n’outro momento.
Demais, acostumado a teus rigores,
Não me queixo, bem vês, mas despedaço
A prisão vil, embora occulta em flores.
Se entro furtivo, onde outro mais de espaço
Como senhor campeia—ao mais querido
Cede o ingresso, ao mais ditoso o passo.
Não me contenta um coração partido,
Um só amor que a dous pertence,—um peito,
Que bate por dous homens, fementido.
Se eu unico não sou,—vil, não aceito
Ser segundo em amor,—inteiro é nobre,
Vale um throno;—partido, é dom tão pobre,
Qu’eu pobre, como sou, de altivo engeito.

AMANHÃ.

Amanhã!—é o sol que desponta,
É a aurora de roseo fulgor,
É a pomba que passa e que estampa
Leve sombra de um lago na flôr.
[Pg 353]
Amanhã!—é a folha orvalhada,
É a rola a carpir-se de dôr,
É da brisa o suspiro,—é das aves
Ledo canto,—é da fonte o frescor.
Amanhã!—são acasos da sorte;
O queixume, o prazer, o amor,
O triumpho que a vida nos doura,
Ou a morte de baço pallor.
Amanhã!—é o vento que ruge,
A procella d’horrendo fragor,
É a vida no peito mirrada,
Mal soltando um alento de dôr.
Amanhã!—é a folha pendida,
É a fonte sem meigo frescor,
São as aves sem canto, são bosques
Já sem folhas, e o sol sem calor.
Amanhã!—são acasos da sorte!
É a vida no seu amargor,
Amanhã!—o triumpho, ou a morte;
Amanhã!—o prazer, ou a dôr!
Amanhã!—o que val’, se hoje existes!
Folga e ri de prazer e de amor;
Hoje o dia nos cabe e nos toca,
De amanhã Deos sómente é Senhor!

POR UM AI.

Se me queres ver rendido,
De joelhos, a teus pés,
Por um olhar que me deites,
Por um só ai que me dês;
[Pg 354]
Se queres ver o meu peito
Rugindo como um vulcão,
Estourar, arder em chammas,
Ferver de amor e paixão;
Se me queres ver sugeito,
Curvado e preso á tua lei,
Mais humilde que um escravo,
Mais orgulhoso que um rei;
Meus olhos sobre os teus olhos,
Meu coração a teus pés;
Por um olhar que me deites,
Por um só ai que me dês:
Oiça, feliz, dos teus labios
Esta só palavra—amor!—
Estrella cortando os ares,
Abelha sobre uma flôr.
Então verás dos meus olhos,
Que o pezar me não cegou,
Rebentarem de alegria
Prantos, que a dôr estancou;
Então verás o meu peito
Como outra vez se incendia;
Era a folha verde e fresca,
Onde o sol se reflectia!
Murcha e triste pende agora;
Cahiu, jaz solta, está só:
Exposta ao fogo, arde em chammas,
—Deixai-a, desfaz-se em pó!
Hei de sentir outra vida,
Outra vez meu coração
Escutarei palpitando
De amor, de fogo e paixão.
[Pg 355]
Lascado tronco sem graça,
Tal fui, tal me ves agora!
Mas venha o orvalho celeste,
Venha o bafejo da aurora;
Venha um raio de alegria
Dar-lhe ás raizes calor;
Revive de novo, e brota
Folhas, galhos e verdor.
Do cimo erguido e copado
Outra vez se dependurão
Mil flores,—alli mil aves
Nos seus gorgeios se apurão.
Não quero palavras falsas,
Não quero um olhar que minta,
Nenhum suspiro fingido,
Nem voz que o peito não sinta.
Basta-me um gesto, um aceno,
Uma só prova,—e verás
Minha alma, presa em teus labios,
Como de amor se desfaz!
Ver-me-has rendido e sugeito,
Captivo e preso á tua lei,
Mais humilde que um escravo,
Mais orgulhoso que um rei!

PROTESTO.
Imitação de uma poesia Javaneza.

Ainda quando os homens te odiassem,
E anath’ma contra ti bradasse o mundo,
Por ti sentira amor, te amára sempre,
Te amára eternamente.
[Pg 356]
Este affecto jámais ha de alterar-se;
Embora gemeos sóes ardão no espaço,
Ou gemeas noites, em cegueira eterna,
Me roubem o prazer de ver teus olhos.
Entranha-te na terra, hei de afundar-me;
Passa ao travez do fogo, irei comtigo;
Aos céos remonta, hei de seguir-te sempre,
Ver-me-has sempre a teu lado.
De ti não póde a força desprender-me,
Nem separar-me o fado. Em ti só vivo;
E quem dos dias teus souber o termo,
Que a vida me deixou tambem conheça.
Quando nas azas da esperança corro,
Onde me acenas, onde amor me aguarda,
Parece-me que vôo aos ledos campos,
Onde a esperança mora.
Não ha que possa comparar-se aos extasis,
Que tanto ao vivo meu amor revelão;
Um gesto, um som dos labios teus mimosos
Mil vezes na minha alma se repete.
Quer irritada contra mim te mostres,
Quer do teu seio irosa me repillas,
Teu rosto na minha alma se retrata,
E eu te amo sempre!
Quer durma, quer descance, ou vele ou soffra,
Em tudo quanto sinto, em quanto vejo,
Risonha tua imagem me apparece,
E eu julgo sempre que te fallo e escuto.
Seja eu longe da patria infindas legoas,
A distancia de um mundo entre nós corra,
Em quanto além divago, preso fica
Meu coração comtigo.
[Pg 357]
Se pois souberes que os meus dias findão,
Não creias que o destino inexoravel
M’os corta—antes me tem, antes me julga
Morto por ti de amores!

FADARIO.

Procura o íman sempre
Do pólo a firme estrella,
De viva luz o insecto
Se deixa embellezar;
E a nave contrastada
Das furias da procella,
Procura amigo porto,
No qual possa ancorar.
O íman sou constante,
A nave combatida,
O insecto encandeado
Com fulgido clarão;
E tu—a minha estrella,
A luz da minha vida,
O porto que me acena
Por entre a cerração.
Assim, por desgostar-me,
Severo no semblante,
No olhar, na voz—debalde
Me opprime o teu rigor;
Se fujo dos teus olhos,
Se mostro-me inconstante,
Na ausencia e no desterro
Me vai crescendo o amor!
[Pg 358]
Assim o insecto volta
Á luz que o já queimára,
E o íman na tormenta
Procura o norte seu;
Assim a nave rota,
Que o vento contrastára,
Entrando o porto, esquece
Que males já soffreu.
Debalde, pois, tua alma,
Que a minha dôr encherga,
Se mostra aspera e dura
Á voz do meu penar;
Aquelle verde ramo,
Que facilmente verga,
Resiste ao peso, emquanto
Não torna ao seu lugar.
Se, pois, te irrita e cança
De o ver revel comtigo,
Do tronco seu virente
Separa-o de uma vez:
Mais qu’elle venturoso
Me julgo, se consigo
Morrer vendo os teus olhos,
Cahir junto a teus pés.
Mas, inda assim, não creias,
Se finda o meu tormento,
Que nem lembrança minha
Terás de conservar:
A nave, que não toca
No porto a salvamento,
Talvez os rotos mastros
Atira á beira-mar.
Assim quando jazendo
Me achar na campa fria,
[Pg 359]
Talvez tenhas remorsos,
Da tua ingratidão;
Talvez que por mim sintas
Alguma sympathia;
Que em lagrimas desfeita
Me dês amor então.

O ASSASSINO.

Pero una sola lágrima, un gemido
Sobre sus restos á ofrecer no van,
Que es sudario d’infames el olvido...
Bien con su nombre en su sepulcro están!
ZORRILLA.
Eil-o! seu rosto pallido se encova;
Incerto, mais que os vôos dum morcego,
Seu andar, ora lento, ora apressado,
Profunda agitação revela aos olhos.
Crespos os cenhos, enrugada a fronte,
Simelha luz de tocha mortuaria
A luz que os olhos seus despedem torvos.
Ha momentos em que seo rosto fero
De tal arte s’enruga e se transtorna,
Que os seus proprios amigos o fugírão
E a propria mãe teméra unil-o ao seio!
Quando os labios descerra, só murmura
Frases, cujo sentido não se alcança,
Ou blasfemias a Deos, que o soffre em vida!
O que amou n’outro tempo, agora odeia;
Despreza o que estimou, evita, foge
Quanto afanoso procurava outr’ora:
Receia a luz do sol, da noite as trevas,
A voz do crime, da innocencia o grito!
A cholera de Deos cahio tremenda
Sobre o seu peito, e o coração lhe opprime,
[Pg 360]
De cuja interna chaga em jorros salta
O sangue e a podridão: horrendo e fero,
A victima das furias do remorso,
Terrivel e cobarde, e ao mesmo tempo
Rebelde contra a mão, que o vexa e pune,
Em quanto a Deos maldiz, blasfema, irrita,
D’uma voz, d’uma sombra se amedronta.
Não póde supportar seus pensamentos
A sós comsigo, e aborrecendo os homens,
De os ver e de os não ver soffre martyrios.
Na cidade, suspeita esposa, amigos,
A mãe e os filhos;—um terror, um pasmo,
Cuja causa recondita se ignora,
Na voz, no rosto e gesto o denuncião
Como escravo do crime ou da miseria.
No ermo a propria voz o sobresalta!
O som dos passos, do seu corpo a sombra,
Das fontes o correr por entre as pedras,
Da brisa o suspirar por entre as folhas,
Quanto vê, quanto escuta o intimida.
Minaz lhe brada a natureza inteira,
Soluça um nome, que lhe erriça a coma
E o frio do terror lh’immerge n’alma.
O mar nas ondas crespas, que se enrolão,
Batidas pelo açoite da procella,
Troveja o mesmo nome; as vagas dizem-no,
Quando passão, cuspindo-lhe o semblante;
E Deos, o proprio Deos no espaço o grava
Nos fuzis que os relampagos centelhão.
Tem pavor, quando sonha e quando vela.
Deixando o leito em seu suor banhado,
No silencio da noite—á horas mortas,
Levanta-se medonho á voz do crime!
Nas mãos convulsas um punhal aperta
[Pg 361]
E a lamina buida e os olhos torvos
Agoureiro clarão despedem juntos.
Soltando roucos sons com voz sumida,
Apalpa cauteloso as densas trevas,
E vai ... caminha ... attende ... de repente
Apunhala um phantasma!—solta um grito,
Larga o punhal convulso e arrepiado!
N’um ferrete de sangue lê seu fado,
Um ferrete, que a dôr desfaz nunca,
Nem lava o pranto, nem consome o tempo.
Miseravel, provando o fel da morte,
Ante o passo medonho se horrorisa;
Odeia o mundo que fugir não póde,
Regeita a religião que o não consola,
Odeia e teme a Deos,—teme a justiça
De quem na fronte vil do fratricida
Nodoa eterna gravou do crime infando.

A UNS ANNOS.

14—Janeiro.

No segredo da larva delicada
A borboleta mora,
Antes que veja a luz, que estenda as azas,
Que surja fóra!
A flôr, antes de abrir-se, se recata;
No botão se resume,
Antes que mostre o colorido esmalte,
Que espalhe o seu perfume.
E a flôr e a borboleta, após a aurora
Breve—da curta vida,
Encontrão nas manhãs da primavera
A luz do sol querida.
[Pg 362]
De graças cheia, a delicada virgem
Da vida no verdor,
Semelha a borboleta melindrosa,
Semelha a linda flôr.
Tudo se alegra e ri em torno della,
Tudo respira amor,
Que é a virgem formosa semelhante
Á borboleta e á flôr.
Mas para estas o sol breve se esconde,
Passão prestes os dias;
Em quanto a cada sol e nova quadra
Tu novas graças crias!

QUANDO NAS HORAS.

And dost thou ask, what secret woe
I bear, corroding joy and youth?
And wilt thou vainly seek to know
A pang e’en thou must fail to soothe?
BYRON.

I.

Quando nas horas que comtigo passo,
Do amor mais casto, do mais doce enlevo.
Sentindo um raio d’esperança amiga,
Que as densas trevas da minha alma aclara;
Teus meigos olhos sobre os meus se fitão.
Sorvo o perfume que tua alma exhala,
Gozo o sorriso que os teus labios vertem
E as doces notas que o prazer m’entranhão:
Tu me perguntas por que um riso amargo,
Funebre e triste me descora os labios;
Por que uma nuvem de pezares gravida
Tolda o meu rosto;
[Pg 363]
Por que um suspiro de abafada angustia,
Um ai do peito, que exhalar não ouso,
O meigo encanto dos teus sonhos quebra
N’um breve instante!
Raio de amor, que sobre mim resplendes,
Ou sol que bates n’um profundo abysmo,
E a verde-negra superficie tinges
De côr chumbada com reflexos d’oiro;
Se vês luzente a superficie amiga,
E á luz que espalhas aclarar-se o abysmo,
Sol bemfazejo, que te importão fezes,
Se lá no fundo adormecidas jazem?
Talvez se as viras, encobrindo os olhos,
De horror fugindo ao temeroso aspecto,
Os brandos lumes, d’onde amor distillas
Breve apagáras.
Não me perguntes por que soffro triste,
Por que da morte o negro espectro invoco,
Por que, cansado desta vida, almejo
A paz dos tumulos.
Nem ver procures a cratera hiante
Do peito meu, qu’inda fumega em cinzas,
Do peito meu, onde crueis travárão
Pleitos, não crimes, mas paixões que abrasão.
Dá que nas horas que comtigo passo
Do amor mais casto e do mais doce enlevo,
Durma o passado e do porvir m’esqueça,
E o meu presente de te amar se ameigue.

II.

Se algum suspiro de abafada angustia,
Se um ai do peito que exhalar não ouso,
O meigo encanto dos teus sonhos quebra;
Tu me perdôa.
[Pg 364]
Cansado e triste de viver soffrendo,
Da morte amiga o negro espectro invoco,
Affiz-me as dores, e só torva ideia
Me apraz agora.
Talvez na pedra d’um sepulchro frio
Melhor folgára de me ver deitado,
Sentir nos olhos estancado o pranto
E amodorrado o padecer no peito.
Talvez folgára minha sombra triste,
Vagando em tomo d’uma campa lisa,
De ver-te as formas, de contar teus passos,
E de escutar tua oração piedosa.
Talvez folgára, quando pranto amargo
Dos olhos teus me rorejasse a campa,
Dos meigos labios, onde amor temperas,
Meu nome ouvindo!
Oh! sim, folgára de sentir a brisa,
Correndo em tomo ao moimento meu,
E tu sósinha no sepulchro humilde,
Guardando os tristes deslembrados ossos!
Junto ao meu corpo guardarei teu leito,
Onde os teus restos junto aos meus descancem;
E o mesmo sol, e a mesma lua e brisa
Juntos nos vejão.
E quando o anjo espedaçar as campas
Ao som da trompa de fragor horrendo,
Que ha de o lethargo despertar dos mortos
Na vida eterna;
Primeiro em ti se fitarão meus olhos:
Hei de alegrar-me de te ver commigo,
E as nossas almas subirão reunidas
Á eterna face do juiz superno.
[Pg 365]
E deste amor, por que ambos nós passamos,
O galardão lhe pediremos ambos,
Viver unidos na mansão dos justos,
Ou nos tormentos da eternal gehenna!

III.

No em tanto a vida soportar já devo,
Soffrer o peso da existencia ingloria,
E revolvendo o coração chagado,
Nos seus estragos numerar meus dias.
Na terra existo, como um som queixoso,
Um echo surdo, que entre as fragas dorme,
Ou como a fonte, que entre as pedras corre,
Ou como a folha sob os pés calcada.
Uma alma em pena, que procura os restos
Não sepultados,—uma flôr que murcha,
D’uma harpa a corda, que por fim rebenta,
Ou luz que morre.
Prazer não acho de avistar lua
Pallida e bella na soidão do espaço;
Nem vivos astros, nem perfumes gratos
Me dão consolo.
Nada percebo nos confusos roncos
Do mar, que bate as solitarias praias;
Nem nos gemidos da frondosa selva,
Que o sopro amigo de uma aragem move.
Conviva infausto d’um festim, que odeio,
Ás proprias galas que vaidosa ostenta
A natureza—não se ri minha alma,
Nem de as notar meu coração se alegra.
E sinto o mesmo que sentira o frio,
Mudo cadaver dos festins do Egypto,
Se ver pudesse, contemplando o nada
Das vãs grandezas.
[Pg 366]
Mas já que os olhos sobre mim pousaste,
Teus meigos olhos, donde o amor lampeja;
Pois que os teus labios para mim se abrirão,
Teus meigos labios;
Já que o perfume da tua alma d’anjo
Embalsamou-me o coração de aromas;
Já que os prazeres da eternal morada
De longe, em sonhos, antevi comtigo:
Já posso a vida supportar, já devo
Sofrer o peso da existencia inutil;
Já do passado e do porvir me esqueço,
E o meu presente de te amar se ameiga.

RETRACTAÇÃO.

Son reo, non mi difendo;
Puniscimi, se vuoi!
METASTASIO.
Perdoa as duras frases que me ouviste:
Vê que inda sangra o coração ferido,
Vê que inda luta moribundo em ancias
Entre as garras da morte.
Sim, eu devera moderar meu pranto,
Soffrear minhas iras vingativas,
Deixar que as minhas lagrimas corressem
D’entro do peito em chaga.
Sim, eu devera confranger meus labios,
Mordel-os té que o sangue espadanasse,
Afogar na garganta a ultriz sentença,
Apagal-a em meu sangue.
[Pg 367]
Sim, eu devera comprimir meu peito,
Conter meu coração, que não pulsasse,
Apagado volcão, que inda fumega,
Que faz, que jorra cinzas?
Que m’importava a mim teu fingimento,
Se uma hora fui feliz quando te amava,
Se ideei breve sonho de venturas,
Dormido em teu regaço;
Luz mimosa de amor, que te apagaste,
Ou gota pura de crystal luzente
Filtrando os poros de uma rocha a custo,
Cahida em negro abysmo!
Devera pois meu pranto borrifar-te
Amigo e bemfazejo, como aljofar
De branco orvalho em perolas tornado
N’um calice de flôr;
Não converter-se em pedras de saraiva,
Em chuva de graniso fulminante,
Que em chão de morte as petalas viçosas
Desfolhasse entre-abertas.

Feliz o doce poeta,
Cuja lyra sonorosa,
Resoa como a queixosa,
Trepida fonte a correr;
Que só tem palavras meigas,
Brandos ais, brandos accentos,
Cuja dôr, cujos tormentos
Sabe-os no peito esconder!
[Pg 368]
Feliz o doce poeta,
Que não andou em procura
De terrena formosura,
Nem as graças lhe notou!
Que lhe não deu sua lyra,
Que lhe não deu seus cantares,
Que lhe não deu seus pezares,
Nem junto della quedou!
Antes na mente escaldada
Forma um composto divino
De algum ente peregrino,
De algum dos filhos dos céos;
E ante essa imagem creada,
Que vê sempre noite e dia,
Dobra as leis da phantasia,
Acurva os desejos seus.
É d’ella quando se carpe,
É d’ella quando suspira,
É d’ella quando na lyra
Entoa um canto feliz:
D’ella acordado ou dormido,
D’ella na vida ou na morte,
Tenha alegre ou triste sorte,
Seja Laura ou Beatriz!
Que talvez a doce imagem,
A scismada phantasia
Ha de o poeta algum dia
Junto de Deos encontrar;
E que havendo-a producido
Antes do mundo formado,
Dê-lhe um sonhar acordado
Por um viver a sonhar!

ANHELO.

[Pg 369]

No lago interior d’um peito virgem,
Que os ventos das paixões não agitárão,
Hei de em cifras de amor gravar meu nome,
Onde as nuvens do céo desenhão cores.
Nos meigos olhos, que embelleza o mundo,
De corrosivas lagrimas enxutos,
Meu pensamento gravarei n’um beijo,
Onde as luzes do céo reflectem brilhos.
Em sua alma, onde uma harpa melindrosa
Noite e dia seus canticos afina,
Hei de a vida entornar em doces carmes,
Onde imagens do céo sómente brilhão.
Que outra c’rôa melhor, que outra mais pura,
Que uma c’rôa d’amor em fronte virgem?!
Não peza sobre a fonte, não esmaga,
Não punge o coração,—é toda amores!
Que outra c’rôa melhor, que outra mais bella
Que a aureola, que Deos concede aos vates?
Com sorriso de amor, talvez com pranto,
Cede-a o vate á mulher, que mais o inspira!
Eu t’a cedo, eu t’a dou! C’rôo-te imagem
Resplendente, invejada entre as mulheres;
Um beijo só de amor tu me concedas,
Um suspiro sequer do peito exhales.

QUE ME PEDES.

[Pg 370]

Tu pedes-me um canto na lyra de amores,
Um canto singelo de meigo trovar?!
Um canto fagueiro já—triste—não póde
Na lyra do triste fazer-se escutar.
Outr’ora, coberto meu leito de flores,
Um canto singelo já soube trovar;
Mas hoje na lyra, que o pranto humedece,
As notas d’outr’ora não posso encontrar!
Outr’ora os ardores que eu tinha no peito
Em cantos singelos podia trovar;
Mas hoje, soffrendo, como hei de sorrir-me,
Mas hoje, trahido, como hei de cantar?
Não peças ao bardo, que afflicto suspira,
Uns cantos alegres de meigo trovar;
Á lyra quebrada só restão gemidos,
Ao bardo trahido só resta chorar.

O CIUME.

Oh! quanta graça e formosura adorna
Teu rosto eloquente e vivo!
Se a sombra de um sorrir te afrouxa os labios,
Prestes outro sorrir dos meus rebenta;
Se vejo os olhos teus, que chorar tentão,
Debalde o pranto meu represso engulo;
Se do teu rosto as rosas se esvaecem,
Eu sinto de temor bater meu peito;
E quando os olhos teus nos meus se fitão,
Nem pezares, nem dores me dominão;
[Pg 371]
Mas sinto que o meu peito se enternece,
Sinto o meu coração bater mais livre,
Sinto o sorriso, que me ri nos labios,
Sinto o prazer, que me transluz no rosto,
Sinto delicias n’alma!
Quanta belleza tens!—quer dessas graças,
Que o amor inveja—n’um saráu brilhante
No meio de bellezas, que supplantas,
Prazer e galas de as mostrar ressumbres;
Quer estejas sósinha e pensativa,
Quer viva e folgazã prazer incites:
Ou n’um corsel em páramos extensos,
Correndo affoita e louca, e o pé mimoso
Da carreira no afan por sob as vestes
Transparecer deixando;
Ou balançada n’um ligeiro barco,
Que de um lago tranquillo as aguas frisa,
Soltando a voz as brisas namoradas,
Que de te ouvir suspirão;
Ou n’uma bronca penha descalvada
O mar e os céos contemples pensativa,
E a redeas soltas do pensar divagues
Nos campos do infinito;
Es sempre bella: já teus olhos brilhem
Luz que fascina, ou morbidos reflexos,
Teus labios entre-abertos sempre exhalão
Calor, que incendio ateia.
Oh! que bella tu es, quando assentada
No teu balcão, ao refulgir da lua,
Manso te apoias em coxins de seda,
E o bello azul dos céos triste encarando
Pensas em Deos,—talvez no teu futuro,
Talvez nos teus pezares,—que na fonte
De limpha pura, crystallina e fresca
Aquatica serpente usa occultar-se.
[Pg 372]
Mas como es bella assim! co’a mão sem força
Tirando sons perdidos, sons que encantão,
Sons qu’infundem prazer, sons d’harpa tristes!
Mas como es bella assim!—quando o teu peito
Entre a gaza subtil de leve ondeia!
Como a onda do mar pausada e fraca
Se abaixa, e empola, e mais e mais se achega
Á doce praia, onde os seus ais se quebrão;
Assim teu peito bate, e nos teus labios
Do extremo palpitar morre um suspiro.
Como d’harpa afinada a corda sôa,
Mal desfere seus sons outro instrumento;
Assim tambem minha alma se entristece,
Assim tambem meu peito arqueja e pula!
Eis porque amor me liga aos teus destinos,
Porque sou teu escravo,—bem que saiba
Que se a tua alma a belleza
Tem de um anjo a formosura,
Não tens de um anjo a candura,
Nem tens delle a singeleza!
Eis porque ardo por ti, porque padeço
Do inferno crus tormentos!
Porque dos zelos o fel mancha minha alma
De negros pensamentos!
Mas que importa este amor que me consome?
Eu quero sentir dôr;
Quero labios que entornem nos meus labios
Alento escaldador!
Quero fogo sentir contra o meu peito,
Quero um corpo cingir que eu sinta arder,
Quero beijos só teus, caricias tuas,
Que dão morrer!
Que importa ao edificio que scintilla,
De roaz fogo tomado,
Ser por um raio abrasado
Ou por ignobil favilla?
[Pg 373]
É sempre ardor, sempre fogo,
Sempre d’incendio o clarão,
Sempre o amor que estúa e ferve
Como um gigante vulcão.

A NUVEM DOIRADA.

(N’UM ALBUM.)

A nuvem doirada se expraia no occaso,
Roçando co’as franjas o throno de Deos;
A aguia arrojada seus vôos levanta,
Traçando caminhos nos campos dos céos!
Exhala perfumes a flôr do deserto,
Embora dos ventos o sopro fatal
Embace-lhe as côres,—e o mar orgulhoso
Suspira queixoso—no extenso areal.
E os bardos mimosos nos cantos singelos
Imitão as nuvens no incerto vagar:
Vão sós como as aguias,—exhalão perfumes,
Suspirão queixumes—das vagas do mar.
Por isso quem ama, quem sente no peito
Cantar-lhe das lyras a lyra melhor;
Os carmes lhes ouve, que os bardos só cantão
Saudades, perfumes, enlevos e amor!

SONHO DE VIRGEM.

[Pg 374]

A. D. A. C. G. A.

I.

Que sonha a donzella,
Tão vaga, tão linda,
Bemquista e bemvinda
Na terra e no céo?
Que scisma? que pensa?
Que faz? que medita,
Que o seio lhe agita
Tão bravo escarcéo?
Que faz a donzella,
Se lagrimas quentes
Das faces ardentes
Lhe queimão a tez?
Que sonha a donzella,
Se um riso fagueiro,
Donoso e ligeiro
Nos labios lhe vês?
Que faz a donzella,
Que scisma, ou medita?
Talvez lá cogita
Fruir algum bem;
Então porque chora?
Se curte agras dores
D’ingratos amores,
O riso a que vem?
Semelha a donzella,
Que ri-se e que chora,
Á limpida aurora,
Que orvalha dos céos;
Não luz mais brilhante,
Não chora mais prantos,
Não tem mais encantos,
Que um riso dos seus.

II.

[Pg 375]

Quem me dera saber quaes são teus sonhos,
Aventar teus angelicos desejos,
Saber de quantas ledas fantasias,
De quantos melindrosos pensamentos
Um suspiro se nutre, um ai se gera.
Virgem, virgem de amor, que vais boiando
Á flôr da vida, como rosea folha,
Que aragem branda sacudio nas aguas;
Que genio bom a magica vergasta
Em troco de um sorriso te concede?
Que poderosa fada te embalsama
A vida e os sonhos?—que celeste archanjo
Embala, agita as creações que idéas,
Como em raio do sol dourados átomos
Com que invisivel ser brincar parece!
Virgem, virgem de amor, quaes são teus sonhos?

III.

Talvez quando o sol nasce, lá divisas
Na liquida extensão do mar salgado
Correr com mansas brisas
Um ligeiro batel aparelhado.
As velas de setim brancas de neve
Rutilão d’entre as flamulas e cores,
E o barco airoso e leve
Nos remos voga de gentis amores.
Não formão rijos sons celeuma dura,
Nem a companha entre bulcões desmaia;
Aragem fresca e pura
Doces carmes de amor conduz á praia.
Sonhas talvez nas orlas do occidente,
De um regato sentada á branda margem,
Ver surgir de repente
De uma cidade a caprichosa imagem!
[Pg 376]
Soberbas construcções fantasiando,
Vês agulhas subtis cortando os céos,
E a luz do sol doirando
Rutilos tectos, altos corucheos.
Sonhas talvez palacios encantados,
Espaçosos jardins, fontes de prata,
Vergeis de sombra grata,
Onde a alma folga, isenta de cuidados.
Sonhas talvez, mas innocente Armida,
Passar a facil quadra dos amores,
Tendo em laço de flores
Preso de quem mais amas peito e vida!

IV.

Quem me dera saber quaes são teus sonhos?
Aventar teus mais intimos desejos,
E ser o genio bom que t’os cumprisse!

V.

Nem só prazeres medita,
Nem só pensa em bellas flores;
Muitas ha que almejão dores,
Como outras buscão amor:
É que as punge atra amargura,
Que o peito anceia e fatiga;
É sêde que só mitiga
Talvez afflicção maior.
Quasi gozão, quando vertem
Um pranto cançado e lento;
Quando um comprido tormento
Lhes derrete o coração:
Não é martyrio de sangue,
Como nas eras passadas;
Mas ha lagrimas choradas,
Que tambem martyrio são.
[Pg 377]
Ha dores que melhor ralão
Que provas d’agua ou de fogo,
Que ver apinhado o povo
N’um banquete canibal;
Que sentir no amphitheatro
As vivas carnes rasgadas
Pelas presas navalhadas
De um fero lobo cerval.

VI.

Quem me dera saber quaes são teus sonhos,
Aventar teus mais fundos pensamentos,
E ser o genio bom que t’os cumprisse,
Quando fossem de amor teus meigos sonhos!

VII.

Mas donde mana essa fonte
De inexplicavel ternura,
Que os golpes da desventura
Não podem nunca estancar;
Essa vida toda extremos,
Esse ardor de todo o instante,
Esse amor sempre constante,
Que nunca se vê mingoar?
Quizera, virgem donosa,
Saber a origem divina
Dessa fonte peregrina
De tanta luz e calor;
Então pudera em meus cantos,
Tratar dos teus meigos sonhos,
Formar uns quadros risonhos
De quanto sentes de amor.
Roubando as cores do Iris,
Das estrellas os fulgores,
O aroma que tem as flores,
O vago que tem o mar;
[Pg 378]
Talvez pudera os mysterios,
As douradas phantasias,
As singelas alegrias
D’um peito virgem cantar.

MEU ANJO, ESCUTA.

Le mal dont j’ai souffert s’est enfui comme un rêve,
Je n’en puis comparer le lointain souvenir
Qu’à ces brouillards légers que l’aurore soulève
Et qu’avec la rosée on voit s’évanouir.
MUSSET.
Meu anjo, escuta: quando junto á noite
Perpassa a brisa pelo rosto teu,
Como suspiro que um menino exhala;
Na voz da brisa quem murmura e falla
Brando queixume, que tão triste cala
No peito teu?
Sou eu, sou eu, sou eu!
Quando tu sentes luctuosa imagem
D’afflicto pranto com sombrio véo,
Rasgado o peito por acerbas dores;
Quem murcha as flores
Do brando sonho?—Quem te pinta amores
D’um puro céo?
Sou eu, sou eu, sou eu!
Se alguem te acorda do celeste arroubo,
Na amenidade do silencio teu,
Quando tua alma n’outros mundos erra,
Se alguem descerra
Ao lado teu
Fraco suspiro que no peito encerra;
Sou eu, sou eu, sou eu!
[Pg 379]
Se alguem se afflige de te ver chorosa,
Se alguem se alegra co’um sorriso teu,
Se alguem suspira de te ver formosa
O mar e a terra a ennamorar e o céo;
Se alguem definha
Por amor teu,
Sou eu, sou eu, sou eu!

OS BEIJOS.

Amo uns suspiros quebrados
Sobre uns labios nacarados
A gemer, a soluçar;
Como a onda bonançosa,
Que n’uma praia arenosa
Vem tristemente expirar!
Amo ouvir uma voz pura,
Uns accentos de ternura,
Que trazem vida e calor;
Que se derramão a medo,
Como temendo o segredo
Revelar do occulto amor!
Amo a lagrima que chora
Tema virgem que descora,
Presa d’interna afflicção;
Amo um riso, um gesto vivo,
Um olhar honesto, esquivo,
Que alvoroça o coração.
Porêm mais que o olhar honesto,
Mais que o riso e brando gesto,
Mais do que o pranto a correr,
Mais que a voz, quando amor jura,
Que um suspiro de ternura,
Que vem aos labios morrer;
[Pg 380]
Amo o leve som de um beijo,
Quando rompe o véo do pejo,
Mal sentido a murmurar:
É viva flôr de esperança,
Que nos promette bonança,
Como a flôr do nenuphar.
Mente o olhar, mesmo em donzella,
Mente a voz que amor assella,
Mente o riso, mente a dôr;
Mente o cançado desejo;
Só não mente o som de um beijo,
Primicias de um longo amor!
Beijos que são? Duas vidas,
São duas almas unidas,
Que o mesmo fogo consume:
São laço estreito de amores;
Porque são os labios flores
De que os beijos são perfume!
Beijos que são?—Ai do peito,
Sello breve, laço estreito
D’um cançado bem querer;
Saibo dos gozos divinos,
Que nos labios femininos
Quiz Deos bondoso verter.
Já por feliz me tivera,
Triste de mim! se eu pudera
Dizer o que os beijos são:
Sei que inspirão luz e calma,
Sei que dão remanso á alma,
Que trazem fogo a paixão.
Sei que são flôr de esperança;
Que nos promettem bonança,
Como a flôr do nenuphar:
Quem fruio um ledo beijo,
Ter não póde outro desejo,
Nada já póde gozar.
[Pg 381]
Sei que delles não se esquece
Triste velho, que esmorece
Á mingoa de coração:
Viva estrella em noite escura,
Viva braza em cinza pura,
Em neve algente um vulcão.
Sei que fruil-os uma hora
De ventura seductora,
É subir em vida aos céos,
É fugir da vida escassa,
Roubar ao tempo que passa
Um dos momentos de Deos.
Sei que são flôr de esperança,
Que nos promettem bonança,
Como a flôr do nenuphar!
Quem os fruio, o que espera?
Já gozou, já não tem era,
Já não tem mais que esperar.

DESESPERANÇA.

Antes d’espirar el dia,
Vi morir á mi esperanza.
ZARATE.
Que m’importa do mundo a inclemencia
E esta vida cruel, amargada?
Des’que os olhos abri á existencia
Um vislumbre de amor não achei!
Nem uma hora tranquilla e fadada,
Nem um gozo me foi lenitivo;
Mas no mundo maldicto, em que vivo,
Quantas ancias, meu Deos, não provei!
[Pg 382]
Já bastante lutei com meu fado!
Quando outr’ora corri descuidoso
Traz de um bem, não real, mas sonhado,
Transbordava de sonhos gentis:
Eu julgava que a um peito brioso
Ou que a uma alma, que facil s’inflamma
Por virtudes, por gloria, ou por fama,
Era facil aqui ser feliz.
Via o mundo ao travez dos meos prantos
A sorrir-se p’ra mim caroavel,
Reflectindo celestes encantos,
Que era visto d’um prysma ao travez:
Hoje trevas em manto palpavel
Me circundão,—nem já por acerto
Vejo triste nos prantos, que verto,
Luz do céo reflectida outra vez!
Que me resta na terra?—Estas flores,
Afagadas do sopro da brisa,
Disputando do sol os fulgores,
Balançadas no debil hastil!
Estas fontes de prata, que frisa
Brando vento,—estas nuvens brilhantes,
Estas selvas sem fim, susurrantes,
Estes céos do gigante Brasil;
Nada já me renova a esperança,
Que jaz morta, qual flôr resequida;
Só me resta a querida lembrança
Que o martyrio se acaba nos céos:
Foge pois, ô minha alma, da vida;
Foge, foge da vida mesquinha,
Leva timida esp’rança, caminha,
Té parar na presença de Deos!
Qu’estes gozos de ethereos prazeres,
Que esta fonte de luz que illumina,
[Pg 383]
Que estes vagos phantasmas de seres,
Que scismando só posso enxergar;
Que os amores de essencia divina,
Que eu concebo e procuro e não vejo,
Que este fundo e cançado desejo,
Deos somente t’os póde fartar.
Vai assim a medrosa donzella,
Pura e casta na ingenua belleza,
Buscar luz á remota capella,
Branca cera na pallida mão:
Tudo é sombra, silencio e tristeza!
Mas ao toque do fogo sagrado,
Arde em chammas o cirio apagado,
Já rutila brilhante clarão.

SE QUERES QUE EU SONHE.

Sur mon front, où peut-être s’achève
Un songe noir qui trop longtemps dure,
Que ton regard comme un astre se lève,
Soudain mon rêve
Rayonnera.
V. HUGO.
Tu queres que eu sonhe!—que ao menos dormido
Conheça alegrias, desfructe prazeres;
Que nunca provei;
Que ao menos nas azas de um sonho mentido
Perdido—arroubado, tambem diga: amei!
Tu queres que eu sonhe!—não sabes que a vida
Me corre penosa,—que amarga por vezes
A propria illusão!
No pallido riso d’uma alma affligida,
Qu’invída—ser leda, que dores não vão!
Se o pranto, que os olhos cançados inflamma,
Nos olhos de estranhos sympathico brilha;
Mais agro penar
[Pg 384]
Do triste o sorriso nos peitos derrama,
Se a chamma—revela, que almeja occultar.
Sonhando, percebo na mente agitada
Um mar sem limites, areas fundidas
Aos raios do sol;
E um marco não vejo perdido na estrada
Cançada,—não vejo longinquo farol!
E queres qu’eu sonhe!—Nas aguas revoltas
O nauta, ludibrio d’horrenda procella,
Se póde dormir,
As vagas cruzadas, em sustos involtas,
As soltas—escuta raivosas bramir.
Talvez porêm sonha que as ondas mendaces
O levão domadas á terra querida,
Qu’entrou em seus lares!...
E triste desperta, que os ventos fugaces
Nas faces—a espuma lhe atirão dos mares.
Se queres que eu sonhe,—que alguma alegria
Dormido conheça,—que frua prazeres
D’um placido amor;
Vem tu como estrella da noite sombria,
Que enfia—seus raios das selvas no horror,
Brilhar nos meus sonhos.—Então socegado,
Scismando prazeres, que n’alma s’entranhâo;
D’um riso dos teos
Coberto o meo rosto,—fugira o meu fado
Quebrado—aos encantos de um anjo dos céos.
Vem junto ao meu leito, quando eu for dormido,
Que eu sinta os perfumes que exhalas passando;
Não soffro—direi:
E ao menos nas azas de um sonho mentido,
Perdido—arroubado, talvez diga:—amei!—

O BAILE.

[Pg 385]

Sonemos gozando
Fortuna tan vana,
Y el sol de mañana
Que ven al salir
Que al son de la orquesta
Danzando en la fiesta,
No es carga funesta
La vida feliz.
ZORRILLA.
As salas vão-se enchendo, as luzes brilhão
Nos prysmas de crystal repercutidas,
Em quanto as flores
Dos bufetes nas jarras coloridas
Acres odores
Soltão; ao mar de luzes misturando
D’innocente perfume outro mar brando.
Com requebros e amor gentis donzellas,
Em riso e festa,
Medindo os passos
Aos sons da orchestra,
Pendem dos braços
Do namorado, lepido galan!
Esta risonha, aquella pensativa,
Outra menos esquiva,
Attenta ás vozes, que o prazer lhe entranhão,
E á fraze cortezã,
Que lhe entorna a lisonja nos ouvidos;
Vão descuidosas,
Nos labios risos,
Nas faces rosas,
Dando fé a protestos fementidos.
Triunfo ás bellas! o prazer começa:
Correm nas taças vinhos espumosos,
Gratos licores;
Tangida pela mão dos Trovadores
Desfaz-se a lyra em sons melodiosos,
Em cantico de amores
[Pg 386]
Soltão mais viva luz as brancas velas,
Melhor perfume as flores.
Activa-se o prazer; triunfo ás bellas!
Aqui, alli, alem, mil rostos meigos,
Da walsa ao gyro rapido se mostrão,
De gemmas ennastrados os cabellos;
E o peito que anhelante
Palpita entumecido
Nas ondas do prazer ebrifestante,
D’um leve colorido
Banha o semblante,
Que mais e mais co’a noite se enrubece:
Triunfo ás bellas,—o prazer recresce!
Perdido emtanto neste mar de luzes,
Mar de amor, de perfumes, que me inunda,
Contemplo indifferente
Quanto em redor diviso;
E entre tanto ruido e tanta gente,
Nem um sorriso
Verdadeiro, innocente!
Nem um sincero raio de alegria,
Nem um peito contente
Neste mar de perfumes e harmonia!
Então digo entre mim:—Talvez aquella,
Que tem melhores cores,
Que mais leda se mostra,
Que mais feliz no gesto se revela,
Sente mais finas dores;
O intimo desgosto,
A febre que a devora
Lhe dá calor ao rosto,
E no silencio chora;
Presa de uma afflicção devoradora.
Uma tristeza funda, inexprimivel
O coração me anceia;
[Pg 387]
E triste e solitario n’um recanto,
Nunca mais solitario, nem mais triste
Do que entre a multidão que me rodeia,
Não encontro maior, mais doce encanto
Que deixar-me arrastar por uma ideia,
Que me avassalla a mente.
Que m’importa esta gente,
Estes rostos que vejo e não conheço,
E o riso a que mil outros dão apreço?
Esta fingida alegria,
Esta ventura que mente,
Que serão dellas ao romper do dia?
Destas virgens louçãs as mais mimosas
Mortas serão talvez antes que murchem
Do branco rosto as encarnadas rosas!
Grinaldas festivaes, que a morte espalha
No lugubre terreiro;
O pó as enxovalha,
Murchas aos pés do esquallido coveiro!

DESALENTO.

Without a hope in life!
CRABBE.
Nascer, lutar, soffrer!—eis toda a vida:
D’esperança e de amor um raio breve
Se mistura e confunde
Ás cruas dores d’um viver cançado,
Como raio fugaz que luz nas trevas
Para as tornar mais feias!
Da verde infancia os sonhos melindrosos,
Nobres aspirações da juventude,
Amor de gloria stulto,
Com que mais alto a mente se extasia;
São vãos phantasmas, que produz a febre,
São illusões que mentem!
[Pg 388]
São as folhas virentes arrancadas
D’um arbusto viçoso, antes que brotem
Da primavera as flores;
A pennugem que nasce antes das azas,
Um esteril botão, que não dá flores,
Ou flôr que não dá fructos!
Foge, mancebo, lá te espreita o mundo!
Como areas d’um paramo deserto,
Resequido, abrasado;
Provoca o teo soffrer, teo pranto espreita,
Sedento almeja as lagrimas, qu’entornas
Nos areaes da vida.
S’inda tens coração, hão de esmagar-te;
As setas da calumnia irão cravar-t’o
Na parte mais sensivel:
Se tens alma, se electrico palpitas
De patria e de virtude aos nomes sanctos,
Foge outra vez ao mundo.
Não queiras, n’um accesso doloroso,
Ás mãos ambas ferindo o peito credulo
Exclamar delirante:
«Minha patria onde está?—Onde estes homens,
«Que a par de meos irmãos amar devera,
«Da mesma patria filhos?
«E a virtude tambem, onde hei de achal-a?
«Se é mais que nome vão, onde é que existe?
«Onde é que se pratica?
«Se os modernos Catões a graça esmolão
«Do rei—ou, cortesãos da populaça,
«Rojão por terra ignobeis!
«Se a mão do poderoso, a mão dourada
«Do crime impune—esbofeteia as faces
«Do homem vil, que a beija!
«Oh! meos irmãos não são, não são os filhos
«Desta patria, que eu amo;—torce o rosto
«De os vêr a humanidade.»
[Pg 389]
Despe-se a vida então dos seos encantos,
E o homem na lembrança revivendo
O percorrido estadio,
Tem por marcos de estrada o monumento,
Com que os mais fortes laços se desatão,
—A pyramide e a campa!
Do sonho juvenil murchas as cores,
Sem illusões, sem fé—nublado, escuro
O presente e o porvir,
No crepe d’abortadas esperanças
S’involve—e os olhos tesos no sepulchro,
A tarda morte aguarda!
Mas eu, qual viajor, vago perdido
Pela face da terra!—amigo lume
Não me convida ao longe;
E ao sentar-me na mesa dos estranhos,
Digo:—longe serei antes do occaso;—
E a divagar prosigo.
Mal aceito conviva me despeço!...
As calumnias que soffro, a dôr que passo,
Não me ferem profundas;
Bem como a rola, que das matas desce,
E nas azas recebe o pó da estrada,
Que voando sacode.
Minha hora derradeira sôe em breve,
A só esperança que aos mortaes não falha!
Morrerei tranquillo;
Bem como a ave, ao por do sol, deitando
Debaixo d’aza a timida cabeça,
Da noite o somno aguarda.

A QUEDA DE SATANAZ.

[Pg 390]

(TRADUCÇÃO.)

Eis que tomba da abobada celeste
O archanjo audaz, o seraphim manchado,
Desenrolando o corpo volumoso,
Despenhado precipite,—qual mundo
Dos eixos arrancado,—como um vivo
Dos céos fragmento enorme, eil-o cahindo!
Cahia lá d’aquelles céos brilhantes,
Donde inda os seos iguaes lançavão raios;
Cahia!—e a cerviz no espaço ardendo
As espheras dos sóes de côr de sangue,
Passando, avermelhava.
Eil-o, o maldicto, o archanjo da blasfemia,
Rival do creador!—té o imo peito
Pelas frechas da anáthema varado,
Como n’um turbilhão, desce rodando;
Ondas d’um mar de fogo o vem cercando,
E elle occulta a cabeça,
Como que procurasse
Nas entranhas da noite
Esconder seu desdoiro.
Clamavão—longe—os mundos com voz forte:
«Que insensato! onde vae? Nesse arrojado,
Frenetico voar, que vento o impelle,
Que de astro em astro vae, d’um céo em outro?
Vede como é sombrio!
Oh! quão outro que está d’aquelle archanjo
De tão bello semblante,
Lucifer radiante,
Cujo sopro era como o romper d’alva,
Que as portas da manhã nos céos abria,
[Pg 391]
Trazendo comsigo a aurora,
Que o seo alento accendia!
Acaso o reconhecestes?
Era hontem brilhante, novo e bello;
E hoje é feio e nu e descalvado,
Nas azas da tormenta balouçado,
Nas azas dos bulcões;
E os seos olhos fulminados
Já sem pupillas fumegão,
Quaes crateras de vulcões!»
O archanjo os escutava, ameaçando-os
Co’o olhar fulminante;
Que cheio d’impio orgulho já sentia
Uma c’rôa de rei cingir-lhe a fronte.
Todos os astros que no espaço gyrão
Seos olhos d’irritados fascinavão;
E os astros todos de terror tremião,
Saudando a coruscante realeza.
E já os céos sem fim, estrellas, mundos
Traz delle se perderão;
E nas profundas solidões do espaço
O archanjo abandonado apenas via
A noite, e sempre a noite!
Tem medo, olha, procura....—Um astro! um astro!
Transviado nos céos!—O archanjo o avista!
Estende a mão convulsa arrepellando-o:
Segura, arrasta-o, e d’um só pulo hardido
Tral-o potente ao limiar do inferno,
Alentando açodado.
O errante cometa duas vezes
Ao tetro boqueirão levou comsigo,
E duas vezes, como um negro abutre,
Lutando corpo a corpo, de cançaço
Sentio-se esmorecer.
Duas vezes tambem o astro victima,
Supplicando medroso, as igneas azas
[Pg 392]
Bateu, sublime grito aos céos mandando.
O nome do Senhor por duas vezes
O rebelde venceo,—elle sosinho
Cahio no fundo abysmo.

CANÇÃO DE BUG-JARGAL.

(TRADUCÇÃO.)

Maria, porque me foges,
Porque me foges, donzella?
Minha voz! o que tem ella,
Que te faz estremecer;
Tão temivel sou acaso?
Sei amar, cantar, soffrer.
E quando ao travez dos troncos
Descubro d’altos coqueiros,
Junto as margens dos ribeiros,
A sombra tua a vagar;
Julgo vêr passar um anjo,
Que os meos olhos faz cegar.
E dos labios teos se escuto
Deslisar-se a voz, Maria,
Cheio de estranha harmonia
Pulsa o peito meo queixoso,
Que mistura aos teos accentos,
Tenue suspiro afanoso.
Tua voz! eu quero ouvir-t’a
Mais do que as aves cantando,
Que vem da terra voando,
Em que eu a vida provei;
Da terra onde eu era livre,
Da terra onde eu era rei!
[Pg 393]
Liberdade e realeza,
Hei de perder da lembrança;
Familia, dever, vingança...
Té a vingança m’esquece,
Fructo amargo e deleitoso,
Que tão tarde amadurece!
Es, Maria, qual palmeira,
Altiva, esbelta, engraçada,
No tronco seo balançada
Por leve brisa fagueira;
No teo amante a rever-te,
Como na fonte a palmeira.
Mas não sabes?—Do deserto
A tempestade valente
Corre as vezes de repente
Por acabar apressada
Com seo halito de fogo
A palmeira, a fonte amada!
E a fonte já mais não corre!
Sente a verdura sumir-se
A palmeira, e contrahir-se
A palma sua ao redor,
Que de cabellos dava ares,
De c’rôa tendo o esplendor.
D’Hespaniola, ó branca filha,
Teme por teo coração;
Teme a força do vulcão
Que vai breve rebentar!
Que, depois, amplo deserto
Só poderás contemplar!
Talvez que então te arrependas
De me haveres desdenhado,
Porque houveras encontrado
Salvação no meo amor;
[Pg 394]
Como o kathá leva á fonte
O sedento viajor.
Porque assim tu me desdenhas,
Não, Maria, não o sei;
Que d’entre as frontes humanas,
Entre as frontes soberanas,
Levanto a fronte; sou rei.
Sou preto, sim, tu es branca;
Mas qu’importa? Junto ao dia
A noite o poente cria
E cria a aurora tambem,
Que mais luzentes bellezas,
Mais doces do que ambos tem.

AGAR NO DESERTO.

Et abiit, seditque e regione procul quantum potest arcus jacere: dixit enim: non videbo morientem puerum: et sedens contra, levavit vocem suam et flevit.

Genesis, Cap. 21, 16.

Pallido o rosto e queimado
Pelo sol do Egypto ardente,
Sahia a escrava innocente
Co’ o filho innocente ao lado
Da tenda patriarchal.
A pobresinha chorava!
Alguns pães e um frasco d’agoa
E um peito cheio de magoa!...
Vê, contempla, ó triste escrava,
Teo sepulchro no areal.
Abrahão se compadece;
Mas debalde o sollicita
Piedade sancta,—de afflicta
Sem queixar-se, lhe obedece
[Pg 395]
A triste escrava do amor.
Quizera talvez detel-a...
Porêm que?—Sarai lh’implora,
Deos lhe ordena:—vae-te embora,
Vae-te escrava; e a tua estrella
Te depare outro senhor.
O sol brilhante nascia
Sobre as tendas alvejantes;
E n’outros pontos distantes
Combros d’areia feria,
Outr’ora leito d’um mar;
Esse caminho procura,
Que nas ondas do deserto
Talvez ache por acerto
Patria, abrigo, amor, ventura
A prole infausta d’Agar.
Vae, caminha; mas ao passo
Que no deserto s’entranha,
Arde o sol com furia estranha,
Racha a areia o pé descalço,
Cresta o vento os labios seos;
E ao lado o filho innocente
Soltava tristes gemidos,
Co’os olhos humedecidos
Fitando a mãe ternamente,
Que os olhos tinha nos céos!
Procura terras do Egypto;
Porêm debalde as procura:
Vae a triste, sem ventura,
Lento o passo, o rosto afflicto,
Pela inculta Bersabé.
Seo Ismael desfallece;
No deserto immenso, adusto,
Não encherga um só arbusto:
Jehovah delles s’esquece!
Cresce a dôr, e mingua a fé.
[Pg 396]
Pede sombra o triste infante:
Não ha sombra,—agoa supplíca;
Exhaurido o vaso fica,
Pede mais d’instante a instante....
Pobre escrava, oh! quanto dó!
Podesses rasgar as veias,
Tomar agoas innocentes
Tuas lagrimas ardentes;
Mas só vês d’um lado areias,
D’outro lado areias só.
Pois não ha quem o proteja,
Diz a escrava lá comsigo,
Vendo o fado seu imigo,
Meu filho morrer não veja,
Bem qu’eu tenha de morrer.
A um tiro d’arco distante
Se arrasta com lento passo,
Tomba o corpo infermo e lasso,
E amargo pranto abundante
Deixa dos olhos correr.
Deos porêm ouvira a prece
Da escrava, da mãe coitada,
E da celeste morada
Librado um archanjo desce
Nas azas da compaixão.
Expira em torno ar de vida,
Um aroma deleitoso,
E n’um sonho aventuroso
Agar seus males olvida,
Olvida a sua afflicção.
Dorme e sonha, ó triste escrava,
Deos senhor sobre ti vela!
Dorme e sonha:—a tua estrella
Nasce como um romper d’alva
Sobre os netos d’Ismael.
[Pg 397]
Esquece a sorte mesquinha,
Que te vexa,—esquece tudo;
Deos senhor é teu escudo;
Já não es serva, es rainha
D’outro reino d’Israel.

Como quando elevados nas alturas
Descobrimos incognitas paisagens,
Densas florestas, aridas planuras
E de rios caudaes virentes margens;
Assim da vida o sonho te arrebata,
Rasgando o veo do tempo e do infinito,
E uma scena vistosa te retrata,
Que vai da Arabia ao portentoso Egypto.
Vê como o filho teu, feroz guerreiro,
Nos prainos do deserto eleva as tendas,
E, posto a seus irmãos sempre fronteiro,
Provoca e trama asperrimas contendas!
São doze os filhos—doze reis potentes—
Com elles Ismael tudo avassalla;
Sua espada é a lei das outras gentes,
Seus decretos os campos da batalha.
A sorte seus designios favoneia,
Segue seus passos a benção divina,
Povôa-se Faran, surge d’areia
De Meca o templo, os paços de Medina.
Crescem, dominão: largo reino ingente
Mesquinha habitação presta a seus netos,
Convertida em nação a grei potente,
Que opprime a cerviz mobil dos desertos.
[Pg 398]
Mas entre os filhos seus de nomeada,
Sup’rior dos heróes á grande altura,
Na sinistra o alkorão, na dextra a espada,
A effigie torva de Mahomet fulgura.
Curva-se a Arabia emtanto, a Palestina
Á sua lei, da Persia o reino antigo;
Escutão Asia e Africa a doutrina
Do embusteiro que em Meca achou jazigo:
Mensageiro divino se declara
Aquelle que illudido o mundo adora;
Agar é mãe,—pela vergontea cara,
Entre orgulhosa e triste, a Deos implora.
Peccou; porêm da gloria que o circunda
A roxa luz, que o meteóro imita,
De vivo resplendor a fronte inunda,
Commove o peito a misera proscripta.
Curvado ao jugo seu todo o oriente,
Inda cubiça a Europa o Ismaelita;
E em frente á cruz, o pallido crescente
Apparece nas torres da mesquita.
Oh! quanto humano sangue derramado!
Que de prantos e lagrimas vertidas!
Entre irmãos o combate é porfiado,
A raiva intensa, as lutas mal feridas.
De avistar esse quadro tão medonho,
Embora no porvir todo escondido,
A escrava tenta orar; porêm no sonho
Resume a prece em languido gemido.
Geme de vêr em furia carniceira
A esposa de Mahomet desrespeitada,
E do seu genro a dynastia inteira
Por duro asar de guerra contrastada.
[Pg 399]
Succedem-se os Omiades valentes;
Do seu ultimo rei, oh dôr! se coalha
O sangue na mesquita: entre essas gentes
Vinga o punhal a sorte da batalha.
O vencedor então, não poucas vezes,
Chegando á bocca a taça corrompida,
Exp’rimenta os tristissimos revezes,
De quem sobre os tropheos exhala a vida!
Tudo é silencio e luto:—um só evita
O negro olvido,—ao templo da memoria
Vôa Al-Reschid,—unindo á gloria avita
O louro da sciencia e o da victoria.
Com seu vizir á noite, pelas ruas
Escuta dos estranhos mercadores
A gloria d’outros reis, menor que as suas,
E espreita do seu povo occultas dores!
Se ouviu a narração d’uma desgraça,
Se o pobre vê curvado a prepotencia,
Se o convidão a entrar, quando elle passa,
No abrigo do infortunio e da innocencia,
Entrou e viu! mas o fulgor crastino
Ri-se mais brando aos peitos soffredores;
Passa o rei, como orvalho matutino,
E, por onde passou, rescendem flores!
Mudado o sonho, a fugitiva escrava
Estranhos povos nota, estranhas terras,
Que o Darro ensopa e o Guadalete lava,
Nadando em sangue de cruentas guerras.

Quem foi que as altas portas[Pg 400]
Abriu d’Hespanha aos mouros;
Que poz os verdes louros,
Dos reis godos conquista,
Ás plantas do infiel?
De tantos males causa
Tu foste, ó rei Rodrigo,
Tornando infesto, imigo,
O nobre conde, outr’ora
Vassallo teo fiel.
Debalde o affecto encobres
Do refalsado peito,
Se vais furtivo ao leito
Da virgem, que se mostra
Rebelde ao teo amor:
Qu’es godo e rei t’esqueces!
E o nobre resentido
Da offensa que ha soffrido,
No teu exemplo aprende
A ser tão bem traidor.
Em quanto pois devassas,
Com torpes pensamentos,
Os regios aposentos
Da nobre moça,—a c’rôa
Te cae da fronte ao chão;
E o pae, que a affronta punge,
Turbado, ardendo em ira,
Aos pés do mouro a atira.
O rei, que planta crimes,
Recolha vil traição.
Sus, ó rei, ás armas!
Empunha a larga espada,
E a fronte sombreada
Co’o negro elmo—deixa
Tingir-se em nobre pó:
[Pg 401]
D’encontro as alas densas
Do barbaro inimigo
Debalde, ó rei Rodrigo,
Te arrojas!—vence á força,
Foges vencido e só!
Vai só; mas occultando
No manto d’um soldado
O rosto demudado,
Emquanto passa o campo,
Escasso leito aos seos:
Ai! triste rei cahido!
Na solitaria ermida,
Que abriga a inutil vida,
No pó collada a fronte,
Lembra-te emfim de Deos.
Lembrem-te os muitos erros
E o crime grave, emquanto
As mães godas em pranto
O nome teu maldizem,
E ao céo clamando estão.
Emquanto pela Iberia
O arabe audaz e forte,
Espalha o susto, a morte,
Por onde quer que solta
Ao vento o seu pendão.
Passão avante, calcão
Dos Pyrenêos as serras,
Levando cruas guerras
Ao dilatado imperio
Do intrepido gaulez.
Debalde o grande Carlos
Oppõe-se-lhes,—que a historia
Nos traz inda á memoria
Dos tristes Roncesvalles
O misero revez.
[Pg 402]
Porêm do largo imperio
De Cordova e Granada
A c’rôa cahe pesada
Na fronte amollecida
Do moço Boabdil.
O fraco teme os echos
Ouvir da accesa guerra,
E perde a nobre terra
Ganhada em mil batalhas
Com pranto feminil.
Depois, inda outros quadros
Enxerga no futuro;
Mas é um ponto escuro,
São formas vagas, postas
Em duvidosa luz.
Já naves são, já hostes,
Tropel de varia gente,
Que parte do occidente,
Em cujos peitos brilha
De Christo a roxa cruz.
Agar emfim acorda!
Sustendo o filho caro,
Pelo deserto avaro
S’entranha novamente,
Mais solto o coração.
Parece que já sente
No rosto ao bello infante
A gloria radiante,
Que espera os descendentes
Da forte geração.
E como Deos lhe ha dito,
Seus filhos são guerreiros,
Que a seus irmãos fronteiros
Cruentos prelios movem:
Temidos são; porêm
[Pg 403]
As filhas desses bravos,
Da vida sequestradas,
Escravas são coitadas,
Que da materna origem
Recordão-se no Harem.

Vai, caminha, oh triste escrava,
Deos Senhor sobre ti vela;
Vai, caminha: a tua estrella
Nasce como um romper d’alva
Sobre os netos d’Ismael.
Esquece a sorte mesquinha
Que te vexa, esquece tudo,
Deos Senhor é teu escudo:
—Já não es serva, es rainha
D’outro reino d’Israel.


[Pg 404]

HYMNO.


O MEU SEPULCHRO.

Elève-toi, mon ame, au-dessus de toi-même,
Voici l’épreuve de ta foi!
Que l’impie, assistant à ton heure suprême,
Ne dise pas: Voyez, il tremble comme moi!
LAMARTINEHarmonies.
Quando, os olhos cerrando á luz da vida,
O extremo adeus soltar ás esperanças,
Que na terra nos guião, nos confortão
E espação do porvir a senda estreita;
Quando, isento de miseros cuidados,
Disser adeus ás illusões douradas,
Mas com ellas tambem ás dores cruas
Da existencia—aos espinhos ponteagudos,
Com que a verdade o coração nos roça;
Quando tocada não sentir minha alma
Da luz, dos sons, das cores, das magias,
Que a natureza prodiga derrama
No regaço da terra—mais ditoso
Serei acaso então?—Quando o meu corpo
Á terra, mãe commum, pedindo abrigo
Dos sepulchros no valle em paz descance;
[Pg 405]
Hei de ser mais feliz porque m’o cobre
Pomposo mausoleu, em vez da pedra
Sem nome, em vez do tumulo de cespedes,
Que s’ergue junto á estrada, e ao viandante
Ao que alli passa, uma oração supplíca?
Oh! não!—ao encalmado é grata a sombra;
Grato descanço aos membros fatigados
Presta igualmente a relva das campinas
E os torrões pelo sol enrigicidos.
Como o trabalhador que a sésta aguarda,
O meu termo fatal sem medo espero!
Eu então pedirei silencio á morte,
E fresca sombra á sepultura humilde,
Que me receba,—e á cuja superficie
Morrão sem echo da existencia as vagas.
Humilde seja embora! Que m’importa
Que a mão d’habil artista me não talhe
Mentiroso epitaphio em preto marmor!
O moimento faustoso, que se erige,
Arranco da vaidade, sobre a campa
De um corpo transitorio, acaso empece
Aos que alli pascem, vermes esfaimados
De roerem-lhe as visceras?!—Solemnes
São da campa os mysterios; mas terrivel
É da morte a rasoura, que nivela
O rico ao pobre, e os berços differentes
Torna um féretro, um leito de Procusto,
Capaz de quanta dôr os homens soffrem:
Tão depressa o cadaver se corrompe
Nas amplas dobras do velludo involto,
Como embrulhado na mortalha exigua,
Que a religiosa caridade amiga,
O pudor dos sepulchros venerando,
Lança do pobre aos restos desprezados.
Os felizes do mundo, acobardados
Ante a imagem da morte, que os assalta,
[Pg 406]
Temem deixar a terra, onde tranquilla,
Quasi livre de dôr, entre delicias,
Como um rio caudal lhes corre a vida.
Horrorisão-se timidos,—supplicão
Á cruel, que os não leve, que os não roube
Á senda matisada, onde os seus passos
Deslisão-se macios—ás caricias
D’um seio, que lhes presta brando encosto.
O fio da esperança os liga forte
A um corpo que declina, como os lios
De enrediça tenaz prendida á copa
D’uma arvore comida: amedrontados,
Como das fauces negras d’um abysmo,
Do pavoroso tumulo recuão.
Mas eu, que vago solto, como a folha,
Como o fumo subtil; que não limito
Nos terminos da terra os meus desejos,
Folgo de vêr os renques dos sepulchros
No chão da morte largamente esparsos!
Quasi me alegra vel-os. Tal no exilio
Contempla á beira-mar o degradado
Devolverem-se as vagas,—e saudoso
Da patria sua tão distante—as conta;
Uma por uma as interroga, e pensa
Qual d’aquellas será que o leve e atire,
Naufrago embora e semimorto, ás praias,
Porque chorão seus olhos.—No desterro
Me contemplo tambem,—como elle, choro
A patria, o íman dos meus sonhos gratos.
Abra-se funda a cova ante os meus passos:
Um só delles da morte me separe!...
E esse passo andarei, como quem pisa,
Depois de viajar remotos climas,
O patrio solo, e as auras perfumadas
Do bosque, amigo seu na leda infancia,
Bebe de novo, e de as gozar se applaude.
[Pg 407]
Hora do passamento! es da existencia
O momento mais sancto, o mais solemne:
Assim o rubro sol, quando no occaso
Em turbilhões de purpura se afunda,
Nos morredouros, despontados raios
Saudoso, extremo adeos á terra envia.
Tal o esposo se aparta suspiroso
E nas azas da brisa manda um beijo
Á esposa, que de o ver partir se enluta,
Rola que vaga na amplidão das selvas.
Cheio de melancholica incerteza,
Dir-te-hei: bem vinda,—ó morte! quando os olhos
Voltar atraz na percorrida estrada;
E chorarei talvez, como quem deixa
O carcere medonho, onde engastada
Nas escamas da dôr gemeu sua alma
Largos annos de antigo soffrimento;
O carcer qu’inda as lagrimas lhe verte
Das humidas paredes, cujos echos
Inda parecem, na soidão da noite,
Repetir seus tristissimos accentos.
Oh! quão formosa a vida se revela
A quem já bate as portas do infinito,
Encostado aos umbraes da eternidade,
A vez extrema contemplando o mundo!
A folha já myrrada, a pedra solta,
A flôr agreste, a fonte que murmura
E as cantoras do céo, as ledas aves
De variado esmalte, e as suspirosas
Brisas da noite e as do romper da aurora,
A estrella, o sol, o mar, o céo, a terra,
A planta, os animaes, tudo então vive,
Tudo comnosco sympathisa,—tudo,
Como orchestra afinada por nossa alma,
Acorde aos nossos sentimentos vibra,
Revelando ao que morre os fins da vida.
[Pg 408]
Dalli melhor compr’hende-se a existencia,
Mais vasta perspectiva se desdobra
Ante os olhos, que a extrema vez lampejão:
E as scenas que a illusão junca de flores,
Que o desejo nos mostra, que nos pinta
Cubiçoso, irisante,—que a esperança
Fugaz de varios modos nos matisa;
Gloria, ambição, prazer, fallaz ventura,
Tudo se olvida e apaga—semelhante
Á fugitiva estrella ou clarão breve
D’um relampago estivo, que um momento
Se mostra e fulge, logo immerso em trevas.
Que importa que eu não tenha uma só c’rôa,
Um myrrado laurel, uma só folha,
Que ás novas gerações diga o meu nome
E sollicite as attenções futuras?
Sou como o passarinho, quando passa
Á flôr de um lago e a sombra vacillante
No liquido crystal debalde estampa.
Ou semelhante ao viajor que bate
Da vida a estrada pulvurenta, e nota
Como os seus rastos mal impressos cobre
O pó que de seus passos se levanta.
Ah! que dos louros me não dóe a ausencia
Mas de lagrimas, sim, que me orvalhassem
A sepultura humilde,—á cujas gotas
Meus ossos de prazer estremecidos
De as sentir se alegrassem...—mas em troco
Dessa pia oblação, que tantas vezes
Mente ao finado, que as espera eterno,
As lagrimas terei da noite fria,
O fresco humor da chuva, que me eduquem
A agreste flôr, que a natureza obriga
A despontar na solitaria campa.
Ninguem virá com titubantes passos
E os olhos lacrimosos, procurando
O meu jazigo; e em falta de epitaphio,
[Pg 409]
«Elle aqui jaz!» o coração lhe diga,
E alli se curve então, fundos suspiros
Dando aos echos do funebre recinto,
Involtos na oração que alegra os mortos.
Certo, ninguem virá; porêm tão pouco
Ouvirei maldições, onde escondido,
Já pasto aos vermes, jazerá meu corpo.
Se deixo sobre a terra alguma offensa,
Se alguma vida exacerbei, se acaso
Alguma simples flôr trilhei passando;
Essas, depois d’eu morto, convertidos
Os odios em piedade—«Em paz descança»
Dirão ante o meu tumulo, e voltando
A um lado o rosto,—deixarão dos olhos
Compassiva uma lagrima fugir-lhes!
Tu, Senhor, tu, meu Deos, tu me recebe
Na tua sancta gloria: alarga as azas
Do teu sancto perdão, que ao teu conspecto
Humilhado me sinto, como a grama,
Que o pé do viajor sem custo abate.
A ti volvo, ó Senhor,—bem como o filho,
Que ao sopro paixões soltando as velas
Da juventude ardente, foge ao tecto
E ao lar paterno, onde por fim se acolhe,
Consumido o thesouro da innocencia,
Com rubor dos andrajos da pobreza,
Que o vexa,—para ver do pae o rosto,
Para escutar-lhe a voz, embora tenha
Sobre a cabeça a maldição pendente.

SAUDADES.

[Pg 410]

A MINHA IRMÃ.

J. A. de M.

I.

Eras criança ainda; mas teu rosto
De ver-me ao lado teu se espanejava
Á luz fugaz de um infantil sorriso!
Eras criança ainda; mas teus olhos
De uma brandura angelica, indizivel,
De sympathicas lagrimas turbavão-se
Ao ver-me o aspecto merencorio e triste;
E amigo refrigerio me sopravão,
Um balsamo divino sobre as chagas
Do coração, que a dôr me espedaçava!
A luz de uma razão que desabrocha,
As leves graças, que a innocencia adornão,
Os infantis requebros, as meiguices
De uma alma ingenua e pura—em ti brilhavão.
Eu, gasto pela dôr antes de tempo,
Conhecendo por ti o que era a infancia,
Remoçava de ver teu rosto bello.
Pouco era vel-o!—em ti me transformava;
Bebendo a tua vida em longos tragos,
Todo o teu ser em mim se transfundia:
Meu era o teu viver, sem que o soubesses,
Tua innocencia, tuas graças minhas:
Não, não era ditoso em taes momentos,
Mas de que era infeliz me deslembrava!

Tinhas sobre mim poder immenso,[Pg 411]
Indizivel condão, e o não sabias!
Assim da tarde a brisa corre a terra,
Embalsamando o ar e o céo de aromas:
Enreda-se entre flores suspirosa,
Geme entre as flores que o luar prateia,
E não sabe, e não vê, quantos queixumes
Apaga—quantas magoas alivia!
Assim, durante a noite, o passarinho
Em moita de jasmins derrama occulto
Merencorias canções nos mansos ares;
E não sabe, o feliz, de quantos olhos
Tristes, mas doces lagrimas, arranca!

II.

Perderão-te os meus olhos um momento!
E na volta o meu rosto transtornado,
As vestes luctuosas, que eu trajava,
O mudo, amargo pranto que eu vertia,
Annuncio triste foi de uma desdita,
Qual jámais sentirás: teus tenros annos
Pouparão-te essa dôr, que não tem nome.
De quando sobre as bordas de um sepulchro
Anceia um filho, e nas feições queridas
D’um pai, d’um conselheiro, d’um amigo
O sello eterno vae gravando a morte!
Escutei suas ultimas palavras,
Repassado de dôr!—junto ao seu leito,
De joelhos, em lagrimas banhado,
Recebi os seus ultimos suspiros.
E a luz funerea e triste que lançarão
Seus olhos turvos ao partir da vida
De pallido clarão cobrio meu rosto,
No meu amargo pranto reflectindo
O cançado porvir que me aguardava!

Tu nada viste, não; mas só de ver-me,[Pg 412]
Flôr que sorrias ao nascer da aurora
No denso musgo dos teus verdes annos,
A procella imminente presentiste,
Curvaste o leve hastil, e sobre a terra
Da noite o puro aljofar derramaste.

III.

O encanto se quebrára!—duros fados
Inda outra vez de ti me separavão.
Assim dois ramos verdes juntos crescem
N’um mesmo tronco; mas se o raio os toca,
Lascado o mais robusto cahe sem graça
De rojo sobre o chão, em quanto o outro
Da primavera as galas pavoneia!
Já não ha quem de novo unil-os possa,
Quem os force a vingar e a florir juntos!

Parti, dizendo adeus á minha infancia,
Aos sitios que eu amei, aos rostos caros,
Que eu já no berço conheci,—áquelles
De quem máo grado, a ausencia, o tempo, a morte
E a incerteza cruel do meu destino,
Não me posso lembrar sem ter saudades,
Sem que aos meus olhos lagrimas despontem.
Parti! sulquei as vagas do oceano;
Nas horas melancolicas da tarde,
Volvendo atraz o coração e o rosto,
Onde o sol, onde a esp’rança me ficava,
Misturei meus tristissimos gemidos
Aos sibilos dos ventos nas enxarcias!

Revolvido e cavado o negro abysmo,[Pg 413]
Rugia indomito a meus pés: sorvia
No fragor da procella os meus soluços.
Vago triste e sosinho sobre os mares,
—Dizia eu entre mim,—na companhia
De crestados, de rispidos marujos,
Mais duros que o seu concavo madeiro!
Ave educada nas floridas selvas,
Vim da praia beijar a fina areia.
Subitaneo tufão arrebatou-me,
Perdi a verde relva, o brando ninho,
Nem jamais casarei doces gorgeios
Ao saudoso rugir dos meus palmares;
Porêm a branca angelica mimosa,
Com seu candor enamorando as aguas,
Florece ás margens do meu patrio rio.

IV.

Largo espaço de terras estrangeiras
E de climas inhospitos e duros
Interpoz-se entre nós!—Ao ver nublado
Um céo d’inverno e as arvores sem folhas,
De neve as altas serras branqueadas,
E entre esta natureza fria e morta
A espaços derramadas pelos valles
Triste oliveira, ou funebre cypreste,
O coração se me apertou no peito.
Arrasados de lagrimas os olhos,
Segui no pensamento as andorinhas,
Nos invejados vôos!—procuravão,
Como eu tambem nos sonhos que mentião,
A terra que um sol calido vigora,
E em frouxa languidez estende os nervos.
Patria da luz, das flores!—nunca eu veja
O sol, que adoro tanto, ir afundar-se
Nestes da Europa revoltosos mares;
[Pg 414]
Nem tibia lua, involta em nuvens densas,
Luzindo mortuaria sobre os campos
De frios sues queimados.—Ai! dizia,
Ai d’aquelle que um fado aventureiro,
Qual destroço de misero naufragio,
A longinqua e remota plaga arroja!
Ai d’aquelle que em terras estrangeiras
Corta nas azas do desejo o espaço,
Em quanto a realidade o vexa entorno
E oppresso o coração de dôr estala!
Onde a pedra, onde o seio em que descance?
Que arbusto ha de prestar-lhe grata sombra
E olentes flores derramar co’a brisa
Na fronte encandecida? Peregrino,
Em toda a parte forasteiro o chamão!
Insensivel a dôr, na sua marcha,
Não, não attende ao termo da jornada;
Mas volta atraz o rosto,—e entre as sombras
Confusas do horisonte—encherga apenas
O debil fio da esperança teso,
E da ingrata distancia adelgaçado!

E todavia amei! pude um momento
Vêr perto a doce imagem debruçada
Nas aguas do Mondego,—ouvir-lhe um terno
Suspiro do imo peito, mais ameno,
Mais saudoso que as auras encantadas,
Que entre os seus salgueiraes morão loquaces!
Foi um momento só!—talvez agora
Nas mesmas aguas se repete imagem
Dos meus sonhos de então!—talvez a brisa,
Nas folhas dos salgueiros murmurando,
Meu nome junto ao seu repete aos echos,
Que eu, triste e longe della, escuto ainda!

Sim, amei; fosse embora um só momento![Pg 415]
Meu sangue, requeimado ao sol dos tropicos,
Em vivas labaredas conflagrou-se.
Feliz n’aquelle incendio ardeo minha alma,
Um anno, talvez mais! Qual foi primeiro
A soltar, a romper tão doces laços
Não podera dizel-o, em que o quizesse.
Tão louco estava então,—dores tão cruas,
Magoas tantas depois me acabrunharão,
Que desse meu passado extincta a idéa,
Deixou-me apenas um soffrer confuso,
Como quem de um máo sonho se recorda!
Assim, depois de arder um denso bosque
Dos ventos a mercê revôa a cinza
N’um paramo deserto! Nada resta;
Nem se quer a vereda solitaria,
A cuja extremidade o amor velava!

V.

Rotos na infancia os laços de familia,
Os fados me vedavão reatal-os,
Ter a meu lado uma consorte amada,
Rever-me na affeição dos filhos caros,
Viver nelles, curar do seu futuro
E neste empenho consumir meus dias;
Mas ao menos, pensava,—ser-me-ha dado
Amimar e suster nos meus joelhos
Da minha irmã querida a tenra prole,
Inclinal-a a piedade, e ao relatar-lhe
Os successos da minha vida errante,
Innocular-lhe o dom fatal das lagrimas!
Essa mesma esperança não me illude;
Ave educada nas floridas selvas,
Um tufão me expellio do patrio ninho.
[Pg 416]
As tardes dos meus dias borrascosos
Não terei de passar, sentado á porta
Do abrigo de meus paes,—nem longe delle,
Verei tranquillo aproximar-se o inverno,
E pôr do sol dos meus cançados annos!


[Pg 417]

NOTAS.

PRIMEIROS CANTOS. POESIAS AMERICANAS.

Tacápe (pag. 4), arma offensiva, especie de maça contundente, usada na guerra e nos sacrificios. A etymologia desta palavra indica que os Indios os endurecião ao fogo, como costumavão fazer aos seos arcos: Tatá-pe quer dizer «no fogo».


Boré (pag. 5), instrumento musico de guerra; dá apenas algumas notas, porêm mais asperas, e talvez mais fortes que as da Trompa.


Piaga (pag. 6), piagé, piaches, piayes; os autores portuguezes escreverão pagé, como em verdade ainda hoje se diz no Pará. Era ao mesmo tempo o sacerdote e o medico, o augure e cantor dos indigenas do Brazil. (Veja-se a nota correspondente nos Ultimos Cantos pag. 419.)


Anhangá (pag. 7), genio do mal, o mesmo que Lery chama Aignan e Hans Staden Ingange.


Manitôs (pag. 7) uns como penates que os indios da America do norte veneravão. O seo desapparecimento augurava grandes calamidades ás tribus, de que elles houvessem desertado.

[Pg 418]


TABYRA.

«Tobajaras—o povo senhor.»

(Pag. 150.)

Ces Tobaïares qui réclamaient l’anteriorité dans la domination du pays, et qui se donnaient un titre équivalent à celui de seigneurs de la contrée. Ferdinand Denis.

«Tobajaras são os indios principaes do Brazil, e pretendem elles serem os primeiros povoadores e senhores da terra. O nome, que tomarão, o mostra; porque yara quer dizer senhores, tobá quer dizer rosto; e vem a dizer que são os senhores do rosto da terra, que elles tem pella fronteira do maritimo em comparação do sertão.»—Padre SIMAM DE VASCONCELLOS. Noticias do Brazil. L. 1. n. 156.

Escrevendo Tobajaras segui, por ser mais euphonico, a ortographia do Padre Vasconcellos. Convem todavia confessar que se não deveria dizer Tobajaras, como este Chronista, mas Tabajaras ou Tabaiaras, com Ferdinand Denis, o que mais se conforma com a etymologia, «Taba e Iara ou Yara.» Tabajaras é litteralmente como se dissessemos, os senhores ou dominadores das Aldeias.

Por isso mesmo que os Tobajaras occupavão o littoral, é de suppor que elles fossem antes os conquistadores, que os primeiros povoadores do paiz. Os conquistadores, como homens que erão, carentes das mais simples noções da agricultura, deverião de preferencia escolher as praias como mais mimosas da natureza e mais fartas, recalcando assim para o centro das matas os incolas primitivos do paiz. É isto o que sabemos da historia de todos os povos barbaros. Os Tobajaras portanto dominárão pela conquista e quadra-lhes optimamente o nome que tomárão de senhores das aldeias—de Tabajaras.

«Potiguares lá vem denodados.»

(Pag. 152.)

Dizem uns Potiguares ou Petiguares, outros Pitigoares. Delles escreve o Padre Vasconcellos:

«Em segundo logar (depois dos Tobajaras) os Potiguares forão sempre indios de valor, e se fizerão estimar pelas armas, que por longos annos moverão contra os Tobajaras: nas quaes tiverão encontros dignos de historia; porêm não me posso deter em contallos,... punhão em campo vinte até trinta mil arcos.»—Not. do Brazil. L. 1. n. 157.


SEXTILHAS DE FREI ANTÃO.

(Pag. 196.)

Os vocabulos que emprego nestas sextilhas se achão todos no Diccionario de Moraes, bem que as mais das vezes no sentido antiquado. É assim que uso de «porêm, porende» em vez de «por isso»; de[Pg 419] «perol» em vez de «porêm»; de «ora, embora» em vez de «agora, em boa hora» etc.


GULNARE E MUSTAPHÁ.

Diz a Princeza D. Joanna (pag. 221):

«Qu’eu tenha escravos, e mouros,
Rainha de Portugal.»

A Chronica de Cister tão bem diz, fallando da Princeza D. Thereza, filha de Sancho I.:

«Viuendo a santa raynha, foy Deos servido levar para si a el-Rey seu pay, a quem succedeo no reyno dom Afonso o segundo do nome.»

«Raynha (diz Fr. Luiz de Sousa) lhe chamão as historias antigas, que era o titulo com que então se tratavam as filhas dos reys.»—H. de S. D.—L. 1. C. 11.


ULTIMOS CANTOS.

O GIGANTE DE PEDRA.

(Pag. 275.)

Alguns dos principaes montes da enseada do Rio de Janeiro parecem aos que vem do Norte ou do Sul representar uma figura humana de colossal grandeza: este capricho da natureza foi conhecido dos primeiros navegantes portugueses com a denominação de «frade de pedra», que agora se chama «o gigante de pedra.»—Áquelle objecto se fez esta poesia.


...... extincta a antiga crença
Dos Tamoyos, dos Pagés.

(Pag. 278.)

Tamoyos erão os primeiros habitantes do Rio.—Pagés erão os sacerdotes, os augures, os medicos dos indigenas de todo o litoral do Brazil—os mesmos a que nos «Primeiros Cantos» dei o nome de piagas. Eis o que n’aquella obra escrevi a este respeito (pag. 417).—«Piagé—Piache—Piaye ou Piaga, que mais se conforma á nossa pronuncia, era ao mesmo tempo o sacerdote e o medico, o augure e o cantor dos indigenas do Brazil e de outras partes da America.» E em outra nota accrescentei: «Erão anachoretas austeros, que habitavão cavernas hediondas, nas quaes, sob pena de morte, não penetravão profanos. Vivendo rigida e sobriamente, depois de um longo e terrivel noviciato, ainda mais rigido que a sua vida, erão elles um objecto de culto e de respeito para todos;—erão os dominadores dos[Pg 420] chefes—a balisa formidavel, que felizmente se erguia entre o conhecido e o desconhecido—entre a tão exigua sciencia d’aquelles homens, e a tão desejada revelação dos espiritos.»—Hans Staden escreve Paygi; Payé lê-se em uma das obras do Padre Vasconcellos, nome que tambem lhes dá Laet na sua «Descripção das Indias occidentaes.» Lery e Damião de Goes escrevem Pagé, orthographia que agora adoptamos.


Sons do murmuré.

(Pag. 278.)

Murémuré escreve o padre Vasconcellos nas suas «Noticias Curiosas»: collige-se que é um instrumento feito de ossos de defuntos, como alguns outros, de que se servião.


Em Guanabara esplendida.

(Pag. 278.)

Guanabara—a enseada do Rio de Janeiro.—Escreve-se indifferentemente Genabara ou Ganabara. Lery diz na sua obra «Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil» en ceste riviere de Ganabara. Southey (History of Brasil) accrescenta em uma nota, que Nicolau Barré datava desta maneira as suas cartas: Ad flumen Genabara in Brasilia etc.


O guáu cadente e vário.

(Pag. 278.)

Guáu—dansa. «São mui dados a saltar e dansar de differentes modos, a que chamão guau em geral.»—VASCONCELLOS. Noticias Curiosas L. 1.—n. 143.


E das ygaras concavas.

(Pag. 278.)

Ygaras—erão canoas, feitas de ordinario de um só toro de madeira.


Os cantos da janubia.

(Pag. 279.)

Janubia.—Lery escreve diversamente: des cornets, qu’ils nomment inubia de la grosseur et longueur d’une demie pique, mais par le bout d’embas larges d’environ un demi pied comme un hautbois.—Obra cit. pag. 202.

[Pg 421]


LEITO DE FOLHAS VERDES.

A arasoya na cinta me apertarão.

(Pag. 281.)

Arasoya era o fraldão de pennas, moda entre elles. Laet chama assoyave a uns mantos inteiros: não sei de que mantos quer o author fallar. Hans Staden (collecção de Ternaux pag. 108) dá o mesmo nome a uma especie de cocar preso ao pescoço, e passando além da cabeça, com quanto a este ornato Lery dê o nome de Yenpenamby. Quanto a arasoya, eis o que se lê na obra já citada deste author (pag. 103): Pour la fin de leurs esquippages, recouvrans de leurs voisins de grandes plumes d’austruches, de couleurs grises, accommodans tous les tuyaux serrez d’un costé, et le reste qui s’esparpille en rond en façon d’un petit pavillon ou d’une rose, ils en font un grand pennache, qu’ils appellent araroye: le quel estant lié sur leurs reins avec une corde de cotton, l’estroit devers la chair, et le large en dehors, quand ils en sont enharnachez etc.


Y-JUCA-PYRAMA.

(Pag. 281.)

O titulo desta poesia, traduzido litteralmente da lingua tupi, vale tanto como se em portuguez dissessemos «o que ha de ser morto, e que é digno de ser morto.»


No meio das tabas.

(Pag. 281.)

Taba—aldeia de indios, composta de differentes habitações, a que chamavão ocas. Quando estas habitações se achavão isoladas, ou fossem levantadas para o abrigo de uma ou já para o de muitas familias, tomavão o nome de Tejupab ou Tejupabas.


São todos Tymbiras.

(Pag. 281.)

Tymbiras—tapuyas, que habitão o interior da provincia do Maranhão.


As armas quebrando.

(Pag. 282.)

Por este acto declaravão firmadas as pazes. Vieira faz menção desta solemnidade quando, em uma informação ao monarcha portuguez, se occupa da alliança feita entre os missionarios por parte dos portugueses e dos Nhe-engaybas de Marajó.

[Pg 422]


Assola-se o tecto.

(Pag. 282.)

A descripção das cerimonias, com que elles usavão matar os seus prisioneiros de guerra, é rigorosamente exacta, ainda que não adoptamos dos authores senão aquillo em que todos ou a maior parte concordão. Veja-se Hans Staden—cap. 28—dos usos e costumes dos Tupinambás.—Noticia do Brazil, cap. 171 e 172. Noticias Curiosas L. 1. n. 188 e Lery cap. XV.


Entesa-se a corda da embira...

(Pag. 282.)

Chamava-se mussurana a corda com que se atava o prisioneiro.—«Et une longue corde nommée massarana, avec laquelle ils les attachent (les captifs) quand ils doivent être assomés.» (H. Staden, pag. 300.) Musurana escreve Ferdinand Denis, accrescentando que era feita de algodão. É possivel que em algumas tribus fosse feita desta materia, mas convem notar que na maior parte dellas era uso fabricarem-se cordas de embira.


Adorna-se a maça com pennas gentis.

(Pag. 282.)

A maça do sacrificio não era o mesmo que a ordinaria, e tinha mais a differença dos ornatos que se lhe juntava, e do esmero com que era trabalhada. Lavravão e pintavão todo o punho—embagadura, como o chamavão—com desenhos e relevos a seu modo curiosos, e della deixavão pendente uma borla de pennas delicadas e de cores differentes, sendo a folha ornada de mosaicos.—«Pintão (diz H. Staden, pag. 301) a massa do sacrificio, a que chamão iverapeme, com a qual deve ser sacrificado o prisioneiro: passão-lhe por cima uma materia viscosa, e tomando depois a casca dos ovos de um passaro chamado Mackukawa de côr parda escura, reduzem-n’as a pó, e com elle salpicão toda a massa. Preparada a iverapeme, e adornada de pennas, suspendem-n’a em uma cabana inhabitada, e cantão em redor della toda a noite.»—Ferdinand Denis, accrescentando-lhe o artigo francez, escreve Liverapeme, que diz ser feita de páo-ferro e com mosaicos de diferentes cores. Vasconcellos dá-lhe o nome de Tangapema, que é o termo do diccionario braziliano.


Brilhante enduápe no corpo lhe cingem.

(Pag. 282.)

Enduápe—fraldão de pennas de que se servião os guerreiros: damos a denominação de arasoya a aquelles de que usavão as mulheres. «Ils font avec de plumes d’autruches une espèce d’ornement de forme ronde, qu’ils attachent au bas du dos, quand ils vont à quelque grande fête: ils le nomment enduap.» H. Staden. Pag. 270. Vasconcellos trata do enduápe sem lhe dar nome algum especial. «Pela cintura apertão uma larga zona: desta pende até os joelhos um largo fraldão a modo tragico, e de tão grande roda como é a de um ordinario chapeo de sol.» Noticias Curiosas L. 1. n. 129.


Sombreia-lhe a fronte gentil kanitar.

(Pag. 282.)

Kanitar—é o nome do pennacho ou cocar, de que usavão os guerreiros de raça tupi, quando em marcha para a guerra, ou se aprestavão para alguma solemnidade, d’importancia igual a esta. «Ils ont aussi l’habitude de s’attacher sur la tête un bouquet de plumes rouges qu’ils nomment Kanittare» (H. Staden).—Usão de umas corôas a que chamão acanggetar (Laet). Os primeiros portuguezes escreverão acangatar, que litteralmente quer dizer «enfeite ou ornato da cabeça».


MARABÁ.

(Pag. 296.)

Encontramos na «Chronica da Companhia» um trecho que explica a significação desta palavra, e a idéa desta breve composição.

«Tinha certa velha enterrado vivo um menino, filho de sua nora, no mesmo ponto em que o parira, por ser filho a que chamão «marabá» que quer dizer de mistura (aborrecivel entre esta gente).» VASCONCELLOS, Ch. da Comp., L. 3. n. 27.


Formosos como um beija-flor.

(Pag. 297.)

Os indigenas chamavão ao beija-flor «Coaracy-aba» «raios», ou mais litteralmente «cabellos do sol».


A MÃE D’AGUA.

(Pag. 302.)

A mãe d’agua é uma naiada moderna, um espirito que habita no fundo dos rios. Acredita-se em muitas partes do Brazil que é uma mulher formosa com longos cabellos de oiro, que lhe servem como de vestido, com olhos que exercem inexplicavel fascinação, e voz tão harmoniosa que ninguem, que a escute, resiste á tentação de se atirar as aguas para que mais de perto a ouça e contemple. O mesmo que as serêas, tem sobre ellas a vantagem de serem creaturas de formas perfeitas, e dellas se distinguem em fascinarem tanto com o brilho da formosura, como com a doçura da voz, e de attrahirem principalmente os meninos.


RETRACTAÇÃO.

(Pag. 366.)

Indisculpavel descuido seria, deixar de mencionar o nome do Sr. D. Carlos Guido, a quem devo ter composto a poesia que tem por titulo «Retractação». Foi este o ensejo. Poucos dias depois de publicados os «Segundos Cantos», recebi uma carta do Sr. Guido: era uma critica, mas critica benevola, cheia de enthusiasmo, escripta sem pretenção alguma e ao correr da pena. Agradou-me, porque me agrada sempre conversar com os meus amigos, e era um amigo que me escrevia, um poeta talentoso, que então pela primeira vez se me revelava como tal,—joven enthusiasta, e cujo coração é como uma pedra de toque da mais exquisita sensibilidade.

Tendo percorrido com a sua analyse algumas das composições do meu 2. volume, accrescentava elle:

«Dir-se-hia que a sua palinodia é um chuveiro de pedras crystallisadas, agradaveis de se vêr, porque são prysmas, que reflectem as mais pronunciadas, fortes e soberbas cores; porêm que devião converter-se em instrumentos terriveis de vingança, quando chegassem até a mesquinha mulher, a quem fossem dirigidos, como um anathema fulminante.

«Se eu não tivesse tanta confiança nos instinctos do coração, que o levão a exhalar o seu amor só onde acha fogo, fidelidade e caricias, pensaria talvez que aquella mulher existe, e então eu faria ao poeta amargas reflexões sobre a crueldade, de que usou para com ella.»

Aceitei a censura, e dirigindo-me ao Sr. Guido escrevi a Retractação, versos filhos d’aquelle momento, e inspirados pela leitura recente da sua carta. Se algum apreço delles faço na actualidade, é por ter feito vibrar a lyra doirada do poeta argentino. Consuelo foi o titulo que deu aos seus versos, e era effectivamente um canto de consolação e de esperança: perdi ha muito o authographo dos versos do Sr. Guido; mas o sentido, a suavidade, a sentida sympathia do seu canto, esses me ficarão no coração.—Consolações e esperanças!—Doces são, por certo, as lagrimas, que sobre nós derramão os olhos de um amigo, ainda que não acreditemos no raio de esperança, que elle s’esforça por entranhar em nossa alma. Efficazes forão as suas consolações; mas ainda mal que os seus votos não tenhão de ser realizados nunca!


NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Artigo publicado na Revista Universal Lisbonense. Tom. 7, pag. 5.—anno de 1847—1848.

[2] Ego sum qui sum.

[3] Et ecce equus pallidus, et qui sedebat super illum nomen illi Mors.

APOC., c. VI.

[4] Em 1851, na typographia do Sr. Paula Brito.

Impresso em Leipzig por F. A. Brockhaus.

NOTAS DE TRANSCRIÇÃO.

Os erros tipográficos evidentes foram corrigidos.

A pontuação, a hifenização e a ortografia foram tornadas consistentes quando uma preferência predominante foi encontrada no texto original; caso contrário, não foram alterados.

As aspas irregulares foram corrigidas quando a mudança era evidente e, caso contrário, foram deixadas de acordo com o original.

Nesta versão, o carácter “caret” (acento circumflexo) foi utilizado com ou sem chaves para representar letras sobrescritas.

*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 74854 ***